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1. A criança e o infantil
1.
Devir-infantil.– Não mais Ser, Uno, Idéia, Eu, alma, espírito, sujeito, pessoa.
Não mais modelo, cópia, acidente, matéria, sensível, inteligível, transcendente,
fenômeno, coisa-em-si. Não mais espécie e gênero, hipótese e princípio, contradição e
mediação. Não mais ciclo, cronologia, evolução, estágio, etapa, fase, idade, geração.
Não mais círculo, centro, vida em hierarquia, mundo em ordem. Não mais retidão do
pensamento, significante e significado, propriedade e atributo, qualidade e substância,
classificação e descrição, categorias e juízos sintéticos, juízo de Deus. Não mais “a
criança” empírica, idealizada, essencial, dotada de características comuns a um certo
número de indivíduos; não mais a forma “criança”, destinada a entrar em oposição ou
complementaridade, a vir-a-ser ou a deixar-de-ser cada uma das outras formas – recém-
nascido, bebê, púbere, adolescente, jovem, adulto, ancião... Daqui para frente, apenas
um pensamento impessoal, inconsciente e involuntário, que pensa o infantil como
paradoxo, acontecimento, devir. Um pensamento que, por não mais pensar a diversidade
como referida ao mesmo, substitui a unidade abstrata “criança” pela multiplicidade
concreta “infantil”; que se abstém de usar o termo “criança”, para não se misturar
indevidamente com outros pensamentos e ficar livre para buscar, além das próprias
crianças, as intensidades do seu devir. Devir, também ele, não mais chamado “devir-
criança”, e sim “devir-infantil”, como o movimento incessante de um pensamento que
reconstrói a própria imanência.
2.
Pensamento puro.– Distinguir uma criança-da-cronologia de qualquer outra
criança – quer seja inconsciente, selvagem, imoral, divina –, a qual deveria ser
recalcada, esquecida, negada, educada, valorizada à enésima potência... não compõe o
pensamento puro do infantil ilimitado, sem medida, que não se detém nunca. Na
simultaneidade de sua matéria indócil, esse pensamento não separa o antes e o depois, a
véspera e o amanhã, mas faz convergir o passado e o futuro, o mais e o menos, o
demasiado e o insuficiente. Ele pensa o infantil, como força ativa e vontade de potência
afirmativa, por meio dos corpos – pequenos e grandes, belos e feios, sãos e doentes,
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velhos e novos... –, que povoam sua superfície paradoxal: corpos sem fundo e sem
interior, cujo avesso prolonga o direito, cujo interior é revertido no exterior, e vice-
versa.
3.
Instância torta.– Para deixar de identificar o infantil e a criança, pensar o sentido
do infantil de maneira paradoxal, ou seja, bifurcá-lo e puxá-lo infinitamente nos dois
sentidos ao mesmo tempo. Ao movimentar, assim, o mecanismo de um plano de
imanência infantil, através de jogos de linguagem, palavras esotéricas, palavras-valise,
não-sensos..., esse pensamento não funde o infantil na espessura dos corpos das
crianças, nem o confunde com o estado de coisas da infância; assim como não converte
a infância em um processo físico, nem fundamenta o sentido do infantil em crianças
materiais, integrantes de um reino da facticidade; tampouco, entrega o infantil a
significações prévias que, ao redor das crianças, disporiam o seu mundo, traçariam vias
e lugares privilegiados de circulação, indicariam de antemão onde e como se pode
produzir conhecimento sobre ele. Para além dessa lógica de significação da infância,
gramática da primeira pessoa, consciência acerca das crianças, o infantil é pensado
como uma instância desordenada, desemparelhada, desequilibrada; portanto, como uma
instância paradoxal, que procede por disjunções múltiplas, circula entre as outras
instâncias – puberdade, adolescência, juventude, adultez, velhice...–, levando-as a se
comunicarem, ressoarem, convergirem, e também ramificando-as. Instância que, par
excellence, opera doação de sentido às outras instâncias, pois só ela é condição do
sentido infantil; e que se apresenta, às vezes, em excesso, noutras vezes, em falta, nunca
estando onde é buscada, e nunca sendo encontrada onde está.
4.
Fantasma instintivo.–
Ponto sem corpo físico,
superfície feita de quase nada,
de intocável, de névoa...
o infantil é fantasma instintivo,
orquestrado por múltiplos Triebs, pulsões, impulsos.
Pele etérea e, ao mesmo tempo, profunda
– “O mais profundo é a pele” –,
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5.
Fronteira impenetrável.– Como evitar a analogia entre o pensamento acerca do
infantil e a consciência sobre a infância ou as crianças? Como não relacionar o infantil
ao estado de coisas da infância? Como desprendê-lo dos conceitos gerais de infância e
criança? Como pensar o infantil enquanto atualização viva? Como pensar o sentido do
infantil enquanto acontecimento? Como descolá-lo do sujeito que dele fala? Talvez,
pensar o sentido do infantil no avesso da proposição aristotélica, que atribui predicados
ao sujeito – “O infantil é alegre”; e aproximá-lo da proposição estóica, que enuncia
apenas acontecimentos – “Este infantil está rindo”. Recusar a cópula “é”, na predicação
do infantil, não evidenciando a qualidade do seu atributo, mas exprimindo-o por um
verbo, que não manifesta um conceito, mas tão-somente o acontecimento incorporal –
“Um infantil se infantiliza”. Talvez, pensar o sentido do infantil, como expresso da
proposição, irredutível aos estados de coisas individuais e à designação “infantil”;
irredutível às manifestações de imagens particulares ou crenças pessoais, do tipo – “Os
infantis adoram animais”; e às significações dos conceitos universais e gerais, tal como
– “Os infantis brincam”. Tomar o sentido do infantil não enquanto palavra, nem
enquanto corpo, representação sensível ou representação racional; mas, antes, tomá-lo
como neutro, indiferente tanto ao individual como ao coletivo, ao particular e ao geral,
ao singular e ao universal, bem como às suas oposições. Um sentido de outra natureza,
que acontece às coisas e que subsiste e insiste nas proposições. Uma fronteira
impenetrável, que marca menos uma dualidade radical entre a linguagem e as coisas do
que o seu posicionamento de um lado e de outro: fronteira que articula a sua diferença.
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6.
A super-criança.–
Como esse pensamento-do-infantil
– que não busca o verdadeiro, mas produz o acontecimento –
pode criar algo tão fugidio, tão singular como um golpe do acaso?
Como? A não ser pelo canal,
onde uma criança entoa os simulacros;
senão por seus membros fragmentados,
por seu corpo sem órgãos,
por sua pele,
na qual, se articulam as profundezas e a superfície;
senão lá, na boca de uma criança,
onde os gritos se recortam em fonemas, morfemas, semantemas;
lá, onde o corpo de uma criança
separa-se do sentido incorporal do infantil.
Nessa boca aberta,
onde cai a voz do outro,
e faz sobrevoar por cima dela os elevados ídolos;
na voz alimentícia de uma criança,
a formação do sentido infantil
e a chispa de seu pensamento
fazem passar séries divergentes que
formam a super-criança,
o além-da-criança: o infantil.
7.
Real.– Longe de se constituir como manifestação topológica do Imaginário, do
Simbólico ou do Real, o infantil é bem real: indivisível, inextenso e, sobretudo,
dinâmico, constituído por múltiplos pontos de força que explodem o Nó Borromeano.
Fica assim dissociada “a criança” – sujeito da infância, central e fundador – do infantil,
já que a este sucedem acontecimentos, enquanto aquela forma significações sobre os
acontecimentos; bem como, fica dissociado o infantil do objeto da infância, que seria o
foco e o lugar de convergência da forma reconhecida e dos atributos afirmados das
crianças. É inútil buscar detrás desse fantasma uma imaginária verdade mais verdadeira
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do que ele mesmo, da qual seria o símbolo, mesmo que confuso, indistinto,
indeterminado; é inútil fazer dele um sintoma, que esconderia a unidade real da
infância. É inútil... Pois, em sua realidade, o infantil não pode ser extraído de figuras
estáveis e de núcleos sólidos de convergência – como “a criança” –, aos quais seria
agradável retornar, quando estivéssemos solitários, doentes, velhos ou desesperançados.
8.
Impassível resultado.– Acontece que o infantil habita a superfície dos corpos –
das crianças, dos homens, das mulheres... –, percebidos pelos órgãos dos sentidos como
sólidos, mas que apenas formam complexos momentâneos e transitórios. Por isso, o
infantil é algo que apenas o pensamento pode pensar, enquanto pensa aquilo que forma
o infantil e vai se formando com este infantil que pensa. Não se pode dizer que o infantil
exista – assim como “a criança chamada Maria, filha do seu André e da dona Flávia” –,
mas que ele subsiste ou insiste na proposição, tendo este mínimo de ser que convém ao
que não é uma entidade existente. Nem agente nem paciente, nem substantivo, nem
adjetivo, ele é um extra-ser: nada mais do que um estéril efeito sonoro, ótico, de
linguagem... Destituído de qualquer eficácia causal e espiritual, o infantil faz existir o
que o exprime e se faz existir no que o exprime, embora ele só exista como sentido-
acontecimento. Enquanto os corpos – com suas tensões, qualidades físicas, relações,
mais os estados de coisas correspondentes – agem e padecem, o infantil resulta dessas
ações e paixões, como efeito incorporal: impassível resultado. Se, por acaso, os Estóicos
tivessem se encontrado com ele, por certo, murmurariam baixinho: Aliquid.
9.
Deixai vir a mim o acaso...– Em que tempo vive esse infantil, se não
corresponde mais a uma das etapas da vida humana? Em qual tempo diverso do
presente, que é o único tempo dos corpos das crianças e dos estados de coisas da
infância? Ora, o infantil vive uma das duas leituras simultâneas do tempo: Aion – o
tempo do infantil. Tempo superficial dos acontecimentos incorporais, tomados em sua
relação com o devir, que remete ao passado e ao futuro simultaneamente; e se contrapõe
a Cronos, que representa o tempo em sua relação com o presente vasto e profundo.
Tempo do infantil, que realça a onipresença do caos ou do acaso, não como o confuso e
indeterminável, mas dividindo-se ao infinito em passado e em futuro, sempre se
esquivando ao presente; tempo, em que só o presente existe no tempo e absorve o
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10.
Quase-físico.– O infantil, como simulacro, joga dados com os dilemas
verdadeiro-falso e ser-não-ser. Nessas ações, ele expressa a sua metafísica, a sua
materialidade incorporal. Metafísica, em tudo distinta daquela da substância, que
fundamenta os acidentes; em tudo distinta também da metafísica da coerência, que situa
os acidentes em um nexo de causas e efeitos. Materialidade, que não pertence à ordem
dos corpos, mas é efeito produzido por suas misturas. Metafísica e materialidade que
fazem o infantil inacessível aos olhos, à mão, à língua, ao nariz... A infância física e as
crianças empíricas podem até concerner às causas, mas o infantil, como acontecimento
– que é propriamente seu efeito –, já não pertence à causalidade, porque os corpos, ao se
entrechocarem, ao se separarem, formam entre si a trama de uma quase-física. Nessa
trama, a singularidade infantil é pré-individual, não pessoal, aconceitual. Trata-se de
uma singularidade neutra, que não tem nada a ver com a complementaridade entre senso
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11.
A ilusão.– Se o infantil não radica num corpo de criança, com suas tensões,
qualidades físicas, relações... Se não corresponde ao estado de coisas da infância,
determinado pelas misturas entre os corpos... Se não serve de referente a uma
proposição, em relação à qual uma asserção possa ser verdadeira ou falsa... Se não serve
para verificar nada... Ele pode então ser uma desgraça? Ele pode ser um espelho que
ilude? Tememos esse seu caráter ilusório? Ora, o infantil não é nenhuma ilusão; é a
ilusão que é infantil.
12.
Infantilizar.–
A ilusão, que é infantil,
flutua no limite das coisas e das palavras,
é aquilo que se diz do infantil,
não o que lhe é atribuído,
não o infantil em-si-mesmo.
O infantil não é o processo nem o estado
é o que acontece:
de modo inocente,
desavergonhado, irracional,
cruel, sem compaixão,
de costas para todo modelo,
Bem e Mal,
ente supremo,
uma única vez,
semelhança, imitação, fidelidade...
Essa ilusão precisa de outra gramática, que
não se localize mais na proposição sob a forma de atributo
– “estar” ou “ser infantil” –,
senão que seja dita pelo verbo,
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13.
Tripla sujeição.–
1. Uma metafísica do acontecimento incorporal;
irredutível, pois, a uma física da infância.
2. Uma lógica do sentido neutro;
em vez da significação da criança como o sujeito de infância.
3. Um pensamento do infinitivo presente;
e não o relevo do futuro do humano na essência do passado da infância.
Eis a fórmula para eliminar a tripla sujeição,
na qual o infantil vem sendo mantido.
14.
Filho de Dionísio-Ariadne.– Tratar do pensamento metainfanciofísico como se
fosse um conjunto de saberes freudianos, piagetianos, freireanos é um equívoco.
Enquanto turbilhão anônimo do discurso sobre o infantil, esse pensamento ocorre pela
emissão nômade de jatos de singularidades neutras ou de acontecimentos ideais. Ele
pensa o infantil liberto da similaridade, como desejo alegre, mil pontos dispersos,
máscara singular que não recobre nada, simulacro sem dissimulação, esquecimento
desmesurado, fantasma da dupla afirmação disjunta, repetição sem original, pura
diferença. Pensamento do devir, que não repousa no fundo dos corações, nem voa acima
das cabeças, mas nasce num campo transcendental, anunciando o plano de imanência
infantil. Plano que, ao ser traçado, reverte o platonismo da infância, destituindo a
essência da criança para substituí-la pelo acontecimento-infantil. Acontecimento, que
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15.
A verdadeira obra de arte.–
Nos estudos sobre a infância e as crianças,
há algo mais interessante a ser pensado do que o infantil,
única idealidade possível?
No campo transcendental
da metainfanciofísica,
o pensamento
passa da superfície física da infância
e dos corpos materiais das crianças
para o seu efeito-infantil,
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2. O bebê e a tartaruguinha
Riso
Nem bem abres os olhos,
e vês gestos de exaustão.
Se te pegam ao colo, aspiras nostalgia.
Se te ninam, ouves lamentos
de aniquilamento, desaparecimento,
perda irreversível, estado terminal, fim.
Em tua boca, engastam palavras de restituição.
Em tua pele, riscam estratégias de ressurreição.
No tempo devido,
transforma o teu pranto em riso,
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Não postergues,
nem elimines a realidade.
Combate versões
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Vida
Quando falarem no declínio absoluto ou relativo da infância,
imagina uma criança expropriada,
despossuída de seu eu;
que deveria ter o que não tem,
ser o que não é,
fazer o que não faz:
um ser da falta.
Então, avalia:
falar, sem parar, no declínio desse ser,
não é insuflar-lhe a vida?
Simples
O sujeito-de-infância é um imperativo?
Investir sobre a infância calca-se na crença de que, daí,
surgirá outra-criança?
E se o lugar desse sujeito ficar disponível?
Entregue
Entregue à identidade,
a criança recebe determinação essencial:
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Aprofundamento da determinação:
selecionam-se crianças que merecem o título de ser –
há crianças que são verdadeiramente,
e aquelas que não são verdadeiramente;
há também as que são,
mas imprópria e parcialmente.
Hierarquia ontológica
de disposição das crianças,
conforme a pureza de sua essência.
Concomitante criação do sujeito-de-infância:
comum, gregário, útil, proveitoso.
Onda de mesmidade sobre hecceidades.
Língua de paz.
Ilha bem-aventurada do pensamento.
Sujeito,
a ser localizado, datado,
descentrado, desconstruído,
corporificado, fragmentado, multiplicado:
ações ainda insuficientes para subverter a filosofia do sujeito.
Acontece?
A identidade da criança
conduz à Origem,
semelhança, hierarquia imóvel,
negatividade, dialética,
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Infantil alciônico,
constituído pelo devir,
no plano do mutável.
Infantil e criança:
da multiplicidade à identidade;
do potencial à posição;
do devir ao Ser;
dos rizomas à arborescência;
da esquizofrenia à subjetivação edipiana.
Desmesura
O infantil-hybris:
desmesura da força, diante do conceito-lei;
infinitude do infinito, na riqueza do eterno retorno.
Orgulho
Conceito nenhum apreende
o infantil de uma coisa, corpo, fato, fenômeno.
Sem ser representável,
encontrável ou recebível, como um dado,
orgulhosamente,
o infantil não-é...
aplicável univocamente,
com o mesmo sentido,
a diversas singularidades.
Aberto
Despossessão afirmativa da infância:
não-volta a uma integridade perdida;
fortalecimento da iterabilidade, alterabilidade e alteridade do Mesmo.
Despedaçamento do sujeito-criança:
não-retorno ao indiferenciado;
deslocamento para o Aberto – pensamento inteiramente-outro.
Colapso
Do ponto de vista molar,
um colapso catastrófico:
explosão dos estratos codificados da infância,
desarticulação e fuga dos aparatos de captura das crianças.
Demônio
A fluir, perdura por um contínuo romper-se.
Em ex-propriação,
curta-circuita, mistura,
joga fora propriedade, unidade, totalidade.
Variável em modificação.
Multiplicidade virtual.
Conjunção de linhas de força.
Proliferação assubjetiva, assignificante e acategórica.
Produção maquínica.
Potência demoníaca do futuro.
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Trágico
Parece ainda um “sujeito”,
mas é anterior à individuação.
Sujeito larvar.
Envoltura. Pele. Fronteira.
Efeito de função ou operação.
Dobra do lado de fora.
Universo de intensidades.
Pré-posição.
Modificação dos limites que sujeitam.
Outras políticas.
Lance de jogo:
aleatório, perigoso,
hirsuto e agressivo.
Invencível
Infantil-invencível...
Tu e a tartaruguinha de Lawrence:
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1.
Ó Pequena! Durante os séculos, fortaleceste o teu corpo, correndo pelo mundo,
sem te cansar? Brincaste com a fauna em madeira da arca de Noé, câmaras ópticas,
marionetes, cavalos de balanço, soldadinhos de chumbo, trenzinhos elétricos, bolas de
meias, rodas de penas, chocalhos, arcos, tacos, pipas, casinhas, bonecas – de bétula,
cera, lã, palha, plástico, porcelana, trapo –, navios de estanho, ossos, areia, argila, papel,
plastilina, metais, tecidos, vidro, vime, videogame? Jogaste com as máscaras e os
duplos, com a lírica e a música, com os fundamentos e os rostos, com os nomes
próprios? Montaste arquiteturas? Movimentaste superfícies? Geraste figuras no teatro
de sombras chinês? Fizeste micagem com o macaco? Seguiste o tranco do asno? Subiste
no dorso do camelo? A águia te carregou para o céu? A serpente se enroscou em teu
corpo, só para te abraçar? Em todo lugar onde brincavas, havia um segredo enterrado?
Agora, tua velha verdade está chegando ao fim? Tua multiplicidade torna-se irredutível
à unidade? Rasga-se a nervura de tua vitalidade? Viras nada mais do que um ser da
passagem?
Como as abelhas que acumulam mel, terão eles adquirido tanta sabedoria, ou
morrerão da fria ignorância sobre si mesmos? Pequena, será que, desde a sua incerteza,
criarão outro ser para te substituir? Um outro pequenino, que os façam se rejubilar de
suas pessoas, se amarem a si próprios, novamente e sem medidas? Um ser que deverá,
um dia, tornar-se um sujeito completo? Um pequenino, a quem eles se oferecem como
resultado, incutem responsabilidades, mágoas, culpas, distribuem sonhos? Um ser, que
encarna a loucura e a pobreza, mas que, paradoxalmente, expressa a sua riqueza e
racionalidade? Um pequenino ser, para prosseguir testemunhando que suas filosofia,
moral, ciência e arte instauram valores verdadeiros, pelos quais tudo é julgado?
Para criar esse outro ser, eles precisarão baixar às profundezas, mergulhar à
noite por trás do mar, ir à caverna mais inferior! Falar a todos, abençoar a todos,
conjurar o existente, venerar o teu declínio, esvaziar o cálice de fel do teu fim... Para
que escorra a água dourada da tua não-identidade!
2.
Ó, Pequena, como estás mudada! Como o impensado te reaviva! Brilhas!
Mas, por que tornas visível esse resto teu? O que levas, aí, no colo, embrulhado
em xales? São cinzas? De quem, do quê? E de onde vem esse diadema de fogo que em
tua cabeça arde com tamanha intensidade? O que queres, agora? Abrasar o mundo? Não
tens medo dos castigos que sofrem os incendiários?
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Não nos enganes, Pequena! Olha-nos com a limpidez de quem nada quer dizer!
Espanta do teu corpo os malquereres, o cansaço, a aflição e a tristeza! Rastreia a relação
contigo mesma! Faz sobressair o que tinhas retraído!
Não entendo: o que vais procurar entre os que sonham com outra-criança?
– Sim! O amor a mim própria faria com que eu não sucumbisse. Eu amo apenas
aqueles que experimentam o além-da-criança! Por isso, lhes trago um presente! Não
vim redimir as crianças, ajudá-las a carregar os seus fardos; mas suprimi-los, para livrá-
las do mundo-da-infância!
O que estás dizendo, Pequena? Recusas, então, este preceito máximo da moral: o
amor à criança e a proteção à infância?
– Vim, para restituir dignidade à criança! Vim, para que aceitem os meus
tesouros! Eu própria vou me transformar em dádiva... O que tenho eu para dar, a não ser
a des-apropriação de mim mesma? A não ser, nesse dar-me, criar um além-de-mim?
niilista! Porém, o que será daqueles para quem a criança pouco vale? Daqueles para
quem tudo o que integra o mundo-da-infância é maculado pelo pecado, pela
incompletude, pela deformação? De qualquer modo, mesmo para esses, a criança e a
infância ainda valiam alguma coisa! Vens dizer, agora, que tudo era uma ilusão? Não
escutas, em tuas pegadas, o desmoronamento e a destruição?
– Porque estou alegre é que a criança está morta! Não é porque ela está morta
que eu estou alegre! A ação criadora de minha alegria e pensamento afirmativo é que
produz o fim da criança!
3.
– A criança é algo que deve ser superado. Eu vos proponho a super-criança!
Cuidado, Pequena! Talvez, alguns achem que não anuncias a super-criança, que
não preparas as suas vias e aplainas os seus caminhos, mas que tu própria és a super-
criança! E, assim, vão acabar te igualando a ela!
– Até agora, todos os seres imaginaram alguma coisa superior a eles! Como
podem alguns agir no reverso desse fluxo? Preferirão antes voltar à criança do que
elevar-se até a super-criança? Para esta, aquela é objeto de ignomínia! Eu vos ensino a
super-criança!
– Dizei à vossa vontade aquilo que eu venho repetindo desde o nascer até o pôr-
do-sol: que a super-criança seja o sentido da Terra-do-Infantil!
Entretanto, Pequena, essa super-criança é tão estranha! Ela não é uma nova
espécie, engendrada por seleção natural ou cultural, que substituiria a criança atual! Ela
é uma criança do por-vir... Ela se esquece de si mesma... Ela se deprecia... Ela se
aniquila... Ela afunda no seu ocaso...
infância! Eu os conheço! São uns envenenadores! Antes, quando eu nem era pensada, a
ofensa à criança era a maior das ofensas! Mas, a criança está morta, e com ela morrem
também seus detratores! Antes, o terrível era que eles olhavam o corpo da criança com
desprezo, e esse desprezo era considerado o que havia de mais sublime! Por isso, eles
preferiam o corpo da criança magro, horrendo, faminto, intoxicado, violado, prenhe de
sete demônios! Pretendiam assim sobrepor-se a ele! Agora, quebrou-se a identidade
asseguradora desse corpo enjeitado. Ele acabou! Finou-se! Foi-se! Desencanta-se a
sombria casa da infância! Só o além-da-criança permanece, subsiste, insiste, repete-se,
renova-se! Engendrada por palavras ditas de maneira indizível, a super-criança levanta-
se, envolta pela nébula fluida e granulosa que dessas palavras sopra. Eu amo a super-
criança! Aprendei também a amá-la!
4.
Ó Infantil! Ensinei-te a suportar as dores da existência e a desfrutar os prazeres
do mundo! O que fazes aqui, deitado junto ao rio, lendo um livro, cujo torvelinho das
letras te envolve como flocos de neve? Cansaste de nadar? Não queres mais coletar
pedras, colher flores, capturar borboletas? Em teu falanstério, não mais esmagas as
pinhas com pedra para extrair-lhes pinhões? Paraste de seguir os espíritos? Não mais
farejas e rastejas para seguir seus vestígios escorregadios? Teu tempo de caçador
chegou ao fim? Agora, somente palmilhas as pirâmides, as criptas dos Templários, o
arsenal de armas, a estufa de plantas, os museus policiais?
Ó meu deusinho! Dei-te sapatos coloridos para dançares cirandas na Terra! Com
o Sol, aprendeste a rodar! Com os planetas, a voar alto! Com as videiras, o
esquecimento salutar da embriaguez! Os ubres das vacas sagradas te deram o leite da
pura afirmação! Os enforcados te ensinaram o valor das cordas!
Tu, passarinho, és agora o mais leve! Canta para demarcar teu território!
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Ser estelar! Profana o dia verde, como amante da noite que és! Abre o teu sorriso
mais claro do que a Lua! Galopa a escuridão! Abraça a natureza antes de beijá-la!
Experimenta a vida, num êxtase primordial de domínio! Mas experimenta-a até o fim,
até a singularidade da tua própria experimentação. Vive o tempo do eterno retorno de
todas as coisas! Converte o pesado em leve, o baixo em alto, a dor em alegria!
5.
Infantil-concha! Entre o mar e o rochedo, com volumes e estrias e cores e
calcário, faz-te por ti mesmo! Doa-nos a vontade de existir para ti, de amar só a ti, de
morar em tua casa de concha retorcida em espiral! Em noites de plenilúnio, dá-nos
vontade de devir polvo, caranguejo, alga encaracolada e diáfana, conchinha silícea,
couraça quitinosa, esponja, filamento de ervas marinhas, eflorescência de corais, ouriço-
do-mar, medusa da cor de açafrão... Vontade de ir e vir com as marés...
Pois eu te amo, ó infantil!
Infantil-imã! Afasta de mim este teu olhar de diamante! Não sabes ficar só?
Onde foi parar tua liberdade de artista? Em que canto de bronze ficou o teu excesso de
trágico? Ris! E a seiva do teu riso encharca o universo!
Pois eu te amo, ó infantil!
Infantil-harpa! Dedilha tua alegria! Tagarela com a alma! Apronta tolices com o
instante! Diz disparates à vida! Zumbe insensatez! Zomba da ordem! Cultiva o caos
dentro de nós! Caotiza-nos!
Que te importa se te amo?
4. (Des)embaralhar...
Axioma IX: O infantil é variação criadora, livre e presente, que se introduz entre
as malhas dos produtos e transborda do conjunto majoritário padrão.
Assim, todo mundo é minoritário, isto é, todo mundo pode ser infantil, desde que
se desvie do modelo de poder histórico ou estrutural, ou ambos ao mesmo tempo.
5. Não se sabe...
Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza
consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não
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há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale
ou de uma imago Dei. Até que um outro – mundo possível? – chegasse, foi identificado
à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi
considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação
transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por
humano. Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu movimento estabelece
hierarquias temporárias. Pensamentos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta,
mas também seus tecidos, órgãos e células. Atua contra sentidos estabelecidos, normas
coercitivas, querer divino, ídolos axiológicos da moral, arrière-monde. Opera, antes de
tudo, contra a morte. Não visa objetivos, não admite tréguas, não prevê fim. A partir do
combate incessante, surgem forças dominantes, que o fazem agir, e forças dominadas,
que o levam a reagir. São essas forças que constituem sua vida, natureza e cultura.
Sendo um fora-da-lei, fora-do-contrato, fora-da-instituição, tem retiradas as
possibilidades dos seus instintos atuarem, quando fica encerrado no âmbito da Família,
do Édipo, da Escola, do Estado, dos Direitos Humanos, da Paz. Então, esses instintos
voltam-se contra si mesmos e o seu desenvolvimento ruma para o espírito de
gregariedade: mediano, vulgar. Ao lutar contra a desvalorização dos instintos estéticos –
tanto apolíneos como dionisíacos – pela razão, é um rebelde, em face do saber
consciente que diminui sua sabedoria instintiva. Em seu querer, o sentir e o pensar
encontram-se imbricados e o pensamento disseminado pelo corpo. Ao articular vida e
pensamento, faz experiências com todas as coisas, sobretudo consigo mesmo. Detesta o
preceito Tudo o que é belo é racional e nunca subordina a poesia à lógica, por
considerar que os instintos vitais é que constituem sua força afirmativo-criativa. Aliando
tal força à hipertrofia da consciência e da memória, esquece. Para sentir alegria, leveza,
esperança, orgulho, basta-lhe a inconsciência salutar associada ao esquecimento.
Instalado no limiar do instante, apaga lembranças, já que sem esquecer não age e não
vive. Nas relações com o meio, a superficialidade é um dos seus traços marcantes e até
mesmo definidor. Possui a pretensão de saber como suas ações são produzidas, mesmo
que elas nunca sejam o que lhe parecem ser. Mostra-se, por vezes, como uma unidade,
forma mais alta, suprema espécie de ser, progresso da consciência, conhecimento
absoluto, critério superior de valor; embora seja apenas conjunturalmente utilizável para
a manutenção da vida em grupo. Nos conceitos, gêneros, espécies, categorias, sistemas,
encontra somente anseios e necessidades humanas de sobrevivência. Assim, desmascara
as ilusões das ciências humanas e sociais, da religião e da moral, mostrando que elas são
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positivo e criador, não pode deixar de existir. Só que já não é mais ele mesmo...
Desligado da falsa infância que nunca houve, faz proliferarem desejos, paixões e
conexões com o campo social e político. De maneira a ser irremediavelmente
multiplicado, enquanto condição da própria criação: “um novo começo, um jogo, uma
roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” (Nietzsche,
s/d, p.44).
Referências bibliográficas
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para
ninguém. Tradução Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
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