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A forma da água: a solidão é retrô

Sabe aqueles filmes da sessão da tarde? Com Ginger Rogers e Fred Astaire flutuando os
pezinhos sobre um piso de linóleo, uma orquestra morna e um cortejo de vedetes
emplumadas compondo aquele universo onírico em tons de prata e com chiado de
gramofone? Sabe aqueles filmes sobre espionagem e intriga internacional? Sabe quadrinhos
sci-fi, com monstros e aliens de olhos mais ternos que os nossos? Sabe ultrarromantismo, tão
em desuso, tão execrado como um clichê fadado ao ridículo?

Tão ridículo quanto os números de sapateado numa TV em preto e branco. Quanto os


anúncios publicitários pintados à mão. Quanto cinemas de rua com carpetes de veludo
vermelho e letreiros que reciclam uma programação pouco requintada. Tão ridículo quanto a
ideia de revolucionária de monstros marinhos diante de nossa humanidade decadente. Tão
ridículo quanto a ideia de apaixonar-se.

A forma da água (Guillermo del Toro, 2018) é um filme feito do datado, dos desusos. O retrô
como marca daquilo que não se encaixa, que sobra ou falha. O familiar (o estranho freudiano,
aquilo que está tão, mas tão perto de nós, que nos convulsiona ao expor nossos segredos) está
ali para segredar justamente a impertinência. A impertinência dos renegados, que seguem
parte do tecido humano como pequenas marcas da imperfeição do coletivo, invisibilizadas. A
faxineira negra que sobrevive às custas de sagacidade e abnegação, o pintor de cartazes que
tenta esconder as marcas da idade e inventar um escape para sua sexualidade dissidente. A
jovem mulher sem voz (literal e socialmente) que vive presa a uma rotina que a contém como
uma casca de ovo. Regrada por um cronômetro que faz da vida não um acontecimento, mas
um amontoado de episódios sempre iguais.

Há também a impertinência dos incluídos à impossível estabilidade de um sistema que os


mutila e deforma, sempre em busca de uma adaptação como fuga a todas as excrescências,
passando pela legitimação de si na tortura e eliminação ao alheio. O que vemos no
personagem de Michael Shannon, cuja quintessência da masculinidade consiste em expressar
ódio a tudo o que está fora do seu espectro de poder militarista. Um Don Draper sem conflitos
morais, forjado com os ingredientes do imperialismo American Way of Life. Por trás da casa
com jardim, crianças brincando, esposa troféu e cadillac reluzente, o apodrecimento da alma e
a total perda de humanidade.

No elenco, nenhum rosto especialmente conhecido, todos excessivamente familiares e


repetidos na condição de coadjuvantes. Como Richard Jenkins, o terno ator de O visitante,
Sally Hawkins, de Simplesmente Feliz, Octavia Spencer, vencedora de um Oscar de coadjuvante
por Histórias Cruzadas e o Michael Shannon, de Foi apenas um sonho, sempre intenso.

De certa forma em papeis tipificados, mas penso que este é um dos trunfos da direção: o que
os destaca é justamente aquilo que deixam escapar. O sinistro vilão é uma construção externa
dos desejos que lhes são impostos cotidianamente. A moça tímida é uma catarse silenciosa de
ações e sentimentos. A faxineira é a mente analítica da sobrevivência. O pintor, um
colecionador de memórias que abastecem o seu presente desfalecido do passado perdido.
Nada é aparente, por isso o fabuloso se torna tão nítido, quase comum. Marca da eterna
procura de nos enxergarmos um pouco mais vívidos nos olhos do outro. Em formas exteriores
à nossa. A forma da água surge como cápsula do tempo retrô para nos aquietar da realidade
que nos deforma.

Como está no poema que encerra o filme:


Unable to perceive the shape of you,
I find you all around me:
Your presence fills my eyes,
With your love;
You've humbled my heart,
For you are everywhere.

Uma nostalgia pelo inquietante que se conecta ao presente pela metáfora da solidão, uma
constante de nosso tempo.

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