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ONDA
A Ú LT I M A
E STR EL A
R I C K YA N C E Y
Dedicatória
Para Sandy
“O mundo termina. O mundo recomeça.”
Que ninguém se desespere,
mesmo que na noite mais escura
a última estrela de esperança desapareça.
Friedrich Schiller
A garota que podia voar
Há muito tempo, quanto ele tinha 10 anos, o pai dela tinha dirigido
um grande ônibus até o planetário.
Ali, o teto explodiu em um milhão de fragmentos cintilantes de luz.
Ele ficou boquiaberto. Seus pequenos dedos se agarraram na borda do
banco de madeira onde se sentara. Acima de sua cabeça, pontinhos de
fogo branco giravam, puros como o dia em que a Terra emergiu como uma
pedra escurecida e manchada, um planeta médio descrevendo uma órbita
em torno de uma estrela média na borda de uma galáxia média em um
universo sem limites.
O Grande Mergulhão. Órion. Ursa Maior. O zunido do tom monóto-
no da voz do astrônomo. Os rostos erguidos das crianças, bocas abertas,
olhos sem piscar. E o menino sentindo-se infinitesimalmente pequeno sob
a imensidade do céu artificial.
Ele não esqueceria aquele dia.
Anos depois, quando sua filha era muito pequena, ela corria para ele,
pernas gorduchas de bebê vacilantes, bracinhos sólidos erguidos, olhos
queimando de expectativa e alegria, gritando, papai, papai, dedos curtos
estendidos para ele, estendidos para o céu.
E ela saltava, lançando-se sem medo no espaço vazio, porque ele não
era apenas seu pai – ele era papai. Ele a apanharia; ele não a deixaria cair.
Gritando: Voa, papai, voa!
E para cima ela ia, disparando na direção da imensidão do céu sem
limites, braços abertos para abraçar o infinito, a cabeça jogada para trás,
correndo para aquele lugar em que o terror e o espanto se encontram, seus
gritos estridentes a hilaridade destilada de ser livre e leve, de estar segura
em seus braços, de estar viva.
Cassiopeia.
Daquele dia no planetário, quando a vida dela se encontrava 15 anos
no futuro, não havia dúvida de que nome lhe daria.
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“VOU ME SENTAR COM VOCÊ”
E
ste é o meu corpo.
Na câmara mais baixa da caverna, o padre ergue a última hóstia
– seu suprimento tinha acabado – em direção das formações que o
lembravam da boca de um dragão congelada em meio ao rugido, as presas
como dentes cintilando vermelho e amarelo à luz da lâmpada.
A catástrofe do divino sacrifício por suas mãos.
Tomem isto, todos vós, e comam‑no...
Então o cálice contendo as últimas gotas de vinho.
Tomem isto, todos vós, e tomem‑no...
Meia‑noite no final de novembro. Nas cavernas abaixo, o pequeno gru-
po de sobreviventes vai ficar aquecido e escondido com suprimento sufi-
ciente para durar até a primavera. Ninguém morreu pela praga em meses.
O pior parece ter passado. Eles estão seguros ali, perfeitamente seguros.
Com fé em teu amor e misericórdia, aceito o teu corpo e bebo o teu sangue...
Seu sussurros ecoam nas profundezas. Eles escalam as paredes lisas,
deslizam ao longo da passagem estreita na direção das câmeras superiores,
onde os companheiros refugiados caíram em um sono inquieto.
Não deixe que me traga condenação, mas saúde na mente e no corpo.
Não há mais pão, não há mais vinho. Esta é a comunhão final.
Que o corpo de Cristo me conceda a vida eterna.
O pedaço de pão velho que amolece em sua língua.
Que o sangue de Cristo me conceda vida eterna.
As gotas de vinho oxidado que queimam em sua garganta.
O padre chora.
Ele derrama algumas gotas de água no cálice. Sua mão treme. Ele to-
ma o sangue precioso misturado com água e então limpa o cálice com o
purificador.
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Ele carrega os corpos de suas vítimas para a superfície, dois de cada
vez, um debaixo de cada braço, e os joga no fosso, largando‑os sem ceri-
mônia antes de descer para outra carga. Depois de Agatha, ele matou o
resto enquanto dormia. Nenhum acordou. O padre trabalhou em silêncio,
depressa, com mãos firmes e seguras, e o único ruído foi o sussurro do
pano se rasgando enquanto a lâmina fundava nos corações de todos os 46,
até que o seu era o único coração que ainda batia.
Começa a nevar ao amanhecer. Ele fica do lado de fora por um mo-
mento e ergue o rosto para um céu negro e cinza. A neve pousa em suas fa-
ces pálidas. Seu último inverno por um tempo muito longo: no equinócio,
o casulo vai descer para devolvê‑lo à nave mãe, onde irá esperar a limpeza
final da infestação humana pelos que o treinaram para realizar a tarefa.
Quando a bordo da embarcação, da serenidade do vazio, ele irá obser-
var enquanto lançarem as bombas que irão obliterar cada cidade da Terra,
limpando os vestígios da civilização humana. O apocalipse sonhado pela
humanidade desde a aurora de sua consciência finalmente será entregue –
não por um deus irado, mas indiferentemente, tão frio quanto o pequeno
padre quando enterrou a faca no coração de suas vítimas.
A neve derrete em seu rosto erguido. Quatro meses até o final do in-
verno. Cento e vinte dias até que as bombas caiam, e então o desencade-
amento da 5ª Onda, os peões humanos que condicionaram para matar a
própria espécie. Até então, o padre vai ficar para abater qualquer sobrevi-
vente que vagar em seu território.
Quase acabado. Quase lá.
O pequeno padre desce para o Palácio dos Deuses e quebra seu jejum.
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ESPECIALISTA
Ao meu lado, Navalha sussurrou:
– Corra.
Sua pistola explode ao lado do meu ouvido. Seu alvo era a menor coisa
que é a soma de todas as coisas, sua bala, a espada que rompeu a corrente
que me prendia a ela.
Teacup.
Quando Navalha morreu, ele ergueu seus olhos suaves e comovedores
até os meus e sussurrou:
– Você está livre. Corra.
Eu corri.
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Estilhaço e atravesso a janela da vigia, o chão disparando para o alto a
fim de me encontrar.
Quando aterrisso no asfalto, nem um único osso se quebra. Não vou
sentir dor. Eu fui aperfeiçoada pelo inimigo para suportar quedas maio-
res do que essa. Minha última queda começou a 1.500 metros. Esta é fácil.
Aterrisso, rolo e fico em pé, corro ao redor da torre, depois pela
passagem em direção da barreira de concreto e da cerca protegida por
arame farpado. O vento grita em meus ouvidos. Agora sou mais
rápida do que o animal mais rápido da Terra. Comparado a mim, o
guepardo é uma tartaruga.
As sentinelas no perímetro devem me ver, e o homem na torre de vi-
gia também, mas nenhum tiro é disparado, nenhuma ordem é dada para
me abater. Corro até o fim da passagem como uma bala cantando no cano
de uma arma.
Eles não podem pegá‑la. Como eles poderiam pegá‑la?
O processador instalado em meu cérebro fez os cálculos antes mesmo
de eu atingir o chão e já transmitiu a informação para os milhares de drones
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de pó, ela vai estar ali, implacável, impenetrável, inescrutável: Deus foi
destronado.
E continuo a correr. Por uma paisagem primitiva sem marcas de qual-
quer coisa humana, o mundo como era antes que a confiança e a cooperação
soltassem a besta do progresso. Agora o mundo está voltando para o que era
antes de o conhecermos. Paraíso perdido. Paraíso devolvido. Lembro‑me do
sorriso de Vosch, triste e amargo. Uma salvadora. É isso que sou?
Correndo em direção ao nada, fugindo do nada, correndo por um ce-
nário vazio de um branco sem mácula sob a imensidão do céu indiferente,
vejo agora. Acho que compreendo.
Reduzir a população humana a um número sustentável, depois tirar a
humanidade de dentro dela, visto que a confiança e a cooperação são ame-
aças reais para o delicado equilíbrio da natureza, os pecados inaceitáveis
que impeliram o mundo para a beira do penhasco. Os Outros concluíram
que a única forma de salvar o mundo era aniquilar a civilização. Não pelo
exterior, mas do interior. A única forma de aniquilar a civilização humana
era mudar a natureza humana.
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Continuei a correr pela mata. Ainda sem perseguição. À medida que
os dias passavam, eu me preocupava menos com a aproximação de heli-
cópteros e equipes de ataque saltando para baixo e mais com ficar aquecida
e encontrar a água potável e a proteína de que eu precisava para sustentar
o frágil hospedeiro do 12o Sistema. Cavei buracos para me esconder, cons-
truí abrigos sob os quais dormir. Transformei galhos de árvores em lanças
e cacei coelhos e alces e comi a carne crua. Não ousei acender uma foguei-
ra, mesmo sabendo como; no Campo Abrigo o inimigo me ensinou. O ini-
migo tinha me ensinado tudo que eu precisava saber sobre sobrevivência
na selva, depois me deu a tecnologia alienígena que ajudou meu corpo a se
adaptar a ela. Ele me ensinou o que os seres humanos esqueceram após dez
séculos de cooperação e confiança. Ele me ensinou sobre o medo.
A vida é um círculo confinado pelo medo. O medo do predador. O
medo da presa. Sem medo a vida não existiria. Certa vez tentei explicar is-
so a Zumbi, mas acho que ele não entendeu.
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