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Do mito à estrutura: ou sobre as derivas da fórmula canônica dos mitos no ensino de Lacan

Hudson Vieira de Andrade


hudson.deandrade@hotmail.com

O pós segunda guerra na França foi marcado por uma querela entre de um lado Existencialistas e
de outro Estruturalistas, esse período de forte efervescência intelectual ficou marcado por calorosas
disputas acadêmicas entre grandes figuras que marcaram o século XX e cujos nomes ainda hoje se
fazem presente. Nesse período, de modo marginal uma corrente de pensamento começa a adquirir
força com Claude Lévi-Strauss em sua dianteira. Correlato ao gradativo desinteresse pelo trabalho de
Jean Paul-Sartre e sua Crítica da razão dialética, um movimento altamente heterogêneo é
denominado pela impressa francesa no início dos anos 60 de Estruturalismo, ele se caracterizava por
um campo interdisciplinar influenciado pela linguística de Saussure, pela fonologia de Jakobson e
pela etnologia de Lévi-Strauss, atravessado por uma forte influência da tradição epistemológica
francesa e sua busca por formalização (Clémente, 2004). O Estruturalismo se tornaria quase sinônimo
de formalização buscando subsidiar uma consistência teórica e metodológico às Ciências Humanas
equivalente aquela utilizada nas Ciências da Natureza.
É nessa atmosfera que uma nova página no diálogo entre psicanálise e antropologia será escrita,
especialmente pela recepção feita por Lévi-Strauss da obra de Freud e posteriormente da relação
estabelecida entre o primeiro e Lacan. Já em seus estudos sobre a relações de parentesco Lévi-Strauss
(1949a) reconhecera em Totem e Tabu seu valor estrutural, em 1955 são publicados dois artigos com
referências explicitas e com teses ousadas à psicanálise. No primeiro desses artigos, intitulado d’A
Eficácia simbólica (1949b) o antropólogo comentará sobre os modos de cura nas tribos indígenas
comparando o efeito terapêutico do xamã ao do psicanalista. No segundo artigo, A estrutura dos mitos
(1955), em sua análise dos mitos o autor busca descrever por meio de uma escrita algébrica conhecida
como formula canônica dos mitos uma matriz comum referente às várias versões de um mesmo mito.
O mito que receberá destaque por Lévi-Strauss nesse último artigo é o mito de Édipo, isso não deixa
de ser sem consequências para psicanálise visto sua posição privilegiada na teoria. Há uma tese que
subjaz os dois artigos segundo a qual a neurose não seria uma patologia, doença ou distúrbio, mas ela
seria na realidade um mito que perdeu sua função coletiva.
. Se por um lado Lévi-Strauss importa conceitos e noções da psicanálise, tudo indicar que Lacan
também se beneficiou pelo contato com o antropólogo francês. Ao longo do ensino de Lacan as
referências levi-straussiana abundam: seja em sua releitura do caso Dora já em 1951, depois em 1953
na conferência O mito individual do neurótico onde o caso Homem dos Ratos é tomado em sua
vertente mítica, além de ter influenciado na sua revisão da teoria das psicoses no seminário de 1954,
as referências continuam no seminário de 1956-57 ao reler a fobia do pequeno Hans, posteriormente
no seminário de 1958-59 e finalmente no seminário de 1969-70. Dunker (2015) sustenta a hipótese
que os modelos de formalização presentes no ensino de Lacan (esquemas, grafos, teoria dos quatro
discursos e teoria dos nós) são desdobramentos lógicos da fórmula canônica dos mitos de Lévi-
Strauss.
O modelo do Estruturalismo buscaria apreender uma estrutura fundada em relações de
diferença/oposição entre os termos constituintes em um determinado sistema, seja ele de parentesco,
econômico, linguístico, etc. Os termos tomados isoladamente não teriam qualquer sentido, mas
somente pelas respectivas relações de diferença/oposição estabelecidas entre eles que o sentido seria
adquirido. Tal sistema de relações no estruturalismo clássico segue uma regra geral do tipo: A está
para B como C está para D.
Três desdobramentos principais são depreendidos dessa posição epistemológica: (i) anti-
humanismo: a estrutura seria pensada sem um sujeito que a condicionaria, ele seria apenas um efeito
e não o fundamento dessa estrutura, podemos dizer que o Estruturalismo opera com um kantismo sem
sujeito transcendental. (ii) anti-fundacionismo: não existiria algo por trás da estrutura que estaria
condicionando-a, ela seria apenas engendrada no sistema de diferença/oposição de termos, excluindo
com isso qualquer ideia de profundidade. (iii) anti-historicismo: a noção de tempo privilegiada aqui
não seria diacrónica, tomado de maneira linear na sucessão de momentos, mas sincrônica, agrupando
os momentos de maneira simultânea. Isso significa o fim, por um lado, da busca pelas origens e, por
outro, da noção de história teologicamente orientada com uma finalidade. Com isso, a estrutura não
teria nem começo nem fim. “É preciso portanto renunciar aqui ao discurso científico ou filosófico, à
episteme que tem como exigência absoluta, que é a exigência absoluta de procurar a origem, o centro
o fundamento, o princípio, etc.” (Derrida, 2009, p. 241)
Além disso, valeria destacar três aspectos metodológicos inerente ao Estruturalismo: (i)
matematização: trata-se de uma redução das qualidades sensíveis em detrimento das quantidades,
contudo isso não significa uma simples notação em cálculos numéricos da medida dos objetos,
justamente porque seus objetos não seriam passiveis à mensuração, mas da tentativa de literalização
do real por meio do cálculo. Dessa forma, trata-se de um “galileísmo ampliado, portanto, baseado
numa matemática ampliada, e extensivo a objetos inéditos” (Milner, 1995, p. 77). (ii) minimalismo:
para alcançar o máximo de poder descritivo seria necessário trabalhar com os elementos mínimos da
estrutura, seja da língua (fonema), dos mitos (mitema) ou da experiência analítica (matemas). (iii)
descontinuidade na estrutura: dentro do sistema da estrutura haveria um ponto de fuga, uma casa
vazia (Deleuze, 1974), um elemento faltante para sua totalização e fechamento por completo, esteja
ele na noção de mana (Lévi-Strauss) ou de falo e objeto a (Lacan). Esse ponto opaco inerente a
estrutura é também o que possibilitaria sua reatualizarão e transformação.
Munido desse arsenal metodológico, Lévi-Strauss em seu consagrado artigo de 1950 Introdução
à obra de Marcel Mauss ultrapassa a noção de introdutio e termina apontando para o seu próprio
programa que estava em vias de construção.

“Que a posição do problema tal como Mauss o definira fosse a única legítima, é o que
atestam os mais recentes desenvolvimentos das ciências sociais, que permitem formar
a esperança de sua matematização progressiva. Em alguns domínios essências, como
o do parentesco, a analogia com a linguagem, tão firmemente afirmada por Mauss,
pôde permitir descobrir as regras precisas segundo as quais se constituem, em
qualquer tipo de sociedade, ciclos de reciprocidades cujas leis mecânicas são
doravante conhecidas, possibilitando o emprego do raciocínio dedutivo num domínio
que parecia submetido ao arbítrio mais completo” (Nossos grifos. Lévi-Strauss, p. 33)

Nos anos seguintes o modelo Estruturalista no trabalho etnográfico de Lévi-Strauss alçaria voo
convocando consigo disciplinas próximas para aventura, como expressa em Análise estrutural em
linguística e antropologia onde “os representantes das disciplinas vizinhas são, mais que autorizados,
obrigados a verificar imediatamente suas consequências e sua possibilidade de aplicação a fatos de
outra ordem (Lévi-Strauss, 1945, p. 46). Podemos dizer que o campo de influência do Estruturalismo
se estendeu desde a teoria literária de Roland Barthes, passando pela releitura da obra marxista feita
por Althusser, até chegar na arqueologia das ciências humanas de Foucault e na interpretação dos
textos freudianos feita por Lacan.
Ao longo dos anos 50 o francês Jacques Lacan inicia um programa de refundação da base
conceitual na experiência psicanalítica, tal projeto denominado por ele de “retorno à Freud” contou
com a importação e tradução de conceitos da linguística estrutural (Saussure e Jakobson), da dialética
hegeliana via Kojève, da etologia (Wallon), da lógica e da matemática, além de noções da filosofia
de Heidegger. Podemos também destacar como influência decisiva nesse período o trabalho de Lévi-
Strauss e de sua antropologia estrutural. Após certo tempo sob influência do pai da sociologia
francesa, Émile Durkheim, cuja expressão se evidencia na tese sustentada em 1938 sobre o declínio
da imago paterna em Complexos Familiares, Lacan opera um corte decisivo com essa tradição de
pensamento e se aproxima do modelo estrutural de Lévi-Strauss no início dos anos 50, efetivando
com isso seu programa de releitura da obra freudiana. Dizendo de outra forma, o “retorno à Freud”
feito por Lacan se dá por atalhos levi-straussiano (Zafiroupoulos, 2009).
Nosso ponto de interesse no cruzamento entre Lévi-Strauss e Lacan se encontra no modo pelo qual
se estabeleceu o estudo dos mitos e uma tentativa de formalização pelo primeiro, e como tais teses
são incorporadas pelo segundo em sua releitura feita dos casos clínicos freudiano.
Lévi-Strauss no ano letivo de 1952-53 se dedica ao estudo comparativo dos mitos em seu curso
dado na École Pratique des Hautes Études, “Foram aí analisados e comentados cerca de 30 versões
com a esperança de delas extrair alguns princípios gerais” (Lévi-Strauss, 1952-53, p. 243). Mas é
apenas em 1955 no artigo intitulado A estrutura dos mitos que vem ao público sua empreitada
inaugural de formalização sistemática dos mitos. Nesse mesmo artigo surge sua matriz de análise dos
mitos, considerada por Mauro Almeida como “um dos tópicos mais intratáveis, fascinantes e
persistentes da obra de Lévi-Strauss” (Almeida, 2008, p. 147), isto é, a fórmula canônica dos mitos.
Como pretendemos mostrar mais adiante essa fórmula será de grande serventia na releitura feita por
Lacan dos casos clínicos freudiano.
Como primeira regra metodologia no estudo dos mitos eles são agrupados em suas várias versões
sem que ocorra valoração maior de um em relação a outro. Posteriormente eles são tomados em sua
totalidade, sendo reunidos na diacronia no eixo horizontal e agrupados em relações lógica na sincronia
no eixo horizontal. N’ A estrutura dos mitos esse modelo é empregado na análise da mitologia tebana
sendo dela extraída quatro feixes de relação que estariam presentes em todas versões do mito seguindo
uma mesma lógica de transformação. O resultado dessa análise resulta no seguinte quadro:

Lévi-Strauss apresenta o mito tebano em termos de relações paralelas, na primeira coluna da


vertical os elementos são agrupados pelo traço comum quanto as relações de parentesco
superestimadas, como escreve o autor, essa coluna “concerne a parentes de sangue, cujas relações de
proximidade são, digamos, exageradas; são parentes que são objeto de um tratamento mais íntimo do
que as regras sociais permitem” (Lévi-Strauss, 1955, p. 230). Teremos com isso: “Cadmo procura sua
irmã Europa”, “Édipo esposa Jocasta” e “Antígona enterra Polinice”
Na segunda coluna expressa o oposto da primeira, ela seria agrupada nas relações de parentesco
subestimadas ou desvalorizadas. Teremos assim: “Os Espartoi se exterminam”, “Édipo mata Laio” e
“Eteócles mata Polinice”. Já nas duas próximas colunas uma série condicionante se introduz.
As relações de parentesco são substituídas na terceira coluna pela relação conflitante entre o
humano e monstros autóctones, nascidos da terra. Teríamos então: “cadmo mata o dragão”, “Édipo
imola a esfinge”. Esse feixe se encontra agrupado na desvalorização das relações entre humanos e
monstros ctônicos seja o dragão “monstro das profundezas que é preciso destruir para que os homens
possam nascer da terra”, ou a Esfinge que “como enigmas que também se refere à natureza humana,
se empenham em retirar a existência de sua vítima humana”. Então, segundo o antropólogo podemos
dizer “que o traço comum da terceira coluna consiste na negação da autoctonia humana” (Lévi-
Strauss, 1955, p. 231).
Caso tivéssemos na estrutura dos mitos um modelo de relações simétricas entre seus termos,
segundo o modelo clássico do Estruturalismo, teríamos no quarto feixe uma relação de
superestimação entre humanos e monstros ctônicos, contudo esse não é o caminho feito por Lévi-
Strauss em sua análise do mito. Como nos lembra Almeida:

Ora, não seria preciso esforço para encontrar episódios precisamente deste tipo nas narrativas
do ciclo de Édipo. Eles grassam em quase todas as gerações de descendentes de Cadmo, na
forma de inter-casamentos entre a linhagem agnática de Cadmo e a linhagem dos Spartoi
“autóctones”. Depois de matar o dragão que guardava o local de Tebas, o adventício Cadmo
consegue, graças a um ardil, exterminar quase todos os Spartoi. Os Spartoi sobreviventes dão
origem às grandes famílias de Tebas. Inicia-se um ciclo de conflito e aliança (Almeida,
p.153).

No quarto feixe Lévi-Strauss não dá continuidade à relação de simetria na qual formulou os outros
três, ao invés disso, o que ele faz é recorre à etiologia dos nomes próprios, nos quais possuem a
característica de não portarem qualquer significado compartilhado, no caso, o traço em comum entre
os elementos seria a dificuldade de andar direito. Teríamos então: “Lábdaco coxo”, “Laio torto” e
“Édipo pés inchados”.

O nome próprio (Édipo, Laio ou Lábdaco) tomado em alusão metafórico-metonímica a um


defeito no corpo e inexplicável do ponto de vista de sua relação com os outros mitemas, dada
sua heterogeneidade em relação aos anteriores. Todos os outros, mitemas exprimem relações
entre homens e outros homens, entre familiares e não familiares, entre seres humanos e
monstros. O quarto termo é uma marca, um traço ou um conjunto de letras que não se traduz
(Dunker, 2015, p. 379)
A fórmula extraída na estrutura dos mitos ainda pode ser substituída por uma escritura algébrica
composta por quatro feixes de relações chamados de mitemas:
A fórmula canônica dos mitos se constitui por duas séries onde há uma relação de dupla inversão
entre elas, podendo ser lida da seguinte forma: no primeiro termo de relações [Fx (a) por Fx (b)]
teríamos o conjunto do termo (a) constituído pela função de (x) que se associa numa relação de
equivalência embora não simetria com o conjunto do termo de (b) pela função de (x). O terceiro
mitema [Fx (b)] representaria uma espécie de salto dialético1 onde se preserva a função de (x) e o
termo (b). No segundo feixe de relações [Fy (b) por F a-1 (y)] existe um inversão de ordens na qual
um dos termos (a) é substituído pelo seu contrário (a-1) se tornando função, em concomitância que
uma função (y) se torna termo2. A apresentação da fórmula é deixada de lado sem maiores explicações
ao longo d’A estrutura dos mitos, bem como uma possível justificativa quanto à dupla torção que
surge no quarto mitema. Após essa breve aparição d’A formula canônica dos mitos ela não será mais
tratada por Lévi-Strauss, reaparecendo apenas trinta anos depois no último volume da monumental
Mitológicas, se tornando um dos maiores enigmas da obra do antropólogo. Contudo, pouco após ter
comentando sua fórmula da estrutura dos mitos, Lévi-Strauss acaba inaugurando um novo capítulo
no diálogo entre psicanálise e antropologia.

A fórmula acima adquire sentido quando lembramos que, segundo Freud, dois traumas (e
não um só, como tantas vezes se tende a crer) são necessários para que nasça o mito individual
que é uma neurose. Tentando aplicar a fórmula à análise desses traumas (postulando que
satisfizessem as condições 1 e 2 enunciadas acima), certamente chegaríamos a dar à lei
genérica do mito uma expressão mais precisa e mais rigorosa. Mas, principalmente,
estaríamos em condições de desenvolver em paralelo o estudo sociológico e psicológico do
pensamento mítico, talvez até de trata-lo como que em laboratório, submetendo as hipóteses
de trabalho ao controle experimental” (Nossos grifos, Lévi-Strauss, 1955, p. 247)

O antropólogo sugere aos psicanalistas se aterem a sua fórmula no entendimento daquilo


chamando por ele de mito individual que é a neurose, tal procedimento se mostraria útil no tratamento
lógico da experiência clínica, assim como já houvera sido feito por ele na análise dos determinantes
presentes nos mitos. Essa convocatória não parece ter passado despercebida aos ouvidos de Lacan,
como veremos, apesar dele não fazer referência direta na conferência O mito individual do neurótico
de 1953 ao modelo de formalização proposto por Lévi-Strauss em sua fórmula canônica dos mitos, o

1
Nos valendo da análise do mito de Édipo feito por Lévi-Strauss diríamos que esse terceiro mitema se constitui por um
salto dialético no qual “uma contradição mútua entre sobrevalorização e subvalorizarão de parentesco é resolvida por
meio de um ato que afirma e nega o parentesco, ou seja, matar um ser originado no interior da terra, um monstro que não
tem linhagem nem descendência” (Dunker, 2015, p. 369)
2
Esse sistema de relações se estabelece sob duas condições: “1. que um dos termos seja substituído por seu contrário (na
expressão acima, a e a-1) e 2. que uma inversão correlativa se produza entre o valor de função e o valor de termo de dois
elementos (acima, y e a)” (Lévi-Strauss, 1955, p. 246)
antropólogo aparece ali com uma de suas principais inspirações, ao lado da dialética hegeliana, na
releitura do caso do Homem dos Ratos como um mito que perdeu seu caráter coletivo. É somente em
1956 que Lacan apresenta de onde partira em sua análise:

O relevo da coisa [formulação de mitos] é por mim altamente apreciado porque, como Claude
Lévi-Strauss não ignora, tentei quase de imediato e, ouso dizer, com pleno sucesso, aplicar
sua grade aos sintomas da neurose obsessiva; especialmente à admirável análise que Freud
fez do Homem dos Ratos, e isso numa conferência que intitulei precisamente “O mito
individual do neurótico”. Consegui até formalizar estritamente o caso seguindo uma fórmula
dada por Claude Lévi-Strauss, pela qual se verifica que um a, associado de início a um b,
enquanto um c está associado a um d, troca com ele de parceiro na segunda geração, mas não
sem que subsista um resíduo irredutível sob a forma da negativação de um dos quatro termos,
que se impõe como correlativa à transformação do grupo: no que se lê o que chamaria de
signo de uma espécie de impossibilidade da total resolução do problema do mito” (Lacan,
1956, p. 90)

Embora o artigo contento a fórmula canônica dos mitos tenha sido publicado inicialmente em
inglês apenas em 1955 na revista Jornal of American Folklore por Lévi-Strauss e antes mesmo dessa
data Lacan já havia feito um livre uso do modelo, essa falta de precisão nas datas no surgimento dos
trabalhos se justifica pelo prematuro contato estabelecido entre ambos na França. Tal troca se tornou
propicia já em 1951, como aponta Roudinesco, “Lacan, Benveniste, Guilbaud e Lévi-Strauss
começaram a se reunir para trabalhar sobre as estruturas e estabelecer pontes entre as ciências
humanas e as matemáticas” (1994, p.489).
Lévi-Strauss cunhou a noção de mito individual, que foi adotada por Lacan (1953) para
circunscrever a estrutura intersubjetiva básica que confere à neurose sua matriz de identificação. Na
conferência O mito individual do neurótico, Lacan aborda o caso clínico do Homem dos Ratos
articulando como os conflitos e impasses das gerações anteriores, no caso seus pais, são reatualizados
e transformados pelo sujeito em sua obsessão fantasmática.

A constelação [...] original que presidiu ao nascimento do sujeito, ao seu destino e quase diria
à sua pré-história, a saber, as relações familiares que estruturam a união de seus pais, mostra
ter uma relação muito precisa, e talvez definível por uma fórmula de transformação, o mais
fantasístico, o mais paradoxalmente mórbido de seu caso, a saber, o último estado de
desenvolvimento de seu grande apreensão obsedante, roteiro imaginário a que chega como
se fosse à solução da angústia ligada ao desencadeamento da crise (Nossos grifos, Lacan,
1953, p. 19)

O mito individual do neurótico seria a contraparte estrutural da tese sobre o declínio da função
social da imago paterna presente em Complexos familiares de 1938. Dessa forma, o modelo
estruturalista permitirá compreender o sujeito, assim como feito nos mitos, estruturado em termos
lógicos em torno de um enigma, mesmo que sua tentativa de resposta comporte contradições. “A
incorporação da tese de Lévi-Strauss de que o mito é a equalização de enunciados contraditórios levou
Lacan a identificar o sujeito como o impossível na estrutura” (Dunker, 2015, p. 362). A produção
mítica não seria uma narrativa fantástica, antes disso, ela viria como um modo de resolver um impasse
para o sujeito ou comunidade diante daquilo que não existe resposta, seja nas questões relativas sobre
a origem do mundo e dos homens nas tribos estudadas por Lévi-Strauss, ou na escuta analítica com
Lacan onde o sujeito é interpelado desde o Outro com o “Che Vuoi?” incidindo sobre o desejo.

A função do mito se inscreve aí. Tal como descobre para nós a análise estrutural, que é a
análise correta, um mito é sempre uma tentativa de articular a solução de um problema. Trata-
se de passar de um certo modo de explicação da relação-com-o-mundo do sujeito ou da
sociedade em questão para outro modo - sendo esta transformação requerida pela aparição
de elementos diferentes, novos, que vêm contradizer a primeira formulação. Eles exigem, de
certo modo, uma passagem que é, como tal, impossível, que é um impasse. Isso é o que dá
sua estrutura ao mito (Lacan, 1956-57, p. 300)

Mais adiante em seu ensino Lacan irá articular o mito como uma tentativa de resposta ao
impossível, sendo nesse momento um dos nomes dado ao real. “Aqui o mito não poderia ter outro
sentido a não ser aquele ao qual o reduzi, o de um enunciado do impossível” (Lacan, 1969-70, p.
132). Dessa forma podemos dizer que no mito existiria uma articulação entre os três registros, se o
imaginário e o simbólico dariam forma à estrutura de sua narrativa, isso já seria decorrência de uma
suplência diante o real. Podemos dizer assim que o sujeito não é apenas um efeito de estrutura, embora
seu lugar esteja ali concernido, ele também se apoia na estrutura.
Retornando à conferência O mito individual do neurótico, Domiciano (2014) em sua dissertação
demonstra como Lacan releu o caso do Homem dos Ratos apoiado nos quatro pontos a fórmula
canônica dos mitos de Lévi-Strauss. Da seguinte forma:

Os dois feixes de relação da esquerda descreveriam os conflitos e impasses advindos da


constelação familiar: pai endividado e casamento com uma mulher rica ou pobre. O primeiro feixe
diz respeito ao pai que se encontra humilhado socialmente diante de um amigo benfeitor que quita
sua dívida de jogo, Lacan denominará isso de relação narcísica. O segundo feixe se refere a relação
com objeto, onde o pai oscila entre um casamento com uma mulher rica que lhe garantiria uma
condição financeira melhor ou com uma mulher pobre que amava. No relato de caso feito por Freud
do Homem dos Ratos fica evidente como seu paciente encontra-se aprisionado numa discursividade
pré-dialetica, que ora supervaloriza os elementos de parentescos, ora subvaloriza em seus rituais
sintomáticos.
Por sua vez, no terceiro feixe teríamos uma relação narcísica relacionada com os elementos mulher
rica e mulher pobre. Nesse momento ocorre um salto dialético de afirmação e negação mútua da
linhagem de parentesco. Poderíamos, por exemplo, dizer que no episódio dos correios se por um lado
o elemento dívida se encontra presente para o Homem dos Ratos visto que mesmo sabendo que na
verdade deveria reembolsar a funcionária dos correios e não o Tenente A, por outro, essa mesma
funcionária exerceria uma função imaginária correlata à mulher rica que estava destinado a se casar,
no caso sua prima rica segundo pretendia sua mãe.
Esse terceiro feixe só seria produzido graças à interpretação. Na análise feita por Lévi-Strauss do
mito de Édipo, o herói trágico só consegue destruir a Esfinge após desvendar o enigma: “Qual animal
tem a princípio quatro pernas, depois duas e em seguida três?”. A resposta correta dada por Édipo é
o “humano”, com isso ele aponta si mesmo. Ora, não é a Esfinge que interpreta o enigma se não o
próprio Édipo, teríamos assim como função atribuída ao analista devolver o enunciado do analisante
na forma de enunciação, ou ainda, devolvendo sua própria mensagem de maneira invertida.
Com um pequeno desvio da análise proposta por Lévi-Strauss, no terceiro feixe poderíamos
interpretar não como subvalorização do ser que nega o humano, ou seja, o monstro da terra, mas ao
contrário, o reconhecimento da parte não-humana que constitui o humano esteja ela contido na ideia
de monstro, na figura do anormal, nas formações do inconsciente ou no gozo. Teríamos assim, menos
experiências improdutivas de determinação causada pelo excesso de identidade (Dunker, 2015).
Domiciano (2014) sugere como quarto feixe, que confere o movimento de dupla torção e o valor
de transformação da fórmula, a nomeação dada no relato clinico por Freud através da fantasia de seu
paciente. Assim como Lévi-Strauss utilizou o Oidipous (pés inçados) como quatro elemento em sua
análise no mito de Édipo, encontraríamos um exemplo correlato em Homem dos Ratos. “É justamente
na ideia do rato que Freud identifica um princípio de determinação de seus conflitos e sintomas”
(Domiciano, 2014, p. 269). É pela função de nome-próprio que comporta o significante Ratten (rato)
e na sua dimensão de sem-sentido que lhe permitirá articular-se em uma intricada rede de
significações determinando os conflitos e os sintomas do paciente. “Ora, encontramos agrupados em
torno da materialidade sonora deste significante a totalidade dos temas centrais de sua mítica
individual” (p. 270).
De fato, na interpretação de Freud no caso do Homem dos Ratos, ao longo das sessões o que
adquire destaque é como as sucessivas significações se relacionam por meio de traços comuns com
um significante original, evidenciando o uso que o paciente fazia da linguagem em sua fala particular.
Por exemplo, no deslizamento de Ratten (rato) para Raten (dívida/prestação), em seguida para
Spielratte (rato de jogo), e ainda para heiraten (casar). Aparecendo finalmente no próprio paciente,
como Freud destaca: “ele próprio, porém, tinha sido um sujeitinho asqueroso e sujo, sempre pronto a
morder as pessoas quando enfurecido, e fora assustadoramente punido por tê-lo feito. É bem verdade
que ele podia ver no rato [Ratten] ‘uma imagem viva de si mesmo’” (Freud, 1909, p. 61-62). Um
significante especial, no caso o Ratte (rato), pelo que porta de sem-sentido seria aquele que viria para
operacionalizar o impossível na estrutura mítica. “No cerne das distintas modalidades de inscrição do
significante na lógica mítica, a dupla torção final sintetizaria, por seus postulados, o papel de um
significante especial que sustentaria a cadeia significante, no caso, da série mítica” (Domiciano, 2014,
p. 270).
Após 30 anos de abandono por Lévi-Strauss, assim como de seus comentadores, d’A fórmula
canônica dos mitos ela reaparece no último volume da grandiosa tetralogia das Mitológicas. Contudo,
nessa obra o autor esclarece que sua fórmula seria menos uma escrita algébrica do que coordenadas
de uma estrutura topológica, tal qual representada no modelo da garrafa de Klein.

Os mitos das duas Américas que comparei apresentam essecialmente duas características
comuns. De um lado, colocam a primazia lógica da Lua sobre o Sol e inclusive a primazia
histórica, na medida em que afirmam que ela foi criada antes dele. Do outro lado, são mitos
que, para utilizar uma forma resumida, podemos chamar de “em garrafa de Klein” (Lévi-
Strauss, 1985, pp. 197-8)

É sabido que ao longo de seu ensino Lacan buscou modos de formalização por meio de figuras
topológicas aquilo que ocorreria na experiência analítica. Nos resta saber se haveria um capítulo à
acrescentar nas derivas estruturais formais subjacentes de pose desses dados.

Referências bibliográficas

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