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DEBATE DEBATE 7

O Suicídio – reavaliando um clássico


da literatura sociológica do século XIX

Durkheim’s Suicide: reassessment of a classic from


19th-century sociological literature

Everardo Duarte Nunes 1

1 Departamento de Medicina Abstract This paper presents a detailed review of Suicide, the sociological classic by Durkheim,
Preventiva e Social,
100 years after it was first published. The first part of the article focuses on the author’s interest
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade in the theme, within the scope of concerns on the importance of studying suicide dating from the
Estadual de Campinas. 18th century. The article then presents a circumstantial review of the various chapters, preceded
Cidade Universitária
by brief remarks on the book’s place within Durkheim’s work as a whole. The third part of the ar-
“Zeferino Vaz”, Campinas, SP
13081-970, Brasil. ticle comments on the book with reference to the main authors that have studied it. Amongst
other qualities, the book’s importance lies in the fact that it associates an elaborate theoretical
construction with the empirical data, working within the possibilities provided by late 19th-cen-
tury moral statistics. The article stresses Durkheim’s perspective of dealing with the impact of the
macrostructures over micro-level phenomena. The distribution of suicides is also reviewed, up-
dating information and the relationship between suicides and professional groups, for example.
The paper also provides a critique of authors who stress the importance of “meanings” in the
analysis of suicides, with some notes on the relationship between suicide and mental disease.
Key words Sociology; Suicide; Social Behavior; Death

Resumo Na marca dos cem anos da publicação de O Suicídio, é realizada uma revisão detalha-
da dessa obra de Durkheim, clássico da literatura sociológica. Na primeira parte do artigo são
considerados os motivos que teriam levado o autor a interessar-se pelo tema, dentro das preocu-
pações que, desde o século XVIII, situaram a importância do estudo do suicídio. Em seguida, a
obra é revisada de forma circunstanciada, considerando todos os seus capítulos. Esta parte é pre-
cedida por rápidas considerações sobre a colocação desse clássico no conjunto da produção do
autor, até a data da sua publicação, 1897. Na terceira parte do artigo, são feitos os comentários
sobre a obra, recorrendo-se aos principais autores que a estudaram. Sobressai, entre outros as-
pectos, a importância desse trabalho, que associa elaborada construção teórica aos dados empí-
ricos, trabalhando dentro das possibilidades que as estatísticas morais ofereciam no final do sé-
culo XIX. Salienta-se a perspectiva de Durkheim de tratar o impacto das macroestruturas sobre
os fenômenos de nível micro. Revisa-se, também, a distribuição dos suicídios, atualizando-se al-
gumas informações e as relações que se evidenciam entre, por exemplo, suicídios e grupos profis-
sionais. Introduz-se, ainda, a crítica de autores que salientam a importância dos ‘significados’
na análise dos suicídios e algumas anotações sobre a relação suicídios/doença mental.
Palavras-chave Sociologia; Suicídio; Comportamento Social; Morte

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 14(1):7-34, jan-mar, 1998


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“Eu interrompi minhas conferências para devo- analista da obra do sociólogo francês, outros
tar-me completamente ao livro que estou pre- motivos menos pessoais. Em realidade, quan-
parando sobre O Suicídio. Eu espero que quan- do Durkheim (1982) publica, em 1897, O Suicí-
do ele apareça as pessoas terão uma melhor dio: Estudo Sociológico, ele já havia dedicado
compreensão da realidade do fenômeno social ao tema um artigo, datado de 1888, sobre as re-
sobre o qual elas não concordam comigo, por- lações entre suicídio e natalidade, e o terceiro
que o que aí eu estudo é a disposição social para curso de sociologia por ele ministrado, em
o suicídio (le courant social au suicide), a ten- 1889-1890, teve o suicídio como tema central.
dência dos grupos sociais para o suicídio, isola- Acompanhando os pontos básicos levanta-
da de suas manifestações individuais (por abs- dos por Lukes (1977), referentes aos motivos
tração certamente, porque a ciência não isola que podem explicar esse interesse pelo suicí-
seu objeto de nenhuma outra maneira).” Dur- dio, além de inscrever-se em suas idéias sobre
kheim em carta para Bouglé, datada de 16 de as funções morais da família, verifica-se que
maio de 1896 (Lukes, 1977:193). muitos deles são inerentes a uma preocupação
mais geral sobre o tema, assim como refletem
uma preocupação que foi específica do projeto
O suicídio como tema de estudo sociológico que Durkheim perseguia.
1) Desde o século XVIII o suicídio vinha sendo
“Era 3a feira, 6 de julho (1886), cerca de 8 horas estudado como um problema moral, para, no
da manhã, ele estava aprontando-se para sair século XIX, ser visto como um “crescente pro-
para o liceu. Ele estava ... saindo quando, rapi- blema social a exigir explicação”, nas palavras
damente mudando de idéia, ele disse: ‘Eu devo de Lukes (1977), que retoma as análises feitas
pronunciar uma palestra, porém não estou su- por Douglas (1970). Segundo este autor, o estu-
ficientemente preparado. Eu devo subir outra do estatístico do suicídio foi entendido pelos
vez e olhar novamente minhas anotações’. Ele pesquisadores e teóricos como um estudo da
entrou em sua sala, no segundo andar, tomou moralidade, incluindo-o na categoria geral das
seu livro de anotações e sentou-se na beirada de estatísticas morais, junto com outros eventos
uma janela muito baixa sem parapeito, que fa- como assassinato e outros crimes. “Assumia-se”,
cilmente induzia à vertigem. Ele fez um rápido segundo Douglas (1970:8), “que o suicídio era
e imprudente movimento, característico dele, e um problema moral e implicitamente que qual-
perdeu o equilíbrio. Poucos minutos depois ele quer teoria sobre o suicídio deveria incluir os
estava caído no pátio interno, seu livro de no- aspectos morais do suicídio como um dos fato-
tas ao seu lado.” (Durkheim, 1887, apud Lukes, res básicos”. O acúmulo de informações estatís-
1977:51). ticas proporcionou, de outro lado, que se esta-
Foi dessa forma que Émile Durkheim regis- belecessem inúmeras correlações, juntamente
trou a morte de um de seus mais íntimos e que- com o levantamento de hipóteses. Estas irão
ridos amigos – Victor Hommay – no necrológio relacionar taxas diferenciais de suicídio a fato-
que a ele dedicou, publicado no L’annuaire de res sociais, tais como: ocupação, urbanização,
l’association des anciens élèves de l’École Supé- religião, mudança social, como também a fato-
rieure, em 1887. Ao relatá-la, Durkheim (1887, res não sociais: hereditariedade, raça, clima e a
apud Lukes, 1977:51) descreve-a como “um mi- questão não resolvida – se o suicídio era ou não
serável e trágico acidente”, mas, como é visto por relacionado à desordem mental. No mais, nas
muitos estudiosos, entre eles Lukes (1977), a palavras de Lukes (1977:192): “Havia também
morte de Hommay não foi um acidente; ele, em uma concordância geral que aceitava que a es-
verdade, cometeu suicídio. calada das taxas globais de suicídios eram devi-
Não se trata aqui de detalhar a personali- das à passagem da ordem tradicional a uma no-
dade – triste e solitária – e as dificuldades de va ordem e ao crescimento do industrialismo”.
Hommay, que poderiam ter potencializado o 2) O suicídio parecia aos investigadores um
seu desejo de morrer, e sim de lembrar que objeto concreto e específico, “particularmente
Durkheim ficou profundamente abalado pela adequado”, como escreve Durkheim (1970:37).
morte trágica de seu amigo. Lukes (1977:191), Além disso, estava associado diretamente não
ao reconstituir os motivos que teriam levado somente a várias instituições, como a família,
Durkheim a se dedicar ao tema do suicídio, sa- mas à sociedade como um todo.
lientou que essa morte “com certeza afetou-o 3) Para Durkheim, o tema propiciava a possi-
profundamente e pode muito bem ter influen- bilidade ímpar de poder demonstrar os princí-
ciado não somente seu interesse pelo assunto, pios por ele estabelecidos em seu tratado me-
mas também a sua explicação, pelo menos em todológico, escrito em 1895, As Regras do Méto-
sua forma ‘egoística’”. Há, como salienta este do Sociológico.

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4) O tema oferecia a Durkheim a possibilida- ca das sociedades industriais, onde predomina


de de ilustrar uma das formas pelas quais se a divisão de trabalho. Como Durkheim irá assi-
manifestava a malaise geral que afetava a Eu- nalar no prefácio da segunda edição deste livro,
ropa, sugerindo, inclusive, os remédios para de 1902, o principal motivo que este trabalho
vencê-la. levanta é aquele das relações entre a personali-
5) Para o sociólogo francês, constituía um dade individual e a solidariedade social. Per-
exemplo suficientemente significante para es- gunta o sociólogo: “O que explica o fato que, na
tabelecer a compreensão científica da sociolo- medida em que se torna mais autônomo, o in-
gia como uma disciplina independente. Expli- divíduo torna-se mais intimamente dependente
car sociologicamente um evento individual da sociedade? Como pode ele ser pessoalmente
que parecia depender quase exclusivamente de mais desenvolvido e ao mesmo tempo mais so-
fatores pessoais, psicológicos, mas que expres- cialmente dependente?” (Durkheim, 1902, apud
sava uma forma de dissolução dos laços que Lukes, 1977:139). Esta era uma pergunta que
unem os homens, possibilitava entender quais Durkheim já havia formulado em seu primeiro
os laços que os levam a se associarem. curso, ministrado em 1887-1888, intitulado So-
Como tão bem sintetiza Douglas (1970), foi lidariedade Social, no qual questionava a natu-
com base em uma longa tradição do pensa- reza da própria solidariedade social ao pergun-
mento europeu sobre o suicídio que Durkheim tar “quais são as fronteiras que unem os homens
desenvolveu o seu trabalho: a ênfase sobre o uns aos outros?”. Lukes (1977:139) lembra que
caráter imoral do suicídio, a utilização das fon- este problema permaneceu central na obra de
tes estatísticas como um instrumento básico, a Durkheim durante toda a sua vida, citando, in-
importância dos fatores extra-individuais na clusive, que em carta que escreveu a Bouglé, o
regularidade das taxas de suicídio. De outro la- sociólogo afirmava: o “objeto da sociologia co-
do, não pode ser minimizado o esforço desen- mo um todo é determinar as condições para a
volvido por Durkheim a fim de elaborar um conservação das sociedades”. Não constitui ob-
modelo que integrasse a teoria e os dados, não jeto deste trabalho avançar na análise da ques-
somente sistematizando algumas das preocu- tão da solidariedade social, mas situá-la como
pações anteriores, mas colocando o objeto de fundamental no pensamento de Durkheim pre-
estudo numa perspectiva que ressaltasse a sua sente em seu estudo sobre o suicídio. De outro
maneira de interpretar a sociedade dentro de lado, cumpre assinalar que o período que ante-
um referencial que tinha a dissolução social cede a investigação sobre o suicídio foi extre-
como questão básica. mamente original do ponto de vista metodoló-
gico. Assim, além dos trabalhos citados ante-
riormente, Durkheim escreve, em 1896, um ar-
A obra tigo sobre a proibição do incesto e suas ori-
gens, aplicando à sociologia o método de aná-
O Suicídio foi publicado pela primeira vez em lise de dados etnográficos, lançando no estu-
1897, quando Durkheim tinha 39 anos de idade do sobre o suicídio a aplicação do método es-
e já havia escrito dois trabalhos fundamentais tatístico. É claro que a importância deste traba-
em sua carreira de pesquisador: as duas teses lho, considerado “uma monografia exemplar”
de doutorado, que datam de 1893 – De la Divi- (Rodrigues, 1978:24), “um dos melhores exemplos
sion du Travail Social: Étude sur l’Organisation da ‘teoria de médio alcance’ ” (Merton, 1968:63),
des Sociétés Supérieures e La Contribution de “um modelo de pesquisa social” (Selvin, 1958,
Montesquieu a la Constitution de la Science So- apud Rodrigues, 1978:24), não se limita à apli-
ciale, esta última escrita em latim –, e ainda Les cação do método estatístico. Por outro lado, é
Règles de la Méthode Sociologique, de 1895, preciso saber no que a teoria sobre o suicídio é
conjunto de uma série de artigos aparecidos no incompleta, pois, no dizer de Lukes (1977), es-
ano anterior e que saiu como livro com ligeiras ta é a mais fundamental e frutífera crítica ao
modificações e prefácio. Como escreve Mitchel trabalho de Durkheim.
(1973), De la Division du Travail Social é um tí- A obra é constituída das seguintes partes:
tulo desorientador, porque, embora trate da di- introdução, onde se situa a necessidade de
visão do trabalho e tente dar uma explicação constituir o objeto de estudo, definindo objeti-
sobre o tema, o que fundamentalmente inte- vamente o que é suicídio, a fim de pesquisar
ressa ao autor é encontrar uma explicação para apenas as condições que virão constituir o fato
a solidariedade social na sociedade moderna. determinado que o autor chama de “taxa social
Procura caracterizar os dois tipos ideais de so- dos suicídios” e não todas as condições que
lidariedade: a mecânica, encontrada nas socie- possam ser contadas na gênese dos suicídios
dades menos desenvolvidas, e a orgânica, típi- particulares; primeira parte – os fatores extra-

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sociais; segunda parte – causas sociais e tipos momento de sua história, uma predisposição
sociais; terceira parte – o suicídio como fenô- definida para o suicídio. Mede-se a intensidade
meno social em geral. relativa dessa tendência tomando-se a relação
Durkheim inicia o seu extenso trabalho pe- entre o número global por mortes voluntárias e
la discussão e delimitação do conceito de sui- a população de todas as idades e de ambos os
cídio: “Chama-se suicídio todo o caso de morte sexos. Designaremos esse dado numérico por ta-
que resulte direta ou indiretamente de um ato xa de mortalidade-suicídio peculiar à socieda-
positivo ou negativo, praticado pela própria ví- de considerada. É calculada, em geral, propor-
tima, sabedora de que devia produzir esse resul- cionalmente a um milhão ou a cem mil habi-
tado” (Durkheim, 1982:16). Não se confunde tantes” (Durkheim, 1982:19).
com a tentativa, que seria “o ato assim defini- Para o autor, a taxa de suicídios constitui
do, mas interrompido antes de resultar em mor- “uma ordem de fatos una e determinada; é o
te” (Durkheim, 1982:16). Somente é possível que sua permanência e variabilidade, simulta-
quando se tem uma representação antecipada neamente, demonstram”. Por intermédio dessa
da morte, excluindo, portanto, nesse trabalho, taxa expressa-se uma tendência e, seja qual for
tudo que diz respeito ao suicídio entre animais. o juízo sobre o assunto, o fato é que “cada so-
Logo em seguida, passa a considerar por que o ciedade está predisposta a fornecer um contin-
suicídio torna-se objeto de interesse para o so- gente determinado de mortes voluntárias”. De
ciólogo, perguntando: “Considerando que o sui- forma clara, expõe o objetivo do trabalho: “Nos-
cídio é um ato da pessoa e que só a ela atinge, so intuito não é, pois, o de fazer o rol mais com-
tudo indica que deva depender exclusivamente pleto possível de todas as condições que possam
de fatores individuais e que sua explicação, por contar na gênese dos suicídios particulares, mas
conseguinte, caiba tão somente à psicologia”. pesquisar apenas aquelas que virão a constituir
Continua: “De fato, não é pelo temperamento o fato determinado que chamamos de taxa so-
do suicida, por seu caráter, por seus anteceden- cial de suicídios”. Fixa, então, como irá encarar
tes, pelos fatos de sua história privada que em o assunto: “O fenômeno por explicar só pode ser
geral se explica a sua decisão?” (Durkheim, atribuído a causas extra-sociais de grande gene-
1982:17-18). Não sendo este o enfoque a ser ralidade ou a causas propriamente sociais”
dado ao estudo, explica que “se em lugar de ver- (Durkheim, 1982:23).
mos no suicídio apenas eventos particulares, Toda a primeira parte do estudo é dedicada
isolados uns dos outros e que exijam, cada um aos fatores extra-sociais, dentre os quais inclui
deles, exame em separado, considerarmos o con- loucura, raça, hereditariedade, clima, tempera-
junto dos suicídios cometidos em dada socieda- tura, sazonalidade e a imitação. Em vista de
de durante um dado espaço de tempo, iremos muitas afirmações vigentes em sua época so-
verificar que o total assim obtido não é a sim- bre a relação loucura-suicídio, Durkheim des-
ples soma de unidades independentes, um todo monta esta relação, mas, antes, desenvolve
de coleção, mas que constitui por si mesmo um uma classificação de suicídios cometidos por
fato que é novo e sui generis, com unidade e in- loucos, ou seja, “para saber se o suicídio é um
dividualidade, e pois com sua natureza própria, ato próprio dos psicopatas, impõem-se deter-
e que, além disso, essa natureza é eminentemen- minar as formas que ele assume na alienação
te social” (Durkheim, 1982:18). Ao levantar da- mental e ver depois se os psicopatas são os úni-
dos sobre a França, Prússia, Inglaterra, Saxô- cos a quem ele afeta” (Durkheim, 1982:30). Dur-
nia, Baviera, Dinamarca, de 1841 a 1872, o au- kheim irá se referir aos tipos de suicídio manía-
tor afirma que “para uma mesma sociedade, co, melancólico, obsessivo, impulsivo e auto-
desde que a observação se restrinja a um perío- mático e a sua conclusão é que não existe ne-
do não muito extenso, essa cifra é quase inva- nhum estado psicopático que mantenha com o
riável” (Durkheim, 1982:18). Às variações, Dur- suicídio uma relação regular e incontestável.
kheim associa alguma crise que atinge passa- Da mesma forma, não encontra relação com os
geiramente o estado social, como, por exem- estados psicológicos normais, raça e heredita-
plo, o que se deu no ano de 1848. Nesta data riedade, nem com fatores cósmicos e imitação.
ocorre uma brusca diminuição em todos os es- No Livro II, Durkheim irá tratar das causas
tados europeus. Em intervalos mais longos de sociais e tipos sociais, dividindo o tema nas se-
tempo, verifica-se que ocorrem mudanças guintes partes: método para determinar as
mais graves, que são bruscas e paulatinas, no causas e os tipos sociais; os diversos tipos de
sentido de que as taxas elevam-se, afirmam-se, suicídio: egoísta, altruísta e anômico; conclu-
acentuam-se e por fim estabilizam-se. Neste são, com uma classificação morfológica sobre
primeiro momento do seu trabalho, Durkheim as formas individuais dos diferentes tipos de
afirma: “Cada sociedade tem, portanto, em cada suicídio.

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O SUICÍDIO 11

Em realidade, esta parte do estudo de Dur- suicídio varia na razão inversa do grau de inte-
kheim constitui o cerne da sua proposta, que gração da sociedade doméstica. O suicídio va-
fica claramente definida quando afirma, tendo ria na razão inversa do grau de integração da
por base a análise até então empreendida, que: sociedade política. Para tal, estuda as informa-
“Concluímos, de fato, que existe, para cada gru- ções referentes ao número de suicídios entre os
po social, uma tendência específica ao suicídio estados protestantes, mistos (católicos e pro-
que nem a constituição orgânico-psíquica dos testantes), católicos, católicos gregos, concluin-
indivíduos nem a natureza do ambiente natu- do que “em toda parte, sem exceção, há muito
ral explicam. Resulta disso, por eliminação, que mais suicídios entre os protestantes do que en-
essa tendência deve depender de causas sociais tre os adeptos dos demais credos” (Durkheim,
e constituir por si mesma um fenômeno coleti- 1982:115). Acrescenta que não adianta invocar
vo; inclusive, certos fatos que examinamos, so- a excepcionalidade da Noruega e Suécia, que
bretudo as variações geográficas e periódicas do apresentam um número moderado de suicí-
suicídio, nos levaram expressamente a essa con- dios. Explica que há diferenças entre as popu-
clusão” (Durkheim, 1982:106). Ao optar por uma lações da península escandinava e a Europa
classificação etiológica do suicídio, o autor diz Central e que as taxas de suicídio são baixas
ser impossível uma classificação segundo as nesses países. No caso dos judeus, a taxa é me-
suas formas ou características morfológicas, nor do que a dos protestantes, mas ainda é in-
pois haveria necessidade de um grande núme- ferior à dos católicos. Para Durkheim, o fato de
ro de casos particulares. serem populações mais intelectualizadas e vi-
Assim, parte para uma construção metodo- verem nas cidades seria a razão de terem maior
lógica na qual “podemos constituir os tipos so- inclinação ao suicídio do que os participantes
ciais do suicídio, não ao classificá-los direta- de outras religiões e, assim, ficarem alheios à
mente segundo as suas características de ante- religião que praticam. Porém, conservam, em
mão descritas, mas classificando as causas que vista de todas as outras religiões, as mais bai-
os produzem” (Durkheim, 1982:107). Buscam- xas taxas. Lembra o autor que tanto o catolicis-
se as condições sociais de que dependem, que mo, quanto o judaísmo são extremamente se-
são depois grupadas, conforme as semelhan- veros em relação ao suicídio, e que a única di-
ças e diferenças. Dessa forma, o fenômeno será ferença essencial entre catolicismo e protes-
conhecido através de suas causas e não apenas tantismo é que este admite o livre exame das
de suas características, ou seja, como diz Dur- escrituras em grau muito maior. Escreve: “... o
kheim, em uma construção de caráter etiológi- protestantismo participa mais na elaboração
co. De outro lado, é importante destacar que, da sua crença (...). Chegamos pois a um primei-
para Durkheim (1982:108-109), se quisermos ro resultado: a propensão do protestantismo pe-
entender o suicídio como fenômeno coletivo, lo suicídio deve estar em relação com o espírito
“teremos de encará-lo desde o início sob a forma de livre exame que anima esta religião” (Dur-
coletiva, isto é, através de dados estatísticos. A kheim, 1982:119). Este livre exame é efeito de
taxa social é o que temos de tomar diretamente outra causa: o abalo das crenças tradicionais,
por objeto de análise; é preciso ir do todo às par- que tem como conseqüência a possibilidade de
tes”. Sua recomendação, ao final desta coloca- se multiplicarem as cisões. Desta forma, con-
ção metodológica, é a seguinte: “Para isso, dei- clui-se que o maior número de suicídios no
xando de lado, por assim dizer, o indivíduo en- protestantismo decorre do fato de que esta é
quanto indivíduo, seus motivos e suas idéias, uma religião menos fortemente integrada do
indagaremos imediatamente quais são os esta- que a católica.
dos dos diferentes meios sociais (credos religio- É interessante a associação feita por Dur-
sos, família, sociedade política, grupos profis- kheim (1982:122) entre o livre exame e o gosto Suicídio e ciência….
sionais etc.), em função dos quais o suicídio va- pela cultura. “A ciência, de fato, é o único meio
ria. Só depois, voltando aos indivíduos, estuda- de que dispõe a livre reflexão para atingir seus
remos de que modo essas causas gerais se indi- fins. Quando crenças ou práticas irracionais
vidualizam para produzir os efeitos homicidas perdem a sua autoridade, para encontrar outras
por elas implicados” (Durkheim, 1982:112). impõe-se apelar para a consciência esclarecida
Volta-se, então, o autor, para analisar os cuja forma superior é a ciência.” Pelas suas in-
três tipos de suicídio que constituem o ponto formações, os protestantes são mais instruídos
central de sua pesquisa. e se suicidam mais e restaria responder a ques-
Na primeira parte, analisa o que denomina tão: “Será certo que a necessidade de instrução,
de suicídio egoísta, estabelecendo três pressu- na medida em que corresponde a um enfraque-
postos: O suicídio varia na razão inversa do cimento da fé comum, aumenta como o suicí-
grau de integração da sociedade religiosa. O dio?” (Durkheim, 1982:124). Junta a esta ques-

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tão uma análise das profissões liberais – onde coeficiente dos cônjuges dos dois sexos, po-
se nutre o gosto pela ciência e a vida intelectual rém, o mais das vezes, não o suprime comple-
é mais intensa. Constata que maior grau de tamente.
instrução e maior número de suicídios man- Para explicar essas leis, Durkheim (1982:
têm relação, como, também, ocorre em maior 143) lança mão do seguinte argumento: a imu-
número entre homens do que entre mulheres: nidade ao suicídio que as pessoas casadas des-
“Ora”, como escreve Durkheim (1982:126), “ela frutam deve-se ou à influência do meio domés-
é também muito menos instruída”. Sua conclu- tico, ou ao que se pode chamar seleção matri-
são é de que o suicídio aumenta com o pro- monial. A sua conclusão é que “a imunidade
gresso da ciência, mas “não é a ciência que de- dos casados em geral se deve à influência da so-
termina este aumento. Ela é inocente e nada se- ciedade familiar, mas não à da sociedade con-
ria mais injusto que acusá-la; o caso dos judeus jugal, que beneficia inteiramente os homens, e
é demonstrativo disso”. Neste caso “o homem só em parte as mulheres”.
procura instruir-se e se mata porque a sociedade O terceiro aspecto analisado por Durkheim
religiosa de que é membro perdeu coesão; mas nesta parte de seu estudo é referente à relação
não se mata porque é instruído” (Durkheim, entre suicídio e sociedade. Revendo casos his-
1982:128). tóricos, observa que o suicídio surge quando a
Uma outra conclusão desta parte é sobre a velha organização da comunidade é abalada,
função profilática da religião sobre o suicídio. por exemplo, Grécia e Roma, e mesmo na Fran-
Neste aspecto, sintetiza a questão da seguinte ça, nas vésperas da Revolução. Ao citar uma in-
maneira: “A influência benfazeja da religião vestigação de Morseli sobre o fato de que no
não se deve, pois, à natureza específica das con- momento das grandes comoções políticas não
cepções religiosas. Se ela protege o homem con- ocorre aumento de suicídios, Durkheim mos-
tra o desejo de se destruir, não é porque lhe pre- tra, mediante dados, que na França, em vários
gue, com argumentos peculiares, o respeito por momentos, e mesmo em outros países da Eu-
sua pessoa, mas porque é uma sociedade”. Expli- ropa, especialmente em 1848-1849, quando a
ca, também, que “o que constitui essa sociedade crise é geral, em toda a parte diminuem os sui-
é a existência de certo número de crenças e de cídios. Para Durkheim (1982:161), nem todas as
práticas comuns a todos os fiéis, crenças que são crises políticas ou sociais influem sobre as ta-
tradicionais e, por conseguinte, obrigatórias” xas de suicídio, mas “só influem as que excitam
(Durkheim, 1982:129). as paixões”. No final, explica: “Não é à crise que
Na parte seguinte, Durkheim trata de ou- se deve a salutar influência (...), mas às lutas
tros dois aspectos relacionados ao suicídio: a causadas pela crise. Forçando os homens a se
vida da família e a sociedade política. unirem para enfrentar o perigo comum, o indi-
Constata que os celibatários se matam me- víduo pensa menos em si mesmo e muito mais
nos que os casados e procura confrontar esta na coisa comum. Compreende-se, de resto, que
observação de que o casamento e a vida fami- essa integração possa não ser meramente mo-
liar aumentam a probabilidade de suicídio. mentânea, mas sobreviva às vezes às causas que
Correlaciona as taxas para cada idade, compa- a suscitaram imediatamente, sobretudo, quan-
rando, por exemplo, os celibatários, os casados do é intensa”. Ao retomar os três aspectos trata-
e os viúvos de 25 a trinta anos de idade, somen- dos, o autor chega à conclusão geral de que “o
te quando possível obterem-se tais informa- suicídio varia na razão inversa do grau de inte-
ções, pois, de um modo geral, as publicações gração dos grupos sociais a que pertence o indi-
oficiais não fornecem esses dados. Nesse mo- víduo”. Irá também caracterizar o papel do
mento, Durkheim criou o que denominou coe- egoísmo como origem do suicídio. Declara:
ficiente de preservação – número que indica “Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais
quantas vezes menos as pessoas se suicidam a que ele (indivíduo) pertence, menos ele depen-
num grupo em comparação com outro consi- derá deles, e cada vez mais, por conseguinte, de-
derado na mesma faixa etária. Foi baseado nes- penderá apenas de si mesmo para reconhecer
sas constatações que desenvolveu quatro leis: como regras de conduta tão-somente as que se
1) Os casamentos muito precoces têm uma in- calquem nos seus interesses particulares. Se,
fluência agravante sobre os suicídios, sobretu- pois, concordarmos em chamar de egoísmo essa
do no que se refere aos homens. 2) A partir dos situação em que o eu individual se afirma com
vinte anos, os cônjuges dos dois sexos se bene- excesso diante do eu social e em detrimento des-
ficiam de um coeficiente de preservação em re- te último, podemos designar de egoísta o tipo
lação aos celibatários. 3) O coeficiente de pre- particular de suicídio que resulta de uma indi-
servação dos casados em relação aos celibatá- viduação descomedida” (Durkheim, 1982:162).
rios varia com os sexos. 4) A viuvez diminui o Ao enfatizar a força do individualismo, não

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O SUICÍDIO 13

apenas por favorecer a atuação de causas sui- porque são crises, isto é, “perturbações da or-
cidógenas, mas por ser por si mesmo uma cau- dem coletiva” (Durkheim, 1982:193). Na argu-
sa desse gênero, Durkheim (1982:167) apresen- mentação de Durkheim, quando das crises
ta dois pontos finais quanto ao suicídio egoís- econômicas ocorre como um déclassement, e
ta. O primeiro é que às sociedades “inferiores” os indivíduos atingidos passam para uma si-
(sic) este tipo de suicídio é mais ou menos to- tuação inferior à até então ocupada, impondo-
talmente estranho, e o segundo é que causa um lhes uma série de restrições e “todos os frutos
impacto menor sobre a mulher, no caso a sol- da ação social ficam perdidos no que se refere a
teirona ou viúva, que por terem uma “sensibili- eles: têm de refazer a sua educação moral” (Dur-
dade antes rudimentar do que muito desenvol- kheim, 1982:199). Sendo este um processo não
vida” e por viverem “mais que o homem fora da imediato, leva os indivíduos a não se ajustarem
vida comunal, esta vida exerce menor influên- às novas condições. O mesmo se aplica se a cri-
cia sobre ela: a sociedade lhe é menos necessária se é motivada por um brusco aumento de po-
porque ela é menos impregnada de sociabili- der e riqueza, despertando todo tipo de cobiça,
dade”. no “exato momento em que as normas tradicio-
No capítulo que trata do suicídio altruísta, nais perderam a sua autoridade. O estado de
Durkheim (1982:168) afirma inicialmente: “Se, desregramento ou de anomia é pois reforçado
como acabamos de ver, uma individuação ex- pelo fato de que as paixões estão menos discipli-
cessiva leva ao suicídio, a individuação insufi- nadas no preciso momento em que teriam ne-
ciente produz os mesmos efeitos. Quando desli- cessidade de uma disciplina mais rígida” (Dur-
gado da sociedade, o homem se mata facilmen- kheim, 1982:200). Para Durkheim, as atividades
te, e se mata também quando está por demais industriais e comerciais são as que registram
integrado nela”. Para o autor, este tipo de suicí- mais suicídios, estando quase no mesmo nível
dio é endêmico em sociedades inferiores, e de- que as carreiras liberais, ao passo que as taxas
pois de exemplificar com casos históricos, clas- são mais baixas na agricultura. Comparando
sifica-os em três categorias: 1) suicídios de pes- patrões e empregados, afirma serem os primei-
soas que chegaram ao limiar da velhice ou ros mais atingidos que estes últimos. Após es-
adoeceram; 2) suicídios de mulheres por oca- tes exemplos, situa a anomia como sendo um
sião da morte do marido; 3) suicídios de clien- fator regular e específico de suicídios nas so-
tes ou servidores ao ensejo da morte dos seus ciedades modernas, sendo diferente dos outros
chefes. Esclarece que há o suicídio altruísta tipos, pois “depende não do modo como os in-
obrigatório, como há o facultativo, e, ainda, o divíduos estão presos à sociedade, mas da ma-
suicídio altruísta agudo, do qual o suicídio mís- neira como esta os rege”. O suicídio anômico
tico é o melhor exemplo. Se estes casos carac- “decorre de que as atividades dos homens estão
terizam as sociedades primitivas, no dizer de desregradas e que isto os faz sofrerem” (Dur-
Durkheim, eles aparecem nas estatísticas utili- kheim, 1982:204).
zadas quando o autor verifica o aumento dos Volta-se, então, para analisar os suicídios
suicídios no exército: os militares se suicidam que ocorrem quando da viuvez, tema já trata-
um pouco mais do que os civis da mesma ida- do anteriormente. Neste ponto explica que a
de e de iguais condições. A hipótese é que mui- causa deve-se à anomia doméstica. Estuda
tas causas levariam a crer que a vida militar de- também o suicídio entre divorciados, que se
veria preservar do suicídio – são pessoas sele- matam entre três a quatro vezes mais que os
cionadas rigorosamente do ponto de vista da casados e nitidamente mais que os viúvos. Pa-
saúde e pertencem a um grupo com alto esprit ra Durkheim, é o estado de anomia conjugal,
de corps. Portanto, não podem ser explicados produzido pela instituição do divórcio, que ex-
como pertencentes ao tipo egoísta, e sim do ti- plica o desenvolvimento paralelo dos divórcios
po caracterizado por “uma fraca individuação e dos suicídios. Como diz, não pretende afir-
ou do que designamos por altruísmo” (Dur- mar que o afrouxamento das relações conju-
kheim, 1982:183). O terceiro tipo de suicídio es- gais seja exclusivamente devido ao estabeleci-
tudado por Durkheim é o anômico. Como em mento legal do divórcio, pois a anomia matri-
toda a sua pesquisa, o autor inicia apresentan- monial pode existir na opinião pública sem es-
do uma série de dados. Os primeiros dizem res- tar ainda consignada na lei.
peito às relações crise ou crescimento econô- No capítulo seguinte, analisa as “Formas
mico e propensão ao suicídio. individuais dos diferentes tipos de suicídios”
Conclui o autor que tanto as crises indus- (Durkheim, 1982:222-236). Coloca em evidên-
triais ou financeiras, como as de prosperidade, cia que os tipos sociais que propõe correspon-
têm o mesmo resultado: aumentam os suicí- dem aproximadamente a tipos psicológicos.
dios, e explica dizendo que esta relação se dá Assim, ao suicídio egoísta corresponde apatia e

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14 NUNES, E. D.

secundariamente melancolia; ao altruísta, práticas”. Para ele, o suicídio havia se transfor-


energia passional ou voluntária e sentimento mado em “um fenômeno patológico que se tor-
do dever; ao anômico, corresponde irritação, na cada vez mais ameaçador”. Pergunta, então,
desgosto e como variedade secundária, quei- como afastá-lo. Mediante penas cominatórias?
xas contra a vida etc. Há, ainda, a possibilidade Certamente que não, pois “não será graças a
de tipos mistos combinando os três tipos ele- dispositivos legais que se há de despertar a nos-
mentares. sa sensibilidade moral”. Pergunta, também, so-
No capítulo em que estuda “O elemento so- bre o papel da educação, como meio de asse-
cial do suicídio”, Durkheim (1982:237-259) tece gurar o fortalecimento da moral e, conseqüen-
considerações para reforçar a sua posição de temente, conter o fenômeno, ou, como que-
que “de todos os fatos por nós estudados resulta riam alguns, desenvolvendo convicções. Para
que a taxa social dos suicídios só se explica so- ele, isto levaria a atribuir à educação um poder
ciologicamente”. Ao prosseguir nesta afirma- que ela não possui. Também não se poderia
ção, diz: “É a constituição moral da sociedade buscar na sociedade política e mesmo na so-
que determina a cada instante o contingente ciedade religiosa a função de “lembrar perma-
das mortes voluntárias. Existe, pois, para cada nentemente ao homem esse salutar sentimento
povo, uma força coletiva, de determinada ener- de solidariedade”, através do qual a vida read-
gia, que impele os homens a se matarem”. Rea- quiriria sentido e lhe daria maior proteção.
firma também, em relação às condições indivi- Pergunta, ainda, se a profilaxia contra o suicí-
duais, que: “Os movimentos que o paciente rea- dio não poderia se dar pela família. Responde:
liza, e que, à primeira vista, parecem só expri- “Mas seria ilusão acreditar que bastará dimi-
mir o seu temperamento pessoal, são, em reali- nuir o número de celibatários para conter o
dade, a conseqüência e o prolongamento de um avanço do suicídio”. Para Durkheim, “além da
estado social que manifestam exteriormente”. A sociedade confessional, familiar, política, uma
Várias influências de Proudhon constância da taxa social seria suficiente para outra há de que até agora não tratamos: trata-
sobre Durkheim! Força coletiva, demonstrar a exatidão da afirmação e mais se daquela constituída pela associação de todos
associação de trabalhadores, uma vez volta a afirmar que “a causa geradora os trabalhadores da mesma categoria, todos os
descentralização profissional… do fenômeno escapa forçosamente a quem só cooperadores da mesma função, o grupo profis-
Mas a dicotomia Sociedade X observa casos isolados, pois é exterior aos indi- sional ou a corporação”. Além de ver a ativida-
Indivíduo é, contudo, uma
víduos. Para descobri-la é preciso colocar-se aci- de profissional como o núcleo fundamental – é
kantianização de Proudhon.
ma dos suicídios isolados e enxergar o que lhes permanente, existe em todos os lugares e exer-
dá unidade”. ce sua força pela maior parte da existência –,
Dois outros aspectos são discutidos por de onde podem emanar os novos valores, e a
Durkheim quando estabelece as relações do cooperação como necessária à crescente divi-
suicídio com outros fenômenos sociais: se de- são do trabalho, Durkheim acredita que a res-
ve ser classificado entre os atos permitidos pe- truturação dos grupamentos locais e a “descen-
la moral e suas relações com os crimes e outras tralização profissional”, que multiplicaria os
contravenções penais. Segundo o autor, o sui- centros de vida comum, sem romper a unidade
cídio é classificado entre os atos imorais e deve nacional, poderiam deter o avanço do suicídio
ser reprovado. Entre os diversos pontos apre- contemporâneo, do mal-estar de que padece a
sentados por Durkheim na relação suicídios e própria sociedade.
homicídios, destaca que, embora sob alguns
pontos estes dois fenômenos estejam em con-
cordância, há claros contrastes entre eles. En- Comentários
quanto na França, Prússia e Itália aumentam
os suicídios, diminuem os homicídios, e a in- Tendo rejeitado os argumentos extra-sociais
tensidade máxima dos dois eventos não ocorre que teriam alguma influência sobre o suicídio,
no mesmo ponto do tempo; o suicídio é muito as disposições orgânico-psíquicas, internas
mais urbano que rural, ao passo que o contrá- aos indivíduos, tanto normais, como anormais,
rio se dá com o homicídio; são os homicídios as características do ambiente físico, e o pro-
muito mais freqüentes nos países católicos que cesso de imitação, Durkheim, por meio da
nos protestantes. Para Durkheim, as contradi- combinação da prova estatística e argumento
ções encontradas entre os dois eventos deve-se dialético, vai procurar comprovar as suas hipó-
a existirem diferentes tipos de suicídio, dos teses. Lukes (1977:205) assinala que a explica-
quais alguns mantêm certo parentesco com o ção de Durkheim foi “realmente uma tentativa
homicídio e outros, não. de responder a questão: que relações explicati-
Durkheim (1982:289-314) finaliza o seu li- vas existem entre as formas de vida social e os
vro com um capítulo intitulado “Conseqüências atos individuais de abandoná-la?”. No comen-

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O SUICÍDIO 15

tário deste autor, embora a tentativa não tenha atravessam a sociedade, originando-se não no
sido coroada de completo êxito, a teoria de indivíduo, mas na coletividade, são a causa real
Durkheim tem tido uma imensa influência no e determinante do suicídio. Prossegue Aron
que se refere à teoria sociológica específica so- (1982:315), retomando uma idéia central do
bre o suicídio. Ao citar Giddens (1981), cujas trabalho de Durkheim: “As causas reais dos sui-
críticas ao trabalho de Durkheim, na década de cídios são, em suma, forças sociais que variam
60, são bastante contundentes, lembra que de sociedade para sociedade, de grupo para gru-
pouco se avançou na teoria sobre o suicídio po e de religião para religião. Emanam do gru-
após O Suicídio, mesmo porque as explicações po e não dos indivíduos isoladamente”.
dadas, posteriormente, são formuladas de ma- Dentre os estudos críticos, deve-se citar o
neira menos precisa, não oferecendo maior de Ritzer & Bell (1981), que submetem a obra
contribuição à sua teoria. de Durkheim a uma interrogação: seria ela o
Voltando ao texto de Giddens (1981), veja- exemplo de um paradigma sociológico integra-
mos quais os pontos críticos considerados por do? A resposta é que, embora tenha tratado
esse autor. Em primeiro lugar, avalia que a aná- praticamente de todos os níveis da realidade
lise de Durkheim não demonstra que os fatos social, mesmo considerando alguns de manei-
não sociais não influem sobre as taxas de suicí- ra muito fraca, o problema básico do ponto de
dio, ou que, agindo de forma combinada, não vista de um paradigma integrado é a irregulari-
possam vir a ter influência sobre o suicídio; a dade. Acrescentam a essa crítica o seguinte:
única constatação é a de que esses fenômenos “Uma outra fraqueza é a falta de uma dialética;
não sociais não explicam as diferenças nas re- ou um modelo de sistema; há grande interesse
feridas taxas. Outro ponto é a demasiada con- no impacto das macroestruturas sobre os fenô-
fiança de Durkheim nas estatísticas oficiais, menos de nível micro, mas os efeitos realimen-
como medida exata da distribuição do suicídio. tadores são largamente ignorados” (Ritzer &
Para Giddens, mesmo as diferenças encontra- Bell, 1981:989).
das entre diferentes regiões de um único país Um outro comentário que se torna neces-
podem resultar das divergências na avaliação sário é o referente à distribuição dos suicídios.
da prova do suicídio. O autor vai buscar nos ar- Segundo os dados da pesquisa de Durkheim,
gumentos apresentados por Douglas (1970) a para a França, Prússia, Inglaterra, Saxônia, Ba- Assim como a causalidade
validação das suas críticas, quando afirma: viera e Dinamarca, as taxas médias de suicídios economicista pode ser um
“Uma taxa de suicídio é mais que um índice de por cem mil habitantes eram as seguintes: de discurso construído a partir
incidência de atos de autodestruição. É um fato 1841 a 1846 – 8,5; de 1849 a 1855 – 10,1 e de da seletividade e produção de
social em si mesmo; conseqüência de um con- 1856 a 1860 – 11,2. Isto não somente demons- dados estatísticos (mesmo os
junto complexo de eventos que envolvem nume- tra uma taxa constante durante longos lapsos
dados estatísticos são dados
por alguém, portanto
rosos atores sociais: parentes, amigos, médicos, de tempo, como também permite verificar que
mudados por alguém) pela
polícia, magistrados, encarregados de investigar se apresentava com menor variabilidade do
mídia ou pelo Estado. - - -
casos de morte suspeita, etc.” (Giddens, 1981:87). que outros fenômenos demográficos, por
Mais Durkheim do que Weber
Cita, ainda, o fato de Durkheim não ter se preo- exemplo a mortalidade geral. Durkheim cons-
acreditam na neutralidade
cupado em estudar as tentativas de suicídio, tatou que no decurso de três períodos: 1866- axiológica
que, para Giddens, são fundamentais para 1870, 1871-1875 e 1874-1878, não só ocorreu o
compreender os atos suicidas consumados. aumento do suicídio em todos os países, como
Do ponto de vista da construção teórica, os também conservaram os seus coeficientes de
autores apontam que, em essência, Durkheim aceleração. Para a França, as taxas nesses pe-
estava interessado em especificar teoricamen- ríodos foram as seguintes: 13,5; 15,0 e 16,0 por
te três tipos de causa social – egoísmo, altruís- cem mil habitantes. Atualizando os dados, pa-
mo e anomia –, cada tipo representando um ra a França, a cada cem mil habitantes, entre
conjunto de fatores associados, relacionando- 1950-1976, a taxa foi de 15 e, em 1993, 21, con-
os com altas ou ascendentes taxas de suicídio forme Philippe (1993). Segundo dados recentes
(Lukes, 1977). O esquema teórico de referência da World Health Organization ( WHO, 1994),
da qual deriva esta tipologia relacionava-se à em 1993, a taxa média anual mundial de suicí-
concepção durkheimiana de moralidade e soli- dios era de oito por cem mil habitantes, porém
dariedade social. É de fundamental importân- a sua distribuição entre os países era bastante
cia, como foi visto na síntese do seu trabalho, variável: Hungria: 38,6; Sri Lanka: 35,8; Finlân-
que para ele o suicídio era a antítese da solida- dia: 29,8; Suíça: 22,7, que apresentam as taxas
riedade. Esclareça-se, também, que os tipos de mais elevadas, e países como o Brasil, com cer-
suicídios foram usados pelo autor para distin- ca de quatro suicídios por cem mil habitantes.
guir distintas correntes suicidógenas. No co- Voltando aos dados referentes à França, verifi-
mentário de Aron (1982), estas correntes que ca-se que a mortalidade por suicídios não so-

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16 NUNES, E. D.

mente cresceu, como modificou a sua distri- dem exista, isto é, que se descubra séries contí-
buição, no que se refere às categorias sócio- nuas, cujos elementos estejam ligados entre si
profissionais. Tanto os dados levantados por de tal maneira que um efeito sempre resulte da
Durkheim, como por Halbawachs, mostram mesma causa e não possa provir de outra. Que
que, na segunda metade do século XIX, as ta- se suponha, ao contrário, destruída a necessida-
xas eram maiores para as carreiras liberais. de desse liame causal, os efeitos poderiam se
Durkheim (1982) encontra na França, de 1878- produzir sem causa ou em seguida a uma causa
1887, a cifra de trezentos suicídios por milhão qualquer, tudo se tornaria apenas caprichoso e
de pessoas de cada profissão; Halbawachs fortuito; ora, o que é caprichoso não é suscetível
(1930), para o período de 1861-1865, entre os de interpretação” (Durkheim, 1953:88-89, apud
liberais e os que vivem de renda, encontra o va- Fernandes, 1959).
lor de 389. Este autor cita que, entre as profis- Ao transpor esta citação para o trabalho so-
sões agrícolas, o número era de 131 e, entre as bre o suicídio, reafirma-se que a preocupação
industriais e comerciais, 196. Todd (1981:55), básica de Durkheim era a construção metodo-
ao retomar as estatísticas dos suicídios profis- lógica. Nesse sentido, Fernandes (1959) consi-
sionais, afirma que: “No curso do século que dera que há três importantes contribuições
precede a guerra de 1914-1918 não é a miséria metodológicas oferecidas por Durkheim. A pri-
material que provoca o desespero absoluto. Não meira refere-se à seleção da base empírica; a
se pode explicar simplesmente o crescimento ge- segunda diz respeito à formação da inferência
ral da freqüência do suicídio pelos padrões da indutiva e a terceira refere-se à verificação da
vida econômica”. Como este autor irá analisar, inferência indutiva. Esta constitui uma das
na segunda metade do século XX ocorre pro- maiores dificuldades da sociologia pela impos-
funda modificação, o coeficiente de mortalida- sibilidade de realizar a experimentação pro-
de por suicídio, por cem mil homens de 45 a 54 priamente dita, e Durkheim adotará como meio
anos, de 1966-1971, era de 18,7 para os perten- adequado para a ministração da prova o méto-
centes aos quadros superiores e profissionais do das variações concomitantes. Segundo Fer-
liberais; 49,3 para os operários especializados; nandes (1959:88): “Talvez seja esse o ponto mais
para os agricultores proprietários, 72,2; para os fraco de sua teoria da investigação sociológica”.
trabalhadores manuais, 93,7; para os assalaria- Inegavelmente, a metodologia utilizada por
dos agrícolas, 98,1. Corroborando esta situa- Durkheim, apesar das críticas que se fazem à
ção, Philippe (1993:10), do Institut National de utilização das estatísticas, como já apontado,
la Santé et de la Recherche Médicale, dizia que constitui um dos pontos altos do seu estudo.
o suicídio é atualmente “um mal mais freqüen- Porém, como salienta Aron (1982), algumas
te nos meios rurais e populares que entre os pri- controvérsias levantaram-se em relação à vali-
vilegiados. De fato, observa-se que o risco de sui- dade das relações estabelecidas por Durkheim,
cídio mantém-se paralelo ao das mortes em ge- como as tratadas por Halbwachs (1930). Para
ral: um operário vive menos que um membro de Durkheim, os protestantes suicidam-se mais
outras profissões”. freqüentemente do que os católicos porque a
Há cem anos, Durkheim escreveu um tra- força integrativa do catolicismo é maior do que
balho que, no dizer de Aron (1982:308) “tem o a do protestantismo. Para Halbwachs, há a ne-
rigor de uma dissertação acadêmica. Começa cessidade de verificar se os dois grupos religio-
por definir o fenômeno; continua com uma re- sos vivem em zonas agrícolas ou em cidades e
futação das interpretações anteriores; estabelece se têm modos de vida diferentes. Isto alteraria
uma tipologia; e, com base nessa tipologia, de- a força do valor integrativo das religiões. Dou-
senvolve uma teoria geral do fenômeno consi- glas (1970:127), ao analisar o estudo de Halb-
derado”. Nesse sentido, é exemplar. Não preci- wachs, coloca em evidência que: “Ele acredita-
samos citar as suas Regras do Método Socioló- va que diferenças nas relações familiares, reli-
gico (Durkheim, 1960), pois elas são evidentes gião, tipos de ocupação, grau de escolaridade e
neste trabalho. Tanto assim, que é em outro posição sócio-econômica eram todas meramen-
trabalho de sua autoria – La Contribution de te aspectos das diferenças fundamentais entre
Montesquieu à la Constitution de la Science So- os modos de vida urbano e rural. E ele acredita-
ciale – que se pode buscar uma raiz importante va que era a diferença fundamental nas formas
para compreender a elaboração desta sua in- de vida urbana e rural que explicava muitas
vestigação. Nessa tese, ele afirma: “Interpretar das diferenças na distribuição social do suicí-
as coisas, não é mais do que dispor as idéias que dio”. Halbwachs pôs este ponto em evidência
nós possuímos, segundo uma ordem determina- quando mostrou que as taxas de suicídio de-
da, que deve ser a mesma que a das coisas. O cresciam quando se passava das áreas com po-
que pressupõe que, nas próprias coisas, essa or- pulações mais densas e relativamente urbani-

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O SUICÍDIO 17

zadas para as menos populosas, rurais e mon- Constantemente citado como exemplo de
tanhosas. Tem sido apontado que nem sempre estudo epidemiológico, um dos pontos críticos
é muito claro o significado de modo de vida. apontados pelos epidemiologistas é que o uso
Em geral, segundo Douglas (1970), refere-se ao de dados agregados provoca um erro metodo-
que hoje chamaríamos de cultura, ou seja, sig- lógico denominado falácia ecológica, ou seja, a
nificados que são partilhados e transmitidos, produção de inferências causais sobre com-
mas não chegam, como no caso de Durkheim, a portamentos individuais com base em dados
delinear tipos de representações coletivas, tais agregados ou grupais (Robinson, 1950; Selvin,
como egoísmo-altruísmo e anomia-fatalismo. 1958). Entre os estudos que procuraram mos-
A questão do significado introduz a princi- trar o valor epidemiológico das estatísticas de
pal crítica feita por Douglas (1970) aos estudos suicídio, cite-se o de Sainsbury (1972). Nesse
sobre o suicídio, e a abordagem da hipótese es- trabalho, o autor estudou as taxas de suicídio
tatística, ou abordagem positivista, levou-o a da Inglaterra e País de Gales, de 1901 a 1961,
elaborar uma abordagem teórica das ações sui- por sexo e grupos etários, assim como as taxas
cidas como ações sociais. Defende que o im- de um grupo de países, no período de 1921-
portante é distinguir os situated meanings dos 1923 a 1952-1954, tendo, também, correlacio-
abstract meanings, pois os primeiros são fun- nado as taxas de suicídio de imigrantes nos Es-
damentais para descrever formas de ação so- tados Unidos com as taxas de seus países de
cial, básicas para o estudo do suicídio. Como origem. Neste caso, a correlação encontrada foi
referido por Boudon & Bourricaud (1993), a considerada altamente significante, tendo sido
abordagem biográfica e qualitativa defendida concluído que as diferenças que aparecem nas
por Douglas (1970) seria brilhantemente de- estatísticas entre os países não se devem a di-
senvolvida por Baechler (1975), para quem ferentes processos no relato das mortes. Ponto
“pode-se interpretar o suicídio como uma res- alto deste trabalho é o referente à possibilida-
posta a uma situação: todos os suicídios resul- de, de um lado, de utilizar as estatísticas no es-
tariam do fato de que o suicida deixou-se pren- tudo epidemiológico do suicídio, discordando
der numa armadilha. O suicídio, portanto, deve das afirmações de Douglas (1970), e, de outro,
ser interpretado como uma solução ‘estratégica’ de evidenciar ser altamente produtivo para o
dada pelo indivíduo a problemas existenciais” estudo do suicídio a combinação da aborda-
(Baechler, 1975, apud Boudon & Bourricaud, gem epidemiológica e do estudo de caso.
1993:551). Não se pode deixar de citar o traba- Por sua vez, os psiquiatras, quando anali-
lho realizado por Besnard (1976), que procedeu sam as relações entre suicídio e doença men-
à circunstanciada análise do livro de Baechler tal, não chegam a um consenso. Uma detalha-
(1975), no qual se explicita um claro projeto da análise crítica sobre as fontes psiquiátricas
antidurkheimiano, embora o exame crítico da utilizadas por Durkheim foi realizada por Ber-
obra de Durkheim ocupe somente quatro pági- rios & Mohanna (1990). O argumento apresen-
nas, num total de 650. Mas, como lembra Bes- tado por esses autores não é o de que Dur-
nard (1976:314), esta análise de Baechler é kheim não tenha levado em conta os trabalhos
“pontuada aqui e ali de sarcasmos contra as dos alienistas, ou “negado que a desordem men-
correntes suicidógenas ou outras interpretações tal, significados e intenções fossem importantes
‘pueris’ ou ‘cômicas’ de Durkheim”. Para Bes- particularmente para o suicídio ‘egoísta’, mas
nard (1976), embora seja necessário interrogar que ele estava enviesado na escolha de suas fon-
sobre a validade das estatísticas oficiais, não se tes psiquiátricas, e como conseqüência pintou
podem aceitar sem controle os argumentos um quadro distorcido da história das idéias
que conduziriam a renunciar a qualquer esfor- psiquiátricas sobre o suicídio no século XIX na
ço para cercar o problema. Na mesma linha de França” (Berrios & Mohanna, 1990:1). A idéia
argumento, Todd (1981:248) escreve: “Imperfei- apontada pelos autores de que Durkheim teria
ta, a taxa de suicídio é, na prática, muito supe- sido seletivo e idiossincrático na escolha de seu
rior em qualidade a outros indicadores sociais material e terminologia é contestada por Lloyd
mais freqüentemente utilizados, como o produ- (1990), quando, ao comentar o texto de Berrios
to nacional bruto per capita. Com efeito, é mui- & Mohanna (1990), afirma que para o sociólo-
to mais fácil dissimular a riqueza (numa decla- go francês havia, certamente, mais “o desejo
ração de renda) do que fazer desaparecer um positivista de estudar as taxas, as regras e tipos
cadáver. Não se pode, pois, colocar em questão o do fenômeno social do que inquirir sobre (des-
valor da ‘taxa de suicídio’ sem abandonar de conhecida) intencionalidade individual” (Lloyd,
um salto toda uma gama de indicadores econô- 1990:594). Nesta linha de crítica ao texto de
micos, desde a renda nacional per capita até a Berrios & Mohanna, Youssef (1990:750) tam-
taxa de investimentos”. bém assinala que “Durkheim estava escrevendo

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uma teoria sociológica sobre o suicídio e não críticos reconhecem a engenhosidade e o bri-
um texto psiquiátrico”. Considerando-se as lho com que realizou este trabalho. Symonds
controvérsias que ainda existem em relação ao (1991), ao revisar o texto do sociólogo francês,
tema das relações doença mental/suicídio, re- não somente fala da sua relevância, como cita
corremos ao texto de Mello (1992:64), que ao que recente busca na base de dados do Socio-
fazer um recente levantamento bibliográfico logical Abstracts revelou que este trabalho é ci-
sobre o assunto, aponta que “o número de au- tado em 189 das 1.490 referências, e 1.485 ve-
tores que não admitem tomar o suicídio isola- zes no total.
damente como critério de doença mental é tão Por outro lado, os suicídios estão classifica-
significativo quanto os de opiniões contrárias”. dos entre as mortes por causas violentas, jun-
Para Mello (1992:65), “na falta de um contexto tamente com os homicídios, acidentes e enve-
sintomatológico que permita o diagnóstico psi- nenamentos, tornando-se importante fenôme-
quiátrico, não enquadraríamos o ato suicida, no para avaliar, juntamente com outras estatís-
automaticamente, como patognômico de doen- ticas vitais, a situação de bem-estar de uma so-
ça mental”. ciedade, e como um problema de saúde. Novas
As questões sobre o suicídio, suas causas, metodologias e abordagens não retiram do tra-
fonte de dados, abordagens teóricas e metodo- balho de Durkheim o seu pioneirismo, que ain-
lógicas não se encerram com estes comentá- da suscita inúmeras possibilidades de análise
rios. Trata-se, sem dúvida, de um tema que ul- para os pesquisadores sociologicamente orien-
trapassa os limites de um único campo do co- tados, os quais hoje contam com melhores es-
nhecimento, mas, do ponto de vista sociológi- tatísticas e com o desenvolvimento de análises
co, o texto de 1897 de Durkheim é um exemplo quantitativas não existentes na época em que
de integração de teoria e dados. Mesmo os seus Durkheim realizou a sua pesquisa.

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