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Revista USP • São Paulo • n. 107 • p. 118-134 • outubro/novembro/dezembro 2015 117


Arte Antonio Henrique Amaral

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ó
A explosão de uma metáfora visual:

Jo a n M i r

Aguinaldo José Gonçalves

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Arte Antonio Henrique Amaral

A
exposição realizada pelo Museu ou finas ações construtivas de uma imagem que
Tomie Ohtake durante o mês de não pode ser descrita com precisão. Mais ainda
julho de 2015 reorganizou meus se complica caso o aficionado crítico leve muito a
sentidos para captar em direções sério o pensamento de Roland Barthes segundo o
díspares. Centralizada num só qual a pintura consiste naquilo que descrevo dela.
corpo, a exposição causou uma Mas essa descrição, diríamos, se desenha pelo ca-
das mais inebriantes sensações minho, o caminho com desvios de dentro, de uma
que se poderia ter e ao mesmo forma plasmada por uma linha que constrói o ob-
tempo aguçou o “olho do espí- jeto inusitado e maravilhoso, em que as referências
rito”, para lembrar e fazer justiça do mundo são apenas aludidas ou nem isso, por
ao excelente fenomenólogo Mer- algo que se apresenta numa primeira instância e
leau-Ponty ao ler pintura e anali- depois penetra no nosso pensamento, deixando-nos
sar a obra de Paul Cézanne. Para à mercê de um consolo referencial.
quem conhece a obra do artista catalão, visitando-a Minha reflexão sobre esse universo foi ocor-
em museus espanhóis, perscrutando há anos essa rendo concomitantemente ao movimento de meu
pintura nos volumes de obras publicadas, estudan- corpo e meus olhos, e aquele percurso mágico foi
do par e passo seu processo, evidentemente, ao compondo a revisitação de minha experiência de
ver uma exposição que apresenta obras possíveis, percepção da obra desse artista catalão e fiquei a
é difícil não ficar procurando aquele quadro que mirar uma parede off-white que estava na minha
não se encontra presente ou relacionando o quadro frente ainda sem obras expostas por se tratar da
exposto com quadros ausentes naquela parede off- parede de minha casa. Foi nesse espaço que co-
-white que parecia fazer parte da composição. Foi mecei a refletir e captar sensações sinestésicas e
assim que se construiu no meu imaginário uma cinestésicas antes mesmo de saber que obras se-
outra exposição e se foi gerando paulatinamente no riam apresentadas na exposição. Por experiências
conjunto de meus pensamentos sensíveis a maior anteriores em exposições de pintura, antes de en-
conjunção de obras plásticas que já vi do pintor trar na minha atmosfera, senti a necessidade de
catalão. Num primeiro momento, quando estamos acompanhar os visitantes na sua caminhada pelo
diante dessa obra, nosso olhar tende a ficar meio museu. Observar a postura dos visitantes de expo-
ingênuo e somos puxados por uma energia para
dentro do movimento que a obra engendrou e que
agora nos envolve, e ficamos lá, diante de um qua-
dro, tendo a impressão de que não podemos deixá-
-lo e seguir a viagem da exposição para ver o outro AGUINALDO JOSÉ GONÇALVES é professor de
Relações Intersemióticas, escritor, ensaísta, crítico
quadro. A obra de Miró cria no interior da moldu- de artes e autor de, entre outros, Das Estampas
ra um ritmo e uma sintaxe que determinam ações (Nankin Editorial).

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Reprodução

Joan Miró, Summer, 1936

sição temporária de obras de arte consiste numa arte que se categoriza mediante as mediações do
prática que desenvolvo há muito tempo, e sempre entendido e do categorizado.
colhi alguns frutos que se converteram em certa A pedido de um jornal de artes, conhecendo
compreensão um pouco mais apurada da obra que esse meu estranho prazer em perseguir visitadores
estava sendo exposta. A justaposição dos quadros que se dizem aficionados pelos museus de São Pau-
ao longo das paredes do museu e os passos lentos lo, acompanhei numa tarde de sábado no Museu
do visitante-observador criam uma relação quase de Arte de São Paulo um casal de meia-idade que
impossível de ser decodificada mediante os dita- parecia ser, pelo modo de se vestir e pelos trejeitos
mes do silêncio que conduzem à relação que se tor- delicados e civilizados, de classe média alta, inte-
na linguagem no seu mais estrito sentido. De quan- lectualizado, que faz questão de visitar os grandes
do em quando, um observador comenta com muito museus de sua cidade em ocasião das grandes ex-
cuidado ao amigo que o acompanha, ao ver algo posições itinerantes. E tratava-se de uma exposição
que lhe desperta uma sensação diferente. Quando singular de Claude Monet, que trazia um impressio-
o artista se destaca pela forma de composição do nismo tardio do pintor francês marcado por certo
desenho, o observador faz o olhar de admiração desconstrutivismo do estilo em relação às figura-
pela técnica utilizada e pelo primor do traço ou da tivizações das obras anteriores. Como se sabe, por
cor manifestada. Quando o artista se caracteriza mais que Monet criasse as profusões sensoriais de
pelo insólito, como é o caso do surrealismo, o imagens com sobreposição de linhas e de cores,
observador se comporta com o olhar de quem os elementos invariantes de sua pintura sempre se
esperava o singular agora já categorizado pela mantiveram visíveis, perceptíveis e reconhecíveis.
história da arte. De maneira geral, as expecta- Entretanto, as obras que compunham ou povo-
tivas atendem a um comportamento da própria avam aquela exposição pertenciam à última fase de

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Arte Antonio Henrique Amaral
Reprodução

Claude Monet, Water Lilies, 1919

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Monet, e seus elementos figurativos estavam desti- visual tendo a metáfora como ponto de partida e
tuídos dessa visibilidade, pois o pintor encontrava- ponto de chegada para a demonstração do que
-se numa instância criadora de uma consciência em significa o movimento construtivo dessa figura
crise que seria muito fértil para a pintura futura en- tão relevante para a história das formas e como
caminhada por Cézanne e desenvolvida por grandes isso se dá nessa pintura tão singular. A grande
artistas do século XX. Dessa forma, as obras que maioria dos quadros do pintor atua como exercí-
se apresentavam naquela exposição não possuíam cio para a construção da metáfora de interação sê-
consistência figurativa das ninfeias, nem das pontes, mica como entendemos que deve ser considerada
nem das catedrais em várias horas do dia. E o “des- a figura central da retórica clássica. A construção
manche” que compunha aqueles quadros na verdade do signo complexo na pintura de Miró consistiu
decepcionava o visitante que se diz aficionado e que num processo que durou anos e anos, em cuja
na verdade não consegue estabelecer um diálogo trajetória sua obra magistral foi se desenvolvendo
com a verdadeira pintura. Sem que me notassem, e deixando o seu rascunho de forma memorável.
acompanhei o casal por boa parte da exposição, Esse trabalho se constituiu numa espécie de con-
pressentindo aquilo que iria flagrar. Durante toda a quista a cada passo de sua evolução.
primeira parte, as obras correspondiam ao que já as- Mesmo que este texto tenha como fundamento
segurei. Tratava-se de obras que apresentavam aque- crítico o recorte sincrônico do trabalho de Joan
las novas formas tendendo à não figura, em que as fi- Miró, alguns passos decisivos para este estudo
gurativizações eram ralas, mas o resultado profícuo, têm caráter diacrônico e devem ser assinalados e
inusitado e fundamental para a linguagem plástica. alguns deles discutidos para que seja possível uma
E o comportado casal apresentava uma expressão melhor compreensão do fenômeno metafórico. Es-
de quem come sem sentir o prazer de comer, bebe ses passos estão marcados na linha cronológica da
sem sentir o sabor do que bebe. Ambos vestindo obra do pintor catalão, e algumas marcas se consti-
tons pastéis e combinações convencionais, trajaram tuem invariantes no processo trilhado pelo artista.
na verdade suas mentes para uma exposição que Um dos primeiros procedimentos utilizados
não veio. De repente, algo inusitado ocorreu. Uma por Miró e que se manteve durante toda a evolu-
tela emergiu aos olhos do casal. Tratava-se de um ção de sua pintura consistiu no processo de des-
quadro em que se revivificava uma ninfeia perdida realização dos elementos representados, marca de
entre tons remissivos ao lago aquoso. Era como se estilo que foi se intensificando nas obras poste-
fosse o último resquício ou o último vestígio de um riores em todas as suas nuanças expressivas. Esse
traço figural na pintura de Monet. Ela percebeu o fe- procedimento acentuou o ato de estranhamento
nômeno estético primeiramente, ele a acompanhava dessa pintura mesmo quando ainda se podia reco-
com seu suéter amarelo; ela o chamou, segredou-lhe nhecer a figurativização icônica do mundo espa-
algo e ambos sorriram com alegria. Pelas expres- nhol, de sua terra natal, Maiorca.
sões, havia valido a pena terem se deslocado de casa O universo da terra e do volver essa terra con-
e ido até o museu. A ninfeia se apresentou e trouxe siste numa presença do universo pessoal do pintor,
a felicidade figurativa ao casal, que valia ali como mesmo assim, o estranhamento visual se mostra
paradigma de tantos outros que dizem amar a arte e como se o artista volvesse a própria terra para vol-
que jamais perdem uma exposição itinerária. ver a arte nos seus princípios em relação à tradição
Por meio dessa pequena digressão, que recor- e em relação à mobilidade dessa tradição como de-
tou uma visita ao museu, alguns subsídios nos terminante para que tudo se iniciasse dentro de uma
estimulam a refletir sobre a natureza das artes, e consciência que jamais cessaria durante toda a sua
das artes plásticas em particular, a partir daquele história inventiva. A obra de Joan Miró se inicia
a quem tanto interessam o processo de criação sob o signo da desrealização e do estranhamento.
e seus resultados expressivos: o receptor e suas Além disso, a força do mito sempre esteve presente
expectativas mediante a obra produzida. Mais do no seu trabalho, e sobre isso alguns autores se de-
que trilhar pela história da arte e localizar Joan bruçaram para assinalar o universo mítico do pintor.
Miró nessa história, esse movimento crítico pos- Entretanto, o que julgamos fundamental na cons-
sui uma proposta sincrônica de discutir a retórica trução do que denominamos a metáfora explosiva

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Reprodução Arte Antonio Henrique Amaral

Joan Miró, Mont-roig, vignes et oliviers, 1919

nesse trabalho foi a forma com que esses elementos cedimento dessa pintura que indicia a permanente
míticos foram trabalhados mitopoeticamente pelo reflexão sobre linguagem, tendo no signo sua célula
artista para que se elevassem à condição de signo e sua fundamentação, é o fato de Miró, em inúme-
estético, ou signo poético, na fabricação de uma ros quadros, se valer do mesmo título ou do mesmo
sintaxe irregular em que o mito se situa como sig- processo de esvaziamento da palavra. Explicando
no e mais como signo estético de uma composição melhor: em muitos quadros ele usa a palavra “per-
maior. Voltando aos primeiros trabalhos, reiteramos sonagem” para nomear uma das partes do título,
a relevância de assinalar que o fio metafórico dessa como vemos nos quadros Oiseau emprisonné par
pintura sempre esteve de uma ou de outra maneira un personnage (1963) e Personnage et oiseaux de-
presente mesmo naqueles primeiros trabalhos de vant le soleil (1976).
recortes da terra e das coisas do campo, em que a O fato de apenas nomear a imagem como “per-
ruralidade se apresenta como força da linguagem sonagem” se torna mais instigante do que se essa
e nela a própria pintura se mostra como constru- imagem vazia fosse preenchida com algum nome.
ção e como imagem. Essa forma de passar o ara- Esse esvaziamento determina um dos aspectos de
do sobre a terra possui caráter paródico em que os desrealização de sua pintura de várias formas. Não
próprios substratos referenciais se transubstanciam se pode compreender esse trabalho como um exer-
como signos e se assemelham ao ato de o artista cício figurativo e nem como não figurativo. Trata-se
ler a tradição e se voltar para a própria linguagem, de uma terceira ordem de coisas em que o signo
passando o arado nos ditames da tradição. Um pro- passa a ocupar o lugar dos referentes, mesmo quan-

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Reprodução

Reprodução

Joan Miró, Oiseau emprisonné par un Joan Miró, Personnage et oiseaux devant le
personnage, 1963 soleil, 1976

do nomeados na criação da metáfora do título. Esse de um procedimento marcado pelo lúdico, e isso lhe
signo “personagem”, que se reitera durante toda a confere algumas características ou traços de estilo
produção de Miró, talvez seja o modulador de seu que a distinguem de outras pinturas. O lúdico des-
trabalho de esvaziamento que na poesia denomi- sa pintura está no modo de se realizar no espaço
namos exercício de deslexicalização da linguagem e de conduzir o olhar do receptor ao se propor a
em busca da construção da metáfora. Ao observador entrar em sintonia com ela. Integrado ou fundido
cabe se relacionar com os vazios do signo e se mo- a esse caráter lúdico está, no âmbito das imagens,
vimentar no sentido em que é construído pelas ima- o aspecto alegórico dessa pintura. Entretanto, o
gens. Ou melhor: o observador memorializado deve teor alegórico que a compõe não corresponde à
buscar nos seus referentes do mundo alguma coisa alegoria clássica, mas condiz em vários aspectos
que o leve a preencher o que a imagem esvaziou. com a alegoria moderna sistematizada e teorizada
Sempre ou quase sempre “o personagem” vem se por Walter Benjamin no seu Origem do Drama
relacionando com algum outro elemento nomeado Barroco Alemão. Miró trabalha com sucatas ou
e contextualizado na tela. Esse talvez seja um dos fragmentos de coisas que transforma e pedaços de
fundamentos mais relevantes dessa pintura que se signos que se alinham e se integram de maneira
faz alegórica sem desvelar os passos dessa alegoria. maravilhosa. Sua alegoria é da ruína que aponta
Para que se possa compreender parte desse pro- para o insondável e para o insólito de profunda
cesso há que se perseguir cada uma de suas instân- beleza e de fascínio instigante. Digo instigante por-
cias. A primeira delas é compreender a pintura de que a estranha alegoria de seu trabalho tem como
Joan Miró como pintura que se distanciou muito das fio de prumo o dinâmico que brinca no espaço bi-
tentativas renascentistas para se impor como pintu- dimensional e dribla os limites da moldura.
ra. A obra de Miró é pintura e se realiza no espaço A terceira instância que deve ser percebida na
planar bidimensional da tela. Ela se apresenta dentro pintura de Miró se constrói pelos movimentos das

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Reprodução Arte Antonio Henrique Amaral

Joan Miró, Le carnaval d’Arlequin, 1924-25

imagens conduzidas por uma sintaxe que impõe com alguns índices em procedimentos surpreen-
um ritmo determinante da microestrutura do qua- dentes, muitas vezes parecendo tratar-se do acaso
dro. Esse movimento gerado pelo trajeto da linha criativo sem a técnica do “lance de dados”, para
constrói formas que vão emergindo na composição aludir ao poema de Mallarmé. Integrado a essa
da massa cromática, e isso é determinante na cons- busca, a essa condução do trabalho para uma ar-
trução do estilo de Joan Miró. É muito pouco dizer ticulação metafórica, atenuando paulatinamente
de uma metapintura, sobretudo pelo desgaste que o teor alegórico de sua pintura, o pintor catalão
essa expressão sofreu nos últimos tempos. Entre- vai se enriquecer de determinados recursos que o
tanto, é necessário afirmar que nesse estilo o vol- fazem se aproximar cada vez mais dos elementos
tar-se da linguagem para ela mesma tornou-se um constitutivos do poético e, consequentemente, da
estilema, como se fosse inerente ao próprio traço metáfora plástica que o conduzirá ao ponto máxi-
do artista, e a presença da alegoria tão intensa na mo de sua invenção. Apesar de os fundamentos
obra de Miró não é uma condição que determinará retóricos serem os mesmos para qualquer forma
a evolução de seu trabalho. Ocorrendo de maneira de linguagem, eles oscilam ou se manifestam de
assistemática e sem poder assumir um determi- modo distinto para cada uma delas. Nesse cami-
nismo de produção, o que ocorre no movimento nho, os recursos retóricos, a estilística, as figuras
encaracolado de seu trabalho é uma busca (com clássicas de retórica nasceram e persistiram para as
muitos encontros) de um signo visual complexo ou artes verbais. Nesse caso, o que é normal ocorrer
o que preferiria denominar de metáfora complexa com as figuras manifestadas num poema não o é
na pintura de Joan Miró. Creio que esse fenômeno na expressão de uma pintura ou de uma escultura.
foi se desenvolvendo durante todos os anos em que Daí o grau de valorização quando ocorre, num ar-
o artista trabalhou, e percorre pontos inusitados tista plástico, a criação de uma metáfora, sobretudo

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Reprodução

Hieronymus Bosch, The Temptation of St. Anthony (detalhe)

quando essa metáfora atinge um grau elevado de se iluminam, mas que na verdade se distinguem
construção e de efeito expressivo. Na história da nas suas bases de sustentação: a natureza bipar-
pintura, poucos são aqueles artistas que tenderam à tida do signo verbal, com seus dois planos que,
busca desse efeito metafórico com bons resultados. se interagem na formação da célula (significante
Acabam ficando nos efeitos alegóricos, fabricando e significado ou plano de expressão e plano de
metáforas locais que se integram a outras figuras conteúdo), distinto do caráter analógico do signo
no espaço da tela. (Façamos aqui uma homenagem icônico, trazem toda a diferença na construção da
a um artista que, em pleno século XV, conseguiu imagem, incluindo a metáfora visual. É nesse sen-
efeitos preciosos de natureza alegórica, mas atin- tido que se encontra a relevância da trajetória de
gindo em belos momentos certo efeito metafórico. Miró em busca de uma ampliação dos limites do
Trata-se de Hieronymus Bosch.) signo icônico para que conseguisse atingir esferas
Como dissemos, a construção da metáfora em retóricas que, em princípio, não seriam próprias
Miró encontrou muitos recursos expressivos que da pintura. A isso denominamos a busca de uma
pudessem ir sedimentando esse trabalho. Para poética que foi paulatinamente sendo atingida pelo
atingir o lírico visual por meio de um signo com- pintor. Assim, reafirmando, Miró foi condensando
plexo é necessário um processo de condensação elementos constitutivos de traços de alegoria para
dos elementos alegóricos, de enxugamento desses conseguir galgar o patamar da metáfora. Curioso
elementos, para que os termos da metáfora (o me- que um dos procedimentos utilizados desde a fase
taforizante e o metaforizado) possam entrar em inicial de seu trabalho (décadas de 20 e 30) foi
fusionismo e gerar o objeto final que possa pulsar incluir o signo verbal no espaço planar de suas pin-
por si, com universos transfigurados, e por isso turas, trazer para as ações do interior da moldura
mobilizar sentidos estigmatizados no fruidor. Isso uma espécie de “conflito semiótico”, que, além de
significa que a grande busca dessa pintura esteve conseguir efeitos muito especiais e bonitos, levava
voltada para a questão do poético naquela dimen- a questão retórica dos dois códigos para dentro da
são basilar tão própria para o discurso verbal e tão tela. Observemos um quadro de Joan Miró e um
difícil para o discurso visual. Duas semióticas que poema de Saint-Pol Roux.

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Reprodução Arte Antonio Henrique Amaral

Joan Miró, Le corps de ma brune puisque je l'aime comme ma chate habillée en vert salade comme
de la grêle c'est pareil, 1925

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Les deux serpents qui burent trop de lait As duas serpentes que beberam muito leite

Ô tardive, dis-moi, quelles sont ces deux blancheurs Dize-me, ó tardia, que são estas duas brancuras
qui dans l’ombre s’avancent? que na sombra avançam?
Sans doute deux rayons de lune Sem dúvida dois raios de lua
exprimés par l’huis de ma venue. espremidos pela porta por onde entrei.
Un rayon de lune est fluide et diaphane, Um raio de lua é fluido e diáfano,
ce que je vois est opaque et solide. o que vejo é opaco e sólido.
Alors ce sont deux banderoles de neige Então são duas bandeirolas de neve
pleurées par les blessures de la tuile. choradas pelas feridas da telha.
Nous sommes en juillet, brune amante, Estamos em julho, amante morena,
mais fussions-nous en décembre, estivéssemos em dezembro,
l’haleine de la chambre aurait déjà fondu o hálito do quarto já teria derretido
les flocons que tu dis. o floco que tu dizes.
Alors ce sont deux rameaux d’aubépine Então são dois ramos de albepine
aux lèvres des persiennes. nos lábios das persianas.
Notre mansard est haute, Nossa mansarda é alta,
et je ne sache pas que l’aubépine pousse dans l’espace. e que eu saiba o espinheiro-branco não cresce alto.
Alors ce sont deux cols de cygne. Então são dois pescoços de cisne.
Nous n’avons pas de cygnes dans la chambre, Nós não temos cisnes no quarto,
et puis un col de cygne est souple et d’harmonie, e um pescoço de cisne é flexível e tem harmonia,
tandis qu’à la manière des serpents enquanto que, à maneira das serpentes,
ces choses-là se tordent. aquelas coisas se contorcem.
Et si c’étaient deux ce que tu viens de dire? E se fossem duas que acabas de dizer?
Deux serpents, veux-tu rire, blancs? Duas serpentes, brincas, brancas?
On a vu des serpents boire infiniment de lait. Foram vistas duas serpentes beberem leite infinitamente.
Personne avec toi n’est entré? Ninguém entrou contigo?
Personne que ma chevelure. Ninguém a não ser minha cabeleira.
Comment se seraient-ils introduits dans ce cas? Como teriam se introduzido, neste caso?
Aurais-tu peur de deux serpents qui burent trop de lait? Terias medo de duas serpentes que beberam muito leite?
Prends garde, Marcelle! ils vont sauter sur toi! Acautela-te, Marcelle! elas vão saltar em ti!
Viens, oh viens près du lit!... Vem, oh vem para o leito!...
Laisse donc ces foetus du sommeil! Deixa portanto esses fetos de sono!
Ils ont sauté, sauté jusqu’à ta gorge, ô ma pauvre! Elas saltaram, saltaram até tua garganta, minha pobre!
et leurs queues nouées à tes épaules, E suas caldas enroscadas nos teus ombros,
voilá qu’ils se balancent ei-las que balançam
dans tes gestes vers tes mains... em teus gestos por tuas mãos...
Fou, puisse ma caresse effacer ton cauchemar! Louco, possa minha carícia apagar teu pesadelo!
Ils assailent mon lit, rampent vers mon cou... Elas assaltam meu leito, rastejam por meu pescoço...
ah je les sens s’y joindre en collier de potence! Ah, eu as sinto juntarem-se em potente coleira.
Non, c’est moi qui t’enlace, bel halluciné… Não, sou eu que te enlaço, belo alucinado...
Eh quoi!... ces deux serpents qui burent trop de lait… Eh qual!... estas duas serpentes que beberam muito leite...
Seraient mes bras, ami, mes deux bras blancs… Seriam meus braços, amigo, meus dois braços brancos...
Tes bras... tes deux bras blancs... Teus braços... teus dois braços brancos.

Saint-Pol Roux Tradução de Dinamara Garcia Rodrigues.

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Arte Antonio Henrique Amaral

Dentre tantas obras em que Miró se valeu étoile, de 1934, de Silence, de 1968, ou ainda de
desse recurso, a escolha de Le corps de ma bru- Poème I, também de 1968.
ne... se deve ao fato de ter sido produzido no iní- Trata-se de procedimentos similares com efei-
cio do desenvolvimento plástico do pintor e con- tos bastante distintos. Se bem que procedimentos
seguido expressar uma profusão e uma riqueza de similares não correspondem à igualdade de cons-
sentidos que dificilmente conseguiria nos quadros trução, e isso interfere decisivamente no resulta-
futuros. Creio que nele o artista se valeu muito do de cada uma das obras. Apenas para assinalar
da técnica, mas também de uma gama decisiva algumas diferenças, deve-se observar que no pri-
do imaginário criador, e diríamos que, por isso, meiro quadro, Escargot, femme, fleur, étoile, os
antes de atingir a verdadeira trajetória da bus- quatro nomeados entram em verdadeiro proces-
ca, Joan Miró encontrara o resultado esperado. so de transmutação, tornando-se irreconhecíveis
No quadro se fundem três elementos essenciais: como imagem de reconhecimento.
a dimensão plástica da pintura, em que se per- Eles se tornam ícones que se conjugam numa
cebe o “moreno”, que apresenta matizes entre o dinâmica que não cessa no espaço da pintura.
marrom e o púrpuro como fundo e, sobre eles, Essa dinâmica se integra à dinâmica das pala-
os fragmentos figurativos que nos reportam ao vras do título, que se tornam grafismos que se es-
poema de Roux, além de pedaços de versos de um parramam e se esticam em fios interligados pelo
poema de Guillaume Apollinaire. O quadro atua próprio ritmo que se cria. Os signos verbais que
decisivamente para que nos voltemos aos dois compõem o título do quadro, se compusessem
poemas, que os leiamos para que seja possível um sintagma nominal, deveriam trazer uma con-
uma compreensão mais profícua do que vemos. junção et que separasse os três primeiros signos
Claro que, se isso não ocorrer, o observador não (escargot, femme, fleur) do último (étoile), mas
será tolhido de perceber elementos de sentido no isso não ocorre, pois já no título está indiciado o
quadro. Pensando no sentido da construção da que vai ocorrer na composição do quadro, isto é,
metáfora – e esse quadro consiste numa metáfora “escargot, femme, fleur, étoile”, cuja ligação vai
visual –, temos no espaço planar bidimensional os ser intensificada pelo fio que une um signo ao
elementos constitutivos da clássica figura retórica. outro. Existem, no quadro, os elementos metoní-
Como se trata de pintura, os elementos se articu- micos que sugerem suas personagens, tais como a
lam formando um fusionismo para o olhar. Não se parte do braço e a mão que nos reportam à femme
trata apenas de paralelismos ou de justaposição de e, dessa parte, ao corpo inteiro da mulher. Mas
elementos; trata-se da intersecção entre elemen- o que se torna relevante no quadro é compreen-
tos pertencentes a campos semânticos distintos, e der a profusão dos elementos metamorfoseados
mais: esses elementos são discursivos, o que pro- e metaforizados que acabam provendo sentidos
move ainda mais um enriquecimento e uma grande desprovidos de uma expectativa de sentidos.
complexidade para a compreensão dessa metáfora. O segundo quadro escolhido, Silence, de
A propósito, a metáfora existe para traduzir 1968, faz parte de um paradigma de busca de uma
enigmaticamente o que não pode ser compreendi- poetização por meio, não de uma mistura, mas
do linearmente. A metáfora existe para esconder de uma profusão de elementos dos dois códigos
mais ainda os sentidos, sugerindo-os, e não para de modo que gere uma espécie de “nicho poéti-
desvendá-los; para isso temos a não metáfora, a co”. Trata-se de um tipo de obra não destacada
palavra habitual. Esse caminho inteligente per- pelo público por se desviar do instituído como
seguido por Miró haveria de se desenvolver e “pintura de Joan Miró”. Nesse caso, trata-se de
produzir grandes obras, em que a relação com a um quadro mais voltado para o conceptualismo
poesia ou com o poético se mantém ativa e sur- utilizado em determinadas instâncias de seu tra-
preendente. Em alguns casos o signo verbal é ex- balho. A riqueza do trabalho está em todas as
traído das escolhas do pintor, de seu minimalista suas partes. Penso aqui na voz crítico-poética de
vocabulário, de onde extrai quase todos os títulos Maurice Blanchot ao falar da poesia de Mallar-
de seu trabalho ou signos incluídos no interior mé e mostrar o sentido do abstrato da lingua-
da moldura. É o caso de Escargot, femme, fleur, gem como se fosse “dentro da noite, a noite”. No

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Joan Miró, Escargot, femme, fleur, étoile, 1934

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Arte Antonio Henrique Amaral
Reprodução

Joan Miró, Silence, 1968

quadro é o silêncio que se enuncia numa forma Criado também em 1968, uma das mais inten-
inquestionavelmente criativa, inaugural e genuí- sas décadas de inventividade do pintor, decisiva
na. O silêncio é figurativizado por traços, letras, para que desse passos largos e determinantes para
formas e a intensa cor rubra que se destaca den- o efetivo amadurecimento de certos recursos de
tro de um espaço de silêncio que causa enorme seu trabalho, Poema I sempre esteve na lista de
barulho interior. O quadro pode ser considerado minhas obsessões de gosto sobre as pinturas e
oximoro visual dentro dessa excelente metáfo- xilogravuras do pintor catalão, inserido mas não
ra que o expressa. Por um lado, tênues linhas analisado no meu trabalho crítico anterior (Gon-
semirretas delineiam o espaço como se fosse çalves, 1989). Poema I parece trazer com toda a
possível tocar a esfera do silêncio. Esse universo veemência os efeitos de influências da arte orien-
tênue é rompido por formas rotundas e intensas tal com a qual o artista esteve muito envolvido
que interceptam a leveza delineada no fundo do durante a década de 60, e isso foi decisivo para
quadro. Juntamente com essas formas e outras determinados gestos plásticos que ele produziu
que sustentam a força da matéria, as letras que conduzindo-o com toda a clareza e complexida-
compõem o signo silence tomam posse do espaço de à construção de grandes metáforas, em alguns
num frenético movimento: S, I, L, E, N, C, E são momentos, de puros efeitos visuais, e, em outros,
compostos e se distribuem pelo espaço de modo realizando o mais profundo diálogo entre o uni-
a se tornarem signos do silêncio fazendo parte da verso figural de dimensões icônicas e o universo
composição. Passemos, finalmente, ao terceiro verbal. A natureza desse trabalho se apresenta
quadro dos escolhidos para a compreensão da de modo a coibir o observador de dizer qualquer
metáfora visual em Miró. palavra sobre ele. Opondo-se ao quadro Silêncio,

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Reprodução

Joan Miró, Poema I, 1968

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Arte Antonio Henrique Amaral

Poema I se compõe e se realiza pelo princípio da demiurgo entre a obra e o fruidor. Passo então a
economia. Dir-se-ia que, como num poema lírico descrever ao menos os elementos perfunctórios
bem realizado, o quadro se modula por outros para apoiar o leitor na sua percepção relacional.
dois princípios regentes da alta realização poéti- “Relacional”, esta é uma palavra-chave que con-
ca: trata-se da contenção, retomando o princípio duz os elementos que povoam Poema I. Os signos
da economia, em que os elementos se tornam pe- e os semissímbolos são distribuídos de maneira
ças determinantes do poético e da metaforização, extremamente simétrica criando harmonia entre
que reúne em si seu caráter tensivo na construção todas as partes do espaço planar. Nomeando a
dos sentidos. Ao dizermos que esse quadro coí- obra de “poema”, há um intenso indício de que
be o observador, negando-se a ser descrito, seria a matéria composta e transmudada no quadro
contraditório estarmos aqui e agora o descreven- metaforiza metalinguisticamente a própria
do analiticamente. Entretanto, ao crítico não é natureza essencial do poema por meio desse outro
pertinente a proibição, uma vez que atua como código que é o da pintura.

Bibliografia

BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso. Lisboa, Ed. 70, 1984.


BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo, Brasiliense, 1984.
BLANCHOT, Maurice. L’espace litteraire. Paris, Gallimard, 1978.
GONÇALVES, Aguinaldo José. Transição & Permanência – Miró/João Cabral: da Tela ao Texto.
São Paulo, Iluminuras, 1989.
MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito: Seguido de A Linguagem Indireta e as Vozes
do Silêncio e A Dúvida de Cézanne. São Paulo, Cosac & Naify, 2004.

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