Vous êtes sur la page 1sur 178

MARION ZIMMER BRADLEY

&
MERCEDES LACKEY

REDESCOBERTA
Título Original:
REDISCOVERY

Copyright © 1993, by Marion Zimmer Bradley & Mercedes Lackey

Leonie Hastur, a voluntariosa e bela filha do clã Hastur, a mais poderosa entre todas as
famílias que controlam Darkover, é levada por seu irmão gêmeo, Lorill, para a Torre de
Dalereuth a fim de treinar a utilização de seus poderes psíquicos. Embora seja uma coisa que
Leonie queria há muito tempo – pois seu laran é tão forte que ela consegue utilizá-lo sem
treinamento ou a necessidade de um cristal de matriz – e de ela ambicionar intensamente o
poder que possuirá se conseguir se tornar uma Guardiã, ela se encontra extremamente
perturbada. Pois uma premonição assustadora a persegue durante o dia e atormenta suas
noites, o pressentimento inescapável de que algo está para acontecer – algo monumental e
perigoso que se abaterá sobre o seu planeta e o modificará por completo. E tudo o que Leonie
sabe com certeza é que isto está se aproximando vindo de uma das quatro luas de Darkover...
1

− Ysaye? Você está aí em cima? − Cautelosamente, Elizabeth Mackintosh enfiou a cabeça


no poço onde ficava o núcleo do computador. Era uma mulher pequena e magra, não
exatamente bonita, mas dona de uma vivacidade ao mesmo tempo delicada e intensa que
tornava a “beleza” irrelevante. Tinha abundantes cabelos escuros e olhos azuis meigos e
límpidos, e uma voz que soava, ao ecoar pelo poço, como se ela estivesse cantando. Não se
interessava muito pelo computador, e o poço estreito onde ficavam seus componentes
funcionais deixava-a positivamente claustrofóbica. Dissera numa ocasião a Ysaye que a
escuridão abafada, pontilhada por minúsculas luzes vermelhas, fazia-a sentir-se rodeada por
demônios de olhos vermelhos. Ysaye rira, achando que era brincadeira, mas era verdade.
− Termino num minuto − disse Ysaye Barnett. − Só preciso reencaixar essa última placa. −
Ela recolocou a placa em que estava trabalhando e pressionou o painel delicadamente para
descer pelo tubo. Na gravidade baixa do núcleo, tudo o que precisou foi um pequeno
empurrão. A gravidade e a sua velocidade foram aumentando conforme se aproximava do
fundo, e ela aterrissou de joelhos ao lado de Elizabeth. A gravidade na sala do computador
principal era nível oito e Elizabeth, como sempre, encontrava-se aferrada ao corrimão que
percorria o centro da sala. Variações gravitacionais a deixavam nervosa; ela vivia na esperança
de que um dia a nave encontrasse um planeta onde ela pudesse se estabelecer. Muitas vezes
especulava por que inventara de ir para o espaço para começo de conversa... mas então se
lembrava de como a Terra era superpovoada, ruidosa e dependente da tecnologia e percebia
que jamais poderia voltar. Só os muito ricos podiam pagar por espaço e privacidade na Terra;
Elizabeth, com seu minúsculo salário de antropóloga cultural, nunca poderia sequer bancar a
privacidade de um diminuto cubículo como aquele que tinha na nave.
Ysaye, pelo contrário, parecia ter nascido para a vida a bordo de uma espaçonave. Zonas de
alterações gravitacionais eram brincadeira para ela – meio como uma versão adulta de
amarelinha. Mantinha seus cabelos crespos escuros trançados meticulosamente, a fim de não
embaraçá-los no rosto, no equipamento com que trabalhava ou nos dutos de ventilação. O seu
alojamento estava sempre tão arrumado que mesmo se a gravidade fosse anulada ainda assim
nada sairia do lugar; conhecia as programações, procedimentos e exercícios de emergência da
nave de trás para frente. Os oficiais inferiores afirmavam que literalmente todas as informações
do computador estavam duplicadas no cérebro de Ysaye e que tais informações podiam ser
acessadas de ambas as fontes com a mesma rapidez.
Um homem que trabalhava no terceiro turno chegava a jurar que o computador acordava à
noite e chamava por ela. Ysaye informara-o, com uma expressão marota nos olhos castanhos
brilhantes, que ele precisava tomar cuidado com sua tendência ao antropomorfismo. Não que
Ysaye não falasse com o computador, naturalmente; mas ela procurava nunca fazer isso
quando alguém pudesse ouvir. Afinal, ela tinha uma reputação como cientista para preservar.
– Isto deve resolver nossa pequena irregularidade – comentou Ysaye, satisfeita. Nada lhe
proporcionava mais alegria do que encontrar a solução para um quebra-cabeça, e esse em
especial vinha atormentando os técnicos há dias, uma Perda de Sinal intermitente da sonda-
robô que precedia a nave em cerca de um dia. – Eu falei que o problema estava no nosso
hardware e não no da sonda. E eu vou arrancar o couro de alguém por não efetuar testes
regulares para verificar esse tipo de coisa.
– Mais alguma novidade sobre o nosso novo planeta? – David Lorne, noivo de Elizabeth,
entrou avançando cautelosamente pelo corrimão para encontrar as mulheres. Elizabeth
estendeu a mão automaticamente e ele pegou-a com automatismo equivalente. Como uma reação
fototrópica, pensou Ysaye. David era o sol de Elizabeth, e às vezes parecia que sem ele Elizabeth
poderia murchar e morrer.
– Nenhum nome – ela respondeu, passando automaticamente para a forma de referência
bibliotecária e digitando comandos no console. – Mesmo a estrela só se encontra na categoria
de não abreviadas. Estrela Cottman. Seis planetas, de acordo com nossos registros, mas – ela
fez surgir um diagrama na tela do console – as últimas informações de varredura acrescentam
um sétimo. Três pequenos rochosos e quatro grandes gasosos. O quarto a partir do sol é
habitável, ou ao menos limitadamente habitável. Há escassez de metais pesados, mas não seria
o primeiro planeta colonizado escasso em metais. Mas é pleno de oxigênio.
– É aquele com as quatro luas? Que exótico... acho que daria muitos temas para baladas –
comentou Elizabeth.
– Acontece que tudo lhe dá ideias para baladas – disse Ysaye afetuosamente.
– E por que não? – ela retrucou com a maior seriedade. Ysaye balançou a cabeça. Elizabeth
tinha a mania de relacionar tudo com alguma balada. Estava certo que música folclórica era o
seu hobby e antropologia sua especialidade, e estava certo que uma tremenda quantidade de
histórias primitivas era encontrada em canções e baladas, mas... havia um limite, ao menos no
que dizia respeito a Ysaye. A ocasião em que Elizabeth quisera comparar a sua tendência a
desaparecer por dias quando estava investigando um defeito no computador à abdução do
trovador Thomas pela rainha do reino encantado... demoraram semanas para Ysaye tirar da
cabeça toda a baboseira sobre elfos e fadas morando no núcleo.
– É habitado? – indagou David. – Isto é, algum sinal de seres inteligentes? – Para Elizabeth
e David, era essa a questão prioritária. Não fazia muita diferença para Ysaye; ela pertencia à
tripulação. Mas David e Elizabeth queriam se casar e formar uma família, e não poderiam fazer
isso na espaçonave. Crianças não podiam nem viajar numa nave – não se quiserem desenvolver
qualquer coisa similar a um esqueleto humano. Corpos imaturos eram muito mais frágeis do
que as pessoas imaginavam. Eles ainda dispunham de tempo; os três haviam entrado para o
Serviço logo ao sair da universidade e ainda não haviam completado trinta anos. Teoricamente,
eventualmente seria descoberto um planeta adequado para colonização ou um centro de
comunicação do Império onde as equipes de comunicação e exploração poderiam se instalar e
continuar durante vinte anos ou mais. Mas após três anos sem nada exceto meteoritos,
Elizabeth, pelo menos, estava ficando ansiosa.
– Vocês dois são telepatas – Ysaye brincou – digam vocês. – Foi como eles se conheceram,
como voluntários para uma experiência no laboratório parapsicológico da universidade.
Infelizmente os instrumentos não haviam sido preparados para medir amor à primeira vista, ou
talvez tivessem obtido informações bem interessantes. Ysaye estava trabalhando como técnica
naquele dia, e registrara diligentemente todas as outras coisas que as máquinas mediram. Mas
nunca contou a ninguém os outros efeitos que viu – ou pensou que viu. Afinal, “ver auras” era
uma experiência muito subjetiva.
Elizabeth não era de forma nenhuma reticente com relação ao seu “dom” – muito embora
se mostrasse um pouco defensiva. David simplesmente não ligava; se as pessoas não
acreditavam nele, era problema delas, e não dele. Se devidamente pressionada, Ysaye admitia
possuir uma certa intuição, ou o ocasional pressentimento. Fora isso, ela preferia não falar a
respeito. “Coisas invisíveis para o olhar” e o conhecimento que ela possuía a partir de
nenhuma fonte discernível eram coisas que ela utilizava, mas não comentava.
Ela sempre fora um pouco solitária, e seu “talento” a tornara ainda mais só. Aprendera
desde cedo a transmitir as coisas que “sabia” na forma de perguntas às pessoas; uma criança
não corrigia os adultos na sua família, provavelmente por que se supunha que qualquer criança
sabia menos que qualquer adulto. Mas Ysaye tinha muita dificuldade para esconder o que sabia,
de maneira que optara pela solidão como uma melhor alternativa de “esconderijo”.
Ysaye também procurara ocultar sua inteligência com o maior cuidado, por trás de uma
máscara de inocência infantil, e passara todos os instantes possíveis com o computador. Isso
não foi tão difícil quanto seria para outra criança; seus pais tinham-na matriculado em
instrução computadorizada – chamavam de “ensino doméstico” – ao invés de mandá-la para a
escola pública. Eles achavam os valores ensinados nas escolas terráqueas irreligiosos – e
miseravelmente deficientes em éticas, morais – qualquer diferenciação entre certo e errado, um
tema que sua mãe considerava particularmente importante. Ysaye às vezes ainda podia escutar
sua mãe no fundo da sua mente sempre que alguém se entregava a éticas duvidosas e lógicas
confusas.
– Eu não sou uma telepata muito forte – disse Elizabeth com a maior seriedade, embora
Ysaye estivesse brincando. – E, além disso, eu quero que seja habitado, de forma que não seria
um julgamento imparcial. Você não tem nenhum interesse emocional envolvido; o que acha,
Ysaye? Há pessoas lá?
Nem seus pais nem os computadores com que ela trabalhava jamais admitiram “Eu não sei”
como uma resposta aceitável. Se ainda não conhece a solução, trate de obter mais informação.
Quase reflexivamente, Ysaye projetou a mente na direção do planeta e obteve a resposta, sem
nenhuma volição consciente ou palavras.
O planeta era habitado; soube disso de repente. Mas não podia explicar como sabia, ou
provar, por isso contemporizou:
– Descobriremos muito em breve. Por vocês, eu espero que seja... embora eu vá sentir
saudades se vocês deixarem a nave. Precisamos de algo além de uma bola de pedra e poeira; as
pessoas estão começando a ficar um pouco excitadas.
Nos últimos meses pequenas excentricidades haviam ameaçado se transformar em
verdadeiras neuroses. Ysaye permanecera de certa forma isolada disso, vivendo o máximo
possível com seus amados computadores, mas evidentemente percebia a situação. Todo
mundo procurava se manter apartado dos outros membros das duas tripulações. Até velhos
amigos – ou amantes – estavam começando a dar nos nervos uns dos outros.
– De qualquer forma, provavelmente significa alguns meses em terra – disse David,
animado – mesmo se não for habitado. Trabalho à beça para nós dois, Elizabeth, nas nossas
secundárias, se não nas especialidades. – David Lorne era lingüista e xenocartógrafo, Elizabeth
era antropóloga e meteorologista. Todos na nave tinham dois ou três trabalhos – menos Ysaye
e o computador, que faziam um pouco de quase tudo.
– Estou ansiosa por isso. Estou ansiosa por espaço. Um lugar onde eu não esteja sempre
trombando com alguém. Toda essa viajem não está levando a lugar algum.
– Isso é engraçado – disse David, irreverente – principalmente se você considerar todos os
anos-luz que percorremos.
– Eu não quis dizer literalmente – ela retrucou, amarrando a cara para ele – e você sabe
disso tão bem quanto eu. Metaforicamente falando, nos encontramos estagnados, por mais anos-
luz que tenhamos percorrido. Isto é, no que nos diz respeito, daria na mesma se estivéssemos
confinados num edifício em Dallas ou San Francisco pelos últimos três anos. Estou farta de
estudar manuais e simulações de computador. Quero voltar a estudar alguma coisa real.
– Eu poderia suportar estar empregado novamente – ele admitiu, com um sorriso torto. –
Toda essa viajem espacial me faz sentir meio desnecessário. Será bom voltar a trabalhar.
David Lorne não tinha nada de incomum, exceto seus olhos espantosamente límpidos, e o
modo como olhava fixamente para um interlocutor. Ele era um homem bastante sério, já
perdendo cabelo, e com uma aparência de certa forma mais velha do que seus vinte e sete
anos, mas dono de um senso de humor sutil e único que ele partilhava com Elizabeth mais que
com qualquer outra pessoa.
– O que você realmente quer encontrar lá, David? – ela perguntou, sentindo-se muito
sóbria de repente.
– Um planeta onde eu possa fazer o trabalho da minha vida; coisas interessantes para comer
– respondeu, com a mesma seriedade. – Um lugar que possamos tornar nosso; não é o que nós
dois queremos? Para que possamos assentar, ter filhos que crescerão para ser nativos deste
mundo... seja lá o que ele acabe se revelando.
– Eu de fato ficarei satisfeita em aterrissar numa superfície planetária, qualquer superfície –
ela concordou. – Estou cheia de me sentir supérflua. Não há muita coisa para nós dois
fazermos no espaço, exceto apresentar concertos para a tripulação. – Elizabeth não só
colecionava e estudava baladas como também as apresentava. Ela tinha um abrangente
repertório, e tocava e cantava muito bem, de modo que se descobria na maior demanda para
recitais improvisados no salão de recreação, além dos concertos regularmente programados.
– Bom, não há dúvida de que há muitas pessoas para apreciá-los – Ysaye riu. – E temos a
nossa reputação para preservar; dizem que somos a única nave da frota em que o capitão
escolheu seu engenheiro-chefe por que ele sabia tocar oboé.
Elizabeth deu uma risada. As excentricidades do capitão Enoch Gibbons eram conhecidas
por toda a Frota Imperial. Todos na sua tripulação, pessoal da nave ou não, eram, é claro,
escolhidos pelas habilidades, mas parecia que o capitão Gibbons sempre encontrava tripulantes
que, por acaso, eram apaixonados por música. Ao ser contestado a respeito do caso do
engenheiro, supostamente argumentara que as universidades militares estavam abarrotadas de
bons engenheiros espaciais; mas bons tocadores de oboé, pelo contrário, eram bastante raros –
o oboé era conhecido popularmente como “o instrumento de sopro que ninguém sopra
direito”. O capitão Gibbons era um admirador de ópera, e se alguém da tripulação não tinha
um bom conhecimento de italiano, alemão e francês, não era por falta de exposição à pelo
menos uma parte do vocabulário desses idiomas. Não que fosse uma coisa ruim, refletiu Ysaye,
quando decorriam meses sem haver aterrissagem. Certamente era melhor do que ter uma nave
repleta de atletas amadores enlouquecendo na tentativa de preservar a boa forma – ou uma
repleta de jogadores inveterados, que pudessem transformar competições em disputas. Na
tripulação de Gibbons, pelo menos, o pessoal podia encontrar uma harmonia na música que
poderia faltar quando a tensão aumentasse com a duração da jornada.
– Não há nada errado em fazer concertos – disse David. – Você é uma excelente cantora, e
está fazendo sua parte para que a gente não roa as unhas de tédio.
– Boa o suficiente – Elizabeth concordou, com timidez. – Mas não uma cantora de ópera.
– Como eu não gosto tanto assim de ópera, não me importo. E duvido que haja muita
gente na tripulação que goste, exceto pelo capitão. Embora admita que ninguém que realmente
deteste ópera durará muito tempo nesta nave.
– Como seu amigo, tenente Evans? – Perguntou Elizabeth, franzindo o nariz. Ela não
gostava de Evans; o homem a irritava, mas David gostava bastante dele. Havia alguma coisa
vagamente inquietante a respeito do tenente, embora Ysaye tivesse dito, em certa ocasião:
– Oh, não ligue para o Evans; ele tem uma grande carreira como vendedor de carros-aéreos
usados em seu futuro. – Mas Elizabeth não conseguia descartar o homem com o mesmo
pouco-caso.
– Disso, eu não sei – protestou David. – Sim, ele faz comentários grosseiros sobre ópera,
não há como discutir, mas esse é só o estilo dele. Ele fala assim sobre quase tudo. – Ele
balançou a cabeça. – De qualquer forma, por que estamos falando de música, com um planeta
novo para explorar em poucos dias?
– Por que seu novo planeta é uma possibilidade, e se encontra a dias de distância, enquanto
o concerto da tripulação é uma certeza, eu acho – Elizabeth disse, suspirando. – É difícil
pensar em qualquer coisa além da rotina quando ainda demorará dias para que possamos
sequer chegar perto o bastante para obter fotos decentes do lugar. Eu prometi ao meu
departamento que lhes daria as novas sobre o novo planeta logo que houvesse alguma coisa
para contar; mas se não há nada, é melhor ir. Estou atrasada.
– Está certo, amor – ele concordou, beijando-a rapidamente. – Até mais.
David e Elizabeth partiram para seus respectivos postos, e Ysaye tornou a se voltar para o
console. Mas, ao invés de digitar qualquer coisa que só poderia ser respondida por “dados
insuficientes”, sentou em silêncio, ponderando o quebra-cabeça do planeta habitado.
Quem, ou o quê, poderiam ser esses habitantes? Talvez fosse uma cultura indígena pré-
espacial, e nesse caso provavelmente não haveria sinais de civilização visíveis de órbita, ao
menos não sem que o céu se encontrasse muito limpo, para que os telescópios óticos
pudessem atravessar.
Podia até ser uma colônia perdida, fundada por uma das Naves Perdidas, anteriores ao
Império. Isso seria fascinante, embora Ysaye não soubesse de nenhuma tão distante.
Mesmo assim, ela disse a si mesma. Só por que ninguém encontrou nenhuma... bom, talvez
fosse por que ninguém procurou no lugar certo.
Uma colônia perdida havia sido encontrada ano passado, e algumas Naves Perdidas mais
antigas pareciam ter chegado espantosamente longe, as espaçonaves que foram lançadas alguns
milhares de anos atrás, antes dos terráqueos aprenderem a construir naves com rastreadores.
As naves perdidas depois disso eram recolhidas dentro de poucos anos. De modo que se fosse
uma colônia proveniente de uma Nave Perdida, certamente seria muito antiga, por conta
própria desde muito antes do Império.
Por outro lado, mesmo se seu pressentimento estivesse errado, e o lugar fosse desabitado –
não que realmente achasse que era, mas até obter uma evidência decisiva, era uma boa ideia
considerar todas as possibilidades – era uma boa localização para um espaçoporto de ponto de
transferência, próximo do lugar em que os braços espirais da galáxia se encontravam, mais ou
menos um bilhão de quilômetros. Assim, caso o planeta fosse habitável, se David e Elizabeth
estivessem dispostos a exercer suas especialidades secundárias ao invés das primária, haveria
trabalho o suficiente para a vida inteira, desde que os mandachuvas decretassem que tal
espaçoporto fosse construído ali.
O carrilhão para a troca de turno soou no exato momento em que o técnico-chefe do turno
seguinte avançava com facilidade através da rampa gravitacional para o terminal do console.
Ysaye desconectou, ele conectou, e ela saiu da sala do computador.
Ao percorrer o corredor descobriu-se esticando músculos doloridos, e percebeu que seus
ombros, braços e mãos estavam com câimbras e rígidos. Obvia-mente passara mais tempo
enredada com pequenos e meticulosos ajustes no núcleo do que percebera. Decidiu passear um
pouco antes de ir para o quarto.
Ao passar pela porta escrita “Ponte de Observação” ela decidiu entrar.
– Veio dar uma olhada no nosso novo sistema? – o rapaz indagou quando ela entrou. Era
um membro da tripulação científica, Ysaye sabia, de maneira que ele não permaneceria no
planeta, a menos que decidissem construir um espaçoporto. Sua tarefa atual era analisar o
planeta o máximo possível antes da aterrissagem – e naquele momento todas as informações
vinham da sonda. – Obrigado por encontrar a irregularidade, Ysaye, estava deixando todos nós
loucos – ele continuou. – Isto é, mais loucos.
Ela balançou a cabeça.
– Não foi nada especial. Se eu não tivesse encontrado, outra pessoa teria.
O rapaz lhe endereçou um olhar cético, mas não fez nenhum comentário.
– Suponho que saiba que pelo menos um é habitável – ele continuou –, o quarto. O quinto
talvez, mas dificilmente; ele se encontra quase completamente congelado; calotas de gelo o ano
inteiro, e a duração do ano é de cinco anos padrões. Mas o quarto só está à margem de
habitabilidade; o clima é bastante hostil, mas formas de vida baseadas em carbono podem viver
lá. Nenhum grande mar, um continente. Eu não gostaria de viver lá, e duvido que você goste; é
frio feito o inferno de Dante. Mas definitivamente está dentro dos limites.
– Nada mal, Haldane – disse Ysaye, depois riu. – Ensaiando o relatório para o capitão?
– Adivinhou – John Haldane respondeu, animado. – Ah, eu mencionei que o planeta tem
quatro luas, cada uma de uma cor diferente?
Ela balançou a cabeça para o rapaz, e estalou a língua em reprovação.
– Não, você esqueceu isso; precisa organizar melhor o seu material. Quatro luas não é um
recorde para um planeta desse tamanho?
Ele fez que sim, parte da atenção no console.
– Talvez você tenha razão; se um planeta possui mais do que isso, normalmente é um
grande gasoso, e as luas têm a aparência de planetas. Como Júpiter no velho sistema solar. Eu
esqueci quantas luas finalmente decidiram que tinha; parecia capturar qualquer coisa que se
aproximava. Mas havia pelo menos onze dos maiores.
Ysaye espreitou a tela. O objeto de toda a atenção parecia singularmente desinteressante a
essa distância.
– Quatro luas. Como é possível?
Haldane encolheu os ombros.
– Quem sabe? Não é a minha especialidade. Creio que o Mundo de Bettmar tem cinco, mas
há um limite: a massa das luas combinadas precisa ser menor que a do planeta para ser
habitável. Normalmente menos que um quinto do seu peso combinado. Também há um limite
para o tamanho; se for muito pequeno, elas escapam da primária e se tornam asteroides. – Ele
gesticulou para o visor. – A branca é exatamente do tamanho mínimo.
– Elizabeth estava falando alguma coisa sobre a quantidade de temas para baladas que
haveria em um planeta com quatro luas – Ysaye comentou.
Haldane ajustou o foco e a lua branca ficou bem clara na tela.
– Em suposição, eu diria que elas devem fazer coisas estranhas com a mitologia nativa, isto
é, se é que existem nativos. Com quatro luas, eu diria que o conceito de monoteísmo não teria
muita possibilidade de ocorrer! A vista deve ser formidável da superfície do planeta... todas
com cores diferentes. Nunca vi nada parecido antes. Definitivamente anômalo.
Ysaye estreitou os olhos, tentando discernir mais detalhes do planeta, mas se tratava de um
enigma encoberto por nuvens.
– Elas realmente têm cores diferentes, ou é só um efeito do sol que lhes dá essa aparência?
Haldane balançou a cabeça.
– Seu palpite é tão bom quanto o meu; eu nunca vi nada parecido... mas eu já disse isso.
Mas sei uma coisa – ele acrescentou. – Aposto que, não importa o quanto os nativos sejam
avançados, elas ainda representam um papel substancial em qualquer religião que eles possam
ter. É o que sempre acontece com as luas.
– Você sabe se vamos aterrissar em alguma delas?
– Provavelmente vamos querer uma estação meteorológica em uma delas. Seria o primeiro
passo, em qualquer caso. E, se for uma cultura aborígine pré-espacial, isso é praticamente tudo
que podemos fazer; observar o clima. Não teríamos permissão para afetar nada do que eles
fazem; sociedades primitivas têm de evoluir à sua própria maneira.
– Se houver uma cultura lá, só aterrissar no planeta os afetará – comentou Ysaye.
– Tem razão – disse Haldane jovialmente –, mas o que nós fizermos antes de providenciar
uma avaliação oficial não conta. Deus do céu! Dá uma olhada nisso! – Ele se interrompeu de
repente, mexendo nos instrumentos. – Não, não dá para aproximar o foco, droga... as nuvens
lá embaixo são formidáveis.
– O que é? – Ysaye debruçou-se sobre o ombro de Haldane para olhar melhor. – Algum
sinal de vida? Um sinal luminoso escrito “Olá, estamos aqui, venham nos buscar”? – Como ele
não respondesse, ela acrescentou, irreverente: – Uma gigantesca placa publicitária alienígena?
– Nada tão preciso. Tem o efeito da Grande Muralha da China... mas naquele caso era uma
estrutura criada deliberadamente. Creio que este é uma formação natural.
– Como o quê? Que espécie de formação seria grande o suficiente para ser avistada dessa
distância? A sonda nem está em órbita ainda!
– Uma geleira, maior do que qualquer geleira das idades glaciais da Terra, ex-tendendo-se
por metade do planeta. Uma muralha ao redor do mundo.
Uma muralha ao redor do mundo? Isso sem dúvida estimulava o seu interes-se.
– Quem poderia tê-la construído?
– Ninguém; é um fenômeno natural – ele disse positivamente.
– Uma formação natural? – ela contestou em tom cético.
– Por que não? A Grande Muralha da Terra pode ser avistada, sob a devida amplificação, da
lua. Houve até alguma discussão a respeito da possibilidade de a Grande Muralha da China ter
sido feita assim de propósito, e que eventualmente a sociedade que a construiu definhou à pré-
tecnologia... ou seria pós-tecnologia?
– De qualquer maneira – Ysaye disse repressivamente – eu não o aconselharia a discorrer
essa teoria em particular para o capitão. Você não ouviu seu discurso padrão sobre a
pseudociência das psicocerâmicas?
– Várias vezes – admitiu Haldane, se encolhendo. – Pois muito bem; embora eu ache que se
trate de uma geleira natural, dado o clima terrível, não posso afirmar que é uma geleira natural,
feita por seres inteligentes residentes, ou abandonada por uma prévia ou visitante sociedade de
seres inteligentes. Por tudo o que sei, pode ser o equivalente de um projeto científico escolar
para o proverbial homenzinho verde. Ou mesmo um projeto artístico.
– Certo, chega de teorias – Ysaye riu. – Algum sinal de excursões em alguma das luas?
Ele balançou a cabeça.
– Nada evidente. Nada que a sonda possa detectar, de qualquer maneira. Nós deixamos
pegadas e lixo sortido na nossa, mas é cedo demais para falar alguma coisa sobre essas. Se nós
procurarmos com empenho, talvez encontremos uma lata de cerveja ou coisa do tipo, e isso é
uma espécie de prova. Ah, olhe! As nuvens estão limpando!
Ele mexeu em seus instrumentos até a geleira aparecer bem centralizada no mostrador.
– Pelo menos servirá como marco de aterrissagem, embora o terreno provavelmente seja
muito irregular e montanhoso. Há um conteúdo de oxigênio maior que o normal, de modo
que o super-Himalaia ainda seria escalável, acredite ou não. Caso você goste dessas coisas.
Pessoalmente, penso que se Deus quisesse que escalássemos montanhas, teria nos dados
cascos e escaradores ao invés de mãos e pés.
– Escalável pelo quê? – Ysaye perguntou, em dúvida. – Você acha que o planeta é habitado?
Haldane mexeu os ombros.
– Não dá para saber dessa distância. A menos que seja altamente industrializado, não daria
para ver nada daqui de qualquer forma, e não parece ser industrializado. Se descobrirmos que é
habitado, talvez só tenhamos de construir uma estação meteorológica em uma das luas e ir
para casa sem perturbá-los.
– E se for uma Colônia Perdida? – Por que eu perguntei isso? Já tinha descartado a ideia, mas
ela tornou a aflorar, fazendo-a sentir-se vagamente apreensiva.
– Eu não sei – ele disse, inseguro. – Não há normas oficiais para lidar com Colônias
Perdidas. Toda vez que nos deparamos com uma, a situação é diferente. Eles são nós... e ao
mesmo tempo não são, se entende o que quero dizer.
– Para falar a verdade, não entendo. Mas quais são as possibilidades, em todo caso?
Haldane balançou a cabeça.
– É muito improvável, mas ainda existem naves desaparecidas. É engraçado pensar que se
for, nós seremos apenas lendas para eles. Ou talvez uma religião... caramba, eu me pergunto
como isso se misturaria às quatro luas! Nós seriamos deuses que retornam, ou alguma coisa
terrível saída da Noite Absoluta?
– Provavelmente deuses. Se, contra todas as probabilidades, for uma Colônia Perdida,
Elizabeth ficaria satisfeita – comentou Ysaye. – Lendas são o departamento dela, e religião
também, em certo aspecto.
John Haldane deu uma risada.
– Dá até para imaginar: você e Elizabeth podem ser as deusas, uma negra e a outra branca.
– Ele lhe fez uma reverência, cruzando as mãos sobre o peito. – Ó, grande Deusa Celeste da
Noite, ouça as preces de seu humilde servo! Você nunca mais vai querer voltar para a nave,
com todas as centenas de homens literalmente idolatrando-a aos seus pés!
Ysaye também riu, balançando a cabeça.
– Você é incorrigível, Haldane. Eu posso garantir que a única divindade que me interessa é
aquela feita de açúcar e coberta com muito chocolate.
2

O porta-estandarte foi o primeiro a avistar a Torre onde ela se erguia, isolada e solitária,
feita de pedras marrons. Ela se avolumava acima da planície e da pequena aldeia que se
aninhava no sopé, como se buscasse a proteção da Torre. Estava quase anoitecendo e o
enorme sol vermelho pairava baixo no horizonte, mergulhando visivelmente. Três das quatro
luas já se encontravam suspensas no céu, quase invisíveis atrás das nuvens de uma chuva de
final de primavera que acabara de começar a cobrir os cavaleiros, pálidos borrões enevoados
levemente brilhantes em meio à escuridão. As nuvens não mostravam sinais de parar de
chover, mas ao menos naquela estação a chuva não se transformava em neve.
A escolta contava com oito guardas, incluindo o porta-estandarte; todos montavam animais
da melhor qualidade, precedidos pelo estandarte de Hastur, o azul e o prateado da nobreza
com o emblema da árvore prateada e o seu lema: Permanedal − “Eu permanecerei”. Atrás deles
seguia Lorill Hastur, sua irmã, a dama Leonie Hastur, e a dama de companhia e aia dela,
Melissa Di Asturien − embora já tivesse dezesseis anos, Melissa não tinha muita serventia
como aia, e uma vez que deixava Leonie enormemente entediada, também não tinha muita
serventia como dama de companhia. As duas estavam enfaixadas em compridos véus de
montaria. Por melhores que fossem as montarias, eles avançavam vagarosa e fatigadamente,
pois a caravana se encontrava na estrada desde o amanhecer.
Lorill gesticulou para pararem. Era difícil fazer isso com a Torre já à vista, mas todos
sabiam que ela ainda se achava a horas de distância. As distâncias nas planícies frequentemente
se mostravam enganosas.
Como de hábito, Lorill Hastur deixou a decisão de acampar ou prosseguir para a irmã.
− Podíamos acampar aqui − ele disse gesticulando para uma clareira e ignorando o
nevoeiro que formava gotas nos seus cílios. − Teríamos de parar de qualquer maneira, se
começar a chover forte; eu não vejo sentido em avançar num aguaceiro e arriscar aleijar nossos
animais.
− Eu poderia cavalgar a noite inteira − protestou Leonie − e detesto parar com a Torre ao
alcance do olhar. Mas...
Ela fez uma pausa para considerar a sugestão. Se prosseguissem na chuva, chegariam à
Torre ensopados, enregelados e esgotados. Era uma noite de quatro luas... e a sua última noite
de liberdade. Talvez não fosse uma ideia tão ruim passá-la ao ar livre...
− E aonde nós dormiríamos? − indagou Melissa. O rosto franzido demonstrava uma
rejeição imediata à sugestão de Leonie. − Em tendas?
− Derik disse que há uma boa estalagem na próxima aldeia − disse Lorill. − Mas acho que
ele estava se referindo à cerveja, e não às acomodações.
Leonie soltou uma risada. Derik se tornara motivo de piadas intermináveis entre todos eles
durante a viajem.
− Ele bebe feito um monge no solstício de inverno, mas se mostra bastante sóbrio na
estrada. Acho que não temos o direito de censurá-lo por causa da cerveja...
− Eu não estou com a menor vontade de cavalgar noite adentro − interrompeu Melissa
num tom azedo, uma combinação de descontentamento e a sua aparência afetada habitual.
Leonie retesou-se, irritada, e reprimiu uma resposta áspera, mas Lorill limitou-se a comentar
jovialmente:
− Eu não creio que você esteja interessada na cerveja.
− Pode estar certo que não − disse Melissa, amuada. − Só numa lareira. Não há sentido em
padecer numa tenda quando podemos desfrutar dessa lareira cavalgando mais um pouco.
Padecer numa tenda? Com o tipo de tendas que o cortejo Hastur levava, Leonie achava que
passar a noite em uma dificilmente poderia ser chamado de sofrimento, embora talvez fosse
um bocadinho mais fria do que Melissa preferia – mas Melissa era dada a reclamações e
delicadas alusões a sua saúde frágil. E, uma vez que ela estivesse aquecida, sem dúvida haveria
queixas a respeito da comida, do quarto fumarento e gritos aterrorizados ao menor sinal de
algum bicho qualquer. Leonie preferia dormir numa tenda, mesmo podendo ser um pouco fria
e úmida, a passar uma noite numa estalagem infestada de insetos. Ao menos a tenda tinha uma
qualidade conhecida; a qualidade da estalagem era questão de especulação.
E havia ainda outra consideração...
A montaria de Leonie se mexeu, irrequieta, enquanto ela disse, com um suspiro ansioso
calculado para persuadir o irmão à indulgência:
– Será uma noite de quatro luas...
– Mas você não poderá vê-las – Lorill comentou com lógica inescapável. – Elas estão
encobertas por nuvens; daria no mesmo se você estivesse desfrutando da lareira. Pelo menos a
estalagem estará aquecida e seca.
– A estalagem pode perfeitamente ser tão indigna de confiança quanto as promessas de um
homem das Cidades Secas e estar infestada de ratos e pulgas. Mas eu terei o resto da vida para
desfrutar de lareiras – protestou Leonie. – Terei o resto da vida para ver apenas o mundo
dentro de quatro paredes! E uma noite de quatro luas não ocorre com tanta frequência... não
quero perdê-la!
Ela olhou desdenhosamente para Melissa, desejando que a jovem estivesse em qualquer
lugar menos viajando como sua acompanhante. Aliás, ela também ficaria contente de dispensar
os guardas e o porta-estandarte. Sinceramente, preferiria viajar sozinha com Lorill. Os gêmeos
Hasturs sempre foram próximos, e ela não via perigo algum numa viajem tão curta juntos; ele
era o seu irmão gêmeo, afinal de contas, era muito improvável que lhe oferecesse qualquer
insulto!
Mas sua alta posição e os costumes atuais não aprovavam que jovens damas viajassem
sozinhas mesmo na companhia de seus irmãos sem uma escolta apropriada e acompanhantes,
guardas e o devido cortejo. De acordo com o costume darkovano, Lorill havia sido
formalmente declarado um homem no seu décimo quinto aniversário; e Leonie agora era
considerada uma moça, não uma criança. Ela ainda era bastante atrevida e teimosa, mas tinha
uma reputação imaculada...
Reputação que poderia ser manchada por uma viagem sem acompanhantes.
Costume imbecil, ela pensou com rebeldia. Se acreditavam que Lorill não tinha capacidade
para prover proteção suficiente, ela não estava acima de proteger a si mesma! Lorill tinha
estatura mediana para um homem, mas Leonie, quase da mesma altura, era anormalmente alta
para uma mulher, o que estimularia certa precaução em muitos homens.
Leonie também era notável noutros aspectos. Como todas as mulheres Hasturs, e a maioria
dos homens, tinha um rosto belo e cabelos brilhantes, da cor do cobre, que neste momento
estavam presos numa coroa de tranças sobre a sua testa. Ainda mais do que Lorill, possuía a
marca forte da linhagem de Hastur. Comyn; isso estava estampado em cada palmo dela. Comyn
e Hastur, a combinação que deveria fazer o proscrito mais arrojado pensar duas vezes antes de
se meter com ela. Se Leonie sofresse qualquer mal, a busca pelos atacantes seria implacável e a
vingança terrível.
Leonie também era muito bonita, um fato de que estava perfeitamente ciente, e pelos
últimos três anos havia sido a favorita da corte. Entre cortesãos e pretendentes, ela era a mais
agradada e mimada. Seu pai era um dos maiores conselheiros do Rei Sefan, e todos sabiam que
em certa ocasião até o viúvo Rei Stefan Elhalyn procurara a mão dela em casamento. Isso a
tornara ainda mais popular, se tal coisa era possível, visto que muitas pessoas fora da sua faixa
etária procuraram sua atenção, tendo em vista o dia em que Leonie pudesse se tornar Rainha.
Mas Leonie não demonstrara interesse em casar, por que tinha um objetivo totalmente
diferente em mente. Nem mesmo a perspectiva de uma coroa podia dis-traí-la, pois o poder de
uma rainha era limitado ao que o seu lorde e rei concedia a ela. Leonie não desejava tais
limitações. Lorill não estava sujeito a isso; por que ela deveria? Não eram gêmeos, nascidos
iguais, exceto pelo sexo?
Desde pequena Leonie desejara buscar um lugar numa das Torres, onde se dedicaria pelo
resto da vida à vocação de uma leronis. Isso lhe concederia uma posição substancialmente
superior, política e socialmente, ao de qualquer aristocrata, e um poder equivalente ao de Lorill.
E se ela alcançasse seu objetivo secreto e se tornasse a Guardiã da Torre de Arilinn,
ganharia um poder ainda maior que o do irmão, ao menos enquanto o pai deles estivesse vivo.
Pois as Guardiãs de Arilinn tinham um lugar no Conselho por direito próprio, e não recebiam
ordens de nenhum homem exceto o próprio Rei.
Não houve dificuldade para encontrar uma Torre que a aceitasse. Todos sabiam que a
senhora Leonie era abundantemente favorecida com o laran de Hastur. Mas agora que o
momento se aproximava, Leonie se descobria aguda e dolorosamente consciente de que a
vocação que escolhera a separaria de sua família e entes queridos, pois ela seria isolada dos
parentes durante o período de treinamento na Torre. Neste momento, o que quer que ela
viesse a se tornar, era apenas uma menina confrontando a separação do irmão e de toda a sua
família. Era uma perspectiva assustadora, mesmo para Leonie.
– Terei o resto da vida para sentar junto ao fogo – ela repetiu, fitando vagamente o céu
escurecendo. – Em uma noite de quatro luas...
– Que infelizmente, ou talvez felizmente, você não pode ver – caçoou Lorill. – Sabe o que
comentam sobre as coisas que acontecem sob as quatro luas...
Leonie ignorou o comentário.
– Eu não quero ficar trancada num edifício esta noite! – disse teimosamente. – Você acha
que um chieri pode vir me violar na minha tenda sem você e os guardas perceberem? Ou se
homens das Cidades Secas viessem me sequestrar?
– Oh! Mas que escândalo, Leonie! Que vergonha! – Dama Melissa protestou tapando a
boca com a mão, como se tivesse ficado terrivelmente chocada com uma ideia tão tola.
Talvez ela simplesmente estivesse chocada com a ideia de que Leonie tivesse coragem para
fazer piada com coisas como rapto e estupro.
Leonie estava farta dos melindres de Melissa.
– Oh, feche a boca, Melissa. Aos dezesseis anos, você já parece uma criada velha! E uma
criada velha chata ainda por cima!
Lorill apenas sorriu.
– Suponho que isso significa que não tenciona ir para a estalagem? Bom, Derik pode passar
sem sua cerveja, para variar! – Ele balançou a cabeça. – Ao menos podemos armar as tendas
antes que comece a chover para valer. Mas você é a menina mais esquisita que eu já conheci –
ele caçoou – querendo acampar ao invés de dormir numa boa estalagem!
– Eu quero estar sob as estrelas – Leonie repetiu. – Esta é a minha última noite fora da
Torre, e eu quero passá-la as estrelas.
– Nesta chuva? – Lorill perguntou, rindo. – Estrelas? Por tudo o que verá delas, daria no
mesmo se você estivesse protegida por um teto de madeira.
– Não vai chover a noite inteira – ela afirmou convictamente.
– Não creio que vá parar antes de amanhecer. – Lorill deu de ombros, dando-se por
vencido. – Mas faremos como quer, Leonie. Afinal, é a sua ultima noite fora da Torre.
Leonie permaneceu sentada na sela, as rédeas frouxas, o animal quieto, esperando Lorill
organizar o acampamento. Era uma ótima amazona – e, de qualquer maneira, seu chervine
estava muito cansado para disparar.
Lorill mandou que armassem as tendas e Leonie ignorou os resmungos murmurados e os
ocasionais olhares ressentidos que recebeu. Os guardas deviam estar felizes por parar, e uma
noite em um estábulo – que constituía todo o abrigo que um empregado provavelmente
ganharia numa minúscula estalagem – não era melhor do que uma tenda. Podia ser mais fria,
na realidade: em um estábulo eles não poderiam acender uma fogueira. Uma vez que
estivessem em suas tendas, podiam muito bem se lembrar disso.
Enquanto os guardas desenrolavam as estruturas de lona, Lorill desmontou e ajudou
Leonie a descer da sua montaria, acompanhando-a a um abrigo precário debaixo de uma
árvore. Melissa foi atrás, fungando audivelmente, simulando um resfriado que Leonie duvidava
que ela sofresse de verdade. Melissa só queria que sentissem pena dela – como sempre. Leonie
não conseguia imaginar por que o seu pai a escolhera para sua dama de companhia. Talvez
fosse por que Melissa era tão chata que não existia a menor possibilidade de Leonie se sentir
tentada a fazer algo impróprio, como poderia acontecer com uma amiga mais espirituosa.
A chuva começou a cair com mais força, enquanto os guardas brigavam com as volumosas
lonas, e o manto de montaria de Leonie oferecia menos proteção a cada instante. Sentiu uma
leve umidade nos ombros, e mais do que isso na bainha – e o resfriado de Melissa passara de
teatral para genuíno. Por um instante ela se arrependeu da sua decisão obstinada... mas só por
um instante. Era sua última noite de relativa liberdade; não desfrutaria disso outra vez até
conquistar o manto escarlate de uma Guardiã. Estava determinada a aproveitá-la.
Quando as tendas se encontravam armadas, o jovem lorde Hastur ordenou que acendessem
uma fogueira e que levassem braseiros para dentro das tendas a fim de aquecê-los. Guiou
Leonie para sua tenda através da escuridão que se adensava, segurando a sua mão para que ela
não caísse quando a bainha encharcada da sua capa enrolou-se nos seus tornozelos e ameaçou
fazê-la tropeçar.
– Muito bem, aqui estamos. Eu ainda acho que você estaria mais confortável na estalagem
da aldeia, e sei que Melissa estaria – ele suspirou, paciente. – mas aqui está sua cama sob as
estrelas... não que você vá ver muitas estrelas ou luas esta noite. Não dá para imaginar de onde
você tira essas ideias, Leonie. Elas afloram de alguma lógica que só você compreende ou
simplesmente do desejo de ver todo mundo curvado às suas vontades?
Leonie despojou-se da capa molhada, atirou-se em um monte de almofadas e fitou o irmão.
A luz de velas da lanterna pendurada na estaca central da tenda revelava o seu rosto bonito
claramente, dando a esquisita sensação de que estava fitando a si mesma.
– Eu penso com frequência nas luas – disse sem preâmbulo. – O que você acha que elas
são?
Se a abrupta mudança de assunto o sobressaltou, Lorill não deu sinal.
– Meu tutor disse que, apesar das velhas lendas sobre chieri casando dentro dos Domínios,
as luas não passam de imensas rochas circulando o nosso mundo. Mortas, desertas,
desprovidas de ar, frias, e desprovidas de vida.
Leonie pensou nisso por um momento; não estava compatível com a recente apreensão que
ela andava experimentando.
– E você acredita nisso, Lorill?
– Eu não sei. – Lorill deu de ombros, como se o assunto não tivesse a menor importância.
Talvez, para ele, não tivesse mesmo. – Não sou um romântico como você, chiya. Não vejo
motivo para duvidar; sinceramente não me interesso pelo que são. Não podem nos afetar,
afinal de contas, nem nós podemos afetá-las.
– Pois eu me interesso. – ela disse, franzindo o rosto. Esta talvez fosse a única
oportunidade para ela poder conversar com Lorill sobre suas premonições. Podia não ser a
melhor ocasião, mas não teria nenhuma oportunidade depois que estives-se em Dalereuth. –
Sinto que alguma coisa está se aproximando de nós, vinda das luas... que nossas vidas nunca
mais serão as mesmas. – Ela se deitou e fitou o teto da tenda, como se pudesse enxergar
através dele e das nuvens e ver as luas. – Fale a verdade, Lorill, você não sente que alguma
coisa muito importante está para acontecer?
– Não, não sinto nada assim – ele respondeu bocejando. – Só sinto sono. Você é mulher,
Leonie; sente a influência das luas, talvez não seja mais do que isso. Muito embora esteja
chovendo e você não possa vê-la, Liriel ainda influencia você. Todo mundo sabe como as
mulheres são sensíveis às luas... e como esta influencia pode ser dramática.
Leonie conhecia a verdade nas palavras de Lorill.
– Com a presente conjunção, todas elas me influenciam. Eu queria que o céu estivesse
limpo. Mas independente disso, eu sinto...
– Ora, Leonie, não banque a mística – Lorill a interrompeu, soando um pouco preocupado.
– Daqui a pouco você vai estar igual Melissa, cheia de melindres e tolices, e vai acabar tendo
visões de Evanda e Avarra.
– Não – ela protestou. – Pode caçoar, Lorill, e pode duvidar, se quiser. Mas eu afirmo que
alguma coisa está se aproximando de nós... alguma grande mudança em nossas vidas... e nada
será o mesmo de novo. Estou falando de todos nós, não só você e eu.
Leonie falou com tamanha convicção que Lorill fitou-a atenciosamente e parou de caçoar.
Ele assentiu, completamente sóbrio.
– Você é uma leronis, irmã, treinada na Torre ou não. Se diz que vai acontecer alguma coisa,
bom, talvez seja dotada da presciência. Tem alguma ideia do que será esse grande
acontecimento?
A imprecisão do seu pressentimento deixava Leonie com dor de cabeça.
– Quem me dera, Lorill – ela respondeu, insegura e entristecida. – Só sei que está
relacionado com as luas. Eu o sinto; seria capaz de jurá-lo. Às vezes eu nem sei mais se quero
ir para Dalereuth, em vista dos dias que se aproximam.
– Como assim? – ele indagou, sobressaltado. E não sem motivo. Leonie nunca permitira
que nenhuma consideração se interpusesse no seu desejo de ir para uma Torre antes. Ela
nunca permitira que ninguém a convencesse a considerar outro rumo para o seu futuro.
Recusara até a mão do Rei, tudo em sua busca para se tornar uma leronis.
– Eu bem que queria poder lhe contar – disse Leonie franzindo as sobrancelhas em
concentração. – Se eu fosse uma leronis plenamente treinada, não apenas uma noviça... – sua
voz baixou de tom pouco a pouco, como se as palavras com que pudesse descrever o que sabia
lhe escapassem. Mas não eram as palavras que lhe faltavam, era a habilidade para concentrar
seu presságio em outra coisa além de pressentimentos, algo passageiro como o nevoeiro da manhã
e com a mesma dificuldade para se apanhar.
Lorill ficou imóvel por um momento, com uma expressão pensativa.
– O que quer que possa ser, eu queria poder partilhar da sua presciência. Mas você sabe o
que me disseram quando me deram minha matriz – a sua mão esquerda tateou distraidamente
a bolsa de seda na sua garganta – que com gêmeos, um sempre tem mais, enquanto o outro
sempre menos do que a quota normal de laran. Não preciso dizer como o laran está dividido
entre nós. Não há dúvida de que você usará o seu melhor do que eu o meu.
Leonie sabia a que ele se referia. Não fazia diferença que Lorill possuísse o laran mais fraco,
por que atualmente, embora houvesse paz, uma profissão tão retraída da vida quanto a de um
trabalhador de matriz jamais poderia ser exercida por qualquer homem Hastur, a menos que
fosse algo redundante como o sétimo filho. Inevitavelmente Lorill assumiria seu lugar na corte
ao lado do pai deles e, se ele gostava ou não da ideia, pouco importava. À sua maneira, Leonie
experimentaria muito mais liberdade do que Lorill, quando estivesse plenamente treinada. Ela
decidiria para onde ir, e apenas a força do seu laran colocaria limites na sua busca pelo maior
dos prêmios: o cargo de Guardiã.
– O que você vê, irmã? – ele indagou num tom baixo e apreensivo.
– Nada mais do que já lhe disse. – Leonie suspirou, voltando-se para fitá-lo. – Perigo, e
mudança, e oportunidade vindo para a gente... das luas. Isso não é o suficiente?
– Eu não poderia levar isso ao nosso pai, ou ao Conselho – Lorill sacudiu a cabeça. – Se me
apresentar diante delas só com uma vaga premonição e falar das luas, vão pensar que eu andei
bebendo feito – o que foi que você disse sobre Derik? – feito um monge no solstício de
inverno.
– Tem razão – ela suspirou. – Mas o que eu posso fazer?
– Se você pudesse me arrumar mais informação... – ele sugeriu delicadamente. Ele não
deveria sugerir que uma menina destreinada buscasse mais informação sem nenhuma
supervisão – especialmente não uma Hastur, sendo o dom de Hastur o que era: o poder da
matriz viva. Se Leonie possuísse esse dom em sua plenitude, ela não precisaria de um cristal de
matriz para se meter numa enrascada da qual apenas uma Guardiã poderia tirá-la. Mas Leonie
estava acostumada a fazer as coisas como queria – e Lorill estava acostumado à sua
extraordinária habilidade para fazer praticamente tudo o que decidia fazer.
Leonie franziu o cenho, mais em apreensão do que em reprovação.
– Vou tentar – ela disse após uma pausa. – Farei o melhor que puder. Talvez eu ainda possa
ver alguma coisa mais concreta... algo que possamos usar para convencer o pai.
Lorill deixou-a para suas meditações solitárias e Leonie apagou a lanterna, mas não se
despiu, parando para escutar os sons do acampamento ao redor, esperando pacientemente até
o último guarda se ajeitar no seu saco de dormir.
Não teve que aguardar muito. Todos estavam tão esgotados do frio e da chuva que não
viam a hora de buscar o calor dos cobertores. Assim que verificou que todos haviam ido
dormir, salvo o guarda que rondava o perímetro do acampamento com seu capote encharcado,
Leonie se levantou e foi para a entrada da tenda.
Ela espiou para fora cautelosamente, voltando a atenção para o céu. Continuava a chover e
as nuvens demonstravam pouca inclinação de se mexerem até que tivessem despejado toda a
chuva que carregavam. Mas Leonie sabia, por anos de experiência, que as nuvens estavam
sempre se movendo, se tratava apenas de uma questão de em que direção e com que
velocidade. Mas só fazia cerca de um ano que ela realmente conseguia colocar suas
observações em prática.
Observou atenciosamente até poder determinar o rumo do movimento, a direção que lhe
informaria em que sentido o vento estava soprando na altura das nuvens. Sabia por
experiência que não era sempre a mesma direção que a do vento no solo. Depois de
determinar o rumo certo, ela projetou a sua mente e cutucou as nuvens naquela direção,
impulsionando-as como um pastor com um rebanho de ovelhas gordas e preguiçosas, até que
saíssem do caminho para ela poder ver o céu. As quatro luas flutuavam acima das tendas, todas
cheias, cada uma de uma cor diferente. Elas eram lindas... mas continuavam silenciosas e
enigmáticas como sempre.
Leonie abriu as abas da tenda e se sentou numa almofada, procurando alcançar alguma
coisa no seu interior que proporcionasse forma ou substância às suas vagas premonições.
Tudo o que ganhou com isso foi uma crescente insônia.
Ela se sentou na entrada da tenda e ficou horas a fitar as luas, tentando focalizar seu laran
em algo que ela pudesse ver com seus olhos físicos, as formas arredondadas das luas...
tentando focalizar a mente em uma coisa que ela sabia que se aproximava, tentando focalizar
na terrível apreensão que a dominava.
Tentando encontrar as respostas que ela sentia que precisaria... e em breve.
3

Na superfície da maior das luas foi erigido um anel de pequenas cúpulas, parecendo um
tumultuado ninho de cogumelos. Ao redor delas trabalhavam máquinas e pessoas em roupas
espaciais, a fim de tornar a instalação funcional e autossustentável.
Ysaye estava na maior das cúpulas, sentada frente a um terminal de computador e
estudando a tela enquanto o satélite de cores brilhantes disparava um último propulsor e
entrava elegantemente em órbita.
– Bom, aí vai ele... o primeiro satélite de mapeamento e meteorologia – David comentou
animadamente espiando por cima do ombro de Ysaye. – Agora eu e Elizabeth finalmente
poderemos começar a trabalhar. Segundo ela, trata-se de um dispositivo de alta sofisticação.
– Sofisticado em que sentido? Os computadores instalados não têm nada de tão especial.
Ela queria que David continuasse falando; estava consciente do sibilo do ar do sistema de
ventilação de uma forma que nunca ocorrera na nave. Não se sentia totalmente confiante sem
nada entre ela e o vácuo exceto uma fina película de membrana flexível.
– O sistema ótico dos equipamentos de observação é que é especial. Ouvi dizer que este
Terra Mark XXIV tem resolução suficiente para permitir localizar um fósforo aceso na face
escura do planeta. Os satélites em órbita geosincrônica sobre a Terra, a cinquenta mil metros
de altitude, supostamente permitiriam ler a placa de um carro no estacionamento da embaixada
da Nigéria. Suponho que o nosso possa fazer o mesmo.
– Se eles tiverem carros e estacionamentos – comentou Elizabeth surgindo por trás deles. –
E embaixadas. É lógico que, se não tiverem, nós podemos ajudá-los a construir uma, eu
suponho...
– Bom, para ver os números nas placas das ruas. – Ele respondeu se virando e sorrindo
para ela. – Ou qualquer coisa que eles usem como ruas e placas. Oi, amor! Veio começar as
observações meteorológicas?
– Adivinhou. Poderemos trabalhar juntos, se você estiver no primeiro turno de
Mapeamento e Exploração. – Ela olhou para os monitores que mostravam o pessoal
trabalhando do lado de fora. – Será que as pessoas desse planeta já alcançaram suas luas?
– Se alcançaram, não esqueceram nenhuma embalagem de filme ou latas de comida nelas. –
ele respondeu. – Ao menos não que tenhamos visto até agora. Pessoalmente, estou inclinado a
duvidar; não há o menor sinal de tecnologia que nós reconheceríamos como tal... nenhuma
grande área iluminada que possa ser uma cidade, e absolutamente nenhum sinal de rádio.
– Como os técnicos vivem me lembrando – disse Ysaye, balançando a cabeça – nós ainda
nem sabemos se há qualquer espécie de vida inteligente aqui, e não saberemos até as câmeras
do satélite entrarem em funcionamento.
Elizabeth franziu o rosto ao olhar para os monitores apagados que representavam as futuras
imagens do satélite.
– Eu não sei se saberemos mesmo então, Ysaye. As nuvens obstruindo o panorama são
muito espessas. Se existirem seres inteligentes, e eles não forem muito avançados, podem
passar despercebidos com a maior facilidade.
– Eu não sei como – contestou David. – Com esta resolução, tudo de que precisamos é
uma brecha nas nuvens, e provavelmente poderemos avistar um macaco... ou qualquer coisa
que se encaixe neste nicho ecológico em particular... – ele se apressou em acrescentar –
cruzando os galhos daquela floresta lá embaixo.
– Só os galhos mais altos – replicou Elizabeth. – E só se as nuvens obstruindo a vista
abrirem mesmo, e se a câmera estiver ajustada na direção certa!
– O que seguramente ocorrerá, eventualmente – disse David, encerrando a discussão com
um movimento de ombros. – E eventualmente as nuvens terão de se abrir. Mas mesmo se
existirem seres inteligentes, não devemos localizar nada menor que uma cidade iluminada até a
maior parte da rede de satélites meteorológicos entrar em funcionamento. Faz alguma ideia de
quanto isso vai demorar, Ysaye?
– Horas – disse Ysaye com evidente exaustão. – O bom é que é praticamente tudo
automático. Tudo o que preciso fazer é tomar conta.
– Você parece terrivelmente cansada, Ysaye – comentou Elizabeth, a preocupação
estampada nos olhos azuis. – Há quanto tempo está trabalhando? Isto é, trabalhando em
excesso?
– Não sei – respondeu Ysaye mexendo os ombros. – Perdi a noção de novo.
– Isso se traduz como “Eu acoplei meu cérebro ao computador três dias atrás e desde então
que não descanso”? – caçoou David.
– Por aí – ela admitiu com uma risada fatigada. – Isso, e... vocês sabem que eu não gosto de
dormir em camas estranhas. Não consegui dormir nadinha, por isso continuei a trabalhar.
– Por que não deita um pouco ali e tenta de novo? – Elizabeth sugeriu gesticulando para
um amontoado de protetores de computador acolchoados em um canto. – Você mesma
admitiu que o processo inteiro é automático, e David e eu estaremos aqui para avisar se
acontecer algum problema. É provável que não apareça ninguém em horas; exceto por nós e o
pessoal de construção, todo mundo ainda se encontra na nave. Ninguém vai perturbá-la.
– Isso não vai durar muito – advertiu David. – Não há nada que se compare ao caos do
desembarque, assim que a segurança aprova o ar e dá a liberação. Isso também acontecerá aqui,
assim que a segurança esteja satisfeita com o estabelecimento das cúpulas. Não que haja ar
fresco aqui, mas ao menos as cúpulas constituem uma mudança depois da nave.
– É – murmurou Ysaye – a gravidade é menor. – Ela se dirigiu para os protetores e
despencou frouxamente sobre eles. – Acho que eu vou aceitar a sua sugestão, Elizabeth. Neste
momento eu provavelmente poderia dormir em qualquer lugar... e possivelmente sob qualquer
circunstância. Me cutuquem se acontecer alguma coisa interessante.
– Pode deixar – disse Elizabeth jovialmente. – Você precisa de uma folga, antes que eles a
coloquem para trabalhar na biblioteca pesquisando ensaios obscuros sobre formações lunares
para o capitão. Um técnico me disse que esse sistema lunar quádruplo estava deixando-o
maluco!
David, que estava a estudar os monitores mostrando o trabalho fora da cúpula, disse de
repente:
– Parece que estão instalando a Cúpula de Recreação... a menos que sejam os alojamentos.
É uma cúpula grande, em todo caso.
– Não, eu tenho certeza que são os alojamentos. Escutei o primeiro oficial falar que vão
esperar que o primeiro destacamento para analisar o planeta retorne com informações antes
disso. Talvez possamos nos estabelecer lá, principalmente se não houver seres inteligentes. Para
que instalar outra cúpula completa e produzir ar para ela quando existe ar natural perfeitamente
respirável na superfície do planeta...
– Tem razão, mas eu ainda não apostaria contra a existência de seres inteligentes – ele
concordou. Ysaye, deitada com os olhos fechados, ouviu o ruído de uma cadeira rangendo no
chão. Não precisava olhar para saber que David se apropriara de sua cadeira diante do
terminal. Seu palpite se confirmou quando a sua voz prosseguiu, um pouco para a direita dela.
– Uma coisa que esse planeta terá de sobra é ar fresco... e mesmo se existirem seres
inteligentes, até hoje nenhum planeta descobriu uma forma de vender o ar. Pode-se consegui-
lo em colônias orbitais, ou colônias em mundos desprovidos de ar, mas ar natural ainda é a
única coisa gratuita em qualquer lugar.
– Que as autoridades não te ouçam – caçoou Elizabeth – ou eles vão encontrar um meio de
medir o ar a fim de nos cobrar por respirar.
– O que você acha que é um imposto per capita? – Ele perguntou aos risos.
Ela também riu. Fez-se um silêncio prolongado, enquanto Ysaye cochilava, até que
Elizabeth indagou, ao notar uma mudança na tela:
– O que está acontecendo agora?
– O sistema está calibrando os instrumentos do satélite. Assim que ele terminar, poderemos
começar a receber algumas informações meteorológicas iniciais. Ysaye tinha razão numa coisa:
existem muitas nuvens obstruindo a visão. Vou precisar fazer o maior esforço para arranjar
alguns mapas decentes.
– Bom, pelo menos haverá muita coisa para eu fazer por um tempo. – ela exclamou, rindo.
– Maravilhoso! Eu admito: sou aficionada por meteorologia.
– O que provavelmente não faz mal nenhum, já que esse é o seu trabalho – ele caçoou. – E
a gente está no espaço há tanto tempo...
– Nada além de simulações para me impedir de ficar neurótica – ela suspirou. – Estou tão
farta de modelos computadorizados...
– Suponho que eles nos mantêm em forma, mas de fato a realidade é outra coisa. Olha, o
computador terminou os testes remotos. Parece que está tudo pronto para funcionar. – Ele
digitou a entrada de “iniciar” e a tela passou a discorrer as informações, muito depressa para
ler, mas nenhum dos dois se preocupou, por que tudo estava sendo armazenado para um
exame minucioso posterior. A impressora mastigou barulhentamente um pedaço de papel e
forneceu o primeiro mapa meteorológico, enquanto um segundo monitor construía uma
imagem detalhada do planeta abaixo, com o radar instalado com o sistema Doppler mostrando
correntes de vento e densidades de nuvens.
Ele estudou o mapa, que mostrava essencialmente a mesma coisa traduzida em números.
– Parece que há uma tempestade se formando nas montanhas. – ele disse. – Poderemos
observá-la: é provável que caia tarde da noite. Acho que será das grandes. As duas próximas
órbitas deverão captá-la.
– Me dá – Elizabeth tomou-lhe o papel. – Deus do céu, que padrões mais complexos!
Quantas tempestades. Dá dó dos nativos; eles provavelmente não sabem a metade do que nós
já sabemos sobre o clima deles.
– Então nós teremos alguma coisa para lhes oferecer – comentou David se voltando para
ela. – Você não ia fazer um concerto para comemorar a instalação das cúpulas ou coisa
parecida?
– Com o capitão Gibbons no comando? – Elizabeth riu. – Não há a menor dívida. Ele
sempre faz concertos para comemorar praticamente qualquer coisa. Acho que serão canções
folclóricas desta vez, o que significa que o fardo da apresentação recairá sobre mim, mas só
depois de eu determinar os padrões climáticos do planeta. As celebrações terão de esperar,
agora que eu finalmente tenho trabalho de verdade para fazer! Embota Ysaye tivesse
comentado a respeito de certos sons instrumentais novos que ela obteve no sintetizador
orquestral que quer mostrar; ela disse que acoplou uma flauta ao sintetizador e transpôs as
ondulações de forma a saírem em registro de baixo. Talvez ela possa fazer seu próprio
concerto.
– Humm. – Ele estudava atenciosamente o monitor. – Bom, não há nada o que fazer; será
preciso que toda a rede funcione para obter qualquer nível de detalhes. Tem muitas nuvens
obstruindo a vista, e tanta neve no solo que eu não tenho certeza se minhas leituras
topográficas estarão sequer próximas de corretas.
Elizabeth deu tapinhas compreensivos no ombro dele.
– Eu queria poder ajudar.
– O lado bom é que eu vou poder participar do concerto – ele disse mexendo os ombros. –
Não haverá nada para eu fazer até todos os satélites estarem posicionados. Pelo menos isso me
dará algo para pensar, especialmente se ela obteve mesmo um som novo – ele prosseguiu. –
Embora muita gente tenha brincado com sintetizadores, e para mim todos eles pareçam
exatamente idênticos.
– Nem tanto assim – ela protestou distraída, inteiramente concentrada no mapa
meteorológico seguinte. Mordiscou uma unha e franziu o rosto para alguma coisa no papel que
não gostou ou não compreendeu.
Momentaneamente inútil devido ao mesmo clima que Elizabeth achava tão fascinante,
David continuou a discussão.
– No fundo, um tom eletrônico é um tom eletrônico, e não há muita diferença entre sons
eletrônicos; ou o que se pode fazer com eles.
– Eu discordo – ela disse, sem desviar a atenção de seu trabalho. Eles estavam acostumados
a ter conversas que não tinham nenhuma relação com o que estavam fazendo. – Com os sons
que nós programamos...
– Sons – ele disse com firmeza. – Mas não música.
– Você está pensando igual a um pré-histórico – ela caçoou, olhando para ele por um
momento e franzindo o nariz. – Para mim não existe muita diferença. Você acha que para
fazer música é preciso bater, soprar ou dedilhar alguma coisa. O que há de santo nisso?
– Vocês, músicos modernos! – ele disse resignado. – Qualquer barulho, ruído, desarmonia...
que belo exemplo de música folclórica você é! É uma surpresa não terem tomado o seu cartão
no Sindicato de Autenticidade!
– Músicos folclóricos não se sujeitariam a um sindicato. E eu acho que já discutimos isso
antes. – Ela riu e voltou-se para os mapas, fazendo anotações e solicitando mais informações
do terminal, aparentemente mais contente do que estivera em meses. – Você tem que admitir
que a aleatoriedade...
– Eu não tenho que admitir coisa alguma – ele interrompeu, rindo. – Tenho o direito, se
quiser, de dizer que desde Hardesty que ninguém compõe música de verdade... desde Handel,
aliás. O que veio depois não é música de forma alguma, pela minha definição. Só barulho. Por
acaso ainda ensinam a escala tônica elementar?
– Você não tem nenhum trabalho para fazer? – ela indagou, e suspirou quando ele
movimentou os ombros para indicar a esfera coberta por nuvens no monitor. – Pois eu
aprendi. Está certo que era uma pequena faculdade particular, mas fique sabendo que a Julliard
ainda exige o conhecimento das escalas tônicas menor e maior para admissão.
– Viva! Só falta quererem que as pessoas aprendam um simples tom de baixo – murmurou
David.
– Só falta quererem que um cartógrafo faça por onde merecer o seu salário!
– Eu o faria, se pudesse, mas no momento não há nada para eu fazer que o computador
não faça melhor.
– Pois eu tenho trabalho a fazer, um monte, para falar a verdade, e não estou a fim de
continuar a discutir. Você não passa de um desses primitivistas que se recu-sam a aceitar
composições eletrônicas, como escolas de arte que insistem para a graduação, antes de
apresentar qualquer arte moderna, que um candidato apresente um nu masculino ou feminino,
uma natureza morta, e uma paisagem em estilo clássico.
– Não há nada de errado nisso. Ao menos o artista não pode se formar sem aprender a
desenhar, ou ocultar uma carência de talento sob um nevoeiro de banalidade e pose.
– Saber desenhar não é tudo, mesmo na arte, mas eu vou deixar esse argumento para outra
pessoa. Não estou com tempo para discorrer a teoria inteira agora. – Ela pigarreou
explicitamente, mas David não entendeu a deixa.
– Bom – ele disse, com um rangido que informou a Ysaye que ele se recostara na cadeira –,
eu gostaria muito mais de música se todo compositor moderno tivesse de apresentar uma
canção no estilo de Schubert, um coral no estilo de Bach, uma sonata e uma sinfonia clássica
antes de fazer qualquer coisa mais moderna, e creio que a maioria das audiências concordaria
comigo. As suas sinfonias modernas estão perdendo público por que deliberadamente
escrevem músicas que ninguém quer ouvir; estão competindo com o passado. É claro que, na
música folclórica...
Ysaye pegou no sono ao som da discussão amigável sobre música. Ou melhor, o monólogo
de David; Elizabeth só fez sons distraídos conforme se envolvia no seu trabalho. Ocorreu-lhe,
de maneira vaga, que a insistência de David na discussão sobre música era um sintoma da
moderada neurose que afetara a todos. Muito tempo ocioso; nenhum trabalho de verdade para ocupar a
mente... as coisas insignificantes estão parecendo tão importantes quanto o trabalho que deveríamos fazer...
Ela acordou com o som da impressora produzindo um novo mapa e David soltando uma
exclamação de surpresa.
– O que foi, David? – indagou Ysaye, sentando e esfregando os olhos. – Alguma coisa não
está funcionando como deveria?
– Tem algo errado aqui, e talvez seja outra irregularidade do computador. Lembra daquela
grande tempestade que eu disse que estava se formando naquelas planícies? – Ele atirou-lhe o
primeiro mapa.
Ysaye franziu as sobrancelhas ao examinar o mapa; parecia perfeitamente normal para ela,
com padrões de tempestade semelhantes aos que havia visto em simulações. As nuvens
formavam os vórtices normais de uma tempestade numa foto de satélite; já tinha visto o
mesmo padrão em dúzias de mundos e milhares de simulações.
– O que há de errado?
– Nada – ele disse. – Mas não está mais lá. Simplesmente sumiu.
Ysaye balançou a cabeça.
– Irregularidades no computador não somem com tempestades. Você interpretou mal o
mapa, só isso. Provavelmente também está precisando de uma soneca.
– Veja você mesma – ele disse passando-lhe o novo mapa.
Era a primeira vez que Ysaye via aquele mapa; dormira por pouco mais de duas horas.
Elizabeth veio sentar ao seu lado para observar o mapa.
– Ele tem razão – disse Elizabeth, apontando com o dedo – está vendo essa zona de baixa
pressão bem ali? Ainda está ali, mas as nuvens sumiram. Não há o menor indício de uma
tempestade; sem chuva, sem neve... nada.
– Talvez neste planeta uma zona de baixa pressão não signifique uma tempestade – David
disse em tom de dúvida.
– Não existe nenhuma outra coisa que poderia significar – disse Elizabeth, parecendo muito
perplexa – a menos que este planeta seja completamente único na Galáxia. Talvez essas
montanhas todas modifiquem as coisas... ou aquela geleira monstruosa. Ou toda a neve. – Mas
ela não parecia segura.
– Tudo é possível – disse Ysaye.
– É. Mas, mesmo assim, eu me pergunto de onde saiu aquela tempestade. Vamos esperar
para ver se a zona de baixa pressão estará no próximo mapa meteorológico. – Ela mexeu os
ombros. – Bom, pelos menos eu terei alguma coisa para relatar. “Perdido: uma tempestade”. É
uma coisa muito grande para deixar passar.
– Pelo amor de Deus, não diga isso. Você conhece os regulamentos; nós provavelmente
teremos de montar um departamento especial de achados e perdidos para padrões climáticos
desaparecidos. – brincou David. – Dá até para imaginar. Informes triplicados, e entradas sobre
cada reunião. Perdidos: uma depressão tropical, dois furacões... – Ele fingiu arrancar os
cabelos.
– Ridículo... – riu Elizabeth.
– Bom, você certamente parece ter deixado essa passar – ele comentou.
– Eu não perdi coisa nenhuma – Elizabeth disse, indignada. – Meu trabalho é relatar e
prever o tempo, não criá-lo. Talvez seja uma anomalia do computador. Talvez o computador
tenha relatado uma zona de baixa pressão onde não existia nenhuma, e as nuvens sejam
somente... uma estranha formação em dispersão. Ou a tempestade começou normalmente, e
alguma coisa simplesmente a fez... passar.
Ysaye engatinhou até o terminal, tirou a proteção, e começou a executar diagnósticos.
– Talvez – ela disse distraída – alguém lá tenha solucionando aquele velho problema: “Todo
mundo fala sobre o tempo, mas ninguém faz nada a respeito”.
Ela fez uma pausa, enquanto as suas palavras tocaram uma estranha corda dentro dela. Será
que eu acabei de sonhar isso? Ela tentou se lembrar, mas o sonho, o que quer que tivesse sido,
havia se dissolvido.
David olhou-a, sério.
– Você acha?
Ysaye mexeu os ombros.
– Já dissemos antes: tudo é possível. Inclusive nativos que possuem tecnologias que não se
encaixam em qualquer coisa que nós consideramos tecnologia.
David franziu o cenho para a tela, agora apagada.
– Se alguém modificou mesmo o tempo... quem quer que possa ser, se possui esse tipo de
poder, eu gostaria de conhecê-lo... ou conhecê-la, ou conhecê-los. – Ele fez uma pausa, como
se pensasse melhor no assunto.
“Por outro lado” ele disse em tom baixo, “talvez não”.
4

Três meninas caminhavam juntas no jardim da Torre de Dalereuth; duas muito próximas,
como se fossem melhores amigas, a terceira um pouco apartada. As três apresentavam os
cabelos vermelhos e os traços fortes e aristocráticos do Comyn, a autarquia hereditária dos
Domínios. Comyn era como se intitulavam os descendentes das sete famílias; e eles eram alvos
de admiração e inveja, pois cada família possuía um Dom especial, ou poder de laran. Nem
todos do Comyn tinham um Dom pleno – ou mesmo qualquer espécie de dom – por que
atualmente o sangue das famílias estava mais diluído, e os poderes pareciam estar em declínio.
Torres que antigamente enviavam mensagens e até mesmo mensageiros através de grandes
distâncias agora se encontravam escuras e vazias. Era isso que tornava essas três meninas tão
preciosas – tanto para suas famílias quanto para a Torre.
Melora e Rohana Aillard, respectivamente com dez e doze anos de idade, eram primas, mas
tão parecidas quanto irmãs; a terceira menina era Leonie Hastur, um pouco mais alta, um
pouco mais clara, um pouco mais velha do que as outras. E muitíssimo mais consciente da sua
posição e da força do seu laran. Seu orgulho transparecia até mesmo na forma como ela se
empertigava, a cabeça erguida, não com os olhos baixos com a modéstia virginal, como
preferia a sociedade.
Naquela hora avançada do dia as meninas mais novas da Torre tinham permissão para se
reunirem no jardim, caso o tempo o permitisse, para brincar e se divertirem como quisessem.
Leonie achava-se muito crescida para tolices como brincadeiras, mas representava uma
oportunidade para escapar das paredes da Torre, ao menos por algum tempo.
– Eu empurro você no balanço, Rohana – disse Melora, de constituição delicada e a menor
das três. – Ainda não está chovendo. Eu quero permanecer ao ar livre o máximo possível.
– Espere para ver – contestou Rohana, com um suspiro. – Sempre chove a noite aqui, nesta
estação, ao que parece. Mas tomara que não comece até depois de a gente entrar.
– Não vai chover esta noite – falou Leonie muito positivamente, e com um sorriso astuto. –
Eu quero ver as luas, mesmo se elas estiverem se separando da conjunção; é muito importante
para mim.
Ela não falou por que era importante para ela, e as outras meninas também não se
incomodaram em perguntar. Elas conheciam Leonie há bem pouco tempo, mas sabiam que ela
jamais relevaria o motivo.
– E suponho – disse Rohana Aillard, quase irônica –, que o tempo cooperará e permanecerá
limpo só por que você quer. Eu deveria saber, é evidente. Até mesmo o tempo tem de escutar
quando um Hastur fala.
– É o que normalmente acontece – falou Leonie como se a zombaria velada de Rohana não
significasse nada para ela. – Se você não quiser se balançar então eu vou, Rohana.
– Não, eu primeiro – disse Rohana, subindo no balanço e desistindo de tentar irritar Leonie.
– Seria bom se eles tivessem dois balanços...
– Ou três, mas com que frequência se tem mais de uma pessoa aqui jovem o suficiente para
se interessar? – suspirou Melora. Ela virou para Leonie, exibindo uma alegria inocente. – Fico
feliz que você está aqui com a gente, Leonie; todo mundo aqui é tão velho e sério.
– Fiora não é velha – protestou Rohana com um vago sentimento de lealdade para com a
Guardiã.
– Pois é o que parece – comentou Leonie. – Ela se comporta como se tivesse cem anos de
idade, e é mais asfixiante do que qualquer velho avô. Ao me recepcionar, ela passou-me um
longo e terrível sermão, e lembrou-me de que agora era uma leronis, e devo sempre simbolizar o
melhor daquilo que o Comyn representa. – Leonie fungou desdenhosamente. – Como se eu já
não o fizesse! Eu sou, afinal de contas, uma Hastur. Não fazem outra coisa que não me ensinar
o dever, desde que deixei o berço!
– E você já é mais leronis e melhor telepata do que a maioria de nós jamais será mesmo
depois do treinamento, ao que parece – comentou Rohana com um vestígio de resignação.
Seus olhos se estreitaram em curiosidade, e ela esqueceu por completo as tentativas de
importunar Leonie. – Leonie, você tem o Dom de Hastur?
Leonie não assumiu uma postura esnobe – não por completo.
– Sim, creio que tenho.
– O que significa que pode fazer, sem uma matriz, mais do que o restante de nós é capaz com
uma matriz – disse Rohana, admirada. Mas, se isso é verdade, por que a mandaram para uma
Torre, de qualquer maneira?
O rosto belo e arrogante de Leonie assumiu uma expressão muito séria. Poderes de laran –
principalmente o seu – era uma coisa que ela nunca encarava com negligência ou frivolidade.
– Desde que eu era criança, as pessoas me dizem que um telepata sem treinamento
representa um perigo para si mesmo e para todos ao seu redor. E isso é verdade... ainda mais
verdadeiro para mim, talvez, do que para qualquer outra pessoa dos Domínios. Quando fui
testada, a leronis achou que eu tinha um dos Dons de laran mais antigos, que eram conhecidos
por se tornarem... – ela hesitou, escolhendo a palavra apropriada – incontroláveis... pelo menos,
sem o devido treinamento.
Rohana e Melora estremeceram. Toda criança sabia o que podia acontecer quando um Dom
saía de controle. Junto com as histórias de fantasmas, histórias de laran descontrolados
animavam muitas lareiras no inverno... e causavam muitos pesadelos nas crianças.
Leonie aguardou um momento, a fim de que suas palavras surtissem o total impacto. Poder,
qualquer que fosse a fonte, surtia imediato respeito. Ela já possuía esse respeito... ou, ao
menos, cautela... podia percebê-lo nos rostos das amigas. Ótimo. Agora não precisaria mais
aturar indiretas irônicas.
Ela mexeu os ombros, saindo um pouco do pináculo de mistério onde tinha se colocado.
– E eu sou uma mulher – continuou –, e para as mulheres, se tornar uma leronis é a única
maneira de escapar ao casamento, no momento mais cedo possível, com um rapaz imbecil e
parir seis ou sete crianças imbecis.
– Mas certamente nem todos são imbecis – protestou Rohana, que acalentava ambições no
mercado matrimonial.
– Não, só nove entre dez. E quais você acha que são as suas chances de encontrar algum da
décima parte?
Melora comentou calmamente:
– De qualquer maneira, você escolheu a melhor maneira de evitá-lo, por um ano ou dois.
– Mais do que isso – falou Leonie em um tom que não dava margem a contestação. – Sei o
que quero; sei disso há tanto tempo quanto posso me lembrar. Não vou casar com homem
algum, e tenciono ocupar um lugar no Conselho.
– Para isso você precisaria ser a Guardiã de Arilinn – riu Rohana, como se tivesse achado a
ideia absurda, a despeito da autoconfiança de Leonie.
– Exato – declarou Leonie, empinando a cabeça. Olhou para a menina mais nova com certo
desdém e esboçou um sorriso misterioso.
Rohana suspirou, exasperada.
– E você tem tanta certeza de que pode fazer isso? Será que também possui presciência?
Todas as coisas sempre acontecem da maneira como você espera?
– Quase todas – declarou Leonie, com um inefável ar de arrogância. – Descobri que
raramente me engano. E Fiora disse que possuo talento para ser treinada como uma Guardiã, e
por isso creio que o resultado é provável o suficiente para que mesmo meu irmão pudesse
fazer uma aposta e garantir a vitória.
Sua segurança finalmente irritou a normalmente afável Melora.
– Oh, você provavelmente acabará casada, igual ao restante de nós – disse ela, mal-
humorada.
– Não, eu não vou casar – Leonie olhou de uma maneira estranha para Melora, de uma forma
que fez ela se sentir muito perturbada. Como se Leonie estivesse olhando através dela, ao invés
de para ela. – E nem você. – declarou Leonie, em um tom estranhamente remoto.
– E eu? – indagou Rohana jovialmente.
– Você vai casar, sim – disse Leonie, ainda naquele tom esquisito, remoto e baixo. – Mas
também terá um lugar no Conselho. – Ela franziu o rosto, não para Rohana, mas para algo que
só ela conseguia ver. – Não compreendo, mas sei que será assim...
Ela se calou e continuar a fitar, o rosto franzido.
Rohana mexeu os ombros, procurando desfazer a friagem que subitamente pareceu se
apossar das meninas. Voltou-se para Leonie, enraivecida.
– Quer dizer que você virou uma vidente de mercado? Ou talvez deseje assumir as vestes
cinzentas de uma sacerdotisa de Avarra, e desatar a proclamar desgraças! A velha Martina,
criada de minha mãe, costumava profetizar de vez em quando, e podia prever neve no solstício
de inverno tão bem quanto qualquer um.
Ela poderia ter dito mais, mas o som leve de passos interrompeu-a. As meninas
abandonaram a discussão e esqueceram o balanço, que retornou à sua posição inerte. Outra
pessoa acabara de entrar no jardim.
Só que não era qualquer pessoa. A figura se aproximando era notável o suficiente para
garantir a atenção de qualquer um, mesmo que a pessoa não conheça a mulher ou o significado
de suas roupas carmesins; Fiora, a Guardiã de Dalereuth, era uma mulher albina, alta e de
aparência singular, tinha cabelos brancos e olhos pálidos, completamente cegos, mas
caminhava com passos confiantes mesmo assim. Ela parecia insubstancial nas suas vestes
vermelhas, mas ainda possuía uma presença curiosa, e exibia uma dignidade que não tinha
relação alguma com a soberba da nobreza.
Fiora não perguntou quem estava presente, mas simplesmente disse:
– Leonie.
– Estou aqui, minha senhora – disse Leonie erguendo a cabeça, embora as outras meninas
mantivessem as suas levemente inclinadas. Ela mirou fixamente os olhos rosados pálidos de
Fiora, embora fazê-lo lhe causasse uma sensação... esquisita. Baixar os olhos constituiria uma
confissão de que ela sentia-se intimidada na presença da Guardiã, e Leonie jamais o admitiria.
Fiora sabia o que existia por trás da expressão ligeiramente insolente, e desejou que a
menina possuísse um juízo equivalente ao orgulho.
– Preciso falar com você; quer que mande as outras se retirarem?
– Não consigo imaginar nada que você possa me dizer que elas não possam ouvir – disse
Leonie. A leve ênfase em “você” irritou Fiora, que estava ciente do desdém que a menina
tencionara imprimir.
Mas se reagisse estaria fazendo o jogo de Leonie, e isso ela não ia fazer.
– Se é o que deseja – disse Fiora tranquilamente –, embora eu não desejasse censurá-la na
frente das outras sem o seu consentimento. Fiquei sabendo que se considera responsável pelo
tempo anormal que andamos tendo nos últimos dias – Ela também imprimiu uma leve ênfase
na palavra “considera”, como se desejasse implicar que a menina estava mentindo ou
fantasiando.
– Mas sou mesmo – disse Leonie, jovialmente. – O que tem isso? Eu queria ver as luas;
alguma coisa está se aproximando de nós e sinto que vem das luas.
– Interessante, criança – comentou Fiora, com uma insinuação de condescendência – e mais
interessante ainda que de todos os leroni treinados e de todos os operadores de matriz, com
todos os seus Dons e poderes, só você, sem treinamento, sem prática, recebeu tal presciência.
Leonie empinou o queixo e franziu a boca, mas Fiora não lhe deu oportunidade de
responder.
– Quer isso seja verdade ou não – continuou a albina –, e quer o tempo realmente a esteja
respondendo ou não, porque existe uma possibilidade de que ao menos a última afirmação seja
verdade, vim para lhe informar que é melhor você não fazer isso. Será que tem consciência do
que pode acontecer se você se intrometer com o tempo como se fosse um brinquedo, criança?
– Desta vez, a ênfase foi em “criança”, implicando que Leonie não tinha mais consciência das
suas ações do que um bebê distraindo-se com uma bola ou uma pena colorida.
– Se se refere a um Vento Fantasma – protestou Leonie –, posso assegurar que não sou tão
temerária!
Então, como Fiora continuasse a fitá-la em desaprovação, Leonie percebeu o que
provavelmente a estava preocupando.
– Oh, os fazendeiros – disse como se não houvesse problema algum. – Não tenho
disposição para me preocupar com eles.
– É uma pena que você não levou a sério todas aquelas lições sobre o dever de um Hastur e
um Comyn da mesma maneira que sobre a sua própria importância. Os fazendeiros precisam da
chuva... e nós precisamos da comida dos fazendeiros. Quando as colheitas estiverem murchas
e mortas nos campos, por falta de água, será muito tarde para qualquer providência, mesmo o
Dom mais poderosos dos Domínios, para corrigir a situação.
Leonie fitou a Guardiã como se não pudesse acreditar nos seus ouvidos, mas Fiora não
havia terminado.
– E, além disso, uma das primeiras coisas que você ou qualquer outro precisa aprender
neste lugar é que nenhuma leronis jamais deve fazer qualquer coisa para perturbar o equilíbrio
natural para sua conveniência pessoal. Às vezes, depois de consultar outras pessoas, quando
decidimos que o bem supera o possível mal, aí sim modificamos um padrão perigoso, tal como
quando fornecemos chuva para um incêndio florestal.
– Foi o que fiz – interrompeu Leonie. – Tenho um dom para isso. Fui criada com relatos
sobre Dorilys de Rockraven, e creio que possuo uma medida de seu Dom, o Dom de controlar
o tempo, e posso garantir que não costumo brincar com ele. – Ela tornou a sorrir, aquele
sorriso superior que fazia Fiora querer sacudir a menina para incutir-lhe um pouco de
humildade. Se ela não fosse uma Guardiã, Fiora seria bem capaz de fazê-lo. – Não precisa se
preocupar – prosseguiu Leonie, aereamente, como se o assunto não tivesse a menor
importância. – Posso fazer chover de novo, se é o que deseja.
– Não se trata simplesmente do que eu desejo – disse Fiora um pouco asperamente. – Você
precisa aprender a seguir o que está determinado e o que deve estar no caminho da natureza.
Os relatos que ouviu diziam qual foi o destino de Dorilys de Rockraven?
– Ela perdeu o controle sobre seu Dom e usou-o para matar e, uma vez que não era
possível matá-la, seus parentes colocaram-na para dormir, por trás dos escudos de Hali – disse
Leonie, mexendo os ombros, como se o assunto não tivesse importância, como se tivesse
certeza, com a tola arrogância juvenil, que algo assim jamais poderia ocorrer com ela. – Por
tudo o que sei, ela ainda se encontra lá. É por isso que minha família quer que eu seja
devidamente treinada.
– Exato. Lembre-se disso, Leonie. Tal destino poderia com a maior facilidade lhe ocorrer,
caso continue a abusar de seus poderes, como se fosse um brinquedo. E um destino bem mais
triste pode lhe ocorrer, se você jactar-se por poderes que não possui, mas quer possuir.
Ninguém é mais ridículo do que uma leronis que evoca um demônio e é atendida por um rato.
Com essas palavras ela voltou-se e afastou-se através dos jardins, o farfalhar das suas vestes
se arrastando fazendo um som sussurrado contra a relva. As duas meninas mais jovens se
entreolharam, chocadas. Fiora raramente censurava, e nunca falara com nenhuma delas com
tamanha grosseria.
Leonie, entretanto, estava simplesmente furiosa. Era verdade que tinha dito que não queria
que as outras meninas se retirassem, mas jamais em sua vida ninguém ousara falar dessa
maneira com ela, o que fez com que ficasse enfurecida.
Mas piores, muito piores, foram os insultos não pronunciados; as coisas que Fiora não
dissera, mas pensara, com a maior clareza.
– Quer dizer – disse Leonie, fervilhando com uma ira mal reprimida – que ela não acredita
em nenhum dos meus Dons; pensa que estou me vangloriando pelo que não sou capaz de
fazer.
– Leonie, ela não disse isso – protestou Rohana, assustada.
– Não era necessário falar em voz alta. Acha que eu só ouço aquilo que me falam? É o que
acontece com você? Se é esse o caso, o que estamos fazendo na Torre, qualquer de nós? –
Mirou a porta por onde Fiora entrara na Torre. – Mas ela vai ver só.
– O que você tenciona fazer, Leonie? – sussurrou Melora, os olhos arregalados e a voz
trêmula. Leonie sentiu-se um pouco consolada; se a Guardiã não acreditava, ao menos
convencera suas colegas estudantes de que possuía poderes que requeriam cuidados.
– Oh, ela terá uma tempestade, se deseja uma, e quando ela terminar... – ela tinha muita
consciência da própria dignidade para cerrar os dentes, mas fechou as mãos e franziu bastante
a boca. – Oh, já dá até para ouvir: Oh, Leonie, você não deve fazer isso. Como se ela tivesse o direito
de me dizer o que devo ou não fazer!
– Mas ela é a Guardiã... – protestou Rohana debilmente.
Leonie agitou os cabelos, com um gesto arrogante de desdém, como se o título “Guardiã”
não significasse nada para ela.
– Pois nesse caso será bom para ela aprender de uma vez que eu faço o que quero, aqui ou
em qualquer outro lugar. E ela há de aprender. Não fui eu quem procurou a batalha, mas
também não vou me render.
5

Havia mais gente comprimida na pequena cúpula meteorológica na lua do que ela
tecnicamente fora feita para abrigar. Ysaye ocupava a cadeira principal atrás do console do
computador, com David e Elizabeth pairando sobre seus ombros, e meia dúzia de homens e
mulheres amontoados atrás. Reinava o silêncio, enquanto o computador criava mais uma
imagem na tela, com as informações atualizadas do satélite, e David respirou fundo e
prolongadamente, surpreso e entusiasmado.
– Pelas barbas do profeta! – exclamou ele baixinho. Ysaye não reconheceu a referência, e
ignorou-a como insignificante, exceto pelo evidente contexto de espanto.
Ao menos tinham certeza de que não havia nenhum defeito no hardware do computador ou
do satélite, nem nenhum vírus no software, ou um piadista pregando peças na nave,
transmitindo informações falsas com o simples expediente de mandar alguém para fora da
cúpula com um telescópio óptico verdadeiro e uma câmera para tirar fotos dos padrões
climáticos do planeta abaixo. E embora tais fotos fossem grosseiras em comparação com as
que o satélite enviava, elas provavam uma coisa: a informação era verdadeira. O tempo em
Cottman IV não estava se comportando normalmente.
– Dá uma olhada nisso – disse David, dando para Elizabeth o último mapa meteorológico
que a impressora fornecera. Ela examinou a folha de papel, franzindo a testa em perplexidade.
– De onde é que saiu esta tempestade? Primeiro, são duas tempestades que desaparecem, e
agora uma tempestade que surge do nada! Tem alguma coisa lá fazendo coisas estranhas com o
tempo.
– Que tipo de coisas estranhas? – quis saber uma voz lá atrás. – Nós acabamos de aprovar a
segurança da atmosfera para um destacamento de pouso, não vá me dizer que estamos
entrando em problemas agora! – O comandante Matt Britton, Chefe da Seção Científica,
acabara de chegar, e as pessoas entre ele e o console abriram caminho para o homem passar.
Elizabeth passou-lhe a série de mapas meteorológicos em ordem cronológica.
– Veja por si mesmo, senhor. Primeiro, duas tempestades desaparecem sem explicação;
depois, uma pancada de chuva, sem nenhum padrão meteorológico acompanhando. –
Elizabeth balançou a cabeça. – Nenhuma zona de baixa pressão, nenhum padrão de
tempestades adequado, nada. Só chuva.
O chefe da seção examinou os mapas sem nenhum sinal de emoção no rosto.
– Alguém tem alguma teoria sobre qual é a causa disso? – perguntou Britton, após um
momento.
– Até agora nada – admitiu Elizabeth. – Faz mais ou menos quarenta e oito horas que
estamos observando e receio que estejamos ficando meio confusos. A melhor teoria até o
momento é que se trata de um feiticeiro, ou coisa parecida; uma pessoa com poderes mágicos
sobre o tempo. – Ela balançou a cabeça.
Só então ele demonstrou alguma emoção, olhando por sobre as sobrancelhas grossas para a
meteorologista. Profunda desaprovação.
– Está propondo seriamente essa teoria, Mackintosh? Esse tipo de baboseira combina
perfeitamente com uma das suas canções folclóricas, mas isso é uma expedição científica, e
ficarei agradecido se se lembrar disso, fatigada ou não.
Elizabeth ficou embaraçada pela reprovação fria do superior, e a resposta do fundo do
grupo à censura de Britton não colaborou nem um pouco para sua autoconfiança.
– Oh, Elizabeth, saia dessa! – disse com repugnância o tenente Ryan Evans, um dos
botânicos mais jovens.
Elizabeth enrubesceu e, ao avistar Evans, tratou de desviar os olhos. Ele era amigo de
David, mas ela nunca conseguira gostar muito do homem. Evans era bonito e sabia disso; era
bastante alto e tirava vantagem psicológica de seus centímetros extras para intimidar as pessoas
– principalmente mulheres – em qualquer oportunidade. Nunca o tinha visto vestindo nada
exceto o uniforme cinza dos serviços de Colonização, a despeito do costume de se vestir
roupas “civis” quando não se estivesse trabalhando. De constituição musculosa, ele se
exercitava no ginásio a fim de manter a forma, e se utilizava disso para intimidar ou seduzir, o
que a ocasião requeresse. Parecia quase irritado pelo que Elizabeth dissera, mas tratava-se de
uma ocorrência frequente; ele era naturalmente um escarnecedor.
Perversamente, contudo, a aparência de desprezo no rosto dele e a menção de insulto
deixaram-na um pouco irritada... ao menos irritada o suficiente para defender sua explicação,
que na realidade fora proferida meio como brincadeira, meio em desespero. Ela virou para
Britton, ignorando Evans.
– De fato, é uma teoria heterodoxa, senhor – ela contemporizou –, mas até o momento não
conseguirmos propor mais nenhuma explicação para o que está ocorrendo, e nem o
computador. Não nos referíamos a magia como nos contos de fadas, mas outra coisa
totalmente diferente, e “feiticeiro” foi simplesmente a definição que utilizamos para descrever
o tipo de pessoa que postulávamos. Em teoria, alguém com poderes psíquicos poderia fazer
tudo aquilo, dispersar sistemas meteorológicos e tornar a reformá-los, e pareceria mágica para
quem não possui esses poderes.
Evans respondeu como se ela tivesse falado diretamente a ele.
– Mesmo se a gente engolisse aquele inútil programa experimental para habilidades
psíquicas com que vocês brincaram, eu ainda não vi nenhuma prova conclusiva de que esse
tipo de coisa existe... muito menos que alguém poderia manobrar tempestades com poderes
mentais.
Elizabeth reprimiu uma resposta áspera, e continuou com a atenção fixa em Britton. Afinal,
Evans não era nada para ela, não trabalhava na sua divisão, não era seu superior, e a sua
aprovação ou reprovação não tinham a mínima importância.
Britton balançou a cabeça.
– Tenho que concordar com Evans – ele disse, soando um pouco pesaroso. – Não vi
nenhuma prova conclusiva de que “poderes psíquicos” existem. Tudo o que você e David
fizeram pode ser explicado de outras formas. E eu não vejo nenhuma razão para pensar que
“poderes psíquicos” estão em questão neste caso.
– Talvez não – ela concordou –, mas senhor, você tem de admitir que parece estar
ocorrendo algo muito incomum. Neste momento, feiticeiros constituem uma explicação tão
razoável quanto qualquer outra. – Ela franziu o cenho. – Tenho a impressão de que quando
descobrirmos a verdade, qualquer que possa ser, desejaremos que fosse algo tão simples
quanto um feiticeiro.
– Jesus! – murmurou Evans, mas Britton silenciou-o com um olhar. Ele estava sob a
autoridade de Britton, e não era idiota de continuar depois de uma expressão daquelas.
– Bom – disse Britton voltando-se para Elizabeth –, confio que, quando tiverem uma teoria
mais viável... ou alguma prova de que seus “feiticeiros” existem... eu serei informado. – O tom
era menos cáustico, mas tinha a mesma condescendência sarcástica de Evans, e Elizabeth
quase se encolheu.
Ysaye contraiu-se. Não era a primeira vez que Elizabeth era criticada pelos seus acessos de
intuição, que eram totalmente independentes de lógica, mas que às vezes produziam resultados
espantosamente bons. Se estivesse em um humor mais ameno, o comandante Britton não a
teria criticado com tanta aspereza. Só que naquele momento era óbvio que ele não estava em
um humor ameno.
Ysaye achava que sabia o motivo. Os satélites de observação funcionavam exatamente
como previsto, e eles possuíam análises extraordinariamente detalhadas da constituição
química do meio-ambiente, mas embora o ar fosse quase perfeito, mais do que ousavam
esperar, o planeta em si não estava colaborando. Nuvens grossas e densas, e as tempestades
onipresentes, impediam de ver qualquer coisa além dos mais fortuitos detalhes sobre os seres
inteligentes que habitavam o planeta. Existiam seres inteligentes, isso era óbvio pelos poucos e
tantalizantes vislumbres de estruturas que os satélites forneceram, mas os habitantes ainda
constituíam um mistério. Os poucos fatos conhecidos era que eles construíam estruturas
individuais e agrupadas, que incluía o que poderiam ser cidades, e que cultivavam a terra. O
restante era um mistério, pois nas poucas ocasiões em que as nuvens tinham se aberto para
revelar o terreno abaixo, ou os habitantes não apareceram, ou a proteção de árvores era tão
densa que não dava para ver através, ou as famosas câmeras que podiam registrar uma placa de
carro em Nairóbi estavam apontadas na direção errada e projetando-se para mais uma extensão
encoberta de nuvens.
Não era à toa que Britton não estava de muito bom humor.
Ysaye tratou de se intrometer, a fim de mudar o assunto.
– Senhor, tem alguma ideia de quando vamos aterrissar no planeta? – Era certo que iam
enviar uma expedição, dada a forma que os Prediletos da Lei de Murphy andaram-nos
perseguindo. Parecia que a única forma de descobrir alguma coisa era ir pessoalmente. Tratava-
se de uma técnica perigosamente primitiva, mas comprovada.
– Dentro de algumas horas. O capitão disse que mandaremos uma nave de reconhecimento,
e pousaremos nesta área – ele indicou na tela do computador, um ponto breve e
abençoadamente desprovido de nuvens. – É bem próximo da cadeia de montanhas, e coberto
de neve, mas é um planalto, até aonde a Cartografia pode calcular.
Britton fez uma pausa para endereçar outro olhar desaprovador para David, que
simplesmente mexeu os ombros e indicou a tela com a cabeça como se quisesse dizer que
fizera o melhor que podia com o que tinha.
– Me parece uma decisão extremamente arbitrária – disse Evans. – Sem dúvida deve haver
áreas mais hospitaleiras.
Quando a temperatura emocional metafórica abaixou alguns graus, Ysaye percebeu que
Evans, finalmente, passara dos limites. Esperava que ele ganhasse mais de uma reprimenda...
– Eu não tenho a pretensão de estar a par de toda a lógica administrativa, nem de
compreender o que faz nossos oficiais superiores decidir que direções assumir – disse Britton
friamente. – Mas isto é uma nave, não uma democracia, e obedeço meus superiores sem
reclamar. Quem tiver outras ideias pode sentir-se livre para sair da cúpula e contemplá-las por
um momento. – Evans empalideceu, e Britton deu um sorriso contrariado. – Informaram-me
que é maneira preferida do capitão para resolver ideias de motim.
Ysaye aplaudiu em silêncio. Evans era um excelente xenobotânico, mas não era muito
popular entre os colegas. Britton tinha todo o direito de levar o problema adiante... e ela torcia
para que ele o fizesse.
Infelizmente, não era para isso acontecer. Britton pareceu satisfeito quando Evans assentiu
rigidamente, os lábios franzidos.
– Esta área foi escolhida por causa da isolação, tanto dos seres inteligentes residentes
quanto de qualquer coisa que pudéssemos danificar ao aterrissar. Como não conseguimos
reunir uma quantidade razoável de informação a respeito dos nativos, julgaram prudente não
nos aproximar deles diretamente. Mas, uma vez que não temos ideia de como poderiam
encarar danos às suas propriedades agrícolas, também pareceu prudente evitar qualquer área
cultivada; não queremos incendiar nada ao aterrissar, ou colidir com alguma coisa, ou causar
qualquer espécie de dano ao terreno. A menos, é claro, que essas pessoas cultivem neve, o que
não parece extremamente improvável. Infelizmente, para satisfazer todos os critérios
necessários, escolhemos aterrissar numa área relativamente inóspita.
– Existem muitos fatores envolvidos – concordou um dos espectadores.
– Quem vai no primeiro transportador? – quis saber outra pessoa.
– Ainda não é oficial – respondeu Britton –, mas como existem seres inteligentes, o primeiro
grupo terá de incluir todos os especialistas em comunicação, muito embora ainda não
tencionemos fazer o primeiro contato, não até termos chance de observar os seres inteligentes
por um tempo. Vocês sabem como é – ele mexeu os ombros expressivamente – se nós não
planejarmos o primeiro contato, os nativos provavelmente aparecerão minutos depois da
aterrissagem, querendo saber quem são os novos vizinhos, e se eles devem estender o tapete
vermelho ou declarar algum tipo de Guerra Santa.
Alguém soltou uma risada nervosa.
– Enfim, vão querer gente com qualificação em xenobiologia, xenopsicologia, antropologia,
linguísticas, e todas as especialidades apropriadas, para ir no primeiro grupo.
Nesse meio tempo, o computador havia reconfigurado a tela mais uma vez, e uma coisa
diferente atraiu a atenção de Ysaye.
– Esperem um momento, tem alguma coisa acontecendo – disse Ysaye.
Todos se voltaram e esperaram enquanto o computador fornecia outro mapa
meteorológico.
David inclinou-se e passou-o para Elizabeth.
– Este é o seu departamento, Elizabeth. Alguma coisa nova e interessante?
– Aparentemente não, só a mesma tempestade... embora isso seja suficiente. Agora estou
vendo o que Ysaye viu, está crescendo rapidamente, e estou feliz por não estar lá no meio
disso – ela disse. – Parece que os ventos nessas nuvens de tempestade têm força suficiente para
arrancar as asas de uma aeronave convencional. Mas o ar se encontra perfeitamente limpo no
local de pouso sugerido naquele planalto. Contanto que continue assim, poderemos aterrissar
sem problemas. – Ela passou o gráfico meteorológico para o comandante Britton.
Ele examinou o gráfico e disse:
– De acordo com as análises anteriores, a maior cidade do planeta parece se localizar em
algum lugar neste vale. – Ele indicou com o dedo uma formação de nuvens espessas por baixo
da qual, teoricamente, a cidade se encontrava. – Não que dê para saber por esse mapa.
– Também não fica muito distante da sua anomalia temporal – notou Ysaye, só um pouco
convencida. – Se existissem feiticeiros, creio que eles viveriam em áreas bastante populosas.
– Então por que vamos aterrissar naquelas montanhas no fim do mundo? – perguntou
Evans.
– Droga, tenente – disse Ysaye, agradecida pela oportunidade de censurá-lo. – Você não
estava prestando a menor atenção? Nosso oficial superior acaba de explicar cuidadosamente que
esta não é a primeira missão de contato, e por quê. – Ela sorriu docemente. – Se me lembro
bem, o senhor afirmou com toda a clareza que queríamos observar os nativos sem sermos
observados, uma vez que não podemos fazer tais observações de órbita. E também afirmou
que íamos aterrissar no que aparentava ser uma região desolada, a fim de evitar causar dano
para qualquer coisa que os nativos considerem valiosa.
Evans enrubesceu violentamente.
– O que significa menos chances de botar fogo em cidades ou colheitas, e perturbar os
nativos – disse jovialmente um jovem oficial. – E se for uma sociedade pré-industrial,
poderemos permanecer mais tempo e estudá-los antes de fazer as malas e ir embora. Falando
sério, Evans, onde é que você estava quando nos passaram todas aquelas palestras sobre pré-
contato, contato e pós-contato? Tirando uma soneca?
Evans enrubesceu com as risadas que percorreram a sala.
– Pelos menos é essa a maneira que eles podem descobrir – disse David, indulgente, antes
que o colega pudesse fazer ou dizer alguma coisa irremediavelmente idiota. – Tomara que a
gente desça logo. Estamos sempre em busca de novas línguas para as análises linguísticas do
computador.
Evans olhou em volta e não viu nenhuma expressão simpática, exceto a de David. Cerrou
os dentes, juntou o que restava da sua dignidade, e atravessou o tubo com uma postura
afetada, na direção da outra cúpula. Privados de mais diversão, o restante não demorou a ir
atrás. E conforme a área esvaziava lentamente, Ysaye pôs-se a analisar a série de mapas
meteorológicos.
Embora tivesse juízo o suficiente para ficar com a boca fechada quando o assunto era
“poderes psíquicos” na frente do comandante Britton, ainda tinha a sensação de que, em certo
nível, ela sabia o que estava acontecendo... e que a teoria de Elizabeth sobre os “feiticeiros”
não era tão descabida quanto parecia.
6

O céu estava tão nublado que parecia o crepúsculo, e não perto do meio-dia. A chuva
intensa enlameara as sendas do jardim. As árvores cediam sob o peso das folhas molhadas, e as
poucas flores que sobreviveram ao dilúvio debruçavam-se desanimadas sobre as hastes
inclinadas. O restante pingava água das pétalas remanescentes. O jardim estava pleno de sinais
da tempestade destruidora; galhos quebrados, folhas, pétalas de flores.
Leonie caminhava lentamente no jardim danificado da Torre, inspecionando sua obra. A
chuva fora tão violenta que existiam outras prioridades – como salvar os peixes desalojados do
lago ornamental transbordado – e os jardineiros ainda não começaram a arrumar as coisas. Até
o balanço oscilava frouxamente sustentado só por uma corda, intocado, esquecido.
Ao olhar para o balanço, só o que ela sentiu foi desespero. Não tem nada para um adulto fazer
neste lugar? Não pôde deixar de especular.
Aparentemente não; não como os jardins da propriedade da sua família, ou o do Castelo em
Thendara. Havia labirintos para solucionar, fontes para admirar e grutas aconchegantes para se
enroscar, sozinha ou... acompanhada. Em Dalereuth não havia nada parecido. Nada, a não ser
um pequeno e ordenado agrupamento de árvores e flores, e nem eram especialmente raras.
Virou-se e entrou de volta na Torre, apreensiva e sem saber o que fazer.
Ela zanzou pelos andares inferiores da Torre, encontrando-os estranhamente silenciosos e
vazios. Parecia que a Torre estava deserta, por toda a gente que encontrou. Nem servos achou.
Sabia que havia muito pouca gente, em comparação com a quantidade que Dalereuth podia
abrigar. Era assim que as Torres fechadas pareciam, tão silenciosas e tenebrosas? Se entrasse
numa, será que experimentaria a mesma sensação de ser observada, muito embora soubesse
que não havia mais ninguém ali?
Após um tempo Leonie encontrou uma sala deserta cheia de instrumentos musicais. Até
que enfim – uma ocupação para mãos adultas! Leonie pegou uma rryl de jacarandá entalhada e
envernizada, acariciando as cordas metálicas. Após um instante, começou a tocar uma antiga
balada popular, improvisando notas e harmonias. Enquanto tocava, o seu nervosismo se
dissipou e ela entrou num tipo de transe. Quando Fiora entrou, horas mais tarde, Leonie se
deu conta, perplexa, que o dia avançara tanto que o sol pendia baixo, penetrando nas nuvens,
brilhando enorme e vermelho. Teve um sobressalto ao notar que Fiora, aparentemente, a
observava com toda a atenção.
– Não sabia que você tocava tão bem – disse Fiora e Leonie surpreendeu-se com a
admiração em sua voz. Pensava que nada impressionava a Guardiã. Pena que era algo tão sem
importância como música. – Onde aprendeu?
– Tive os melhores professores de música desde bem pequena – respondeu Leonie
mexendo os ombros. – Era parte da minha educação, e preferia a música ao invés daquele
bordado tedioso.
– Faz ideia de como é afortunada? – indagou Fiora com uma insinuação de inveja. – Meu
pai era pobre, de modo que eu não recebi tal educação até vir para a Torre. E educação musical
jamais pode ser aprendida adequadamente tão tardiamente. Mesmo se praticasse o dia inteiro,
eu provavelmente nunca seria tão boa quanto você, mesmo se vivesse até os cem anos.
– Imagino que não – murmurou Leonie, surpresa. – Nunca pensei nisso. Gostava de
aprender músicas novas, mas costumava me esquivar à professora por que não queria praticar.
Costumava dizer que não havia nada que ela pudesse me obrigar a fazer se eu não quisesse.
Fiora sorriu levemente.
– É muito fácil acreditar nisso.
Leonie quase soltou uma risada, mas reprimiu-a no último instante.
– Mas não demorou para eu aprender a amar a música por si mesma, por isso passei a
praticar o suficiente para satisfazê-la... embora eu nunca sequer terminasse a primeira lição.
Acho que ainda está na minha cesta de trabalhos, se as traças ainda não a comeram.
– Sim, imagino que seria muito difícil obrigá-la a fazer uma coisa que você não quisesse.
Talvez devêssemos nos sentir felizes por que você deseja esse treinamento tão ardorosamente.
Leonie empinou o queixo arrogantemente.
– Isso sempre foi uma conclusão inevitável. Sabia desde criança que, mais cedo ou mais
tarde, iria para uma Torre. Tenho um laran poderoso, que requeria treinamento; tratava-se
apenas de uma questão de para qual Torre iria.
Do jeito que Leonie falou quase parecia que ela é quem tinha feito a decisão, não as
Guardiãs das Torres ainda funcionais. Como se fosse uma honra para a Torre ter a sua
presença, não como se ela é que tivesse recebido uma honra ao ser aceita. Fiora hesitou. Era
uma nova sensação para ela sentir-se pequena e insignificante; mas achava que com uma filha
dos Hasturs sob a sua responsabilidade teria de se habituar a isso. Ao final, dizendo a si mesma
que como Guardiã de Dalereuth não precisava se sentir inferior a ninguém, e certamente não a
esta presunçosa filha do Comyn, ela perguntou:
– Você nunca considerou o casamento, como muitas meninas?
– Nunca – disse Leonie com firmeza. – Nem mesmo quando era bem pequena. Sempre
soube que podia casar com quem quisesse, mas não houve ninguém. Para mim não havia
ninguém que pudesse estar à altura de meu próprio irmão-gêmeo de qualquer maneira; de
modo que quem quer que escolhesse, se eu escolhesse, seria, é claro, meu inferior. Eu não
queria casar com ninguém que não fosse meu igual, portanto vim para cá. – Leonie não
mencionou a proposta do Rei; embora a posição social não tivesse influenciado a decisão neste
caso, havia outras considerações envolvidas. Considerações pessoais, que não eram da conta de
Fiora.
– Imagino – murmurou Fiora, só um pouco irônica –, que neste caso os afortunados somos
nós. – De uma forma estranha, ela falava sério; se Leonie tivesse tomado uma decisão
contrária, uma telepata extremamente poderosa poderia acabar sem treinamento, e um dos
mais antigos provérbios nos Domínios era que uma telepata destreinada constituía uma ameaça
a si mesma e a todos à sua volta. Dorilys, a Rainha da Tempestade, era apenas um entre as
centenas de exemplos de com que facilidade esse provérbio se comprovava verdadeiro.
Leonie preferiu interpretar a declaração de outra maneira.
– Creio que eu é que sou afortunada, por você me dar um lugar aqui – ela disse com uma
inflexão muito mais irônica que a de Fiora. – A princípio eu pretendia ir para Arilinn... para
onde vai a maioria das filhas do Comyn.
O seu tom não dava margem a uma interpretação errada: devia ter ido para Arilinn. Ainda se
ressentia do fato de não ter obtido lugar naquela Torre. Era óbvio que Dalereuth, em
comparação, não passava de um prêmio de consolação.
– Sim – disse Fiora após um momento –, quando ouvimos a seu respeito, e que seria
treinada como uma leronis, imaginamos que escolheria ir para Arilinn. – Fiora percebeu
imediatamente como suas palavras podiam ser interpretadas erroneamente... como Leonie
parecia estar deliberadamente determinada a fazer... e apressou-se em continuar.
“Não pretendo dizer com isso” ela disse inclinando um pouco a cabeça para o lado “que
não estamos contentes com sua presença. Mas, havia dois de vocês para treinar. A história é
diferente, quando irmãos precisam de treinamento ao mesmo tempo”.
Ela hesitou. Era tradicional separar as pessoas em treinamento de suas famílias, mas Fiora
duvidava que Leonie pudesse ser separada com sucesso de alguém de quem ela não quisesse
ser separada. Sem dúvida o laço entre ela e o irmão gêmeo seria difícil de desfazer, mesmo com
a total cooperação da parte de Leonie – coisa que provavelmente não aconteceria – e a enorme
distância física entre Dalereuth e Arilinn. De uma maneira ou de outra, treiná-la se provaria um
enorme problema, com a dificuldade adicional da arrogância da menina. Contudo, o
treinamento adequado dessa criança presunçosa constituiria um crédito considerável para
Fiora... ou para qualquer Guardiã que pudesse empreender tal feito. De uma coisa não restava
dúvida: o considerável talento da menina. Leonie se tornaria uma leronis excepcional.
Mesmo agora, a criança sentava brincando com a harpa como se a conversa tivesse
terminado, e a presença de Fiora não tivesse a menor importância. Embora nunca houvesse se
encontrado nesta situação antes, a Guardiã pensou ironicamente que conhecia uma dispensa
real quando via uma! Fiora considerou os problemas que Leonie representava durante vários
minutos, enquanto Leonie desafinava a ryll preguiçosamente, e decidiu ser completamente, até
brutalmente, honesta. Talvez isso abalasse a confiança de Leonie o suficiente para que ela
pudesse – apenas possivelmente – dar ouvidos às opiniões e desejos de outra pessoa que não
ela mesma.
Fiora respirou para se preparar e tranquilizar, e disse:
– É claro que você será um grande crédito para todos nós se puder ser treinada
adequadamente. – Fiora fez uma pausa a fim de se assegurar de que tinha a total atenção de
Leonie –, mas eu não tenho certeza absoluta de que você pode ser treinada adequadamente. –
Como Leonie perdesse a fala, ela acrescentou: – E creio que qualquer outra Guardiã nos
Domínios lhe diria a mesma coisa. Talvez por isso você tenha sido enviada para cá, onde só
teríamos mais duas meninas em treinamento, a fim de passarmos mais tempo nos ocupando de
você.
Leonie, perplexa, fitou a Guardiã. Fiora não tinha certeza se ela poderia ser treinada?
Ninguém jamais expressara reservas quanto à sua habilidade como leronis antes! Fiora
mostrava-se totalmente séria, e extremamente tranquila, como se se tratasse de uma coisa
normal.
Talvez... talvez fosse. O pensamento era assustador. Talvez ela tivesse sido exilada na
tranquila Dalereuth por que Arilinn a considerava muito perigosa! Leonie podia perceber
mentiras com a maior facilidade – e Fiora não estava mentindo, nem exagerando para assustar
Leonie. Ela falava com absoluta seriedade.
Mas Leonie estava determinada a não ser assustada ou intimidada; perguntou, cautelosa:
– Mas por quê?
Os olhos sobrenaturais pareciam observá-la fixamente.
– Por causa do seu orgulho, Leonie. Por que você tem tanta certeza da sua importância no
mundo, e de que nada que deseje jamais lhe será negado. Posso garantir que você tem um
enorme potencial, e é bem possível que tenha o dom de Hastur. Mas o treinamento em uma
Torre, especialmente o treinamento para ser uma Guardiã, o que você afirma aspirar, é longo e
árduo. E tedioso. Você precisará sacrificar muita coisa, e o sucesso jamais é garantido. – Ela
suspirou, e Leonie se mexeu, desconfortável. – Eu não sei se você tem capacidade para
suportar isso. Nunca precisou sacrificar coisa alguma; não sei se você é capaz de auto-sacrifício
na medida necessária. Como você mesma disse, nunca fez nada que não quisesse fazer, nunca
tentou nada arriscado, e nunca fracassou em nada. Talvez sua falta de fracassos se deva menos
às suas habilidades, e mais ao fato de que jamais tentará fazer coisas que não são fáceis para
você, e abandonará qualquer coisa que ache tediosa.
Leonie fez menção de abrir a boca para protestar, mas tornou a fechá-la quando percebeu
que, por mais cruéis que estas palavras fossem, também eram totalmente verdadeiras. Ela
sentiu-se ainda mais constrangida; Fiora parecia ser capaz de ver através dela de uma maneira
que ninguém jamais fizera – exceto, algumas vezes, Lorill – e parecia que o que Fiora
descobrira no cerne de sua alma não a agradava muito, e fosse bastante insignificante.
Fiora prosseguiu, com toda a calma, como se estivesse totalmente inconsciente da
inquietação que estava provocando na sua mais nova pupila.
– Você jamais sequer começou a testar os limites de sua capacidade em coisa alguma. Este
treinamento aqui pode ser a sua primeira experiência de fracasso, e eu não sei como você
suportará isso. Nem um pouco bem, eu desconfio.
Leonie pestanejou ligeiramente, abalada e profundamente desencorajada. Era uma
experiência completamente inédita para ela, e que não gostava nem um pouco.
– Quer dizer que você acha que vou fracassar, Fiora? Ou desistir logo que o aprendizado se
tornar difícil?
Fiora mexeu os ombros ligeiramente, como se isso não tivesse muita importância para ela.
– Ninguém jamais pode saber o que esperar de você. Mas posso dizer que, não importa o
quão seu Dom seja forte, seu sucesso não é certo. Nunca saberá se terá sucesso a menos que se
mostre disposta a ultrapassar os limites de seu corpo e mente, a arriscar o fracasso; e eu não sei
por que teria a disposição para fazer isso quando jamais o fez antes. E quando, com o simples
expediente de atravessar os portões da Torre, você poderia ter todas as coisas de que abriu
mão: servos, coisas bonitas, posição, prestígio, admiração, e uma multidão de bajuladores
lambendo seus pés.
Estas palavras doeram mais do que qualquer tapa físico.
– Há algum meio de assegurar o meu sucesso? – Leonie perguntou um pouco desesperada.
– Não com absoluta certeza – disse Fiora, e riu, como se tivesse achado a maior graça na
pergunta. – Ninguém pode fazer isso. Está querendo uma forma para trapacear, ou uma
resposta simples? Os dez passos simples para se tornar uma Guardiã? As respostas rápidas e
corretas, prontinhas?
Leonie abaixou a cabeça e mordeu o lábio. Evidentemente, era exatamente isso o que estava
esperando quando deixou escapar essa pergunta idiota. Agora queria ter ficado calada.
Fiora percebeu uma hesitação, e tratou de aproveitar a vantagem.
– Acho que se você estiver disposta a se esforçar, possui potencial para realizar quase
qualquer coisa. Mas você tem de querer o bastante, o bastante para assumir uma disposição
esforçada e diligente – ela estipulou. – O que eu não sei é se você possui a capacidade para
fazer isso, especialmente quando o aprendizado se tornar tedioso e exigir tanto quanto precisa
ser sacrificado. Você sabe por que as Guardiãs se vestem em roupas vermelhas?
Leonie balançou a cabeça, calada, surpreendida pela pergunta estranha, e esquecendo
momentaneamente que Fiora não podia vê-la.
– Não é para identificá-las como pessoas especiais – disse Fiora, como se tivesse visto o
gesto. – Nem para identificá-las para obter respeito. É para identificá-las como perigosas,
Leonie. É perigoso, mortalmente perigoso, tocar uma Guardiã no círculo. Dê uma olhada
nisso...
Ela estendeu as mãos pálidas, que pela primeira vez Leonie percebia que estavam cheias de
minúsculas cicatrizes, como marcas de queimadura, como se Fiora tivesse sido queimada por
uma chuva de fagulhas.
– É tão perigoso para as outras pessoas que uma Guardiã é treinada de modo a jamais
permitir qualquer contato, dentro ou fora do círculo. E é assim que somos treinadas. Através da
dor, Leonie. Duvido que você tenha experimentado muita dor na sua vida. Não tenho certeza
se pode suportar mesmo um pouco de dor. E isso não passa de uma parte insignificante do
treinamento, o menor dos sacrifícios.
Leonie refletiu a respeito; em todos os seus sonhos, só pensara no poder que uma Guardiã
possuía, jamais no preço para alcançar tal poder. Seu pai tinha dito, mais de uma vez, que um
grande poder implica um sacrifício equivalente, e ela nunca soubera o verdadeiro significado
dessas palavras. Agora conhecia um pouco – só um pouco – e, pela primeira vez, ocorria a ela
especular como seus sonhos tinham sido falsos. Nos sonhos jamais havia nada para se renunciar.
Quanta coisa as outras Guardiãs tinham sacrificado pelo poder? E por que haveriam de
fazer isso? Finalmente, Leonie disse:
– Conte-me como veio para a Torre, Fiora.
Fiora não tinha efetivamente bisbilhotado os pensamentos da menina – sem convite, isso
constituía uma grosseria – mas certas coisas tinham transparecido, e muita coisa podia ser
deduzida a partir disso. Leonie estava pensando, ao invés de pressupondo. Era um começo, de
modo que ela disse com calma:
– Fui concebida em festival. Minha mãe, que era muito jovem, foi casada com um pequeno
fazendeiro do vale. Quando tinha mais ou menos cinco anos, tive uma doença que prejudicou
a minha visão, e eles souberam que mais cedo ou mais tarde ficaria cega. Meu pai quis me casar
rapidamente, a fim de que meu futuro marido não soubesse a péssima barganha que estava
fazendo, mas a irmã de minha mãe contou a uma leronis sobre minha doença e minha
semelhança ao Comyn. Ela pensou em me testar pelo laran. Eu era dotada, por isso vim para
cá. Era dotada o suficiente, paciente o suficiente, e tinha disposição suficiente para suportar,
por isso eventualmente me tornei Guardiã.
– Você só veio para cá como uma segunda opção? – disse Leonie, com evidente surpresa. –
Achava que qualquer uma que escolhesse ser uma leronis quereria isso acima de todas as coisas.
– É verdade, a princípio era apenas uma segunda escolha. Mas, depois de passar um tempo
aqui, passei a perceber como minha vida teria sido inútil e insignificante se tivesse sido de outra
forma. Eu não teria passado de uma mulher igual minha mãe, produzindo criança atrás de
criança, trabalhando em casa e no campo, e se fosse muito, mas muito afortunada, teria um
marido que escolhesse ser gentil comigo. Enquanto que uma leronis tem poder para fazer muito
bem... curar, trazer um tempo adequado, fornecer proteção contra incêndios e tempestades. Vi
que, se houvessem me oferecido uma escolha eu teria escolhido isso. Acima de qualquer coisa.
– Assentiu com a cabeça e continuou. – Mas pouca gente tem o luxo de escolher. Agora, eu
não modificaria minha vida nem para ser Rainha nos Domínios, mas são poucas as mulheres,
mesmo entre o Comyn, que não se veem tão obrigadas pelas vontades de suas famílias como
eu pela de meu pai.
Leonie mordeu os lábios com as palavras escolhidas por Fiora. Ela não teria modificado sua
vida para ser Rainha? Ela disse, em voz baixa:
– Eu acho – não, eu sei, ela pensou, recordando que tivera essa escolha e a rejeitara –, que
também não teria modificado uma vida assim para ser Rainha.
– Então você é afortunada – disse Fiora. – É uma daquelas a quem foi concedido o luxo de
escolher, e a escolha foi a de perseguir seus sonhos. A questão é, se o sonho se revelar o gume
de uma adaga, ainda terá coragem e vontade, não só para persegui-lo, mas para preservá-lo e
mantê-lo? Se for assim creio que posso sinceramente dizer que, se você o quiser acima de todas
as coisas, haverá muito pouco que não poderá fazer.
– Acha mesmo isso? – perguntou Leonie, olhando para o rosto de Fiora em busca de uma
segurança e boa-vontade que subitamente desejava como jamais acontecera antes.
Fiora confirmou com a cabeça, com firmeza.
– Acho, sim.
– Eu quero – disse Leonie bem baixinho – e arriscaria qualquer coisa por isso. Mesmo...
como você disse... o fracasso. – Ela deu um sorriso trêmulo, esquecendo novamente que Fiora
não podia enxergar. – Eu tentarei não pensar no fracasso, mas estou disposta a arriscar. Mais do
que isso – se eu fracassar, estou disposta a tentar quantas vezes for necessário para ter sucesso.
– Se assumir essa disposição – disse Fiora também sorrindo. – Eu não acho que precise
temer o fracasso. Você certamente o experimentará... como acontece com toda Guardiã, no
processo de aprendizado... mas não precisa temê-lo.
– Obrigada, vai leronis – disse Leonie, com uma humildade dolorosa.
Ao se virar para ir embora, Fiora perguntou:
– Quer dizer que foi você quem nos deu essa chuva?
Leonie mordeu o lábio; a pergunta teria provocado um ataque de raiva de sua parte uma
hora atrás.
– Eu não deveria tê-lo feito, pelas suas regras?
– Tenho a esperança de que venha um dia em que você mesma poderá responder essa
pergunta – Fiora disse quase aos risos –, mas, quando esse dia vier, será a única pessoa a quem
precisará responder por seus atos. E acho que se descobrirá uma mestra mais severa do que eu.
– Ela tornou a rir, uma risada de verdade desta vez, e disse: – Também é provável que
ninguém – isto é, ninguém mais – acredite se você afirmar tê-lo feito. Talvez nem mesmo
outra Guardiã. De maneira que, para todos os efeitos, começamos a partir deste momento,
Leonie.
Leonie respirou profundamente quando Fiora saiu da sala. Seu nervosismo e a sensação de
pressentimento tornaram a assediá-la, e após um instante esqueceu qualquer intenção de
voltar-se para a rryl que abandonara.
Já era tarde da noite; os últimos traços de vermelho tinham sumido do céu, e a chuva
noturna começara a cair com lentidão e firmeza; totalmente diferente da violenta tempestade
elétrica que Leonie tinha provocado. A despeito do som lúgubre da chuva pingando nas folhas,
no telhado e nas poças, Leonie não tinha vontade de se intrometer no tempo. Não era a chuva
o que a perturbava.
Não tinha nenhuma sensação de que qualquer coisa na chuva, ou qualquer coisa no tempo,
por falar nisso, a perturbava; a sensação de perturbação encon-trava-se centralizada em outro
lugar.
Depois de um tempo Leonie subiu para o quarto que lhe fora designado, uma câmara
espaçosa e arejada no terceiro andar. Comparado com seus aposentos no Castelo Hastur, ou
sua seção na suíte dos aposentos dos Hasturs em Thendara, era um quarto vazio e modesto;
mas a novidade de estar em um lugar totalmente novo ainda não terminara. Além do mais,
caso se cansasse do jeito que estava, podia mobiliar mais tarde quando quisesse. Fantasiou um
pouco como iria mobiliá-la, procurando distrair-se da conversa sóbria com Fiora e da
inquietação que ainda a perseguia.
Talvez devesse decorar seus aposentos com cortinas de seda vermelha? Não, haveria
vermelho o suficiente em sua vida se se tornasse uma Guardiã, e naquele momento estava
decidida a não se contentar com nada menos. Talvez uma azul e verde que tinha visto nos
mercados quando passaram por Temora. Era uma cor que ela nunca tinha visto antes, um
triunfo verdadeiro da arte da tecelagem, e isso traria certa leveza para os quartos, uma sensação
de viver no céu.
A Torre dormia à sua volta. Estava ciente das menininhas dormindo, de um vigia solitário
nos transmissores que transmitiam mensagens através da face do planeta, de Domínio para
Domínio, num piscar de olhos. Era bem improvável que alguma mensagem fosse recebida a
esta hora, mas mesmo assim sempre devia haver um trabalhador de prontidão a qualquer
momento, no caso de alguma emergência. Estava consciente de Fiora se preparando para
dormir, enquanto atravessava sua escuridão eterna. Como devia ser estranho jamais diferenciar
o dia da noite, exceto pelas ações dos outros...
Leonie descobriu-se ciente, enquanto contemplava a Guardiã, de que tinha feito uma amiga.
Não era um pensamento desagradável, que ela tinha feito uma amiga quando a princípio só
existira hostilidade. Fiora agora se encontrava ao seu lado... e embora pudesse encontrar
dificuldades para alcançar seu objetivo, Fiora não acrescentaria mais dificuldades.
Ela deitou, induzindo-se a um leve transe ao invés de se preparar para dormir. Estava
ansiosa para saber a causa do seu pressentimento, e descobriu-se a explorá-lo, procurando
sentir a direção de onde vinha, do mesmo jeito que conseguia sentir as mudanças no tempo.
Podia ver, enquanto projetava-se para o mundo superior, os padrões climáticos que conhecia
tão bem quanto as cordas da rryl e o que eles fariam; analisou-os, quase automaticamente,
como fizera toda a sua vida. Mas a fonte da sua inquietude não tinha nada a ver com o tempo.
Sentiu uma tempestade, normal para esta época do ano; alguém seria surpreendido no meio
dela, mas isso não constituía nenhuma novidade. Pessoas se viam em tempestades o tempo
todo, e estavam preparadas para cuidar da situação. Mesmo em Dalereuth, ninguém se
preocupava com o destino de um pastor, ou coisa parecida, que não podia prever o tempo.
Nenhum pastor sobrevi-veria muito tempo sem fazer provisões para o caso disso acontecer,
em várias tempestades durante o ano.
Ela prosseguiu, viajando com a velocidade do pensamento, inconsciente de localização,
ficando um pouco desorientada. Depois de um tempo, como a desorientação não passasse,
considerou retornar ao seu corpo; estava começando a se sentir cansada. Então, sem nenhuma
sensação de intervalo, Leonie tomou conhecimento de uma mulher.
Ou melhor, da percepção de uma mulher. Leonie não podia vê-la; neste nível a visão não
significava nada. Era a música em volta dela que provocara o contato. Leonie estava
acostumada a pensar em termos musicais, e a princípio tomou conhecimento do instrumento
que a mulher segurava nas mãos. Tratava-se de uma flauta... ou pelo menos parecia uma
flauta... mas produzia um som diferente de qualquer flauta que Leonie jamais ouvira; pois o
som era de baixo; profundo e rico, um timbre de baixo, mas inequivocavelmente o som e a
sensação de uma flauta.
A música atraiu-a e prendeu a sua atenção... embora, em um nível mais profundo, Leonie
soubesse que não tinha sido presa, mais sim intrigada, e que poderia afastar-se quando quisesse.
Mas, naquele momento, não sentia a menor vontade de fazer isso.
Seguiu a trama da música, enquanto suas teias de melodia projetavam-se através da
escuridão, encantada pelo som incomum, sentindo a vibração curiosa através de uma
percepção até então inexplorada, vinculada com a música desconhecida.
Uma mulher, lembrou a si mesma. Sabia disso sem a menor dúvida, através de certa curiosa
empatia, que se tratava de uma mulher, mas o instrumento que a deixava tão fascinada era um
que ela nunca tinha tocado, nem sonhado em tocar.
Leonie se perdeu naquele som... era tão fácil limitar-se a escutar, e deixar-se levar...

Percebeu que passara do transe para um sono verdadeiro, pois quando abriu os olhos a
chuva terminara, e os desenhos nas paredes da câmara formados pela luz da lua davam ao
quarto uma aparência estranha e sobrenatural e a meia-noite – percebia pelo ângulo das três
luas visíveis através da janela – passara fazia muito tempo. O som da flauta desaparecera,
mesmo da sua mente; talvez tenha sido sua ausência o que a despertara. Será que tinha sido um
sonho? Não, pois a lembrança da flauta estranhamente alterada não tinha sido sonho, fora tão
substancial quanto qualquer som que ela jamais ouvira. Seria capaz de tocar o instrumento,
recriar as melodias desconhecidas... se ao menos ele estivesse ali. Mas não conseguia se
lembrar.
7

O transportador continuava em trajetória descendente, e Ysaye ainda tentava entender o


que ela fazia a bordo. Ainda não estava certa de como acontecera. Agora que haviam penetrado
na atmosfera superior as janelas se encontravam cobertas com uma película de gelo, de forma
que não dava para ver muita coisa.
Mas seguramente havia mais que o suficiente para sentir. Ysaye descobriu-se a especular se
tamanha turbulência era normal; estava presa com força à cadeira, mas o pequeno veículo era
arremessado para todos os lados pelos ventos inesperadamente fortes, e ela sentia-se grata por
Ralph MacAran, o segundo oficial, nos controles do transporte, ser o melhor piloto de
atmosfera que tinham. A julgar pelas expressões do restante da tripulação dessa primeira
aterrissagem, não era a única. A atmosfera no planeta estava lhes dando uma introdução
bastante feia do clima.
– Isso é... normal? – ela indagou afinal, debruçando-se para que MacAran a escutasse.
– Bom... sinceramente, não. O tempo está tremendamente ruim, e provavelmente ainda não
passamos pelo pior. Mas, com todas essas montanhas, nunca esperamos nos deparar com uma
aprazível estação de veraneio – disse o rapaz nos controles.
Ysaye esperava que ele estivesse tão confiante quanto parecia. Como segundo oficial (o
capitão não podia deixar a nave, nem o primeiro oficial), o comandante MacAran era o
superior hierárquico, e se ocorresse uma emergência, ele estaria no comando do destacamento.
Mais jovem que a maioria de seus “encarregados”, tratava-se de um jovem robusto, com vinte
e poucos anos. Tinha a compleição de um lutador profissional, e cabelos louros grossos e
encaracolados. Em condições normais, jamais sequer passaria pela cabeça de Ysaye questionar
sua competência e experiência. Agora, entretanto, ele parecia terrivelmente jovem...
E mais jovem e menos confiante com o passar dos instantes.
– Deus do céu – ele murmurou, lutando com os controles. – Eu achava que os mapas
meteorológicos demonstravam que esta era uma zona relativamente calma! As correntes de
vento são um verdadeiro inferno. Segurem firme, todo mundo!
O transportador deu um desvio brusco, depois caiu como uma pedra, anulando a gravidade
e precipitando todos contra os cintos de segurança. O rosto pálido e os dentes cerrados de
Elizabeth demonstravam medo, e alguém soltou um grito abafado atrás de Ysaye.
Quando o transportador firmou por um momento, Ysaye verificou para se certificar de que
os cintos ainda estavam bem fixos. Todos sabiam que a primeira aterrissagem era o momento
mais perigoso em um novo planeta, com todas as coisas desconhecidas e estranhas. Mesmo
quando se chegava ao solo, a única garantia era que nada era garantido. Era possível, por
exemplo, aterrissar em um mundo inexplorado de carnívoros – sáurios gigantes, talvez – que
achariam que eles pareciam perfeitos para um aperitivo. Por outro lado, era possível, de acordo
com um boato que circulava no Império, aterrissar em uma raça quase microscópica de seres
liliputianos e devastar uma cidade inteira das criaturinhas. Ysaye não tinha certeza absoluta de
qual era a origem dessa história, mas desconfiava que algum estudante dos primórdios da
literatura da Era Atômica, com inclinações para pregar peças, andara escavando os anais das
histórias de ficção científica baratas. Era uma história muito parecida com um boato que
circulara anteriormente, sobre um gigante que surgira em um dos planetas colonizados,
diminuindo continuamente, afirmando que era vítima de uma experiência que dera errado, e
que a nossa galáxia não passava de uma molécula no seu universo, com as estrelas constituindo
o núcleo dos átomos dessa molécula. O gigante supostamente diminuíra ao tamanho humano,
depois para o de um rato, depois para o de uma bactéria, antes de desaparecer por completo.
Essa história tinha até aparecido nos noticiários antes da investigação chegar a um inventivo
estudante graduado na universidade New Duke.
O transportador desviou e desceu novamente, depois deu uma guinada alarmante antes de
MacAran poder recuperar o controle. Sua boca estava franzida, e Ysaye pensou que ele não
estava em condições de responder nenhuma outra pergunta naquele momento. Tentou dizer a
si mesma que o tempo ruim e outros perigos físicos de uma aterrissagem, entre todas as coisas,
constituíam suas menores preocupações, visto que eram coisas antecipáveis. Sempre
embarcavam cientistas nas primeiras naves de contato, pessoas treinadas para antecipar
emergências e improvisar soluções para qualquer problema.
Suas tentativas de se consolar não adiantaram. Ysaye era a única das sete pessoas a bordo
que não tinha nenhuma experiência direta em novos planetas. Ainda não compreendia direito
por que tinha sido designada para aquele time. O restante era óbvio: MacAran para navegação
e devido às suas habilidades de comando, o comandante Britton para coordenar o
recolhimento de informações científicas, o tenente Evans para xenobotânica, a Dra. Aurora
Lakshman para xenobiologia (e como médica para cuidar de alguém da equipe de pesquisa que
ficasse ferido ou doente), e Elizabeth e David tanto pelas suas capacidades técnicas quanto
pelo histórico de linguística e antropologia. A despeito das pré-cauções, eles poderiam acabar
encontrando alguns dos habitantes locais, muito embora não fosse esse o propósito da
primeira missão.
Todos aqueles especialistas – então que ela estava fazendo ali? Não possuía nenhuma
habilidade que pudesse substituir ou mesmo ser acrescentada à de ninguém. Só entendia de
computadores – e naquele momento, ela queria estar de novo entre eles...
Ysaye procurou se convencer a não se preocupar; não havia nenhuma razão racional para
ficar nervosa, mesmo sendo uma experiência nova para ela. Devia existir uma razão para ter
sido incluída; talvez algum dos outros tivesse um equipamento específico computadorizado,
que ele ou ela simplesmente ainda não compreendesse por completo – embora, se fosse esse o
caso, Ysaye não deveria ter sido informada de antemão, a fim de poder dar uma olhada no
aparelho e descobrir alguma coisa a seu respeito primeiro? Certamente não esperavam que
ativasse e executasse equipamentos complicados – intuitivamente!
Ela olhou através do corredor para Elizabeth, que esfregava a janela coberta de gelo, como
se estivesse ansiosa para olhar o novo mundo. Agora MacAran tinha o transportador sob
melhor controle; fazia pelo menos cinco minutos que não ocorria nenhuma queda alarmante.
Muito embora o transportador ainda estivesse estremecendo e deslizando para o lado...
Aquele planeta quase seguramente seria o lar de Elizabeth durante muitos anos – a menos
que os nativos fossem tão primitivos que as autoridades do Império achassem melhor
classificar o planeta como Fechado, ela e David ficariam para trás quando a nave partisse,
fazendo registros de linguística e antropologia para o Império. Se o novo planeta fosse
classificado completamente Aberto para comércio, ainda mais pessoas permaneceriam. Alguém
da nave seria designado coordenador temporário; estabeleceriam um enclave terráqueo, e
Elizabeth e David certamente se casariam ali. Afinal, fazia mais de um ano que eles estavam à
espera de um planeta onde pudessem se fixar e formar uma família.
Ysaye fitou o céu cor de lavanda e a linha irregular do panorama montanhoso, parcialmente
visíveis através da camada de gelo. Sentia-se agradecida de não ser ela a responsável por voar
por sobre elas. Sabia o suficiente de aviação para perceber que esse tipo de terreno era
extremamente perigoso. Terreno. Uma palavra estranha para descrever a área abaixo, que não
parecia absolutamente terrestre. Estar próxima de David, que era um grande especialista em
linguísticas, a tornara sensível a tais nuanças.
Por um momento, sentiu um instante de... tristeza premonitória. Se este era o planeta que
Elizabeth e David esperavam, eles ficariam aqui, e ela, como parte da tripulação, iria embora.
Nunca mais os veria novamente...
E mesmo se este não fosse o mundo “deles”, haveria mudanças. Era inevitável. As coisas
que experimentariam no solo do novo planeta modificariam os seus amigos, e talvez mesmo a
própria Ysaye, se ela passasse muito tempo na superfície do planeta. Ninguém escapava
inteiramente desse tipo de determinismo.
E ao mesmo tempo, a permanência deles ali modificaria o planeta e seu povo; iam trazer
um pouco da sua humanidade para cá, não importa o quanto tentassem não afetar o que
encontrassem. Os seres humanos faziam isso; tratava-se de parte da sua herança. Os seres
humanos modificavam o que os cercava, intencionalmente ou não. Havia uma moda
recorrente na humanidade de afirmar que “biologia não é destino”. A refutação padrão de
Ysaye era “mostre-me um leão vegetariano”. Qualquer um que acreditasse seriamente que
homens e mulheres não eram, para dizer o mínimo, um agrupamento de impulsos biológicos,
estava somente implorando para ser questionado. Claro que havia muito mais envolvido; mas
era esse o ponto essencial.
As perambulações filosóficas de Ysaye tinham-na tranquilizado tão eficientemente que ela
foi pega completamente de surpresa quando MacAran atingiu outra onda de turbulência.
Correntes de vento transversais – Ysaye achava que era isso o que o piloto dissera que os
atingira mais cedo – tornaram a golpeá-los, e a pequena nave mergulhou como uma pedra,
depois empinou freneticamente. Ysaye percebeu os olhos de Elizabeth através do corredor e
viu que a boca da amiga estava mais uma vez franzida numa careta, o rosto pálido, enquanto
segurava convulsivamente os braços do assento. Ysaye disse a si mesma, severamente, para não
entrar em pânico. Seguramente isso não duraria o caminho de descida inteiro. Não era o
primeiro planeta de Elizabeth; ela e David estiveram em quatro outros antes, mas haviam sido
planetas rochosos com pouca ou nenhuma atmosfera, de maneira que Ysaye achava que
Elizabeth também não estava acostumada a esse tipo de aterrissagem. Não fazia sentido entrar
em pânico devido à reação de Elizabeth; nesta parte da viagem, ela era tão principiante quanto
Ysaye.
– As coisas vão piorar antes de melhorar – avisou MacAran em tom carrancudo. – O vento
está soprando na direção da calota polar, sem nada para inter-rompê-lo. Quando atingir essas
montanhas, vamos receber de voltas essas lufadas, contracorrentes, e ventos transversais. – Ele
deu um grunhido quando outra guinada e mergulho precipitaram-no contra os cintos. – Talvez
devêssemos ter tentado descer no deserto ao norte daqui; nossas câmeras são boas o suficiente
para evitar qualquer civilização.
– Então por que não fizemos isso? – perguntou Evans. Ysaye sentiu vontade de estrangulá-
lo. Ali estavam, lutando para permanecer no ar, e o idiota estava querendo começar uma
discussão!
– As informações do satélite indicavam este lugar como um ponto de aterrissagem primário.
O planalto que esperávamos certamente parece melhor do espaço do que daqui! – Dessa vez o
que o interrompeu foi um giro para a direita, e ele lutou para colocar o transportador de volta
no curso certo. Quando ele recomeçou a falar, Ysaye teve a impressão de que estava
balbuciando a primeira coisa que lhe ocorria. Com o propósito de acalmar e reassegurar seus
passageiros?
Se é esse o caso, ela pensou, eu não me sinto segura!
– Não estou surpreso por não vermos nenhum traço de aviação; qualquer um que tentasse
construir uma aeronave primitiva neste lugar... – ele parou e lutou por um momento com os
controles. – Não, se o clima é assim o tempo todo, eu não esperaria que a aviação fosse uma
ciência que eles desenvolvessem muito cedo. Talvez nas planícies ao sul, mas não aqui nas
montanhas.
– Mas podemos aterrissar aqui – disse o comandante Britton. Pareceu uma pergunta para
Ysaye, muito embora não tivesse sido formulada dessa maneira; ela especulou, será que o
comandante estava prestes a ordenar para MacAran parar e voltar para a nave?
– Estou fazendo o melhor que posso – disse MacAran –, mas esse lugar alcançou um novo
patamar para péssimas condições de voo.
Isso não pareceu bom para Ysaye.
– Eu ficarei contente quando chegarmos ao solo – murmurou o comandante.
Se chegarmos ao solo, pensou Ysaye. Subitamente ela se deu conta de que seus temores não
eram infundados, nem exagerados; ele estava examinando todas as possibilidades para tirá-los
de um perigo mortal. Engoliu em seco, mas o nó na sua garganta não passou, e a sua boca
estava muito seca. O comportamento dele deixava bem evidente que a situação era muito mais
perigosa do que parecia a bordo da nave.
Não era isso o que eu tinha em mente quando entrei para o Serviço Espacial.
Alguns momentos atrás tinham mergulhado em nuvens, espessas e aparentemente
intermináveis; agora, conforme a nave girava e guinava como uma montanha russa de um
parque de diversões, atravessaram as nuvens, e Ysaye contemplou um interminável panorama
de árvores sempre-verdes de alguma espécie, demarcadas com cicatrizes escuras de antigos
incêndios. Conforme continuavam a descer, sempre guinando e desviando-se do curso, Ysaye
notou que MacAran procurava desesperadamente algum terreno bastante plano para aterrissar
o transportador. Ela sabia que aeronaves de atmosfera eram normalmente aterrissadas a favor
do vento, mas não eram feitas para voar com uma ventania dessas. E como se não bastasse o
vento, um instante depois o panorama abaixo foi obscurecido por uma mortalha de neve tão
espessa quanto foram as nuvens.
Só podia esperar que os instrumentos de MacAran estivessem funcionando, e funcionando
bem.
A análise para o melhor terreno para aterrissagem tinha que ser equilibrada contra a força
remanescente do transporte; se ele demorasse muito, não haveria força restante para aterrissar.
E uma aterrissagem sem potência suficiente, aqui, agora...
Equilibre isso contra os perigos da área de aterrissagem – que não parecia muito boa
quando Ysaye a vislumbrara.
A neve diminuiu por um momento; Ysaye suspendeu o pescoço, ignorando o modo como
o transportador estava precipitando-a contra os cintos de segurança, e deu uma rápida olhada
no visor infravermelho/ultravioleta aprimorado; ele, pelo menos, não tinha sido afetado pela
neve. E era evidente que havia calor ambiente suficiente para a análise do infravermelho
funcionar.
– Depois das árvores – exclamou MacAran – naquela clareira. Vamos aterrissar lá mesmo.
Terei de tentar, de qualquer forma. Não há muitas opções.
– Olhem! – Elizabeth disse de repente. Ainda estava colada na janela, e aparentemente tinha
visto alguma coisa, a primeira evidência dos seres inteligentes nativos vista a olho nu. – Um
castelo.
– Não pode ser – disse David. – Não exatamente. Lembre-se como os franceses, ao
chegarem aos Iroqueses, batizaram suas cidades fortificadas por causa da madeira chateaux, e
acabaram por chamar três ou quatro das cidades “Castle-town”.
Ysaye fitou-os perplexa. Só mesmo David e Elizabeth, pensou Ysaye, discutiriam as
sutilezas das linguísticas no meio de uma colisão iminente.
– Elizabeth! – gritou com uma voz estridente. – Isso não é hora para...
Elizabeth virou o rosto para ela, tão branco que parecia verde, e a sua expressão
transparecia uma tensão igual à de Ysaye.
– Achei que rezar não contribuiria muito para a moral – ela respondeu com voz trêmula.
Ysaye ouviu MacAran, nos controles, murmurar:
– Não adianta. Isso é o melhor que poderemos arranjar. – Ele ergueu a voz. – Atenção,
pessoal aí de trás! Preparem-se para a aterrissagem! Posições de coli-são!
Ela se debruçou obediente, assumindo a posição correta e cobrindo a nuca com as mãos.
Sentiu-os bater violentamente, rebotar, e descer mais uma vez; as contenções para colisão se
desdobraram, redes segurando-os em suas posições fetais. Os amortecedores surgiram de
debaixo do assento debaixo de Ysaye, e ela escutou uma dúzia de alarmes diferentes apitando.
Eles arremeteram, bateram, e rebotaram mais uma vez. Ysaye tinha ultrapassado o limite do
medo; estava paralisada. Nada no seu treinamento ou na sua experiência tinham-na preparado
para isso.
Eu vou morrer, ela pensou estupidamente. Os pensamentos moviam-se preguiçosamente
através do denso mar de medo que a engolfava. O casco rachou com um som nauseante, e na
arremetida seguinte Ysaye achou que tinha ouvido metal rasgando.
Foi então que, misericordiosamente, ela desmaiou.
Despertou com o vento gélido e a neve soprando no rosto. O casco tinha fendido em
vários lugares, e por um momento ela não acreditou que ainda estava viva. Não tinha certeza
de por quanto tempo ficou desacordada, mas os amortecedores haviam murchado para
fantasmas tremulantes, e as redes recolhi-das. Tinham aterrissado, embora não exatamente
inteiros. Descobriu-se a recor-dar aquele antigo ditado: “Qualquer aterrissagem da qual se sai
andando é uma boa aterrissagem”.
– Tem alguém ferido? – gritou MacAran, seguido de um coro engasgado de “não” e “só
galos e contusões”. As mãos tremendo visivelmente, ele soltou os cintos de segurança
afobadamente e levantou. – Atenção! – ordenou –, quero ouvir o nome de todo mundo!
Ysaye respirou engasgado e respondeu primeiro; depois Evans tossiu e respondeu, seguido
por todos os outros, o comandante Britton por último. Satisfeito que nenhum dos seus
encarregados estava morto ou gravemente ferido, MacAran virou e galgou na direção da porta,
que precisou ser desparafusada. Os outros se libertaram sozinhos, depois se amontoaram atrás
dele, ávidos para sair de um veículo que não oferecia mais nenhuma segurança ou proteção.
– Certeza que estão todos bem? Tem alguém ferido? – indagou a Dra. Lakshman, que
pegara automaticamente seu kit médico e segurava-o com força contra o peito, olhando através
da neve caindo. Recebeu como resposta um coro de negativas trêmulas.
MacAran se debruçou para olhar debaixo do transportador.
– Podemos estar todos bem, mas o sistema de aterrissagem claramente não está – ele disse.
– Para não falar nos buracos no casco. – Ele olhou para o transportador e sacudiu a cabeça. –
Nunca me ocorreu que eu acabaria fazendo o teste das proteções para colisão...
– Você se saiu bem, filho – disse o comandante Britton, colocando uma mão paternal no
ombro de MacAran. – Eu duvido que alguém pudesse ter feito uma melhor aterrissagem
nessas condições.
MacAran se empertigou, e respirou fundo, reunindo a sua autoridade à sua volta.
– Certo, de acordo com os procedimentos para colisão, vocês precisam vestir seus
uniformes, enquanto eu me ocupo do equipamento de sobrevivência. Então entrem um de
cada vez e peguem o que puderem. Vão com calma. Nós não vamos para lugar algum por
enquanto.
A Dra. Lakshman inspecionou com uma careta a neve soprando livremente através do que
sobrava da cabine do transportador.
– Teremos de ir para algum lugar – ela disse. – Com este tempo, não vamos durar muito se
não acharmos um abrigo melhor.
Ysaye estremeceu, e não só por causa do frio; sentia o arrepio de um novo medo. Tinham
saído de um perigo para entrar em outro. Será que vieram de tão longe só para morrer
congelados?
8

– Não!
Leonie acordou sobressaltada, de um sono profundo, sentando empertigada disparada e
fitando a escuridão.
Tinha caído de uma enorme e terrível altura... alcançara o chão a uma velocidade
vertiginosa...
Ainda estava tremendo de medo, e sua cabeça zumbia com o impacto.
O problema era que não houvera nenhum impacto. Encontrava-se segura em sua cama, na
suíte da Torre.
Levou uma mão fria à lateral da cabeça, e pestanejou na escuridão. Tinha sido um sonho...
ou não?
Sonhara que caía... um sonho que a tinha deixado a estremecer com o choque de um
impacto verdadeiro.
Aos poucos, a sua mente começou a funcionar de novo, à medida que ela se esforçava para
voltar à realidade. A vida inteira ouvira dizer que se, ao sonhar que estava caindo, a pessoa
continuar a dormir e sonhar que se esborrachara no chão, ela não acordaria, mas morreria
dormindo. Leonie obviamente não estava morta, mas tinha caído com violência sobre alguma
coisa.
Mas ainda persistia a sensação de uma colisão verdadeira. Também ouvira falar que a
vontade de um telepata capacitado podia transformar ilusão em realidade. O que emprestava
um pouco de verossimilhança à história de morrer num sonho em que se estava caindo.
Ela estremeceu, a cabeça doendo. Fora um sonho, ou será que podia ter sido um terremoto,
que lhe tinha dado a ilusão de cair no sono e despertou o pesadelo?
Não, não podia ter sido um terremoto; percebeu isso assim que o pensamento lhe ocorreu.
A Torre em volta dela estava totalmente silenciosa. Sem nem pensar a respeito, reflexivamente,
a sua mente examinou os outros habitantes da Torre. Fiora dormia sossegadamente, e as
meninas dormiam no quarto de Melora, enroscadas juntas como gatinhos. A única pessoa
desperta era a mulher sozinha nos transmissores, e ela se encontrava tão distante da
consciência normal que seria a mesma coisa se ela estivesse nas luas longínquas. O quarto em
volta de Leonie estava fresco e sossegado, o vento que soprava lá fora mal tremulava as
cortinas. Mas ainda assim a sensação de desastre persistia, a sensação de que de alguma forma
ela tinha batido com violência contra alguma coisa.
À medida que os tremores cessavam, ela passou a analisar suas lembranças vagas, frases
estranhas e alienígenas ressonaram na sua mente.
O sistema de aterrissagem já era... não vamos para lugar algum...
Mas o que era um “sistema de aterrissagem”, e por que raios ela haveria de querer ir para
algum lugar?
E agora que o medo estava passando, por que ela sentia tamanha confusão? Por que sua
mente estava repleta com uma sensação de fracasso?
Achava-se em Dalereuth, não nas montanhas... não nevaria aqui por algum tempo... então
por que suas lembranças eram assediadas pela impressão de ventos frios e implacáveis, contra
os quais precisava vencer uma batalha pela sobrevivência?
Correntes transversais. Outra frase alienígena. O que significava isso? E por que as palavras
faziam-na sentir tamanho pânico?
À medida que se esforçava para extrair significado dessas palavras desconhecidas, Leonie
subitamente se deu conta de que elas não tinham sido pronunciadas num idioma que ela
conhecesse, e que de alguma forma tomara conhecimento do significado delas sem saber
exatamente como foram pronunciadas.
Esse fato simples proporcionou-lhe certa percepção de uma porção da verdade, e o
princípio da compreensão; os pensamentos, e talvez até a queda e o impacto, não eram seus.
De alguma forma, captara-os de outra pessoa.
Leonie relaxou um pouco. Como telepata, embora não estivesse ainda formalmente
treinada, estava mais ou menos acostumada a ter pensamentos invadindo sua mente de fontes
inesperadas. De fato, estava tão acostumada a pensar no significado do que era dito, que muito
raramente pensava na verdadeira formulação das palavras.
Por um momento, sentiu-se tranquilizada com a solução do enigma. Mas daí pensou mais
uma vez: ela não entendera as palavras. Pensamentos estrangeiros, formulados em palavras que ela
não compreendia... que tornaram a amedrontá-la.
– O que está havendo comigo? – perguntou em voz alta, aconchegando as cobertas contra a
garganta.
Recordou a noite antes de chegar à Torre, e o pressentimento, ao olhar para as luas, de
perigo iminente.
Algo nos ameaça; algo se aproxima; algo se aproxima vindo das luas.
Não conhecia o significado desse pressentimento na ocasião; não sabia de que maneira, mas
sabia que alguma coisa ameaçava o seu mundo, o seu modo de viver como um todo.
Ela fechou os olhos, e procurou isolar o pressentimento. Só pôde identificar uma paisagem
desconhecida coberta de neve, que podia perfeitamente ser uma das luas que temia.
Mas não existe ar na lua...
Leonie nunca soubera que as luas eram planetas até seu irmão lhe contar – mas isso era
diferente. Jamais imaginara as luas como planetas, jamais pensara a respeito. Mas agora sabia,
sem sombra de dúvida, a partir daquela mesma fonte desconhecida, e esse conhecimento a deixava
amedrontada.
Se não havia ar, não havia como pessoas viverem lá. Por que as luas haveriam de ser fonte
de perigo? E qual poderia ser a conexão delas com isso?
Para uma telepata com as habilidades de Leonie, o aprendizado com frequência vinha com
pouco ou nenhum esforço, assimilando os pensamentos das pessoas à sua volta. Adquiria
coisas a partir de fontes obscuras e com frequência a origem dessas coisas nunca se tornava
clara; isso não constituía nenhuma novidade. Não havia razão para uma coisa tão familiar
assustá-la agora.
Mas o fato era que assustava; era a natureza desconhecida da informação, não a fonte
desconhecida, que a assustava. De alguma forma entrara em contato com uma... uma... mente
alienígena.
E não era só isso. Leonie continuou a analisar o medo que sentia. Foi quando percebeu; as
luas e a fonte desses pensamentos estavam mesmo conectadas. Alguma coisa na fonte desses
pensamentos estranhos a ameaçava; não apenas ela, mas a própria existência de tudo o que
conhecia e valorizava.
Ela deitou, ajeitando-se como se fosse dormir, mas ao invés disso, procurou focalizar na
fonte desconhecida da ameaça. Estremeceu na escuridão, com medo de enfrentar o mundo
superior. Mas em que outro lugar poderia buscar um perigo vindo das luas?
Perigo vindo das luas – um perigo acompanhado de pensamentos que podia ouvir, se não
entender. Não fazia sentido, mesmo para ela. Até recentemente tinha acreditado que as luas
não passavam de lâmpadas penduradas no céu, uma provisão benevolente dos Deuses a fim de
iluminar a noite. Agora sabia o que realmente eram, com a mesma segurança com que conhecia
a geografia do próprio Domínio; estéreis esferas rochosas, desprovidas de vida ou ar. Mas
mesmo assim eram capazes de sustentar um tipo de vida...
Ela se tranquilizou, e concentrou a vontade na busca. Então, com um pensamento, ela saiu
do corpo, entrando naquele reino estranho que experimentara apenas uma vez ou duas antes, e
não por muito tempo. O mundo superior, como ela o imaginava e portanto via: uma planície
acinzentada desolada, indistinta e informe, sem nenhum ponto de referência...
Não, por trás dela se erguia a Torre, não exatamente Dalereuth como Leonie a conhecia,
mas mesmo assim reconhecível. Era menor, sem nenhum sinal distintivo, e parecia envolta
num nevoeiro que obscurecia quaisquer detalhes; provavelmente, Leonie pensou, por que ela
nunca observara a Torre claramente pelo lado de fora, e a enxergava de uma maneira
conceitualizada. Longínqua, mas nem de longe tão distante quanto estava realmente, erguia-se
uma segunda Torre, que ela sabia ser Arilinn. Era a primeira demonstração real que tinha de
que neste lugar o pensamento moldava a realidade, e tudo teria a aparência que ela acreditava
que tinha.
Será por esse motivo que ela sempre foi advertida a pensar positivo?
Isso quer dizer que não pode haver perigo nenhum aqui, a menos que eu acredite nele? Ela especulou.
Não, isso seria muito simplista, muito ingênuo; mas significava que uma atitude destemida
podia evitar a criação de perigos adicionais.
Espreguiçou, notando com certa surpresa que naquele ambiente ela era fisicamente – se
essa palavra podia se aplicar aqui – diferente de como era no mundo normal. Em primeiro
lugar, parecia mais velha, com uma segurança que com frequência procurava simular, com
níveis variáveis de sucesso.
Isso provavelmente significava que essa versão mais velha e adulta dela era a sua verdadeira
natureza. Não haveria problema se ela fingisse ser mais assim – afinal de contas, só estaria
fingindo ser mais parecida com sua melhor parte.
E não era isso o que a maioria dos professores e mentores desejava?
Seus cabelos compridos, vermelhos e lustrosos, que normalmente trançava com o maior
cuidado, caíam soltos e despenteados quase até a altura da cintura, como se Leonie fosse algum
tipo de heroína de uma história antiga. Talvez... alguma grande leronis das Eras do Caos...
Mas entrara no mundo superior devido a uma questão urgente, não para admirar essa
versão de conto de fadas dela mesma; assim que sua mente formulou esse pensamento, ela foi
projetada, deslizando como o vento pelo mundo superior, em busca da fonte dos seus temores
inexplicados. Nestes reinos Leonie podia se movimentar com uma velocidade muito próxima
da do pensamento; percorreu as planícies que tinha cruzado para chegar a Dalereuth,
atravessando em poucos segundos os quilômetros que ela e Lorill levaram quase três semanas
para atravessar utilizando a estrada. Viu na distância o Castelo Hastur, nos limites das Hellers,
e pensou em Lorill. Especulou se o irmão gêmeo, que possivelmente sonhava naquele
momento, se juntaria a ela nas suas viagens. Era um lugar terrivelmente solitário; Leonie
desejava fervorosamente que isso aconteces-se, com a esperança de que seus desejos tivessem
alguma força naquele lugar para trazê-lo até ela.
Mas não viu Lorill, por isso prosseguiu sozinha.
Havia outras pessoas atravessando o mundo superior naquela noite; formas silenciosas,
perambulando em assuntos desconhecidos. Ninguém falou ou se aproximou de Leonie, e ela
especulou se eles sequer podiam vê-la. Será que estavam sonhando ou procurando alguma
coisa naquele mundo astral?
Na realidade fazia muito pouca diferença se podiam ou não vê-la, pois nenhuma daquelas
pessoas tinha importância para ela naquela noite. Seria extremamente fácil se distrair aqui, e
talvez se perder; ela concentrou a si mesma e a sua vontade na coisa que a despertara, fosse o
que fosse, e descobriu-se nas montanhas, e consciente, mais que qualquer outra coisa, dos
ventos gélidos.
Percebeu que sentia o vento e o frio através da mente de outra pessoa, pois aqui no mundo
superior, não existia vento ou tempo algum.
Mas a quem pertencia aquela mente?
Leonie não sabia; era totalmente desprovida de familiaridade. Era humana, não pertencia a
um homem-gato, ou ao semilendário chieri, mas continha uma qualidade alienígena mais forte
do que a que ela estava acostumada. E de uma coisa não restava a menor dúvida: não era
ninguém nem nada que ela já tocara na vida.
Abruptamente ela se tornou consciente da cessação do vento; ainda estava rumorejando lá
fora, mas Leonie estava protegida dele. Percebeu que se encontrava dentro de um pequeno
abrigo, uma espécie de habitação tosca.
Foi então que Leonie reconheceu-a, embora isso não acontecesse com a mente que estava
observando, como um dos abrigos para viajantes que existiam aos montes nas montanhas.
Estava apinhado, cheio quase até a sua capacidade, de seres humanos.
Com este tempo? Por que um grupo daquele tamanho haveria de sair naquela tempestade?
Leonie tateou em busca de mais pistas a fim de identificar o seu contato, procurando se acercar
de qualquer coisa que pudesse ser de alguma ajuda.
Foi então que recuperou a visão, e, perplexa, descobriu-se a observar homens e mulheres
com roupas bizarras e extremamente estranhas. Tanto os homens quanto as mulheres vestiam
calças e casacos grosseiros, de um tecido esquisito e liso. Mas a roupa não era a única coisa
estranha naquelas pessoas. Alguns rostos eram semelhantes o suficiente ao dela para serem
parentes distantes, embora poucos tivessem a pele tão clara quanto a sua, mas alguns homens e
mulheres tinham peles da cor marrom escuro. Parecia que eles tinham pintado o corpo, mas por
que alguém haveria de fazer isso?
Será que eles sequer eram humanos, ela especulou?
A mente conectada à sua descartou a indagação com incredulidade; mas é claro que somos todos
humanos.
Mas as pessoas de pele escura pareciam a Leonie completamente diferentes de quaisquer
homens ou mulheres que ela já vira na vida. A sua perplexidade era tamanha que Leonie quase
se projetou imediatamente de volta para o seu corpo, e para a segurança e familiaridade da
Torre. Mas sua surpresa e interesse... sem mencionar a curiosidade... triunfaram, e Leonie
permaneceu, observando em silêncio – pois nesta situação ela não podia ser vista ou dar
conhecimento da sua presença, exceto talvez através de laran, para os estranhos.
– Podemos permanecer aqui um bom tempo – alguém dizia. – O sistema de aterrissagem já
era, e com os buracos no casco o transportador não servirá de muita coisa no espaço. Receio
que estejamos presos aqui até que a nave possa enviar outro com peças e equipamento para
reparos – ou enviar uma equipe para desmontá-la e destruir o que não pode ser salvo, e nos
levar de volta. Como ninguém se machucou, faremos quaisquer trabalhos úteis que pudermos
antes do resgate; é provável que demore ao menos um dia para uma nave poder aterrissar com
segurança.
– Mais provavelmente uma semana – murmurou alguém. – Está uma tremenda tempestade
lá fora.
Leonie sentiu o medo que aquela declaração provocou na mente da pessoa com a qual
estava conectada. E também percebeu a impressão da mulher de que essa conversa de “coisas
úteis para se fazer” não passava de um meio para evitar que aquelas pessoas entrassem em
pânico, ou para que não surgissem conflitos quando tanta gente se encontrava confinada num
lugar tão pequeno, durante tanto tempo.
– Há muitas coisas bem básicas que podem ser feitas – disse um homem –, análises do solo,
amostras de água...
– É sobre as pessoas que eu quero descobrir – disse uma mulher. – Parece existir uma
civilização extremamente sofisticada aqui. Talvez, se a nave não puder aterrissar, e nós
pudermos encontrar alguém, possam nos ajudar...
– Está tirando conclusões precipitadas, Elizabeth – disse um homem grosseiramente, e,
naquele mesmo instante, Leonie antipatizou com ele só por causa do tom de voz. – Não dá
para se fazer julgamentos com base em uma única estrutura. E quem em seu juízo perfeito
viveria aqui, de qualquer maneira? Mesmo se pudermos chegar até aquele seu amontoado de
pedras, não vamos achar coisa alguma!
– Eu disse sofisticada, não tecnológica – protestou a mulher chamada Elizabeth. – Há uma
diferença.
– Há muito que se pode ser presumir mesmo com base num edifício – disse o homem ao
lado de Elizabeth. – Casas não se constroem sozinhas, e se aquela... vou usar a sua definição,
Evans... estrutura que vimos não for uma casa, é algo muito parecido. E trata-se de um edifício
inteiro, intacto. Considerando o que os arqueólogos descobriram a partir de alguns fragmentos
numa pilha de lixo que fora abandonada há milênios, eu diria que há muita coisa que pode ser
aprendido a partir de um edifício inteiro.
Principalmente quando ainda há gente morando nele. Leonie escutou o pensamento, mas
aparentemente foi a única, pois o debate continuou sem modificações. E ela captou outro
pensamento da sua “anfitriã”: que esse tipo de discussão sem sentido a troco de nada era
exatamente o que ela e o homem que tinha falado de “trabalho útil” temiam. Febre da cabana foi
o termo que a anfitriã utilizou, e síndrome de estresse pós-traumático. O que quer que signifique isso,
pelo inferno mais gelado de Zandru.
– Eu diria que se trata de um castelo – disse Elizabeth, com algo que sua anfitriã
reconheceu como um vestígio de histeria –, ou qualquer coisa que sirva ao mesmo propósito...
– Mas que interessante; qual seria o propósito de um castelo? – disse Evans, quase
zombeteiro, e evidentemente tentando causar alguma explosão, mas Elizabeth respondeu com
a maior seriedade.
Ela está se concentrando em trivialidades para não entrar em pânico, pensou a sua anfitriã. Depois,
atemorizada: Se ao menos que pudesse fazer o mesmo. É melhor tentar...
– Talvez seja a residência de alguém importante, ou um lugar para guarnição militar, uma
fortaleza...
– Você está antropomorfizando – Leonie escutou alguém dizer. Ela reconheceu a palavra, a
partir da memória da mente através da qual estava ouvindo. Uma falácia comum, pensou sua
anfitriã, o hábito de atribuir motivos ou propósitos humanos a coisas inanimadas ou inumanas.
Mas de que outra forma, especulou Leonie, era possível pensar em qualquer coisa, sem se
utilizar termos humanos, quando se é humano? Pensamentos inumanos eram completamente
incognoscíveis; só se podiam fazer analogias a partir da humanidade. Mesmo se a pessoa
possuir o Dom da telepatia com inuma-nos, jamais ocorria nenhuma compreensão dos seus
pensamentos, só dos seus sentimentos e emoções.
– Na minha opinião, se anda como um pato, cheira como um pato e grasna, existe enorme
possibilidade de que seja um pato ou algo parecido – disse outro homem. – É provável que
seja uma estrutura para uso humano; possui a escala física certa. Se não foi feita por e para
humanos como os conhecemos, é possível que tenha sido construído para algo parecido com
humanos.
As vozes se ergueram novamente numa balburdia que ela não pôde compreender, e Leonie
aproveitou a oportunidade para descobrir onde se encontrava. O mundo superior não tinha
nenhum ponto de referência, mas ela podia ver à distância, do lado de fora do abrigo, a
estrutura imponente do Castelo Aldaran, com a velha Torre que ainda formava uma parte do
castelo.
A Torre...
Isso fez com que recordasse Dalereuth, e de repente ela não aguentava mais os
pensamentos estranhos e parcialmente incompreensíveis daquelas pessoas loucas. Queria as
coisas com as quais estava familiarizada, pensamentos que podia compreender...
Então Leonie voltou para o seu corpo, em Dalereuth.
Permaneceu deitada um instante, simplesmente analisando os seus pensamentos. Então se
deu conta de que sua responsabilidade não estava encerrada de forma alguma.
Preciso dar um jeito de informar Aldaran; há um estranho grupo de pessoas lá, perdido na neve.
Talvez pudesse vir a se arrepender, mas naquele momento parecia impensável deixar um
grupo de homens e mulheres, não importava o quanto fossem estranhos, à mercê das
tempestades das Altas Hellers.
Não havia ninguém a quem recorrer em busca de conselhos, mesmo se estivesse disposta a
pedir. Foi assim que Leonie colocou em movimento o padrão para tudo o que se seguiu.
Sentou na cama e esticou a mão para o robe de pele que havia ali. Então parou; estava
sendo acusada a toda hora de agir sem pensar; de maneira que parou para pensar como faria
isso.
Após um momento levantou da cama, enfiou os pés nas botas forradas de pele de usar
dentro de casa, dirigiu-se aos corredores da Torre, e subiu as escadarias que levavam para a
câmara de transmissão.
Uma moça com a veste azul de uma técnica estava recostada numa cadeira, observando
sonolenta uma enorme tela parecida com vidro preto resplandecente. Quando Leonie entrou,
ela se empertigou um pouco e perguntou:
– Leonie? A esta hora? O que você quer? Está se sentindo mal?
– Não – disse Leonie, parando para pensar no que realmente queria. – Carlina, eu estive no
mundo superior, e existem estranhos...
– No mundo superior? Mas você não é treinada... acho que é melhor falarmos com Fiora –
disse Carlina. – Eu não tenho autoridade...
Leonie reprimiu a impaciência. A moça aparentemente estava mais preocupada com o fato
de Leonie ter estado no mundo superior – sem treinamento – que com a extrema urgência que
seguramente a levara até ali!
–... oh, Fiora, você está aí – ela completou, com um suspiro aliviado, quando a porta abriu,
e Fiora, muito pálida em suas roupas vermelhas, entrou. – Espero que não a tenhamos
perturbado.
– Não – disse Fiora, virando o rosto cego para elas. – Mas sempre escuto quando ocorre
algo coisa na Torre a essa hora estranha. Leonie, qual é o problema? Por que não está na cama?
É muito tarde... ou talvez eu deva dizer muito cedo... para estar aqui dessa maneira. E de
camisola...
Ela falava como se estivesse se dirigindo a uma menininha, e Leonie reprimiu sua irritação,
pois havia muito mais em questão do que ser tratada como criança. Quanto mais pensava a
respeito, mais importantes esses estranhos se tornavam. Eram importantes para... alguma coisa.
E sinceramente, eles não pareciam capazes de cuidar de si mesmos em meio a uma
tempestade brutal das Hellers. Alguém precisava socorrê-los.
Ela disse, tão séria e sóbria quanto pôde:
– É, eu sabia que você precisava ser informada, mas não sabia se deveria ser acordada. Eu
estive no mundo superior, Fiora, e vi uma coisa...
Ela fez uma pausa, incapacitada com a aparente impossibilidade de dizer o que tinha visto.
Fiora sentiu sua hesitação e falou, um pouco irritada:
– Bom, e o que foi que você viu, e o que podemos fazer a respeito? – ela perguntou. –
Suponho que levantou por que achou que podemos e deveríamos fazer alguma coisa.
A irritação na voz dela privou Leonie do que restava de sua precaução.
Ela acha que tive um pesadelo, e não que fiz o que disse...
– Fiora, eu sinto que há algum tipo de ameaça, ou perigo; procurei a fonte e vi estranhos –
disse Leonie. – Estranhos, perdidos num abrigo próximo a Aldaran, à mercê do tempo.
Fiora se mostrou um pouco mais interessada.
– São pessoas que conhece, ou que já tenha visto antes?
– Não e não – respondeu Leonie, balançando a cabeça, depois, quando outro pensamento
lhe ocorreu, qualificou: – Acho que talvez eu tenha entrado em contato com uma delas, através
de sua música... um instrumento muito estranho...
Fiora descartou esse comentário com um aceno de mão.
– E essas pessoas estão perdidas numa tempestade? Tem certeza? Perto de Aldaran?
Carlina disse, humildemente:
– Ela pode estar certa. Ouvi na transmissão de Aldaran que há uma tremenda tempestade
desabando entre Aldaran e Caer Donn.
Fiora pensou a respeito.
– Se há estranhos no meio dessa tempestade, precisamos lhes mandar algum tipo de
socorro. – Ela virou para Leonie. – Tem certeza disso? Seria capaz de jurar pela honra de sua
família que não é nenhum pesadelo infantil?
Leonie fez que sim.
– Eles parecem muito... estrangeiros – acrescentou. – Eu sinceramente não sei se são
capazes de se virar numa tempestade, ainda mais com o perigo de aparecerem banshees, Fiora.
Eles pareciam tão... – ela tateou em busca das palavras – tão desamparados quanto um coelho-
de-chifres no deserto.
Carlina reagiu quando Fiora gesticulou com a cabeça, dando permissão para agir.
– Vou entrar em contato imediatamente com a Guardiã na Torre Aldaran e avisar a todos
para estarem alertas para esses estranhos.
Mas Fiora tinha outra pergunta.
– Você disse que eles eram estrangeiros. São intrusos, invasores?
Ela se mexeu para ficar diante da tela, enquanto Leonie dizia:
– Não, não são invasores. Senti que estavam perdidos, que eram estranhos, e que não
tinham nenhuma intenção de intrusão ou invasão.
– Está certo, vou confiar nos seus instintos – disse Fiora. – Sua vigilância pode muito bem
ter salvado vidas esta noite, de modo que não vou perguntar por que estava no mundo
superior, Leonie.
Por algum motivo isso deixou Leonie irritada. O que Fiora achava? Que ela era uma criança
sem nenhum treinamento, que o mundo superior era um lugar estranho para ela, ou perigoso?
Será que não podia fazer nada sem o consentimento de Fiora?
Mas Leonie engoliu o orgulho, recordando do trato que as duas fizeram.
– Desculpe; sabia que não devia tentar nada sem o seu conhecimento, mas, sinceramente,
achei que não faria mal algum. Eu... acho que estava com saudades de casa, tão distante, e de
meu irmão Lorill...
Ela parecia tão infeliz que Fiora disse, com brandura:
– Nenhum mal resultou disso, Leonie. Da próxima vez, não vá desacompanhada; sabe
muito pouco dos perigos do mundo superior. Muito bem, vou falar com a Guardiã em Aldaran
através dos transmissores. – Ela ocupou seu lugar diante da enorme tela.
Algum tempo depois Leonie escutou-a dizer – pois embora não falasse em voz alta, Leonie
podia escutá-la com facilidade: Marisa? Uma de nossas noviças andou se aventurando no mundo superior,
e viu estranhos na tempestade que vocês têm aí. Ainda está nevando?
Está, tivemos vinte e oito centímetros desde que começou e aparentemente não vai parar até amanhã, mais
ou menos, foi a resposta de Marisa. Não creio que eu mesma estaria disposta a sair com uma tempestade
dessas, mesmo no mundo superior.
Bem, Leonie é jovem e bem destemida, disse Fiora, e apesar da reprovação, Leonie achou que
havia um tom de orgulho na voz não pronunciada de Fiora. É uma filha dos Hasturs, e tem a
ambição de se tornar Guardiã.
Providenciarei o envio de um grupo de resgate, assim que a neve diminuir, respondeu Marisa. E vou
informá-la quando isso acontecer... se é que eles estão mesmo lá.
Oh, se Leonie disse eles estão lá, é bem certo que estão, disse Fiora. Conheço-a muito bem para achar que
ela faria isso como uma travessura. E ela tem idade para saber a diferença entre um pesadelo e uma verdadeira
visão. Ela desviou a atenção da tela, e voltou-se para as mulheres mais jovens. Outra vez,
Leonie ficou perplexa com a facilidade e segurança com que Fiora se movia, embora
caminhasse numa escuridão interminável.
– As transmissões estão sob sua responsabilidade, Carlina. Destry virá ren-dê-la em uma ou
duas horas, certo?
– Sim, Fiora – respondeu Carlina acenando com a cabeça.
Fiora fez uma pausa, virando o rosto para Leonie, e disse:
– Isso é tudo por enquanto. Não receberemos nenhuma resposta até a neve parar um
pouco para eles poderem enviar o resgate de Aldaran. Venha comigo, Leonie. Conte-me sobre
esses estranhos, e o que a possuiu para fazer algo assim. Sempre que alguém sai do corpo, é
necessário monitorá-la... isso nunca lhe passou pela cabeça?
Ela não parecia zangada – só cansada e um pouco preocupada. Não se tratava exatamente
de uma censura.
– Não, domna.
Fiora suspirou.
– O que eu vou fazer com você, Leonie? Tem tanto talento, mas é tão irresponsável! – ela
disse, quase desesperada. – Você acha que eles não são intrusos, ou invasores, e mesmo assim
diz que são forasteiros; diga o que acha, então, que essa gente é?
Leonie mordeu o lábio, dividida entre confiar em sua Guardiã e fazer papel de idiota.
– Sei que parece ridículo; mas acho que essas pessoas vêm das... das luas. E antes disso... de
um lugar ainda mais longínquo.
Ela esperava que Fiora desatasse a rir, e aceitaria quase de bom grado alguém
ridicularizando seus temores. Chieri, ou homens das Cidades Secas, ou até alguém do outro
lado da Muralha ao Redor do Mundo, seria menos assustador que essas pessoas com seus
pensamentos alienígenas. Mas Fiora ficou séria.
– Você não teria como saber disso – ela disse, após um momento de hesitação –, mas
houve uma época em que diziam que... mesmo antes dos dias dos Deuses... nosso próprio
povo veio para cá vindo de outro mundo. Não passa de uma velha fábula, mas o que você
disse me fez recordar.
Leonie ergueu a cabeça, com uma mistura de alívio e alarme.
– Então o que eu disse não é um absurdo completo? Sei que não existe ar nas luas, e que
ninguém poderia viver lá – ela disse. – Eu me senti a maior idiota ao falar isso.
– Não – disse Fiora com sobriedade. – O que quer que possa ser, não creio que seja
absurdo. Se recebê-los é ou não um absurdo... ora, não saberemos até que encontrem esses
estranhos. E ainda vai demorar um pouco para isso acontecer. Agora vá para a cama, Leonie,
ou, se não estiver com sono – Fiora acrescentou tão depressa que Leonie se perguntou se a
mulher mais velha estava lendo seus pensamentos –, pode ir deitar e descansar, ou estudar, se
quiser. – Após um instante, acrescentou: – O que quer que resulte disso, eu prometo contar a
você, assim que eu mesma ficar sabendo.
9

Finalmente, depois do que pareceu uma eternidade de ventos uivantes e colegas discutindo,
a neve parara. O abrigo parecia um pouco mais espaçoso desde que metade das pessoas
confinadas lá dentro tinha corrido para fora assim que os ventos cessaram. Ysaye continuou lá
dentro, aconchegada junto ao fogo, procurando não espirrar quando a chaminé não se desfazia
de toda a fumaça. Estava receando nunca mais tirar o cheiro de fumaça dos cabelos; sabia que
nunca mais ia se sentir aquecida na vida. David lhe disse ao voltar para dentro alguns
momentos atrás que estava muito mais quente agora do que durante a tempestade. Muito
embora ela tivesse que admitir que podia escutar o gotejar da neve derretendo nas calhas da
casa, Ysaye não estava impressionada com esse suposto aumento da temperatura. Um pouco
acima do congelamento ainda era extremamente frio. Esperava que a nave mandasse logo
alguém para resgatá-los. Se era assim que era uma exploração planetária, ela trataria de se
esconder no núcleo do computador para não sair nunca mais.
Não que essa construção, que parecia ser um tipo de abrigo de emergência para as pessoas
que se viam em tempestades como essa, não fosse interessante à sua própria maneira.
Trabalhando segundo a sugestão do comandante Britton, Elizabeth entusiastamente catalogara
todos os itens logo que haviam se organizado, e depois ela e David discutiram as implicações
de cada um, enquanto se aconchegavam debaixo dos cobertores de emergência que salvaram
do transportador arruinado. Ysaye gostaria muito mais de aprender todas essas coisas a partir
do banco de dados, não em primeira mão. Para ser sincera, gostaria muito mais de jamais ter
de aprender nada disso, de qualquer maneira.
Para a mente de Ysaye, a maioria das suposições que podiam ser tiradas daquele lugar era
bem óbvia. Tinha certeza de que todo mundo partilhava os seus sinceros agradecimentos de
que, quem quer que tenha construído aquele lugar, sentia frio do mesmo jeito que eles. Aquele
abrigo tinha sido construído tão solidamente quanto permitia a baixa tecnologia, e havia muita
lenha armazenada próxima a uma lareira primitiva. Isso constituía altruísmo, como Elizabeth
sustentada, ou uma linha mais prática, o conhecimento de que qualquer um podia se ver numa
tempestade a qualquer hora, e era do interesse dos próprios habitante daquele lugar erigir
abrigos assim.
Evans se tornara insuportável durante o confinamento forçado, e sua ausência começara a
aliviar a tensão que dava dores de cabeça a Ysaye, o que era um insulto adicional à leve
concussão que sofrera na colisão. Evidentemente, ele achava que ficar confinado em estreita
proximidade com outras pessoas por muito tempo quase tão insuportável quando Ysaye
achava as suas reclamações a esse respeito, e as dores de cabeça eram totalmente devidas à sua
crescente irritação com o homem. Logo que a neve cessou, o comandante Britton sugerira que
Evans fosse para o galpão, que parecia feito para algum tipo de animais de montaria ou carga, e
começasse a análise das plantas utilizadas como forragem que estavam armazenadas lá. O
silêncio subsequente era quase tão confortador quanto seria uma boa xícara de chocolate
quente.
A Dra. Lakshman se abaixou para sentar ao lado de Ysaye no chão, perto do fogo.
– Paz e quietude, afinal – ela suspirou. – Como está a concussão?
– Acho que a dor de cabeça da concussão quase já passou – respondeu Ysaye. – E, se certas
pessoas permanecerem lá fora, a dor causada pela tensão também pode passar.
Aurora Lakshman balançou a cabeça.
– Estou fazendo o maior esforço para não pensar em quão pouco me im-portaria caso
certas pessoas caíssem de um penhasco – ela disse, irônica. – Este lugar não é grande o
suficiente para abrigar Evans e o ego dele.
– Aurora – comentou Ysaye –, ainda há seis pessoas aqui – e eu acho que quem quer que
tenha construído esse abrigo estava pensando em menos gente, ou então em pessoas menores.
– Ou gente menos irritante – disse Aurora. – Se Evans tivesse dito mais uma palavra sobre
a qualidade das rações de emergência do transportador, acho que eu podia ter partido para a
violência.
– Tenho de admitir que as rações não são a melhor coisa que já comi – concordou Ysaye –
mas não são nada piores que a comida que nos davam no treinamento, especialmente aquelas
rações de sobrevivência quando saímos para o deserto!
– Para falar a verdade, acho que são uma pequena melhoria – disse Aurora. – E as queixas
e reclamações quando tivemos de usar aquilo que eles armazenam aqui! Eu estava pronta para
estrangulá-lo! A sua análise científica de... o que quer que sejam aquelas coisas... foi de primeira
classe, mas poderíamos ter passado sem a sua opinião sobre a sua comestibilidade.
– Ou as comparações sobre os sabores. – Ysaye fez uma careta. – Eu pensava que os
garotinhos paravam de querer deixar as pessoas enojadas logo que chegavam à adolescência!
Aurora soltou uma risada.
– Pelo menos ele é bom com as técnicas analíticas. Ainda bem que as coisas que
encontramos são comestíveis, ou nossa situação seria ainda pior depois que acabassem nossos
suprimentos. – Ela fez uma careta. – Eu não estou nem um pouco feliz com como o
transportador é inadequadamente equipado para uma emergência como esta. É verdade que
não esperávamos passar tanto tempo aqui, mas a situação podia com a maior facilidade ter sido
muito pior, e nesse caso estaríamos perdendo pessoal a essa altura. – Ela olhou atenciosamente
para Ysaye, que estava enrolada em dois cobertores de emergência. – Como você se sente, fora
as dores de cabeça, Ysaye?
Ysaye mexeu os ombros e procurou não demonstrar preocupação.
– Estou com frio, como todo mundo, eu acho. Exceto Evans, que obvia-mente não possui
um sistema nervoso, ou ele estaria em maus lençóis a essa altura.
– É verdade que estamos todos com frio, mas você é quem tem o físico menos adaptado a
esse ambiente. MacAran, e os nossos pombinhos – ela gesticulou para David e Elizabeth –,
descendem de pessoas que se adaptaram para viver num clima frio, enquanto os seus ancestrais
evoluíram na África.
– Todos na Terra descendem de gente que viveu na África – relembrou-a Ysaye. –
Provaram isso ainda no século vinte.
– Certo – concedeu Aurora. – Mas os seus ancestrais permaneceram lá por mais tempo que
os que se tornaram caucasianos. E você tem muito pouca gordura corporal excedente, que é o
que isola o corpo humano em climas frios. É tão conscienciosa sobre seu programa de
exercícios na nave... menos quando está envolvida em algum projeto especialmente
interessante, é claro...
– Você me conhece bem demais – riu Ysaye.
Aurora sorriu.
– É difícil guardar segredos da sua médica. Mas você se sente bem mesmo?
– Contanto que ninguém me peça para dar um passeio na neve – disse-lhe Ysaye. – Um
passo para fora daquela porta, e vou congelar no mesmo instante.
Aurora concordou com a cabeça, rindo.
– Perfeito. Enquanto você estiver bem, o restante de nós também deverá estar. Pense nisso
como uma variação do canário na mina de carvão.
– Bom, eu estou qualificada para isso – concordou Ysaye. – E pelo menos com este tempo
frio não preciso me preocupar com a febre do feno – ou qualquer alergia de plantas em flor.
Só a alergia ao pó da palha, e a irritação causada pela fumaça. E a medicação que eu trouxe
ainda está fazendo efeito.
A médica pareceu preocupada de repente.
– É mesmo, eu me esqueci das suas alergias.
– Não há motivos para lembrar, sob circunstâncias normais – disse Ysaye com brandura. –
Não há nada na nave que me irrite, e eu não me ofereço como voluntária para os
destacamentos para aterrissagem. Não sei por que estou nesse, e, francamente, é uma honra
que eu poderia ter dispensado.
Aurora sorriu.
– Detesto dizer isso para uma cientista da sua reputação, mas ouvi dizer que o capitão teve
um pressentimento.
Ysaye ficou boquiaberta.
– O capitão Gibbons me meteu nessa furada por causa de um pressentimento? – ela disse
indignada. Respirou fundo e depois espirou. – Quando voltarmos acho que vou programar o
computador para “perder” todos os registros de ópera por alguns meses. Bom, pelo menos
isso explica por que eu não conseguia descobrir uma razão lógica para ter sido incluída nesta
reuniãozinha de acampamento.
– Reunião de acampamento uma ova – disse o comandante Britton juntando-se a elas.
– Ora, temos até uma fogueira – disse Ysaye com um sorriso irônico.
– Pena que esquecemos os marshmallows – acrescentou Aurora jovialmente. – Terei que
acrescentá-los à lista de sugestões para suprimentos para a próxima vez que alguém derrubar
um transportador no meio de uma nevasca.
MacAran se contraiu, e Ysaye sentiu um ímpeto de simpatia por ele. O piloto estava tendo
muita dificuldade para aceitar o fracasso.
– Na realidade, nas circunstâncias, foi uma ótima aterrissagem – comentou Ysaye com
gentileza. – Afinal, estamos vivos... apesar de que, com essa dor de cabeça, eu não tenho
certeza se queria mesmo estar!
– Obrigado pelas palavras gentis – disse MacAran sem fazer nenhum esforço para ocultar a
amargura na sua voz. – Você vai testemunhar na minha audiência?
Ysaye balançou a cabeça.
– Sabe perfeitamente que vão querer que todos nós testemunhemos, e duvido que alguém
aqui responsabilize você. Vou dizer ao capitão que não foi culpa sua e que você fez um
trabalho soberbo, ao aterrissar sob condições quase impossíveis. – Ela sorriu, e procurou fazer
uma piada para aliviar a expressão carrancuda do rapaz. – Talvez assim ele não desconte a
substituição do transportador do seu pagamento.
– Isso mesmo – interrompeu Elizabeth, participando da brincadeira –, ponha a culpa nas
instruções meteorológicas e ele vai descontar do meu pagamento.
A porta abriu subitamente e Evans entrou, afobado.
– Mas que adaptação! Vocês não vão acreditar nisso! Algumas árvores aqui parecem isolar
os frutos contra a neve com o expediente de engrossar suas casas para invólucros especiais, e
derrubar esses invólucros quando a temperatura aumenta, de modo que a sua estação de
crescimento não é interrompida!
Ele parecia tão feliz quanto uma criança com um brinquedo novo, o que certamente
constituía uma melhoria, considerando seu comportamento durante a tempestade. Ysaye podia
entender sua reação; essa descoberta seria uma boa base para um ensaio acadêmico, que lhe
traria prestígio na comunidade xenobotânica. Não era todo dia que alguém do Serviço tinha a
chance de fazer o tipo de ensaio de pesquisa que impressionasse os círculos acadêmicos;
verdade seja dita, a maior parte da pesquisa em xenobotânica era feita em nível celular e abaixo,
e alguém como Evans simplesmente não teria o tempo ou a oportunidade para fazer esse tipo
de pesquisa. Ele era um xenobotânico de campo; fazia parte de seu trabalho decidir quais
plantas eram danosas, neutras, ou benéficas aos seres humanos. Não fazia parte de seu
trabalho conduzir análises fora dessa esfera – e, para ser perfeitamente maldosa, Ysaye não
estava segura de que ele queria aproveitar o tempo longe de suas explorações pessoais (caso os
boatos fossem confiáveis) com farmacêuticos recreativos para fazer esse tipo de pesquisa.
Ele chamou o comandante Britton para falar em particular e começou um relatório
entusiasmado, falando tão depressa que Ysaye quase não pôde acompanhar, e logo ela parou
de tentar.
Ouviu-se uma batida na porta, e todos ergueram o olhar, surpresos. O pessoal estava
voltando para o abrigo fazia uma hora, mas ninguém sentiu necessidade de bater – isso teria
sido ridículo...
Uma fração de segundo depois, todos se entreolharam, contando as pessoas presentes.
Ysaye reagiu da mesma forma, e chegou à mesma conclusão. Já estava todo mundo ali, o que
queria dizer que quem quer que estivesse batendo... ou o que quer que estivesse batendo...
Uma mortalha de medo caiu sobre o grupo. Por um momento, ninguém se mexeu.
Então, subitamente, antes que alguém pudesse detê-lo, o comandante MacAran adiantou-se
e abriu a porta.
Para a perplexidade de Ysaye – e também para seu alívio, pois por mais que alienígenas
realmente diferentes fossem interessantes, na atual situação ela preferiria lidar com seres com
que pudesse se comunicar – o homem na soleira parecia completamente humano. Nenhuma
garra, nenhuma presa... a menos que eles tivessem alguma coisa escondida debaixo da roupa,
pareciam à Ysaye “noventa e nove por cento humanos”.
Eram quatro, altos, louros e vestidos com diversas camadas de roupas grossas, calças
folgadas, capas que pendiam até o meio das coxas, botas altas. Usavam os cabelos compridos,
e alguns tinham barba, o que pareceu estranho a Ysaye, já que ninguém na nave usava barba.
MacAran começou a falar em Padrão, e quando, como era de se esperar, isso não deu certo,
tentou explicar com sinais que eles haviam chegado ali devido à queda de um transportador,
mas era evidente que ele não estava conseguindo se fazer entender.
Será que eles tinham o conceito de voar? Especulou Ysaye. Ela não podia imaginar de que
forma alguém poderia desenvolver uma aeronave com esse tipo de terreno, e com um tempo
como aquela última nevasca.
O líder dos estranhos fez sinais para indicar, pareceu a Ysaye, que um tempo ainda pior
estava a caminho. Ele terminou gesticulando para que eles o seguissem.
MacAran voltou-se para o restante do grupo.
O comandante Britton acedeu – mas não sem certa insegurança. Elizabeth e David fizeram
movimentos de concordância imediata. A doutora franziu os lábios e endereçou um olhar
penetrante para os estranhos, depois também concordou.
Evans pareceu impaciente ao concordar. Nenhuma surpresa, pensou Ysaye. Ele sempre
estava ansioso para tentar “ângulos” em alguma coisa, e tinha saído inconsequentemente para
céu aberto para explorar aquele planeta, antes mesmo de eles saberem alguma coisa dos
habitantes. Era provável que naquele mesmo instante estivesse analisando aqueles nativos para
decidir a forma mais rápida de tirar vantagem deles.
Ysaye foi a única reticente; simplesmente não queria ir com eles, quem ou o que eles
fossem. Não achava que eram mal-intencionados – mas experimentava uma estranha sensação
de advertência. Como se, de alguma forma, alguma coisa estivesse tentando lhe dizer que, se
fosse com eles, ela estaria indo de encontro a um perigo que não podia sequer imaginar.
MacAran olhou-a severamente, mas eles já tinham entrado em um consenso. Ele consentiu
com um gesto de cabeça, e todos juntaram seus pertences e seguiram os estranhos, para fora.
Um dos nativos levou-os para um caminho estreito e muito malcuidado na neve, não
exatamente uma estrada, mas a coisa mais próxima a isso que podia ser feita na neve sem
maquinário pesado. Os terráqueos foram atrás, forçosamente em fila única, com o resto dos
nativos na retaguarda.
Conforme caminhava com dificuldade, Ysaye permaneceu agasalhada com os cobertores, os
olhos tortos contra o brilho ofuscante do sol na neve. O ar estava tão frio que sua respiração
saía em nuvens de vapor, mas a temperatura aumentava com o passar do tempo. Botões e até
folhas pareciam brotar da maneira adormecida nas árvores, algumas emergindo enquanto
Ysaye olhava, como se estivesse assistindo a representação em movimento do
desenvolvimento das folhas. Parecia que Evans tinha razão quando disse que as folhas e
botões tinham sido “armazenados” para o tempo frio. Embora parecesse para ela que os
“invólucros” simplesmente se dobrassem de volta para a haste, ao invés de caírem
completamente. Isso faria mais sentido, a fim de que os invólucros pudessem ser reutilizados
ao invés de perdidos a cada tempestade e degelo.
Ysaye estava fascinada. E dava para ver como esse desenvolvimento evolucionário era
lógico naquele planeta. Se a tempestade a qual eles tinham sobrevi-vido constituía o clima
habitual, seria necessário algum tipo de acomodação. Se as árvores e arbustos tivessem de se
despojar da folhagem toda vez que nevava, jamais sobreviveriam. Se as plantas mais rasteiras
morressem toda vez que a temperatura diminuísse para um nível inferior ao congelamento,
jamais formariam sementes. Deviam ter alguma espécie de anticongelante nos veios, além da
película oleosa exterior, os invólucros protetores, e a resposta trópica à escuridão e ao frio.
Sem dúvida tratava-se de uma adaptação fascinante.
Subiram uma comprida colina, seguindo o caminho na neve, e desceram para um pequeno
vale. Depois chegaram ao que parecia ser uma aldeia, um amontoado de edifícios de madeira
de um ou dois andares; era impossível identificar quais eram moradias, abrigos para animais, ou
ambos. Mas atrás das casas, no meio de outra ladeira, encontrava-se o edifício que haviam visto
do transportador, que Elizabeth apelidara de “castelo”.
Mais do que imponente para os terráqueos, era construído com pedra cinza, e assomava
sobre a aldeia, como se protegendo os edifícios e habitantes. Tinha muitos andares e torres, e
quase tão distante do abrigo, em termos tecnológicos, quanto uma das cúpulas na lua estavam
dele. Esse castelo de Elizabeth seguramente era a coisa mais impressionante que eles tinham
visto até agora no planeta! As expectativas de Ysaye aumentaram abruptamente. Qualquer
cultura que pudesse produzir uma estrutura como essa tinha que ser bem organizada e ao
menos sofisticada o suficiente para ter certos conhecimentos em engenharia e matemática.
Procurou não pensar nas outras implicações possíveis – que qualquer cultura que produzisse
uma estrutura como essa, tão obviamente feita com propósitos de defesa, precisava ter alguma
coisa de que se defender.
Os nativos levaram-nos através de uma formidável série de portões e portas, e para a
escuridão interior.
Fizeram uma pausa num tipo de antecâmara. Os homens conversaram entre si e um saiu
sozinho. Ysaye estudou a pouca mobília que havia na câmara; a maioria bancos e mesas de
madeira, fortes e funcionais. Era estranho pensar que ali a madeira era tão comum que havia
casas construídas com ela, ao passo que na Terra era uma coisa tão cara que somente um
desses bancos representaria um ano do salário de Ysaye.
Finalmente uma mulher apareceu e indicou para Ysaye, Elizabeth e Aurora seguirem-na.
Será que estavam querendo dividir o grupo?
Ysaye endereçou um olhar alarmado para o comandante Britton, que balançou a cabeça.
– Façam o que eles querem – disse para as três mulheres. – Não acho que tenham qualquer
má intenção no momento. E vocês três são treinadas em combate desarmado, de qualquer
maneira; devem estar bastante seguras. Parece que essa gente jamais esperaria que uma mulher
tivesse treinamento em combate.
Ysaye mordeu o lábio nervosamente, mas sinceramente não tinha muita escolha. As três
mulheres seguiram a nativa, subindo uma escadaria para um quarto espaçoso, mais comprido e
mais amplo do que o abrigo, com móveis evidentemente humanos; escabelos, uma ou duas
cadeiras e algumas mesas baixas, com bancos percorrendo uma das paredes, que continha uma
lareira. Havia outra mulher ali, aparentemente algum tipo de atendente, que lhes deu roupas
dos aparadores que percorriam uma parede. A primeira mulher gesticulou para elas seguirem as
indicações da atendente, depois saiu. Ysaye ficou um pouco nervosa, mas elas eram três e a
atendente uma; caso alguma coisa desse errado, certamente poderiam dominar uma mulher
primitiva. As roupas eram condizentes com o clima do lugar e o aquecimento ineficiente; havia
fogo queimando na lareira, mas não dava para dizer que aquecia muito o aposento. Após muita
hesitação, enquanto a mulher fazia sons encorajadores, as três terráqueas tiraram os uniformes
molhados e envergaram a vestimenta nativa. Era isso, ou arriscar contrair alguma coisa.
Ysaye sentiu-se satisfeita com as saias e anáguas compridas e pesadas, embora se sentisse
um pouquinho ridícula quando a atendente teve de lhe mostrar como vesti-las. Havia três
camadas de saias internas e camisolas de flanela, cobertas de blusas, e saias externas de lã em
vários padrões de tartã. Ysaye, acostumada à túnica e às calças do uniforme, se perguntou
como ia poder se mexer vestida desse jeito.
Bem, ao menos elas estavam aquecidas, e ela sabia que as mulheres na Terra usaram saias
assim durante séculos. Na realidade, ao olhar para Elizabeth, estranhamente foi como ver um
retrato de uma velha biografia ganhando vida. Elizabeth parecia bastante à vontade naquela
roupa. Ysaye ainda achava um pouco esquisito basear as vestimentas no sexo da pessoa, ao
invés de no que a pessoa pretendia fazer enquanto as usava, mas supôs que devia fazer sentido
para essa gente.
A atendente lhes deu uma loção perfumada e gesticulou para elas passarem nas mãos, nos
pés e no rosto. Aurora examinou a loção atenciosamente enquanto a esfregava nas mãos.
– Parece ser algum tipo de paliativo para feridas ou ulcerações; aposto que a utilizam com
muita frequência neste lugar. Também deve ser bom para queimaduras. – Ela olhou para a
lareira no fundo da câmara. – E queimaduras provavelmente são uma ocorrência muito
comum aqui.
A mulher que as trouxera para cima reapareceu e gesticulou para elas seguirem-na de volta
para baixo, para uma câmara ainda maior, onde haviam sido dispostas mesas com pratos de
fatias de carne fria, algum tipo de pão, grosso e pesado, e jarros com alguma bebida quente.
Grupos de nativos encontravam-se comendo às mesas, endereçando-lhes olhares curiosos
conforme elas entravam.
– Nós podemos comer essas coisas? – disse Ysaye em tom de dúvida.
Aurora mexeu os ombros.
– Podíamos comer as rações do abrigo. Trata-se do mesmo tipo de comida, só que fresca –
carne fresca ao invés de seca, pão recém-assado ao invés daquele pão para viagem. Não sei o
que é a bebida, mas se não for alcoólico nem despertar uma reação alérgica, eu diria que você
está segura.
Ysaye sentou com as outras na mesa comprida de madeira, e experimentou a bebida
cautelosamente, depositando um pouco na língua e esperando o formigamento de advertência
que indicaria se ela fosse gravemente alérgica à substância. Logo, ao perceber que não esboçava
nenhuma reação, provou mais alguns goles, segura de que, mesmo que a coisa a deixasse
nauseada após um instante, não ia fazer com que entrasse em choque e matá-la antes que
pudesse ser socorrida.
A bebida revelou-se muito semelhante ao chocolate quente, só que um pouco mais amarga
do que Ysaye estava acostumada. Também tinha uma bebida que se tratava claramente de
cerveja, mas Ysaye decidiu, depois de um gole cauteloso, que gostava menos ainda que da
cerveja terráquea, que ela considerava boa somente para lavar os cabelos. As canecas eram altas
e tinham rostos gravados de um lado, e Ysaye deu-se conta de que, ou as gravuras foram feitas
para ficar na posição oposta à pessoa, ou...
Aurora, ao seu lado, aparentemente tinha percebido a mesma coisa.
– Dê uma olhada ao redor da mesa, Ysaye – ela murmurou bem baixinho. – A maioria das
pessoas aqui é canhota.
– Tem razão – disse Ysaye. – Diga a Elizabeth para tomar cuidado com o que ela faz com o
cotovelo... não contribuirá nada para a nossa imagem, se ela golpear as costelas do vizinho.
– Eu queria que pudéssemos falar com eles – disse Aurora. – Adoraria saber sobre seus
suprimentos medicinais.
Ysaye fitou cautelosamente o sanduíche compacto que tinha feito, esperando que todos os
ingredientes fossem tão inócuos quanto pareciam.
– Seria muito melhor poder mandar uma mensagem para a nave. – Olhou ao redor para os
nativos de uma forma subreptícia. – Pela aparência deles dá para dizer que é possível que sejam
de origem terráquea, mas aparentemente não falam o Padrão.
– Há cerca de meia dúzia de naves que partiram antes que existisse um idioma Padrão –
disse Elizabeth, escutando com a maior atenção o burburinho no salão. – Conheço alguma
coisa dos antigos idiomas, e não tenho certeza, mas acho que estou entendendo uma ou duas
palavras aqui e ali.
– Agora que você falou – disse Ysaye um pouco surpresa – Sei do que está falando. É como
tentar identificar uma música que você nunca ouviu antes, mas feita por um compositor cujo
estilo você conhece bem.
– Talvez seja mesmo uma colônia de uma Nave Perdida – Elizabeth disse excitada. – De
qual delas será? Alguma ideia?
– Acho que podemos excluir seguramente aquela de Zaire – respondeu Ysaye secamente. –
Eles estão olhando para mim e para o comandante Britton como se nunca tivessem visto gente
negra na vida. E não há ninguém aqui que não pareça de descendência norte-europeia. Isso
deve estreitar bastante as possibilidades... uma vez que eu possa voltar para o computador e
checar as listas das velhas naves!
– Mas se eles são de origem terráquea, nós não deveríamos poder entender mais do que
estão falando? – Indagou Aurora. – Afinal, o idioma não pode ter mudado tanto assim!
– Acha mesmo que não? – Elizabeth soltou uma risada. – Detesto desapontá-la.
– Mas existem termos médicos que não mudaram em milênios!
– Se eles forem de uma nave realmente antiga – disse Ysaye –, poderiam ter tido cerca de
dois mil anos para modificar o idioma. – Ela olhou para Elizabeth, que fez um aceno de cabeça
encorajador. Prosseguiu: – Isso é tempo de sobra para uma língua divergir. Veja a diferença
entre o inglês antigo e o médio... e eles eram separados somente por dois séculos, em uma ilha
bem pequena.
– Que, se me lembro bem – disse Elizabeth –, estava intermitentemente sendo invadida por
estrangeiros.
Isso fez aflorar uma nova ideia na mente das três. A natureza claramente defensiva daquela
estrutura podia significar que essa gente estava frequentemente sob ataque. Se isso fosse
verdade, será que suspeitavam que eles podiam ser inimigos?
– Se eles acham que somos invasores – comentou Aurora, gesticulando para um novo
grupo de pessoas entrando no salão –, certamente estão nos tratando muito bem. Dando-nos
roupas, comida, e até incluindo-nos no entretenimento da refeição.
Elizabeth se virou para olhar.
– Menestréis! – ela disse com uma mistura de prazer e especulação. – Oh, eu mal posso
esperar para ouvir como é a música deles! Se eles forem de uma Nave Perdida, é possível que eu
possa reconhecer alguma coisa... as canções permanecem mais tempo intactas do que os
idiomas originais. Tomara que eles cantem.
Ysaye olhou com curiosidade para os instrumentos que os músicos portavam. Alguns
pareciam um cruzamento entre guitarra e alaúde, embora o número de cordas variasse de
quatro a quatorze. Quando o número de cordas excedia as quatorze, parecia ocorrer uma
mudança para uma espécie de harpa, só que segurada sobre o colo do músico.
Após vários minutos de afinações agradáveis, eles começaram a cantar. Ainda não tinham
chegado ao primeiro refrão quando Elizabeth exclamou:
– Isso é uma forma de gaélico... e eu conheço essa canção!
– Você conhece essa canção? – Quem perguntou foi Evans, aproximando-se das mulheres,
olhando para Elizabeth com curiosidade. Os homens finalmente haviam aparecido, e também
usavam roupas nativas.
Mas foi Ysaye quem respondeu.
– Ela não só conhece como também já cantou essa canção. Eu já ouvi.
Elizabeth acrescentou:
– Isso quer dizer que eles são mesmo uma Colônia Perdida, têm que ser. Eu até acho que sei
qual!
Evans endereçou-lhe um olhar cético.
– Como sabe disso?
Desta vez Elizabeth não se permitiu ser intimidada.
– Eu tinha parentes na nave; trata-se de uma antiga tradição da família, e um mistério. Eles
partiram antes das naves modernas – na época em que mal tínhamos verdadeiros sistemas de
navegação. Qualquer coisinha podia desviá-los do curso: uma tempestade gravitacional, por
exemplo, que hoje não seria problema nenhum. Até onde sei só existia uma colônia que falava
gaélico; era tripulada por algo chamado Comuna das Novas Hébridas. A Terra perdeu contato
com eles, e registraram-nos como perdidos. Eram formados principalmente de Neo-Luddites,
e tinham...
– Um instante – interrompeu Evans –, vá com calma. O que no mundo... qualquer mundo...
eram neo-sei-lá-o-quê?
– Bem, os Luddites originais eram radicais que costumavam destruir moinhos de tecidos e
teares automáticos por achar que tirariam o emprego de muitos tecelões – explicou Elizabeth.
– Em geral, Neo-Luddite era um nome dado a qualquer um que fosse geral e politicamente
contra muita tecnologia... ou o que achasse que era muita tecnologia... ou que quisesse menos
tecnologia do que os governos. – Ela mexeu os ombros. – É mais ou menos um termo
genérico que cobria uma boa parte das primeiras colônias.
Evans soltou uma risada breve e seca.
– Isso incluiria muita gente, mesmo atualmente.
Havia alguma coisa naquela risada de que Ysaye não gostou, mas Elizabeth aparentemente
não notou nada.
– Este grupo era formado principalmente por artesões e primitivistas; de forma que foram
recebidos com entusiasmo pela Autoridade Colonial daquela época, por que normalmente
estavam dispostos a viver sem as conveniências modernas durante alguns anos – e na realidade
gostavam bastante da ideia.
Evans sorriu.
– Dá para imaginar. Que sorte a deles! Pena que ninguém lhes disse a frequência com que
essas naves tendiam a se perder.
Elizabeth prosseguiu:
– Eu mesma sou de descendência escocesa – foi assim que fiquei sabendo da história. Era
uma espécie de história romântica e triste na minha família, “os perdidos”. Eles pensavam que
poderiam recriar a Escócia e a Irlanda dos dias antigos, antes da “contaminação inglesa”. Todo
mundo devia falar gaélico fluentemente. Quando entrei para o Serviço Espacial... bem, isso não
vem ao caso. Mas conheço muitas antigas canções folclóricas gaélicas. O gaélico como idioma
morreu na Terra. E se essas pessoas preservaram o idioma, muitas canções que desapareceram
na Terra podem ter sido preservadas aqui. Na verdade, é bem provável que tenham sido – ela
exclamou – Que incrível oportunidade!
– É, você e David terão muito trabalho, se isso for verdade – disse Evans. – Recriar o
idioma a partir de pessoas vivas... e com a recente onda de interesse em música antiga...
– Mas eu nunca pensei que alguma coisa nesse mundo acabaria se revelando do meu campo
de especialidade – disse Elizabeth com felicidade. – Agora, acho que o melhor é falar com o
capitão...
– Vai ter que esperar até podermos encontrá-lo – relembrou-a Evans. – Você fala esse
idioma, qualquer que seja?
– Gaélico? Não, só conheço umas poucas palavras... só o que está nas canções – ela disse,
melancólica. – Mas agora que sabemos que eles são de uma Nave Perdida, dá para fazer muitas
suposições. E muitas línguas humanas, inclusive muitas das que já desapareceram, estão no
computador da nave. Logo que pudermos voltar e ter acesso ao corticador, não teremos muita
dificuldade para nos comunicar.
Ysaye não conseguiu reprimir sua descrença.
– Não teremos nenhuma dificuldade? Sinceramente, Elizabeth. Depois que acabamos de
discutir a facilidade com que um idioma pode mudar?
– É claro – Elizabeth apressou-se em corrigir – que o idioma terá evoluído; haverá muitas
palavras novas para novas situações. – Ela continuou hesitante: – Mas pelo menos teremos as
bases, e poderemos começar o trabalho sem ter de começar do zero. Sabemos de onde vieram,
e que a origem deles é basicamente terráquea... independentemente de podermos contar isso a
eles ou não.
– Mas por que não poderíamos contar? – perguntou Evans. – Isso precisa ser feito com
base na hierarquia, ou coisa parecida?
– É lógico que não. – Elizabeth olhou-o surpresa. – É uma questão de choque cultural. Veja
a situação do ponto de vista deles. Aqui está você, um planeta que nem mesmo viaja pelo
espaço, e nós chegamos e dizemos que eles foram simplesmente, por assim dizer, semeados
aqui por uma sociedade interestelar. Que eles são nós. Eles provavelmente esqueceram tudo.
Provavelmente até tem alguma variação da velha teoria da origem a partir dos Deuses.
Evans disse desdenhosamente:
– Baboseiras religiosas e supersticiosas.
Elizabeth tornou a dar de ombros, e agora que ela estava fora da sua área de especialidade,
Ysaye achou que a amiga estava perdendo a segurança.
– Talvez dentro dos seus padrões, mas o que mais eles poderiam fazer, após dois mil anos
de isolamento? Especialmente se a nave deles caiu mesmo. Há meios de lhes dizer quem e o
que são sem correr o risco de ofendê-los ou chocá-los. É o trabalho de um xenopsicólogo,
uma das coisas para que serve essa especialidade.
– Acho que seria melhor esperamos um xenopsiquiatra – disse Ysaye, franzindo o cenho
para Evans e endereçando um aceno de cabeça admonitório para a amiga. Elizabeth parecia
muito ansiosa para experimentar com suas próprias mãos inexperientes. – É a especialidade
deles.
– Bem, eu tenho alguns conhecimentos em xenopsicologia – disse Aurora – mas acho que é
melhor esperar um xenopsiquiatra profissional. Não temos nenhum nessa equipe. Na nave...
talvez o Dr. Montray.
– Eu não tenho certeza se poderemos esperar – disse Elizabeth – uma vez que sabemos
quem eles são, mas não sabemos quando a nave poderá mandar alguém...
Elizabeth balançou a cabeça e virou o rosto. Escutou os músicos um pouco, mas quando
eles fizeram uma pausa no final de uma ária, de repente ficou de pé e, com uma expressão
determinada, começou a cantar as palavras da antiga canção folclórica que conhecia há muito
tempo, com uma voz clara e elevada:

Por que deveria eu


Sentar a suspirar
Catando samambaias, catando samambaias...
Por que deveria eu
Sentar a suspirar
Solitária e esgotada

O harpista, que havia acabado de começar outra melodia, interrompeu-se no meio de um


acorde; levantou e dirigiu-se à Elizabeth, espantado. Falou com ela no que parecia uma
enchente de gaélico, muito depressa e ininteligível. Elizabeth fez sinal indicando que não
compreendia, que só entendia as palavras da canção. Após um instante ela começou outra
canção antiga; esta ela só podia cantar em inglês, pois não conhecia a versão em gaélico. Após
um momento, entretanto, o harpista reconheceu a melodia e começou a tocar com ela. Havia
algumas diferenças, mas depois de um momento eles se ajustaram, chegando juntos ao refrão.
– Que canção é essa? – perguntou Aurora. – Eu ouvi você cantar muitas vezes.
– Aquela para a qual eu não conhecia as palavras em gaélico? Chama-se “O Encontro das
Águas”, e aparentemente é a melodia mais antiga dos idiomas inglês ou irlandês. Data pelos
menos do século doze, muitos anos antes de a Terra ir para o espaço. – Ela sorriu. – Pelo
menos temos uma evidência segura de que eles são da colônia das Novas Hébridas. Nenhuma
outra teria conhecido essa canção em particular.
– Data de bem mais do que muitos séculos antes do voo espacial – disse Ysaye. –
Oitocentos anos antes de os terráqueos sequer andarem na lua.
Elizabeth cantou outra canção, dessa vez em gaélico, que os tocadores de alaúde também
acompanharam. Entre eles, parecia haver um ou dois que eram mais músicos que os outros,
mas todos estavam se amontoando ao redor de Elizabeth, ávidos por mais.
O comandante Britton falou por trás deles:
– Bem pensado, Elizabeth! Parece que você encontrou um meio de se comunicar, mesmo
sem falar o idioma...
– Ninguém fala gaélico, atualmente; ao menos ninguém que tenha ido para o espaço, ao que
eu saiba. Talvez alguns velhos professores de idiomas nas universidades mais conceituadas
saibam um pouco – disse Elizabeth. – Isso será remediado logo que pudermos acessar o
computador; teremos as fitas e o corticador. Alguém, provavelmente David, estará falando
gaélico como um nativo dentro de poucas horas. Ou talvez cerca de meia dúzia de nós.
– É o que eu espero – disse Britton. – Esta deve ser nossa prioridade número um, achar um
jeito de nos comunicar com essa gente. Embora um excelente meio para diminuir a hostilidade
potencial, não podemos ficar somente trocando canções folclóricas dia e noite. Acho que...
Ele se interrompeu, de modo que eles nunca souberam o que Britton tinha em mente.
– Sejam profissionais, todos vocês – disse Britton num murmúrio. – Tem gente importante
chegando.
As grandes portas do salão foram abertas, e um homem alto entrou. Parecia estar entrando
na meia idade; os cabelos ruivos estavam começando a ficar grisalhos, mas seus olhos, também
cinzentos, eram penetrantes, e suas roupas, embora semelhantes ao restante, tinham um corte
mais elaborado e eram feitas de um material melhor. Falou por um momento com o harpista
que tocara a canção que Elizabeth reconhecera, depois dirigiu-se a eles e fez uma reverência.
– Quem quer que possam ser – ele disse em Padrão terráqueo, com um sotaque carregado,
mas compreensível – sejam bem-vindos, vocês que trazem música para o meu salão. Eu sou
Kermiac de Aldaran. Não sei de onde são, e parecem ser de um Domínio do qual eu nunca
ouvi falar. Digam-me, vocês são do outro lado da Muralha do Redor do Mundo, ou chegaram
aqui vindos do Reino das Fadas?
Capítulo 10

A tempestade havia sido forte o suficiente para atravessar as Hellers dentro de um dia, e
causar uma considerável nevasca no restante dos Domínios. Por algum tempo, enquanto o
vento gemia na sua janela, Leonie teve a estranha impressão de que a tempestade estava no seu
encalço, para se vingar por ela ter-lhe arrebatado os estranhos. Mas a tempestade terminara
finalmente, e o jardim da Torre de Dalereuth apresentava uma combinação de neve e lama que
alcançava a altura dos joelhos. As flores emergiam dos seus invólucros protetores.
Submetida pela sua promessa, Fiora seguiu à procura da sua arrogante aluna, e a esteira de
seus pensamentos levou-a até o jardim da Torre.
Leonie estivera perambulando pelo jardim, embora não fosse um lugar muito agradável
naquele momento. Desta vez o tempo não fora obra dela, e, fiel à sua promessa, a menina não
fez nada para modificá-lo. Na realidade, havia sido uma experiência perturbadora – a sensação
de querer modificar uma coisa e saber que não podia fazer isso, não ousar cumprir seus
desejos. Ela viera o jardim naquela hora, não para contemplar sua obra, mas para considerar o
que poderia ter evitado, caso tivesse permissão para isso. Movimentava distraída as cordas do
balanço quando Fiora, sacudindo fastidiosamente a neve dos sapatos, encontrou-a.
– Achei que gostaria de saber que o destacamento de busca enviado por Al-daran
encontrou seus estranhos.
Leonie se virou para Fiora no maior interesse.
– Não disseram mais nada?
Fiora sorriu para ela, como se a curiosidade da menina a divertisse.
– São um grupo de meia-dúzia de homens e mulheres, que buscaram refúgio no antigo
abrigo para viajantes entre Alderes e Alaskerd. Provavelmente vieram de muito longe, mas
pareceram totalmente inofensivos. A técnica nas transmissões disse que conheciam algumas
das canções das montanhas mais antigas.
Aquelas informações escassas só fizeram aumentar a curiosidade de Leonie.
– Por que disse que eles devem ser de muito longe?
– Não tenho certeza... foi isso o que a mensageira disse – respondeu Fiora, e franziu o
cenho, confusa, pois era mesmo um comentário muito esquisito. – São pessoas muito estranhas;
deixe-me pensar, pois ela disse outras coisas que poderiam confirmar isso. – Ela fez uma pausa
para refletir. – Sim, ela disse que eles aparentemente não conhecem nenhum de nossos
costumes. Não falam casta ou cahuenga, embora conheçam diversas canções das montanhas, por
isso é possível que seja esse o motivo da mensageira dizer que são de muito longe. Ou, talvez,
por causa das roupas e costumes deles. Algumas mulheres podem ser Renunciantes, ou coisa
parecida, pois usam calças, e algumas delas brincos; contudo elas se encontravam na
companhia de homens, de forma que, seja o que forem, não são Renunciantes comuns, de
acordo com sua Carta. – Ela balançou a cabeça à lembrança da mensagem. – Tenho que
concordar com a operadora de matriz que me contou sobre eles. Sem dúvida são pessoas de
aspecto estranho. Não sei mais do que isso.
Leonie esfregou a têmpora, depois murmurou impensadamente:
– Tenho certeza de que eles vieram das luas.
Fiora balançou a cabeça.
– Sei que disse isso na noite em que ficou sabendo dessas pessoas... e esteve correta em
todo o resto... mas Leonie, isso ultrapassa os limites da credibilidade. Como é possível? Sabe
que nada humano pode viver nas luas.
Embora não tivesse pretendido que Fiora ouvisse suas palavras, Leonie sentiu-se impelida a
defendê-las.
– Não sei como é possível – disse com teimosia –, mas posso sentir.
– É bem possível – disse Fiora com uma leve sugestão de que estava sendo indulgente com
Leonie para não discutir com a menina. Leonie franziu um pouco a testa, mas tratou de se
controlar. – Tenho de admitir que aquilo que disseram-me não está compatível com nenhum
povo de que já ouvi falar. Nem mesmo gente das Cidades Secas ou o povo selvagem das
montanhas fala línguas que ninguém compreende... nem agem ou se vestem como essas
pessoas.
– Podem perfeitamente ter vindo das luas – retrucou Leonie – E não sabemos de nenhum
outro povo a que eles podem pertencer! Com certeza não são chieri... então, de onde é que você
acha que eles podem ser?
Fiora mexeu os ombros.
– Pessoalmente, creio que podem ser de uma terra além das montanhas, onde pensávamos
que só existia um deserto congelado. Talvez, até mesmo do outro lado da Muralha ao Redor
do Mundo. Ou quem sabe as velhas fábulas sobre o povo encantado sejam verdadeiras no final
das contas, e eles vieram dos reinos encantados. O que quer que possam ser, não faz diferença
para nós; eles foram recebidos por um destacamento da Torre Aldaran, e talvez pelos próprios
Lorde e Dama Aldaran. Não sabemos quem ou o que são, e creio que não é bom entregar-se à
curiosidade ociosa sobre eles. Se for de importância para nós, saberemos muito em breve. –
Ela fez uma breve pausa, depois prosseguiu, parecendo relutante – Como uma Hastur, você
deveria saber perfeitamente que existe pouco amor perdido entre Aldaran e o restante dos
Domínios. Não seria surpresa alguma, se Lorde Kermiac de Aldaran não aceitar bem qualquer
investigação. Talvez seja mais político fazer de conta que esses estranhos são viajantes comuns,
até os Aldarans decidirem nos informar do contrário.
– Como quiser – disse Leonie, secretamente prometendo a si mesma entrar em contato
com Lorill logo que possível, a fim de pedir a ele ou talvez a seu pai, Lorde Hastur, para ir a
Aldaran a fim de investigar. Não fazia o menor sentido. Se existiam pessoas tão estranhas nas
mãos de Lorde Aldaran, alguém não deveria se preocupar? Qual era o problema de Fiora? Ela
não tinha nenhuma curiosidade, a menor preocupação com o que aqueles estranhos poderiam
significar para ela?
Ora, Leonie preocupava-se o bastante pelas duas. Longe de pensar que eles ficariam
sabendo muito em breve, como disse Fiora, achava que ali na Torre se encontravam tão
isolados do padrão habitual da vida Comyn que poderiam não descobrir nada sobre eles até ser
muito tarde...
Muito tarde? O que a fez pensar assim? E muito tarde para que? Ainda assim, havia algo
sinistro nestes estranhos, por mais inocentes que parecessem. Tão sinistro quanto seus
pressentimentos de problemas vindos das luas.
Fiora, é evidente, captara alguns de seus pensamentos. Olhava constrangedoramente para
Leonie, os olhos cegos parecendo fitar para e através da aluna.
– Você está decidida a descobrir sobre esses estranhos, não é?
– Acho que é meu dever – disse Leonie, rabugenta. – Embora eu não esteja completamente
treinada, você mesma disse que meu laran é muito forte. Ele me informou que essas pessoas se
encontravam naquele abrigo. Ele me avisa que há algo de errado com eles. Não sei qual é o
problema, mas sinto que devemos investigar.
– Devia se contentar em deixar o assunto a nosso cargo, Leonie. – disse Fiora com um
suspiro. – De verdade. Se há mesmo algo a ser feito, sem dúvida podemos resolver. Mas
adiantaria alguma coisa mandar você não se envolver?
– Absolutamente nada – disse Leonie com um leve sorriso, e pensou: Fiora está começando a
me conhecer muito bem. – Não me envergonho de minha curiosidade! Estive certa muitas vezes;
não vejo motivo para esquecer disso. – E também estou certa agora. Fiora quer que eu pense primeiro
nos outros... ora, é o que estou fazendo. Ninguém mais se preocupa com esta gente, portanto é minha obrigação
me preocupar. Qualquer coisa que eu ache que preciso saber... eu encontrarei um meio de aprender.
– Leonie – disse Fiora com relutância. – Você mais do que qualquer um deveria saber que o
Conselho Comyn não se encontra nos melhores termos com o Domínio de Aldaran. Não
sabemos de tudo que eles fazem nas Hellers. Dizem que são os únicos a não obedecer a
Aliança. E parecem pensar, não só que não nos importamos com o que eles fazem como
também que não deveríamos nos importar, que não temos direito de nos importar. São pessoas
perigosas, lá no alto das Hellers, pouco melhores do que bandidos das montanhas. Preciso
pedir que tenha cautela.
– Mas, se eu demonstrar interesse, eles saberão que prestamos atenção naquilo que estão
fazendo. Saberão que temos todo o direito de saber o que está se passando nas montanhas.
Ficarão sabendo que o que eles fazem em seus castelos nas montanhas é observado e avaliado.
– Ela empinou o queixo orgulhosamente. – Sou uma Hastur. Você mesma disse que preciso
me importar com o povo dos Domínios... é exatamente isso o que estou fazendo. É minha
obrigação tomar conta deles, e creio que esta é a única forma de fazê-lo.
Fiora suspirou e ficou calada, mais por que ela não queria dar à Leonie uma proibição que a
menina desobedeceria deliberadamente, do que por que não se importava. Ela se importava, e
muito.
Não mentira para Leonie; a Guardiã em Aldaran deixara claro muitas vezes, embora
sutilmente, que Lorde Kermiac não aprovava a “intromissão” do Conselho. Havia rivalidade
de sangue entre as Hellers e as Planícies por tanto tempo quanto existia a Torre de Dalereuth,
há tanto tempo quanto ela sabia. Não havia nenhum registro do fato que dera início à
duradoura animosidade, muito embora Fiora frequentemente se perguntasse se o problema
datava de antes de Varzil, o Bom, e a Aliança. Somente Aldaran jamais assinara a Aliança, que
proibia os homens a portar e utilizar armas que ultrapassavam o alcance da espada. Como
resultado, embora cessassem de utilizar as armas mortíferas que fizeram a Aliança ser forjada
para começo de conversa, os Lordes dos outros Domínios haviam daquele dia em diante
tratado Aldaran como uma espécie de Domínio proscrito. De sua parte, os Lordes de Aldaran
mantinham uma separação orgulhosa, negociando com os Domínios somente através de
intermediários: comerciantes, Renunciantes, e os operadores das Torres. E este último caso era
um pouco difícil, às vezes, uma vez que Aldaran só aceitava em sua Torre pessoas de seu
próprio Domínio, e muitas pessoas do Comyn que iam trabalhar nas outras Torres não
conseguiam trabalhar com os de Aldaran sem uma certa animosidade despertar. Desde que
Fiora se tornara Guardiã em Dalereuth, evidentemente, este problema não surgira. Ela não era
Comyn e não possuía nenhum de seus preconceitos. Podia se comunicar e trabalhar, e, com
efeito, se comunicava e trabalhava com os de Aldaran com a mesma facilidade com os de
Arilinn. Mas Leonie... somente um indício de seus pensamentos arrogantes e a Guardiã em
Aldaran fecharia as transmissões por completo, para não ter de se entender com ela. Fiora
sabia disso por experiência; vira um Ardais precipitar um incidente assim em Arilinn. Fora
necessária muita persuasão por parte dos trabalhadores de origem humilde para Aldaran tornar
a se abrir para Arilinn.
Enquanto voltava para a Torre ela especulava se Leonie ia mesmo provar-se um problema
além de sua capacidade de resolver. Era a primeira ocasião que a Guardiã da Torre de
Dalereuth se deparava com um problema que ultrapassava a sua capacidade. Tratava-se de uma
sensação nova para Fiora, que ela não desfrutava nem um pouco. Pensou: Não estou mais
acostumada à incerteza do que Leonie – e muito menos acostumada à derrota.
Talvez, se eu mantê-la ocupada... e esgotada. Fiora balançou a cabeça, concordando consigo
mesma. Ainda assim, isso pode solucionar o problema. Ela desejava participar ativamente do trabalho na
Torre, e certamente provou possuir a força necessária. Pode ser muito voluntariosa, e desprovida de prática na
hora de trabalhar no círculo, mas sem dúvida tem capacidade de trabalhar nas transmissões, e liberar outra
pessoa mais treinada para fazer outro trabalho. E se ela trabalhar à exaustão... ora, ela pegará no sono, e não
haverá possibilidade de ela se intrometer onde pode causar problemas, com sua curiosidade.

Pelo restante daquele dia Leonie teve pouco tempo livre para pensar nos estranhos. Foi
convocada logo que entrou na Torre, uma mensagem que a surpreendeu e satisfez. Fiora
decretara que ela possuía toda a força para dar sua contribuição como uma verdadeira
operadora de matriz, ao menos em tarefas que envolviam apenas uma pessoa. Leonie, pela
primeira vez, receberia permissão para ocupar um turno nas transmissões, vigiando e
escutando as mensagens enviadas das outras Torres.
Era uma função exaustiva e exigente, nova o suficiente para mantê-la excitada. Fiora vinha
uma ou duas vezes, para inspecionar; Leonie aguardava alguma reação ou crítica, mas a
Guardiã apenas gesticulava afirmativamente, e dirigia-se para outra tarefa. Enfim, alguém veio
para rendê-la; naquele momento ela estava faminta e só pensava em comer, de maneira que o
escurecer já passara fazia muito tempo quando Leonie teve a oportunidade de se comunicar
com o irmão gêmeo.
Ocorreu-lhe, ao deitar-se na cama, que a intenção de Fiora podia ser esgotá-la a fim de
evitar que descobrisse mais a respeito dos estranhos. Leonie esboçou um sorriso, enquanto
relaxava cada músculo vagarosamente e flexionava a mente. Se Fiora pensava que um turno
nas transmissões bastava para esgotar Leonie – ela realmente havia subestimado sua pupila.
Leonie cerrou os olhos e projetou os pensamentos em busca da mente que lhe era tão
familiar que poderia ser um reflexo imperfeito de sua própria mente.
Lorill...
Percebeu uma resposta imediata. Era como se Lorill não estivesse a mais do que um ou dois
quartos de distância. É você, Leonie? Está tudo bem com você e a Torre?
Leonie permitiu que a alegria obscurecesse seus pensamentos. Claro que está. Por que não
estaria?
Conforme ela abria a mente para o irmão relaxando no companheirismo familiar, Lorill
inundou a mente de Leonie com algo parecido com uma gargalhada. Os seus pensamentos
superficiais ainda transpareciam o suficiente de sua recente conversa com Fiora para permitir a
Lorill saber que mais uma vez ela estava fazendo as suas vontades, indepentendemente de uma
oposição oficial.
Ainda com os seus velhos truques, irmã? Ou será que eles não deixam você se safar na Torre? Achei que
quando estivesse aí...
Leonie também lhe transmitiu suas risadas. Você achou que talvez eles me pusessem em arreios como
um cavalo, ou em correntes, como uma noiva das Cidades Secas? Absolutamente, embora eu não possa dizer
que eles não tenham tentado. Creio que alguns deles pensam que basta uma reprimenda para me transformar
numa dócil donzela ou criancinha que faz tudo o que mandam, na hora em que mandam. Mas eu efetivamente
aprendi a ser um pouco menos rebelde... ao menos externamente.
Lorill quase perdeu o contato devido à gargalhada que soltou abruptamente. Você, Leonie,
dócil? Eles a conhecem mesmo muito mal. A vida inteira você fez o que queria, assegurando-se de que eu levasse
a culpa... e a punição. Ele tratou de se controlar, a sua voz mental repleta de ironia. Acontece que
você não tem como botar a culpa em mim agora, está muito distante para isso. O que quiser fazer terá de fazer
sozinha... não como naquela vez quando...
Não, escute, ela interrompeu com firmeza a inundação de lembranças de travessuras infantis e
do passado partilhado dos dois. Você não ficou sabendo? Existem estranhos em Aldaran, e acho que o
Conselho devia ser informado. São pessoas muito estranhas. Eu toquei suas mentes, e eles não são de nenhuma
terra ou Domínio de que eu já ouvi falar. Não falam nenhum idioma que eu possa reconhecer, e o pouco que
Aldaran nos contou é que eles não falam nem casta nem cahuenga. Acho que o pai deveria investigar
pessoalmente. Aldaran não pode ter a oportunidade para extrair segredos dessas pessoas até o Conselho ficar
sabendo.
Lorill tornou-se imediatamente sóbrio. Leonie, você sabe que o pai não pode ir para Aldaran; existe
uma rivalidade de sangue entre os lordes de Hastur e a gente de Aldaran. Se ele se rebaixasse a tal ponto,
mesmo com o expediente de enviar um mensageiro...
Impaciência coloriu sua projeção, pois Leonie tivera muito tempo para pensar no que
deveria ser feito, enquanto estava ociosa nas transmissões. Oh, eu sei que ele não pode, respondeu,
mas ele poderia mandar você, Lorill... você ainda não tem idade para representar uma ameaça para Lorde
Aldaran, e é os olhos e ouvidos do pai. Não é a obrigação juramentada de Hastur saber o que acontece nos
Domínios? Não deveria existir ao menos um lorde Comyn de alta posição que informasse a Kermiac de
Aldaran que existem olhos sobre suas ações? Esses estranhos...
Se Lorill estivesse com ela, Leonie sabia que ele teria erguido as mãos. Ah, já entendi! Você
quer que eu vá lá para satisfazer a sua curiosidade sobre eles. Pois fique sabendo que não o farei. Foi-se o
tempo em que era eu quem assumia a culpa pelo que você fazia, e concordava com o que você queria. Agora sou
herdeiro de Hastur, nunca mais assumirei a culpa pelas suas travessuras. Isso precisa ter um fim, Leonie.
Ela franziu a testa; isso não estava indo como ela previra. Lorill, ela disse aplacadoramente,
você é homem, e, como você mesmo disse, o Herdeiro de Hastur. O Conselho precisa de você, ao passo que eu
não tenho voz entre eles. Trata-se de pessoas desconhecidas com motivos desconhecidos que os trouxeram aqui.
Podem ser perigosos... podem estar em busca de um aliado. Você não acha que é necessário saber o que eles estão
fazendo em Aldaran?
Lorill não se mostrou impressionado. Não, não acho. E eu sempre fico desconfiado quando você usa
esse tom de voz comigo. Não imagino como esses estranhos podem representar uma ameaça grave para alguém.
Após mais meia hora de persuasão, o máximo que ela pôde obter de Lorill foi uma
promessa de má vontade de que, se conseguisse a permissão do pai – E não há como assegurar que
ele me concederá, preveniu Lorill – ele iria para Aldaran fazer à Lorde Kermiac algumas perguntas
cuidadosas a respeito de seus hóspedes. Talvez tentasse encontrá-los pessoalmente, a fim de
lhes proporcionar alguma noção de que existiam outros Domínios além de Aldaran com suas
próprias prioridades. Se pudesse efetivamente se encontrar com esses estranhos, talvez ele
conseguisse convencê-los de que Kermiac de Aldaran não constitui o único poder que eles
precisavam conhecer.
E é provável que eles simplesmente me mandem ir cuidar da minha vida. Mesmo sendo um Hastur... ou
justamente por isso, preveniu Lorill. Não imagino Lorde Aldaran dando satisfações de suas ações para
qualquer homem das planícies, muito menos um Hastur. Mesmo alguém viajando por motivos pessoais, sem o
conhecimento do Conselho...
Ele interrompeu a conversa alegando estar exausto, despedindo-se apressadamente. E
Leonie teve que se contentar com isso.
11

Vocês vieram do Reino das Fadas?


A indagação surpreendeu Ysaye; nunca na vida experimentara efetivamente a realidade da
expressão “choque cultural”, até aquele momento – pois embora o planeta pudesse ser uma
Colônia Perdida, descendente de espaçonautas como ela, era como se essas pessoas fossem
completos alienígenas. Eram de fato descendentes... mas possivelmente sem nenhuma
lembrança de sua origem. Não só os registros de seu passado terráqueo foram provavelmente
perdidos, como sua origem fora transformada em mitos. Eles aparentemente sequer
reconheciam os seus longínquos “primos” como seres humanos.
Como se poderia explicar viagens espaciais e um império que transpunhas as estrelas a
alguém que aparentemente acreditava em fadas? Mas talvez ela estives-se exagerando. Será
possível que as histórias de viagens espaciais tivessem sido transformadas em contos de fadas?
Era isso que esse homem tencionava dizer?
Talvez seja somente uma reação às canções folclóricas de Elizabeth, ela pensou, esperançosa.
Elizabeth se mostrava muito embaraçada. Ao menos será um desafio. Se ela e David queriam uma
cultura para dedicar suas vidas, creio que encontraram. Este planeta possivelmente tem trabalho suficiente para
alguns milhares de linguistas de antropólogos.
Ysaye ficou aliviada quando o oficial superior presente, o comandante MacAran, se
adiantou. MacAran não era mais xenopsicólogo do que ela, mas era seu superior; ela sentia a
maior satisfação em deixá-lo a cargo do problema. Ao menos ele era treinado em diplomacia.
– Quer dizer que você descobriu um idioma comum? – ele indagou, olhando de Elizabeth
para Lorde Kermiac, com uma expressão interessada e esperançosa.
– Comandante, ele está falando Padrão terráqueo – disse Elizabeth, perplexa. – Isso é
melhor que um idioma comum.
O comandante Britton olhou para ela como se pensasse que Elizabeth havia enlouquecido.
– Não, Elizabeth, ele não está falando Padrão – respondeu Britton, cauteloso. A expressão
de MacAran transparecia claramente que ele desconfiava que Elizabeth sofria de uma pancada
na cabeça. – Até onde posso saber, ele está falando um idioma diferente do dos músicos, mas
definitivamente não Padrão terráqueo. Eu diria que está mais próximo de algumas das suas
canções folclóricas do que da linguagem dos músicos... mas eu não sou especialista no assunto.
– Mas, então, como eu posso compreendê-lo tão bem? – indagou Elizabeth, atordoada. –
Eu poderia jurar que ele está falando o Padrão.
Ela olhou repetidamente de Britton para MacAran, empalidecendo.
– Eu posso responder a esta pergunta – anunciou Kermiac, que monitorava a discussão. Ele
sorriu brandamente, como se Elizabeth fosse uma criança e disse num tom apaziguador, como
se soubesse como aquilo a alarmava: – Você está ouvindo meus pensamentos, é evidente.
– Ela está escutando o que? – David ficou um tempo parado atrás de Elizabeth, ouvindo
com a testa franzida em concentração, enquanto procurava compreender o que os músicos e
os outros estavam dizendo. Mas esta declaração foi incomum o bastante para excitar uma
reação ao seu conteúdo, no lugar de uma análise do fraseado e da escolha das palavras. E
Ysaye percebeu que David também podia compreender o homem.
– Eu sou Comyn, é claro, e, portanto, telepata – prosseguiu Kermiac, inalterado, como se
isso fosse mais natural que dizer “e portanto respiro oxigênio” –, e, ao que parece, alguns de
vocês me entendem, ao passo que outros, não. Isso é simples de explicar: aqueles entre vocês
que me compreendem também são telepatas, embora sejam... menos experientes do que eu.
Ysaye pestanejou. Por tinha tanta certeza que ele pretendia dizer: “Embora vocês sejam tão
mal-ensinados e atrapalhados”?
– Então – disse Kermiac, tornando a se voltar para Elizabeth –, como você me
compreende, conte-me de onde vieram, e por que motivo?
Ysaye, ouvindo com a maior atenção, percebeu que Kermiac não falava em nenhum idioma
que ela conhecesse; contudo, ela compreendia cada palavra perfeitamente. Ao estudar o
restante do grupo, notou que Elizabeth e David pareciam compreender o tal “Kermiac de
Aldaran”, quem quer que o homem fosse, mas Evans, Aurora, Britton e MacAran ainda
exibiam total incompreensão.
Ela estremeceu, e especulou fugazmente se sua concussão fora pior do que imaginara. Será
que ainda se encontrava deitada naquele abrigo, alucinando tudo aquilo? Não – não estava com
nenhum outro sintoma de um ferimento na cabeça... Uma coisa era observar as demonstrações
de David e Elizabeth, no laboratório, e outra totalmente diferente era ela escutar e
compreender um completo estranho de outro planeta.
E por que eu o compreendo agora? Jamais ouvi nada tão coerente quando trabalhava com David e
Elizabeth. Será que é por que eu simplesmente não estava prestando atenção? Ela decidiu manter essa
percepção recém-descoberta em segredo. Ela poder escutar esse estranho já era ruim, mas pior
seria se se tornasse alvo de piedade, como acontecia com Elizabeth.
Era evidente que Elizabeth não percebia que havia um problema; ela estava confusa, mas
não alarmada.
– É sério que ninguém mais entende o que ele está dizendo?
– Não dá para acreditar que você possa mesmo compreender – disse MacAran. – Eu só
ouço um monte de sons ininteligíveis. Quem sabe você reconheceu palavras de um dos
idiomas que canta, e compreende o que ele diz assim. O que é que ele disse?
– Ele se apresentou, e indagou quem somos nós, de onde viemos e por que viemos. Disse
que se chama Kermiac de Aldaran – disse Elizabeth. Kermiac acenou com a cabeça e sorriu ao
ouvir seu nome.
MacAran alteou uma sobrancelha, mas disse apenas:
– Parece que você é a nossa intérprete de facto. Fale com ele. Pode começar nos
apresentando; geralmente é a melhor maneira de começar.
– Mesmo se já tivermos arruinado por completo o Primeiro Contato – Britton murmurou.
Ysaye simpatizava com ele; nada acontecera segundo o Procedimento e Regulamento, desde o
instante em que adentraram a atmosfera do planeta. E ele e MacAran teriam que ouvir poucas
e boas, quando voltassem para a nave.
Um Primeiro Contato forçado por nativos vindo nos resgatar, contaminação cultural, e amadores fazendo a
sondagem inicial da autoridade local. Não, os mandachuvas não vão gostar nem um pouco disso.
Elizabeth acenou com a cabeça e empinou o queixo.
– Kermiac de Aldaran – ela disse formalmente – Gostaria de lhe apresentar o comandante
Ralph MacAran, líder do nosso grupo.
– Rafe MacAran? – indagou Kermiac, surpreso. Ele avaliou o comandante, enquanto
MacAran fazia um nobre esforço para não retrair-se diante do escrutínio. Kermiac continuou a
falar para Elizabeth como só ela pudesse entendê-lo, embora ao mesmo tempo acenasse para
MacAran, e não hesitasse em manter o contato visual com o comandante. – Sim, ele tem as
feições da família, um pouco. É uma pena que ele pareça ser cego-mental. Então ele não tem
nenhum donas da família?
– A família? – Elizabeth pestanejou, depois o verdadeiro significado das palavras de
Kermiac a despertaram. – Comandante MacAran, o senhor possuía algum ancestral em uma
das Naves Perdidas?
– Não faço a menor ideia – disse MacAran paciente. – Afinal, foi há ao menos mil anos
atrás. Tem mesmo alguma relevância no momento?
Ela balançou a cabeça.
– Bom, ele parece pensar que conhece a sua família. Talvez seja importante. É possível que
eles coloquem a maior ênfase em questões familiares, e você pode ser responsabilizado por
algo que eles andarem fazendo...
– Elizabeth – interrompeu Ysaye em voz baixa –, parece que Kermiac também entende
cada palavra que você fala, e talvez cada palavra que você ouve. – Ela endereçou um olhar
inquisitivo para Kermiac, que sorriu, depois tornou a se dirigir a Elizabeth.
– Exatamente, mestra. – Ysaye não estava enganada; as palavras foram direcionadas tanto a
ela como para Elizabeth. Portanto Kermiac sabia que ela o entendia, embora Britton e
MacAran não tivessem percebido. – O que são Navios Perdidos? – prosseguiu Kermiac. – Não
há oceano algum nas redondezas.
– Mestra? – O termo causou um sobressalto em David. – Será que é uma variação da antiga
palavra em italiana para maestro? – Ele se virou para Elizabeth, na maior excitação. – Tem
certeza de que os músicos estavam cantando mesmo em gaélico?
– Tenho! – Ela respondeu distraída. Estava evidentemente atordoada pelas exigências
conflitantes impostas a ela, e as coisas contraditórias que esperavam dela. – Certeza absoluta!
– Comparem anotações linguísticas mais tarde – disse MacAran severamente. – Estão sendo
grosseiros com nosso anfitrião. Mais que isso, Elizabeth, você é nossa tradutora. Ele acabou de
lhe fazer uma pergunta e você também o compreendeu desta vez?
– Sim, para as duas perguntas – disse Elizabeth, tensa, e parecendo um pouco nervosa,
enquanto Ysaye suspirava aliviada, ao perceber que MacAran não notara que a indagação fora
dirigida a ela, e não a Elizabeth. – Ele quer saber o que são Naves Perdidas. Eu não sei o que
dizer!
MacAran direcionou um olhar somente um pouco menos que repreendedor para Elizabeth,
que abordara o assunto, depois olhou para Aurora.
– Dra. Lakshman, você pode compreendê-lo?
Aurora balançou a cabeça, atarantada.
– Não, senhor. Sinto muito. Nem mesmo um pouco. Estou começando a achar que seria
bom todo xenopsiquiatra ter alguma compreensão de canções folclóricas antigas.
MacAran suspirou.
– Que maravilha. O único elemento do nosso grupo com treinamento em xenopsicologia
não pode compreendê-los, e nossa xenoantropóloga deixa escapar um dos conceitos mais
alienígenas que poderíamos lhes lançar, praticamente na primeira frase que pronuncia!
Ele olhou para Kermiac, que estava observando-os com uma paciência inquisitiva, e se
empertigou um pouco.
– Fale com ele por mim, Elizabeth, mas faça o favor de ser cautelosa. O ga-to saiu da
sacola, mas podemos arruinar ainda mais as coisas.
Ysaye mordiscou o lábio, querendo dizer alguma coisa, mas sem coragem para fazê-lo. Ela
não queria convencer MacAran que se encontrava sob o efeito de ilusões – e ele evidentemente
ignorava completamente o fato de que a frase que continha “deixar o gato sair da sacola” não
saíra no estranho arremedo de gaélico do estranho, mas em bom Padrão terráqueo. Na
verdade, ele estava ignorando o fato de que Elizabeth falava com Kermiac em Padrão
terráqueo, e que Kermiac também compreendia.
Elizabeth corou e suspendeu a cabeça à censura implícita.
– Procure explicar, de forma breve, quem somos, e quem achamos que eles podem ser... –
MacAran prosseguiu –... uma vez que, se eles são uma Colônia Perdida, parecem ter esquecido
o fato. Quando mais gente chegar... se é que poderemos aterrissar aqui, se essas montanhas
infernais não nos derrotarem completamente... o capitão poderá avaliar essa sua nave cujos
passageiros falavam gaélico e lhes proporcionar.. e a nós... os fatos.
Elizabeth mordeu o lábio, e disse para Kermiac, cautelosamente:
– Eu me chamo Elizabeth Mackintosh.
Ela hesitou por um instante, especulando como deveria se dirigir ao homem, e achou por
bem utilizar um simples “senhor”.
– Senhor, este é o comandante Britton, e esta minha amiga e colega Ysaye...
– Eu nunca vi ninguém como eles antes – declarou Kermiac grosseiramente, fitando Ysaye
de esguelha, como se ela fosse algum tipo de exibição. – Quer dizer que eles são não-humanos?
Ou pintam a pele com tinta marrom escura?
Elizabeth, estarrecida, deu-se conta de que o próprio conceito de diferentes raças humanas
era desconhecido para Kermiac. Ela mordeu o lábio, consternada, depois prosseguiu
bravamente:
– Ysaye e o comandante Britton nasceram assim.
– Nasceram assim? – Kermiac balançou a cabeça. – Existem pessoas de pele morena nas
partes baixas de Thendara, mas nenhuma jamais nasceu com essa cor...
– Você nunca viu ninguém como eles? – Indagou Elizabeth, fitando-o. – Está falando sério
que nunca conheceu nenhuma pessoa negra?
– Negra? Pessoas com a pele negra? – Parecia que Kermiac não tinha certeza se era ele ou
Elizabeth quem estava confuso. – A pele dela é marrom, não negra... ou vocês chamam essa
cor de negra? – Ele olhou de Ysaye para o comandante Britton, e depois para Aurora, que
tinha a pele de uma cor que parecia uma espécie marrom-oliva. – Eu achava que qualquer um
que não fosse co-mo nós seria um não-humano – disse Kermiac, após um momento de
consideração. – Mas, se eles são seus amigos, são bem-vindos da mesma maneira que você e o
jovem cego-mental MacAran – Ele balançou a cabeça, demonstrando piedade. – Tenho uma
grande simpatia por seu infortúnio, por não possuir dom algum.
Mais uma vez, a palavra que ele utilizou para dom foi donas, e Ysaye ouviu David murmurar
alguma coisa sobre a palavra latina donun, que também queria dizer dom.
– Acho que nos metemos numa linguagem de romance – ele disse para si mesmo, e Ysaye
sentiu sua impaciência por estar tão distante de seus computadores e instrumentos para
registro.
Nesse meio tempo, Elizabeth completou as apresentações. Depois fez uma pausa, e
acrescentou corajosamente:
– Nós viemos da lua violeta que se encontra agora no céu de vocês.
Ysaye achou que o céu ia desabar, que Kermiac ia declará-los algum tipo de alucinados,
hereges ou demônios e mandar que os levassem embora em carroças, ou que MacAran teria
um acesso de apoplexia.
Nenhuma das três coisas aconteceu.
– Espere um instante – disse Aldaran com firmeza. – Eu não chamarei nenhum homem ou
mulher que fala comigo mentalmente de mentiroso, e sei que você acredita no que diz, mas até
eu sei que as luas são planetas desprovidos de ar ou vida, circulando o nosso. Homem algum
pode viver nelas. Está querendo me dizer que estou enganado sobre a natureza das luas?
– Não. Nós viemos de um planeta como o seu, de outro sol, com ar como este – disse
Elizabeth, e tateou em busca de uma explicação simples. – Paramos na lua e montamos uma
cúpula nela a fim de observar o clima antes de aterrissar. Mas parece que não observamos
muito bem – ela concluiu, desconsolada –, uma vez que o vento nessas montanhas provocou a
queda do nosso veículo.
– Interessante – disse Kermiac, embora Ysaye não soubesse se ele tencionara dizer que eles
eram interessantes, ou que o que Elizabeth lhe dissera era interessante. – Essas montanhas não
são chamadas de Hellers à toa; seus ventos são notoriamente perigosos. Pela história que me
contou, suponho que seu veículo é uma espécie de planador, só que mais complicado. – Ele
deu um breve sorriso. – Eu voava em um planador nas colinas quando garoto, e desejava que
alguém pudesse inventar um veículo mais pesado que o ar, como acontecia antigamente. Pelo
que você me disse, vocês o fizeram... de onde vieram.
– É verdade – disse Elizabeth avidamente. – Mas você disse que faziam essas coisas
antigamente! Isso seria anos atrás, quando seus ancestrais aterrissaram neste planeta pela
primeira vez...
– Um momento. Há outra pessoa que precisa ouvir isso, se não se importam. – Ele
procurou e acenou, e um jovem alto com estranhos olhos metálicos adiantou-se. Enquanto o
homem se aproximava, Ysaye percebeu que ele não somente era muito alto, mas
anormalmente alto. Assomava sobre todos os outros em pelo menos uma cabeça. Tinha um
rosto estreito, e era imberbe como um menino, uma expressão comedida, e os cabelos escuros
despenteados.
– Meu bom amigo e paxman, Raymon Kadarin. Ele conhece mais sobre essas colinas, talvez,
que qualquer outro homem vivo. Acho que ele compreenderá o que me disse e o lugar onde o
seu veículo provavelmente caiu. Agora, o que você estava dizendo sobre meus ancestrais?
– Acreditamos que seus ancestrais, há muitas e muitas gerações atrás, não surgiram neste
planeta. A partir do idioma que ouvi nas suas canções, que atualmente é um idioma extinto
para nós, presumimos que eles estavam em uma de nossas naves. Eles foram enviados com o
objetivo de fazer explorações, e de alguma forma acabaram aqui, talvez tenham caído, mas se
perderam para nós de qualquer forma. Foi o que quis dizer quando falei de uma nave perdida;
e isso significa que somos o mesmo tipo de gente, com ancestrais em comum.
– Tenho certeza de que acredita no que está dizendo – respondeu Kermiac, com o maior
tato. – Sou telepata o suficiente para saber quando estão mentindo para mim. Você acredita no
que diz; mas eu acreditar ou não é outra história. Acho difícil acreditar nessa sua estória de ter
vindo das estrelas; e a outra, a de que meus ancestrais fizeram o mesmo, é ainda mais difícil.
Mas creio que isso não é coisa para ser discutida enquanto comemos, mestra, e – ele parou,
parecen-do muito constrangido –, para ser honesto, não estou acostumado a discutir
problemas sérios com mulheres. Talvez seu superior... – Ele balançou a cabeça. – Não, seu
superior é o jovem cego-mental que falou antes.
Kermiac franziu os lábios, como se confrontasse um problema difícil e delicado.
– Como não posso de forma alguma me comunicar com ele, seria impossível resolver as
coisas desse modo.
– Quer dizer que você nunca faz negócios através de tradutores? – Elizabeth indagou, o
rosto e a voz refletindo a consternação que sentiu quando Kermiac chamou o que ela contou
de “estórias”.
Kermiac mexeu os ombros.
– Não mais que uma ou duas ocasiões em minha vida – disse em tom seco. – De qualquer
maneira, vocês são meus convidados. Refresquem-se, descansem da fadiga de uma jornada
que, ao menos, deve ter sido muito longa, mesmo que vocês não tenham vindo de uma das
estrelas no céu. Talvez possamos falar dessas coisas com racionalidade, dentro de alguns dias.
Ysaye pensou que escutou o que ele não falou, que seria uma enorme pena se uma moça tão
agradável de conversar se provasse mentalmente perturbada. Também houve outras coisas,
mas tão embaralhadas que Ysaye não pôde extrair sentido algum. Kermiac fez uma mesura
para eles, pegou uma caneca de cerveja do bufê e sentou na extremidade do salão. Ao seu sinal,
os músicos retomaram a apresentação.
Quer dizer que ele não acredita em nós, pensou Ysaye disfarçando a consternação. Mas como
podemos culpá-lo? Quais serão seus mitos da origem? De qualquer maneira, eu duvido que sejam compatíveis
com pessoas que afirmam ter vindo das estrelas. Pensou em outra coisa inquietante. E ele não está
acostumado a resolver as coisas com mulheres; é uma sociedade pré-equalitária. Fascinante, com certeza, mas
não muito bom para nós.
– Eles também têm uísque, além da cerveja e daquela bebida de ervas, se alguém estiver
interessado – disse Evans, gesticulando para a caneca que segurava. – Só mesmo descendentes
de escoceses, se é que são mesmo, para fazer uísque em qualquer lugar da galáxia. E bom
uísque, ainda por cima. – Tomou um grande gole da bebida. – É bom para usos medicinais...
ou melhor, para usos de convivência.
– Só que ninguém parece estar bêbado – comentou Aurora em voz baixa, olhando à sua
volta. – Parece ser uma cultura com substanciais restrições sociais. Evans, acho que é melhor
termos cuidado com o quanto bebemos e como nos comportamos; não queremos dar-lhes a
impressão de que os terráqueos são propensos a perder o controle. Principalmente se eles não
se consideram ligados a nós de qualquer maneira. As culturas em que as pessoas não se
embriagam em público atribuem muito valor ao controle social.
– Não se preocupe – disse Evans sorrindo. – Eu não sou idiota o suficiente para ficar
bêbado.
Por enquanto, pensou Ysaye. Conhecia o suficiente do comportamento de Evans para atribuir
muita fé ao seu autocontrole.
– Ao menos – prosseguiu Evans ignorando jovialmente a expressão cética de Aurora – eu
tenho muita coisa para me concentrar – se essa gente descende de uma Nave Perdida, é
evidente que podemos comer e ingerir o mesmo que eles. De modo que meu trabalho será
descobrir que usos eles fazem das plantas que possuem – como as árvores que vi com os
invólucros. Se são capazes de destilar álcool, também podem destilar outras coisas, e eles
provavelmente têm uma farmácia completa de drogas nativas. Este planeta pode ser uma boa
fonte de alcaloides, resinas, medicamentos, diversas drogas recreativas...
– Quer dizer que você já está planejando uma forma de se aproveitar da situação, como
todos nós esperávamos – declarou Aurora com uma careta.
Ele olhou para Aurora como se não pudesse compreender o motivo para a objeção.
– E por que não? É para isso que os planetas servem, e quando abrirmos este lugar e
mostrarmos para essa gente todas as coisas que podemos vender para eles, vão querer
maximizar o número de exportações para comprar os nossos produtos.
– Não haverá problemas de exportação, com a música que eles fazem – disse Elizabeth,
gesticulando para os menestréis, que haviam recomeçado a tocar. – Eles possuem instrumentos
muito sofisticados, mesmo que sejam na maior parte variações de guitarras e harpas. Se eles
podem tocar, o mesmo vale para um alienígena.
– Mas todos os instrumentos foram feitos à mão – comentou Britton. – Não há nenhum
instrumento eletrônico entre eles, e não há sinal de que possuam eletricidade. Mas nenhum
instrumento de sopro mesmo palhetas.
– Mas nós já sabíamos que o planeta era escasso em metais – protestou Elizabeth,
evidentemente sentindo a necessidade de falar alguma coisa. – Quanto aos instrumentos
eletrônicos, se exportarmos as gravações, talvez os coleciona-dores simplesmente prefiram o
som de instrumentos acústicos naturais. É o que acontece com algumas pessoas.
MacAran olhou ao redor do salão outra vez e sorriu.
– Comandante Britton, essas pessoas obviamente não tem capacidade de fazer e utilizar
sintetizadores. Eu duvido que possam reproduzir uma válvula eletrônica, quanto mais algo
mais sofisticado.
A atenção de Elizabeth desviara-se outra vez para os músicos.
– Eu me pergunto se eles tocam músicas para dançar; as danças de uma sociedade
frequentemente representam a sociedade em miniatura. De qualquer maneira, estou ansiosa
para estudar qualquer coisa que eles nos mostrarem.
– O que tem a dizer sobre o idioma, Lorne? – MacAran perguntou a David. – Você e
Elizabeth parecem estar aprendendo com uma velocidade espantosa. Por quê?
Como Ysaye sabia que ocorreria, a expressão de MacAran tornou-se progressivamente mais
franzida conforme David procurava explicar.
– E você honestamente acredita nessa história de telepatia?
David mostrou-se desconcertado. Ysaye amaldiçoou-o por não ter notado a situação antes.
– Como posso não acreditar, senhor? Aconteceu... e comigo.
– Vocês acham que eles são completamente humanos? – Britton indagou de súbito. –
Notaram que alguns deles têm seis dedos nas duas mãos?
– Trata-se de uma variação humana sabidamente comum – disse Aurora, obviamente
satisfeita por poder contribuir em alguma coisa; afinal de contas, isso adentrava o seu
departamento. – Algumas famílias de bascos possuíram essa característica durante gerações.
Trata-se de uma das variações genéticas mais estudadas entre os terráqueos originais. Uma raça
de descendência basca... e havia bascos naquela nave perdida, ou um cruzamento... – ela fez
uma pausa, pensativa. – Talvez represente uma adaptação evolutiva em uma sociedade em que
os trabalhos manuais e a música são muito valorizados; observe o homem que está tocando
aquela guitarra grande. Mas nem todos têm seis dedos.
– Não. Aquele homem que se apresentou como nosso anfitrião... se sua tradução ou
suposta “telepatia” está correta... só tem cinco, mas o homem alto que o acompanhava tinha
seis. Eu poderia com a maior facilidade acreditar que ele não é totalmente humano – disse
MacAran, procurando Kadarin onde ele se encontrava, observando os outros. – Ele tem uma
aparência estranha, como um animal selvagem. Seria interessante dar uma olhada na sua arvore
genealógica.
– Nunca se soube de nenhuma raça não humana capaz de reproduzir com humanos – disse
Aurora, segura. – É impossível. Os genes não são compatíveis.
– Não ainda, você quer dizer – comentou Britton. – Não seria esplêndido se
descobríssemos uma?
– E você acha que telepatia é uma coisa improvável? – Elizabeth protestou, irritada. – Você
postula uma raça não humana capaz de se reproduzir com humanos, e acha que eu tenho
tendência a fantasiar? Lembre-se, senhor, de que eu consegui falar com o nosso anfitrião.
Talvez tenha uma explicação melhor?
Ela corou quando Britton fitou-a ceticamente, depois, tomando cuidado para não
responder, ele afastou-se para estudar um dos instrumentos. Elizabeth foi atrás, refugiando-se
no seu adorado hobby. O músico ofereceu o instrumento para ela; Elizabeth estudou-o,
dedilhou uma ou duas notas e começou a tocar e cantar uma das canções folclóricas gaélicas
que conhecia. Após um momento o músico, sorrindo de orelha a orelha, passou a acompanhá-
la.
– Linguagem universal – comentou Britton. – Está aí a sua resposta.
– Não telepatia? – indagou David.
– Por favor, David. Há outras explicações possíveis além do seu hobby – Evans disse com
desdém. – Está certo que eu não conheço todos os novos dispositivos eletrônicos...
Ysaye subitamente sentiu uma enorme aversão por Evans.
– Eu também não conheço todos, absolutamente, mas sei o que houve. E simplesmente
não creio que essas pessoas são capazes de criar aparelhos eletrônicos que nós não possamos
detectar! Duvido que eles sejam capazes de criar qualquer tipo de aparelho eletrônico que seja!
Qual é o problema, você acha que eles estão encenando tudo, com o propósito de nos fazer
acreditar que são uma sociedade de baixa tecnologia? Não acredita em nada que não possa ver
ou ouvir?
– Quase nada – respondeu Evans com cinismo. – E eu não descartaria a possibilidade de
eles estarem fazendo uma encenação nesse sentido. Esperem, está chegando outra pessoa.
Quem será?
Ysaye voltou a atenção para a entrada, seguindo o olhar de Evans. Duas mulheres,
elegantemente vestidas, haviam entrado no salão. Uma era uma menina que parecia mal saída
da adolescência, muito parecida com Kermiac; a outra era bem mais alta que muitos dos
homens, com os cabelos muito loiros e grandes e atraentes olhos, de uma cor dourada
incomum. Ysaye achou que ela parecia ainda menos humana do que Kadarin. Elas se juntaram
a Kermiac, e depois de um momento ele acenou para os terráqueos.
– Minha dama Felicia, e sua acompanhante, minha irmã Mariel.
Mariel parecia uma menina normal, embora seu rosto fosse ao mesmo tempo bonito e
inteligente. Mas Ysaye, ao olhar pela primeira vez para a mulher chamada Felicia, pensou,
como MacAran dissera sobre Kadarin: Eu gostaria de dar uma olhada na sua árvore genealógica.
Felicia tinha uma altura anormal e era magra quase ao ponto da emaciação; ela possuía aqueles
olhos estranhos, e seis dedos em cada uma das mãos magras e compridas. Mesmo descartando
as histórias de não humanos, Felicia não parecia completamente humana. Havia alguma coisa
assustadora, quase aviária, nos olhos dourados.
O que você é? Ysaye especulou. Aqueles olhos estranhos estavam pousados em Elizabeth, que
acompanhava as canções. Os músicos prosseguiam de uma canção para a outra, procurando
encontrar uma que ela não conhecesse. Elizabeth evidentemente estava gostando da
brincadeira, esquecendo a consternação por um momento.
A música era de fato uma linguagem universal.
Felicia ficou escutando um pouco, depois dirigiu-se aos músicos, e permaneceu ali,
escutando e evidentemente perguntando alguma coisa a Elizabeth, mas obviamente sem
palavras. Ysaye estava curiosa; possivelmente era a melhor amiga de Elizabeth na nave, e
partilhara o aparente contato telepático com Kermiac, mas não conseguia “ouvir” o que estava
ocorrendo no momento. O que será que as duas estavam dizendo uma para a outra? Ysaye era
muito cortês para se intrometer, e após vários minutos, Felicia, sua curiosidade aparentemente
satisfeita momentaneamente, voltou-se e saiu da câmara.
Elizabeth se juntou a Ysaye, e as duas foram pegar uma bebida na mesa comprida.
– O que ela queria? – indagou Ysaye.
Elizabeth estava corada e tinha uma expressão relaxada, e Ysaye pensou que ela parecia
mais à vontade naquele lugar do que na nave.
– Felicia? Acho que queria se certificar que Kermiac não cortejou alguma de nós. Cá entre
nós, eu não ficaria surpresa se o homem fosse um mulherengo; ele tem todos os indícios. Pude
dizer-lhe honestamente que Kermiac não disse uma palavra que não pudesse ser repetida na
frente de minha mãe. Talvez você seja muito exótica para ele, mas nunca se sabe. Mas,
pessoalmente, acho Felicia bastante exótica, de modo que ele pode gostar de coisas exóticas.
Ysaye soltou uma risada; Elizabeth aparentemente esquecera – ou ignorara – o modo como
MacAran e Britton descartaram sua telepatia. Ou talvez ela tivesse decidido que isso não tinha
importância; que continuaria a bancar a tradutora pelo tempo necessário, e eles que
inventassem qualquer explicação ridícula e obscura a fim de se convencerem de que a telepatia
não era a maneira que Elizabeth estava usando para resolver o problema. Era uma atitude
razoável; honestamente não fazia diferença no que os comandantes acreditavam, contanto que
o trabalho fosse concluído.
Agora, se eles conseguissem convencer Kermiac de que não eram fugitivos de um
manicômio...
– Relaxe, Elizabeth. Ninguém nunca me corteja. Eu não dou essa liberdade.
– Ou você honestamente não percebe quando isso acontece – provocou Elizabeth.
– Tanto faz – disse Ysaye jovialmente. – Eu não faço esses jogos. E não creio que ele
dissesse algo ofensivo de qualquer maneira, enquanto depende de nós para se comunicar. Se
ele a incomodar, diga que está noiva de David.
– É tão excitante para David e eu – Elizabeth disse no maior entusiasmo – depois de todos
esses anos, sem nunca saber se a telepatia pode ser real, exceto para nós mesmos...
– Descobrir um planeta onde a telepatia é aceita como um lugar-comum. Felicia, ao menos,
parecia considerá-la algo normal – murmurou Ysaye. – Se eles estão lendo nossas mentes,
talvez não tenhamos que nos preocupar muito com mal-entendidos. Se eles entendem de
prontidão o que está por trás de tudo o que dizemos, pode ser de alguma ajuda para a
comunicação. Não há a menor possibilidade de problemas de tradução. Mas certamente
dificultaria a diplomacia.
– Tem razão – disse Elizabeth. Depois franziu o rosto. – Mas é possível que este planeta
seja declarado fora dos limites e fechado. Afinal de contas, trata-se de uma cultura pré-
industrial.
– Será que isso é possível, uma vez que se trata de uma Colônia Perdida, e as pessoas são
realmente terráqueas? – especulou Ysaye. – Creio que não há nenhum precedente para esta
situação.
– Acho que é possível, se chegarem a um consenso de que eles precisam de proteção – disse
Elizabeth, hesitante. – Não sei de nenhum precedente legal. Creio que jamais houve um caso
assim. Mas Evans já está considerando quais seriam as utilidades deste planeta; qual a melhor
maneira para explorá-lo. Acho que essas pessoas não estão prontas para isso.
– Também ouvi o que ele disse, mas não creio que eles sejam pessoas obtusas, ou uma raça
incapaz de se defender por conta própria de algo que não desejam – disse Ysaye. – Tem que
haver algum vestígio de herança terráquea... e lembre-se de que se eles são descendentes de
escoceses, há uma forte tradição de comerciantes astutos e advogados judiciais entre eles, sem
falar em um bom toque de latrocínio. – Ela sorriu para Elizabeth. – Quer dizer que você se
nomeou a protetora extraoficial dessa gente?
– Talvez, se a alternativa for deixar o caminho livre para pessoas como o Evans. – Elizabeth
franziu o cenho, desconsolada. – David contou que Evans se formou na universidade com
especialização em botânica e em farmacologia recreativa como secundária... e eu não tenho
certeza absoluta se ele estava brincando. Espero que possamos trazer de uma vez o pessoal da
nave, embora só Deus saiba o que acontecerá.
Ysaye mexeu os ombros.
– Vamos dar um passo de cada vez – ela sugeriu. – No momento a nossa principal
preocupação é convencer Lorde Kermiac de que não somos lunáticos, o comandante MacAran
de que você não estava alucinando essas traduções, e o comandante Britton de que você não
está achando que é telepata por que levou uma pancada na cabeça.
– Mas... – protestou Elizabeth.
– Não faz diferença que você seja telepata. Se ele não acredita, não confiará em você.
Portanto deixe que ele invente uma explicação satisfatória, e trate de não discutir com ele.
– A mentira que funcionará melhor do que a verdade desacreditada? – Elizabeth disse com
um suspiro. – Está certo. Não me agrada, mas será como você quer. – Ela endereçou um olhar
protetor para os músicos. – Mas não parece direito, que a base da nossa compreensão com
essa gente esteja misturada com uma mentira. Parece... errado. Como se...
– O quê? – estimulou Ysaye.
– Como se algo ruim estivesse para acontecer – disse Elizabeth, e estremeceu.
12

O dia amanheceu resplandecente e limpo e, abençoadamente, sem neve. Ysaye acordara ao


nascer do sol, como de hábito desde a aterrissagem, e estudava o enorme sol vermelho
ascendendo por trás das árvores cobertas de neve, da pequena janela do quarto de hóspedes
que dividia com Elizabeth e Aurora há mais de uma semana. Uma movimentação na
extremidade da trilha chamou sua atenção: tratava-se de uma fileira de cavaleiros que se
aproximava dos portões do castelo. Cavalgavam sob uma bandeira azul e prateada, com um
emblema que não soube discernir. Todos eram homens, até onde pôde perceber, e alguns
montavam cavalos, ou algo tão parecido que Ysaye não via diferença, ao passo que outros
montavam animais robustos com chifres parecidos com cervos.
Ysaye jamais vira cavalos vivos antes; eram um brinquedo para os ricos e poderosos. Ficou
completamente fascinada, pela forma como se moviam, seus passos lentos e deliberados na
neve, quase a mesma velocidade da caminhada de um humano, e a maneira como os arreios
estavam dispostos. Ficou observando-os, especulando como alguém podia pagar tantos
cavalos... pensando como uma longa viagem percorrida dessa forma limitada seria lenta e
tediosa... mas depois raciocinou que era evidente que a atitude em relação aos cavalos seria
diferente em um planeta onde eles constituíssem o meio de transporte mais comum. Estava
começando a achar que era o caso naquele lugar. Mas, Kermiac não havia mencionado
planadores naquela primeira noite?
Será que eles realmente jamais inventaram ou preservaram as tecnologias de combustão
interna ou máquinas a vapor? Ao menos isso queria dizer que o ar do planeta seria mais limpo;
e Ysaye não notara nada mais nocivo que a fumaça de madeira desde que chegara. De fato, o
ar parecia o melhor de que ela se lembrava, de certa forma mais vigoroso e vistoso. Mas, como
aquelas pessoas viajavam e se comunicavam em longas distâncias? Ou será que eles possuíam
algum substituto mais satisfatório?
Virou-se e olhou ao redor da câmara em que ela e suas colegas foram colocadas, fazendo
uma análise racional da mobília e disposição. As três passaram um bom tempo aqui,
recuperando-se do ordálio que experimentaram. Havia quatro camas grandes, em duas das
quais as amigas continuavam adormecidas; eram talhadas em madeira, com cordas sustentando
os colchões, e as roupas de cama pareciam ser feitas e tecidas à mão. Havia tapetes feitos à
mão, grandes e coloridos – coisa que a deixava agradecida, pois a única fonte de calor da
câmara parecia ser um fogo insuficiente, ardendo preguiçosamente numa lareira de tijolos.
Havia cômodos feitos à mão, e uma porta que ainda apresentava marcas aplainadas de cinzel,
que levava para um banheiro muito frio, embora perfeitamente funcional. Parecia que eles ao
menos preservaram a noção de higiene “moderna”; o banheiro tinha algo semelhante à água
corrente, quente e fria, meios para o banho. Ysaye procurou recordar o que sabia sobre meios
higiênicos medievais; pelo que sabia, banhar-se constituía uma atividade tão rara que eles não
eram permanentes, e a eliminação dos refugos era quase tão primitiva quanto um buraco
escavado na terra. Com certeza não era o caso aqui. Embora, evidentemente, os cretenses
possuíssem uma forma de higiene “moderna”.
Uma batida soou na porta e uma mulher entrou. Trazia nos braços suas roupas terráqueas,
que evidentemente haviam sido lavadas e secas. Ysaye sorriu em agradecimento e pegou-as da
mulher, que em troca sorriu com timidez. Os uniformes estavam quentes e tinham um aroma
doce. Ysaye ficou intensamente aliviada em ter suas roupas de volta depois de tanto tempo
com vestes estranhas e Aurora, sentando na cama, exclamou:
– São os nossos uniformes? Oh, maravilhoso! Estou tão feliz de ter minhas calças de volta.
Estava me sentindo muito desajeitada com essas saias. Um dia ou dois tudo bem, mas a
novidade estava começando a perder a graça!
A mulher sorriu outra vez, baixou a cabeça numa espécie de mesura, e saiu. Aurora saiu
cama e começou a vestir o uniforme.
– Foi gentileza deles nos emprestar roupas, mas fico feliz em ter as minhas de volta; acho
que é uma questão de costume, mas simplesmente não parecia certo para mim, como se não
fosse eu mesma.
Mas Elizabeth estava vestindo as roupas nativas que recebera das criadas, e ao perceber a
expressão questionadora de Ysaye, ela mexeu os ombros.
– Suponho que nos devolveram nossas roupas por que acham que finalmente estamos
descansados e prontos para recomeçar nossas funções habituais, mas acho que Lorde Aldaran
está mais acostumado a ver as mulheres com saias. Talvez seja melhor me vestir como o
homem considera mais adequado enquanto estiver tratando com ele. Talvez o deixe mais
confortável ao conversar comi-go.
– Como você é antropóloga, e aparentemente a nossa intérprete, é melhor ter certeza de
que não o está ofendendo – disse Ysaye. – Mas eu vou usar o que me agrada, e se ele não
gostar, pode escolher outra pessoa para ficar olhando. – Então ela riu. – Pelo modo estranho
como me olhou na primeira noite eu provavelmente pareceria muito estranha para ele de
qualquer forma, não importa as minhas roupas. Ele me acharia peculiar da mesma maneira em
saias, ou em uma faixa de dança de Vainwal, ou em uma armadura espacial.
Minutos depois, quando terminaram de se vestir, ouviu-se uma batida leve na porta e outra
mulher entrou, portando um tabuleiro com o desjejum. Ela acendeu a lareira, e perguntou,
através de sinais, se elas desejavam alguma coisa. Ysaye estudou o tabuleiro abarrotado e
balançou a cabeça. Havia mais que o suficiente para as três: pão, feito de farinha engrossada
com nozes ou coisa semelhante, e muito nutritivo; um grande prato de frutas cozidas, ainda
quentes; uma coisa parecida com queijo; e um prato de ovos cozidos, que possuíam um sabor
bem parecido com ovos normais de galinha, uma mudança após o mingau feito de nozes que
receberam a princípio.
– Quer dizer que eles têm pássaros e domesticam galinhas – comentou Elizabeth. – Na
realidade... como se trata obviamente de uma Colônia Perdida, eles talvez até tenham criado
com sucesso as galinhas que fazem parte do número de animais domésticos que toda colônia
leva a bordo.
– Eu vi cavalos, ou ao menos coisas parecidas com cavalos – disse Ysaye. – Um grupo de
homens chegou montado neles esta manhã.
– Isso resolve qualquer impasse, na minha opinião – disse Elizabeth concordando com a
cabeça. – Pessoas noventa e nove por cento humanas já são difíceis de explicar; mas a única
explicação para humanos e cavalos é a origem terráquea. Não posso imaginar outra introdução
mais rápida para o nível da sociedade que ser apresentados à sua hospitalidade dessa forma.
Também havia um jarro da bebida semelhante a chocolate amargo, como parecia haver em
todas as refeições, e Ysaye ficou surpresa ao notar que estava começando a gostar da bebida.
Também ficou surpresa com a velocidade com que a coisa a despertava; e concluiu que devia
ser a versão nativa do café – toda sociedade, “humana” ou não, possuía a sua.
Quer dizer que eles não podem ser muito diferentes no final das contas, ela pensou, se “precisam” da
cafeína a fim de acordar pela manhã.
Elizabeth estudou a quantidade impressionante de comida, e encorajou Ysaye e Aurora a
comer à saciedade, dizendo que a ensinaram em suas aulas de xenoantropologia que as
sociedades atribuíam muita importância à sua comida; em planetas estranhos era melhor comer
o lhe era apresentado. Quando as três comeram tudo o que aguentaram, a primeira mulher
surgiu e acompanhou-as na descida da escadaria, para outra câmara grande. Ysaye não tinha
certeza se era a mesma que estiveram na primeira noite, ou outra; com o sol jorrando nas
pequenas janelas, a forma e o tamanho da câmara pareciam diferentes, mas os móveis eram os
mesmos.
Seus colegas já se encontravam à espera, de uniforme, e pareciam tão satisfeitos em vestir
suas próprias roupas quanto as mulheres. Os homens haviam sido colocados numa espécie de
quartel, o que levou os terráqueos a pressupor que devia existir um costume de manter
exércitos residentes ou coisa semelhante. O lugar onde os homens dormiam podia com a
maior facilidade manter cinquenta ou sessenta pessoas.
– Elizabeth, você não está sem o seu uniforme esta manhã? – indagou o comandante
Britton em tom reprovador. Era evidente que todos os outros encontravam-se muitíssimo
felizes em voltar a usar os uniformes familiares e confortáveis.
– Acho que estas roupas são compatíveis com o clima. E pensei que era uma boa ideia
conservar a vestimenta nativa. Eu não vi mulher alguma aqui em qualquer outra coisa que não
funções domésticas, de forma que pensei que talvez fosse uma boa ideia continuar a
demonstrar adaptação, pelo menos externamente. Houve períodos como este na Terra, e
algumas das mais antigas Colônias Perdidas assumiram este tipo de estrutura social. Eu não
quero que os nossos anfitriões pensem, mesmo subconscientemente, que não me importo com
o comportamento adequado em sua sociedade.
– Você fala como se ainda tencionasse assentar neste lugar – disse Evans com desprezo. –
Eu não perderia tempo com isso, se fosse você. Agora que todos parecem estar bem dispostos
novamente, a primeira coisa a fazer é voltar para aquele transportador e utilizar o rádio para
entrar em contato com a nave. Precisamos de uma equipe efetiva, uma vez que nos vimos
forçados a fazer o Primeiro Contato. E então poderemos finalmente voltar ao trabalho; avaliar
o que existe neste lugar, para começo de conversa. Faz tempo que não encontramos um novo
mundo para ser aberto.
– Se é que poderemos abrir este planeta – preveniu Elizabeth. – Já tentei lhe dizer isso
antes. As autoridades podem resolver defini-lo como Fechado, para a proteção dos nativos. O
nível da cultura aparente deles...
– Não me venha com essa – disse Evans asperamente. – Pensei que você havia decidido
que era uma Colônia Perdida... e isso significa que, como terráqueos, atribui-se a eles ao status
de colônia pleno. Só resta levá-los ao nível das outras colônias. É direito deles.
– Mas eles são uma sociedade pré-industrial – argumentou Elizabeth obstinada. – Se fossem
alienígenas, sua sociedade seria protegida para eles se desenvolverem ao próprio modo – não
ao nosso modo. Eu não acho que o mundo deles devia ser prejudicado por ter desenvolvido
um sistema tão diferente daquele que abandonaram! Na realidade, se forem descendentes da
nave que eu acredito, eles deixaram a Terra para fugir de nós... para reduzir o nível de
tecnologia, não elevá-lo! Na história, toda sociedade primitiva que encontra outra avançada é
eliminada. E se existirem outras raças inteligentes de não humanos aqui...
– Acontece que a definição de uma espécie é a possibilidade de um cruzamento fértil. Se
houver uma espécie nativa aqui que cruzou com humanos, por mais absurdo que isso pareça,
definições legais tornariam as outras espécies humanas de qualquer maneira. Cruzamento fértil
quer dizer noventa e nove por cento humanos.
– Eu discordo. Gosto dessa sociedade e dessas pessoas; não quero que sejam eliminados
por um acidente cultural, e essa discussão andamos tendo a semana inteira está me dando dor
de cabeça.
Evans olhou para cima, como se em busca de ajuda.
– Por que está presumindo que vamos eliminá-los? – indagou Evans, escarninho. – Droga,
Elizabeth, você nos faz parecer como piratas! Estamos falando do Serviço Espacial; nós
escrevemos o livro sobre culturas primitivas e choque cultural. Está agindo como se fossemos
destruidores de mundos; sabe que eles são muito rígidos com leis contra interferência cultural.
Somos perfeitamente capazes de proteger uma sociedade existente...
Ele está sendo indulgente, percebeu Ysaye. Não está falando sequer uma palavra a sério. Ele decidiu que
este lugar é – um pomar repleto de árvores frutíferas, e de alguma forma ele vai apanhar as frutas melhores e
mais maduras, e que se dane quem é o dono do lugar.
E no momento seguinte perguntou-se como é que subitamente estava tão certa dos
motivos e planos de Evans.
Mas não teve oportunidade de explorar o problema. Evans calou-se quando Mariel e Felicia
entraram, e a última dirigiu-se imediatamente a Elizabeth, sorrindo de forma amigável e
encorajadora.
Evans endereçou a Elizabeth um olhar que ela não soube decifrar, reunindo-se ao
Comandante Britton. Apenas por aquele resgate, Elizabeth já receberia Felicia de braços
abertos.
Kermiac pediu-me para fazer o que puder para ajudá-los, ela disse a Elizabeth – as suas palavras
ininteligíveis, mas aquela “fala” silenciosa tão clara quanto o mais puro Padrão Terráqueo.
Gostaríamos de saber quais são seus planos agora que se recobraram.
– Eu agradeço a oferta – respondeu Elizabeth, vocalizando, pois tentar falar apenas
mentalmente era muito difícil. – Preciso consultar meu... ahn... superior – acrescentou.
Felicia pareceu aprovar – e os olhares furtivos que a dama endereçou a Aurora e Ysaye
convenceram Elizabeth de que fizera bem em continuar a usar as roupas nativas. Ela chamou o
Comandante MacAran e disse:
– A dama disse que Lorde Aldaran deseja saber quais são os nossos planos, senhor.
– Entrar em contato com a nave, e trazê-la para cá, é evidente. Ao menos nisso Evans está
certo; o Primeiro Contato foi arruinado tão completamente que nada que fizermos fará muita
diferença. Uma vez que o computador de idiomas e os dispositivos de ensino hipnótico
estiverem funcionando, não precisaremos mais depender de você para essa forma de
comunicação... pode chamar de telepatia se for tão crédula, mas eu tenho outras ideias.
– Mal posso esperar – disse Elizabeth, cansada.
Ela se voltou para Felicia, procurando encontrar palavras e conceitos que a mulher pudesse
compreender.
– Há um aparelho de comunicação na nossa nave destruída; precisamos entrar em contato
com nossos companheiros. Eles estarão preocupados conosco, e provavelmente desejarão
conhecer seu lorde. Há muita coisa que nosso líder e seu lorde deveriam discutir.
Felicia assentiu, concordando sem precisar dizer nada, os olhos estranhos repletos de
sombras pensativas.
Elizabeth voltou-se novamente para MacAran.
– O que pensa que pode ser, se não é telepatia? Pode me chamar de crédula, se quiser, mas
qual seria a sua explicação?
MacAran deu de ombros.
– Talvez Evans tenha razão; talvez eles tenham alguma espécie de dispositivo eletrônico nos
monitorando. Sabe o que é um AEP... um avaliador de estresse psíquico? Eles poderiam ter
um desses. Ou o Comandante Britton acredita que é mais simples ainda. Vocês conhecem
todas aquelas antigas canções folclóricas, você e David, e sabem o que significam. É possível
que você compreenda o que eles dizem num nível subconsciente, e explica a si mesma em
termos de “teleparia” porque sua mente consciente insiste que não poderia de forma alguma
conhecer o idioma. Acrescente a isso a habilidade de ler linguagem corporal com muita
precisão, e o resultado é algo que se assemelha a telepatia.
Elizabeth sacudiu a cabeça.
– Eu duvido; dispositivos como um AEP significaria que eles teriam uma ciência eletrônica
muito exata e miniaturizada, e sinceramente, senhor, nenhum de nós viu nenhuma indicação de
que eles tenham um nível técnico acima do medieval! Quanto à ideia do Comandante Britton –
eu posso saber o significado das canções, mas isso não quer dizer que conheço o significado
das palavras individuais! E isso não explicaria porque eles podem me entender e não a você. E
coisas específicas, como nomes? Como exatamente eu seria capaz de extraí-los?
– Nisso você está certa... embora eu sinceramente acredite que está menosprezando seu
subconsciente e sua inteligência. Eu admito que até agora não vi nenhum sinal de que eles
possuam absolutamente qualquer ciência eletrônica, seja miniaturizada ou não. – Ele suspirou.
– Ficarei contente de deixar tudo isso a cargo do Capitão.
– Eu não sei o que ele poderia fazer que nós não pudéssemos. Mas será bom trazer os
corticadores, a fim de que talvez alguns de vocês comecem a acreditar em telepatia quando
puderem conversar com eles pessoalmente...
Uma movimentação na porta chamou a sua atenção, e ela se interrompeu e acrescentou:
– Oh, aí vem alguém novo. Parece que eles trouxeram sua artilharia pesada.
As portas do salão haviam sido abertas enquanto eles conversavam, e um rapaz vestindo o
que parecia um uniforme, verde e preto, sacou sua espada na entrada, anunciando:
– Dom Lorill Hastur, Herdeiro de Hastur.
A entrada dramática atraiu a atenção de todos, incluindo Ysaye, e ela se perguntou o que a
chegada de mais um nativo de alta posição significava. As novidades certamente pareciam
viajar com extraordinária rapidez, considerando que o transporte supostamente era feito a
cavalo!
Ysaye captou vestígios telepáticos que a informaram que “Hastur” não se tratava apenas de
um nome, mas também um título, e ainda por cima importante. Lorill Hastur, ao entrar como
se fosse o dono do lugar, provou ser um rapaz alto, ruivo, de constituição forte, embora nem
tão alto nem tão amplo quanto MacAran. Ysaye reconheceu as cores de suas roupas e deu-se
conta de que ele estava entre os homens que ela vira chegar de manhã. Ele olhou ao redor do
salão, e se dirigiu diretamente a Felicia.
– Domna – ele disse, com um ligeiro aceno de cabeça, e ignorando Elizabeth. – Cheguei
ainda esta manhã de Thendara, após dez dias de viagem. Lorde Aldaran fez a gentileza de
informar-me que há pessoas sob sua hospedagem que são diferentes de qualquer uma que já
conheci. Na realidade, foi o conhecimento desses estranhos que me trouxe aqui. É você a
responsável por esses estranhos?
– Pelo favor de meu lorde, vai dom – respondeu Felicia com uma profunda mesura, e o
modo como ela falava e se portava evidenciava uma grande reverencia pelo jovem. – Fomos
informados de que havia pessoas em perigo em terras de Aldaran pelas leroni de nossa Torre.
Procuramos os estranhos, e os encontramos presos por uma tempestade de gelo no abrigo de
viajantes, e tivemos o privilégio de guiá-los até aqui, a fim de oferecer-lhes comida, bebida e
música. Como pode ver – ela lançou um olhar de soslaio para os terráqueos que haviam
vestido seus uniformes – eles são realmente muito estranhos. Não falam nem casta nem
cahuenga, o dialeto comercial ou o idioma das Cidades Secas. Depois descobrimos que algumas
de nossas canções mais antigas lhes eram conhecidas – como se por mágica. Ou talvez eles
possam ler nossas mentes, embora Lorde Aldaran dissesse que a maioria é cego-mental. Ele
lhes ofereceu a hospitalidade de Aldaran. Deveria proceder de outra maneira?
– De forma alguma – disse Lorill, tranquilizadoramente. – É a hospitalidade para com
estranhos que separa o homem dos animais. Há mesmo um velho ditado a respeito entre
nosso povo – e por tudo o que sei, também entre o seu e desses estranhos. Ainda assim,
precisamos saber que e o que eles são, e de onde vieram. E por quê.
Ysaye achou isso difícil de acompanhar, uma vez ele não estava usando telepatia, mas a
linguagem comum; só captava o mais leve sentido da conversa, se se concentrasse bastante,
como se escutasse as coisas de um aposento distante – apenas o suficiente para compreender
de que se tratava.
Mas mesmo o Comandante MacAran podia perceber os olhares curiosos que Lorill
endereçava a eles, e adivinhar que ele interrogava sobre os terráqueos.
Lorill Hastur olhou inquisitivamente para Elizabeth, e Ysaye especulou se ele pensou que
ela era uma nativa. Aos olhos de Ysaye não havia nada que diferenciasse Elizabeth do resto das
pessoas no salão, enquanto ela permanecesse em silencio. Perguntou-se se Elizabeth sucumbira
ao desejo de ser uma deles, e desassociar-se dos colegas terráqueos. Ela já parecia quase em
casa aqui, e já tomara o partido dos nativos – e um pouco embaraçada por isso. Havia uma
espécie de estigma associada às pessoas nos Serviços Espaciais que “se tornavam nativos”; um
senso de que eram de certa forma fracos demais para realizar seus trabalhos, demasiado
facilmente seduzidos pelos modos de vida primitivos. Ysaye os ouvira serem chamados de
“Comedores de Lótus”. Demasiado propensos a esquecer seu próprio mundo e sua vida em
favor do sonho de uma existência mais “simples”.
Ysaye esperava que isso não estivesse acontecendo com Elizabeth. Talvez seja apenas que ela
passou muito tempo no espaço, refletiu. E ela sempre teve uma queda pelos desfavorecidos. Talvez não passe
disso; ela simplesmente está tentando proteger uma coisa que não seria capaz de enfrentar os Evans do universo.
Após uma consulta sussurrada com Felicia, Lorill se dirigiu a Elizabeth, indagando:
– Você fala por estas pessoas?
– Não exatamente. Sou, na realidade, uma espécie de intermediária. Este é meu superior.
Ela voltou-se para MacAran.
– Comandante MacAran, ele quer falar com você. Este é Lorill Hastur, e parece ser um
grande VIP das redondezas. Pelo que pude compreender, Lorde Aldaran deu a ele permissão
para falar conosco.
Será que ele pode mesmo compreender o que digo? ela se perguntou. Kermiac compreendera. – ou
parecera compreender – mas...
É evidente que posso. O pensamento de Lorill Hastur era quase complacente. Fui devidamente
treinado. E você está certa; Kermiac não se mostraria inclinado a interferir em minhas vontades.
Elizabeth engoliu, a garganta subitamente seca.
– Senhor, ele pode entender o que eu lhe digo e vice versa. Pode falar.
Ysaye sacudiu a cabeça ligeiramente, pois agora ela parecia poder captar os pensamentos
dos próprios colegas! Podia ouvir MacAran pensando, Quer dizer que agora ela se convenceu de que
esse novo sujeito pode ler sua mente diretamente. Bela estória, mas ela acredita, e alguma coisa está se passando.
Melhor não discutir agora, de qualquer forma.
MacAran limpou a garganta, parecendo embaraçado.
– Se ele é um VIP local, pode muito bem contar-lhe sobre a queda da nave. Veja se ele
acredita em nós mais do que o tal Aldaran.
– Só por curtição – acrescentou Evans – veja se ele compreende se eu mandar ele pro
inferno. – O comandante MacAran silenciou-o com um olhar.
Felicia mostrou-se escandalizada por tal temeridade, mas não disse nada, afastando-se
rapidamente. Ysaye sabia o que isso significava. Ela, pelo menos, compreendera.
Antes que Elizabeth pudesse repetir as palavras, ou mesmo decidir se queria ou não repeti-
las, já era tarde demais. Lorill extraíra o significado de sua mente. Seu rosto estreito e bonito se
contraiu.
Por um momento Elizabeth receou que ele fosse fazer alguma coisa – ela não tinha ideia do
que, mas a sentiu um arrepio ante a expressão nos olhos dele.
Mas ele disse apenas:
– Pode dizer ao seu tolo compatriota que entendi o que disse. Vou poupar-lhe o embaraço
de repeti-lo. É natural que os cego-mentais queiram me testar, se a maioria das pessoas na sua
terra é tão meio-aleijada e desprovida de donas.
Ele fez uma pausa e depois acrescentou, mentalmente: Não conheço nenhuma forma de devolver-
lhe a ofensa sem submetê-la à obrigação de repetir um insulto igualmente rude. Ele não pode me compreender em
absoluto, e isso só a exporia á suspeita de ter originado o insulto. Mas quando tivermos um idioma em comum,
veremos se esse bastardo filho de seis pais tem coragem suficiente para repetir seus insultos a quem pode
compreendê-los perfeitamente. Ele sorriu suavemente. E talvez, quando ele compreender as consequências de
tal insulto, quando perceber que eu poderia desafiá-lo para um duelo com espada ou faca, por dizer tais
palavras, tenho certeza de que será muito educado. Nesse meio tempo, diga ao seu comandante que os homens de
Aldaran o levarão até este veículo danificado e lhe darão acesso ao aparelho de comunicação. E sim, acredito na
sua estória. Tenho acesso a informações a que Aldaran não tem.
Elizabeth repetiu o que podia, e MacAran acedeu.
– Eu não sei como soube de tudo isso só de olhar para o homem – disse MacAran – Mas
aparentemente ouviu o que disse. Agradeça a ele.
Elizabeth obedeceu, aliviada por um grave incidente ter sido evitado.
Alguns dos homens de Aldaran surgiram quando seu líder os convocou e levaram MacAran
para fora; o comandante Britton os acompanhou, gesticulando para Evans ficar com as
mulheres. Felicia e Lorill Hastur afastaram-se na direção oposta, deixando os terráqueos
sozinhos.
Evans fitava Lorill Hastur com sua habitual expressão de desdém.
– Tenha cuidado, Evans – advertiu Elizabeth fatigadamente, segura de que Evans a
ignoraria, mas ciente de que se não o advertisse, ela se sentiria culpada caso algo acontecesse. –
Ele entendeu seus insultos. Receio que tenha feito um inimigo. Ele pode parecer jovem para
você, mas é um homem de tremenda importância entre seu povo, e tem poder para... para tirar
satisfações com você, se quiser.
– Oh, claro que ele ouviu – zombou Evans – Se acredita nisso, então acredita em qualquer
coisa. Eu não acredito que exista algo como telepatia, mas posso acreditar que ele de alguma
forma convenceu-a de que tem esse poder todo. – Seu olhar enraivecido fez Ysaye pensar que
eles não precisavam de um inimigo entre os nativos; já o tinham em Evans. – Ele não passa de
um pivete esnobe que queria cutucar os estranhos para ver se podia fazê-los tremer. Depois
que assentarmos as coisas, vou me encarregar de informá-lo quem dá as ordens por aqui.
Elizabeth suspirou enquanto Evans se afastava, contrafeito.
– Qual é o problema, Liz? – indagou Ysaye. É melhor continuar fingindo que não posso ouvir o que
está se passando, pensou. Pode ser útil.
– Ele é louco; você o ouviu insultar o Lorde Hastur. – Ysaye perguntou-se por que ela usara
esse título, ao invés de dizer Lorill Hastur. – Acho que ele acredita que eu repeti aqueles
insultos para o homem, de alguma forma. Ele sabe que enraiveceu Hastur, mas quer colocar a
culpa em mim.
– Convenientemente ignorando o fato de que você não abriu a boca até traduzir a resposta
de Lorill Hastur para o comandante MacAran.
– Tem razão – disse Elizabeth, surpresa. – E Lorde Lorill ficou muito, muito zangado;
chamou Evans de bastardo filho de seis pais, e sugeriu que poderia desafiar Evans para algum
tipo de dueto se se atrevesse a repetir o insulto.
Ysaye refletiu a respeito.
– É um insulto interessante. Muitas sociedades tinham o costume de utilizar “bastardo”
como um termo ofensivo, mas o que será que quer dizer “filho de seis pais”?
– Desconfio que seja uma difamação à virtude da mãe dele... ou talvez à origem dela – disse
Elizabeth, duvidosamente. – Acho que prefiro não saber; mas não era nada bom, a julgar pelo
tom. De qualquer maneira, eu não insultaria gratuitamente o homem; se eles possuem um
código de duelo aqui, incorporado como parte da lei, é bem capaz de o Império apoiá-la. E no
momento em que Evans botasse os pés em solo nativo, seria obrigado a obedecer às leis deles.
– Eu não quereria insultar ninguém aqui, mesmo se o Império não apoiar um código de
duelo. Não havia motivo para Evans fazer aquela besteira; poderia ter precipitado um grave
incidente diplomático. Além do mais, as pessoas aqui tem sido muito hospitaleiras.
– É verdade. E ainda há a questão de como eles sabiam que estávamos aqui e enrascados –
Elizabeth acrescentou, pensando na questão da telepatia. – Digo, de que outra forma eles
poderia saber sobre nós sem alguma habilidade para sentir pensamentos?
A doutora Lakshman se juntou a elas naquele momento.
– Boa pergunta – observou Aurora. – Se eles nos encontraram assim, daqui, implica que
alguém tem um excelente raio de alcance.
– Tem razão – concordou Ysaye – assim como levanta a questão de qual de nós eles podem
ler e quanto eles podem falar sem o nosso conhecimento.
Não era uma questão das mais confortáveis – e as respostas eram ainda menos confortáveis.
As três mulheres trocaram olhares perturbados, enquanto cada uma tentava examinar suas
memórias em busca de algo que pudessem ter pensado que poderia lhes causar problemas.
– Eles disseram alguma coisa sobre Kadarin ou Felicia? – Aurora perguntou, mudando de
assunto. – Estou ansiosa por uma explicação para eles.
– E tanto Felicia quanto Raymon são antigos nomes terráqueos – observou David. – Que
explicação Evans tem para isso? Ou ele finalmente decidiu que isso é uma Colônia Perdida?
– Aparentemente sim – respondeu Elizabeth.
– Eu apostaria o salário de um ano que ele pensará em alguma forma de explicar a leitura de
mentes – disse Ysaye. – Provavelmente algo totalmente estranho. O homem pode entender de
botânica e drogas, mas para o resto é praticamente inútil, ou mesmo uma desvantagem.
– Eu ficarei contente quando o capitão Gibbons trouxer a nave – disse Aurora – Se querem
saber a verdade, de certa forma eu fico contente que os procedimentos padrões de Primeiro
Contato foram arruinados. Torna as coisas muito mais simples.
Mais simples, talvez, pensou Ysaye sobriamente, mas de maneira alguma mais fáceis.
13

A simples existência do transportador destruído, palpável, impossível de ser simulado e


concreto, transformou o ceticismo de Kermiac Aldaran numa convicção fervorosa. A mudança
foi assombrosa; ele saíra com seus homens, para ver o “veículo” dos estranhos, possivelmente
preparado para encontrar nada mais exótico do que uma carroça ou carruagem destruída, ainda
que igualmente pre-parado para algo absolutamente insólito. No primeiro caso, ele
provavelmente mandaria que seus convidados fossem levados para quartos mais seguros, ou ao
menos era o que desconfiava Ysaye, aonde os equivalentes locais de psiquiatras tentariam curar
seus delírios. No último caso, ela não estava certa do que ele teria feito. Pela impressão que
teve, desconfiava que os tratasse como visitantes sobrenaturais.
Mas Kermiac não encontrou nem carroça, nem um fenômeno oculto; no lugar disso,
deparou-se com um objeto evidentemente feito pela mão do homem, embora muitíssimo mais
complexo do que qualquer coisa que seu povo era capaz de produzir. E tratava-se de um
veículo feito todo de metal; ele confessou a David que somente isso já o teria convencido. Só
no interior existia metal o suficiente disponível para suprir armas de metal para seus soldados
pelas próximas três gerações.
Isto lhes proporcionou uma base para comércio; em troca da permissão para trazer a nave,
um lugar para aterrissá-la, e o acordo para abrir negociações para um espaçoporto, o capitão
Gibbons garantiu a Lorde Aldaran direito prerrogativo sobre todo o equipamento não
tecnológico e inútil, além do casco do transportador. Não havia sentido em tentar recuperar
qualquer coisa, exceto o equipamento eletrônico. MacAran retornara dizendo que devia ter
batido a cabeça com mais violência do que pensara, para dizer que o sistema de aterrissagem
era a única coisa que os impedia de decolar. Com os enormes rasgões na lateral do veículo, era
impossível fazer o transportador voar.
Os homens de Aldaran aglomeraram-se ao redor do transportador, extrain-do tudo o que
podiam com seus equipamentos primitivos. Isto ao menos serviu para convencer Evans de que
não existia nenhum “aparelho eletrônico secreto” para espionar os terráqueos, pois os
trabalhadores não mostraram o menor interesse ou compreensão sobre os circuitos e
equipamentos eletrônicos danificados, só pelo conteúdo metálico. Mas eles se apoderaram de
todo o cobre; nada, por menor que fosse, foi poupado, convencendo MacAran de que, em
termos do valor do metal, Aldaran levara a melhor, ou assim acreditava!
No dia seguinte, outro transportador aterrissou, com uma equipe para cortar o
transportador danificado e remover o equipamento útil remanescente. Os homens de Aldaran
passaram o dia rebocando as peças de metal ainda quentes das tochas; ao final do dia, não
sobrara nada para indicar que o transportador havia aterrissado ali, exceto a neve desarrumada.
Até minúsculos fragmentos de plástico foram extraídos; dentro de dois dias, Ysaye viu alguns
camponeses, e mesmo algumas mulheres do “Comyn” no castelo de Aldaran usando pedaços
de plástico cuidadosamente dispostos e polidos como joias.
Dois dias depois, numa grande área deserta fora do povoado que Lorde Aldaran chamara
de Caer Donn, Ysaye assistiu a espaçonave aterrissar, criando seu próprio campo de gravidade
zero a fim de aterrissar na neve como uma enorme pena. Todo mundo do castelo estava
presente, e a maior parte dos camponeses – e nem a familiaridade com os dois transportadores
impediu as pessoas do castelo de ficar boquiabertos com o mesmo assombro dos camponeses.
Ysaye ficou muito feliz ao ver a nave, pois estava farta de sentir frio, de lareiras fumarentas,
da comida estranha. Estava ainda mais cansada da constante ameaça de acessos alérgicos. Já
comparecera, duas vezes, para tratamento emergencial com Aurora; precisara de oxigênio
numa delas. Um dos efeitos das suas alergias, durante um acesso extremo, era a hipoxia; já se
encontrara sentada no chão da enfermaria provisória de Aurora, estonteada, fraca, atordoada, e
sem ter certeza absoluta de onde estava. Tratava-se de uma condição perigosa...
Mais perigosa ainda; outro efeito era a toxemia, e o potencial para literalmente tornar-se
alérgica, a si mesma. Sentia-se satisfeita por estar dentro do ambiente controlado da nave.
Com o auxílio do que ela só podia descrever como seu novo poder telepático, Ysaye
aprendera os rudimentos do idioma que Lorde Aldaran falava, o casta, e auxiliara Elizabeth na
estimação do nível cultural existente na aldeia de Caer Donn e no Castelo de Aldaran. Mas
Ysaye sentia a maior saudade de seus computadores e telas, seus sensores e arquivos. Não
importa o quanto tudo isso era interessante, estava farta de desfrutar da experiência
pessoalmente. Preferia estudar essa realidade excessivamente realista através dos dados em seus
computadores.
Até o momento, tudo o que ela e Elizabeth estudaram indicava que a cultura era
precisamente o que imaginaram: uma sociedade pré-industrial, sem muita capacidade
manufatureira, um planeta escasso em metais, com uma economia frágil, e uma ecologia ainda
mais frágil, baseada principalmente numa modalidade de agricultura simples. A menos que
alguém descobrisse algum tipo de cultura que valesse a exportação, essa gente teria muito pouco
a oferecer além de novidades artesanais. Evidentemente, esse comércio interestelar era
razoavelmente ativo, embora limitado. Itens de madeira, couro, pele – objetos de arte – mesmo
instrumentos musicais – eram produtos de luxo no comércio terráqueo. Por esse motivo talvez
fosse possível estabelecer algum comércio, embora, evidentemente, a coisa mais importante
que eles tinham a oferecer era sua localização. O Império Terráqueo pagaria muito bem aos
nativos pelo privilégio de estabelecer um espaçoporto aqui.
Ela e Elizabeth haviam visto um ferreiro no vilarejo, um joalheiro; uma padaria aonde todo
o vilarejo vinha para assar seus próprios pães, combinado com um simples restaurando onde
um homem fazia cozido e carne assada, com a esposa e as filhas para atender os clientes; uma
casa de banhos pública que Elizabeth acreditava servir os propósitos de um ponto de encontro
e prostíbulo (Ysaye esperava que não fosse utilizada para as duas coisas ao mesmo tempo, e
não via a hora de voltar para a nave a fim de tomar um banho quente); uma taverna, um
pequeno teatro a céu aberto, que se encontrava escuro e deserto, embora algumas pessoas
dissessem que acrobatas, cantores de baladas e coisas do tipo se apresentavam ali em época de
feiras; um açougue; e um vendedor de roupas simples, botas de couro e material de carga tais
como bolsas e sacolas. Elizabeth especulara em voz alta o que o influxo de bens e serviços
terráqueos faria com essa gente. Ysaye achava que sabia; faria com que se perdesse o interesse
nos seus próprios bens. Ela precisava apenas ver uma vigorosa barganha sobre um pedaço de
plástico para saber o quanto os nativos iriam valorizar os bens terráqueos, quer seus próprios
oficiais gostassem ou aprovassem isso ou não.
E, sem dúvida, Ysaye pensou enojada, quando surgisse o inevitável mercado negro, Evans
estaria até o pescoço nele, se não fosse mesmo seu originador.

A nave enviara mensagens para a Terra, e Elizabeth estava ansiosa pelos resultados. Capitão
Gibbons e seus oficiais dividiriam a comissão de descobridores por este mundo; era esse o
procedimento comum. Não era isso que interessava Elizabeth; ela estava preocupada com a
classificação que esse novo planeta receberia.
Se os poderes oficiais do Serviço Espacial decidissem que não havia motivos para restringir
o lugar e vinculá-lo plenamente ao Império terráqueo como um mundo Aberto, ele seria
aberto à exploração e vários métodos de aproveitamento.
Mas se fosse um mundo a ser protegido pelo status de Fechado, eles todos voltariam para a
nave e partiriam em menos de um mês. David e Elizabeth nem mesmo teriam a oportunidade
de fazer o trabalho que amavam, e, evidentemente, significaria adiar seu casamento.
Tudo isso, dependendo de uma decisão de uma audição pela Central Imperial.
Ysaye não se incomodaria em absoluto se todos reunissem suas coisas e partissem para o
próximo mundo, mas sabia que Elizabeth se importava com a maior intensidade. A pior parte,
Ysaye sabia, era que Elizabeth estava literalmente dividida entre querer os status de Aberto e
Fechado. Se ele fosse Aberto, ela e David poderiam se assentar, e se devotarem a uma cultura
que não só os fascinava, mas que eles também gostavam intensamente. Mas se ele fosse
Aberto, o planeta ficaria vulnerável a gente como Evans, que não se interessavam por nada
além de calcular quanto poderiam lucrar com ele. O status de Fechado os protegeria disso –
mas também significaria não apenas que Elizabeth e David teriam que partir, mas que os
nativos perderiam os consideráveis benefícios de se tornar um membro do Império.

O segundo transportador foi comandado pelo próprio capitão Gibbons. O capitão era um
homem baixo e esguio de cabelos despenteados e pele enrugada. Ysaye não fazia ideia da sua
idade; ele parecia imune ao envelhecimento. Ouvira falar que ele começara a carreira como
oficial engenheiro, porque a sua baixa estatura lhe permitia entrar em lugares onde homens
maiores não podiam ir; naquela época não havia mulheres no Serviço, e mesmo agora, as que
escolhiam trabalhar em Engenharia era poucas e raras. O capitão Gibbons ainda conhecia
detalhadamente cada canto da nave, e, dizia-se que se ele não conseguisse consertar alguma
coisa, tal coisa era impossível de ser consertada. Era bem verdade que ele tinha um interesse
ativo nas coisas relacionadas a mecânica e eletricidade, e foi por sua decisão que o primeiro
transportador fora declarado além de qualquer reparação.
Agora que a nave aterrissara, o capitão tinha menos deveres no que se relacionava a ela, e
mais no que se relacionava ao que o time de Primeiro Contato de facto aprendera. Ysaye não
ficou nem um pouco surpresa quando ele chamou-os ao seu escritório para um “relatório
informal”.
Ysaye deixou que Elizabeth contasse a maior parte. Ela só se sentia feliz por estar de volta
na nave, quente e refrescada depois de um banho quente e vestindo um uniforme limpo.
Finalmente respirando um ar que não cheirava a nada: fumaça, carne assada, óleo de lamparina,
dejetos animais, suor.
Ele escutou seus relatórios e ouviu com interesse o que Elizabeth disse sobre telepatia.
– Bem, a Inteligência considerou a possibilidade o suficiente para incluir você e David na
nave – ele disse indulgentemente. – Não podemos descartá-la por completo.
Mas quando o capitão pediu a opinião de Evans a respeito, obteve um ponto de vista
totalmente diverso:
– Oh, sem essa, capitão; a quem essa gente pensa que está enganando! Telepatia que só
funciona para algumas pessoas? Essa é boa. – Zombou Evans. – É uma maravilhosa desculpa
para não entender alguém que não se quer entender. – Ele juntou todos os materiais para
extração de amostras que podia carregar e desapareceu; na realidade, ele quase não ficava mais
na nave. Ysaye tinha o pressentimento de que ele estava montando seus próprio laboratório
em algum lugar – embora o motivo de ele fazer isso no exterior e não no perfeitamente
adequado laboratório da nave ainda fosse um mistério para ela. Ainda assim, ela admitiu, se ele
quisesse fazer algo ilegal...
Aurora aceitou os diversos instrumentos dos computadores de idiomas e corticadores com
agradecimento e começou a trabalhar com David para prepará-los; a maioria dentro da nave,
mas alguns num quarto no castelo de Kermiac Aldaran, a fim de que certos nativos, se assim
desejassem, pudessem aprender o Padrão terráqueo. Esse era um beneficio colateral de ter
arruinado o Primeiro Contato; a essa altura, as coisas tinham saído tanto do programado para
que não mais importasse o que eles mostrassem aos nativos, ou ao que os expusessem.
O homem chamado Kadarin – se é que era um homem – fora o primeiro a se voluntariar
para as máquinas de aparência estranha e o feliz resultado foi que ele não apenas tinham um
nativo capaz de falar o Padrão terráqueo, mas também dispunham de excelentes registros para
que os terráqueos aprendessem tanto o casta quanto o outro idioma chamado cahuenga que
muitos dos plebeus falavam. Depois de usar os corticadores, Kadarin imediatamente passou a
trocar termos com Britton e o capitão, e se esmerara, de acordo com MacAran, para encontrar
um lugar para futuras naves aterrissarem.
Ninguém pareceu muito surpreso ao saber que ele considerava Caer Donn o local perfeito
para mais aterrissagens. O capitão Gibbons concordou. Aqui, compreendeu Ysaye, se o
espaçoporto terráqueo mesmo pudesse ser construído, ele prosperaria devido à proximidade da
influencia de Aldaran. Só o tempo diria se ele realmente prosperaria.
Pelo menos parte do tempo ela tinha certeza de que os nativos de Cottman IV desejariam
se tornar uma Colônia terráquea como qualquer outra. Parecia muito lógico – afinal, eles eram
terráqueos, não mereciam os benefícios de serem terráqueos? É claro que seria a Central
Imperial a tomar tal decisão.
No restante do tempo, ela receava que ele se transformasse numa Colônia terráquea – quer
os nativos desejassem ou não. Embora ela achasse difícil de acreditar, havia pessoas que não
considerava as coisas que o Império oferecia como “benefícios”. Às vezes ela se preocupava;
principalmente quando escutava Evans, planejando com Kadarin.
Logo que Kadarin aprendeu o Padrão, Evans alistara-o para mostrar-lhe a região e ajudá-lo
a carregar coisas, e Ysaye notara que suas conversas frequentemente mudavam abruptamente
de assunto quanto outras pessoas se aproximavam. Algumas coisas do pouco que ouvira
fizeram com que se sentisse apreensiva. Não acreditava que planejar exportações fosse ético,
não antes de um relatório final por ecologistas, psicologistas, e sociologistas a respeito da
sociedade.
As regras do Império terráqueo exigissem tal relatório antes de qualquer comércio ser
estabelecido; mas já parecia haver um considerável entusiasmo pela ideia por parte dos nativos.
Haviam sido discutidos planos para a construção do espaçoporto, para o emprego de mão de
obra local, e para suprir algumas das pessoas da espaçonave com alimentos frescos – que ao
menos seria bom para a agricultura e economia locais, ou assim Kermiac de Aldaran dera a
entender. E ele fizera insinuações sobre os favores que gostaria de receber, pela concessão de
ter o espaçoporto nas suas terras.
Ysaye sabia que Kermiac queria armas, e não sabia se isso era permissível. A seu ver, isso
significaria interferir na política local; sempre uma má ideia, considerando quais era a política
local aqui. Aparentemente Aldaran constituía um reino independente, com Lorill Hastur
representando outro reino ao sul daqui, onde o clima era consideravelmente mais hospitaleiro.
Ela achava que o procedimento padrão seria examinar ambas as sociedades, e analisar mais a
fundo as relações entre as duas, antes de tomar qualquer decisão no que concerne à venda de
armas, mesmo que fossem de baixa tecnologia.
Ela por fim abordara Lorill Hastur a respeito; indiretamente, pensou. Lorill permanecera no
plano de fundo dos acontecimentos – sempre observando, mas sem nunca interferir, e quase
nunca comentando.
Mas você deve compreender, Lorill Hastur comentara naquela fala silenciosa, que nós dos Domínios
proclamamos soberania sobre Aldaran. Ele nem sempre admitem, mas nós somos seus senhores. Qualquer coisa
que Aldaran puder fazer a fim de pressionar-nos a conceder-lhe independência, ele fará.
Se isso fosse verdade, a percepção do assunto seria outra, especialmente no que concerne
ao desejo de Aldaran por armas. Era estritamente contra a política do Império tomar partido
em conflitos puramente nativos, ou adjudicar casos, mesmo se o conflito parecesse baseado
em algo insignificante para terráqueos quando o conflito entre os Grandes Endians e os
Pequenos Endians em As Viagens de Gulliver, de Swift. Havia um popular provérbio terráqueo:
Não cabe a nós determinar por qual extremidade os outros devem comer seus ovos. Infelizmente houve
muitos exemplos em que essa lei fora honrada mais na violação do que na observância.
Ysaye decidiu que a melhor coisa a fazer na situação era não se envolver, e foi checar os
logs de status do computador. Para o seu enorme alívio, aparentemente nenhuma catástrofe
ocorrera na sua ausência. Ela voltou para sua cabine, apreciando o privilégio de poder retornar
para um quarto verdadeiramente aquecido, algo de que foi privada por semanas, e apanhou seu
teclado sintetizador musical. Ajustou-o para o cravo e tocou Invenções a Duas Vozes, de Bach, até
seus dedos terminarem de descongelar.

Na manhã seguinte Elizabeth procurou-a com a novidade de que ela e David haviam
decidido ir em frente e se casar, adiando filhos para quando o status do planeta fosse decidido.
– Estamos fartos de esperar – ela disse – Não faz mais nenhum sentido. Eu nem mesmo
tenho certeza se importa se este mundo seja Aberto ou Fechado. Nem mesmo tenho certeza
porque esperei tanto para começo de conversa – agora me parece estupidez. E, Ysaye – ela
indagou – você quer ser minha dama de honra?
– Mas é claro – respondeu Ysaye, abraçando-a. – Onde e quando?
A cerimônia – pois Elizabeth dissera que eles conversaram tanto com o capitão Gibbons
quanto com o capelão, que tanto um como o outro estavam autorizados para casar
funcionários da nave em qualquer lugar do Império, e decidiram pelo capelão, que queria que
eles esperassem os tradicionais três dias para “esfriarem as cabeças” – foi marcado para dali a
três dias.
– Três dias não fazem muita diferença quando já se esperou três anos – disse David
filosoficamente. Ysaye concordava.
Assim, além de seus outros deveres, ela e Elizabeth tinham um casamento para preparar.
Não seria uma cerimônia pomposa, porque afinal de contas tratava-se de uma nave de
exploração – mas quase todos da nave iriam querer participar, e ficariam enormemente
desapontados caso não houvesse alguma espécie de celebração. A maioria das pessoas não
conhecia bem Elizabeth, pois ela muito discreta – mas David era popular com a maioria do
pessoal da nave.
Mais uma coisa, Ysaye pensou consigo mesma.
Mas Elizabeth estava feliz – e consideravelmente menos tensa. A espera finalmente
terminara.
Então surgiu algo que ela não esperara. Os nativos se interessaram pelos procedimentos.
Aldaran – e Felicia – fizeram muitas perguntas sobre seus costumes matrimoniais, e até mesmo
ofereceram o Grande Salão e os servos do castelo para ajudarem na celebração. Era um
inesperado bônus para o trabalho de Elizabeth, pois ela começara a enxergar a si mesma como
uma interface entre as duas culturas; e ela sentia-se mais do que pronta para deixar os nativos
participar nesta parte de sua vida.
A cerimônia seria o primeiro evento programado para o pessoal da nave no novo mundo, e
parecia adequado que ela envolvesse tanto terráqueos quanto nativos.
Depois de discutir com David e Ysaye, ela aceitou o convite de Aldaran para realizar a
cerimônia no seu Grande Salão. Agora que ele e o pessoal da nave tinham um idioma em
comum, Aldaran não desperdiçara tempo estendendo um grande número de convites, mas este
era o mais prático para aceitar – e o que tinha o menor número de laços metafóricos
adjacentes. Elizabeth dividia seu tempo entre planejar cada detalhe da cerimônia e categorizar
cada nova faceta da cultura nativa que encontrava. E no pouco tempo vago, ela podia ser
encontrada alegremente catalogando canções folclóricas e comparando-as com as cópias da
biblioteca, exultando sobre cada meia-nota modificada, cada tom maior que, de alguma forma,
o passar dos anos transformara em menor, introduzindo sons de alaúde no sintetizador,
gravando novos sons para serem sintetizados.
Quando Ysaye indagou por que ela gastava tanto tempo catalogando música, Elizabeth
protestara que isso tinha tudo a ver com sua principal especialidade. Canções folclóricas e as
mudanças nela ocorridas, ela insistia, indicavam mudanças profundamente enraizadas na
sociedade, e mudanças na psicologia do povo. Ela assinalou que, do esmagador número de
antigas canções galesas sobre o mar, não havia praticamente nenhuma que tivesse sobrevivido
na presente cultura nativa, provavelmente porque o estilo de vida dessas pessoas não incluía
um mar, ou qualquer coisa semelhante, uma vez que se encontravam cercados por montanhas.
Ela mencionou especialmente uma antiga canção sobre gaivotas, que se transformara numa
triste canção de amor; as palavras de alguma maneira mudaram de um refrão baseado nos
gritos da gaivota para o triste som do vento nas árvores, e os gritos das aves de rapina. As
palavras originais se tornaram, não gritos de gaivota, mas o triste refrão: “Onde está você/Por
onde meu amor vagueia?”
Ysaye dera de ombros.
– Eu espero que a Central Imperial pense o mesmo – ela advertira – ou você provavelmente
se saíra muito mal na sua próxima avaliação de status.
Mas de alguma forma ela não acreditava que isso preocupava muito Elizabeth, não agora,
pelo menos.

Na manhã do casamento, Ysaye compareceu ao Grande Salão para mostrar aos servos onde
colocar a mesa que serviria, coberta com um pano de seda sintética imaculadamente branco,
como um altar. Todos da nave compareceriam, e a maioria da gente de Aldaran.
Quando Ysaye quis saber por que tantas pessoas do seu povo – que nem ao menos
compreenderiam o idioma em que a cerimônia era discursada – queriam comparecer, ele disse,
com os olhos brilhando quase imperceptivelmente:
– Qualquer desculpa serve para uma ocasião festiva; um casamento é tão boa quanto
qualquer uma, e melhor do que a maioria.
Ele também fizera outra oferta a Elizabeth.
– Eu posso entregá-la se não houver nenhum de seus parentes presentes.
Elizabeth agradecera, mas declinara, informando-o de que não era costume deles uma noiva
ser entregue pelos parentes.
– Pessoalmente – ela disse a Ysaye em particular – embora eu jamais dissesse isso a Lorde
Aldaran, eu acho o costume bastante degradante, como se a mulher fosse uma propriedade, ao
invés de uma pessoa. Mas sei que ele pretendia me conceder uma grande honra.
Ysaye lembrava dessa conversa quando Lorde Aldaran entrou e indagou se tudo estava
satisfatório.
– Sim, senhor – ela respondeu, olhando os surpreendentes enfeites, não só de sempre-
verdes da floresta, mas também de verdadeiras flores do que ela acreditava ter ouvido um dos
servos chamar de estufa. – Tudo está lindo. Estamos enormemente agradecidos por sua
gentileza e generosidade.
Ela olhou ao redor uma última vez, estudando os detalhes. Talvez, pensou, ele fizesse isso
novamente num futuro próximo. A menina Mariel, que acompanhara Felicia na primeira noite,
quando eles chegaram – seria ela sua filha? Não, ela era muito velha para isso, provavelmente
era sua irmã, sobrinha, ou prima. Ultimamente Mariel parecia estar sempre com Lorill Hastur.
Ysaye se perguntava o que se passava entre os dois; eles sem dúvida pareciam passar muito
tempo rindo pelos cantos.
Ysaye surpreendeu um sorriso ao encontrar uma inesperada imagem em sua mente, de
Aldaran abordando o jovem Hastur e exigindo, como um patriarca num drama antigo, saber
quais eram as intenções dele.
E se ele realmente fizesse isso? Qual seria a resposta daquele arrogante jovem aristocrata? E
por acaso isso era da conta dela?
Ela ergueu os olhos e descobriu Aldaran fitando-a estranhamente.
– Eu falarei com Lorill Hastur – disse, o rosto impassível. Depois ele deu meia volta e
deixou-a parada no meio do Salão.
Ela fitou-o enquanto saía, alarmada pela súbita mudança no seu comportamento e
expressão. Sua mão procurou os lábios num gesto inconsciente de alarme, enquanto se dava
conta de que a mudança havia se seguido aos seus pensamentos sobre o garoto Hastur e a
jovem Mariel.
Será que ele acompanhara seus pensamentos?
E, em caso positivo, o que ele pretendia fazer?
14

Leonie estava esgotada, sem nenhuma outra coisa na mente exceto dormir. Nem ao menos
percebeu que a cama estava quente; nem ao menos sentiu a cabeça tocar o travesseiro. Nessa
noite não tinha nenhum interesse nos estranhos em Aldaran, pois tivera um dia mais do que
atarefado.
Dias – ou foi uma semana? – atrás, Fiora a encontrara distraída no jardim, a observar as
duas meninas mais jovens brincando no balanço, e indagara se Leonie não tinha nada melhor
para fazer. Ela se considerava um pouco superior às colegas, porque recebera permissão para
ajudar nas transmissões outra vez. Essa indagação pegou-a de surpresa.
– Não, não tenho – dissera com sinceridade. Fiora sorrira, e indagara gentilmente
(demasiado gentilmente, ela pensava agora), se Leonie se sentia apta para uma forma avançada
do ensinamento normalmente dado a uma leronis.
– Você me disse que pretendia se tornar uma Guardiã, e tenho a impressão de que
poderemos precisar de uma nova Guardiã mais cedo do que pensávamos. Mas, mesmo que
não seja o caso, não fará mal algum ter alguém treinada como Guardiã e preparada para atuar
onde for necessário.
Fiora não disse onde uma nova Guardiã seria necessária, nem quando isso aconteceria –
mas era possível existirem mais de uma Guardiã na mesma Torre. Na realidade, era algo
desejável, embora isso não ocorresse com frequência atualmente, pois muitas mulheres do
Comyn eram arrancadas de suas Torres a fim de fazer casamentos vantajosos para suas
famílias, para gerar mais filhos e filhas para seus clãs. Mas Leonie não acreditava que Fiora
tencionava que se tornasse uma sub-Guardiã. Fiora protegia seus pensamentos com o maior
cuidado, mas Leonie tinha a impressão de que havia muito mais acontecendo do que a Guardiã
pretendia revelar.
Por isso, quando Fiora oferecera a nova instrução, insinuando que podia ser uma maneira
de Leonie provar-se, não apenas para si mesma, mas para todos os operadores de todas as
Torres, ela aceitara o desafio.
Ela não fazia ideia do que Fiora tencionava. Se antes tinha pouco para fazer, agora tinha
muitas tarefas para cumprir num único dia.
Ocupava um turno regular nas transmissões agora, como os outros adultos; e, no lugar das
mesmas lições diárias, recebia o dobro de ensinamentos no uso das suas habilidades dado a
qualquer das outras alunas.
Mais que o dobro de ensinamentos, ela tinha aulas especiais. E agora entendia o que a
Guardiã de Dalereuth pretendia dizer quando censurara Leonie naquele dia no jardim. Leonie
sofrera mais dor naqueles últimos dias do que jamais tivera de suportar em toda a sua vida.
Fiora assumira pessoalmente a tarefa de ensiná-la. Brutalmente, ela ensinara Leonie a
monitorar adequadamente em um único dia; a partir desse momento, passara a receber um
treinamento especializado conferido somente às Guardiãs. As suas mãos já apresentavam
pequenas cicatrizes semelhantes às de Fiora; o legado do aprendizado, na maneira mais
dolorosa possível, de quando e com quem não poderia manter contato físico. Mas ainda mais
profundas eram as cicatrizes da alma, embora invisíveis.
E Leonie estava mais determinada do que nunca a usar as vestes vermelhas de uma
Guardiã.
Entre outros deveres, Leonie frequentemente monitorava enquanto uma das outras leroni
efetuava uma cura. Hoje atuara pela primeira vez como curandeira. Havia sido um trabalho
simples, uma criança com uma picada infeccionada, mas ela extraíra o veneno do ferimento,
aliviara a febre do sistema da criança, e a curara, de acordo com seus ensinamentos, a partir do
ponto mais profundo para o exterior. A leronis que era sua professora e atuara como monitora
nessa ocasião a elogiara pelo seu toque hábil e seguro, e acrescentara que não demoraria muito
para ela poder não apenas curar pacientes sem supervisão, mas substituir a professora em
verdadeiras cirurgias.
– É um risco a que raramente recorremos – dissera a mulher – mas às vezes é necessário
fazê-lo, pois há casos quando não há outra opção. Há um homem no povoado com um
fragmento de faca alojado no corpo que causa dor e precisará ser extraído algum dia; quando
estiver preparada, ele será seu primeiro paciente.
Leonie ficara radiante com o louvor, embora, depois de terminar com a criança, ela se
sentisse ansiosa para descansar. E não conseguia imaginar como era executar cirurgias... a
menos que as coisas se tornassem mais fáceis com a prática. (Quando indagara a Fiora, ela
dissera que nada é fácil, mas tudo é possível).
Mas o dia de Leonie ainda não havia terminado; quando terminara de tratar da criança,
houve mais uma aula, desta vez na despensa. Três dias atrás, Fiora determinara que ela deveria
aprender tudo que se relacionava à pratica da cura, quer envolvesse laran ou não.
– Uma Guardiã deve conhecer essas coisas. Do contrário, como poderia ensinar aos outros?
– dissera ela.
Leonie, percebendo o sentido dessas palavras, aceitou-as sem contestação, e começara a
aprender a usar as ervas na composição de medicamentos e poções. Não demorou a descobrir,
para sua própria surpresa, que essa atividade era muito interessante, pois ela possuía uma
grande curiosidade e uma ótima memória. Sua mestra afirmava que era uma mulher inteligente
e acurada. Hoje, ela acrescentara que um dia Leonie poderia empreender cirurgias, uma tarefa
que geralmente era reservada apenas aos técnicos mais habilidosos e vigilantes.
Quando terminara a aula como herbalista, era hora de assumir seu turno nas transmissões.
E quando isso finalmente terminara, não pensava em qualquer outra coisa exceto comer e
dormir. Na verdade, nunca se sentia realmente faminta, mas Fiora pressionava-a a comer. Ela
afirmava que o trabalho de matriz entorpecia o apetite, e a estimulava a comer mesmo se não
sentisse vontade.
Logo descobrira que Fiora tinha razão; ela devorara até a última migalha das frutas doces e
barras de nozes que Fiora lhe trouxera, e ainda fora à cozinha em busca de uma refeição
completa. Ao terminá-la, sentia-se ainda mais extenuada. Alguém – não recordava quem –
levantara-a e a levara ao seu quarto. De algum modo ela conseguira se despir sozinha – suas
novas roupas facilitavam o processo – e arriara na cama, caindo num sono profundo e sem
sonhos, quase imediatamente.
Assim, quando, muito depois da meia noite, foi despertada do sono fatigado pelo contato
familiar e insistente do irmão gêmeo, de inicio procurou ignorá-lo. Mas o contanto se tornava
ainda mais insistente, por isso acabou por desistir da tentativa. Virou-se para deitar sobre as
costas, reprimiu um suspiro exasperado, e abriu a mente para ele. Tinha certeza que era Lorill;
conhecia a “voz” dele tão bem quanto a sua.
Reinava o silêncio na Torre, dominada pela quietude das mentes adormecidas, sem nada
para perturbá-las. Nem mesmo a leronis de vigília nas transmissões perturbava essa paz.
Lorill? Ela chamou, já de mau humor. Aonde você está? O que quer a esta hora da noite? Eu estava
dormindo.
Estou em Aldaran, onde mais? Não foi você quem me mandou para cá? Lorill parecia ao mesmo
tempo divertido e incomodado por alguma coisa.
Aquilo só contribuiu para piorar ainda mais o seu humor. O que poderia ser tão importante
para justificar acordá-la no meio da noite?
Leonie jamais pensara que seu irmão, entre todas as coisas, seria motivo para perturbar seu
sono e seu humor. E como foi você quem me mandou para cá, ele prosseguiu, é você a responsável pelo
que aconteceu.
Esse comentário despertou-a por completo. Mas o que aconteceu? Conte-me imediatamente! Você
se meteu em alguma enrascada? Os estranhos...? O que ele fizera? Será que Lorill ofendera as pessoas
da lua de alguma forma?
A mente de Lorill transparecia emoções conflituosas... uma preocupação secreta, oculta por
uma atitude jovial que parecia mais do que inadequada. Ela especulou se ele bebera
exageradamente recentemente. Ah, é só um problema com a irmã de Kermiac... essas garotas das
montanhas são completamente diferentes das de Carcosa. Imagino que eu deveria saber melhor, mas não havia
ninguém para me ensinar.
Um problema com a irmã de Kermiac? Em nome de Avarra, como Lorill foi se meter com
ela? O que houve? Ao menos uma coisa continuava igual: Lorill às vezes podia ser um obtuso
irritante!
As garotas não têm o menor acanhamento, Lorill respondeu, exasperado. Ela se insinuou para mim, e
eu admito que não a rechacei a golpes de espada! Imagino que o velho Domenic deve ter nos visto juntos, e
Kermiac acabou por me procurar, como o pai escandalizado numa peça ordinária. Ele deu outra risada
inquieta. Eu juro que a cena faria você cair na gargalhada, Leonie. Tive que recorrer a todo o meu controle
para manter o rosto impassível e não deixar meus pensamentos transparecerem.
O que ele queria? Indagou Leonie, sem o menor divertimento. Naturalmente Lorill trataria de se
envolver com moça mais inadequada do mundo... e a irmã do seu anfitrião, ainda por cima.
Ele solenemente indagou quais eram minhas intenções com relação à garota! Como se um Hastur pudesse
desejar qualquer coisa dela exceto o tipo de diversão que ela estava mais do que disposta a dar. A arrogância
nas palavras do irmão aborreceu profundamente Leonie; ela não era egocêntrica o suficiente
para não reconhecer no irmão a mesma arrogância que ela frequentemente demonstrava.
Refletida na sua direção, era como olhar para um espelho e encontrar um defeito feio e
inesperado. Ainda assim, Lorill era seu irmão gêmeo... ela ficaria ao seu lado, qualquer que
fosse o conflito.
E qual foi a sua resposta? Ela indagou, impetuosamente. O que você disse a ele?
O que se esperaria que eu dissesse? Lorill respondeu, comunicando a sensação de um movimento
dos ombros. Eu respondi, com toda a cortesia, que estava apenas oferecendo a admiração que ela estava
pedindo. Ele parecia pensar que eu tencionava casar com a garota.
Um casamento... não, não era possível. Não com seu irmão Lorill, o Herdeiro de Hastur.
Lorill evidentemente pensava o mesmo. Não consigo imaginar o motivo, embora a atmosfera fosse
propícia. Houve um casamento hoje; um casal dos estranhos que afirmam ter vindo de fora de nosso mundo,
uma outra estrela.
Leonie descobriu-se novamente surpreendida. Então os estranhos vieram das estrelas! Isso
se aproximava suficientemente de ter vindo das luas para que Leonie sentisse que validava seus
poderes e o conhecimento obtido deles e justificava suas afirmações. Então ela tinha razão
sobre eles! E eles se casavam, como pessoas normais... isso era quase suficiente para distraí-la.
Mas não por muito tempo; ela precisava saber mais sobre o problema em que Lorill se
metera. E o que, exatamente, acontecera entre ele e a irmã de Kermiac?
E o que Aldaran disse? Indagou.
Havia um traço de raiva aborrecida nos pensamentos de Lorill que não existia antes. Kermiac
falou comigo de uma maneira que eu acho difícil de perdoar. Por fim eu perguntei: “Quer dizer que sua irmã é
uma virgem resguardada?”. Falei como ironia, mas ele respondeu como se fosse uma pergunta verdadeira. Ou
então ele quis me insultar de uma maneira que eu não pudesse responder. Ele me disse: “A sua não é?”.
Leonie não sabia o que Kermiac quis dizer com isso, mas insolência de tal pergunta fez com
que ela ficasse nervosa. Como esse homem se atrevia a fazer imputações sobre sua honra? E?
O que você respondeu?
Eu respondi: “Sim, mas minha irmã se encontra numa Torre, como é adequado, não agitando as saias para
qualquer homem que olhe para ela”. Ele parecia bastante satisfeito com sua esperteza.
Esperteza? Bem, não era monumentalmente estúpido, mas também não era a resposta mais
inteligente que Lorill poderia ter dado. Não era de se surpreender que Aldaran estivesse
zangado. Lorill realmente deveria ter esquecido seu orgulho. Mas quem era ela para criticá-lo
por isso. Leonie perdeu a sua raiva; agora a discussão parecia nada mais do que dois garotinhos
trocando insultos. Como ela ficara tão mais velha do que seu irmão gêmeo nas últimas
semanas? Ou ela sempre fora mais velha que ele? Oh, Lorill, isso foi a maior estupidez do mundo. Por
acaso estava tentando chocá-lo? O que ele disse e fez então?
Lorill pareceu um pouco embaraçado. Ele riu de mim, embora eu notasse que estava zangado, e disse
que um homem honrado saberia o que fazer, uma vez que ninguém jamais falara mal de Mariel antes de eu
chegar. Ele prosseguiu interminavelmente sobre como eu devo tê-la iludido com minhas palavras das planícies,
virara a cabeça dela com minha posição, e talvez até usara meu laran para influenciá-la. Por fim tive que lhe
dizer que eu tinha apenas quinze anos, e não poderia casar com ninguém sem o consentimento do Conselho.
Não havia nenhuma veemência por trás das acusações, mas uma considerável quantidade
sob a última sentença. Então fora isso o que o enraivecera; ter de admitir sua idade quando se
sentira tão orgulhoso por ser enviado por conta própria como um adulto. Mas também havia
uma insinuação de presunção de que Leonie não gostou; uma sensação de que ele se sentia
orgulhoso por ter rápida e facilmente encontrado uma maneira de fugir a uma obrigação que
não lhe agradaria admitir. Ele me disse: “Aqui nas montanhas, o costume é que se um homem tem idade
suficiente para comprometer uma boa garota, também tem idade para corrigir seu erro”. Isso me deixou furioso,
e só o que pude dizer foi que nunca me passara pela cabeça, pela maneira como ela se comportava, que Mariel
era uma “boa garota”.
Leonie sentiu-se subitamente tomada por apreensão. Essas palavras seriam suficientes para
causar um derramamento de sangue entre os Domínios e Aldaran, e Lorill não tinha ideia do
quanto era afortunado por Kermiac não tê-lo desafiado naquele mesmo instante. Ela precisava
encontrar uma forma de fazê-lo compreender isso, antes que ele fizesse alguma coisa que
obrigasse Aldaran a desafiá-lo. Por os homens permitiam que a raiva predominasse sobre o bom
senso, especialmente quando havia mulheres envolvidas? Lorill, ela é Comyn, e a irmã de Lorde
Aldaran. Como pôde pensar tal coisa, quanto mais dizer?
Ele pareceu pensar que ela simplesmente expressava melindres femininos. Irmão, eu juro-lhe...
ora, veja por si mesma! Ele apoiou suas palavras com lembranças de Mariel que pareciam a Leonie
exageradamente insinuantes...
Mas isso era no mundo dos Domínios, não das montanhas, e ela ao menos podia perceber
que Mariel, que fora criada de maneira muitíssimo diferente dela e de seu irmão, não
pretendera flertar. Havia uma inocência nos seus sorrisos e olhares, nas suas palavras gentis,
que não podia ser contestada.
O tom de Lorill agora era tingido com mais daquela presunção de que Leonie não gostava.
Essas garotas das montanhas não têm vergonha, e eu não obtive dela mais do que ela ofereceu.
Que havia sido, de acordo com as lembranças de Lorill, não muito mais do que dançar com
ela, cercados pelos parentes da garota, e segurar as pontas dos dedos dela, por alguns segundos,
nas raras ocasiões em que os dois se encontravam sozinhos. Ao menos Lorill tinha o mínimo
de bom senso para não tratar uma dama de Aldaran como uma serva a ser desonrada.
Leonie agora sentia-se dividida por emoções conflitantes. Parte da sua reação era inveja pela
liberdade de Mariel, ela desconfiava. Por toda a sua vida, ela fora uma dama resguardada das
planícies. Nunca ira a lugar nenhum sem acompanhantes e um bando de outras garotas e as
acompanhantes delas. Nunca conversara com um homem solteiro sozinha, exceto pelo seu
irmão. Fazer o que Mariel fizera, conversar, até mesmo dançar, com um homem solteiro...
Leonie achava inquietante; fazia com que se sentisse estranhamente excitada, como
acontecera quando ouvia um boato particularmente sórdido, e ao mesmo tempo apreensiva e
temerosa. E se as garotas das montanhas podiam fazer tais coisas, não deveriam enfrentar as
consequências, mesmo que significasse serem equivocadas por alguém como Lorill? Não era
isso justo e correto?
Ela estava muito confusa para responder adequadamente, e disse a primeira coisa que lhe
ocorreu. É evidente que nenhuma mulher de Aldaran poderia nutrir esperanças de se casar na nossa família,
respondeu, ainda tentando ordenar seus sentimentos conflitantes. Você não poderia ter uma noiva
que se comportasse dessa maneira desavergonhada, e é até possível que ela tentara enredá-lo numa armadilha, eu
não posso ter certeza. Você não pode se permitir esse tipo de envolvimento, de qualquer maneira; é o que nosso
pai e o Conselho diriam.
Não, uma aliança assim jamais seria permitida, mesmo os colocasse em mais dificuldades
com os Aldarans – o que sem dúvidas aconteceria.
Eu não me perturbaria demais, disse Lorill despreocupadamente. Kermiac mandou que eu me
mantivesse longe de sua irmã, fez alguns comentários sobre como eu era uma criança, e deixou por isso mesmo.
Pode ter sido nada mais do que o vinho falando; houve uma grande celebração pelo povo das estrelas e o
casamento deles.
Leonie relaxou; podia muito bem ter sido isso mesmo. Homens diziam coisas quando
embriagados que não diriam normalmente – e frequentemente as coisas ditas sob a influencia
da bebida eram como as coisas feitas sob as quatro luas; ignoradas, senão esquecidas.
Enquanto Kermiac considerasse Lorill uma criança tola, por mais que Lorill se ofendesse com
isso, seria abaixo de seu orgulho desafiar Lorill por sua estupidez. De qualquer forma, estava
feito, e nem todos os ferreiros nas forjas de Zandru podiam reparar um ovo quebrado. O que
quer que resulte disso era inevitável.
Mas agora ela se encontrava completamente desperta, e lembrando do motivo pelo qual ela
implorara a Lorill para ir a Aldaran em primeiro lugar.
Eu queria poder ver essas pessoas das luas, ela disse ansiosamente.
Lorill bufou. Não posso acreditar que você não poderia entrar em contato com eles se quisesse. Seu laran é
mais forte do que o meu, afinal de contas.
Suponho que sim, ela admitiu relutante. E ainda assim, ela sentia-se apreensiva à perspectiva
de fazer contato com eles. Ela não tivera muito sucesso em controlar o contato que tivera com
eles quando estavam naquele abrigo, e não tinha garantias de que teria mais controle agora.
Talvez depois, ela disse, igualmente relutante em confessar isso ao irmão. Por enquanto você deve
simplesmente ser meus olhos entre eles – e tratar de não ser enredado ou comprometido pelos Aldarans. Lembre-
se de seria uma grande satisfação para eles ter um Hastur em seu débito... ou pior, em seu poder. Provocaria
ainda mais problemas ter um Hastur na família deles.
Não precisa me lembrar, tenho plena consciência disso, ele disse. Não é algo que se possa esquecer
facilmente.
Seus pensamentos voltaram aos estranhos, uma vez que Lorill ao menos parecia ciente de
que poderia causar muitos problemas se continuasse a bancar o idiota. O povo das estrelas... algum
deles pode lê-lo assim?
Por algum motivo, a maioria deles parece ser cego-mental. Uma ou duas das mulheres e talvez um dos
homens não são. Suponho que eles tenham um laran diferente do meu, mas de qualquer forma é laran.
Ele não parecia muito interessado em conversar sobre o povo da estrelas; Leonie não sabia
se era por que ele estava cansado, ou por que ela não fazia as perguntas certas. Ou, talvez, a
discussão com Kermiac o perturbara mais do que ele estava disposto a admitir, mesmo para
ela.
Ainda assim ela insistiu. Como isso é possível? Ela indagou. Como alguns podem ter laran, e outros
não?
Seja lógica, Leonie, ele disse aborrecido. Por acaso todos os plebeus têm laran? Ou mesmo todos no
Comyn? Por que deveria ser diferente com o povo das estrelas? Além do mais, eles têm invenções que fazem o
que a gente treinada nas Torres fazem com laran, pois eu vi algumas delas. Talvez eles não precisem de laran.
Agora, eu estou cansado, e preciso dormir.
E antes que ela pudesse fazer mais perguntas, o contato entre os dois se desfez, deixando-a
desperta e frustrada por centenas de milhares de perguntas não respondidas.
Perguntas que Leonie sabia que precisava descobrir mais a respeito, por conta própria.

Ela não teve oportunidade de fazer isso por algum tempo, uma vez que fora incumbida de
mais do que os deveres comuns na Torre. Fiora não tinha intenção de facilitar sua parcela de
trabalho, ao que parecia. Mas nas poucas ocasiões em que ela tivera para parar e observar,
percebia que a própria Fiora estava igualmente ocupada ou mais. Portanto Fiora realmente a
estava treinando para assumir as responsabilidades de uma Guardiã. Apenas esse pensamento
bastava para que ela não pensasse mais nos estranhos.
Mas no final do dia ela ficava mais uma vez sozinha no quarto, e desta vez não estava tão
exausta ao ponto de sentir uma necessidade imediata de dormir.
Assim, estimulada pela sua curiosidade parcialmente esquecida, ela projetara a sua mente a
fim de entrar em contato com uma das pessoas das estrelas. Sentia necessidade de ao menos
descobrir a verdade da origem deles. Terem vindo das luas já era suficientemente absurdo...
mas das estrelas?
Entrou em contato com uma deles quase imediatamente; não havia dúvidas de que se
tratava de alguém do povo das estrelas, pois a mente estava apinhada de desconcertantes
imagens de máquinas, preenchida de conceitos com estranhos nomes como computador, e
corticador; meteorologia e astronavegação. Descobriu rapidamente que a garota era a mesma de que
Lorill falara na noite anterior, que se casara naquele mesmo dia.
Mas Leonie não pôde manter o contato por muito tempo, porque a mente dela não estava
apenas repleta daquelas palavras e conceitos alienígenas, mas de outras coisas, igualmente
alienígenas para uma virginal candidata a Guardiã.
Talvez a hora de dormir não tivesse sido um bom momento para tentar fazer contato... a
mente da mulher estava repleta de amor, e do seu novo relacionamento com seu marido;
imagens carnais e sensuais que perturbavam Leonie e também a assustavam um pouco.
Apesar de todo o seu “treinamento acelerado” Leonie não tinha experiência suficiente para
filtrar os pensamentos da mulher em busca daqueles que ela desejava. Muitas outras coisas
interferiam, e logo tornou-se óbvio que a mulher estava esperando – com a maior ansiedade –
que o marido viesse se deitar.
Isso não está servindo, ela decidiu, e quebrou o contato. Era melhor procurar a mente com a
qual ela se comunicara antes, aquela dos instrumentos musicais. Ao menos ela era mais
parecida com Leonie – ela obtivera uma impressão de uma espécie de Torre ou construção que
a mulher virginal comandava. Algo... tão branco quanto osso ou marfim. Poderia haver
conceitos alienígenas ali, mas nenhuma perturbadora imagem sexual.
Foi mais fácil encontrar a mente da mulher do que ela imaginara. Leonie apoderou-se dos
pensamentos e usou-os para aproximá-la. E uma vez feito o contato, ela descobrira muito que
a fazia sentir-se desafiada e interessada. Por exemplo, a mulher era de uma estranha espécie;
olhando no espelho, sua incauta anfitriã revelara a pele mais escura que Leonie já vira num ser
humano.
Isso não era grande coisa; Leonie fora criada com as estórias sobre os chieri, embora jamais
tivesse visto uma das criaturas. Os pensamentos de Ysaye – ela descobriu o nome depois de
um discreto exame – pareciam suficientemente humanos. Virginal, sim, e provavelmente
continuaria assim – homens não a interessavam, e nem mulheres. Mas, para o prazer de
Leonie, ela descobrira que Ysaye era uma espécie de Guardiã, uma Guardiã de conhecimento, e
sua Torre (Ysaye pensava nela como uma “Torre de Marfim”) era uma daquelas máquinas,
feita para guardar e produzir informação a uma velocidade que desconsertava Leonie. Na
mente de Ysaye, ela descobrira a quantidade dessas informações, e a própria ideia deixou-a
estarrecida. Ora, todas as bibliotecas do mundo não poderiam conter um décimo do que esse
computador continha!
E isso não era tudo; o computador parecia ser fundamental para vastos depósitos de outras
coisas. Podia até tocar música, como se por mágica, sem músicos...
Tamanho era o prazer de Leonie que ela chegou muito perto de revelar-se para Ysaye.
A mulher estava selecionando música para o computador tocar enquanto ela tentava
dormir; curiosa, Leonie demorou-se a ouvir um pouco dela. Sentiu-se assombrada e
emocionada por uma coisa chamada Mozart, e pensou que os estranhos podiam ter muito a
oferecer se podiam produzir música assim.
À medida que Ysaye relaxava, Leonie examinou as memórias aleatórias que surgiram em sua
mente: um sol muito mais brilhante do que o de Leonie, uma única lua resplandecendo branca
e fria. Arvores fazendo sombra num lago, e estranhos pássaros cor de rosa alçando voo ao por
do sol, elevando-se do lago...
O trabalho que Ysaye estava fazendo, a Guardiã de sua Torre-computador...
Para a surpresa de Leonie, ela trabalhava com homens em termos igualitários. Bem, talvez
ela não devesse se surpreender, pois o mesmo acontecia nas Torres que Leonie conhecia, e o
mesmo se aplicaria a ela quando fosse um pouco mais experiente. E a riqueza de
conhecimento disponível a Ysaye era espantosa, ainda mais quando ela descobriu como eram
humildes as origens de Ysaye. Quase ao ponto da miséria. E ainda assim, ela recebera todo esse
ensinamento, até mesmo instrução musical, o prazer dos ricos, como Fiora assinalara.
A descoberta da origem empobrecida de Ysaye destruiu qualquer compulsão que Leonie
pudesse ter de explorar sua mente ou memória. Muito embora Leonie já tivesse tomado o
primeiro dos juramentos de laran dado a telepatas – de não entrar numa mente sem permissão,
e nunca exceto para ajudar ou curar – na sua visão, o juramento não se aplicava a alguém como
Ysaye. A mulher era uma alienígena, e não era da casta de Leonie.
Além do mais, ela disse a si mesma, como Ysaye nem ao menos se dava conta dessa
exploração, não havia nenhum mal.
E mesmo se soubesse, ela provavelmente mostraria a maior disposição, Leonie disse a si mesma. Como
poderia ser diferente? Ele serve ao conhecimento; e eu estou aprendendo sobre ela e seu povo.
Aprendendo mais do que o suficiente para ter certeza de que o que Lorill dissera era
verdade; essas pessoas vieram de outra estrela. Terráqueos era como se autodenominavam.
Ysaye estava pegando no sono a essa altura, e Leonie quebrou o contato fácil e suavemente,
decidida a usar sua influencia com o pai e o Conselho em favor desse povo das estrelas. Eles
possuíam muitas coisas úteis, e outras mais que eram simplesmente desejáveis.
E Ysaye era mais parecida com Ysaye do que praticamente todos que ele jamais conhecera.
Talvez – até mesmo mais do que seu próprio irmão gêmeo.
15

Afinal chegaram respostas da Central Imperial. A situação fora discutida e o veredicto


determinado: contrariando todas as expectativas, o status atribuído a Cottman IV pelo Império
terráqueo satisfazia tanto a Elizabeth e David como ao capitão Gibbons... mas não a Ryan
Evans. Elizabeth Lorne experimentou grande prazer ao contemplar a expressão enfezada de
Evans ao anúncio do veredicto.
Não Fechado – o que significava que todos teriam de concluir seus projetos, recolher tudo o
que fosse de origem terráquea, fazer as malas, embarcar na nave e partir. Mas também não
Aberto, o que exporia os nativos e o frágil planeta ao risco de uma exploração prejudicial. O
planeta acabara recebendo uma designação raramente utilizada, a de Restrito. MacAran
expressara certa surpresa pela decisão, assim como Britton, que murmurara algo como “nunca
no meu tempo...” Essa designação era tão rara que Elizabeth precisara pesquisar para saber o
que significava, pois nem sabia que ela existia. Ficou animada com o que descobriu.
Um planeta Restrito tinha severas limitações com relação à quantidade de comércio e
contato autorizado com os nativos. Os terráqueos teriam permissão para construir um
espaçoporto, se os nativos aceitassem e estivessem dispostos a ceder a terra. Mas todo e
qualquer acordo comercial tinha de ser proposto pelos nativos e estavam sujeitos à aprovação
do governo nativo local, e todo o movimento de terráqueos fora do espaçoporto e da Cidade
Comercial que seria construída ao redor dele estava vetado, exceto com permissão expressa
dos nativos.
Não haveria circulação livre. Não haveria espólio dos recursos nativos, como a madeira ou
os escassos metais do planeta. Evans não teria a oportunidade para achar algo que pudesse
comprar a preço de banana e depois revender em créditos em outros planetas. E se ele por
acaso descobrisse algo, ao menos parte do lucro iria para o fornecedor local. É lógico que o
nativo em questão poderia ser tão inescrupuloso quanto Evans, mas ao menos seria um nativo,
e parte dos lucros acabaria se infiltrando no planeta na forma de taxas e despesas.
Para Elizabeth, era a melhor solução possível. As restrições impostas a ela seriam poucas –
ou talvez absolutamente nenhuma. Ela e David eram bem-vindos em toda a cidade de Caer
Donn, no castelo de Aldaran e arredores; como música, ela tinha certeza de que seria recebida
de braços abertos em qualquer parte do planeta. Mas gente como Ryan Evans, a quem a maior
parte dos nativos desprezava, possivelmente acabaria ficando limitada ao território terráqueo.
A possibilidade de Evans encontrar alguém disposto a iniciar um comércio não aprovado pelo
Legado terráqueo era mínima. Talvez aquele amigo esquisito de Kermiac chamado Raymon
Kadarin estivesse disposto a auxiliá-lo, mas o desprezo generalizado que Evans nutria pela
maioria dos nativos tornava improvável que qualquer outra pessoa se tornasse seu partidário.
O capitão Gibbons e a tripulação, naturalmente, receberiam uma polpuda recompensa e
uma comissão pela descoberta, uma vez que o planeta podia fornecer tanto um comércio
limitado como um espaçoporto. O capitão parecia satisfeito com essa resolução, e Elizabeth
tinha a impressão de que talvez tivesse sido ele quem sugerira o status de Restrito. Embora ele
lucrasse mais caso o planeta recebesse a atribuição de Aberto, Elizabeth sabia que Gibbons era
muito ética para colocar os créditos em primeiro lugar.
E nesse meio tempo, enquanto todos preparavam o espaçoporto e o assentamento,
Elizabeth e David poderiam começar aquela família, há muito esperada, há muito discutida...

Assim que o status foi publicado, ela procurara Aurora a fim de remover seu implante
anticoncepcional. Quando a doutora indagara se os planos de Elizabeth para filhos não
deveriam aguardar até que ela estivesse habituada ao novo ambiente, Elizabeth respondera que
ela já esperara três anos, e isso já era tempo suficiente!
Além do mais, depois da confirmação do status, o capitão Gibbons imediatamente
procurara Kermiac e discutiu com ele durante metade de um dia, negociando pelo Império,
enquanto Lorill permanecia inconsciente do que transpirava dentro do Castelo. Quando ficou
sabendo, já era muito tarde. As negociações haviam sido completadas, e o novo espaçoporto e
a Cidade Comercial terráqueas seriam construídas – em Aldaran.
Lorde Aldaran cedeu sua propriedade em troca de concessões para as quais Elizabeth deu
pouca atenção. No que lhe dizia respeito, o importante era que a construção do novo
assentamento e espaçoporto começara imediatamente. Como recém-casados e dando início a
uma família (como assinalado pela remoção dos implantes) ela e David tinham direito à
primeira moradia familiar a ser construída. Elizabeth ouvira o que acontecia com outros que
“prudentemente” aguardavam para começar suas famílias quando um assentamento era
inaugurado; acabavam no fim da fila, e à medida que outras necessidades do porto e da cidade
surgiam, suas requisições adquiriam uma prioridade cada vez menor. Ela até sabia de casais que
foram forçados a viver o primeiro ano com o bebê num único apartamento nos alojamentos
para Casados! Isso, ela estava determinada, não aconteceria a ela – ou a David!
Ela e David haviam saído hoje para verificar como o trabalho na casa deles estava
progredindo. Máquinas terráqueas forneciam os materiais de construção fabricados com
matéria-bruta local, e projetos terráqueos, modificados para se adequarem à área, estavam
sendo usados, mas eram os trabalhadores nativos que construíam os edifícios, sob a supervisão
terráquea. O novo assentamento estava sendo construído em solo virgem à margem de Caer
Donn. Os terráqueos haviam preparado os primórdios de uma vila ali, com casas no estilo
dormitório para Casados e Solteiros para aqueles que ficariam no planeta depois que a nave
partisse, e a casa dos Lorne era a primeira moradia totalmente privada. Já haviam construído
um laboratório de biologia, um laboratório de idiomas e uma escola (o projeto especial de
David Lorne), e diversas outros edifícios simples de madeira, que serviriam como o Quartel-
General do Império até o habitual Quartel-General Governamental puder ser construído. Este
seria feito de pedras nativas (“Isso é uma coisa que temos de sobra”, dissera Kermiac com
humor) uma vez que o tempo melhorasse e as pedreiras pudessem ser novamente abertas.
Os construtores nativos foram fornecidos por Kermiac de Aldaran; eles ficaram satisfeitos
por ter trabalho nesta época de pouco rendimento do ano e pareciam não se incomodar por
trabalhar para os terráqueos. Os terráqueos concordaram em pagá-los com metais brutos e
ferramentas de metal, e o sistema de troca resultante parecia agradar a todos.
Elizabeth aninhou-se contra o ombro de David e suspirou, feliz. Sua nova casa tinha três
andares, e com facilidade qualificaria uma mansão na Terra. Aqui, era simplesmente uma casa
grande, e a única preocupação seria como aquecê-la. E para a tecnologia terráquea isso
dificilmente era um problema.
– Nunca poderíamos ter uma casa dessas na Terra. É grande o suficiente para uma dúzia de
filhos, se quisermos.
– Grande o suficiente para todos os seus instrumentos, você quer dizer – provocou David.
– Já vi a coleção que você está juntando. E não tenho dúvidas de que dará um jeito de achar
um artesão nativo que se mostre disposto a tentar copiar nossos instrumentos. Não demora,
vai querer um piano!
Ela riu.
– Mas é lógico que sim, se puder achar alguém para construí-lo! – respondeu. – Eles já têm
harpas; e o que é um piano, afinal, senão uma harpa numa caixa de som?
– Você não tem vergonha na cara – ele disse.
Kermiac de Aldaran ficara satisfeito por encontrar trabalho para seu povo, tanto que
ninguém, nem mesmo Elizabeth, podia encontrar qualquer motivo para pensar que seus
colegas terráqueos estavam “explorando” os trabalhadores nativos.
– Os artesãos profissionais não têm trabalho nesta época – ele dissera – E quanto aos
trabalhadores sem nenhuma especialidade – tantas das pequenas fazendas têm sido usadas para
criar ovelhas na última geração, e não há muito trabalho para muitos dos fazendeiros. Eles
ficarão satisfeitos por poder trabalhar, e se vocês concordarem a ensiná-los uma profissão ao
mesmo tempo...
Foi fácil para o capitão Gibbons cumprir essa promessa. Quando esses edifícios estivessem
prontos, os trabalhadores locais estariam bem treinados em tudo desde produção de tijolos a
instalações elétricas. Era interessante que poucos nativos tivessem qualquer conhecimento
sobre produção de tijolos, onde havia materiais tanto para os tijolos quanto para as fornalhas.
Talvez fosse porque havia pedras em tamanha abundância – mas uma vez que eles
percebessem como tijolos eram superiores a pedras, os nativos treinados para produzi-los
teriam trabalho de sobra.
Os nativos sabiam quais eram os materiais disponíveis; podiam aconselhar os engenheiros
na projeção do sistema de esgoto para esse clima particular. O estoque de ferramentas com as
quais eles eram pagos era dolorosamente baixo em Aldaran, e se o resto do planeta fosse tão
escasso em metais quando esse Domínio do norte, provavelmente também faltava em toda
parte.
Ouro parecia ser raro, mas estranhamente, era pouco valorizado ou utilizado exceto para
dentes e trabalhos ornamentais. Às vezes ele era ligado com prata, a velha liga chamada
“electrum” pelos egípcios, e utilizada em facas e vasos cerimoniais. Para além disso, era
considerado muita maleável para ser utilizado, pois entortava com demasiada facilidade, e não
podia ser afiada. Prata tinha um valor mais alto, pois era mais resistente, embora passível de
maculação. Algumas moedas menores eram feitas desse material, além de joias e ornamentos.
A maioria do dinheiro local era feito de cobre, e uma boa parte das joias. Dinheiro de cobre
era feito de grandes moedas, ou então colares de argolas cuidadosamente pesadas que podiam
ser abertos e entregues a um mercador.
Havia pouquíssimo ferro, e o aço era praticamente inexistente, exceto pelas armas dos
soldados pessoais de Kermiac. O pouco ferro possuído pelos plebeus parecia ser usado
principalmente para ferrar cavalos.
Ferramentas de ferro e aço simples representavam a verdadeira riqueza portátil dos nativos.
David vira uma velha ferradura que fora encontrada na estrada quando eles limparam a área
para o porto, um fragmento parcialmente consumido por ferrugem, recuperado e tratado
como um terráqueo poderia tratar uma descoberta similar de platina ou algum outro metal raro
e precioso.
O ferreiro da aldeia lhes dissera que metais eram um pouco mais abundantes nas terras
baixas. Elizabeth não entendera totalmente como eles eram minerados, mas o processo
aparentemente era infinitamente árduo – e, estranhamente, ele dissera que era mais árduo agora
do que no tempo do seu avô. Muitas coisas que os terráqueos teriam assumido serem feitas de
metal eram na realidade feitas de uma madeira endurecida, cerâmica, ou algum material
alternativo.
Também ficara sabendo que as coisas costumavam ser mais simples no passado; que o laran,
que era como os nativos chamavam a telepatia, tornara possíveis coisas que não podiam ser
feitas hoje. Ela imaginava quando disso era simplesmente uma lenda do tipo “Era uma vez
uma Idade de Ouro”, e quanto se baseava em fatos.
Ela sabia o que Evans teria dito: é tudo lorota.
David a deixara para contemplar seu novo lar; ele tinha trabalho a fazer no laboratório de
idiomas. Nem todos os nativos eram tão adaptáveis quanto Kadarin; seu idioma tinha de ser
capturado da maneira difícil, uma frase aqui, uma palavra ali, e eles às vezes tinham medo das
máquinas de David. Ele frequentemente tinha de persuadi-los para obter apenas algumas
palavras ou uma estória.
Ela perambulou pelo local da casa, procurando não atrapalhar os trabalhadores. Aqui seria a
cozinha; ali, a sala de música. A sala ao lado ainda não tinha um propósito, mas era grande e
pegaria sol durante a maior parte do inverno; talvez ela revivesse o antigo conceito de um
“solar”, uma sala onde a mulher passava a maioria dos dias no inverno... ela teve uma imagem
sonhadora de si mesma, tocando uma harpa de colo ao sol, um bebê adormecido num berço
ao seu lado.
O próximo aposento seria o escritório de David; eles haviam decidido que muitos dos
nativos achariam um quarto numa casa menos ameaçador do que um laboratório no Quartel-
general. Kadarin ajudara David a planejá-lo, fazendo com que ficasse o mais semelhante
possível com um quarto de uma moderadamente próspera casa de Caer Donn.
Como se o pensamento o tivesse convocado, ela ergueu a cabeça e descobriu Kadarin se
aproximando.
– Por onde tem andado? – ela indagou, curiosa, depois de cumprimentá-lo.
Ele indicou o edifício que fora cedido à Inteligência terráquea com um movimento da mão.
– Uma proposta interessante – ele disse. – Seu capitão deseja saber mais sobre este mundo;
ele ofereceu empregar-me.
Ela ergueu as sobrancelhas.
– Como um... ahn...
– Como um agente – disse Kadarin suavemente. – Ele quer empregar-me para ir além de
Carthon e trazer-lhe informações sobre as Cidades Secas.
Ela empurrou uma pedrinha com o dedo do pé.
– Por que você?
– Nada mais simples – ele disse. – Eu sou uma das poucas pessoas nestas colinas dispostas
a atravessar o Rio Kadarin e entrar nas Cidades Secas a fim de verificar o que se passa lá. Ele
prometeu instruir-me nas suas técnicas de produção de mapas, a fim de que eu possa mapear
aquele território.
– Isso não o incomoda? – ela indagou com cautela.
Ele deu de ombros.
– De maneira alguma. Eu conheço muitos dos idiomas das Cidades Secas. Tenho alguns
amigos por lá, e por causa da minha altura e coloração, posso me passar por um habitante das
Cidades Secas. Há até mesmo alguns do seu povo que poderiam fazer isso, mas naturalmente
nenhum de vocês é adequado para a tarefa.
Ela o observou especulativamente. Havia muito pouco que ela ou qualquer dos outros
terráqueos sabiam sobre ele; que ele era amigo de Kermiac Aldaran, e tolerava Evans mais do
que qualquer um dos outros nativos.
– Você tem sangue das Cidades Secas? – ela indagou bruscamente.
Ele se virou e endereçou a ela um olhar especulativo. O que quer que tenha visto no seu
rosto deve tê-lo assegurado de alguma coisa. Ele sorriu ligeiramente.
– Não – ele respondeu. – Eu fui... digamos que sou uma espécie de órfão, embora soubesse
quem é meu povo. Eles preferiram que eu vivesse em outro lugar.
A voz dele, tão desprovida de tom, ainda transmitia um vestígio de amargura.
– Quem é o seu povo? – ela persistiu ousadamente, recordando o que Ysaye dissera sobre
sua aparência, e o que isso poderia implicar.
Ele sorriu pela presunção dela.
– Bem, nestas colinas, por causa de minha idade e coloração, seria óbvio que alguns dos
meus ancestrais são do povo belo das colinas – os chieri – o povo que Kermiac pensou que
vocês pertenciam. Por isso, naturalmente, não sendo parente de ninguém, sou a escolha óbvia
para uma missão nas Cidades Secas. E mais tarde, talvez, possa descer até os Domínios, perto
de Thendara, como um embaixador para Kermiac e seu capitão.
Elizabeth lambeu os lábios; esse não era o plano que ela escutara antes do casamento.
– Eu achava que Lorill Hastur seria enviado para os Domínios em nome de Kermiac. Este é
o país que fica ao sul daqui, certo?
– Exatamente. Mas Lorill não se encontra em boas graças atualmente. – Kadarin sorriu. –
Kermiac brigou com Lorill Hastur. Ele descobriu que Lorill estava brincando com sua irmã
Mariel de uma maneira que não faria bem algum à reputação da moça. Algo bastante inocente
pelos seus padrões, eu presumo, e para ser franco, eu acredito que o menino não tinha más
intenções. Afinal, ele é muito jovem, e não está acostumado ao comportamento liberado das
moças dessas montanhas. Donzelas de boa família são acompanhadas a todos os momentos
até que se casem, lá nos Domínios.
Elizabeth sacudiu a cabeça.
– Desconfio que nós sejamos um choque para você.
– Eu? – Kadarin soltou uma risada escarninha, como se seu passado tivesse segredos que
fariam os terráqueos parecerem enfadonhos em comparação. – Não me choco com facilidade.
E Kermiac os aceita pela aparência, pois o povo das montanhas está acostumado a maneiras
mais liberadas. Mas, oh, o povo dos Domínios acharia você muitíssimo peculiares, e, para ser
franco, de certa forma assustadores.
O sorriso dele era genuíno e sem reservas, e convidava-a a partilhar da piada. Ela riu.
– Bem, Kermiac não dará a Lorill Hastur outra chance de brincar com o coração de Mariel;
no momento, ele não passa de um estranho excitante, mas não quer arriscar. Assim Lorill
partirá para sua terra natal amanhã, sozinho, sem nenhuma mensagem de Aldaran. Kermiac
não confiará nenhuma missão ao menino. Não tem sentido usar como mensageiro alguém que
nem sequer tem bom senso quando o assunto são mulheres.
– Isso provavelmente é verdade – concordou Elizabeth. Eles se afastaram do local da casa,
contornando as pilhas de materiais de construção, algumas das quais, como argamassa,
isolantes de poliéster e tábuas compostas, nunca haviam sido vistos nesse planeta. Nada podia
causar mais problemas numa civilização como esta do que se envolver com suas mulheres
resguardadas. Ela estudara centenas de civilizações semelhantes, e essa constante jamais
mudava. Tampouco faltavam jovens como Lorill, ansiosos para encontrar mulheres de quem
possam tirar vantagem.
– Vai partir de imediato para as Cidades Secas? – ela indagou. E no momento em que fez
essa pergunta, ela deu-se conta de que sentiria saudades dele. Ele era o único nativo que se
mostrara sinceramente amistoso, com exceção do próprio Kermiac Aldaran. Todos os outros
viam os terráqueos como benfeitores, mas de uma maneira cautelosa, e mantinham-se a uma
cuidadosa distância.
– Não de imediato; ainda permanecerei aqui por algum tempo, auxiliando seu marido e...
outros – ele disse. – O capitão Gibbons também prometeu levar-me numa viagem em um dos
seus veículos. Disse que talvez possa ver o... o local que construíram na lua Liriel. Eu gostaria
de ver a sua – ele hesitou, pois não havia uma palavra no idioma nativo para “estação
meteorológica” e finalmente teve de usar o Padrão terráqueo.
– Você aprendeu nosso idioma incrivelmente depressa – ela elogiou. – E mais do que o
idioma, você compreendeu os conceitos. É espantoso.
Era raro isso acontecer com um nativo de um planeta com um nível de tecnologia baixo
como este; não sem precedente, mas definitivamente raro.
Também significava outra coisa, pelo lado terráqueo. Ela e David já haviam discutido a
origem dos nativos como parte da tripulação e passageiros da Nave Perdida com Kadarin. Ele
parecera aceitá-lo como aceitava tudo mais que os terráqueos lhe diziam, calmamente, como
mais um fato. Ele advertira, entretanto, que seus conterrâneos se mostrariam muito resistentes
à ideia.
– O capitão Gibbons está aceitando os nativos daqui como terráqueos plenos? – ela
indagou. – Se ele está lhe oferecendo trabalho como um agente e prometendo viagens para as
nossas instalações espaciais, parece implicar isso.
Kadarin endereçou-lhe um olhar estranho.
– Eu sinceramente não sei o que seu capitão pensa a respeito. Não perguntei a ele. Não tem
muita relação comigo, afinal de contas.
A insinuação não passou despercebida a Elizabeth, e pareceu-lhe bem óbvio, embora ela
fosse muito cortês para mencionar, que o que quer que Kadarin fosse, era improvável que ele
fosse um terráqueo humano comum.
E qualquer que fosse o estranho sangue que corresse em suas veias, era evidentemente
partilhado com Felicia.
Kadarin sorriu, e seus olhos se estreitaram como se ele pudesse seguir seus pensamentos.
Apesar de que, já que Kermiac podia falar mentalmente com ela, talvez fosse exatamente isso o
que ele fizera.
– Posso sentir curiosidade em você – ele disse. – Eu não tenho plena certeza de minha
herança. Meu pai pertencia ao povo da floresta, os chieri, e minha mãe tinha pelo menos metade
desse sangue. Não sei muito a respeito dela, e não sei qual é minha idade, mas há rumores de
que minha mãe foi amiga a parenta da avó de Kermiac. Eu fui encontrado, de certa forma...
não, não da maneira como está pensando, um bebê numa cesta... era mais velho que isso
quando fui deixado entre os humanos.
Ele disse isso como se não se considerasse humano – e mais uma vez, ele seguiu seus
pensamentos.
– Eu não podia permanecer com os chieri, ou foi o que me disseram – ele disse, e mais uma
vez havia um vestígio de amargura. – Por que não era totalmente da espécie deles, havia traços
de meu sangue humano que eram... inaceitáveis. Um certo nível de agressão incontrolável, foi
o que disseram. Uma certa... instabilidade, pelos seus padrões exaltados. E sou plenamente
masculino; eles consideram isso uma forma de limitação, e uma inclinação a perverter o
comportamento de formas que eles não podem aceitar.
Ser “plenamente masculino” não era aceitável? Que espécie de criaturas eram esses chieri,
algum tipo de hermafrodita?
– Parece-me que eles têm padrões bastante absurdos – ela disse secamente. – Mas... a avó de
Kermiac era amiga de sua mãe?
Ele parecia estar no final da casa dos trinta, no máximo, mais ou menos a idade de David.
Não pôde evitar fitá-lo assombrada.
– Isso mesmo – ele respondeu com ironia. – Sou muito mais velho do que pareço. Quase
que gostaria de ter contado os anos. Mas não se pode reconstituir a neve do inverno passado. –
Ele soltou um suspiro pesado. – E os anos transcorreram muito depressa quando era jovem, e
os chieri não tentam manter contagem deles. Então de repente eu... não mais era bem vindo. Eu
fiz ou disse alguma coisa, não sei o que foi, e fui expulso de volta ao povo de minha mãe, e
demasiado desnorteado para manter a contagem do tempo.
Posso imaginar, pensou Elizabeth, um pouco zangada. Pobre coitado; rejeição e choque cultura ao
mesmo tempo. Como alguém poderia fazer isso a uma criança?
– Então chegou o momento em que o povo de minha mãe descobriu que eu era mais chieri
do que humano, e quiseram me mandar de volta para a floresta. Houve quem desejasse livrar o
Domínio de Aldaran de mim, e tentaram... – Kadarin disse, parcialmente para si mesmo, e
Elizabeth perguntou-se exatamente como eles tentaram se livrar do jovem. – Mas o pai de
Aldaran não permitiu, pois Kermiac se afeiçoara a mim, e a mãe de Aldaran perdera outras
duas crianças e se agarrava a Kermiac e se recusava a arriscar qualquer coisa que pudesse lhe
fazer mal. Portanto fui criado aqui, tratado como um estranho, quase como o bicho de
estimação de Kermiac. Sujeito a... problemas, caso deixasse a área de Caer Donn. Agora sinto-
me mais aceito pelo seu povo do que qualquer um dos meus. Pode compreender isso?
Elizabeth assentiu, a boca franzida de raiva por essas pessoas insulares.
– Entendo muito bem, para ser franca – ela disse. – Quer dizer que você recebeu seu nome
por causa do rio?
– Oh, não, não exatamente – disse Kadarin, e sorriu, mas tratava-se de um sorriso
desprovido de qualquer humor. – É costume nessas colinas chamar qualquer de pai
desconhecido um “filho do rio”. Eu simplesmente transformei esse costume numa espécie de
sinal que ninguém pode ignorar.
E ele se considera mais parecido conosco do que com alguém de seu próprio povo, pensou Elizabeth. Não
é de admirar. Até agora a vida dele deve ter sido impossivelmente árdua.
– Acho que tenho alguma noção dos seus... sentimentos – ela disse em voz alta. – Suponho
que devemos parecer mais compatíveis com você do que os povos de seu pai e sua mãe.
E não havia dúvidas de quem alguém como Kadarin seria de enorme valor para os
terráqueos. Alienado de seu próprio povo, ansioso para encontrar um lar entre pessoas que
não o rejeitariam de imediato... oh, sim, se o capitão Gibbons tivesse ideia do passado de
Kadarin, não tardaria a perceber que bom agente ele daria. Coisas intangíveis – como uma
sensação de pertencer – muitas vezes eram muito mais importantes para seres pensantes do
que os tangíveis, como genética.
– Detesto perguntar – ela disse hesitante – Mas já deve saber que tenho uma curiosidade
insaciável. Como é o povo da floresta? Quem e o que eles são na verdade?
Ele sacudiu a cabeça, gentilmente zombando da sua curiosidade.
– Ah, é uma boa pergunta. Ninguém entre os humanos sabe realmente, e eu era demasiado
jovem para saber quando estava com eles. Conta-se que, no passado, eles saíam de suas
moradas nas grandes florestas com frequência. Mas agora, uma vez que houve muito mais
desmatamento nas florestas próximas aos locais humanos, eles se afastaram para florestas mais
densas e para os lugares secretos das montanhas, e têm cada vez menos contato com os
homens. Não posso recordar a última vez em que vi que sabia ser um deles... sem dúvida foi
quando eu ainda era criança. – Ele ponderou isso, o rosto pensativo. – Felicia também tem
esse sangue; ao menos disso eu sei. O velho Darriell – um dos paxmen do pai de Aldaran, ao
que se conta – gerou-a numa das mulheres chieri e, um ano depois, pelo que me lembro, foi
encontrado um bebê à margem da floresta, próximo à sua casa. Darriell não tinha outros
filhos, e aceitou-a com alegria. Felicia adequou-se a essa sociedade de uma maneira que eu não
sou capaz. Creio que a primeira criança de Felicia tem sangue de Aldaran; pode até ser do
próprio Kermiac. Mas ela é uma mestiça, e eu sou algo menos que isso; eu continuo inquieto.
Ela é humana o suficiente para sentir-se feliz aqui.
– Ela se parece com você – observou Elizabeth. – Eu pensei que vocês pudessem ser
parentes.
Kadarin deu de ombros e riu.
– Você não é a única a pensar isso. Nós nos conhecemos a tempo suficiente para nos
considerarmos irmãos. Afinal, nenhum de nós tem qualquer outro parente.
Interessante. Elizabeth presumira que Felicia era amante de Aldaran, embora a mulher não
se considerasse superior. Lady Aldaran não era vista com frequência; Elizabeth tinha a
impressão de que ela não tinha a saúde muito forte. Ela vira a filhinha de cabelos escuros de
Felicia, com os mesmo estranhos olhos dourados da mãe.
A ideia de que Felicia era uma espécie de amante oficial não a chocava; esse tipo de acordo
era bastante comum na Terra, no passado, quando o casamento se baseava em dinastia e
poder, e a esposa não se incomodava muito aonde o marido obtinha prazer. Até mesmo em
algumas das antigas canções folclóricas terráqueas, havia exemplos de esposas e amantes se
dando bem – embora não muito frequentemente. Provavelmente porque uma das duas
tentando matar a rival dava canções melhores.
– Então Felicia é mais ou menos sua parenta mais próxima?
– Mais ou menos – respondeu Kadarin. – Ela nunca pensou em si mesma como outra coisa
exceto de sangue chieri, muito embora não tenha sido criada entre eles. Acho que ela realmente
é mais humana do que eu. Estranheza pode ser bastante cansativa. Sei quem e o que eu sou,
mas não quem são meus verdadeiros parentes. De minhas famílias, sei apenas que eles não me
desejavam. Suponho que isso deveria ser tudo o que preciso saber a respeito deles. – A
amargura em sua voz era muito forte agora. – Saber que nunca teria nascido não fosse um
Vento Fantasma...
– Um Vento Fantasma? – ela perguntou confusa. – O que fantasmas têm a ver com isso?
– Você mencionou isso antes – Evans disse por trás dela, sobressaltando-a. – Algo sobre o
pólen daquelas flores.
Kadarin assentiu.
– Sim, aquelas que mostrei a você. Kireseth. Em floração, a planta é chamada cleindori, e exala
o pólen, e o vento o apanha e o transmite – o pólen causa... uma forma de... loucura, talvez.
De qualquer maneira, ele causa comportamentos estranhos em homens e animais. Entre outras
coisas, faz com que homens e animais acasalem fora de época, desenfreadamente, sem
consideração por cortesias como privacidade. – Ele deu de ombros. – A causa, como pode ver,
tanto do nascimento de Felicia quanto do meu. A planta é transformada em remédios para
certas doenças, através de fracionamento e destilação. Um dos produtos é conhecido e
desprezado como um afrodisíaco. Outro é mais útil, pois tem um efeito especial em telepatas.
Essa droga é chamada kirian, e às vezes é utilizada nas Torres, a fim de testar os jovens.
Evans mostrou-se ansioso a essa informação.
– Aí está uma coisa que eu gostaria de verificar. Se esse negócio é um legítimo afrodisíaco,
poderia valer uma fortuna. Há gente em Vainwal que mataria para pôr suas mãos nisso. E não
apenas velhos impotentes. Cafetinas, por exemplo... que ajuda isso seria no treinamento!
O rosto de Elizabeth deve ter ficado evidenciado no seu rosto, pois ele sorriu para ela de
uma forma particularmente sórdida.
– Eu sabia que tinha de haver alguma coisa nessa pedra de gelo esquecida por Deus que
valesse exportar! Não faça essa cara de espanto, Lizzie, as pessoas daqui já viram muitas coisas
que estariam dispostas a trocar por esse pólen. Aposto que não demorará muito para que eles
descubram mais coisas que gostariam de obter do Império.
Ela franziu o cenho e ele riu dela.
– Elizabeth, eu achei que casar-se com David curaria você da sua hipocrisia! Não há nada
que nos impeça de vender drogas para lugares onde elas não são proibidas!
– Não – protestou Elizabeth – Somente éticas e moralidade básicas.
– Eu não deveria mesmo me surpreender por você pensar assim – retrucou Evans
sarcasticamente. – Deus sabe que você é a maior puritana na nave, com exceção de sua
Reverendíssima Santidade, a Virgem Vestal Ysaye; vocês são iguaiszinhas, não me surpreende
que sejam amigas. Eu tenho a mente um pouco mais aberta. Se existem pessoas dispostas a se
divertir e consideram isso legal e moral, é legal e moral o suficiente para mim.
– E quanto aos viciados? – ela insistiu. – E quanto aos lugares em que se utilizam dessas
drogas para manter pessoas escravizadas?
– Isso é problema deles, não meu – Evans retrucou. – A culpa é deles se se meteram em
problemas.
– Eu não concordo com você – disse Elizabeth acaloradamente – E mais importante, o
capitão Gibbons também não concordará.
Ryan Evans corou de raiva.
– Eu não dou a mínima para quais são as morais pessoais do Gibbons; ele não tem direito
de impô-las a mim. E nem você, e essa é a lei, Lizzie. Vocês têm o direito de viver numa
colônia auto-restrita se quiserem, mas não podem levar a tripulação junto, ou impor seus
padrões em qualquer pessoa. Então eu exporto uma droga recreativa, e um afrodisíaco. Grande
coisa. Então alguém a utiliza de modo errado; o problema, ou carma, ou como quer que queira
chamar, é deles. Não meu. E eu posso muito bem ser aquele que fica com o dinheiro deles, já
que alguém ficará, não importa o que aconteça.
Ele se voltou na direção do prédio do Quartel-general. Elizabeth esfregou a nuca, e olhou
para Kadarin, que simplesmente deu de ombros e o seguiu.
Mas que outra coisa ela esperava que ele fizesse? Kadarin era amigo de Evans – e isso se
tratava, de forma abstrata, de uma discussão pessoas com relação a morais. Não deveria ter
esperado que Kadarin a apoiasse, principalmente se ele já concordara em ser o sócio de Evans
nessa iniciativa.
Mas ela se sentia muito apreensiva quando foi procurar David.
16

Leonie descia a escadaria que levava à sala de transmissão quando foi abordada por Fiora
no pequeno quarto ao final dos degraus.
Nunca havia entrado ali. Era um lugar confortável, bem resguardado por espessas paredes
de pedra, iluminado e aquecido por uma pequena lareira. Não havia janelas, mas pensando
bem, Fiora tinha pouca necessidade delas. Aqui ela literalmente se encontrava no coração da
Torre de Dalereuth.
– Leonie – disse Fiora quando ela entrou – o que pensaria se eu dissesse que você deverá
partir de Dalereuth?
Leonie se sentou num banco indicado por Fiora, forrado por uma grossa pele de carneiro.
Imaginou muitas possibilidades, mas algumas delas eram improváveis. Não acreditava que
havia desagradado Fiora – ela não estava sendo expulsa. Não acreditava que Fiora tinha
conhecimento do seu contato com a mulher das estrelas, e se tivesse, ela não poderia saber dos
detalhes. Duvidava que Fiora estivesse a par da participação de Leonie na presença de seu
irmão em Aldaran. E era improvável que Fiora, a esta altura dos acontecimentos, tivesse
mudado de ideia a respeito da afirmação de Leonie de que os estranhos vieram de fora do
planeta.
Não achava provável que a própria Leonie estivesse com problemas. Pelo menos não ainda.
A primeira indagação que lhe ocorreu foi – para onde estava sendo enviada?
– Arilinn solicitou você – disse Fiora, respondendo ao pensamento antes que ela pudesse
enunciá-lo. – Lembra-se de quando lhe disse que irmãos mão podem ficar na mesma Torre?
Bem, os eventos aceleraram o que teríamos de fazer de qualquer forma. Seu irmão está sendo
mandado para cá, a fim de ser treinado, de forma que você deve ir para outro lugar. A Guardiã
de Arilinn acompanhou seu progresso e gostaria muito se fosse para lá. Eu lhe proporcionei os
princípios do treinamento, e você se saiu melhor do que o esperado; agora está pronta para ir
para onde poderá ser treinada na devida isolação.
Leonie pestanejou, surpresa. Não somente o lugar para onde estava sendo enviada, mas o
motivo. Não pensara que a Guardiã da Torre mais proeminente dos Domínios estaria
monitorando seu progresso, não depois que Fiora declarara que ela ainda era uma iniciante no
treinamento de uma Guardiã.
– A Guardiã de Arilinn disse isso a você, e falou sobre mim?
– Sim – disse Fiora, simplesmente. – Ela assumiu um grande interesse em você desde que a
submeti a um treinamento tão intensivo; a meu pedido, ela aconselhou-me sobre o que deveria
fazer com você. Ela me disse para tornar as coisas o mais difícil possível para você. Disse que
você cederia sob a tensão... ou daria uma Guardiã notável. Você começou o treinamento muito
tarde, afinal, e houve dúvidas se chegaria tão longe. Mas saiu-se notavelmente, e agora ela a
quer em Arilinn.
Leonie ruminou esse pensamento, cuidadosamente, por tudo o que era implicado, mas não
enunciado.
– As melhores Guardiãs são treinadas em Arilinn, não é?
– Sim – disse Fiora, acedendo. – Eu passei cinco anos lá, até que fui necessária em
Dalereuth. Apenas os melhores vão treinar em Arilinn.
E apenas as melhores permanecem lá para ser Guardiãs, ela pensou, mas não disse em voz alta.
Ela sabia o que Marelie de Arilinn tinha em mente, embora jamais revelasse isso para Leonie, a
fim de que o orgulho formidável da garota se tornasse insuportável. Marelie pretendia treinar
Leonie como sua sucessora. A Guardiã da Torre de Arilinn, o apogeu de ambição de qualquer
Guardiã. E Leonie certamente ambiciosa. Se tivesse sucesso, ela obteria um poder equivalente
ao de qualquer lorde do Comyn, e um lugar no Conselho por direito próprio.
– E se eu quisesse permanecer aqui? – indagou Leonie. – Se acreditasse que seria melhor
permanecer com a professora com quem comecei?
Fiora considerou isso, as mãos cruzadas cuidadosamente no colo. Era uma pergunta
interessante, e que ela considerava quase perceptiva demais para a garota. Perguntou-se se ela
indicava medo do desconhecido, ou certa preguiça, ou simplesmente relutância em mudar. Ou
seria simplesmente curiosidade, a fim de saber que outras opções ela tinha?
– Eu seria a primeira a lhe dizer que não sou a melhor professora para você. Não tenho
certeza de que poderia mantê-la suficientemente motivada para trazer a tona seu potencial
pleno. Mas se fosse isso o que realmente quisesse talvez seu irmão pudesse simplesmente ir
para Neskaya.
Leonie sacudiu a cabeça.
– Não, eu quero ir para Arilinn. Só queria saber, Fiora. Tenho muito mais respeito por você
agora do que quando cheguei. Você têm sido honesta, e mais do que justa, mesmo quando eu
me comportava de maneira terrivelmente insolente. Não queria que me tomasse por ingrata.
Mas eu... oh, eu quero ir para Arilinn!
Fiora ergueu seus olhos cegos e sorriu. Então, era mesmo apenas curiosidade. Tanto melhor,
porque a garota tinha muito trabalho, dor e sacrifício a sua frente.
– Obrigada, Leonie. Acredito que você se sairá muitíssimo bem em Arilinn. Na realidade,
acho que você será uma Guardiã das mais notáveis. Quando estará pronta para partir?
Leonie levantou, ansiosa. Ela queria estar lá agora!
– Assim que você desejar.
Fiora tocou a lã de ovelha do seu próprio banco, sentindo as fibras enroladas nos dedos
sensíveis.
– Deve dar adeus às meninas mais novas, pois depois disso não terá mais permissão para
ver nenhum amigo ou parente até quase completar seu treinamento – talvez por anos.
– Eu lamentarei despedir-me de você, Fiora – Leonie olhou para as próprias mãos.
Fiora sorriu de novo, ternamente.
– Obrigada por dizer isso, Leonie; também sentirei sua falta, minha cara. Você me
proporcionou uma boa quantidade de desafios, isso eu garanto! Mas você tem um dom muito
forte... e muito valioso para nós das Torres... para ser arruinado por ter qualquer coisa que não
a melhor das professoras. – Ela acariciou as dobras da sua túnica, alisando rugas imaginárias. –
Partirá ao amanhecer, sob guarda de Arilinn, e viajará com eles. A Guardiã de Arilinn chama-se
Marelie – ela é parenta sua, muito embora nunca a tenha conhecido; também ela é uma Hastur.
Ela providenciará pessoalmente o seu treinamento como Guardiã. Devo advertir que esse
treinamento será ainda mais árduo do que imagina; ela é, por natureza, mais rígida do que eu, e
acredita que, na sua idade, já deveria estar em isolamento por no mínimo quatro anos. Terá
muito que compensar, e não tenho dúvidas que será muito árduo para você. Recordo o meu
próprio treinamento bastante vividamente, e eu dei início a ele na idade adequada. Não posso
imaginar o que Marelie tem preparado para você.
– Francamente, Fiora, isso não importa – a menina respondeu, com uma resolução que não
combinava muito bem com sua idade ou sua ocasional impulsividade. – Eu quis isso por tanto
tempo... eu... eu nem sei o que dizer.
Fiora sorriu consigo mesma, dando-se conta de que finalmente conseguira chocar Leonie ao
ponto de deixá-la sem palavras, talvez pela primeira vez na vida da garota.
Bem, ela terá ainda menos palavras quando Marelie encarregar-se dela. Duvido que a Guardiã de Arilinn
permita alguém brincando com o tempo sem permissão em sua Torre. E duvido que ela ache graça nisso, ou na
audácia de Leonie em aventurar-se no mundo superior sem vigilância.
– Não precisa dizer nada – Respondeu Fiora com firmeza. – Mas devo também adverti-la.
Você tem sido tratada com a maior gentileza até agora, e talvez erroneamente permitida a ceder
aos seus caprichos. Isso terminará. Estamos todos sob ordens nisso, eu tanto quando você.
Virá o dia em que – como todas as Guardiãs – você será responsável apenas perante sua
própria consciência. Mas por enquanto deve fazer o que mandarem. Marelie é uma mestra
rigorosa e não tolerará desobediência. Deve obedecer não somente o significado do que ela lhe
disser, mas também suas palavras, ao pé da letra. Não deve testar seu laran por conta própria;
não deve fazer excursões ao mundo superior ou manipular o tempo sem permissão. E duvido
que consiga obter a indulgência ela de qualquer maneira. – Fiora permitiu-se o vestígio de um
sorriso. – Afinal, como ela também é uma Hastur, ela provavelmente era muito parecida com
você quando jovem. É bem provável que conheça todos os seus pequenos truques. De
qualquer maneira, isso está fora de minhas mãos; o Conselho do Comyn foi informado e
apoiou o pedido dela com a ordem deles, e isso é que eu teria lhe dito se se mostrasse relutante
em partir. Você precisaria apresentar-lhes uma petição para ser liberada disso... embora eu
tenha poucas dúvidas de que seria capaz de obter a indulgência deles. Desconfio que já fez isso
no passado.
– Estou pronta para cumprir as ordens do Comyn – respondeu Leonie corretamente, como
uma filha obediente dos Hastur deveria fazer. – Mas sentirei sua falta! – ela exclamou. – Com
toda a sinceridade. Fiora, eu sentirei sua falta! Têm sido muito mais gentil comigo do que eu
merecia!
Fiora sorriu para Leonie com uma ternura genuína.
– Também sentirei sua falta, domna; tente ser um crédito para nós lá – ela disse. – Agora,
você deve ir. Sua atendente já arrumou suas coisas... sabe que ela não poderá acompanhá-la
para Arilinn? Não existem servidores humanos lá, pois eles não podem penetrar no Véu... a
matriz-armadilha que protege vocês na Torre de Arilinn.
Fiora recordava bem o Véu, e a Torre em seu interior. Mas não com trepidação; pois graças
ao Véu, a Torre de Arilinn era o único lugar nos Domínios onde um telepata podia ficar
completamente protegido do “barulho” de mentes exteriores sem ter de erigir suas próprias
barreiras. Nenhum pensamento desgarrado jamais penetrava o Véu. Marelie dissera que
outrora todas as Torres tinham tais proteções. Fiora algumas vezes desejava que Dalereuth
ainda as tivesse. Havia um elemento de paz numa Torre que não continha nada além de
mentes treinadas e ordenadas.
Bem, eu nunca mais terei isso, portanto não há sentido em remoer-me de desejo.
Essa revelação pareceu um pouco consternadora para Leonie, e Fiora não ficou realmente
surpresa. Ela nunca ficara sem um servo na vida.
– Então eu deverei vestir-me sozinha? – ela indagou, depois suspirou, pensando nos seus
complicados vestidos, com laços nas costas, ou longas fileiras de presilhas ou botões, nos
espartilhos que precisavam ser vestidos da maneira correta, e camadas de anáguas; difíceis de
alcançar e mais difíceis de colocar adequadamente, mesmo com a ajuda de servas. – Ah, bem,
se você conseguiu, suponho que eu posso aprender o que for necessário. – Ela possuía roupas
mais simples; talvez, se levasse somente essas, não se saísse tão mal. Mas ela detestava parecer
desarrumada, e até aprender a vestir-se sozinha, era o que provavelmente aconteceria.
Fiora soltou uma risada.
– Não, minha cara, você não precisará andar desmazelada. Há muitos servidores lá, mas são
todos kyrri – não humanos. Eles ajudarão a cuidar de você. Mas as roupas de um operador de
matriz e de uma Guardiã são mais simples do que os vestidos que usa na Corte. Eu me vesti
sozinha toda a minha vida, e realmente haverá momentos em que você não irá querer qualquer
criatura sapiente próxima. E não precisará de tantas roupas quanto está usando agora, pois a
Torre de Arilinn é tão quente quanto um dia de pleno verão, em todas as estações.
– Entendo – Leonie disse, novamente surpresa. Ninguém jamais lhe contara tantas coisas a
respeito de Arilinn antes... provavelmente porque poucos que ela conhecia estiveram lá e ainda
menos voltaram dispostos a falar a respeito.
– Agora preste atenção, pois eu devo dizer que tipo de vida terá em Arilinn. – disse Fiora, e
Leonie tornou a sentar-se, obediente.
Teria que ser diferente, se Fiora a estava advertindo a respeito. Mais árdua, sem dúvidas.
Mas com recompensas inigualáveis.
– Em primeiro lugar, você não terá permissão para entrar em contato com ninguém de fora
da Torre – disse Fiora. – Falo com toda a seriedade, Leonie. Absolutamente nenhum contato.
Nem com seu pai, nem com seu irmão, nem com sua mais querida amiga, nem mesmo se sua
família estiver morrendo. Espera-se que você concentre sua mente plenamente no que se passa
dentro da Torre, e tomar conhecimento do que se passa fora dela não precisa interessá-la até
que se torne uma Guardiã, qualificada para tomar suas próprias decisões.
– Sei disso – respondeu Leonie. – Você já me disse isso. Posso suportar.
Mas ela pensava diferente, embora não o dissesse a Fiora abertamente. Eles não poderiam
mantê-la afastada de Lorill, a não ser que ela quisesse. E ele estaria em contato com o resto do
mundo. Não ficarei tão isolada quanto Fiora acredita.
– Não precisa levar tudo o que trouxe – Fiora prosseguiu. – Eles têm suas medidas, e você
usará roupas como as minhas na maior parte do tempo. Leve um ou dois vestidos, e algumas
lembranças que poderá manter pelas primeiras semanas ou meses. Mais tarde, terá que abrir
mão mesmo dessas poucas lembranças, e tudo o que possuiu em sua vida anterior será
armazenado. Faz parte do processo de desapego.
– Desapego? – Leonie indagou, curiosa. – O que quer dizer? Nunca me disse nada a esse
respeito.
– Uma Guardiã não deve se apegar a nada além de seu trabalho e daqueles com quem
trabalha – Fiora respondeu calmamente. – Você deve abrir mão das coisas a que se apegou.
Em primeiro lugar, seus parentes e amigos, depois suas posses. Isso serve para que perceba
que posses não têm nenhum valor, e que seus únicos parentes verdadeiros são aquelas pessoas
que trabalham com você na Torre. Sua lealdade deve ser com eles em primeiro lugar, e depois
para com os Domínios como um todo, e só então com sua família. Mesmo seu irmão gêmeo –
não poderá vê-lo mais do que uma vez por ano, e mesmo assim demorará um ano inteiro para
ter essa primeira visita depois que chegar a Arilinn.
Leonie considerou isso, e Fiora sorriu com certa tristeza; não seria fácil ensinar Leonie...
mas oh, como a garota seria gratificante, um crédito para suas professoras.
Ainda assim, ela representava um problema muito além das habilidades de Fiora. Fiora não
era uma professora inexperiente, e possuía uma habilidade considerável, mas Leonie era mais
do que ela podia lidar.
Mas não mais do que Marelie podia lidar. Fiora não tinha dúvidas de que a formidável
Guardiã de Arilinn seria capaz de transformar um homem-gato numa Guardiã, se quisesse.
Assim, pensou Fiora, quer goste ou não, ela irá aprender.
– E quanto ao meu irmão? – indagou Leonie. – Por que eles vêm para cá?
Até onde sabia, Lorill ainda se encontrava em Caer Donn. Ele não mencionara nada sobre
retornar para casa. Como ela poderia saber o que se passava com o povo das estrelas se ele
estivesse em Dalereuth?
– Seu pai sugeriu que ele precisava de mais treinamento – Fiora respondeu delicadamente. –
Ele requer mais experiência antes de assumir quaisquer outras missões para o Conselho.
O que o Hastur mais velho lhe dissera, consternado, foi que seu “fedelho” se metera em
problemas com a própria irmã de Lorde Kermiac Aldaran.
Lorde Stefan Hastur estivera furioso, tanto consigo mesmo quanto com o filho. Isso ficara
claro para Fiora.
– Ele precisa aprender que nem toda mulher que olha na sua direção está flertando com ele.
Precisa entender que as mulheres não devem ser tratadas como brinquedos. Acredito que
encontrar-se sob a disciplina de uma mulher enquanto aprende a dominar seu laran ensinará
isso a ele.
Não houvera dúvidas na mente de Hastur de que seu filho abusara de seu laran, consciente
ou inconscientemente, a fim de forçar a menina Aldaran a aproximar-se dele. Isso certamente
era possível; embora Lorill não possuísse nem de longe o poder da irmã, o que ele possuía era
suficiente para satisfazer qualquer pai do Comyn.
Esse poder precisava ser treinado, e depressa, antes que esse tipo de abuso se tornasse um
hábito.
– Seu pai também disse, e eu concordo, que Lorill precisa descobrir a extensão plena de seu
próprio laran. – À breve e rapidamente disfarçada onda de ceticismo de Leonie, Fiora
continuou – Sei que ele não parece ter nem de longe tanto quanto você, Leonie, mas ele tem
mais que o suficiente para ser qualificado como ser o Herdeiro de seu pai, e mais do que
muitos jovens do Comyn. Afinal, seus poderes são formidáveis o suficiente para três pessoas; o
dom de qualquer um seria escasso em comparação com o seu.
Leonie também ponderou isso, e deu-se conta de que era a mais pura verdade. Afinal, Lorill
conseguira fazer contato com ela por todo o caminho desde Aldaran, e também a despertara de
um sono profundo. Ele não poderia ser assim tão fraco.
– Nesse caso, fico feliz que ele receberá o devido treinamento. Ele ficará aqui por muito
tempo?
– Não muito; provavelmente não mais do que vinte ou trinta dias. Afinal, ele logo terá de
assumir seu posto na Guarda de Cadetes em Thendara. Provavelmente terá tão pouco tempo
para contatá-la enquanto estiver lá quanto você para alcançá-lo quando estiver em Arilinn.
– Então ambos nos curvaremos ao dever – Leonie respondeu, se levantando. – Devo
arrumar minhas coisas, portanto, se devo partir pela manhã. Obrigada novamente, Fiora!
Isso é bom, Leonie disse a si mesma, enquanto deixava a Guardiã e ia fazer as malas. Lorill
ainda estará no meio dos acontecimentos, e eu poderei saber o que se passa. Não importa o que aconteça Pois eu
não acredito que a Guardiã da Torre de Arilinn possa me manter separada de meu irmão gêmeo, mentalmente,
se realmente quisermos.
Fiora sorriu enquanto os passos de Leonie se afastavam. Ela ainda não conhecera a
formidável Marelie; e Fiora não mentira quando disse que acreditava que Marelie seria mais do
que páreo para os caprichos de Leonie.
Mas a única maneira para essa criança aprender é através de uma experiência árdua, ela pensou. Bem,
ela terá isso... e mais do que deseja, antes que Marelie termine com ela.
17

Junte dois velganos e eles criarão uma religião. Junte dois deltanos e eles formarão um partido político. Junte
dois terráqueos e eles construirão uma cidade.
Era esse o ditado, e por experiência Elizabeth pensava que provavelmente era verdadeiro.
Havia alguma coisa nos terráqueos − ou ao menos naqueles que trabalhavam no Serviço − que
parecia instigá-los a deixar sua marca num novo mundo, a criar um pedaçinho da Terra em
meio a toda a estranheza.
Como se fossemos animais territoriais, só que demarcando nosso território com uma cidade ao invés do
cheiro, ela pensou, divertida. E aquela cidade em especial fora erigida em tempo recorde: apenas
pouco mais de um mês.
No centro do complexo ficava o Quartel-general terráqueo, muito semelhante aos Quartéis-
generais terráqueos de qualquer outro espaçoporto na galáxia. Até mesmo a iluminação do
complexo era a mesma; em todos os prédios e postes brilhava a luz amarela familiar da Terra.
Para qualquer parte da galáxia que os terráqueos iam, eles encontravam condições de trabalho
familiares. Muitos problemas psicológicos foram relacionados à luz estranha e às vezes
desconfortável de outros sóis. E era verdade que os temperamentos começaram a melhorar um
pouco, depois que essas luzes foram instaladas. Um membro da tripulação disse a Elizabeth
que era bom ver rostos que não pareciam corados ou banhados de sangue.
Neste momento havia uma diferença entre o que fora construído ali e um QG habitual. Ele
era feito de madeira, não pedra; isso teria de aguardar até existirem materiais disponíveis para
os substitutos permanentes. As pedras estavam em processo de ser escavadas e tijolos sendo
fabricados para os prédios mais substanciais que substituiriam as estruturas temporárias de
maneira logo que possível. O trabalho no espaçoporto, entretanto, não correra de acordo com
o plano.
Normalmente os terráqueos conseguiam contratar trabalhadores nativos para construir o
equivalente planetário de boas estradas, e usá-las para construir os primeiros campos de pouso
para o espaçoporto. As primeiras naves não requeriam muito mais do que a deles, afinal; um
local plano e estável para aterrissar, capaz de suportar o peso de uma nave, e um depósito de
reabastecimento bom e seguro. Até mesmo culturas da Idade do Bronze podiam fazer estradas
suficientemente boas; os Romanos e Chineses antigos criaram estradas perfeitamente boas, e
poderiam se munidos de um projeto e instruções adequadas, ter construído um espaçoporto
razoável. Mas, em Darkover, o engenheiro do espaçoporto se deparara com uma inesperada
inconveniência.
Os habitantes de Cottman IV − agora apelidado “Darkover”, a melhor aproximação para o
nome que os nativos deram ao seu planeta −não construíam estradas muito boas. Na verdade,
eles não construíam estradas absolutamente, na maior parte. Estradas pareciam simplesmente
acontecer. Se alguém precisava ir a algum lugar, eles seguiam trilhas de caça ou simplesmente
atravessavam o país até chegar ao seu destino. Se um número suficiente de pessoas seguiam a
mesma trilha para o mesmo lugar, ela se tornava uma estrada conforme seus cavalos, chervines e
pés consumiam a vegetação. E se alguém realmente precisasse cruzar um obstáculo como um
riacho ou ravina, poderia construir uma ponte rústica, ou criar um vau, ou até mesmo uma
balsa.
Mas não havia nenhum equipamento para movimentação de terra, nem mesmo o conceito
disso. Nenhum equipamento para quebrar pedras. Nenhum equipamento de pavimentação.
Nenhum equipamento para “construção” de qualquer gênero. Nenhum operário acostumado a
esse tipo de trabalho e facilmente treinável.
Assim, a primeira requisição do novo assentamento fora solicitar, não especialistas e
equipamento, e uma delegação de Comércio, mas máquinas pesadas e o pessoal para utilizá-las.
Nesse meio tempo, o engenheiro do espaçoporto estava se virando com trabalhadores sem o
menor treinamento, ex-fazendeiros que ao menos conheciam terraplenagem, e qualquer
maquinário disponível para limpar e aplanar o primeiro campo de aterrissagem. O engenheiro
estava fora de si; ele precisava instruir a todos em tudo.
O capitão indicara a si mesmo supervisor do projeto, uma vez que era o mais próximo de
ser qualificado para o trabalho.
Isso o colocava numa posição bastante desconfortável: era a política do Império contratar
trabalhadores nativos para esse tipo de coisa; ajudava a facilitar o período de transição e a
desenvolver um bom relacionamento com os nativos. Os trabalhadores locais poderiam
acreditar que, ao invés de tirar trabalhos das pessoas, o Império estaria fornecendo-os. E, sem
dúvida, eles puderam contratar muitos darkovanos que se apresentaram para trabalhos que
requeriam pouca ou nenhuma especialização. Mas não haviam trabalhadores especializados
aqui; ninguém com qualquer experiência no uso das máquinas mais primitivas. Pela primeira
vez, num mundo com uma cultura da Idade do Ferro, os terráqueos precisariam importar esses
trabalhadores, e o capitão precisava enviar comunicados urgentes diariamente para justificar
esse abandono dos Procedimentos Operacionais Padronizados.
Ele começara a consultar David sobre formas mais criativas de formular essas missivas, na
esperança de fazê-las parecer mais urgentes.
− Quem imaginaria que existiria um planeta com uma cultura da Idade do Ferro desprovida
de qualquer tipo de equipamento pesado para movimentar terra? − ele indagou retoricamente.
− Até mesmo os romanos tinham escavadeiras e raspadeiras puxadas a cavalo!
− Seja justo − David censurou. − A superfície e o clima aqui são tais que quase qualquer
maquinário pesado seria antiecológico, destruiria a terra. É difícil de acreditar o quanto a
ecologia daqui é; eles estão a um fio de perder montanhas inteiras para deslizamentos, todos os
anos. Isso explica por que uma grande parte do território foi reservada para criação de ovelhas,
e os pastores tomam todo o cuidado na maneira como seus pastos são pastoreados. − Ele
olhou pela janela do escritório do capitão e pensou na rapidez com que os moradores locais
transplantaram turfa e sementes para o terreno virgem do complexo, depois que todos os
prédios foram instalados. Os terráqueos sequer pensaram nisso, mas logo que as barreiras
foram abaixadas, os homens que construíram cada estrutura desapareceram, depois voltaram
com torrões de gramado e sementes da estufa de Aldaran, enchendo o lugar e deixando plantas
na sua esteira. − Pare para pensar, capitão; sob tais circunstâncias maquinário pesado, mesmo
se for puxado a cavalo, seria supérfluo e até mesmo perigoso. Por isso eles nunca sequer
pensaram em tentar usá-lo.
− Mas o castelo... − protestou o capitão Gibbons. − Sem dúvida eles precisaram usar esse
tipo de equipamento para construir a fortaleza de Aldaran! E esse não é o único prédio de larga
escala das redondezas.
− Muitos homens com pás e picaretas, muitas mulheres e crianças com cestas para levar o
excesso de terra para algum dos jardins-terraços − David respondeu, calmamente. − Tal
processo elimina uma grande parte do dano ao meio ambiente, e minimiza a erosão. Percebeu
como eles insistem para que o engenheiro do espaçoporto não trabalhe em seções maiores que
a do castelo, e calçam cada uma antes que ele siga para a próxima? Mesma coisa, mesmo
pensamento.
O capitão fez uma careta e mexeu em alguns papéis na sua mesa.
− Está aí outra coisa que me incomoda; as pessoas simplesmente não pensam dessa
maneira. Nenhuma população começa com essa consciência ecológica e planetária.
David balançou a cabeça.
− Capitão, esse argumento não tem lógica. Essas pessoas obviamente chegaram a esse tipo de
consciência, portanto não faz sentido dizer que é impossível.
− Mas como? − Gibbons indagou, frustrado. − É isso que estou perguntando.
David riu, e fez uma anotação num dos rascunhos de comunicados do capitão.
− Espero que não esteja esperando uma resposta de mim, porque não tenho nenhuma. Não
mais do que você, na realidade.
O capitão Gibbons soltou um suspiro.
− É uma pena. Eu esperava que sua esposa tivesse descoberto algo nas canções folclóricas,
ou você, ao conversar com essa gente. Suponho que terei de adicionar isso à lista de coisas que
nossos sociólogos devem pesquisar.
− No abundante tempo livre deles − acrescentou David.
O capitão apenas grunhiu, e voltou a formular um pedido para tratores e escavadeiras
ecológicos.

Havia outra “cidade” se desenvolvendo em Caer Donn, como um anel ao redor do centro
compacto do Setor Terráqueo, fora dos muros do Enclave, mas também fora da antiga aldeia
da própria Caer Donn. Ela estava se desenvolvendo tão depressa quanto a Cidade Comercial, e
não era diferente de qualquer outra “cidade” do tipo de uma ponta da Galáxia até a outra.
Havia um nome universal para esse tipo de assentamento: o Quarteirão Nativo.
Como as outras “cidades” do tipo, o Quarteirão Nativo era dedicado àqueles que forneciam
serviços para os recém-chegados terráqueos.
Esses Quarteirões Nativos, não importa o ponto da Galáxia em que se localizassem,
tendiam a ser muito parecidos. Os primeiros a se assentarem eram aqueles que foram
contratados para construir o espaçoporto e os prédios do Setor. Tratava-se de trabalhadores e
artesãos de todos os tipos; homens das terras de Aldarans que estavam sendo treinados na
construção e utilização de maquinário pesado. Seus alojamentos, espartanos pela maioria dos
padrões, eram construídos antes mesmo os alojamentos dos funcionários casados e solteiros.
Os terráqueos podiam e efetivamente viviam na nave; esses homens não tinham outro lugar
para onde ir, pois não havia camas o suficiente na aldeia para todos eles.
David olhou pelo muro dos prédios do Quarteirão Nativo e percebeu que um deles tinha
um sinal que não estivera lá pela manhã. Uma taverna? Era provável.
E onde há tavernas e homens, David pensou com certa tristeza, os bordéis não estarão longe.
Tratava-se apenas de uma questão de tempo. E era apenas uma questão de tempo antes que
terráqueos − com os poucos construtores − também passassem a usufruir dessas “diversões”
nativas.
Essa meia dúzia de especialistas em construção terráquea estava alojada junto com os
outros terráqueos, dentro dos muros do Enclave, mas David não tinha dúvida de que eles já
sabiam a respeito da taverna. Era provável que se encontrassem lá neste momento.
Considerando as reações do capitão Gibbons esta tarde, David pensou que poderia ser uma
boa ideia parar no prédio do Quartel-general antes de ir para casa.
Casa... ele gostava do som disso. A casa deles já estava pronta, embora metade dos quartos
não tivesse móveis. Era a primeira vez em cinco anos − três na nave, dois em treinamento −
que David tinha uma coisa que podia chamar de casa.
Ysaye, como ele esperara, estava com seu computador. Ela supervisara a instalação e a
configuração inicial do computador do Quartel-general; David esperava conseguir convencê-la
a ficar depois que a nave partisse. Elizabeth já tinha poucos amigos, e seria duro para ela
perder Ysaye. O laço entre as duas só se fortalecera a despeito da firme recusa de alguns dos
terráqueos em acreditar que Elizabeth podia falar telepaticamente com os nativos.
A mulher negra olhou para ele e sorriu.
− Precisa usar o computador, David?
− Eu gostaria de uma pesquisa de referências cruzadas sobre... ahn... “princípios favoráveis
à ecologia” e mitologia local. Sei que é vago, mas...
− Mas eu posso formulá-lo de maneira que o computador compreenda. − Ysaye
respondeu. − Mas não tenha muitas esperanças; ele provavelmente não conseguirá muita coisa.
Não possuímos muitas informações sobre os nativos ainda.
− O faz aqui a essa hora? − ele indagou, curioso, observando enquanto ela reformulava sua
pergunta e a carregava no programa de referências cruzadas de estatísticas e sociologia.
− Eu pensei que pudesse surgir alguma coisa, e também estava experimentando algumas
referencias cruzadas simples.
− Suponho que o computador disse a você que alguma coisa surgiria − David disse com
uma risada, se recostando enquanto Ysaye iniciava o sistema. − Ou teve outra de suas
premonições?
− Hmm. Quem sabe. − Ela olhou para ele de soslaio.
Mas essa ideia lembrou-lhe outra indagação que ele tinha sobre Ysaye.
− Mas você fala com o computador, não é mesmo?
− O quê, como em conversar com ele? − Ela franziu o cenho, mas se era por causa da
pergunta ou de um pensamento dela própria, ele não sabia. − Bem... eu falo para ele. Suponho
que possa parecer que falo com ele. Trata-se, na maior parte, de enunciar pensamentos em voz
alta; suponho que pode parecer uma conversa para o expectador alheio.
− Uma vez eu pensei estar conversando com ele, de alguma maneira. Foi uma experiência
muito esquisita.
− Ou um dos técnicos programou o computador para brincar de Sócrates com você,
fazendo perguntas baseadas em palavras chaves −ela informou secamente. − Isso era feito no
século vinte. Mas se você dissesse ao computador algo do tipo, “Einstein diz que tudo é
relativo”, ele responderia com algo como, “Conte-me mais sobre seu parente Sr. Einstein”.
[Trocadilho intraduzível com a palavra “relative” que significa tanto “relativo” quanto
“parente”. N.d.T]. Era a imitação de inteligência, não inteligência verdadeira.
− Nós ainda não quebramos essa barreira da inteligência artificial − David observou. − Eu
não me lembro da última vez que alguém realmente tentou desenvolvê-la.
Ysaye se recostou na cadeira, pensativa.
− É verdade; o assunto anda morto há um bom tempo. Mas eu me pergunto, às vezes, se a
inteligência artificial não tem se desenvolvido bem debaixo dos nossos narizes. Atualmente é
possível armazenar tanta informação... e os computadores podem processá-la tão depressa.
Hoje o computador é efetivamente uma forma de inteligência.
− Então, se ele se tornar autoconsciente, teoricamente deveria ser capaz de se comunicar
com outra inteligência? − Indagou David. − Bem, presumindo que a outra forma de
inteligência possa entrar em contato com ele... talvez através de um terminal.
− Isso mesmo, e não se pode ter certeza de eles já não tenham − admitiu Ysaye. − Uma vez
que eles são programados para não responder exceto para perguntas, não temos como saber. A
menos que pudéssemos ler a sua mente.
David ergueu uma sobrancelha.
− Você já tentou isso? Sei que seus testes para potencial psíquico deram positivo, da mesma
forma que os meus e de Elizabeth... e confesso que desde que chegamos aqui, minha
inclinação é confiar tanto em telepatia quanto na fala verdadeira. Talvez mais...
Ysaye soltou a respiração que estivera contendo num suspiro.
− Eu achei que era só eu. Eu achei... eu não sei no que estava pensando. Não contei ao
capitão, nem a ninguém. Não queria que achassem que estava louca. Mas... eu nem me
incomodei em usar o corticador. Não houve necessidade. Por que me incomodar, se posso
conversar com Lorill Hastur, Kermiac Aldaran e Felicia sem essa máquina me dar dor de
cabeça?
David assentiu, lentamente.
− Elizabeth disse algo parecido; eu não tenho a mesma... perícia. Aprendi os idiomas da
maneira difícil; na maior parte só obtenho um sentido vago do que ouço. Elizabeth disse que
teve o mesmo tipo de contato com Lorde Kermiac, Felicia e Raimon Kadarin.
− Eu posso entrar em contato com Kadarin, às vezes − Ysaye respondeu, hesitante. − Mas
procuro me manter longe dele.
David ficou surpreso; Kadarin sempre fora um exemplo de cordialidade com ele.
− Você não gosta dele?
Ysaye hesitou outra vez.
− Não exatamente − ela disse cuidadosamente, depois de um momento. − Não é que eu
não goste dele. O que há para desgostar? Ele é muito amistoso. Nunca disse ou fez nada
inadequado. Mas tenho um pouco de medo dele. Não sinto que ele é um bom homem, se isso
faz algum sentido.
David sentira que se tornava mais e mais intimamente sintonizado com Ysaye enquanto
conversavam, e agora sentia o que Ysaye não quisera dizer em voz alta − que pela maior parte
de sua vida ela tivera um sexto sentido sobre homens, aqueles que a procurariam como algo
exótico. E ele achava que ela sentira algo assim em Kadarin. Como se se sentisse
desconfortável apenas por pensar nele, ela mudou de assunto.
− Já viu o bebê de Felicia? − ela indagou abruptamente.
O bebê fora fonte de discreta especulação desde que nascera, há uma semana. Ninguém, até
onde David sabia, o vira ainda.
− Não − ele respondeu. Depois acrescentou curioso: − A criança é de Aldaran, certo? Ao
que eu fiquei sabendo isso acontece com grande frequência aqui... ela é algum tipo de esposa
secundária ou coisa do tipo? Ninguém parece falar muito a respeito, exceto que é bom que o
bebê tenha nascido saudável.
− Minha única certeza é que Felicia e Aldaran não são casados de qualquer forma − Ysaye
disse secamente. − Aparentemente, não há nenhuma desgraça em ser a amante reconhecida de
um homem proeminente. A desgraça acontece apenas se nenhum homem atestar ser o pai da
criança.
Havia um significado não enunciado nas palavras de Ysaye; novamente, David captava um
sentido do que ela não dissera. Que Aldaran devia se envergonhar por ser um mulherengo, ao
invés de se orgulhar por suas conquistas − e pena de Felicia, por ser uma espécie de cúmplice,
ou vítima − mesmo que de vontade própria − dos desejos de Kermiac.
− Talvez não tenha ouvido − Ysaye prosseguiu. − Ao que parece, fomos todos convidados
para a cerimônia do nome, no Festival de Solstício de Inverno... é praticamente o mesmo dia
que o nosso Natal.
− O bebê é menino ou menina? Você acha que eles têm presentes cor de rosa e azuis aqui?
Ele falara como uma brincadeira, para amenizar o humor de Ysaye, mas ela levou a sério.
− Eu não tenho certeza, e há rumores de que pode ser outra coisa.
− Outra coisa além de um menino ou menina? − David sentiu as próprias sobrancelhas se
erguendo. − Hmm. Bem, isso também acontece na Terra, de vez em quando, embora não com
muita frequência. E é corrigível, até certo nível, com cirurgia. Bem, caso descubramos que é
apropriado, podemos fazer perguntas delicadas a respeito no momento devido. Sem dúvida
Aurora tem qualificação para fazer a operação. Ou acha que eles se ofenderão pela
intromissão? Será difícil para a criança, se for um... bem, um isso.
− Eu não sei exatamente como descrever. − Disse Ysaye, franzindo o cenho. − Parece
existir o sentimento de que é outra opção normal aqui, e não é considerado desafortunado em
absoluto. Chamam de emmasca, e pelo que sei é as duas coisas... e ao mesmo tempo nenhuma.
Ela tinha de saber, da mesma forma que ele, quais eram as raízes dessa palavra, por isso
David não se incomodou em fazer os comentários óbvios.
− Pelo que entendi, esses emmasca são bastante raros e considerados afortunados. Têm uma
vida bastante longa, por exemplo. Um de seus reis − um rei Hastur, Lorill me disse − era um.
Mas a maioria é estéril. − Ela deu de ombros. − Lorill tentou me explicar alguma coisa muito
complexa envolvendo genética e os emmasca, e eu não entendi perfeitamente. Aparentemente a
família dele se dedicava a tentar manipular suas linhagens de forma a fixar certas características
no passado, e acabaram resultando em um grande número de emmasca. De qualquer forma, a
criança de Felicia pode ser emmasca. E pelo que entendi isso tem algo a ver com a herança
genética de Aldaran, que, acredite ou não, supostamente tem coisas ainda mais estranhas que a
de Felicia.
David sacudiu a cabeça.
− É difícil de imaginar isso, mas com uma nave fazendo procriações consanguíneas durante
séculos, só Deus sabe o que resultaria. Então, se esse pobrezinho é emmasca, também será
estéril?
− A maioria é, mas não todos. Pelo que entendi, eles não saberão até a criança atinja a
puberdade, porque alguns se transformam em macho ou fêmea nessa ocasião. De qualquer
forma, será uma boa oportunidade para celebrar... e uma oportunidade imperdível para você
fazer uma das suas preciosas fitas de cultura!
Enquanto a conversa desviava para o inócuo assunto do festival, e a mina de ouro de
informações que o festival seria, David se esqueceu da conversa anterior.

O Festival de Solstício de Inverno aconteceu no grande salão em que eles haviam sido
recebidos pela primeira vez. O que parecera primitivo e alienígena agora parecia familiar e, à
sua própria maneira, confortável. Os terráqueos haviam aprendido a se adaptar ao clima, e se
alguém suspirava aliviado de vez em quando, porque podia voltar para seus alojamentos com
aquecimento central no final do dia, ninguém mencionava isso abertamente.
Lorde e Lady Aldaran (ela avançadamente grávida, e fazendo uma rara aparição pública)
saudaram os visitantes pessoalmente.
− É como o Natal − Elizabeth disse, deliciada. − Há até mesmo as árvores, e o aroma de
alguma coisa que parece... pão de gengibre!
− É pão de especiarias − disse Lady Aldaran, com um sorriso amistoso. Ela era uma ruiva
clássica, frágil, pálida e dolorosamente magra a despeito da gravidez, com massas de cachos
escuros, cuidadosamente arrumados num penteado elaborado que parecia poder ser arruinado
com um simples sopro. Parecia muito pesado para o seu pescoço delicado. − Vocês também
têm esse festival?
− Algo muito semelhante − respondeu Elizabeth. − Na realidade, todos os planetas de que
já ouvi falar tem alguma espécie de festival de solstício de inverno. Parece fazer parte da
natureza humana desejar alguma espécie de celebração quando o sol está em seu ponto mais
baixo e o mundo fica mais escuro e frio. É quase sempre uma forma de afirmar a esperança ou
coisa do tipo.
− E qual é a ocasião? − Lady Aldaran perguntou, curiosa. − Aqui é simplesmente baseada
no solstício de inverno.
− Geralmente o nascimento de uma ou outra divindade... − Elizabeth começou, depois
corou. − Perdão. Eu espero que não me considere irreligiosa.
− De forma alguma − a dama sorriu. − Na maior parte, nós do Comyn não somos muito
devotos. Pessoalmente, sou tão religiosa quanto um gato. Nós costumamos desfrutar nossos
festivais o melhor possível, independente do motivo da celebração, e até mesmo os cristoforos
têm um ditado: o trabalhador tem direito ao seu salário e sua folga.
Elizabeth soltou uma risada.
− Também temos um ditado parecido: o trabalhador merece seu salário.
David gostaria de acrescentar esse pequeno ditado ao seu banco de dados. Era interessante
como parecia haver diversos idiomas em uso aqui, muito embora apenas um continente fosse
habitável, ao menos até onde as fotos de satélite demonstraram. A não ser que houvesse gente
morando debaixo da neve, sem deixar traços, isso era tudo o que havia.
− Precisamos trocar provérbios mais tarde − Lady Aldaran disse, com um sorriso pesaroso
que informou a Elizabeth como ela gostaria de fazer isso agora. − Mas preciso atender meus
convidados. A cerimônia do nome acontecerá dentro em pouco. − A sua expressão suavizou.
− É uma criança adorável. Felicia foi muito afortunada.
− Nós batizamos − nomeamos − nossas crianças imediatamente. − Elizabeth observou. −
Parece um pouco estranho esperar tanto tempo. Já faz seis semanas, não é?
− Nós normalmente não nomeamos uma criança até ter certeza de que ela viverá − disse
Lady Aldaran, com uma expressão triste nos olhos que fez Elizabeth especular se ela já havia
enterrado uma ou mais crianças sem nome. Ou será que ela secretamente temia que seu
próprio bebê não vivesse tempo suficiente? − Mas esta parece bastante saudável;
normalmente, se a criança vive até esta altura, ela vive pelo menos até o surgimento do laran.
Esta provavelmente ficará bem, por tudo o que sabemos. E é tão querida, nunca chora por
mais do que um momento.
Parecia estranho a Elizabeth que Lady Aldaran falasse tão ternamente sobre a criança que
seu marido fizera em outra mulher. E ainda mais estranho que a dama considerasse sua rival
uma amiga. Mas evidentemente ela não poderia dizer nada a respeito; fez um comentário
gracioso que era bom que a criança estivesse prosperando, e foi procurar Ysaye. Lady Aldaran
foi recepcionar um grupo recém-chegado de pessoas com neve decorando suas roupas
exteriores e botas.
Elizabeth notou que esses recém-chegados pareciam ser de outro ramo do clã de Aldaran;
de um local chamado “Scathfell”. Lady Aldaran saudou-os cordialmente enquanto removiam
seus casacos cobertos de neve e os entregavam para servos.
Então, a algum sinal que Elizabeth não detectou, os músicos pararam de tocar e todos os
presentes se reuniram ao redor da mãe e da criança.
Lorde Aldaran aguardou até conseguir a atenção de todos os olhos, da curiosidade dos
terráqueos até a aprovação de sua própria esposa. Depois ele ergueu o bebê enrolado dos
braços de Felicia.
− Eu reconheço esta criança, Thyra, como minha − ele disse, calma, mas firmemente. − E
me comprometo a assumir a responsabilidade por seu sustento e cuidado até que alcance a
maturidade.
Depois veio a verdadeira surpresa, pelo menos para Elizabeth. Lady Aldaran tomou a
criança de Felicia nos braços.
− Eu testemunho que esta criança, Thyra, de minha querida amiga Felicia, é a criança
verdadeira e reconhecida de meu marido Kermiac − ela disse, olhando ternamente para o
rostinho da criança. − E como tal, eu assumo a responsabilidade de educá-la e cuidar dela sob
o teto de seu pai, até que ela alcance a maturidade.
− Lady Aldaran é uma santa − alguém murmurou ao alcance da audição de Elizabeth −
uma vez que ela, mais do que ninguém, sabe que uma criança emmasca pode não alcançar a
maturidade até os trinta anos, ou mais. A “criança” pode até mesmo viver mais do que ela,
ainda criança.
Elizabeth fez o que pôde para não transparecer que ouvira isso, mas tratava-se de uma
revelação surpreendente. Fez com que recordasse algo que uma amiga de sua mãe, uma grande
amante de pássaros, dissera uma vez: Nunca compre um papagaio, a menos que tenha alguém com quem
deixá-lo depois que você morrer. Será que Lady Aldaran precisaria relegar a criação dessa criança aos
seus próprios filhos?
Mas Lady Aldaran estava prosseguindo, depois de devolver a criança aos braços da mãe.
− Eu, Margali de Aldaran, em reconhecimento disso, presenteio Felicia com este símbolo
de meu afeto.
Ela se aproximou e colocou um lindo colar de prata, com as pedras chamadas “pedras de
fogo” no pescoço de Felicia. Houve aplausos generalizados, durante os quais o bebê começou
a chorar. Felicia abriu o vestido, sem o menor embaraço, e colocou a criança no peito.
O bebê começou a mamar gulosamente, fazendo pequenos grunhidos como um porquinho
satisfeito, e todos começaram a rir e conversar.
Elizabeth não conseguia tirar os olhos daquela criaturinha perfeita, como uma boneca
branca e cor de rosa. Ela observou enquanto o bebê mamava com uma mistura de temor e
prazer. No próximo solstício de inverno, talvez ela já tivesse sua própria criança... dela e de
David. Ela não seria recepcionada com tal ritual, mas nasceria sob esse sol estranho, e não seria
menos nativa deste planeta do que a criança de Felicia.
Se fosse um menino, ela poderia dar a ele o nome do capitão...
Enquanto ela se distraía com essa fantasia, Zeb Scott foi se sentar com Felicia e começou a
conversar com ela em voz baixa.
− Oh, não − Ysaye disse na sua orelha, despertando-a do devaneio. − Isso parece mais do
que uma simples conversa amistosa.
Elizabeth analisou com mais atenção o modo como Zeb estava se inclinando na direção de
Felicia e assentiu um pouco perturbada.
− Isso poderia se tornar um problema... acho que você tem razão, Ysaye. Se Zeb ainda não
está envolvido com Felicia, acredito que a coisa pode se tornar muito séria, dentro em breve.
Se isso acontecer − poderia ser muito bom para Felicia, pois Zeb é um homem maravilhoso.
Mas poderia colocar nosso bom relacionamento com Lorde Aldaran em risco.
Ysaye pareceu surpresa.
− Por quê? Felicia não é casada com Lorde Aldaran − ou com qualquer outro homem, até
onde eu sei. Margali terá seu próprio bebê em breve, e acredito que Felicia poderia se tornar
um problema quando isso acontecer. Não se espera que ele dê mais atenção à sua esposa e
filho legítimo? Margali e os parentes dela não esperariam isso? Acho que ele ficaria contente se
alguém tirasse Felicia... ahn... de suas mãos.
− Eu duvido − Elizabeth disse, preocupada. − As coisas não são assim aqui. Os costumes
são tremendamente diferentes.
Ysaye pareceu cética.
− Eu não sei se a natureza humana pode mudar tanto assim. Afinal, se existe uma coisa que
podemos considerar inerente à culturas humanas, é que existe um certo nível de possessividade
quando se trata de “meu homem” e “minha mulher”. E parentes não vêem com bons olhos
qualquer relacionamento que possa ameaçar a “esposa legítima”. De alguma forma, não creio
que este planeta seja assim tão diferente.
− Provavelmente não − disse uma voz familiar e não bem-vinda. − Eu nunca vi muita
diferença na natureza humana em qualquer cultura. E não é uma pena, uma vez que a natureza
humana não é lá muito admirável?
Mesmo num festival Ryan Evans não podia evitar incutir sarcasmo e insultos em tudo com
que entrava em contato. Quer ele fosse convidado a fazer isso ou não.
Elizabeth se virou, colocando uma máscara de cortesia.
− Ora, Ryan − ela disse amigavelmente. − Eu não sabia que já tinha voltado de... o que era
mesmo... das Cidades Secas?
− Com ênfase em Secas − Evans respondeu. − Não há nada além de deserto, e eu espero
nunca conhecer um conjunto de assentamentos mais inóspito que aquele. Clima horrível,
bárbaros a um passo de serem homens das cavernas... já é o suficiente para me fazer perder a
pouca fé que tenho na natureza humana.
David apareceu em tempo de poupá-la de ter de inventar uma resposta educada.
− Bem, o fato de eles se estabelecerem num lugar assim diz alguma coisa sobre a natureza
humana − David respondeu, animado. − Nem que seja sobre otimismo inabalável.
− Otimismo − Evan bufou. − Pode ficar com eles, otimismo e tudo. Mas tenho que
admitir que Kadarin parece ter nascido para ser um agente. Ele fala vários dos idiomas, e já
conhecia muitas das pessoas, de modo que eles não nos mataram imediatamente, pelo menos.
A maioria o aceitava como um deles.
David se animou.
− Eu queria conversar com você sobre isso; você tem alguma fita dos idiomas deles?
− Algumas. Provavelmente nem de longe tantas quanto você e seus computadores queriam.
Elas foram incrivelmente difíceis de obter... você não acreditaria como foi difícil fazer aquelas
pessoas conversarem conosco. O pessoal de lá parece não ter muita curiosidade; nunca vi um
povo mais insular.
David não pareceu surpreso.
− Acredito que seria de se esperar de uma cultura desértica − ele assinalou. − A simples
sobrevivência consume quase todos os seus recursos, e um estranho pode representar uma
ameaça legítima. Sem dúvida, um estranho consumiria os seus recursos, e hospitalidade pode
ser mortal. O conceito de clãs é apenas uma parte disso.
− É um bom argumento − disse o capitão, se juntando a eles. − É bom vê-lo novamente,
Evans; vou querer ver seu relatório amanhã.
− Posso lhe informar os pontos principais em poucas palavras − Evans respondeu. −
Muitíssimo pouca coisa. Ao que fiquei sabendo, o comércio entre as Cidades Secas e o restante
do planeta é mínimo. Na maior parte trata-se de algumas plantas e botânicas, principalmente
medicinais. Nada de metais preciosos, nada de qualquer tipo de metal, aliás. Igual ao resto do
planeta, pelo que sei. Na realidade, senhor, não há nada a relatar. Poderia muito bem ter ficado
aqui em... ahn, não exatamente conforto, mas poderia ter me poupado alguns machucados da
sela.
O capitão grunhiu, obviamente desapontado.
− Nada para o Império, então?
− Exceto pelas plantas medicinais que mencionei, nada. A menos que esteja interessado em
drogas exóticas. − Evans sorriu. O capitão franziu o cenho.
− Você sabe o que eu acho disso. Drogas deveriam ficar aonde se originaram.
As leis que controlavam a importação e exportação de substâncias potencialmente viciantes
eram variadas. Em geral, elas eram interditadas, com as leis de governos individuais tendo
precedência dentro de seu espaço soberano. Na maior parte, tais leis eram inacreditavelmente
severas. Todo governo local tinha o direito de processar o transportador que trazia drogas
proibidas para seu espaço soberano, o que tornava o processo de contrabando extremamente
caro. Não apenas o contrabandista podia ser punido, mas também o dono da nave − muitas
vezes com a perda da própria nave.
Assim, dentro de espaço soberano, era possível aplicar restrições extremas, mas fora dele
era outra história. Algumas pessoas gostariam de proibir toda e qualquer substância que altera
o humor, não importa o quanto leve ela fosse, incluindo cafeína e chocolate, mas as
dificuldades de impingir isso eram enormes, especialmente considerando lugares como Keef e
Vainwal, que não tinham leis efetivas a respeito.
A política do Império era que leis no espaço interestelar deveriam ser minimamente
restritivas; proibições eram mantidas num mínimo absoluto e eram severamente impingidas.
As poucas drogas proibidas eram limitadas àquelas no índice de risco que se encontravam a
vários níveis acima de leves sensações de bem-estar.
O capitão tinha suas próprias ideias sobre o dano que esse tipo de “supervisão” mínima
causava; Elizabeth e Ysaye concordavam com ele. Evans, entretanto, obviamente não
concordava.
Ele era um sincero proponente do tipo de atitude laissez-faire encontrada em Keef e Vainwal.
Era verdade que esses planetas atraíam certo tipo de turista. Era verdade que tais turistas eram
advertidos e informados dos riscos. E na maior parte − pelo menos oficialmente − não havia
ninguém que forçava tais drogas nos corpos de outras pessoas sem permissão delas. Havia
boatos, é claro, de pessoas viciadas contra a vontade, e forçadas a pagar com seus corpos pela
satisfação dos seus vícios, mas não passavam de boatos, e ninguém jamais conseguira prová-
los. Essa era a justificação de Evans para sua atitude. Ele desdenhava aquilo que chamava de
“autoritarianismo” e “paternalismo”. Afirmava que nenhum mal era feito; o que quer que
acontecesse, ele dizia, se limitava a residentes e visitantes de livre vontade, e não se estenderia
para fora do planeta.
Mas pela primeira vez Evans não parecia pronto para fazer seu discurso habitual.
− Eu conheço as regras − ele disse, surpreendendo Elizabeth − E não há sentido em
debater teorias. Sabe o que eu penso; quanto menos controle o governo tiver sobre nós,
melhor.
− Bem, eu não concordo mais com você do que jamais concordei − o capitão respondeu. −
Podemos debater princípios alguma outra hora.
− Ótimo − Elizabeth disse cansada, e afastou-se. Ryan era amigo de David, e havia
momentos em que ela também gostava dele... mas havia momentos em que desprezava tudo o
que ele defendia. Esse deveria ser um momento de celebração, e ela realmente não queria se
envolver numa discussão que só poderia causar ressentimentos. Mas, ao mesmo tempo, ela
tinha uma opinião muito forte a respeito!
Ela nunca, em sua reconhecidamente curta vida, conhecera um caso de uma droga que não
fazia mal “nenhum”. Até mesmo álcool destruía as células cerebrais; até mesmo coisas
relativamente inofensivas como chocolate e cafeína provocavam desejos que, se não satisfeitos,
poderiam causar dano em alguns indivíduos. Se uma pessoa informada e minimamente bem
ajustada decidia usá-las, era uma coisa − mas liberar um fluxo de drogas exóticas em pessoas
que provavelmente nunca tiveram a oportunidade de pensar bem no problema que tais coisas
ofereciam − isso não podia e não deveria ser permitido.
O problema que o álcool causara nas culturas Nativo Americana e Polinésia na Terá era
apenas um exemplo do que poderia acontecer. A “bandeira da liberdade” agitada por Evans
era superficialmente muito atraente para pessoas que não sabiam o que estavam fazendo. Que
ele fosse altamente inteligente só tornava sua proposta ainda mais atraente para as pessoas que
não se davam conta de que ele não tinha escrúpulos ou senso de ética equivalentes.
Pessoas com um nível de intelecto tão alto deveriam receber sérias lições de ética na infância, ela pensou,
soltando um suspiro.
Mas nada poderia ser feito a respeito de Ryan Evans, sem dúvida não a esta altura. Era
improvável que ele sofresse uma crise de consciência na sua idade.
O bebê dormia nos braços de Felicia; os músicos começaram uma canção para dançar, e os
nativos se reuniram para uma dança de roda. Alguns dos terráqueos mais aventureiros,
incluindo Zeb Scott, se permitiram ser persuadidos a entrar no círculo. Elizabeth, que não
gostava de dançar, se dirigiu aos músicos. Ela passou por uma mesa cheia de refrescos e
apanhou um copo do vinho branco da montanha. O primeiro gole foi agradável, mas foi
seguido de uma estranha amargura.
Estranhamente semelhante à sua conversa com Evans...
18

– E então? – indagou Jessica Duval, uma tenente da tripulação da nave. – O rosto felino da
mulher demonstrava a maior curiosidade. – É ou não é?
Ysaye amarrou a cara. Nunca simpatizara muito com o insaciável apetite de Jessica por uma
fofoca, e no momento este interesse parecia ainda mais detestável.
– Eu não sei, e não dou a mínima – disse querendo que Jessica metesse uma meia na sua
bisbilhotice.
– Mas Ryan Evans disse que o bebê é um tipo de mutante – insistiu Jessica. – Ele disse para
o Rogers, quando largou as coisas dele antes de vir para o festival, disse que Kadarin contou
pra ele. A nave inteira já está comentando.
– Eu ouvi a mesma coisa, mas não me incomodei investigando – Ysaye disse secamente,
torcendo para que nenhum dos nativos próximos fosse fluente em Padrão terráqueo ou adepto
da telepatia. – Só por que o Rogers disse que o Evans disse que o Kadarin disse, não quer dizer que
seja verdade ou mesmo próximo da verdade. Honestamente eu não estava interessada em
saber dos detalhes. Se não importa para essa gente, não deveria ser de importância para nós.
Algumas coisas é melhor deixar em certa obscuridade. – Ela olhou para Jessica, com uma
expressão que tencionava ser de repressão. Jessica mexeu os ombros, mas não se mostrou nem
um pouco intimidada ou envergonhada de si mesma.
– É uma lastimável atitude, vinda de uma cientista – caçoou David. – Onde estaria um
cientista se ele não fizesse as perguntas que ninguém mais faria?
Ysaye amarrou a cara para ele, para ficar claro que não considerava o assunto bom para
brincadeiras.
– Tem coisas que eu não faria nem em nome da ciência, e violar a privacidade de uma
pessoa está entre elas. Se você quer mesmo saber, pode perguntar para Felicia, ou para a
criança, quando ela crescer. – Fez uma careta mais feia ainda. – Mas é melhor levar os
sentimentos de Felicia em conta antes disso. Creio que a posição dela é bem complicada, mas
se você quiser arriscar embaraçá-la, é algo com que você precisará conviver.
– Deus me livre – David respondeu, ficando sério. – Eu admito que estou curioso, mas não
a esse ponto, e não faria nada para perturbar Felicia. Ela tem sido de enorme ajuda sempre que
eu preciso perguntar alguma coisa. Seria uma péssima maneira de agradecer essa generosidade.
– É isso que eu gosto em você – Ysaye disse ternamente, sua atitude severa se desfazendo
junto com a desaprovação. – Você concorda que existem limites à investigação em nome da
ciência.
– Bem – David respondeu com um sorriso inocente – Eu acredito que qualquer pessoa –
mesmo o cientista mais devotado – teria de admitir isso. Muito embora existam perguntas que
um cientista deve fazer que ninguém mais faria, há limites éticos para o que um cientista pode
fazer. Alguns dos antigos experimentos de recombinação genética, por exemplo, antes que
tivéssemos qualquer capacidade de viajar entre as estrelas, resultaram em alguns acidentes
bastante trágicos e bizarros.
– Espere aí – Jessica interrompeu, repentinamente séria – Você não pode doutrinar sobre
isso! Esses acidentes foram resultados de ciência ruim... Pessoas fazendo coisas para as quais não
estavam qualificadas, com proteções inadequadas! Alguns desses mesmos experimentos,
executados apropriadamente, foram o que nos permitiu colonizar Marte – e isso nos permitiu
colonizar muitos outros planetas sem uma atmosfera apropriada!
Ysaye balançou a cabeça; estava aí mais uma coisa em que ela e Jessica nunca concordariam.
Não importa quantas coisas boas tivessem resultado disso – o que teria acontecido se os
terráqueos não tivessem interferido?
– Eu não tenho certeza se eles deveriam ter sido colonizados – ela disse insegura. – Talvez,
se os tivéssemos deixado em paz, eles teriam evoluído sozinhos, algum dia.
Essa discussão era tão antiga que David nem se incomodou em participar. Ele sabia qual era
a opinião de Ysaye; ela discutira isso muitas vezes com Elizabeth. Era estranho que alguém
envolvido em ciência tomasse uma posição anticientífica com tanta freqüência. Mas, ao que
parecia isso era resultado de sua educação na infância – uma peculiar doutrina de “não
interferirás na natureza”. O que não fazia sentido, uma vez que Ysaye interferia na natureza
toda vez que tomava uma vacina antialérgica. Bem, não importava; essa discussão terminaria da
mesma forma que todas as outras. Ninguém jamais convertia ninguém. Ao invés disso, ele
esperou uma pausa e indagou:
– O que você achou da cerimônia, Jessica?
Ela pareceu aliviada pela mudança de assunto.
– Eu gostei.
As expressões de todos no grupo mostraram um alívio similar, e David se lamentou por não
ter intervindo antes.
– Foi muito tocante. É uma pena que as pessoas não sejam tão civilizadas sobre esse tipo
de situação na nossa própria cultura... não haveria processos de paternidade ou confusões de
litígios. Não pareceu absolutamente alienígena; é o tipo de coisa que se esperaria de terráqueos
se nos preocupássemos mais com nossas crianças do que com nosso orgulho e conveniência.
– É verdade, esse lugar não parece assim tão alienígena – outra pessoa concordou. – Entre
o festival e da cerimônia de nomeação, isso poderia ter sido uma mistura de festa de Natal e
batizado.
David riu.
– Ora, Darkover não é alienígena... ou pelo menos os costumes não deveriam ser. Essa
gente é principalmente de origem terráquea, e norte europeia, ainda por cima.
Jessica mostrou-se pensativa.
– Isso faz com que se sinta incompatível, Ysaye? – ela indagou. – Nunca parei para pensar
que talvez você não se sentisse tão familiar com este lugar quanto alguns de nós. Se alguém se
sentiria alienígena neste lugar, acho que seria você.
– Estranhamente, não – Ysaye respondeu. – Eu fui criada no continente norte-americano,
no megaplexo de Nova Yok-Baltimore, não é como se eu fosse de... ahn... da Nigéria. E afinal,
a despeito de qualquer diferença, eu sou humana, da mesma forma que eles. Temos muito mais
semelhanças do que diferenças.
Ela pensou nos seus contatos mentais com Lorill Hastur e Kermiac Aldaran; seus
pensamentos não lhe pareceram nada alienígenas. Lorill, na verdade, fora mais polido com ela
do que muitos de seus próprios colegas, tomando cuidado para não incomodá-la ou perturbá-
la.
Mas e quanto aquele outro contato nebuloso que ela sentira pairando no fundo dos seus
pensamentos enquanto tocava sua flauta sintética, ou pesquisava os arquivos de música para
Elizabeth? Era como se houvesse outra pessoa lá – alguém com menos escrúpulos que Lorill –
tentando “bisbilhotar” seus pensamentos. Ela tinha certeza do que sentira, por isso não disse
nem fez nada a respeito. Mas se existiam telepatas aqui, quem garante que todos eles jogam
segundo as regras?
Bem, mesmo se a “presença” não fosse nada além da sua imaginação, não lhe parecera
exatamente alienígena... pelo menos não mais do que seus próprios colegas. As poucas pistas
que ela captara indicaram que se tratava de uma pessoa bastante... apartada. Não solitária,
exatamente, mas alguém se sentia distanciada dos outros. Não inteiramente diferente da
maneira como ela muitas vezes se sentia, na realidade. De certa forma, como ela acabara de
demonstrar com Jessica, Ysaye muitas vezes achava seus próprios colegas na nave mais
alienígenas que qualquer nativo de Darkover.
David interrompeu seus pensamentos.
– Você viu Kadarin? Acho que ele já deve ter voltado das Cidades Secas. Evans apareceu
antes da cerimônia, e Jessica disse que Kadarin voltou uma ou duas horas antes disso.
– Não – ela respondeu indiferente. A presença ou ausência de Kadarin não era algo que lhe
interessava muito, para ser franca. – Deveria?
David fez menção de responder, quando houve movimento na entrada do salão. Houve
alguma comoção, depois o silencio tomou conta daquela parte do salão, um silencio que
parecia quase sinistro. Ysaye sentiu a tensão súbita, e se virou...
Todos os presentes fizeram o mesmo. Os dançarinos pararam no meio do movimento; a
música definhou numa confusão de notas.
Ysaye, assim como todos no salão, esticou o pescoço para ver qual poderia ser a causa da
perturbação. A multidão de dançarinos se dividiu repentinamente, sem o menor ruído, criando
um corredor de silencio, espectadores olhando da porta para o balcão onde se sentava Lorde e
Lady Aldaran e Felicia. E para sua surpresa, Lorill Hastur, com um pequeno séqüito, cruzou os
dançarinos e se dirigiu para Kermiac Aldaran e sua esposa.
Ysaye nunca fora atingida tão intensamente pela ilustração da frase “silêncio ensurdecedor”.
O único som era o de passos no chão de madeira; as botas de Lorill e seus homens.
De cada lado do séqüito Hastur havia uma multidão de pessoas com expressões fechadas
ou hostis. Lorill não fingiu não notar, mas Ysaye percebeu que sua própria expressão era de
determinação e seriedade. Ele não parecia um jovem pronto para causar confusão.
Ela só torcia para que não houvesse confusão de qualquer maneira, a despeito das boas
intenções de Lorill.
Kermiac mantinha-se ereto e frio; seu rosto estava tão firme que parecia esculpido de pedra.
Lady Aldaran estava totalmente rígida, e até mesmo Felicia parecia congelada. E não era sua
imaginação; muitos dos homens haviam colocado as mãos nos punhos de adagas que já não
pareciam ornamentos. Ysaye não fazia a menor ideia do que iria acontecer, mas a tensão no
salão não era favorável a Lorill.
O rapaz parou a alguns passos de distância de Lorde Aldaran e fez uma reverencia rígida.
Kermiac retribuiu com um ligeiro aceno de cabeça – não a reverencia completa que Lorill
oferecera a ele. Sua postura apresentava um desafio a Lorill; dizendo esta é minha terra; este é meu
povo. Aqui, você não é meu igual. Lorill enrubescer ligeiramente, mas não se mostrou intimidado.
– Lorde Aldaran – disse o herdeiro de Hastur, cuidadosa e claramente – Eu vim para me
desculpar. Fui instruído por meu pai e pela Guardiã da Torre de Dalereuth a lhe dizer que sou
um jovem extremamente tolo, que ultrapassou os limites do comportamento adequado a um
hóspede e aumentou seu erro ao falar e se comportar como um idiota.
A postura de Kermiac suavizou minimamente.
– É mesmo? E o que diz você a respeito disso, Lorill Hastur?
– Que meu pai estava sendo generoso... senhor – Lorill respondeu francamente. – Eu não
apenas fui um tolo, mas também extremamente arrogante e estúpido. Dou minha palavra de
que não pretendia nenhum mal a sua irmã, mas como nunca estive fora do território dos
Domínios, eu... confundi o que era costume entre seu povo com o que é considerado ousadia
entre o meu. A senhora sua irmã – ele se curvou graciosamente na direção de Mariel – estava
simplesmente sendo gentil com um estranho. Peço desculpas se minha reação levou-a a esperar
mais de mim. A Guardiã de Dalereuth tornou o erro de minhas suposições bastante claro, em...
diversas maneiras. Todas elas bastante eloquentes.
Pelo modo como as orelhas de Lorill coraram e as palavras cuidadosas que ele usou, Ysaye
adivinhou que ele levara uma bela bronca dessa tal “Guardiã”, quem quer que ela fosse.
– Eu vim me desculpar pessoalmente, pois um pedido de desculpas levado por um
mensageiro não seria apropriado ou suficiente sob as circunstancias. Espero que aceite minhas
desculpas, senhor – Lorill concluiu – e com elas, os presentes de meu pai pela cerimônia do
nome para sua criança, a mãe, e sua esposa.
Três dos homens com Lorill ofereceram pacotes com embrulhos colorados, e Ysaye
prendeu a respiração, torcendo para que Aldaran não os recusasse.
Por uma fração de segundo ele hesitou, depois assentiu, e os três homens colocaram seus
pacotes nas mãos das mulheres, com Felicia aceitando o do bebê.
– Desculpas aceitas, jovem Hastur. Na realidade, diz-se nessas montanhas com frequência
que “se estupidez fosse crime, metade da raça humana seria enforcada a cada encruzilhada”. E
eu serei o primeiro a lhe dizer que mereci tal destino vinte ou trinta vezes em minha vida.
– O quê, Kermiac? – indagou um velho logo atrás dele, secamente – Apenas trinta?
Isso causou risadas, apesar de nervosas, e a tensão na atmosfera suavizou, depois definhou
totalmente quando Kermiac riu também.
Aldaran sacudiu a cabeça e deu tapas nas costas do velho.
– Você me viu colher os frutos de minha estupidez muitas vezes para que eu possa
desmenti-lo, velho amigo. Seja bem vindo então, Lorill Hastur. Esta é uma época para oferecer
perdão, ou assim dizem os cristoforos. Vamos nos conhecer de novo.
Com isso as posturas de todos os presentes relaxaram; servos vieram tomar as capas dos
recém-chegados, e a música e a dança recomeçaram. Lorill passou algum tempo conversando
com Lady Aldaran e Felicia, fazendo as duas sorrirem com comentários que Ysaye não pôde
ouvir depois se dirigiu para onde os terráqueos se encontravam, reunidos na mesa de refrescos.
Ele pareceu muito aliviado por encontrá-los ali, e com bom motivo, Ysaye supôs. Eles lhe
forneciam conhecidos “neutros” com quem poderia conversar sem se preocupar com
hierarquias ou ofensas.
Ele saudou os terráqueos, lenta e cuidadosamente, e sorriu deliciado quando David
respondeu em casta. Eles conversaram por um momento, e Ysaye deixou sua mente relaxar a
fim de poder acompanhar a conversa captando os pensamentos de Lorill. Depois de alguns
comentários casuais sobre o tempo entre Aldaran e seu lar, e a dificuldade da viagem, David
perguntou como o povo de Lorill reagira à notícia da chegada dos terráqueos.
– Bem, suponho que vocês devem saber que sua chegada causou uma comoção nos
Domínios – o jovem disse a David. – Será pior quando a primavera chegar, e todos aqueles
distantes de Thendara e fora do alcance das Torres descobrirem o que aconteceu.
– Acho provável – David respondeu. – Apenas o influxo de ferramentas de metal
provavelmente já desequilibrou o comercio local... ou irá, quando a primavera chegar e o
comercio começar de novo, e essas ferramentas terminarem nas suas terras.
– Sem dúvida – disse Lorill. – E foram essas ferramentas e as coisas que vocês me deram
que convenceram alguns membros do Conselho do Comyn de que vocês não são uma espécie
de conto de fadas, algo criado por Lorde Aldaran para nos confundir... ou criaturas vindas do
outro lado da Muralha ao Redor do Mundo. Alguns dos pequenos presentes que me deram
obviamente não poderiam ter origem no nosso planeta. Agora eles estão discutindo sobre
promover contato com vocês. Alguns dizem que não deveriam permanecer aqui... que, na
realidade, deveríamos evitar vocês a qualquer custo. Sua chegada representa uma ameaça muito
grande ao nosso modo de vida.
Ysaye assentiu consigo mesma; ela podia compreender isso. Ela especulou se deveria contar
a Lorill sobre alguns dos pedidos nada sutis que Kermiac fizera por armas. Mas... não, isso só
aumentaria a tensão, e como os terráqueos não tinham a menor intenção de satisfazer qualquer
desses pedidos, não faria diferença. O status “Restrito” de Darkover significava que haveria
uma nave do Império estacionada na saída hiperespacial todo o tempo, e qualquer naves que
chegassem precisariam passar por uma inspeção antes de poder aterrissar – e depois passar por
uma segunda inspeção da carga descarregada. Era provável que houvesse algum contrabando,
mas nada maior que uma arma pessoal poderia passar. E que diferença faria algumas armas
pessoais, mesmo numa cultura primitiva como essa?
– Posso compreender isso – respondeu David. – Mas se alguém perguntar sua opinião
pode esclarecer que já nos encontramos aqui, e já representamos uma influencia. Eles não
poderão evitar essa influência; terão melhor sucesso controlando-a de outras maneiras. Nós
cooperaremos se pudermos, mas não podemos cooperar se formos impedidos de participar.
Tentem nos excluir, e só acabarão tendo problemas que nós não poderemos ajudar a controlar
porque vocês não nos permitirão ajudar a controlá-los.
Lorill assentiu, concordando.
– Isso, se me perguntarem, é exatamente o que esperava que vocês me dissessem. Direi isso
a eles se tiver a oportunidade. Mas – ele mexeu os ombros – eles devem discutir primeiro, e
fazer a dança da política como sempre antes de se mostrarem prontos para escutar qualquer
coisa nova. Enquanto isso acontece, meu pai achou que eu deveria vir para cá, e consertar
aquilo que inadvertidamente arruinei. Você me vê, David, como um homem mais triste e mais
sábio.
Ele sorriu debilmente. David riu.
– Você tem a minha simpatia. Eu fiz algo igualmente estúpido quando tinha a sua idade, e
minha tia solteirona me deu a maior bronca. Em público. E depois minha avó assumiu de onde
ela parou.
Lorill estremeceu.
– Eu prefiro enfrentar habitantes das Cidades Secas armados e enfurecidos do que velhas de
língua afiada e com a razão ao lado delas. A Guardiã de Dalereuth é do tipo da sua avó, eu
imagino. É uma surpresa que tenha escapado vivo.
Ysaye manteve a boca fechada enquanto David se condoia. Pessoalmente, ela achava que, o
que quer que Lorill tenha sofrido, ele bem que merecia. A atitude do rapaz para com a irmã de
Kermiac fora deplorável, na sua opinião, arrogante em sua certeza de que Kermiac não poderia
responsabilizá-lo por suas ações. Era evidente que ele aprendera sua lição.
Depois de um tempo a conversa mudou para assuntos mais neutros. Lorill e David
trocaram mais algumas brincadeiras, e depois o jovem lorde Hastur se voltou para Ysaye, que
estivera se sentindo invisível. Ela especulara se Lorill e David sequer se lembravam de que ela
estava presente.
– Então, senhora – ele indagou, com um aceno de sua cabeça brilhante – já aprendeu nosso
idioma?
Ela sacudiu a cabeça. Não muito bem, ela respondeu, mentalmente, uma vez que ela sabia que
ele podia “ouvi-la”.
– Ah – ele disse, e depois continuou mentalmente. Quer se afastar um pouco, a fim de que pensem
que estamos falando em voz alta? Posso sentir que você não se sente confortável com a ideia de que seus colegas
das estrelas saibam que podemos conversar assim.
– Eu gostaria de praticar com você – ela disse abertamente, num darkovano desajeitado –
Se não se incomodar. – E respondeu, Isso me faria sentir um pouco melhor. Você tem razão. Alguns de
nossos superiores acreditam que aqueles que afirmam poder falar dessa maneira estão praticando alguma forma
de enganação.
Enganando eles, ou a si mesmos? Ele indagou ironicamente.
Os dois. Elizabeth – há quem acredite que ela é... instável. Ysaye não conseguiu pensar numa
descrição adequada para a atitude daqueles que ainda acreditavam que as afirmações de
Elizabeth sobre contato telepático eram ou loucura ou charlatanismo. Felizmente Lorill
pareceu compreender.
Em terra de cegos, aquele capaz de ver será considerado louco, ele disse. Venha, vamos nos afastar um
pouco.
Graciosamente, ele tomou seu braço e levou-a para uma alcova, suficientemente próximo
dos músicos para estar ao alcance visual de todos – e assim, pelos padrões locais, dentro dos
limites da decência – mas suficiente ocultos pelas sombras para que ninguém visse que seus
lábios não estavam se movendo. Ysaye especulou o que ele queria. Ele sem dúvida se mostrara
ansioso para ficar sozinho com ela!
Com sua licença, senhora, ele disse. Espero que possa me fazer uma gentileza. Minha irmã insistiu para
que eu lhe fizesse várias centenas de perguntas. A sua expressão era irônica. Eu contei a ela tudo o que
pude sobre vocês, e você é quem mais a fascina. Minha irmã é muito determinada, e mesmo meu pai pensa duas
vezes antes de lhe negar qualquer coisa!
Ysaye riu. Acho que a maioria das irmãs é assim, ela disse. Pergunte o que quiser.
Afinal, isso não poderia fazer mal nenhum – e poderia fazer muito bem. Se responder as
perguntas da irmã de Lorill abrisse uma rachadura nas barreiras para o resto desse planeta,
Ysaye as responderia até que Lorill se cansasse de falar.

Elizabeth prendera a respiração com os outros quando Lorill Hastur chegou, e suspirara
aliviada quando Kermiac aceitara seus presentes e suas desculpas. Ela mal notou que Ryan
Evans aparecera ao seu lado até o homem falar.
– Está aí uma guerra de fronteiras bem evitada – ele disse, assustando-a.
Ela deu um pulo.
– O quê? – ela disse, engolindo o coração na garganta. – O que quer dizer?
Evans deu de ombros.
– O garoto basicamente partiu levando muito ressentimento. Ele insultou a irmã de
Kermiac, e isso é algo que não se faz aqui. Com “insultou” eu quero dizer que ele difamou a
honra da menina. Aldaran poderia ter usado o comportamento dele como uma desculpa para
declarar guerra contra o restante dos Domínios; isso já aconteceu antes, pelo que fiquei
sabendo, mais de uma vez. Esse pequeno reino e o restante deles tem antigas inimizades, algo
que eu duvido que Kermiac se preocupou em contar para o restante de vocês. Kadarin foi
muito mais sincero... pelo menos comigo.
Os olhos de Elizabeth se voltaram para Aldaran, que estava conversando com um homem
do séquito de Lorill como se jamais tivesse existido outra coisa além de cordialidade entre ele e
o jovem Hastur.
– Será esse o motivo de ele insinuar que gostaria que lhe déssemos armas?
– É possível – Ryan respondeu, despreocupado. – Mas ele não as terá. Eu sou um dos
maiores liberais do mundo, mas até eu não concordo com a ideia de entregar armas de
destruição em massa para primitivos. De qualquer forma, trata-se de uma questão acadêmica; o
garoto fez um pelo pedido de desculpas, que foi aceito, e tudo está ás mil maravilhas de novo.
– Tomara que sim – Elizabeth disse um pouco insegura. – Pelo menos até que aquele
garoto meta os pés pelas mãos outra vez...
– Ele não fará isso – disse Evans, seguro. – Eu aprendi algumas coisas com Kadarin. Ele
não explicou exatamente o que são essas “Guardiãs”, mas elas têm muito poder. Se uma delas
e o pai dele assustaram o garoto, é improvável que ele cause mais problemas. Veja, ele não está
dando a menor atenção às mulheres locais; ele se dirigiu diretamente a Ysaye. Aldaran não vai
se preocupar com a reputação de uma das nossas mulheres.
– Acho que tem razão – ela suspirou. Evans estava se esforçando para ser charmoso; talvez
como um pedido de desculpas tácito pela quase discussão sobre drogas mais cedo.
– Oh, Kadarin me ensinou muitas coisas sobre os costumes culturais locais. Eu
provavelmente sou um perito melhor do que a maioria de nós, agora, uma vez que ele me fez
viver de acordo com eles.
– É mesmo? – isso chamou a sua atenção. – David e eu recebemos permissão para uma
viagem de campo juntos. Estou morrendo de medo de cometer algum tremendo erro.
Evans riu, mas não pareceu seu tom sarcástico habitual.
– Ora, Elizabeth... se eu não a conhecesse melhor, pensaria que isso era um pedido de
ajuda!
– Bem – ela admitiu relutantemente – para ser sincera, foi.
Ele pareceu refletir por um momento, depois assentiu.
– Eu preferiria não conversar aqui, porque não dá para saber qual dos nativos aprendeu o
suficiente de Padrão terráqueo para se ofender com algo que eu disser. Que tal se você viesse
me encontrar em algum lugar daqui quinze minutos? Pode me perguntar o que quiser então.
Elizabeth hesitou. Havia qualquer coisa nele que a deixava apreensiva... e por que isso não
podia ser feito durante o trabalho?
Então ela reprovou a si mesma. Ele era amigo de David! Não havia razão para pensar nele
como um tipo de... ameaça. E durante o trabalho, os dois estariam ocupados; essa talvez fosse
a única oportunidade que teriam para conversar sem serem interrompidos.
– Onde?
– Oh... algum lugar calmo – ele respondeu casualmente. – E neutro. Hmm... sua casa é
muito distante, e a nave também. Que tal... que tal a minha estufa? Você sabe onde fica, não é?
No prédio de Ciências? Eu deixei alguns experimentos executando... plantas nativas que estava
tentando cultivar, e ainda não tive uma oportunidade para dar uma olhada. Podemos conversar
enquanto providencio isso.
Ela sentiu vontade de rir de si mesma; era óbvio que ela o julgara mal. Se ele pretendesse
fazer alguma coisa errada, seguramente o último lugar que escolheria seria sua estufa no
complexo do laboratório!
– Parece perfeito. Obrigada, Ryan. Eu não sei como poderei retribuir.
Ele sorriu.
– Oh, não se preocupe, eu pensarei em alguma coisa – ele disse, e dirigiu-se para a porta.
Ela tentou encontrar David nos quinze minutos que Evans estipulara, para dizer-lhe aonde
estava indo, mas seu marido havia desaparecido.
Ela finalmente encontrou Jessica Duval, que pelo menos sabia com quem ele estava.
– Aquele tal de Kadarin apareceu – ela disse, em resposta à indagação de Elizabeth – E
David saiu com ele. – Ela franziu seu nariz perfeito em desagrado. – Não imagino porque;
aquele homem me dá arrepios.
– Pode dizer a ele que fui olhar as plantas novas de Ryan se ele me procurar? – ela disse,
exasperada pelo desaparecimento de David. – Honestamente, toda vez que eu quero ele, David
sai e desaparece por horas.
Jessica apenas riu.
– Você sabia como ele era quando se casou com ele, Liz. Oh, eu direi a ele, mas você
provavelmente o encontrará antes de mim.
– É provável – Elizabeth suspirou. Bem, ela tentara.
Ninguém parecia estar prestando qualquer atenção nela, e não parecia que alguém fosse
sentir a sua falta, de modo que ela saiu sem se incomodar em contar a mais ninguém para onde
estava indo, apanhando seu casaco com um dos servos e saindo para a nevasca.
Felizmente, o prédio de Ciências não ficava muito distante, uma vez que se chegava ao
complexo de Caer Donn. E o Guia computadorizado na entrada da frente informou-lhe
exatamente onde ficava o laboratório de Ryan Evans, muito embora ela nunca tivesse entrado
naquela parte do prédio antes. Os laboratórios ficavam no último andar.
A “estufa” ficava no telhado; apropriado, ela imaginou, uma vez que ele estava tentando
cultivar plantas nativas. A porta para o telhado estava aberta, e quando ele ouviu os seus passos
vindo de baixo, ele gritou na direção da escada:
– É você?
– Sim – ela respondeu.
– Pode subir! As plantas que deixei antes de partir estão ótimas, acho que você gostará
delas.
Ela subiu a escadaria de madeira estreita – mais uma escada do que escadaria –
cuidadosamente. Quando enfiou a cabeça na estufa, ela foi atingida por um perfume leve e
doce. Ela entrou na estufa e olhou ao redor curiosa. Evans melhorara a luz e acrescentara
calor, de modo que parecia o máximo possível com um dia de verão, e as plantas responderam
com um crescimento desordenado.
– Cadê você? – ela chamou em voz baixa.
– Por aqui – surgiu a voz de Evans, orientando-a. – Nos fundos. Espere até ver essas flores,
Liz. Não vai acreditar que elas são desse lugar.
Ela atravessou o caminho de galhos abundantes, notando que o aroma ficava mais forte a
medida que ela se aproximava dos fundos da estufa. Finalmente, ela encontrou Evans,
inclinado sobre uma mesa que tinha sua própria cúpula de plástico e tampa dobrável. Por
baixo, ela viu do que Evans estava falando... vasos de flores azuis belas e delicadas, com cinco
pétalas.
– Minha nossa – ela exclamou, se aproximando. – Ryan, elas são lindas! Como se chamam?
– Kadarin as chama de “flores-estrela”, mas eu não lembro do nome nativo – disse Evans,
os olhos cintilando enquanto dava tapas na cúpula protetora. – Elas requerem algumas
condições bastante específicas para florescer, e eu esperava chegar a tempo.
– Não seria possível que elas têm um perfume maravilhoso também, não é? – Elizabeth
indagou ansiosamente, incapaz de tirar os olhos das flores. Pólen dourado cobria o interior de
cada sino azul, fazendo com que todas elas parecessem brilhar. – Não posso descrever o
quanto sinto falta de flores perfumadas... rosas, lilases, jacintos...
Evans deu de ombros, mas sua boca tremeu um pouco.
– Kadarin disse que sim, mas você me conhece – tenho um olfato horrível. Que tal eu abrir
a caixa e deixar você descobrir por si mesma?
Ele quebrou os fechos da cúpula, e Elizabeth se inclinou para respirar fundo.
19

– Ysaye – interrompeu Jessica Duval, batendo em seu ombro – por sorte, quando ela e
Lorill estavam bebendo. – Detesto interromper, mas você viu David?
Ysaye voltou-se e pestanejou. A indagação de Jessica soava meio estranha.
– Não, não desde a nomeação e a chegada de Lorde Hastur. Acho que ele saiu com
Kadarin, mas não sei para onde. Por quê?
– Estou tentando encontrá-lo, e pensei que você pudesse saber para onde ele foi. Bem, se o
vir, pode dizer a ele que Elizabeth foi para a estufa de Ryan para olhar umas plantas? Você
conhece o David; se ele não puder encontrá-la, vai ficar preocupado. Eu vou voltar para a
nave, portanto você provavelmente o encontrará antes de mim.
Ysaye sentiu um arrepio premonitório percorrê-la. Plantas? Por que Elizabeth iria querer
olhar plantas? E por que não fazer isso durante o dia?
Havia mais perguntas, perguntas que ela não poderia fazer a Jessica. Por que Evans iria
querer ficar sozinho com Elizabeth? Não haveria ninguém no complexo de Ciências; todos se
encontravam aqui, na festa. Até onde Ysaye sabia, até mesmo os técnicos mais inferiores
haviam feito planos para ficarem livres hoje e amanhã, planejando o que precisava ser feito para
ter esses dois dias livres, ou programando o computador para monitorar experimentos.
Ryan Evans não poderia ter tramado um encontro mais particular mesmo se fosse o capitão.
E Ysaye tinha uma terrível premonição do que Evans tinha planejado para tal privacidade.
Talvez ela estivesse sendo paranoica; neste caso, ela pediria desculpas. Mas ela preferia pedir
desculpas a tentar explicar para David que sua esposa fora atacada pelo seu melhor amigo.
– Obrigada, Jessica, eu digo a ele – ela disse distraída, procurando pensar no que fazer. Se
ela pudesse dispor de algum tempo... Elizabeth não saíra há tanto tempo assim. Evans com
certeza não poderia ter avançado muito ainda, e se ela pudesse interrompê-lo, poderia
conseguir chegar à estufa antes que qualquer coisa acontecesse. Mas como ela poderia arranjar
uma interrupção?
Então ela se lembrou. Evans especificamente dissera que ainda não dera seu relatório. O
capitão sabia que ele estava aqui, e dera sua aprovação tácita para aguardar até amanhã – mas
isso não estava de acordo com os regulamentos, e o computador não estava ciente de que Evans
estava oficialmente em Caer Donn. De acordo com o regulamento, ela tinha que pelo menos se
registrar no sistema, e era o computador que estava encarregado de que ele fizesse isso. Tudo o
que ela precisava fazer era dizer que ele estava ao alcance do comunicador, e o computador
faria o resto.
Ela ativou seu comunicador – mesmo aqui, numa festa, nenhum membro da tripulação
terráquea ficava sem um – e acessou o computador. Em poucos momentos ela havia registrado
a presença dele em Caer Donn, o que faria o computador chamar Evans e continuar a chamá-
lo até que ele respondesse. Era impossível escapar àquele bip insistente, que iria soar tanto no
seu laboratório e do seu comunicador de pulso.
Isso o deteria por um tempo, pelo menos – tempo suficiente para Ysaye chegar à estufa e
encontrar uma desculpa para tirar Elizabeth de lá.
Dama Ysaye, Lorill Hastur disse mentalmente. Está preocupada com sua amiga, e parece pensar que
ela está em perigo. Há algo que eu possa fazer para ajudar?
Ela não achava que ele captara suas desconfianças, apenas sua preocupação, mas ela ficara
comovida e agradecida pela oferta. O garoto não era tão mal, afinal!
Encontre David e diga-lhe... diga-lhe que Elizabeth precisa dele, ela disse, contando o mínimo
possível. Depois venha para o prédio de Ciências e a estufa de Ryan Evans... veja, eu mostro onde é.
Ela não tinha certeza de por que acrescentara isso; talvez por um senso de precisar de
alguém – um homem, por mais que fosse jovem, alguém que Evans não pudesse dominar –
para apoiá-la. Agora ela lamentava todas as oportunidades perdidas para aprender defesa
pessoal. Jessica Duval não precisaria procurar um homem para protegê-la, e nem Aurora. E ela
também não queria envolver nenhum outro terráqueo por enquanto. Como ela poderia
explicar seu súbito temor do que Evans poderia fazer com Elizabeth? Eles se limitariam a rir
ou discutir; ambas perda de tempo. Ele era um terráqueo, um de seus colegas, e o melhor
amigo do marido de Elizabeth. Por que ele tentaria molestá-la? Quando ela conseguisse fazer
algum deles cooperar, poderia ser tarde demais. Evans não era exatamente popular, mas
ninguém jamais o acusara de estupro ou tentativa de estupro. Lorill não discutia; ele acreditava
na sua premonição. Ele era o melhor de que ela dispunha.
Essa comunicação mental tinha uma vantagem que ela não imaginara até este momento; ela
podia mostrar a Lorill exatamente onde encontrar a estufa. Ele assentiu, e antes que ele pudesse
fazer qualquer outra coisa, ela se virara e disparara na direção da porta, ignorando os olhares
confusos das pessoas ao seu redor.

Elizabeth se inclinou para sorver o aroma pesado e intoxicante das flores... no exato
instante em que o comunicador de Ryan tocou.
Ele praguejou, golpeou o dispositivo para desligar o alarme insistente, mas ele se recusou a
parar.
– Maldito computador – ele murmurou. – Fique aqui, eu já volto.
Ele correu para a frente da estufa, depois desceu a escada para o seu escritório, deixando
Elizabeth sozinha.
O aroma das flores era forte e resinoso, como uma mistura de gardênias e pinheiro, e com a
mesma qualidade momentaneamente subjugante. Mas uma fração de segundo depois,
Elizabeth especulou por que imaginara que o perfume era tão poderoso – ele não era de forma
alguma pesado, era leve e delicado. Tão leve, na verdade, que a fez sentir como se estivesse
flutuando.
O vinho lhe provocara um traço de dor de cabeça; agora ela havia passado, e ela sentia-se
preenchida por uma incrível sensação de bem-estar. Será por isso que as pessoas gostavam de
se embebedar? Ela se sentou ao lado da mesa de flores e olhou para o teto de vidro da estufa,
observando a luz partir-se em estilhaços cristalinos.
Ela experimentou, pela primeira vez, uma sensação de unidade com a natureza, com o
mundo, até mesmo com as flores ao seu lado, que tantos místicos haviam descrito. Ora, ela
podia até mesmo sentir o que as flores sentiam, como elas se projetavam para cima em busca
de luz e para baixo em busca de nutrição. Como elas ansiavam por brisas de verão, assim como
ela ansiava por David...
Ela o desejava naquele momento, de uma maneira que jamais desejara outra coisa, seu
corpo ardia com a necessidade dele.
Naquele momento, ela ouviu passos; pensando que poderia ser David, vindo atender seu
desejo por ele, ela levantou-se, tonta, e se virou...
Mas não era David, e sim Ysaye.
Ela franziu o rosto, confusa. Por que Ysaye? Ela queria David!
– Onde está ele? – ela perguntou, depois riu ao ver as palavras saírem da sua boca e
flutuarem no ar, como as palavras da Lagarta numa figura de um dos livros de Alice. – Onde
está David?
– Ele já vem, Elizabeth – Ysaye respondeu no mesmo instante, e Elizabeth franziu o rosto
novamente ao captar seus pensamentos. Por que Ysaye pensaria que Ryan queria lhe fazer mal?
Que bobagem... Ryan só a trouxera para mostrar-lhe aquelas adoráveis flores...
Ysaye franziu o rosto ao estudar o rosto da amiga; não havia dúvida de que Elizabeth estava
num estado de extrema intoxicação, e provavelmente alucinando também, considerando o
modo como os olhos dela não paravam de se movimentar de um lado para outro, como se ela
visse alguma coisa. Não era surpreendente, considerando o passatempo de Ryan Evans. Assim
– tecnicamente – não teria sido um estupro. Elizabeth provavelmente nem se daria conta do
que estava acontecendo. Mas só Deus e Elizabeth sabiam como ele a drogara. Alguma coisa na
festa, talvez?
Bem, não importava; o importante era tirar ela daqui antes que Evans voltasse.
– Venha, Elizabeth – ela estimulou. – David a está esperando. – Elizabeth estava
balançando, e Ysaye colocou um braço ao redor dos ombros dela para ampará-la, e
inadvertidamente se aproximou da nuvem de perfume e pólen exalada de uma mesa com flores
azuis. O pólen dourado aterrissou nas suas roupas e pareceu grudar nela. Ela espirrou algumas
vezes, depois apertou a mandíbula e tentou respirar o mínimo possível. Maldito Evans, com
suas plantas idiotas! Para piorar as coisas, ela ainda precisaria de uma vacina antialérgica
quando isso terminasse! Assim que ela chegasse ao seu alojamento, era melhor enfiar esse
uniforme na lavadora, ou melhor, na lixeira.
Ela providenciaria para que Aurora descontasse a vacina antialérgica do pagamento de
Evans. Seria benfeito para ele.
Ela orientou os passos incertos da amiga para fora da estufa, descendo a escada e para
dentro do salão antes do som de passos apressados – vindo do corredor, não do laboratório e
escritório – fazer com que olhasse para cima.
Era Lorill Hastur, junto com David. Ela nunca ficara tão feliz de ver dois seres humanos.
Eu disse a ele que Elizabeth estava doente, Lorill disse mentalmente, e ela agradeceu-o
silenciosamente por pensar tão depressa.
– David, Elizabeth está reagindo a alguma coisa nas bebidas, eu acho – Ysaye disse. – Ela
está agindo de forma irracional, e é melhor levá-la para casa.
– Se alguém conhece uma reação alérgica, é você – David respondeu agradecido. – Muito
obrigado, Ysaye! Qualquer outra pessoa pensaria que ela estava...
– Drogada ou pior, e teriam ignorado – Lorill disse delicadamente. – Pode ter sido alguma
comida da festa; Aldaran devia ter antecipado que vocês poderiam adoecer por causa de
temperos e estranhos e coisas do tipo. Uma noite na segurança de sua cama deve curá-la.
David apenas assentiu em agradecimento, pois naquele momento os joelhos de Elizabeth
cederam e ela quase caiu, levando Ysaye para o chão junto com ela. David segurou as duas e
pegou Elizabeth no colo como uma criança pequena.
– Acho que é exatamente aonde vou colocá-la – ele disse com um olhar ansioso para o
rosto da esposa, pois Elizabeth ria, como se sonhando. – Parece que todos aqueles anos de
levantamento de peso finalmente compensaram.
Ysaye também estava começando a se sentir tonta, mas manteve o controle até David sair
de vista. Mas Lorill não era tão imaturo quanto parecia; nem tão insensível quanto ela pensara.
Antes que ela oscilasse e perdesse o equilíbrio, ele segurou o seu cotovelo.
Ysaye, acho que você também não está bem. Posso ajudar?
Eu... detesto pedir...
Lorill sorriu. Aceite isso como um agradecimento pela sua paciência com as perguntas de minha irmã.
Posso ajudá-la a chegar ao seu quarto?
A nave – a nave estava tão longe – ela duvidava que conseguisse chegar até lá, mesmo com
a ajuda de Lorill. Essa não era uma reação alérgica comum; era como se houvesse arco-íris por
toda parte, e ela sentia como se tivesse bebido uma garrafa inteira de vinho sozinha.
Mas espere – ela tinha um quarto nos alojamentos de Solteiros que quase nunca usava,
exceto quando estava trabalhando em dois turnos em alguma coisa no prédio de Ciências.
Eu a levarei até lá, disse Lorill, acompanhando seus pensamentos com uma facilidade
invejável. E um momento depois, ele a pegou no colo com a mesma facilidade com que David
pegara Elizabeth.
Ela fechou os olhos quando o corredor balançou ao seu redor; a neve no seu rosto a
reviveu um pouco enquanto eles atravessavam o caminho entre os prédios, mas assim que eles
voltaram para o aquecimento dos alojamentos ela sentiu-se novamente dominada pela euforia.
Deve ter sido alguma coisa na comida, ou no vinho... alguma coisa que ele deu para nós duas. Será que ele
poderia ter drogado mais mulheres? Todos nós?
Mas parecia não importar, pois ela raramente sentira tamanho senso de bem-estar. Quando
Lorill abriu a porta do seu quarto, e fechou-a atrás de si, as luzes acenderam automaticamente.
Ele pareceu espantado por um momento, e ela riu.
Isso não é cortês de sua parte, dama, ele censurou, sorrindo. Afinal, eu nunca vi nenhuma dessas
maravilhas das estrelas.
O sorriso dele aumentou enquanto ela continuava a rir, depois ele começou a rir também.
Ao colocá-la na cama, ele olhou para as paredes, e achou alguma coisa tão hilária que caiu ao
lado dela num ataque de risos.
Ela não podia ouvir seus pensamentos, exatamente, mas captou o sabor deles – alguma
coisa sobre seu quarto lembrava as celas de algum tipo de ordem de monges.
E por algum motivo isso a fez rir também. Eles desmoronaram um de encontro ao outro,
gargalhando incontrolavelmente, segurando um ao outro para se manterem eretos. Não havia
ninguém mais diferente de um monge do que Lorill...
Então subitamente, eles seguraram um ao outro por um motivo totalmente diferente, e
Ysaye sentiu-se arder de desejo pelo toque dele na sua pele. Não importava que ela nunca
tocara um homem dessa maneira na vida... não importava que Lorill fosse muito mais jovem.
Nada disso importava, exceto o fato de que ele era homem e ela mulher, e eles se achavam
subjugados por uma tempestade que nenhum dos dois podia controlar.
Num frenesi, eles arrancaram as roupas um do outro, ambos tão intimamente dentro da
mente um do outro que prendedores alienígenas não foram impedimento. Quando eles caíram
de volta na cama, não havia nada de razão restante. Só restava a paixão.

Lorill acordou primeiro, descobrindo-se num quarto estranhamente austero... e depois de


um momento, ele recordou onde estava.
E o que ele fizera. Ele seduzira – e fora seduzido por – uma virgem do povo das estrelas,
uma mulher de cor e pensamentos tão alienígenas quanto os de um chieri.
Mas por quê? Ele agira como... como um animal no cio! Ou um pobre-coitado num Vento
Fantasma. E o mesmo podia-se dizer de Ysaye. Mas eles não estavam a céu aberto!
Ele franziu o rosto ao pensamento. Por falar nisso – Elizabeth também não estava.
Com o maior cuidado, ele pegou as roupas de Ysaye. E sim, havia um ligeiro e resinoso
perfume de kireseth nelas!
Ele as atirou para longe rapidamente. Não, ele não seria pego por aquilo duas vezes seguidas!
Mas o que ele poderia fazer com elas?
As memórias de Ysaye, inadvertidamente partilhadas, forneceram-lhe a resposta. Ele pegou
as roupas, tomando cuidado para não espalhar o pólen de kireseth que ainda se apega a elas, e
enfiou as roupas num duto. As memórias dela informaram-lhe que o duto levava diretamente a
algum tipo de lavanderia, onde as roupas seriam limpas e esterilizadas por máquinas, e depois
devolvidas a ela. Não haveria mais risco de contaminação.
Mas e quanto às últimas horas? O que o povo dela faria se descobrisse o que ele fizera a
Ysaye? Será que eles ficariam sabendo? Ela era virgem; será que havia jurado permanecer assim
a fim de executar seu trabalho? Ela obviamente não tinha o condicionamento de uma Guardiã
darkovana, ou ele, pelo menos, estaria morto. Mas será que a perda da virgindade ameaçaria a
saúde dela? Será que isso seria óbvio para seus superiores quando ela voltasse ao trabalho? E o
que aconteceria se ela engravidasse dele?
Ele pensou nos comentários de seu pai – e de Fiora – sobre sua falta de autocontrole e seus
envolvimentos com mulheres, e contraiu-se. Ele não queria nem imaginar o que eles diriam
sobre isso... com kireseth ou sem kireseth!
Talvez, se ninguém o descobrisse aqui e não houvesse consequências físicas, Ysaye poderia
acreditar que tudo não passou de um sonho. Talvez fosse melhor assim, afinal... mesmo que
fosse a saída de um covarde. É claro, se ela engravidasse dele, sua honra exigiria que ele a
reconhecesse.
Ele vestiu suas roupas apressadamente, e abriu sua mente para os pensamentos desgarrados
de outras pessoas próximas. Se ele pudesse sair sem ser visto, seria bem melhor, tanto pelo
bem dela quanto pelo dele. Ele não tinha certeza do que era considerado bom comportamento
para uma mulher solteira do povo dela, mas ele não estava certo de que isso qualificava.
Ele esperou até que não houvesse ninguém nos corredores, e saiu fechando a porta atrás de
si, pensando numa estória para explicar sua ausência no festival.
Talvez – uma visita à taverna. Ele iria para lá a fim de diminuir a mentira. E ela não ficava
longe daqui, o que facilitava as coisas.
Ele chegou à porta para o exterior seguramente, e adentrou a escuridão adornada de neve.

Quando Ysaye acordou, ela teve mais com que se preocupar do que as lembranças confusas
de estranhos – e bastante embaraçosos – sonhos com Lorill Hastur. Seu estomago doía, sentia
suas cavidades nasais como se alguém tivesse enfiado bolas de boliche abaixo dos seus malares,
e sentia-se tonta e fraca. Ela tropeçou até o chuveiro e ligou a água quente com toda a força;
não ajudou a sua cabeça, mas aliviou as dores de estômago.
Talvez essas dores explicassem o sangue nos seus lençóis. Sua menstruação sempre foi
irregular, mas ela nunca confiara em medicamentos de controle de natalidade para regulá-la.
Ela precisava fazer tantas coisas com seu corpo que se recusava a submeter isso a mais
medicação, e ela provavelmente seria alérgica a ela de qualquer maneira. E ela certamente não
precisava de medicamentos de controle de natalidade; celibato tinha menos falhas e nenhum
efeito colateral.
Ela encontrou um uniforme limpo no armário e o vestiu, ignorando resolutamente aqueles
sonhos com Lorill Hastur. Aquelas horríveis alucinações provavelmente estavam relacionadas à
droga que Ryan Evans dera a ela e a Elizabeth noite passada. Pelo menos ela garantira que
Elizabeth ficasse com seu marido, e não com Evans.
Bem, se ela pudesse provar que ele fizera isso, sua carreira estaria arruinada. O Serviço podia
aceitar muita coisa, mas não toleraria drogar e seduzir funcionárias.
Mas primeiro, antes de qualquer coisa, ela precisava procurar Aurora para receber uma
vacina antialérgica, antes que ficasse muito doente para fazer qualquer coisa.
Ela vestiu seu casaco, e apagou a luz do seu quarto.
Quarto? Parece mais uma cela de penitencia de Nevarsin!
Ela ergueu a cabeça abruptamente. De onde viera esse pensamento? Aliás, onde e o que era
Nevarsin?
Então ela sacudiu a cabeça para desanuviá-la, enquanto saía para a neve, caminhando – ou
melhor, tropeçando – na direção da nave e da excelente enfermaria de Aurora. Provavelmente
foi alguma coisa que ela ouvira na noite passada. E neste momento, considerando como ela se
sentia tonta, ela provavelmente não deveria confiar nos seus próprios pensamentos. Ela não se
comportava de modo racional durante esses ataques.
A nave parecia a um milhão de quilômetros de distancia, e ela tinha dificuldade de colocar
um pé na frente do outro. Felizmente, assim que ela alcançou a rampa, uma dos seus técnicos
passou, parou um segundo para observá-la, e deteu-a.
A próxima coisa que ela viu foi Aurora, através de um nevoeiro de dor de cabeça.
–... acho que é outro dos ataques alérgicos dela – a jovem técnica dizia. – Eu estava lá da
última vez.
– Acho que está certa, Tandy – Aurora disse. – Obrigada por trazer a equipe médica para a
rampa. No estado em que está, ela poderia ter desmaiado antes de chegar aqui.
Aurora se inclinou sobre Ysaye e tentou parecer encorajadora.
– Você deve ficar bem em alguns dias, Ysaye, mas no momento está muito doente. – Ysaye
ouviu um ligeiro silvo enquanto alguém administrava sua vacina antialérgica, mas tudo parecia
confuso e distante.
Ela queria contar a eles sobre Evans, mas não tinha forças para falar.
Ela ouviu a voz de Aurora perdendo-se na distancia.
–... ligue esses monitores e comece as análises. Veja se pode descobrir o que causou isso...

– Ysaye? – A voz de Aurora soava distante. – Ysaye! Está me escutando?


Ysaye abriu os olhos e descobriu o rosto de Aurora a centímetros do seu. Ela sentiu um
tubo de oxigênio nas suas narinas. Tentou falar, mas sua boca estava seca e sua voz saía como
uma mistura de grasnado e gemido. A extremidade de um tubo flexível encontrava-se entre
seus lábios.
– Tome, beba isso... está tudo bem, Ysaye, é só água. Você ficou quase sem água durante
quatro dias, então deve estar sentindo muita sede e fraqueza.
A água umedeceu sua boca, mas quando ela atingiu seu estômago, ele se rebelou
instantaneamente. Anos de hábito permitiram a Ysaye virar para o lado e apanhar a bacia que
era sempre mantida ao lado de todas as camas numa enfermaria. Aurora ajudou-a a segurar a
bacia, e mãos atrás dela recuperaram o tubo que ela derrubara e seguraram suas tranças. Mas
mesmo quando seu estomago ficou totalmente vazio, ela continuou a sentir náusea. Ela fez o
maior esforço para reprimir os espasmos de vômito, enquanto Aurora gentilmente a colocou
de volta contra o travesseiro.
– Você pode nos dar alguma explicação, Ysaye? Isso não está de acordo com seu
comportamento habitual. Depois da primeira vacina parecia que você ia dormir e se recuperar,
mas você não acordou depois de vinte horas, por isso demos mais uma. Quando você não
respondeu a isso, começamos a usar fluidos IV – nada que não tenhamos lhe dado antes – a
fim de diminuir a desidratação que já estava começando, mas seja o que for que causou esse
ataque ainda deve estar no seu sistema. – Ela olhou insegura ao redor do quarto, e Ysaye viu
que ela se encontrava na câmara de isolamento. Não havia absolutamente nada ali a que ela
fosse alérgica. De modo que não era o quarto, nem o ar (ele era transmitido por filtros
especiais ali), e nem os fluidos IV ou a água.
– Tente se lembrar, Ysaye – Aurora disse na maior preocupação. – Você estava no banquete
em Aldaran... lembra-se de comer qualquer coisa estranha?
A memória de Ysaye começou a voltar.
– Elizabeth... Elizabeth está bem?
Aurora mostrou-se confusa.
– Até onde sei, ela está ótima. Não apareceu por aqui ultimamente, pelo que sei. – Ela
olhou para a técnica do outro lado de Ysaye. – Confira o histórico da semana passada, Tandy.
A voz de Tandy surgiu um minuto depois.
– Negativo. Ela não esteve aqui.
O oxigênio estava desanuviando a cabeça de Ysaye um pouco, o suficiente para que ela se
prendesse a uma linha de pensamento se ela se esforçasse bastante.
– O banquete... a estufa de Evans... o pólen... ainda tem pólen no meu cabelo?
– Vamos descobrir – disse Aurora. – Traga um capuz de sucção, Tandy.
Ysaye sentiu um vácuo parcial no topo da sua cabeça, e depois ouviu a voz de Tandy.
– Parece haver traços de algum tipo de pó amarelo.
– Era amarelo... dourado, na verdade – Ysaye murmurou.
– Leve para o laboratório para análise – Aurora ordenou.
Depois que Tandy saiu, ela olhou para o cabelo de Ysaye e suspirou.
– O que acha de ter a cabeça raspada?
– Neste clima? – Ysaye respondeu.
– É um bom argumento – não que você não ficará presa aqui por algum tempo, mas espero
que não seja tempo suficiente para seu cabelo crescer de novo! – Aurora começou a pegar
equipamentos de vários armários. – Vou colocar uma máscara facial completa e cobrir sua pele
até o pescoço. Assim deve levar apenas algumas horas para desfazer todas as suas tranças e
lavar esse sei-lá-o-quê do seu cabelo. As coisas que eu faço pelos amigos!
– Obrigada, Aurora – Ysaye disse em voz baixa. – Muito obrigada. Perdoe-me por causar
tanto transtorno.
– Não se preocupe – disse Aurora alegremente. – Eu não tenho mais nada planejado pelo
resto do dia. E sinceramente é um alívio vê-la acordada de novo. Mas o que será que é aquela
porcaria?

Ysaye acordou na manhã seguinte totalmente livre do pólen; Aurora disse que os últimos
traços haviam sido eliminados da sua corrente sanguínea durante a noite. Mas logo que Ysaye
tentou se sentar, sentiu-se dominada pela náusea.
– Fique deitada e não se mexa – disse Aurora. Ela correu para o quarto ao lado e voltou um
momento depois com um pacote de biscoitos salgados. – Belisque isso e veja se ajuda.
Por incrível que pareça, ajudou. Cinco minutos depois Ysaye conseguiu se sentar. Foi então
que ela percebeu como seus seios estavam doloridos e pesados.
– Aurora, tem certeza de que não exagerou o fluido IV? Eu me sinto toda inchada.
Aurora riu.
– Se qualquer outra mulher mostrasse esses sintomas, eu faria um teste de gravidez.
Ysaye ficou paralisada, memórias dela e Lorill surgindo na sua mente.
– Faça o teste.
Aurora olhou para ela perplexa, depois fechou a boca e silenciosamente tirou uma amostra
de sangue e saiu da sala.
Ela voltou alguns minutos depois.
– Tem razão. Você está grávida. Quer falar sobre isso?
Ysaye sacudiu a cabeça, aninhando o abdômen liso protetoramente com as mãos. Ela não
podia sequer pensar, quanto menos falar.
Aurora suspirou.
– Se decidir que quer conversar, eu estou aqui. Mas nesse meio tempo, goste ou não,
teremos de informar isso ao capitão.

Leonie ficou atônita ao ouvir as palavras da médica, e apressou-se em executar sua própria
maneira de confirmação. E ela estava certa. Aquela mulher das estrelas chamada Ysaye
carregava uma criança, uma minúscula partícula que não tinha mais do que algumas horas de
existência.
Gerada por Lorill.
Ela conseguira escapar aos seus deveres por tempo suficiente para seguir Lorill enquanto ele
apresentava suas desculpas a Kermiac Aldaran. Ela experimentara uma impressão de
premonição sobre essa missão de penitencia; e temendo que alguma coisa lhe acontecesse nas
mãos de Aldaran, ela assistira todo o procedimento.
Mas nada acontecera, além de Lorill humilhar-se. Isso lhe causava desconforto, mas ela
admitia que ele merecia mesmo ser humilhado... e que seu pai fizera a coisa certa ao convencê-
lo a se desculpar pessoalmente. Os Domínios não podiam arriscar um conflito com Aldaran,
principalmente não com esses estranhos entre seu povo.
Além disso, ela ainda estava curiosa sobre o povo das estrelas. O pouco que ela aprendera
com a mente com que entrara em contato era frustrantemente incompleto. Ela queria mais
informações especificas, e com Lorill lá, ela tinha uma maneira de consegui-las sem se revelar.
Por isso ela continuara com ele até que ele foi conversar – a seu pedido – com a estranha
mulher de pele escura, Ysaye. Depois ela se transferira para a mente da mulher das estrelas,
oculta onde poderia observar os pensamentos superficiais de Ysaye, enquanto ela respondia as
perguntas de Lorill, perguntas que ela o orientara a fazer. Leonie sentiu-se fascinada pelo
mundo estranho que ela vislumbrara nesses pensamentos – um mundo onde parecia existir
muito luxo, e ao mesmo muito pouco que fosse luxurioso. Um mundo restringido por uma
espécie estranha de austeridade, mas onde os indivíduos tinham muitas riquezas. A própria
Ysaye desfrutara de muita liberdade – e ao mesmo tempo, tive muito poucas escolhas. Nisso,
talvez, e no amor que elas partilhavam por música, elas eram muito semelhantes.
Era confuso, mas ao mesmo tempo intrigante.
Mas ela acabou por perder Ysaye, no medo da mulher pelo bem-estar da amiga – e quanto
tocou a mente de Ysaye de novo, ela recuou das estranhas e sensuais imagens que encontrou.
Ela se retirou tão depressa que nem lhe ocorrera que o homem com quem Ysaye estava
poderia ser seu irmão.
Até que o próprio Lorill a chamara, confessara o acontecido, e implorara para que ela
verificasse que tudo estava bem, que sua sedução – por mais que tivesse sido inspirada e
controlada por kireseth – não fora descoberta. Ele tinha a impressão de que o povo das estrelas,
que desconheciam o poder do pólen, poderia não aceitar isso como desculpa.
Alarmada pela posição precária em que fora colocada, ela aceitara. Quando Ysaye saíra de
sua cama e se dirigira à nave e aos curandeiros de lá, Leonie viu que ela imaginava que o
encontro com Lorill não passara de um sonho – algo inspirado por alguma doença.
Ela respirara aliviada, mas continuara dentro da mente de Ysaye até que a curandeira ajudou
a mulher das estrelas, convencida de que tudo ficaria bem.
Até aquelas palavras.
Ela apressou-se em se retirar.
Filha de Lorill. A primeira criança Hastur dessa geração; infinitamente preciosa, mais ainda
porque Ysaye obviamente era dotada de laran em abundancia, de forma que a criança
provavelmente também seria dotada. Ela, Leonie, certamente nunca teria filhos; cabia a Lorill
dar continuidade à linhagem de Hastur. Com filhos nedestro, se necessário, embora muitos
filhos de uma noiva di catenas dos Domínios fosse preferível. Mas qualquer criança de sangue
Hastur precisava ser cuidada e bem recebida; ainda mais agora que havia tão poucos com um
laran pleno.
Ela pressionou sua vontade em Lorill, despertando-o no quarto de hospedes em que ele
dormia no Castelo de Aldaran. Sonolento, ele tentou expulsá-la, mas suas palavras provocaram
um choque que o despertou por completo.
Sua tolice com a mulher das estrelas resultou numa criança, ela disse sem meias palavras. O assunto já
não pode mais ser ignorado, nem por eles, nem por nós. Você deve contar ao pai, e depois voltar a Aldaran
para confessar sua participação na situação.
Ele fez um esforço para pensar claramente. Como? Como eles podem saber que...
Não seja tolo, disse Leonie asperamente, sentindo-se terrivelmente mais velha e mais sábia
que ele, seu irmão gêmeo. Trata-se de uma criança Hastur, não podemos ignorá-la e fingir que ela não
existe! Além do mais, ela se lembra de um pouco do que aconteceu. Quando recuperar a racionalidade, ela vai
se dar conta de que aquilo não foi um sonho provocado pela kireseth. E como é que ela ficou toda coberta de
pólen, afinal?
Eu não sei; em algum lugar daquele prédio, eu desconfio. Quando ela trouxe a outra mulher – Elizabeth
também estava agindo como se tivesse sigo pega num Vento Fantasma. Lorill parecia estarrecido. O que eu
devo fazer?
Reivindicar a criança, é claro! Respondeu Leonie impaciente. Como pode fazer o contrário? É um
Hastur, precisamos tomá-la e criá-la apropriadamente... talvez possamos criá-la com...
Mas e se Ysaye quiser ficar com ela? Lorill disse inesperadamente.
Ela não tem direito... Começou Leonie.
Eles não são do nosso povo, Lorill lembrou-a asperamente. Eles não seguem nossas leis. Mesmo um
Hastur não poderia tomar a filha de uma Renunciante como sua; as leis delas diriam que a disposição da
criança é um direito apenas da mãe. Se ela quiser manter a criança e criá-la pessoalmente, não há nada que nós
possamos fazer. Ela pode até mesmo levá-la para as estrelas se quiser... na verdade, é provavelmente isso o que
ela fará. Ela não gosta muito daqui.
A simples ideia chocou Leonie profundamente. Que a mulher pudesse levar uma criança de
sangue Hastur, não só para mantê-la longe do pai, mas para tirá-la de onde poderia ser
propriamente criada e educada...
Só havia uma saída. Ela precisava se revelar para Ysaye; fazer amizade com a mulher, e
então convencê-la a abrir mão da criança quando ela nascesse. Isso iria requerer um contato
intimo com a mente da alienígena. Poderia significar ter de testemunhar coisas desconfortáveis
– talvez até mesmo assustadoras. Pensamentos que eram tão alienígenas para ela quando os de
qualquer não humano. E ela precisaria fazer um esforço especial para gostar tanto de Ysaye
quanto se ela fosse sua melhor amiga... não era possível mentir de mente para mente, e ela
tinha a impressão de que Ysaye só entregaria algo tão precioso quanto seu próprio filho nas
mãos de alguém de quem ela gostasse e em quem confiasse.
Nada disso importava. Havia um filho de Hastur em jogo.
Ela tomou coragem, interrompeu o contato com seu assombrado irmão, e preparou-se para
tocar a mente de Ysaye de novo.
A médica fizera alguma coisa para melhorar um pouco a sua condição; Ysaye estava agitada,
mas muito mais coerente, e não mais desorientada. A médica a deixara por enquanto.
Era a melhor oportunidade de se revelar.
Ysaye? Leonie disse, cuidadosamente, enquanto Ysaye dava um pulo, sobressaltada pela voz
na sua mente. Você não me conhece, mas sou irmã gêmea de Lorill, e há muito sobre o que precisamos
conversar...
20

– Não dá para acreditar – disse Elizabeth, perplexa. – Ysaye? Grávida? Como é possível? De
quem?
– Acredite – confirmou Aurora, aborrecida. – Ela se encontra no mesmo estágio que você;
segundo o computador, vocês duas conceberam com apenas algumas horas de diferença.
Quanto à como e com quem... estávamos esperando que você nos contasse. Afinal ela é sua
melhor amiga.
Aurora ao menos teve a delicadeza de não mencionar o que a própria Elizabeth tinha em
mente: que, se Ysaye não houvesse recusado o implante anticoncepcional, “por motivos
religiosos”, nada disso estaria acontecendo.
O colega de Aurora, Dr. Darwin Mettier, não se mostrou não caridoso ou delicado.
– Se o Serviço Espacial tornasse os implantes anticoncepcionais obrigatórios para ambos os
sexos até os casais obterem permissão para formar uma família, isso jamais aconteceria – disse
secamente. – E se essa mulher houvesse pensado primeiro na sua segurança e no seu dever, ao
invés de escrúpulos religiosos...
– Ela não te contou nada? – cortou Elizabeth, ainda desconcertada e sentindo um crescente
desconforto.
– Nada coerente. – Respondeu Darwin, que era especialista em medicina interna. – Não
pára de falar com alguém chamada “Leonie”, e tudo de que temos certeza é que ela insiste
obstinadamente a levar essa gravidez a termo. – O homem evidentemente desaprovava tal
decisão. – Não haveria problema para alguém – você, por exemplo – preparada para dar início
a uma família e permanecer por um tempo num lugar. Mas Ysaye é essencial para a nave nas
circunstâncias. O dever dela é para conosco, não para um capricho romântico.
– Essa insistência não me surpreende, dado o seu perfil psicológico – comentou Aurora. –
E seu histórico. Francamente, eu achava que ela pediria para escrever um grande “A” em
vermelho em todos os seus uniformes.
– Isso só seria apropriado caso ela fosse casada – Elizabeth destacou distraidamente, tão
estarrecida pela situação que a sua mente se entregava a trivialidades. – Não dá para acreditar.
O que ela há de fazer com uma criança? O Serviço é um lugar árduo para mães solteiras.
– Árduo coisa nenhuma, é impossível – comentou Aurora secamente.
Elizabeth já considerava a ideia de ela e David se oferecerem para adotar o bebê. Sabia que
Ysaye detestava aquele planeta tanto quanto ela gostava; e o bebê a manteria ali por dois anos
ou mais. Darwin claramente desaprovava o fato de Ysaye não partir com a nave... dois bebês
não criariam muito mais dificuldade do que apenas um, certo? Ysaye teria de permanecer no
planeta durante os nove meses da gestação, mas se as negociações e a construção demorassem,
a nave provavelmente acabaria permanecendo ali por esse tempo de qualquer forma.
– Essa será a menor de nossas preocupações – retrucou Darwin. – Estou muito mais
interessado em mantê-la viva. Vocês têm alguma ideia do quanto ela é alérgica? Mesmo se
agíssemos depressa para interromper a gravidez, ela talvez não sobrevivesse.
Elizabeth empalideceu.
– É tão grave assim? – indagou em voz trêmula.
Darwin, um homem louro cujos músculos pareciam mais apropriados ao ofício de
estivador, movimentou os ombros.
– Ela está sofrendo de um ataque alérgico pleno, e não há muito que possamos fazer sem
matar o embrião ou causar-lhe uma má-formação. Francamente, a minha opinião – que Aurora
ainda não compartilha – é que ela possivelmente está sofrendo uma reação alérgica ao fluxo de
hormônios que estão desenvolvendo o embrião, além do que quer que tenha dado início ao
ataque em primeiro lugar.
– Não sei como pode ser possível – Aurora contestou. – Não há nenhum precedente.
Como ela pode estar sofrendo uma reação a hormônios que sempre existiram no seu corpo,
apenas em menor quantidade? Mulheres vêm tendo filhos há milênios, sem ter reações
alérgicas às substâncias químicas que nos permitem gerá-los!
– Aurora, você sabe como ela fica doente todos os meses, você não compreende – parece
óbvio que pode haver uma conexão – oh, deixe para lá. – Darwin deu de ombros, e voltou-se
para Elizabeth. – Tem certeza de que não pode nos dizer nada? O pai, quem quer que seja,
deveria ao menos saber o que está acontecendo.
O que ele não falou, mas que Elizabeth captou e não pôde deixar de concordar foi, O pai
deve prestar contas por isso. É responsabilidade dele, também.
– Absoluta – Elizabeth respondeu. – Mas eu também não tenho lembranças muito claras
daquela noite. – Ela corou, recordando sua intoxicação e a inacreditável excitação sexual que se
seguira. – Deve ter sido alguma coisa no vinho...
– Há outra coisa. Você saiu com Ryan Evans, não? – Aurora perguntou asperamente. – Ele
lhe deu alguma coisa? Algo para beber ou comer?
– Lógico que não! – Elizabeth respondeu, chocada, e incapaz de imaginar por que Aurora
perguntaria isso. – Não, ele só queria me dar algumas dicas sobre o tratamento com os nativos
– nós nos encontramos na estufa dele, e ele me mostrou umas flores, e foi então que o
comunicador dele tocou. Eu fiquei muito pouco tempo com ele. Por quê?
Aurora apenas mexeu os ombros, sem responder.
– Deixe para lá. Eu duvido que tenha sido algo além de uma alucinação. Talvez você e
Ysaye tenham reagido a alguma coisa que o restante de nós não reagiu. Com as alergias
delicadas dela, posso muito bem acreditar nisso. Quanto a você, o ataque pode ter se
manifestado como euforia.
Novamente, havia pensamentos de Aurora que Elizabeth podia ler; mas não tão claramente
desta vez. Algo sobre Ysaye insistindo que Ryan Evans a drogara! Com a intenção de seduzi-la!
Obviamente, isso deve ter sido alucinação. Ryan era amigo de David. Mas Ysaye não
gostava nem confiava nele – provavelmente foi por esse motivo que imaginou isso. Era fácil,
se uma pessoa estava alucinando, para leves suspeitas transformarem-se em terríveis certezas.
– Posso vê-la? – Elizabeth perguntou timidamente. Muito embora Aurora fosse sua amiga
fora do ambiente médico, dentro da enfermaria a médica não era nada além de uma autoridade
profissional. E Darwin era igualmente distante, talvez até mais.
Aurora sacudiu a cabeça.
– Eu não sei. Pode não ser uma boa ideia. – Ela olhou para Darwin em busca de
confirmação.
Ele sacudiu a cabeça numa negativa firme.
– Queremos que ela fique isolada. Ela está alucinando, falando com uma pessoa imaginária
chamada Leonie, e sobre ouvir um bebê chorando de dor. Vocês, com sua baboseira telepática,
só vão encorajar tais ilusões. Precisamos acalmar suas alucinações, não reforçá-las.
– Mas e se... – Elizabeth se interrompeu antes de terminar a frase. E se Ysaye realmente
estivesse falando telepaticamente com uma “Leonie”? Não era assim que Lorill Hastur, que
partira para os Domínios naquela manhã, chamara a irmã? Lorill e Ysaye conversaram bastante
na festa, talvez isso tivesse produzido uma espécie de ponte para Leonie contatar Ysaye
diretamente. Ele também dissera que sua irmã era uma telepata muito mais poderosa que ele,
por que seria tão absurdo pensar que Leonie e Ysaye podem ter entrado em contato,
especialmente se Leonie se mostrava tão curiosa sobre os terráqueos? E o que começara como
curiosidade pode ter continuado por compaixão; simpatia pelo sofrimento de Ysaye, e um
desejo de “segurar a mão” dela, figurativamente, uma vez que os médicos a mantinham isolada
dos amigos.
E quanto a ouvir o bebê no seu ventre... havia incontáveis exemplos de futuras mães se
comunicando com os filhos no ventre. É claro que se tratava de experiências subjetivas, por
mais bem documentadas que fossem, e Elizabeth receava que o claramente lógico Dr. Darwin
dificilmente as acharia convincentes. Qual seria a opinião de um darkovano? Ela adoraria
saber.
Darwin e Aurora olhavam para ela como se esperassem que terminasse sua pergunta.
Então ela perguntou a primeira coisa que lhe ocorreu.
– E se ela não melhorar?
– Então teremos de abortar – disse Aurora infeliz.
Elizabeth fez um pequeno gesto de protesto com a mão esquerda, enquanto com a direita
protegia o estômago ainda liso.
– Não haverá escolha, Elizabeth – Darwin acrescentou. – Trata-se de uma escolha entre um
membro produtivo do Serviço e um fragmento de protoplasma que ainda não representa mais
do que um potencial. São as regras do Serviço. Quando se alistou no Serviço, você tornou o
Serviço seu parente mais próximo e guardião legal de facto em situações como essa; está no
contrato. Para o bem do Serviço, e para o bem de Ysaye, se a decisão tiver de ser tomada, nós é
que a tomaremos, independente das vontades de Ysaye. Afinal, ela não está em seu juízo
perfeito.
E com isso, eles desconsideraram Ysaye, e os desejos dela. Elizabeth saiu da enfermaria
dominada por sentimentos conflitantes. Medo por Ysaye, ressentimento pelo modo como suas
decisões estavam sendo tomadas por ela...
Frustração, ao se dar conta de que eles tinham razão. Não havia escolha.
Para nenhum deles.

Leonie podia ter chorado de frustração. Ela tinha tão pouco treinamento na arte da cura; se
tivesse um pouco mais, ou pelo menos mais tempo para trabalhar no problema, talvez pudesse
ter feito algo sobre a condição de Ysaye. O corpo inteiro de Ysaye estava reagindo às
mudanças físicas da gravidez como se Ysaye tivesse sido invadida por alguma doença.
Mas as exigências de seu treinamento como Guardiã tomavam a maior parte de seu tempo,
e o pouco que ela podia passar com Ysaye só mostrava que a condição da mulher das estrelas
piorava a cada instante.
Leonie jamais se sentira desamparada antes; sempre houvera alguma coisa que ela podia
fazer em qualquer situação para melhorá-la – ou, pelo menos, para modificá-la de modo a ficar
mais do seu agrado. Mas estava desamparada agora. Ysaye estava tão determinada a levar sua
criança a termo quando Leonie; talvez mais. Leonie sentia que ela já estava se comunicando
com o bebê, o que significava que ele já demonstrava a centelha de um poderoso laran. Mas
havia muitos problemas que ela precisava enfrentar mesmo se a criança fosse levada a termo.
Precisava arrumar um jeito de convencer Ysaye de que ela precisava ter Lorill – ou pelo menos
um telepata poderoso – junto dela na hora do parto, ou a criança poderia matar as duas com
seu medo e a dor do nascimento. E precisava convencer Ysaye de que somente os Hasturs
poderiam criá-la corretamente.
Nenhuma dessas coisas era muito provável, já que Ysaye passava cada vez mais tempo
alucinando. E porque seus próprios deveres a impediam de entrar em contato com a mente da
mulher das estrelas.
Pelo menos ela convencera Ysaye de que ela era real, e não uma alucinação.
Ela não podia dar mais do que sua plena atenção aos seus professores; em primeiro lugar,
por que eles notariam e ela seria justamente punida pela desatenção; e em segundo, porque isso
faria com que perguntassem com o que ela estava preocupada. E isso revelaria sua investigação
da mente do povo das estrelas, e sua comunicação ininterrupta com Lorill, também proibida.
Ela se encontrava em isolamento neste primeiro ano; nada do mundo exterior devia tirar sua
atenção dos estudos. Nada do mundo exterior poderia ser permitido tocá-la por qualquer
forma. Quando seus estudos terminassem, ela seria uma Guardiã de Arilinn, e não poderia ter
permissão para ser qualquer coisa além de imparcial, impassível, desprovida de emoções. Ela
deteria um poder demasiado grande para qualquer outra coisa.
Seus professorem já haviam marcado tais lições na sua carne. Ela não tinha intenção de
aprender essa lição em particular novamente.
Dessa forma, ela precisava guardar Lorill, a criança dele e a mulher das estrelas num canto
trancado de sua mente, assim como sua preocupação por eles. Precisava manter uma expressão
serena, e uma máscara interior serena também. Não sabia o que a Guardiã de Arilinn faria caso
descobrisse as enganações de Leonie, mas Leonie tinha certeza de que não seria agradável, e só
pioraria os problemas que ela já possuía.
Finalmente, no final do dia, ela pôde procurar o santuário de seus aposentos (agora
purgados de todas as lembranças que trouxera com ela) e forçar sua mente exausta a entrar em
contato com a de Ysaye.
Não encontrou nada.
Ou melhor, havia uma névoa de sono drogado onde a mente de Ysaye estivera; um sono
tão profundo que Ysaye não sonhava e nem se encontrava no mundo superior. O seu povo
não possuía nenhuma droga que pudesse induzir um sono tão profundo. Ysaye sequer estava
ciente do que se passava ao seu redor, um estado que mesmo um curandeiro treinado tinha
dificuldade de induzir. A mente era uma coisa poderosa, e lutava contra sua extinção, mesmo
numa coisa tão pequena quanto o sono.
Leonie rapidamente procurou por uma mente que se encontrasse fisicamente próxima a
Ysaye, que ela pudesse usar para saber o que estava acontecendo. Encontrou uma; não era tão
sensível quanto a de Ysaye, e não aceitava o próprio laran.
Mas isso o tornava ainda mais adequado. Ele jamais notaria a presença de Leonie em sua
mente, porque não era capaz disso.
Ela captou um nome da curandeira à sua direita; Darwin. Reconheceu a colega de Darwin
como a curandeira em quem Ysaye confiava, chamada Aurora. A concentração dele era
incrível; sua mente estava concentrada em tão somente uma coisa; a tarefa a sua frente. Uma
Guardiã poderia invejar tamanha concentração.
Então ela percebeu o que eles pretendiam fazer; e recuou aterrorizada. Podia apenas assistir,
congelada, enquanto eles se preparavam para tirar a criança de Ysaye – e torná-la emmasca.
Estava horrorizada; revoltada. Era muito cedo para sentir raiva. Ela teria raiva dessa gente
depois, agora – estava simplesmente chocada.
Este homem, Darwin; ele tinha muitos motivos para fazer isso. Que Ysaye não poderia
viver para levar a criança a termo; que se ela tentasse ambas morreriam. Que aconteceria o
mesmo se ela engravidasse novamente, de modo que não seria apenas um favor torná-la
emmasca, mas medicamente recomendável.
Havia outras razões para ele fazer isso. Ele fora ordenado pelo capitão, que era para Ysaye
como o Rei era para os Domínios. E por pessoas superiores ao capitão, que podiam dar ordens
que nenhuma das pessoas das estrelas se atreveria a desobedecer.
Quer Ysaye concordasse ou não.
Ela teria fugido... mas alguma coisa, algum vestígio de premonição, a avisou. Assista. Escute.
Você precisará disso um dia.
A antiga operação que tornava uma mulher emmasca era proibida, além de ter sido perdida.
Oh, a Guardiã de Arilinn, alguma sacerdotisa de Avarra, e alguns outros poderiam ter
conhecimento dela, mas Leonie duvidava que ela transmitisse tal conhecimento para sua
sucessora. Havia motivos para a operação ser proibida – e ainda assim, poderia haver motivos,
motivos importantes, para que o proibido fosse feito. Talvez, quando Leonie se recuperasse de
sua raiva e ultraje pela violação dos desejos de Ysaye e dos dela, ela compreenderia esses
motivos.
Talvez, algum dia, uma mulher procurasse Leonie, e Leonie julgaria necessário conceder a
ela essa terrível dádiva. Para ela, talvez, não se tratasse de violação, mas de liberdade...
Por isso ela permaneceu, impondo a si mesma a calma gelada e insensível de uma Guardiã,
e daquele curandeiro.
E quando terminou, ela fugiu.

Ysaye acordou, de cabeça limpa e com dor. Sabia o que havia acontecido antes que lhe
contassem. Sabia não só pela dor onde cortaram seu corpo, mas porque estava sozinha.
Desde o momento em que fora informada de que estava grávida, ela estivera ciente da
presença dentro dela. Não uma pessoa, mas uma presença, uma centelha de vida, algo que
poderia, um dia, se tornar a menininha que ela vira em seus sonhos. Uma criança adorável,
com seus genes e os de Lorill combinados para formar uma beleza que unia o melhor de seus
povos. Ela sentia dor, transmitida pela mãe, mas estava disposta a suportar essa dor.
Agora ela se fora, e Ysaye fora deixada sozinha e vazia, sua impressão daquela nova vida
totalmente desaparecida, sofrendo um pesar muito novo e poderoso para chorar. Meu bebê. Ela
não queria morrer... aonde ela está agora?
A porta do quarto foi aberta.
– Ysaye, como se sente?
Era Aurora, é claro, e com a medida certa de preocupação temperada com profissionalismo
para que Ysaye não pudesse sentir raiva dela.
Supondo que ela pudesse ter reunido forças para exprimir uma emoção tão ativa quanto
raiva. Ela tentou, mas estava muito cansada, muito vazia.
– Bem, eu acho – ela respondeu apática. – Vocês tiraram o bebê, não é mesmo?
– Nós eliminamos uma condição de risco de vida – Aurora corrigiu. – Se não tivéssemos
feito isso, você teria morrido, sem sombra de dúvida, assim como o bebê. A escolha era entre a
morte de vocês dois, ou apenas do bebê, e eu segui as ordens que recebi do capitão e do
Serviço.
Uma raiva breve e fraca explodiu por um momento.
– Isso é mentira, Aurora. Nós podemos regenerar órgãos, não há motivo para...
– Um hospital sofisticado pode regenerar um órgão, Ysaye – Aurora respondeu, com raiva
e frieza equivalentes. – Coisa que não pode ser encontrada neste planeta. Você não teria
sobrevivido a viagem para um – supondo que o capitão se mostrasse disposto a abandonar um
novo assentamento e todas as negociações importantes para levar uma mulher ilegalmente
grávida – sem permissão e um custo absurdo – para um destes hospitais. Você é uma
tripulante valiosa, e sujeita a ordens que é obrigada a obedecer, ordens que tecnicamente violou
com sua condição. O Serviço tem um considerável interesse em mantê-la viva e trabalhando.
Ysaye se afundou na cama. Sua raiva breve definhou. Aurora a lembrara de suas
responsabilidades, seus deveres, seu lugar no Serviço e na tripulação. Ela não tinha o direito de
contrariar suas ordens.
– Tem razão – disse Ysaye. – Perdoe-me, Aurora, eu... – Ela parou, incapaz de continuar,
engasgada com as lágrimas.
Aurora suavizou sua atitude.
– Eu também lamento, Ysaye. Lamento ter de fazer isso com você, mas nenhum de nós
teve escolha. Era perder você ou... Ysaye, eu preciso contar outra coisa. Lamento, mas... a sua
situação era tão crítica que tivemos de fazer uma histerectomia. O que quer que tenha
estimulado isso a tornou gravemente alérgica a estrogênio.
Isso não era nada comparado à perda da criança, por mais estranho que pareça. Ela nunca
se considerara muito mulher, de qualquer forma – mais como uma espécie de extensão do
computador. Neutra e assexuada.
De certa forma, era apropriado. Um sacrifício adequado pela vida que jamais existiria agora.
Ela fechou os olhos, enquanto suas lágrimas ameaçavam afogá-la; ela fez um esforço para
contê-las, com a única coisa que já lhe causara qualquer impressão de personalidade e valor.
Sua identidade como mulher, como mãe se fora, antes que ela tivesse a oportunidade de
experimentar qualquer delas. Só lhe restava uma identidade, a única coisa que ainda tinha
algum valor e significado para o Serviço que concedia e tirava, quer ela quisesse ou não.
– Quando posso voltar ao trabalho? – ela perguntou, cada palavra uma dor. – Deve haver
muita coisa amontoada a essa altura.
Aurora ergueu uma sobrancelha, surpresa.
– Bem, agora que suas alergias estão sob controle novamente, não há motivo para que não
possa trabalhar na cama. Quero que se levante e ande um pouco a um período de poucas
horas. Tirando isso, repouse por mais ou menos uma semana, mas trabalhar não deve interferir
com isso. Se quiser – e achei que gostaria de descansar.
Ysaye sacudiu a cabeça.
– Prefiro trabalhar – ela respondeu. – Já causei muito transtorno; é melhor resolver aquilo
que posso.
Aurora ajudou-a a se sentar, apoiada por travesseiros infláveis. Ela ignorou a dor na barriga
ao sentar, as punhaladas surdas de dor na área da incisão. Havia menos dor do que ela achava
que deveria; Aurora devia ter lhe dado uma anestesia parcial para a coluna vertebral.
Quando finalmente estava no lugar e o terminal, numa prateleira móvel, havia sido abaixada
para que ela pudesse alcançar, Aurora deixou-a sozinha.
Ela trabalhou sem parar, perdendo a si mesma a e a dor no trabalho, muito embora depois
de um tempo ela tenha ficado impaciente pelo número de coisas que percebeu que poderiam
facilmente ter sido resolvidas pelos técnicos inferiores. Qual era o problema deles? Como
Aurora acentuara, Ysaye não era indispensável! O que eles fariam se ela estivesse tão doente a
ponto de não poder resolver essas coisas por semanas ou mesmo meses?
Antes, ela simplesmente teria resolvido os problemas sozinha. Agora se sentia irritada; ela
redirecionou os problemas mais simples para seus técnicos subalternos, distribuindo-os
igualmente entre todos eles. Quando terminou de resolver as poucas coisas que se
encontravam além das habilidades deles, ela se recostou nos travesseiros, inquieta e
descontente.
Depois de um momento, ela sentiu que Leonie a procurava. Por um momento ela sentiu-se
inclinada a ignorar a garota assim como desejara que Aurora sumisse de suas vistas. Não queria
ouvir mais nenhum “eu lamento”, e não queria ter de explicar a Leonie porque a preciosa
criança de seu irmão fora destruída. Mas a despeito de seus próprios sentimentos, ela sentia
que a jovem darkovana passara a depender dela; que de uma forma ou de outra – talvez através
daquele breve laço carnal, ou até mesmo através do amor partilhado pela música – a jovem
Guardiã em treinamento passara a projetar-se para Ysaye de uma maneira que não poderia
fazer com ninguém mais próximo dela fisicamente ou por relacionamento. Se tal dependência
era uma falha em Leonie ou não – ou se isso se devia totalmente a solidão – Ysaye não se
incomodava em imaginar.
Com um suspiro, ela abriu a mente para a menina, sentindo-se velha e gasta de dor.
Olá, Leonie. O que você quer?
A menina “parecia” perturbada. Não ajudaria em nada dizer que eu lamento, Ysaye, mas é a verdade.
E sei que não foi culpa sua.
Muito magnânimo da parte dela, Ysaye pensou ironicamente – mas pensando bem,
provavelmente era mesmo. Considerando a sua cultura, e seu próprio orgulho, isso deve ter
sido uma admissão e tanto. Era inteiramente possível que a maioria dos darkovanos a julgasse
culpada pelo que fora feito contra a sua vontade.
Obrigada, ela respondeu. Eu também lamento. Ela não precisava dizer o quanto lamentava; isso
era evidente como uma ferida aberta para Leonie ver. Há algo que posso fazer por você?
Um momento de hesitação. Posso ouvir um pouco a sua música? A menina perguntou cautelosa.
Não consigo dormir... lembra-se que eu disse que costumava ouvir sua música através de você? Talvez a música
também ajude sua mente a repousar.
Era uma boa ideia, e uma grande gentileza por parte de Leonie.
Mas talvez... com toda essa inquietação, você não sentiria vontade de ouvir música.
Mais uma vez, Ysaye ficou surpresa; era praticamente a primeira vez em que sentira um
traço de preocupação na voz de Leonie por alguma coisa além do que interessava a ela. Até
mesmo a criança fora motivo de discussão porque Leonie se importava muito com uma
criança de sangue Hastur.
Eu sei, Leonie disse, respondendo ao pensamento. Você deve me achar muito egoísta.
Ysaye sentiu-se comovida por isso de uma forma que não sentiu-se pela preocupação casual
de Aurora. Se achei, ela respondeu serenamente, foi só porque os jovens sempre são um pouco egoístas. É
parcialmente uma questão de sobrevivência, eu imagino, se eles precisam enfrentar os adultos mais fortes e mais
determinados. Precisam pensar primeiro em si mesmos e nas suas necessidades e desejos... que podem entrar em
conflito com os dos adultos. Ela na verdade sentiu que se tranquilizava um pouco. Quanto à música,
acho que será bom ter outra coisa em que pensar.
Leonie parecia desproporcionalmente satisfeita pelo favor. Você é tão boa pra mim... e eu sou
tão egoísta. Por trás desse pensamento havia outros; Leonie realmente estivera com Ysaye a cada
passo do caminho, a cada momento de sofrimento, e o que fora feito com ela e para ela
tornara Leonie muito consciente de como sua própria vida era privilegiada.
Não, Leonie, Ysaye disse gentilmente. Não acho que você é egoísta, mas simplesmente jovem.
Leonie saiu do contato por um momento, evidentemente pensando sobre as palavras de
Ysaye e suas reações. Quando ela voltou, seus pensamentos tinham a nuança de uma nova
humildade. Isso é o que meus professores vêm tentando me dizer. E eu fui tola de pensar que deveria ser
perfeita e saber tudo, da noite para o dia.
Ysaye sentiu-se estranhamente comovida, e descobriu-se a pensar que, se as circunstancias
tivessem sido diferentes, ela poderia ter tido uma menina muito parecida com Leonie como
filha.
Não. Isso estava no passado, e irrevogável. Já era suficiente que essa jovem arrogante
pensasse em alguma coisa além de suas próprias vontades. E já era suficiente que ela de certa
forma assumira um posto como mentora de Leonie. Não faria bem a nenhuma das duas se
torturar com introspecções prejudiciais.
Que música você quer, Leonie? Wagner?
Os pensamentos de Leonie se iluminaram; ela parecia gostar de heldenmusik, grandes
orquestras, com tudo maior do que a vida. Se fizer essa gentileza, ela respondeu.
Ysaye podia controlar a música tocada naquele quarto do terminal do computador. Ela
abriu o programa de música, e acessou a “Cavalgada das Valquírias”, direcionando o
computador a tocar uma seleção aleatória depois disso.
O que são “Valquírias”, Ysaye?
Donzelas guerreiras, Ysaye respondeu, transmitindo-lhe uma imagem mental de Brunhilde em
traje completo, tranças, capacete com asas e tudo. Elas têm origem nas lendas alemãs que formaram a
base desta ópera.
Leonie devolveu uma imagem de uma mulher capaz e musculosa, com cabelo curto (a
primeira indicação de cabelo curto que Ysaye vira naquela cultura) e uma espada curta; vestida
em algo semelhante a uma saia dividida e uma túnica vermelha.
Como as nossas Renunciantes, ela disse. Valentes e independentes. Ás vezes eu queria ser uma delas.
Eu também, Ysaye respondeu, tristemente. Donzelas guerreiras, intocadas – anjos de
armadura que o mundo não podia afetar.
O computador selecionou Berlioz, e o prazer de Leonie foi evidente. Depois foi a vez de
um dos corais de Bach, como se o computador estivesse tentando confortá-la selecionando
suas obras prediletas, e depois o último movimento da Nona de Beethoven, com seu "Hino da
Alegria". Incentivada pela fascinação de Leonie pelo alemão, ela forneceu uma tradução
moderna das palavras que ela própria cantara na faculdade.
As palavras eram versos mal elaborados e banais mesmo para os padrões não tão elevados
de Ysaye, mas a magia da música de Beethoven as incutira em sua mente com uma inspiração
muito real. Houve uma dor de perda quando recordou a jovem idealista que cantara essas
palavras – e ainda assim, havia muita diferença entre a banalidade e o arquétipo? Havia
lágrimas no seu rosto quando a música se aproximou do fim. Lágrimas que ela não pudera, ou
não quisera, derramar até agora.
Talvez os técnicos tivessem razão; talvez o computador estivesse ciente dela de uma forma
primitiva, e estivesse tentando confortá-la da melhor maneira que podia. Sem dúvida, suas
lágrimas eram uma libertação que ela negara a si mesma até que a música escolhida pelo
computador forçaram-na a derramá-las.
Ela chorou em silêncio, mas não mais com vergonha ou medo, por tudo o que ela perdera
nos últimos dias – tudo, na verdade, desde sua inocência até sua feminilidade. E tudo isso
perdido além de qualquer possibilidade de recuperação.
Ela finalmente recuperou o controle de si mesma quando a música terminou, deixando
apenas o silêncio.
Um silêncio tanto físico quanto mental.
Leonie? Ela chamou. Sem dúvida a menina não a deixaria tão abruptamente... sem se
despedir.
Ysaye? A voz mental soou fraca e em pânico.
Ysaye! Eu estava seguindo a música, queria fazer o computador escolher alguma coisa que a animasse!
O quê? Que diabos a menina queria dizer?
Então subitamente ela deu-se conta do que ela queria dizer – Leonie, evidentemente
captando a “personalização” do computador de Ysaye, pensara que ele tinha uma mente
verdadeira.
De alguma forma, ela se transferira para dentro do grande computador.
E agora, se o nível de pânico de Leonie era uma indicação, ela se encontrava aprisionada
dentro do computador!
21

A princípio Leonie não fazia a menor ideia do que ocorrera a ela. Para Ysaye o computador
não passava de uma outra espécie de pessoa, que às vezes parecia até poder ler a sua mente.
Leonie queria que ele parasse de tocar músicas que entristeciam Ysaye e resolveu escolher uma
que melhorasse seu humor. Então no lugar de intrometer-se no sofrimento de Ysaye procurara
tocar o computador diretamente, de mente para mente.
Projetara seu “ego” para ele, como se estivesse entrando nas transmissões. O computador a
dominara, abruptamente e sem aviso.
Ele era uma inteligência, embora de uma espécie que ela jamais encontrara, e muito
poderosa. Suficientemente poderosa, na realidade, para aterrorizá-la. Sentia-se como uma
formiga-escorpião olhando para a sola de uma bota.
Mas após um momento, ela conseguira controlar o pânico, já que o computador a ignorava,
mesmo tendo-a trazido até ali. Ela olhou ao redor, descobrindo ser relativamente fácil manter a
si mesma e seu senso de identidade após todo seu treinamento como Guardiã e suas horas de
prática nas transmissões e no mundo superior.
Mas mesmo para Leonie, este lugar que não era um lugar era estranho e desconcertante.
Leonie sentia como se estivesse parada num vasto e deserto vazio, com uma impressão de
correntes de poder vibrando ao seu redor, e paisagens invisíveis, uma camada sobre a outra,
quase ao seu alcance.
Isso não se assemelhava em nada com o mundo superior. O mundo superior era tão
parecido com este lugar quanto um abrigo de viajantes se parecia com o Castelo Hastur.
Ela tentou visualizar-se se movendo. No mundo superior, ela veria onde se encontrava e
para onde se dirigia. Ela sentia como se estivesse se movendo, mas parecia se mover através de
um cinza sem nenhum vestígio visual. E também não tinha controle sobre sua velocidade; ela
diminuía e aumentava sem aviso. Isso fez com que se sentisse ainda mais desorientada e um
pouco enjoada. Ela tentou fazer-se parar, e pareceu funcionar, mas não tinha ideia de onde
havia começado nem de onde terminara.
Estava engolfada pela escuridão; não havia como se recompor.
Obviamente, isso nem mesmo se parecia com estar dentro de uma matriz.
Ela se controlou, e acalmou seu pânico; tentou focalizar sua mente e projetar uma imagem
muito clara de si mesma – Leonie Hastur, o que ela queria e para onde queria ir. Que,
obviamente, era fora daqui.
Onde quer que “aqui” fosse.
Ela disse a si mesma que não havia motivo para entrar em pânico, isso não era mais do que
uma experiência muito desagradável. Afinal, ela não se encontrava ali corporeamente; seu
corpo se encontrava seguro por trás do Véu de Arilinn, e a única coisa ali era a sua consciência,
sua percepção. Não importava o quanto isso fosse desagradável, só precisava esperar, e mais
cedo ou mais tarde ela retornaria – ou seria devolvida – ao seu corpo.
Não é?
Se esse computador era uma inteligência, como ela imaginava, talvez ela devesse tratar com
ela como uma inteligência. Ela seria capaz de se comunicar com ele.
Ela reuniu toda a sua força de vontade, e formou seu pensamento numa pergunta muito
específica.
Quem é você?
Depois de muito tempo, surgiu uma resposta vinda do cinza.
TE Modelo S14C, Multi-utilidade Multi-função.
A resposta não fazia sentido, mas pelo menos ele a respondera. Ajude-me!
Especifique a natureza do problema, ele disse monótono.
Natureza do problema? Eu quero sair daqui! Leonie respondeu.
Solicitação formulada incorretamente.
Ora, isso não estava levando a lugar algum! Ela olhou ao redor novamente; ela pensou ter
visto linhas reluzentes na escuridão, e sem ter nada melhor para guiá-la, decidiu seguir uma
delas.
Talvez ela a guiasse para fora dali.
Assim que ela pensou em fazer isso, descobriu-se a viajar numa tremenda velocidade por
uma das linhas. Depois, ela sentiu-se arremessada – não havia outra palavra para descrever –
contra uma enorme rede.
Parecia metálica, de certa forma; fria e quente ao mesmo tempo, e atirou-a de volta através
do caminho que percorrera. Ela certa vez recebera um refluxo de energia das transmissões; ela
sentira a mesma coisa que agora, um formigamento, todos os cabelos arrepiados, e brevemente
estonteada.
E o que soava como a mesma voz, um zumbido informe, repetiu sem tom discernível:
Especifique a natureza do problema.
Isso novamente? Leonie repetiu, com uma sensação de desamparo crescente, Eu disse que
quero sair daqui! Por favor, mostre-me a saída!
Um zumbido surgiu desta vez, mas a voz repetiu: Solicitação formulada incorretamente.
Então, da escuridão, muito distante, a sensação de que alguém a procurava. Ysaye!
Em pânico, ela chamou a amiga, e a voz na escuridão ganhou força. Leonie? Leonie? Onde está
você? A voz parecia mais próxima agora.
Ysaye estava tentando ajudá-la! Leonie concentrou toda a sua frustração num único grito.
Ysaye! Ajude-me! Estou perdida, quero sair daqui!
Muito embora não tivesse se dirigido a ele, o governante daquele lugar – que quer que fosse
– se interpôs entre Leonie e Ysaye como uma grande muralha.
Especifique a natureza do problema.
Vá embora! Ela gritou para ele. Estou perdida, e preciso encontrar um meio para sair daqui!
Solicitação formulada incorretamente, surgiu a resposta instantânea.
Em fúria e frustração, Leonie chamou pela amiga. Ysaye! Eu estou dentro do computador e não
consigo encontrar uma saída!
Mais uma vez, ela teve a impressão de rapidamente viajar através de uma linha invisível e ser
arremessada com suficiente impacto para estonteá-la contra algo que parecia, para todos os
propósitos, uma muralha. Quando Leonie foi arremessada de volta, abalada e aturdida, e sem
forças para formular pensamentos, novamente a voz desapaixonada e totalmente desprovida
de emoção se interpôs entre ela e Ysaye.
Especifique a natureza do problema.
A essa altura Leonie tinha perdido qualquer senso de aventura, e o último resquício de
coragem.
Socorro! Ela gritou em total pânico. Socorro! Ysaye! Qualquer um! Ajude-me a sair daqui, estou
perdida! Por favor! Tire-me daqui!
E novamente: Solicitação formulada incorretamente.
Leonie sentiu uma grande onde de fúria e desespero, e através dela, ouviu a voz mental de
Ysaye novamente.
Leonie, pergunte a ele quem é você.
Isso não fazia sentido. Mas eu sei quem sou, ela protestou, e ele também. Eu disse uma dúzia de
vezes!
Leonie, ele não compreende, ou melhor, ele a vê de uma forma diferente da que você vê a si mesma, Ysaye
disse pacientemente. Pergunte a ele quem ele pensa que você é.
Não fazia sentido, mas Ysaye conhecia essa coisa; ela devia saber o que estava fazendo.
Está bem, Leonie pensou exausta. Ela voltou toda a sua atenção para o cinza informe ao seu
redor, procurando personificá-lo a fim de poder se dirigir a ele.
Chame-o de “computador”, estimulou Ysaye. Diga, “Computador, quem sou eu?”
Computador? Leonie disse hesitante, sentindo-se frustrada e desamparada. Computador, quem
sou eu?
A resposta foi imediata e não fez mais sentido do que a identidade que ele dera a si mesmo.
Processo 392397642.
Leonie sentiu apenas desespero e desesperança por esta confusão de letras e números, mas
Ysaye exclamou em júbilo.
Maravilha! Já sei o que fazer. Aguente firme, Leonie!
Ela teve uma momentânea impressão de alguma coisa que lembrava Ysaye, misturada com
o cinza do computador. Deletar processo 392397642.
Processo deletado, respondeu o computador.
Abruptamente Leonie descobriu-se atirada para fora da máquina – e de volta em seu corpo
em Arilinn.
Ela abriu os olhos, toda dolorida, e apavorada. Sua cabeça latejava, com força suficiente
para explodir, e seu estômago revirava.
Turba e distantemente ela sentiu a alegria de Ysaye por tudo estar bem, e ainda mais
distante sentiu Lorill – confuso, ciente de que algo ameaçara sua irmã gêmea, e perguntando-se
o que no mundo – em qualquer mundo – acontecera.
Ela tremeu e chorou um pouco, sentindo que se se movesse ou falasse poderia começar a
gritar e nunca mais parar. Finalmente o medo e as reações involuntárias deram lugar a total
exaustão; ela se cobriu, e tratou de reunir os farrapos de dignidade e disciplina que foi capaz de
invocar, e deixou-se cair no sono – ou na inconsciência.
Mas mesmo através do sono, ela formou uma convicção firme e inabalável.
Nunca mais.
Ela não buscaria as estranhas “tecnologias” do povo das estrelas. Ela aconselharia com toda
a veemência contra outros o fazerem – e quando tivesse poder para exercer sua vontade, ela
impingiria tal decreto.
As tecnologias terráqueas devem ser deixadas com os terráqueos. Eles podem ter muitas coisas boas, mas
todas elas – absolutamente todas – são muito perigosas para que as toquemos. Ninguém mais deve ousar
fazer isso.

A vida continuou, quer eles quisessem ou não; Ysaye recuperou-se da cirurgia e imergiu-se
no trabalho, encontrando pouco consolo, mas o suficiente para manter sua mente ocupada. À
noite, quando não conseguia dormir, ela colocava o corticador para aprender os idiomas de
Darkover. Ele lhe dava dor de cabeça, mas impedia que tivesse de pensar. E enquanto estava
com o corticador, também não era perturbada por sonhos.
Ela evitava Elizabeth; a amiga brilhava de felicidade pela sua gravidez, seu novo lar, e seu
trabalho, e Ysaye não podia suportar ser o esqueleto da festa. Ela perdeu peso, e Aurora a
censurou finalmente receitando-lhe uma dieta especial que fazia seus colegas olharem com
inveja para suas bandejas cheias de frutas frescas, carne e sobremesas calóricas.
Ninguém fez qualquer referencia a sua gravidez interrompida; a única vez em que alguém
comentou sobre sua cirurgia foi para condoer-se pela histerectomia, e depois comentar
delicadamente que ela nunca foi do tipo para se estabelecer e ter filhos. Uma ou duas das
mulheres até mesmo disse que sentiam inveja dela – não mais submetida à tirania hormonal.
Na primeira vez em que isso aconteceu, ela ficou chocada e emudecida por tal falta de tato.
Mas depois outra pessoa fizera um comentário similar, que teria sido impensado na melhor das
hipóteses, e cruel na pior, se soubessem da criança perdida. E a princípio, Ysaye pensou que
todos simplesmente evitavam o assunto de sua gravidez ao ponto de fingir que ela nunca
ocorrera, mas gradualmente deu-se conta de que eles simplesmente não sabiam o que
realmente acontecera com ela. Até onde sabiam, ela tivera um ataque alérgico que ameaçara sua
vida e por alguma razão causara problemas que exigiram a histerectomia. Se alguém soubesse o
quanto isso era improvável, não havia nenhum comentário. E as poucas pessoas que sabiam a
respeito da criança eram nativos darkovanos, ou amigos que não a mencionariam a menos que
ela levantasse o assunto – ou os funcionários do setor médico, que jamais mencionariam nada
e trancariam a informação em registros selados.
Quando compreendeu tudo isso, ela sentiu-se quase tão irritada quanto aliviada. De certa
forma, ela sentia-se traída; ela deveria poder lamentar-se e que as pessoas compreendessem
porque se lamentava; agora simplesmente achariam que seu comportamento era alguma forma
de tola reação feminina à perda de um órgão sem o qual ela poderia viver perfeitamente bem.
Cirurgia, mesmo as mais delicadas, não mais requeria longos períodos de recuperação como
acontecia em eras há muito passadas. Dentro de uma semana, ela se encontrava trabalhando
em sua rotina diária e sentia muito pouca dor; dentro de duas, não havia nada exceto uma
cicatriz vermelha estreita para lembrá-la de que acontecera alguma coisa.
Isso também a fez sentir-se traída – uma coisa lhe fora tirada, algo vital, e não havia nada
para mostrar que isso jamais acontecera. Deveria haver dor, como um tipo de penitência. Mas
ela tinha seu trabalho, e esse trabalho requeria mobilidade, e era seu dever curar-se o mais
depressa possível. Assim como era dever da equipe médica garantir que ela se curasse depressa.
Leonie contatou-a apenas para dizer que estava cansada, e esperava que Ysaye estivesse
bem. Ela disse que andava muito ocupada com alguma coisa – a princípio, Ysaye pensara que
Ysaye se mantendo apartada dela porque ainda irritada pela perda da criança. Depois pensou
que poderia ser porque ela ficara apavorada pelo incidente com o computador. Mas quando
Leonie finalmente surgiu numa noite e indicou que estava pronta para voltar a conversar, ela
não transparecia o menor medo – e, se é que era possível, o laço entre Ysaye e a menina estava
mais forte do que nunca.
Onde é que você tem se confinado? Ysaye perguntou, acrescentando delicadamente: além de por trás
desse “Véu de Arilinn”, quero dizer.
Oh, Ysaye, isso é mais verdadeiro do que imagina, a menina disse, mais cansada do que Ysaye
jamais a ouvira. Tenho tomado treinamento especial que apenas uma Guardiã recebe. Agora que eu o tenho...
bem, nenhum homem jamais poderá me forçar a entregar minha virgindade.
É um truque que muitas mulheres poderiam aproveitar, Ysaye comentou.
Leonie suspirou. Não é tão fácil. E duvido que a maioria das mulheres o desejariam, quando soubessem
o que o treinamento exige. Mas Guardiãs devem ser capazes de se resguardar, pois há muito poucas de nós.
Parece com a velha fábula que diz que uma bruxa precisa ser virgem para usar magia.
Ela sentiu que Leonie assentia. É muito parecido com isso. Existe uma longa tradição por trás disso,
mas é... é muito árduo para a pessoa. Significa que a energia deve ser transmitida através do corpo físico, e tudo
deve estar em perfeito equilíbrio. É por isso que as Guardiãs são virgens, sempre. E porque devemos ser capazes
de defender essa virgindade. Eu não podia encontrar você até que essa defesa tivesse se tornado um reflexo.
Ysaye não podia compreender qual era a conexão entre transmitir energia através do corpo
e ser virgem, mas não disse nada. Não acho que eu gostaria disso.
Também tenho aprendido a canalizar o Dom particular de minha família. Os Hastur são como matrizes
vivas – podemos fazer sem uma matriz o que a maioria das pessoas só pode fazer com uma. Eu não sabia que
tinha o Dom até semana passada. Através do plano de fundo dos pensamentos Ysaye
compreendeu que essa “matriz” era um tipo de amplificador de poderes psíquicos. Se ela podia
trabalhar sem um, Leonie deveria ser mesmo poderosa. Não era de admirar que estivesse
sendo treinada tão duramente!
Leonie parecia muito mais velha do era há apenas algumas semanas atrás, como se todo
esse treinamento a envelhecera e dera-lhe a experiência de uma mulher muito mais velha.
Parece para mim que você poderia usar um pouco de música. Isso era tudo que Ysaye podia lhe dar,
muito embora desejasse muito oferecer à menina uma melhor simpatia. Ora, a pobrezinha
estava tendo sua infância roubada! Matrizes, energônios... nada disso significava muita coisa
para Ysaye, exceto que parecia que quanto mais responsabilidade fosse depositada na garota,
menos garota ela se tornava. Ela tinha... o quê? Quinze anos? E estava assumindo tarefas que
assustariam um adulto, fazendo sacrifícios sobre os quais até mesmo um adulto pensaria duas
vezes antes de fazer. Não parecia justo.
Eu gostaria de um pouco de música, Leonie concordou. Ainda está tendo pesadelos?
Ysaye escolheu a música – Ralph Vaughan Williams – e levou um momento para responder.
Acreditara que, quando a criança se fosse, não sonharia mais com ela – mas agora, por incrível
que pareça, eles estavam piores. Ysaye dormia, muitas vezes para descobrir-se numa espécie de
cenário vago, com uma qualidade de sonho, coberta de névoa. E o bebê estava lá. Não mais
um bebê, mas uma criança, uma menina que mal tinha idade para andar, que chorava e chorava
na distância – mas quando Ysaye tentava se aproximar dela, ela se afastava e desaparecia de
vista, deixando apenas o doloroso choro. E Ysaye acordava para descobrir-se também
chorando como se seu coração fosse se partir.
Estou, ela disse afinal. A menos que use o corticador. Ela mostrou a Leonie um pouco de como
seus sonhos eram, e acrescentou, amargamente, Eu provavelmente serei muito boa em muitos idiomas
antes que isso acabe.
Leonie ficou em silêncio por um momento, e Ysaye sentiu que ela estava pensando.Só posso
fazer suposições neste caso, ela disse, depois de uma longa pausa, Mas acho que está tendo esses sonhos
por um motivo. Você a queria, queria dar vida a ela, e por isso ela ainda está presa a você.
Baboseira mística? Ysaye acreditava que não. Muitas coisas consideradas “baboseiras místicas”
se revelaram muito reais neste planeta. Se eu... se eu deixá-la ir, emocionalmente falando, ela deixará de
me assombrar?
A resposta de Leonie foi hesitante. Eu não sei, Ysaye. É possível que vocês estejam tão ligadas que
ela não a deixará até que se junte a ela.
Não era um pensamento encorajador, mas – ao seu modo – era confortador. Ysaye desejara
a criança, e de uma forma que não fazia nenhum sentido racional e era difícil de compreender,
ainda desejava.
Sua mãe a culparia pelo que acontecera – sua mãe sem dúvida a deserdaria caso descobrisse;
Ysaye ainda não fazia ideia de porque agira da forma que agira. Não fazia sentido. Era como se
alguma coisa tivesse desligado tudo exceto seus instintos mais baixos, e que a mesma coisa
inflamara tais instintos.
E ainda havia uma peça faltando nesta situação; a questão não resolvida de como ela ficara
tão intoxicada – e porque Elizabeth ficara na mesma situação, muito embora a intoxicação dela
tivesse terminado em pesadelo. Ryan Evans tomara parte disse, e não fora uma pequena parte.
Ysaye tinha certeza de que ele drogara Elizabeth de alguma forma, e talvez a tivesse
drogado também. Se pudesse provar isso, poderia descobrir um motivo para tudo isso. Um
motivo que não envolvesse perder completamente seu juízo. Desejava que houvesse um meio
de fazer Evans pagar por toda a dor que ele causara – preferivelmente na própria pele.
Talvez, quando tivesse um motivo, e uma causa, e alguém em quem depositar essa causa, ela
pudesse dormir à noite.
Talvez então sua filha parasse de chorar.

Alguns dias depois, ela estava a caminho de um dos níveis inferiores da nave quando viu
costas muito familiares.
– Kadarin! – ela chamou surpresa, quando reconheceu a figura esguia. – O que faz na nave?
– Ela sentiu-se contente por poder falar com ele em casta; nisto, pelo menos, as horas usando o
corticador estavam dando fruto. Poder conversar com ele ao invés de tocar sua mente na dele
tornava possível para ela sentir-se um pouco mais amigável para com ele.
Kadarin parou, virou-se, e sorriu quando viu quem o chamara em seu próprio idioma.
Então seu sorriso desapareceu, tão depressa quanto surgira. Ele inclinou a cabeça para ela.
– S’dia shaya, domna – ele disse, e fez uma pausa. – Eu lamentei quando soube de seu bebê –
ele continuou delicadamente. – Crianças são muito preciosas para nós. Muito preciosas.
– Obrigada – Ysaye murmurou automaticamente, depois acrescentou sobressaltada – mas
como ficou sabendo sobre meu bebê?
Kadarin pareceu embaraçado, mas Ysaye adivinhou antes que ele pudesse falar. As únicas
pessoas que souberam além dos médicos e os Lornes foram os nativos. E um nativo em
particular.
– Não me diga; Lorill espalhou a notícia por toda Caer Donn. – Ela suspirou. – Lá se foi
minha reputação.
– De forma alguma, domna – Kadarin protestou. – Ele disse apenas a Kermiac e Felicia
porque se preocupavam que estivesse doente, e os Terranan se recusavam a dizer de quê. Felicia
me contou, e também disse para lhe enviar suas simpatias. Nada mais do que isso. – Ele
sacudiu a cabeça. – E deve saber, não é nenhuma vergonha entre nós gerar crianças cuja
ascendência é conhecida. A única desgraça está numa mulher que não pode dizer quem é o pai
de sua criança – ou que o pai negue que a gerou.
Ysaye mordeu a língua para não fazer um comentário amargo, mas isso não impediu um
comentário sarcástico:
– E tenho certeza de que Lorill acredita que qualquer mulher se sentiria honrada por gerar
uma criança sua, de forma que contá-lo às pessoas deveria fazer-me feliz.
– Qualquer mulher em Darkover – Kadarin assinalou calmamente – se sentiria honrada por
gerar uma criança Hastur. E ambas receberiam cuidados e privilégios pelo resto de suas vidas.
Você poderia exigir qualquer coisa de Lorill que ele tivesse poder de conceder. Ainda pode;
você arriscou sua vida.
Bem, ela não poderia discutir com isso. Mas era o costume deles, não o dela, e ele
obviamente não compreendia porque ser motivo de conversação a incomodava tanto.
– De onde eu venho – Ysaye disse melancolicamente, esperando poder se explicar – uma
mulher não deve... qual é a palavra?... accandir com nenhum homem que não seja seu marido.
Kadarin piscou, surpreso.
– Seu idioma não tem uma palavra para quando um homem e uma mulher deitam juntos,
para que use a nossa? Quer dizer que acasalam com máquinas?
Ysaye sacudiu a cabeça.
– As palavras que conheço ou são eufemismos muito vagos que não poderiam ser
traduzidos corretamente, ou termos que não se pode usar em conversas educadas – ela admitiu
– o que provavelmente lhe dá uma ideia de como encaramos quem apresenta esse tipo de
comportamento. – Ela mexeu os ombros, desamparada. – Eu mesma sinto-me assim, Kadarin.
Sinto-me como... como uma mulher que não saberia dizer que é o pai de seu filho. Ou que foi
para a cama com uma criança, uma vez que Lorill é apenas uma criança pelos padrões do
Império.
Ele olhou para ela atenciosamente, e subitamente ela deu-se conta de que estivera sentindo
falta de ter um adulto com quem pudesse conversar a respeito. Aurora a encorajara a “deixar
isso para trás”, Elizabeth não compreendia, e Leonie era outra criança, irmã gêmea de Lorill.
– Eu nem me lembro por que fiz aquilo – admitiu. – Comportei-me de modo insano; eu não
me atiro sobre homens anos mais jovens como se fosse algum... animal no cio. Mas minha
mente fica toda confusa quando tento recordar por que aconteceu, e no que estava pensando.
– Ela tremeu. – Às vezes acho que pode haver algo errado com minha mente, e esse...
incidente... com Lorill foi apenas um dos sintomas.
– Eu duvido que exista qualquer coisa errada com sua mente – Kadarin disse
tranquilizadoramente. – Eu fui pego num Vento Fantasma certa vez, e minhas lembranças do
ocorrido realmente são bastante confusas. Lorill disse alguma coisa sobre pólen de kireseth nas
suas roupas, e esse pólen provavelmente foi a causa de tudo.
Ysaye olhou para ele como se ele tivesse enlouquecido.
– Vento Fantasma? – ela indagou. – Pólen?
– Ah, eu esqueci – ele sacudiu a cabeça. – Comentei a respeito com alguns outros, mas não
com você; apenas com aqueles que deveriam me acompanhar para as terras além de Caer
Donn. Às vezes, quando o tempo esquenta – digo, relativamente falando – trazendo um tipo
de verão curto fora de época, o pólen das flores kireseth é soprado no vento. Acontece nas
terras baixas e vales com mais frequência do que nas montanhas, como Caer Donn, é claro. O
pólen é bastante intoxicante, faz a pessoa ter visões, e... ahn... estimula o acasalamento. Pessoas
pegas por um Vento Fantasma tendem a se tornar um pouco loucas – e é normal nascer uma
boa quantidade de bebês sete meses depois.
– Entendo – ela disse, muitas coisas inexplicáveis se juntando para formar uma imagem
sórdida.
– Ninguém procura ser pego num Vento Fantasma – ele continuou – Porque as visões
podem fazer uma pessoa fazer coisas que jamais faria em seu juízo perfeito. Por causa disso, há
proibições sobre a manipulação das flores que ninguém que eu conheça desafiaria.
– Nunca? – ela indagou sarcasticamente.
– Nunca. Apenas as leroni podem manipular as flores com segurança; essa é a lei das Torres.
Na realidade, domna – ele apressou-se em acrescentar. – Se foi afetada pelo pólen, o que
aconteceu não constitui nenhuma desgraça, ninguém a culpará de qualquer forma, e não há
reflexo no seu comportamento habitual.
– Kireseth. – Ysaye ficou em silêncio, enquanto o padrão se formava. Ela fechou os olhos
por um momento contra a névoa vermelha de raiva que cruzou sua visão, e obrigou-se a falar
suave e cuidadosamente. – São aquelas flores que Evans estava cultivando na estufa em seu
laboratório? Aquelas com as pequenas flores azuis em forma de sino?
– Sim, essas mesmas – Kadarin confirmou. – Eu o adverti sobre como o pólen se dissemina
e ele as tinha posto sob vidros na última vez em que as vi; pode até mesmo ser como você foi
exposta, se elas floresceram antes do que ele esperava. Ele tem uma produção impressionante
delas; é espantoso como se desenvolvem bem num ambiente artificial.
– É claro – Ysaye disse tão casualmente quanto conseguiu – que se elas ficarem muito
quentes, morreriam todas. – As chamas do inferno não seriam quentes o suficiente para Evans, ela
pensou sombriamente.
Kadarin deu de ombros.
– Eu não sei. Não sou um cultivador de plantas. Provavelmente. Mas é altamente
improvável que isso seja um problema neste planeta.
– Não – Ysaye respondeu automaticamente. – É claro que não.
– Kadarin? – Zeb Scott surgiu no fim do corredor. – Aí está você! Venha, o transportador
fica por aqui. Se quer uma chance de subir antes de levar Elizabeth e David para o campo, é
melhor aproveitar esse.
Ele veio correndo, pegou Kadarin por um braço, e começou a rebocá-lo pelo corredor.
Ysaye olhou para eles por um momento, depois se dirigiu para fora, para o prédio de Ciências,
e o laboratório de xenobotânica.

Ysaye observava as adoráveis flores azuis debaixo da cobertura selada – uma cobertura que
ela vira aberta, com Elizabeth no chão próxima à prateleira da planta. Uma cobertura trancada,
que exigiria uma impressão digital específica para ser aberta. Kadarin falara a verdade; era uma
produção impressionante.
As pequenas monstruosidades estavam realmente prosperando, Ysaye pensou.
Mas não por muito tempo.
Não havia um computador neste complexo que ela não pudesse superar – ou bloquear, uma
vez que tivesse introduzido os comandos. Cada prateleira nesta estufa era controlada do
computador do laboratório, e a própria estufa era totalmente controlada pelo computador
também. Ela voltou para o laboratório, e ordenou ao computador para colocar selos de
quarentena na estufa. Acima dela, a dor fechou-se com um baque audível, e o silvo dos selos
fez com que sorrisse.
Ysaye, o que está fazendo? Leonie perguntou em sua mente. Sua raiva alcançou-me até mesmo
através do Véu!
Ysaye explicou brevemente, e sentiu o assombro de Leonie e sua resposta enraivecida.
Mas isso é sacrilégio! A menina exclamou. Apenas os operadores das Torres podem tocar nas flores de
kireseth com segurança! Então foi isso que aconteceu com você e Lorill. Ora, aquele animal imundo...
Responderá ao capitão assim que eu terminar aqui, Ysaye lhe disse sombriamente. O perfume das
flores preencheu o ar de todo o laboratório, mesmo depois de a estufa ser selada, de modo que
Ysaye disse ao computador para isolar o laboratório do restante do complexo e ajustou o
reciclador de ar para o máximo, com plenos protocolos de desintoxicação.
Isso deve garantir que ele não contaminou todo o prédio, ela disse a Leonie, E isso garantirá que não
existam mais mulheres da tripulação grávidas.
Ela acionou a última das tarefas – elevar a temperatura na estufa a um nível muito mais alto
do que a temperatura registrada nos desertos mais áridos da Terra, e também administrar o
desumidificador. Isso deve matar todas as flores ali, mas ao mesmo tempo preservar a
evidência de que precisava a fim de acusar Ryan Evans de alguns crimes bem específicos.
Intoxicação sem consentimento, cultivo de uma substância controlada, administração de uma
droga desconhecida sem autorização, agressão com uso de drogas e tentativa de estupro. Ele
não seria capaz de se safar dessa. Só para garantir, ela programou todas as câmeras do
laboratório para gravar o que acontecia ali. Quando Evans descobrisse o que acontecera,
poderia dizer ou fazer algo que o incriminasse ainda mais.
Ela sentiu a aprovação de Leonie quando ajustou o código de isolamento. Agora as únicas
pessoas capazes de entrar no setor da estufa do laboratório eram ela própria e o capitão. E ela
era a única pessoa que poderia destravar o computador do laboratório. Ela começou a se virar
para encontrar o capitão, sentindo-se um pouco como uma das Valquírias da lenda.
Então a porta do laboratório foi aberta e Evans entrou.
Ele pareceu surpreso.
– O que está fazendo aqui? – indagou.
Ela não rosnou para ele, não propriamente.
– Esterilizando seu experimento não autorizado – ela respondeu através de dentes cerrados.
– Não! – Evans correu e empurrou-a para fora do caminho do terminal e contra a parede
oposta. Ele começou a socar freneticamente o teclado. – Você não pode fazer isso! Faz alguma
ideia de quanto valem essas plantas? Elas têm propriedades que você nem imagina!
Ele não sabe que você esteve aqui naquela noite? Leonie disse surpresa.
Evidentemente não, disse Ysaye, e respondeu Evans sombriamente:
– Oh, eu tenho uma boa ideia.
Ela esfregou o ombro, que absorvera a maior parte da força da colisão com a parede. Mas
ela se lembrou das câmeras observando, e perguntou:
– O que é que você planejava fazer com essas... plantas?
Ela não fazia ideia de como ele conseguira trabalhar no laboratório sem ser afetado pelas
flores – ou será que o cérebro dele fora tão arruinado por todas as outras coisas que usou que
nem sequer notou?
Evans ainda estava tentando desativar as travas, falando rapidamente sobre as
possibilidades comerciais para o pólen em Keef, nos bordéis e vendedores de drogas.
– As cafetinas vão pagar o olho da cara por isso! – ele disse, freneticamente. – Vai diminuir
os custos de treinamento e danos, e as garotas e rapazes poderiam começar a trabalhar mais
cedo, o que aumentaria suas vidas úteis... Ysaye, o que você fez aqui? Como posso desativar?
Vidas úteis? Leonie disse confusa. Do que ele está falando? Como pode existir uma vida inútil?
Ysaye pensou que a vida de Evans poderia muito bem qualificar nessa categoria, mas disse
apenas: Acredite em mim, Leonie, você não quer saber a que ele se refere.
Em voz alta, ela disse a Evans, para o benefício das câmeras:
– Você esperava realmente que o capitão Gibbons ignoraria isso?
Evans desistiu de tentar usar o computador e voltou seus enormes olhos de falsa inocência
para ela.
– Por que acha que esse experimento não está no computador? Seja desportista, Ysaye –
seu tom tornou-se adulador – Eu a compensarei. Que acha de cinco por cento dos lucros e
oito gramas para seu uso pessoal. – Ele assumiu uma expressão zombeteira. – Faria até mesmo
uma virgem de ferro como você se soltar um pouco e aproveitar a vida. Apenas venha cá e
cancele o que fez.
Ele pretendia convencê-la com isso? Ela ainda estava ligada a Leonie, que ficara muda,
tamanho foi o choque pela atitude dele.
– Só colocará as mãos nas suas malditas drogas sobre o meu cadáver. Na realidade, apenas
pensar nisso me dá vontade de matá-lo – Ysaye disse sem emoção. Ela não tinha certeza de
quanto da raiva era dela e quanto era de Leonie; as duas estavam ultrajadas.
Evans pestanejou, sobressaltado por essa inesperada demonstração de agressão,
especialmente de uma fonte tão inesperada. Depois ele assumiu uma atitude ameaçadora.
– Não seja uma cadela estúpida, Ysaye. Você não seria capaz de matar ninguém. É uma
cientista, não uma assassina.
– Não sou uma assassina? – A raiva extinguiu todo o seu juízo. – Seu miserável, graças a
você e suas drogas é exatamente isso que eu sou! Será que nunca se perguntou como Elizabeth
conseguiu sair da estufa na noite do Festival? Fui eu quem tirou Elizabeth daqui quando você a
drogou e planejou estuprá-la! E vou garantir que você termine numa prisão pelo resto da sua
vida nojenta!
– Não fará nada disso! – Evans gritou e avançou na sua direção, agarrando sua garganta.
Ysaye sentiu que perdia a consciência enquanto tentava sem sucesso livrar-se dele.
Como se atreve a por as mãos em nós? A voz de Leonie gritou furiosa, enquanto seus reflexos de
Guardiã dominavam a mente e o corpo de Ysaye.
Fogo crepitou nos seus nervos e para o corpo do homem que as segurava. Os três
desabaram, convulsionando, no chão.
Evans gritou ao queimar – Ysaye gritou enquanto o poder corria através de seus nervos
sobrecarregados, encontrando resistência e extinguindo-a. Leonie gritou com a dor do corpo
de Ysaye. Encontravam-se próximas de um cadáver carbonizado, e ainda assim o poder
continuava a queimar a alma de Ysaye, enquanto alarmes de incêndio tocavam, e ventiladores
de emergência forneciam ar através dos filtros de descontaminação na maior velocidade
possível.
A mistura de aromas de carne queimada e pólen de kireseth desapareceram enquanto a
monitora da Torre se inclinava sobre seu corpo que se debatia, e elas afundaram com gratidão
na escuridão.
22

– Queria que pudéssemos ter ido naquele transportador – Zeb Scott disse tristemente,
instando seu cavalo a subir uma elevação como só um cavaleiro nato faria. Elizabeth o invejava
por isso; ela ainda achava que se sentava no cavalo como um saco de grãos. – Vai demorar um
pouco até podermos conseguir outro par de lugares para a estação de observação na lua.
– Oh, bem, tudo ao seu tempo – Kadarin respondeu filosoficamente enquanto seu cavalo
imitava o de Zeb. – E nossa perda é o ganho dos Lorne, não é?
Ele sorriu maldosamente para David e Elizabeth. David apenas devolveu o sorriso, mas
Elizabeth descobriu-se a desejar que ela pudesse estar sozinha com David. Afinal, os dois
sabiam cavalgar, tinham os melhores mapas que Exploração podia fornecer, sabiam falar casta e
cahuenga tão bem quanto Ryan Evans, e só estavam indo visitar uma das aldeias remotas de
Lorde Aldaran. Não precisavam de um guia.
Como o capitão não lhes permitira uma folga para uma lua de mel verdadeira, esta teria sido uma boa
oportunidade para os dois ficarem a sós. Não era possível ficar “a sós” por muito tempo quando sempre
havia alguém ativando seu comunicador para isso ou aquilo. Ela fora chamada duas vezes na noite do
Festival – ou pelo menos era o que dizia David. Ela não se recordava, e como ninguém achara
importante o suficiente para deixar uma mensagem, ela não tinha nenhum registro.
Bem, ao menos tinham esta pequena exploração, com apenas duas outras pessoas ao invés de toda a
tripulação. De modo que ela contentou-se com o pouco que tinha, ao invés de reclamar por mais.
David sorriu para ela, como se tivesse sentido seus pensamentos.
Kadarin cavalgava um pouco a frente deles. Ele falara tão pouco até agora que seria quase o mesmo
se ela estivesse sozinha com David. Talvez ele também tenha sentido seu desejo por privacidade, e estava
concedendo aos recém-casados a melhor ilusão de privacidade possível. Kadarin podia ser
extraordinariamente sensitivo.
E Zeb, mesmo não sendo um bom amigo, era uma pessoa que ambos conheciam e em quem
confiavam. Assim, de certo modo, era o mais próximo que ela achara possível da lua de mel que ela
queria.
Mas apesar do modo agradável como a viagem começara lá pelo fim da tarde ela sentia-se dominada
por uma crescente sensação de inquietação. Eles acamparam sem nenhum incidente – e Zeb e Kadarin
montaram seu abrigo suficientemente distante para dar-lhes uma ilusão de privacidade. Ainda
assim, durante toda a noite ela continuou a sentir-se irrequieta e de certa forma temerosa,
como se algo terrível estivesse para acontecer. Seus sonhos eram repletos de pesadelos, e ela
acordou uma vez durante a noite com o coração disparado de terror.
A manhã nasceu clara e relativamente quente, e parecia que sua inquietação não era nada além de um
temor noturno. Eles recolheram suas coisas e voltaram para a trilha. Mas a meio caminho, no segundo
dia, um vento estranho começou a soprar.
Elizabeth sentiu um estranho perfume, resinoso e ligeiramente familiar, ao seu redor.
– Ah, isso deve nos causar algum atraso – Kadarin disse no mesmo instante, seus olhos
estranhos acendendo com uma emoção que Elizabeth não pôde identificar. Divertimento? – É
uma floração de inverno; devemos tomar cuidado para estar protegidos por paredes antes que
o vento nos alcance.
– Vento? – Zeb Scott riu. – Kadarin, eu sou um garoto do Arkansas, enfrentei tornados lá e
tempestades de areia no deserto do Arizona, e nunca tive medo do vento!
Kadarin sorriu, um pouco desdenhoso.
– Você faria bem em temer este vento, mesmo se for um dos terráqueos cuja tecnologia
pode superar qualquer dificuldade. Mesmo seu capitão deveria aprender a temer o vendo de
uma floração de inverno.
Mas o desdém de Kadarin era pra a crença de Zeb, não para ele pessoalmente. E isso fez
Elizabeth pensar numa coisa que estivera refletindo desde o começo da viagem. E,
interessantemente, embora ela não fizesse nenhuma tentativa de chamar a atenção de Kadarin,
ele pareceu estar ciente de seus pensamentos, e aproximou seu cavalo do dela.
– Sim, domna? – ele disse. – Tem alguma pergunta?
Ela sorriu timidamente.
– É mais uma curiosidade, se não se incomodar. Gostaria de saber por que você sempre se
mostra tão deferente a Zeb – ou, por falar nisso, a mim. Ryan Evans tem uma posição muito
mais elevada no Serviço terráqueo, e você o trata apenas com o mínimo de cortesia.
Kadarin pareceu sobressaltado; ele refletiu silenciosamente por um momento, depois a
respondeu mentalmente, ao invés de vocalmente. Obrigado por me dizer isso; preciso tomar cuidado.
Acredito que seja simplesmente uma reação puramente automática de minha parte. Zeb parece-se muito com um
membro do Comyn, os poderosos da família de Hastur. O cabelo vermelho não reflete a casta de forma alguma
entre seu povo?
Ela ficou um pouco surpresa; o Serviço era totalmente “daltônico”, e nunca ocorrera a ela
que algo como um atributo físico poderia denotar posição hierárquica. Não, de maneira nenhuma,
ela disse. A única posição hierárquica entre nós é o status que a pessoa obtém merecidamente no Serviço. Na
realidade, capitão Gibbons está acima de todos nós.
Kadarin assentiu lentamente. Quer dizer que é algo como... oh, os Guardas da Cidade de Thendara.
Eu achava mesmo estranho, não conseguia entender o que os fazia mostrar deferência àquele homenzinho
estranho. Então Zeb não tem grande respeito entre vocês?
Ela sorriu. Apenas por ser um homem de confiança; no que se refere à hierarquia, ele é dos mais inferiores.
Até mesmo David e eu somos superiores a ele.
Kadarin assentiu. E Ryan Evans?
Ysaye é superior a ele; ele está no mesmo nível que David, e eu ligeiramente abaixo.
Ele ergueu uma sobrancelha. Estranho. Devo refletir a esse respeito.
Ele voltou a instar o cavalo e emparelhou com Zeb Scott.
– Bem, amigo – ele disse para Scott – você pode não acreditar em fantasmas, mas faria bem
em temer o que chamamos de Vento Fantasma. Os ventos nessa temporada transmitem o
pólen da kireseth – e quer você o chame de droga, como alguns fazem, ou de veneno, como os
cristoforos acreditam, não importa. É muito perigoso, mesmo para vocês Terranan.
Terá sido a imaginação de Elizabeth, ou ele lhe lançara um olhar estranho e significativo?
Zeb parecia fascinado.
– Vento Fantasma? Kireseth? Kadarin, você não pode parar por aí. Isso é uma droga, ou um
veneno? É mortal ou não?
Kadarin franziu os lábios, pensativo.
– Isso dependeria das definições. Ele é usado nas Torres, não como resina pura, mas como
uma destilação de uma fração. Nessa forma ele é um licor, chamado kirian, e é uma droga útil
para diminuir a resistência contra a telepatia. O pólen puro e todas as outras frações são
proibidos aqui. As Torres acreditam que alguns dos efeitos colaterais são demasiado perigosos,
e muito embora eu não concorde totalmente com eles, estou inclinado a pensar que não é coisa
para incautos. Sob a influência do pólen e das outras destilações, homens podem enlouquecer,
é o que dizem as Torres – e sem dúvida, essas coisas têm o efeito de fazer animais perderem a
cabeça. Apenas kirian parece ser seguro, porque tudo o que faz é diminuir a resistência ao
contato telepático. Naqueles sem telepatia, apenas deixa-os sonolentos.
Zeb parecia cético.
– Telepatia? Não sei, não... digo, eu sou apenas um homem normal, mas nunca nada que
me fizesse acreditar que telepatia sequer é possível. – Ele sorriu pesaroso para David e
Elizabeth. – Lamento pessoal, sei que vocês supostamente são leitores de mentes super
poderosos, mas essa é a verdade. Antes de acreditar, precisaria de uma evidência bastante
sólida.
Kadarin deu de ombros, e disse:
– Fique exposto ao Vento Fantasma, então, e garanto que perderá o ceticismo. Felicia ficará
satisfeita.
Zeb assentiu, e Elizabeth teve a impressão de que Kadarin andara instigando Zeb a uma coisa que ele
não pensaria por conta própria.
– Então – talvez eu faça exatamente isso!
– Você é quem sabe, eu não assumo nenhuma responsabilidade. – Então Kadarin sorriu
maldosamente. – Há outros efeitos colaterais, que talvez não o agradem tanto. Você pode se
descobrir dividindo prazer com um homem-gato ou um cralmac, ou até uma ovelha!
Quando David e Zeb riram, ele sacudiu a cabeça.
– Oh, riam se quiserem, mas eu sou mais velho do que aparento, e já vi muitas coisas
estranhas nessas colinas.
E nesse momento ele evitou os olhos de Elizabeth, como se soubesse de algo que ele não queria que
ela soubesse.
– Posso muito bem correr o risco – disse Zeb. – Afinal sou um espaçonauta, e tenho um
passado de acordar ao lado de algumas coisas esquisitas depois de uma noite na cidade!
Agora foi Kadarin quem riu, uma risada sarcástica que deixou Elizabeth muito perturbada.
– Talvez, mas me pergunto o que você dirá depois, se ousar? E me pergunto o que pensará
quando descobrir-se ouvindo vozes na sua cabeça. Mas acho que devemos ao menos mostrar a
cortesia de levar os Lornes a um abrigo.
David protestou.
– Espere um minuto – Elizabeth sempre foi uma telepata mais forte que eu, e francamente,
eu gostaria de ser tão bom quanto ela. Gostaria de aproveitar a chance de usar uma coisa que
me daria um pouco mais neste departamento do que já tenho. O que acha, Liz? Não gostaria
de aumentar a sua telepatia?
Alguma coisa sobre o aroma doce e resinoso no ar perturbava Elizabeth profundamente,
mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, Kadarin respondeu por ela.
– Acho que seria um grave erro. Elizabeth, não é segredo que você está grávida...
– Eu não arriscaria meu bebê com uma droga estranha – ela disse com firmeza e voltou um
olhar suplicante para David. – E não quero ficar sozinha, se ela coisa faz os animais agirem de
modo estranho.
– Bravo! – Kadarin tornou a rir, e ela teve a sensação de que, ao mesmo tempo em que uma
parte dele aprovava, outra zombava dela por algum motivo.
– Pode fazer a experiência se quiser Zeb, mas preciso dizer que eu não o recomendo. Deve
fazê-lo por sua própria conta e risco.
– Oh, mas agora você me desafiou, e eu nunca recuso um desafio – respondeu Scott. Como
Elizabeth temera, ele reagira ao desafio de Kadarin sem pensar em nada exceto que fora
desafiado. – Mas onde podemos encontrar um abrigo para os outros contra o seu Vento
Fantasma?
Kadarin olhou para o horizonte, o cenho franzido em concentração.
– No seu mapa, aquele você fez com imagens do ar, há uma construção arruinada. O teto
foi retirado, pelo proprietário creio eu, de forma que ele não precisasse pagar impostos por ele.
Se armarem as tendas ali, e permanecerem dentro das paredes e das tendas, Elizabeth estaria a
salvo do pólen. E se quiserem experimentar o Vento Fantasma, podem simplesmente ir para
fora. Se mudarem de ideia, as tendas ainda estarão lá para abrigá-los.
Elizabeth tornou a farejar o ar; o ar definitivamente estava mais forte, assim como o aroma
resinoso.
– Se esse é o melhor abrigo que podemos conseguir, é melhor entrarmos depressa. E Zeb...
eu realmente acho que você não deveria fazer isso.
Ele riu, e ela achou que um pouco da selvageria da risada de Kadarin se insinuara na dele.
– Oh, não, bela senhora – ele caçoou. – Dificilmente seria másculo resistir a um desafio
como esse!
Ela não conseguiu encontrar uma resposta sensata para isso, e duvidou que ele escutasse, de qualquer
maneira. Concentrou-se em instar seu cavalo a seguir o de Kadarin, para fora da estrada e na direção de
uma trilha quase imperceptível. Diversas vezes durante a hora seguinte, ela se perguntou como é que ele
conseguia encontrar o caminho... ao mesmo tempo em que o perfume continuava a ficar mais forte, e ela
começou a sentir-se ligeiramente tonta. Suspirou aliviada quando chegaram a uma elevação e ela viu as
paredes o casebre arruinado.
– Deixaremos vocês aqui, então – disse Kadarin. – Zeb e eu vamos lá para cima.
Ele apontou para a direita, para um lugar mais profundo nas colinas.
– Há uma campina ali onde acredito que flores kireseth florescem com frequência. É a
provável fonte deste Vento Fantasma, ou uma delas, de qualquer forma. – Ele sorriu, e virou a
cabeça do cavalo na direção do caminho pretendido, enquanto Zeb Scott o seguia.
– Ir direto à fonte, hem? – Zeb disse, os olhos brilhando de antecipação.
– Eu gostaria que você não fizesse isso... – Elizabeth disse novamente, mas eles acenaram
em despedida e seguiram em frente.
– Voltaremos para buscá-los – Kadarin disse por sobre o ombro. – Ou pelo menos... eu
voltarei – ele acrescentou provocante.
Em seguida eles desapareceram atrás do cume de uma colina, deixando Elizabeth e David no
caminho original. David deu de ombros quando Elizabeth lançou-lhe um olhar reprovador.
– Ele é dono do próprio nariz, Liz – disse David. – Ficaremos bem.
Ela suspirou.
– Suponho que tenha razão...
– E isso nos proporciona uma oportunidade de verdade para ficarmos a sós – ele
acrescentou maliciosamente. – Talvez seja metade do motivo para eles partirem assim!
– Eu não acho que aquela besteira infantil de “eu te desafio” teve qualquer coisa a ver
conosco – ela respondeu azedamente. – Mas você está certo; isso nos dá uma oportunidade de
ficar a sós. Acho que não deveria reclamar.
Eles continuaram a seguir o caminho que levava à casa arruinada, e Elizabeth notou que o
tempo estava ficando mais quente a cada minuto. Os cavalos já tinham neve derretida e lama
até os jarretes, e folhas e até flores desabrochavam ao redor. Estavam tendo muita dificuldade
para controlar os cavalos, que estavam ficando tensos e propensos a resistir ao freio, para falar
mais alguma coisa. Mas embora Elizabeth estivesse lutando contra o cavalo a cada passo do
caminho – ele mostrava o maior interesse na égua de David, e era um castrado! – ela teve
vislumbres de pássaros e animais normalmente tímidos – algum tipo de coelho, ela imaginou –
se comportando como se estivessem bêbados.
Então Kadarin estivera certo sobre esse pólen! Ela só esperava que conseguissem alcançar o abrigo
antes que afetasse a ela e David também.
O cavalo continuava a resistir a ela, e não havia dúvida de que, sendo castrado ou não, o animal tinha
apenas uma coisa em mente, e não tinha nada a ver com alcançar um abrigo. Por isso ela realmente não
deu a menor atenção ao objetivo deles até fazer o animal recalcitrante atravessar o que restava do portão.
Então ela olhou para cima – e dentro das paredes arruinadas, viu agrupamento de tendas.
O quê?
Quem acamparia aqui, tão distante de Caer Donn, tentando esconder seu acampamento
num prédio deserto?
Quem mais... exceto um criminoso, ou proscrito?
Repentinamente ela sentiu-se dominada pelo medo, à medida que se dava conta de que já vira essas
tendas antes, na noite passada, nos seus sonhos. E coisas terríveis seguiram-se àquele primeiro vislumbre
das tendas. Ela tentou virar o cavalo, dizendo para David aterrorizada:
– David! Vamos sair daqui, depressa!
David assumiu o controle do seu cavalo, os olhos arregalados – mas antes que eles pudessem
fazer qualquer coisa, figuras de aparência selvagem e bárbara apareceram vindas de todas as
direções, cercando-os e tomando posse de suas rédeas. Elizabeth estava aturdida; como um
animal assustado, ela se encolheu, mal capaz de pensar.
Eles eram humanos, mas não se assemelhavam a nenhum humano que Elizabeth jamais vira;
vestidos grosseira e pobremente, barbados, os cabelos hirsutos e sujos.
Exatamente, ela pensou entorpecidamente, como se imaginaria que um bandido parecesse.
Quando um deles, ligeiramente melhor vestido que os outros forçou a cabeça do cavalo dela para
baixo, ele gritou alguma coisa num idioma que ela não compreendeu. Ela subitamente especulou se
Kadarin armara isso. Ele sem dúvida parecera estar se divertindo.
Mas por que ele faria isso? E como poderia prever que esse tal “Vento Fantasma” aconteceria? De
outra forma, não haveria nenhum motivo para eles se aproximarem desse lugar. Conduzi-los a uma
emboscada destruiria sua posição entre os terráqueos – mas talvez ele não se importasse. Talvez
tivesse planejado algo assim desde o começo. Eles poderiam valer uma fortuna em resgate para
– praticamente todo mundo.
Mas até aquele momento, nunca lhe ocorrera que Kadarin quisesse fazer-lhe qualquer coisa pior do
que uma brincadeira maldosa. E nenhuma de suas intuições sobre alguém foi tão completamente errada
antes.
O homem que tomara seu freio estava repetindo alguma coisa num tom áspero e inquisitivo, no qual
ela ouviu a palavra Comyn repetida várias vezes. Foi a única palavra que reconheceu; aquela que se
aplicava à casta governante de Darkover. Além disso, não reconheceu nada do que ele disse; ele
simplesmente não falava nenhum dos idiomas darkovanos que ela conhecia.
Mas David respondeu o homem no mesmo idioma, por isso ele obviamente compreendia.
– Liz, eles parecem pensar que somos parentes de Aldaran – e ele não é um grande fã de
Kermiac, ao que parece. Querem saber o que fazemos aqui, sem uma escolta.
– O quê? – ela disse, perplexa e confusa. Será que Kadarin não sabia de nada sobre essas
pessoas? Será um terrível e monstruoso acidente?
David respondeu com poucas palavras. O homem disse outra coisa; David ouviu,franzindo
o cenho.
– Disse a ele que éramos apenas convidados de Lorde Aldaran. E agora eles estão nos
acusando de ser parentes de Lorill Hastur, e espiões dos Hasturs.
Ao som do nome de Lorill, o homem segurando seu freio fez uma careta furiosa, e repetiu “Hastur”,
sacudindo o punho. Elizabeth afastou-se dele, se encolhendo, pois ele era um homem alto, com roupas
um pouco mais limpas e menos esfarrapadas que os outros, e com a aparência selvagem e feroz de uma
águia. Ele parecia ser capaz de causar muitos danos com a enorme faca que levava, e o que era pior, tinha
a aparência de quem gostaria de fazer isso também.
– Meu Deus, David – ele não parece gostar disso, tampouco! – Seu coração foi dominado
pelo medo, batendo acelerado. – Diga... diga que não conhecemos nenhum Hastur! Diga que
só queríamos nos abrigar contra o vento! Tente convencê-lo a nos libertar!
– Vou tentar – disse David amargamente. – Mas duvido que qualquer coisa que diga terá
muito efeito.
Ela fechou os olhos, enquanto outro sopro daquele ar resinoso a envolvia e fez sua cabeça girar por
um instante. E na esteira dessa vertigem, ela subitamente descobrira-se dentro da mente de David, como
acontecera – na noite em que seu bebê fora concebido.
Mas ela não teve oportunidade para pensar nisso; concentrou-se nas perguntas de David, e na
resposta do homem.
– O que querem conosco? – David perguntou. – Viemos nos abrigar do vento. Não
tínhamos intenção de invadir, e podemos partir se quiser.
– Eu acho que não – o homem respondeu brevemente. – Vocês são ricos, sejam quem
forem, com seu cavalos e boas roupas e bolsas. Receberemos um resgate por vocês, antes que
partam daqui.
David abanou a cabeça. Sem palavras, Elizabeth compreendeu o que ele estava pensando, que eles de
alguma forma se envolveram nas políticas darkovanas.
Mas não, ela pensou, tremendo tanto de medo que não conseguiria falar se quisesse. Não era política
– era ganância. Esses homens não passavam de assaltantes; queriam dinheiro. E quando o
conseguissem, não havia garantia de que esses bandidos libertariam ela e David.
Mas David persistiu em sua suposição.
– Peço que me perdoe, senhor, mas não está compreendendo. Não somos associados a
Aldaran, e nem temos qualquer relacionamento com os Hasturs. Minha esposa e eu não temos
rixa alguma com você ou seu povo.
O homem riu asperamente.
– Isso pode ou não ser verdade, estranho – mas quem quer que seja sua família, seu cabelo
vermelho e laran proclamam que pertence à raça de Hastur. E estão sob o nosso poder. O
acordo é simples; nós receberemos o resgate costumeiro. Seu povo não pode atravessar o rio –
quando fazem isso, vocês violam o antigo acordo, e não podem fugir sem pagar o preço.
David fez uma careta.
– Liz, eu vou tentar a verdade. É certo que essa gente deve ter ouvi a nosso respeito a essa
altura. – Ele se voltou para o líder dos bandidos. – Receio que tenham apanhado as pessoas
erradas, pois posso garantir que não somos parentes de Aldaran ou do que chama de raça de
Hastur. Somos visitantes, e certamente devem ter ouvido a nosso respeito – viemos de um
planeta que orbita uma das estrelas no céu...
O homem interrompeu com um gesto de repulsa.
– Pensa que sou idiota? Pretende deslumbrar-me com alguma história fantástica? Realmente
espera que eu acredite em tamanho absurdo? Até eu sei que as estrelas não passam de bolas de
fogo distantes!
David tentou responder, mas o interrompeu com um gesto impaciente.
– Posso ver que desperdiço meu tempo com você – o homem cuspiu. – Só pode pensar que
sou um retardado, para tentar me enganar com essa sujeira de estábulo. Você será levado ao
nosso líder, e pode tentar, se quiser, pensar numa história mais crível para ele. – Ele esboçou
um sorriso lupino. – Mas não tente essa baboseira sobre ser de outro mundo com ele. Ele é
um laranzu, e saberá logo se estiver tentando enganá-lo.
Laranzu? A mente de lingüista de David analisou a palavra estranha rapidamente – obviamente
tinha alguma relação com laran, o que deveria significar que o homem tinha poderes
telepáticos, como Felicia e Kermiac.
– Ele disse que seu líder é um telepata – David respondeu. – Isso é bom para nós, não há
como mentir para alguém com laran. Ele terá que acreditar que lhe dizemos a verdade.
– Só espero que ele não apenas acredite nisso, mas que acredite também quando dissermos
que é política terráquea não pagar resgates – ela respondeu, ainda tremendo. – Se ele entender
que não há lucro em nos manter prisioneiros, talvez nos liberte.
David permaneceu em silêncio enquanto cavalgavam, os bandidos segurando suas rédeas com força,
para o interior de um dos prédios semi destruídos dentro das muralhas. Elizabeth cavalgou em silêncio
na esteira de David, com uma sensação crescente de certeza de que seus problemas só estavam
começando, e que não seria assim tão simples.
Sua premonição estava correta. Seu guia parou os cavalos diante de uma tenda, e deixou bastante
claro que se não desmontassem por conta própria, seriam “ajudados” a fazê-lo. Os cavalos e
equipamento foram confiscados – provavelmente para nunca mais serem vistos – e eles foram
“escoltados” para o interior da tenda. Havia um homem jovem ali, vestido de maneira muito
semelhante à de seu falante guia, sentado de pernas cruzadas numa pilha de cobertores
dobrados. Seu cabelo era quase tão vermelho quanto o de David e ele tinha o mesmo sorriso
feroz de seu captor.
– Bem, primo, o que temos aqui? – ele perguntou ao primeiro homem.
– Um piadista – o homem respondeu – pois quando soube que tinha sido pego, tentou me
contar alguma história sobre ter caído aqui de uma das estrelas no céu. Eu lhe disse que
poderia experimentar essa história com você, e que se ele insistir nela, você saberá o que fazer
a respeito.
– Cristo – David praguejou baixinho. Em voz alta, ele disse: – Se é mesmo um laranzu,
saberá através de minha mente que falo a verdade. Somos visitantes de outro mundo, e não
somos parentes de homem algum neste mundo, nem somos de valor para ninguém.
O homem mirou David fixamente por vários segundos, depois cuspiu. Ele se voltou para o
primeiro bandido, ignorando David e Elizabeth.
– Das duas uma; ou ele é um pobre louco que acredita no que diz, ou Aldaran e seus
laranzu’in encontraram um meio de proteger sua mente, e ele é um laranzu dele, um homem
com uma perícia tão grande que acredita que pode nos fazer acreditar nesse absurdo.
– Ou acreditar que ele é louco, e sem valor algum – o primeiro homem disse. – Pois quem
se incomodaria em pagar resgate por um louco? Ficariam é contentes de se verem livres de
tamanha vergonha.
O segundo homem bufou.
– Bem, ele não esperava que eu enxergasse através das suas histórias. – Ele gesticulou
abruptamente. – Levem-nos para a tenda de prisioneiros, e coloquem um amortecedor lá a fim
de que não possam entrar em contato com seus amigos em Aldaran. Deixem que eles reflitam
sobre sua história a sós por um tempo, e talvez decidam contar de onde vieram.
Antes que qualquer um deles pudesse se mover, vários homens aprisionaram David, e dois homens
agarraram os braços de Elizabeth também. David começou a praguejar e lutar, mas em vão. Alguns
momentos depois, eles haviam atirado David para dentro de outra tenda, com Elizabeth depositada ao
seu lado. Os homens saíram em seguida, mas Elizabeth não tinha dúvida de que havia vários deles
esperando lá fora, guardando-os. Ela não parava de sentir uma vibração embotada que lhe provocava
dor de cabeça; supôs que poderia ser o “amortecedor telepático” de que o chefe dos bandidos falara.
Após um momento, ela se deu conta de que tinha a prova disso, pois não podia mais sentir os
pensamentos de David.
– Bem – David disse finalmente, sentando-se. – Nós sem duvidas nos metemos numa
enrascada. Pensei que estávamos com problemas quando Kadarin e Zeb nos deixaram
sozinhos... mas agora estamos realmente com problemas. Tem alguma ideia?
Elizabeth abanou a cabeça, desamparada, e começou a chorar. David se aproximou para pegá-la nos
braços a fim de dar-lhe o pouco conforto que era capaz. Ela tomara como garantido, desde que haviam
aterrissado nesse mundo, que se ela estivesse com problemas poderia sempre chamar Ysaye – ou
mesmo um dos nativos – com sua telepatia. Agora não podia fazer isso. Estavam por conta
própria, nas mãos de homens tão dominados pela violência e ódio que certamente fariam
qualquer coisa para conseguirem o que desejavam – homens do tipo que ela só encontrara em
livros e registros, nunca em pessoa. Não tinha ideia do que, se é que alguma coisa, ela poderia
fazer para argumentar com eles. E nem, obviamente, David; sua vida de proteção e privilégio, e
seu treinamento acadêmico e científico, o tornara tão incapaz de lidar com criminosos quanto a
ela.
E ela estava apavorada.
23

Leonie flutuava numa escuridão quente e aconchegante, como se estivesse deitava em uma
cama de plumas. Mas a escuridão era perturbada por vozes. Eu não posso salvar as duas, ela ouviu,
como se de uma enorme distância. Não creio que haja muito que fazer pela outra além de adiar mais um
pouco sua morte, e enquanto fizer isso ela continuará a exaurir as forças da mais jovem. Mas se ela morrer, o
choque resultante em Leonie a deixará fraca e incapaz de prosseguir com seu treinamento por dez dias no
mínimo.
Leonie refletiu, com uma estranha indiferença, que descansar um pouco não parecia uma
ideia tão ruim...
Pois então salve Leonie, resguarde-a o melhor possível, e deixe a outra mulher morrer, interveio outra
voz, impaciente e autoritária. Contanto que ela possa continuar o treinamento. Leonie é muito valiosa... já
a outra não é nada para nós.
Leonie estava confusa; parecia que escutava os médicos Terranan discutirem os destinos de
Ysaye e seu bebê.
Se sua própria gente não pode salvar a vida dela, por que você deveria tentar? Essa voz Leonie
reconheceu; pertencia a Marelie, a Guardiã da Torre de Arilinn. E com esse reconhecimento a
memória retornou e Leonie compreendeu que deveria ser a “outra mulher”.
Ysaye!
Quando o homem chamado Ryan Evans atacou Ysaye, elas se encontravam num contanto
tão profundo que Leonie reagira à agressão como se tivesse sido dirigida a ela. E seus reflexos
forneceram a reação incutida nela durante as últimas semanas.
Pois nenhuma Guardiã poderia continuar a trabalhar depois de perder a virgindade – ou, ao
menos, não sem um bom tempo recondicionando-se e limpando os canais. Por esse motivo as
Torres decretaram que qualquer homem que se atrevesse a tocar uma Guardiã servisse como
um imediato e horrível exemplo a quem mais acalentasse a ideia de tamanha violência. Toda
Guardiã aprendia a defesa que Leonie desencadeara em Evans, que literalmente incendiava
internamente o homem, e carbonizava-o até os ossos em questão de instantes.
Mas Ysaye não era mais virgem – e jamais fora treinada para fazer as energias de laran
fluírem corretamente em seus canais. A energia ricocheteara na terráquea, e Leonie partilhara
de sua agonia quando Ysaye ardeu com Ryan Evans.
E, provavelmente, Ysaye só se apegava à vida através do vínculo que as duas partilhavam.
Ao se dar conta disso, Leonie também sentiu esse mesmo vínculo, drenando sua energia,
como uma sanguessuga... e percebeu a curandeira-chefe e o melhor monitor de Arilinn
trabalhando em conjunto, lentamente, desfazendo esse laço.
– Não... – Leonie murmurou, mas não tinha mais opções do que Ysaye tivera. O último fio
que ligava as duas foi rompido abruptamente, e a dor arrebatou Leonie da estranha escuridão
em que ela havia despertado, transportando-a para o mundo superior.
Reconheceu o lugar imediatamente; a névoa cinzenta incessante, os contornos vagos da
Torre de Arilinn, onde se encontrava o seu corpo, e outras Torres muito mais distantes...
Neskaya, Dalereuth, Corandolis, Thendara. Mas ela não estava sozinha. Havia outra mulher na
sua frente, uma mulher muito magra, alta e de pele escura, com feições nunca vistas em
nenhum darkovano.
Com um sobressalto, Leonie reconheceu Ysaye, a partir dos poucos vislumbres que vira
quando a mulher das estrelas olhava em um espelho. E ao lado de Ysaye, segurando sua mão,
encontrava-se uma menininha, em cujo rosto Leonie podia distinguir tanto a herança de Ysaye
quando o sangue de Hastur. Ysaye e a criança estavam ligeiramente transparentes, e dava para
ver a longínqua Torre de Neskaya através do corpo insubstancial de Ysaye.
Leonie, disse a aparição. Você tinha razão.
Leonie balançou a cabeça, ainda procurando se recuperar do choque de ser abruptamente
transportada ao mundo superior. Do que está falando?
Você tinha razão quando disse que minha filha não pararia de chorar até que eu me juntasse a ela. Ysaye
parecia muito tranquila, muito indiferente... de uma maneira inumana, como se as
preocupações humanas não tivessem mais importância para ela. Há um débito de sangue entre nós,
Leonie. Não fosse por você, Lorill jamais teria vindo para Aldaran, nunca teria retornado, e quando eu
confrontasse Ryan Evans, seria com a salvaguarda de um segurança.
Leonie estremeceu, percebendo que aquilo que se achava na sua frente tinha direito de
exigir qualquer débito de sangue de sua parte que Ysaye quisesse. Pois era verdade que Leonie
tinha tanta culpa pela morte de Ysaye quanto Ryan Evans, e talvez mais; se Lorill jamais tivesse
participado dessa tragédia, as coisas poderiam ter terminado muito diferentes. E Lorill só fora a
Aldaran a pedido de Leonie.
O que quer de mim? indagou, trêmula e submissa. Esta não era a Ysaye que ela conhecia;
tratava-se de uma Ysaye despojada de tudo o que a tornava humana. Não havia como saber o
que ela haveria de querer.
Meus amigos Elizabeth e David foram aprisionados por bandidos que vivem na velha fortaleza no Passo do
Escorpião, respondeu Ysaye, de maneira desapaixonada. Precisa avisar a alguém que possa informar ao
meu povo.
Quem? indagou Leonie, aliviada por se tratar de um pedido muito simples. A Guardiã de
Arilinn? A Guardiã em Aldaran?
Ysaye balançou a cabeça, mas ela já olhava para o espaço, como se estivesse impaciente para
ir para outro lugar. A maioria dos terráqueos não acredita na existência de laran; não acreditariam nesse
tipo de fonte. Não – Kadarin e Zeb Scott se encontram próximos de onde David e Elizabeth estão
aprisionados, e com um Vento Fantasma soprando, estão tão abertos para comunicação quanto um operador
das transmissões. Eles podem apurar a veracidade e prestar socorro. A terráquea olhou fixamente os
olhos de Leonie, e a darkovana tornou a estremecer com a luz fria que brilhava neles. Basta,
disse Ysaye. Nós temos de ir.
E ao dizer isso, Ysaye apanhou a filha, deu meia-volta, e foi embora, percorrendo incríveis
distâncias com passos aparentemente normais, até diminuir com a distância, e depois sumir em
meio à bruma. Leonie permaneceu imóvel, muito enregelada pra segui-la, mesmo se tivesse
encontrado coragem para tanto.
Então, abruptamente, Leonie tornou a sentir-se arrebatada, e descobriu-se de volta no
próprio corpo, na Torre, com o rosto maternal de Ysabet, a melhor curandeira de Arilinn,
debruçado sobre ela.
Tentou falar, mas não foi capaz; sua voz não passava de um ruído, e ela sentia-se cansada,
inacreditavelmente cansada, tão absolutamente exaurida quanto se tivesse tentado manter as
transmissões abertas sozinha durante dez dias.
– Não diga nada, chiya – disse Ysabet bem baixinho. – Deixe-me ajudá-la a beber isto... você
precisa descansar e dormir...
Leonie balançou a cabeça, virando o rosto para escapar ao sedativo que Ysabet lhe oferecia,
até que, finalmente, com uma careta de exasperação, Ysabet guardou-o. Pois muito bem, a mulher
disse mentalmente. O que é tão urgente que não pode esperar?
Há um débito que eu preciso pagar... uma obrigação. Leonie contou-lhe o máximo possível sem
revelar como andara se comunicando, sem autorização, com Ysaye desde que chegara a
Arilinn. E embora Leonie não pudesse mentir em contato telepático, ela omitiu o suficiente
para que Ysabet chegasse à conclusão de que Ysaye, uma telepata destreinada, e portanto
imprevisível, havia se apossado da mente de Leonie quando foi atacada, não o contrário; e que
Leonie reagira ao ataque duplo como fora treinada. Leonie, abalada e aberta como estava, viu
Ysabet chegar a todas as conclusões que esperara que a mulher chegasse, e sentiu um alivio
fatigado. Não disse nada acerca do débito de sangue que Ysaye exigira dela; apenas fez parecer
que tinha medo de dormir sem pagar este débito.
Isso, pelo menos, não era fingimento; dormir traria sonhos, e esses sonhos com certeza
seriam pesadelos. Leonie ainda não estava pronta para confrontar esses sonhos.
Relutante, Ysabet concordou em deixá-la descansar sem o tranquilizante por um tempo,
contanto que ela permanecesse deitada. Vou lhe trazer um suco de frutas daqui a pouco, disse Ysabet.
Preciso ir contar essa história à Guardiã, e ela decidirá o que fazer a respeito. Vamos esperar que essa mulher
das estrelas fosse a única de seu povo com tanto laran.
Ysabet deitou-a novamente nos travesseiros, e Leonie, obediente, ao menos na aparência,
fechou os olhos.
Mas no momento em que a mulher saiu, ela recorreu ao que restava de suas forças
extenuadas para projetar uma sonda mental na direção de Aldaran, à procura de duas mentes
que agora se encontravam sob a ameaça de um Vento Fantasma.

Quando Elizabeth e David desapareceram atrás da orla da colina que subiram, Zeb
percebeu que provavelmente cometera a maior burrice, ao se permitir ser incentivado a
participar da expedição. Ele estava sozinho, totalmente sozinho, com um alienígena
imprevisível – e prestes a experimentar os efeitos de uma droga alucinógena. Sabia melhor,
tendo crescido no Arizona, para acreditar que qualquer alucinógeno “natural” seria mais fraco
do que um sintético. Tente falar isso para os mastigadores de peiote!
Outra vez, como se sentisse o desconforto crescente de Zeb, Kadarin indagou:
– Tem certeza de que não prefere se abrigar contra o Vento Fantasma? – Havia um tom de
mofa na voz, o que fez o instinto masculino incutido nos terráqueos se empertigar nas patas
traseiras e estufar o peito.
– Não há a menor possibilidade, amigo. Não temo nenhum vento, fantasma, ou droga.
Mas, do fundo de sua mente, surgiu o pensamento de que escutava seu pai dizendo: Não há
cavalo que não possa ser montado, mas não há homem que não possa ser desacordado. Portanto é melhor
lembrar, antes de subir na sela, que talvez você não seja o homem destinado a montar este cavalo.
Mas era muito tarde para voltar atrás agora; enquanto subiam a crista seguinte,
desmontavam, e amarravam seus cavalos, o vento soprava bem no rosto dos dois. O perfume
do pólen era forte e resinoso, e por um instante Zeb sentiu dificuldade para respirar.
Zeb teve sua quota de experiências, em Keef e nas cidades dos espaçoportos de uma dúzia
de outros planetas; não restavam dúvidas na sua mente de que se tratava de uma droga
tremendamente poderosa, ao mesmo tempo psicodélica e intoxicante. Surtiu efeito quase
instantaneamente.
A princípio o principal efeito foi uma euforia, uma sensação incrivelmente estimulante de
bem-estar. Ele arriou na relva macia e comprida e contemplou o céu se desmanchar em
estilhaços e cacos de luz. Kadarin agachou-se ao seu lado, e Zeb sentiu o alienígena
observando-o com atenção e divertimento.
Kadarin não aparentava ser afetado com a mesma intensidade que Zeb. E isso fez que com
lembrasse de uma coisa que lhe acontecera dias atrás. Era estranha a maneira como Kadarin
parecia humano, quando tudo o que ele falava e fazia demonstrava que ele evidentemente não
era humano.
Zeb convivera e trabalhara com nãohumanos por todo o Império Terráqueo; às vezes era o
único humano numa equipe de Exploração quando faltava pessoal. Era conhecido por ser um
homem tão próximo da falta de preconceito quanto um humano podia ser, o que o tornava um
candidato primário para trabalhos como esse. O que o surpreendeu naquele momento era quão
pouco os outros membros da tripulação percebiam o quanto alienígena Kadarin era.
Não era nada evidente na superfície, embora no geral uma espécie nativa ou era totalmente
humana ou obviamente outra coisa. E bastava olhar para Felicia para saber que algumas dessas
– criaturas – podiam cruzar com humanos, o que não deveria acontecer, de acordo com a
biologia que Zeb conhecia. E para completar, Felicia dera luz á criança de Aldaran, o que
mostrava que os híbridos também podiam cruzar com humanos...
Embora o bebê tivesse seis dedos nas mãos, e um par de olhos da cor do âmbar. Não eram
exatamente o tipo de características que surgiam com muita frequência em famílias humanas.
Isso levava a outra questão. Era engraçado como sua mente não parava de formular
questões, enquanto seu corpo continuava perfeitamente satisfeito em permanecer sentado e
respirar aquele incrível pólen. Será que Kadarin podia cruzar com humanos?
Eu não tenho certeza, Kadarin disse, sem abrir a boca. Não tenho filhos... e não é por falta de
tentativas. Então ele riu, sarcasticamente, o que o obrigou a abrir a boca. Sou muito mais velho do
que aparento, acredite; todos os da minha espécie o são. Sabia que eu era muito mais velho do que Kermiac?
Nasci – pode acreditar ou não, da forma que quiser – no mesmo ano que o bisavô de Kermiac. Suponho que
sou como uma mula; qualquer criador de cavalos lhe dirá que uma mula é estéril.
Zeb anuiu; seu avô criara mulas para o comércio turístico.
E de vez em quando, num zoológico, outras espécies cruzam. Leão e tigre, por exemplo. Não com frequência
– mas ás vezes essas espécies são próximas o suficiente para a descendência ser fértil. De modo que posso ser
uma mula, e Felicia um tigreão. Ela é uma mulher normal – mas é muito mais jovem do que eu.
Ocorreu-lhe de repente que ou isso era alucinação, ou era telepatia. Mas se fosse alucinação,
onde Kadarin obtivera o conceito de “tigreões”? Esses eram animais terráqueos; só poderia tê-
los obtido da mente de Zeb.
De forma que isso deveria ser telepatia. Talvez Elizabeth não fosse tão iludida quanto Zeb
imaginara. Ele cobriu os olhos por um momento com as mãos, a fim de proteger-se da luz e
pensar melhor. Como poderia não acreditar em telepatia depois disso?
Não – uma vida de ceticismo não poderia ser deixada para trás. Ainda não fazia sentido.
Ainda poderia ser uma alucinação. Não era preciso telepatia para fazer com que ele pensasse que
Kadarin estava falando com ele.
– Como ainda consegue não acreditar? – indagou Kadarin, e desta vez foi com palavras de
verdade. Zeb tirou as mãos do rosto para se certificar de que a boca do homem se movia. –
Ou será que não existe nada que provaria a você sem a menor sombra de dúvida?
Qual era o sentido de todos esses desafios machistas? Colocá-lo numa posição em que
supostamente obteria evidência que o tornaria um crente?
– Nenhuma em que eu possa pensar – Zeb respondeu.
– Então suponho que simplesmente terei de esperar até que as circunstâncias o provem a
você – Kadarin disse. – Mas devo dizer, Zeb, me perturba muito que me considere desonesto.
Eu não minto; ninguém do meu povo mente. Somos, a maior parte de nós, dotados com
telepatia suficiente para saber quando mentem para nós.
Ele caiu em silêncio, e mais uma vez Zeb ouviu aquela voz na sua cabeça. Suponho que eu não
deveria me surpreender por esses cego-mentais não acreditarem em nada que não possam ver ou tocar.
O ar estava cheio do aroma pesado das flores de kireseth. Ao redor deles, Zeb viu as
pequenas criaturas que viviam na grama e nas árvores enquanto também elas eram afetadas
pelo pólen. Um esquilo – ou melhor, alguma que quase se parecia com um esquilo – desceu
despreocupado de uma arvore na beira do bosque na sua frente. Descobriu-se a sentir o que o
pequeno animal sentia.
Agora aquilo era distintamente estranho, pois se resumia a sensações, sem nenhum
pensamento verdadeiro, e não era algo que ele seria capaz de inventar sozinho. A criatura
estava desfrutando do dia quente, do aroma pesado e afrodisíaco das flores no ar; as resinas
pesadas trabalhavam de forma diferente no cérebro da pequena criatura. Ela perdera qualquer
traço de medo, a euforia e desorientação que deveriam preocupá-la não a incomodavam em
absoluto, e seu único objetivo no momento era encontrar uma fêmea. E mesmo isso não era
tão importante; se nenhuma fêmea do tamanho certo – muito menos da espécie – se
encontrasse próxima, a criatura simplesmente rolaria na grama e brincaria feito um gatinho
com os raios de sol...
Este era um belo planeta. A princípio, Zeb não gostara muito com ele, achava-o muito frio,
com muito vento, muitas montanhas. Havia algo nele que seu pai costumava chamar
jocosamente de “maluquice ecológica”, algo que seu pai partilhava, e ele simplesmente não
havia se acostumado ao planeta até agora.
Mas agora o planeta partilhava-se com ele, e ele compreendia como gostava dele. Quase se
esquecera dessa outra parte de si, tendo passado tanto tempo no espaço. Mas agora, esse pólen
despertara tudo isso novamente; colocara-o em contato com sua verdadeira mente, seu eu mais
profundo. E ele queria ser parte desse mundo, como nunca quisera ser parte de nenhum outro,
nem mesmo a Terra, há muito perdida. Quando precisou vender o rancho do avô para pagar
impostos, seu coração fora partido, e ele voltara suas costas à Terra e se dirigira diretamente ao
espaço. Mas agora esse lugar acabara de abrir-se para ele, e ele sentia como se estivesse se
oferecendo para ocupar o lugar de seu amor há muito perdido.
E também havia pessoas que precisavam dele aqui. Felicia, e o bebê Thyra. Kermiac
Aldaran não viveria para sempre, e nem sua senhora – e além disso, a pequena Thyra precisava
de um papai, e Felicia era uma dessas criaturas gentis que precisavam de um marido que as
protegesse. Nem todas as mulheres eram assim, e isso não perturbava Zeb; gostava de ver uma
mulher orgulhosa e independente em operação da mesma forma que gostava de ver um cavalo
correndo livre, sem necessidade de dominá-lo com rédeas e sela. Mas para ele... bem, ele
precisava ser o protetor. E Felicia precisava de alguém como ele.
Será por isso que Kadarin o desafiara a fazer isso? Ele agia como o irmão mais velho de
Felicia às vezes; será que tentava fazer com que Zeb mudasse de opinião? Era possível; com
certeza, se ele não o tivesse feito, era muito provável que Zeb teria terminado seu trabalho
aqui, e partido, tal como fizera em cada outro planeta em que estivera.
Mas agora – desta vez, ele criara raízes; ficaria. E ele acreditava que o planeta ao seu redor
sentisse sua aceitação, e o aceitasse por sua vez...
Sim, ele ficaria; ficaria como Elizabeth e David, e seus filhos (e os de Felicia) cresceriam
para brincar com os filhos deles, todos darkovanos juntos.
A campina à sua frente oscilou e desapareceu, e no seu lugar ele subitamente viu os muros
do castelo arruinado para onde os Lornes se dirigiram. Mas o lugar não estava deserto. Estava
repleto de gente do tipo que tornou partes do Velho Oeste impossíveis de viver para homens
honestos. Bandidos, era isso o que eram...
E então ele viu, para seu absoluto terror, que eles tinham aprisionado David e Elizabeth.
Eles precisavam voltar. Tinham de conseguir ajuda! E tinham de fazê-lo antes que fosse
tarde demais.
– Bob – ele disse decididamente – Preciso voltar!
Kadarin levantou preguiçosamente.
– Como quiser.

Zeb ouviu o relatório do comandante MacAran, sem nenhum sinal de que precisava dormir
e sustentava-se a base de adrenalina. Agora que alguma coisa estava sendo feita, a calma pré-
missão que sempre o dominava tranquilizara seus nervos. O assunto estava fora das suas mãos
agora, e naquelas de seus superiores. Não precisava mais tomar nenhuma decisão; apenas
seguir ordens.
Estava escuro agora; eles atacariam ao amanhecer.
– Muito bem, até onde podemos dizer, não existem entradas traseiras para este lugar, nem
entradas secretas – murmurou Ralph MacAran, que fora encarregado da equipe de resgate. –
Mas, apenas para termos certeza.... quero que a aeronave desça exatamente sobre eles, a fim de
que ninguém possa fugir com os Lornes furtivamente.
Ele já estava em choque – todos estavam – pelas aterrorizantes mortes de Ysaye e Ryan
Evans. E então, Zeb e aquele nativo, Kadarin, surgiram no horizonte fazendo um estardalhaço,
tendo cavalgado seus cavalos à exaustão, com isto. Um desastre terrível após o outro.
Zeb Scott, que seria o piloto, anuiu concisamente, e dirigiu-se à aeronave. Dentro de
momentos ela decolou, e o plano era descê-la até o nível do topo das arvores assim que
MacAran desse o sinal de ataque.
– O restante de vocês, espalhem-se e cubram a entrada; Kelly, você anda trabalhando com
Lorne e fala o idioma melhor do que ninguém, de modo que quando estivermos posicionados,
pegue o megafone e diga que estão cercados. Diga para se renderem, dê-lhes alguns minutos, e
se eles não saírem sob uma bandeira de paz dentro de cinco minutos, afaste-se. Eu mandarei
algumas bombas de fumaça sobre os muros, apenas como advertência. Se isso não funcionar...
bem, então caberá a Zeb e a equipe SWAT. E a fim de impedi-los de sair por trás, jogarei
algumas granadas incendiárias na floresta.
Ele deu tapinhas no lançador de mísseis de mão, e o comandante Britton franziu o cenho.
– Acha mesmo que é uma boa ideia? – ele indagou. – E se eles ameaçarem matar os Lornes?
MacAran deu de ombros.
– É a política do Império; não pagamos resgates, não fazemos negociações com terroristas e
sequestradores, e se eles matarem os reféns, nos os matamos.
Britton fez uma careta, mas não disse nada.
Aurora Lakshman fez um gesto de protesto.
– Ralph, eu não gosto da ideia de atingir essa gente que não sabe nada sobre explosivos com
um carregamento de granadas. É o tipo de coisa que as pessoas na Terra frequentemente
faziam com nações subdesenvolvidas no passado... temos uma reputação por causa disso.
Desejamos mesmo fazer isso aqui e agora?
– Não passa de um estrondo e muita fumaça, é só para assustá-los, e se eles forem espertos,
vão se render imediatamente – MacAran respondeu. – E eu não faria isso se tivéssemos
alternativas. Mas não temos, e eu tenho minhas ordens.
– E se eles ainda assim não se renderem? – Aurora indagou. – E eles matarem mesmo David e
Elizabeth? Vai incinerá-los? Por que não se limita a ignorar as exigências... fingir que não nos
importamos? Sem dúvida, mais cedo ou mais tarde eles libertarão os Lornes!
– Se vocês os abandonarem – Kadarin interrompeu – os bandidos quase com certeza irão
matá-los, uma vez que ninguém parece interessado em pagar o resgate. Não é do interesse
deles libertar alguém que sabe quem eles são.
MacAran franziu o rosto enquanto ouvia o comentário não requisitado; se dependesse dele,
Kadarin não iria junto. Ele ainda não tinha certeza que Kadarin não tinha nada a ver com isso
– afinal, fora o darkovano quem escolhera o lugar onde os Lornes se abrigaram do “Vento
Fantasma”. Embora por que motivo eles precisariam se abrigar contra um vento... bem, não
importava, o que importava era que o envolvimento de Kadarin nisso parecia muito oportuno.
Não podia tirar da cabeça que em algum lugar por trás daquele rosto imperturbável, Kadarin
ria dele.
Ele olhou para o resto de suas tropas; homens fortes, muitos dos quais estiveram em forças
policiais ou outras organizações de combate em diferentes mundos antes de entrarem para o
Serviço.
– Muito bem, pessoal – ele disse afinal – Saiam e posicionem-se. Com sorte, eles acreditarão
em nós e soltarão os Lornes, e tudo isso só convencerá os nativos que nós não pegamos leve
com terroristas.
E se não tivermos sorte, pensou, rezo a Deus para que não respondam ao nosso blefe. E espero que eles
ainda estejam vivos.

Elizabeth sentia muito frio, privada do saco de dormir terráqueo, que havia sido confiscado
pelos salteadores; todas as noites, ela demorava muito para dormir, e para completar seu
descanso era irregular e irrequieto. Sofria de pesadelos todas as noites. E toda manhã, quando
o sol vermelho iluminava os picos das montanhas, e projetava-se de um mar de espessas
nuvens cor-de-rosa e acinzentadas, ela sempre acordava com um caroço no estômago.
Aquela manhã, a quarta manhã de cativeiro, não foi diferente.
Ela abriu a aba da tenda e passou pelo guarda sonolento para o tosco alpendre num canto
do quarto a céu aberto que servia como um banheiro igualmente tosco. Ao se agachar sobre o
recipiente, contraindo-se por causa da náusea, Elizabeth só conseguia pensar como era injusto
que os seus primeiros episódios do mal-estar matinal começassem naquele exato momento.
Durante certa época no passado ignorante existira uma teoria médica de que as mulheres que
sofriam de mal-estar matinal tinham apenas um problema psicológico, que elas secretamente
não queriam estar grávidas.
Uma teoria inventada por médicos homens, pensou. Tal como a teoria que afirmava que
mulheres que sofriam de TPM e outros problemas semelhantes secretamente não queriam ser
mulheres. Ou que elas só queriam atenção.
Bem, essa sem dúvida era a pior forma de obter atenção que ela jamais vira.
Era o quarto dia de cativeiro, e a sua única esperança era que Zeb e Kadarin não tivessem
enlouquecido, ou caído de um penhasco, ou que eles tivessem sido capturados por outros
salteadores. Tinha certeza de que se tal coisa houvesse acontecido com os outros, o líder não
perderia a oportunidade de tripudiar.
Quando seu estômago finalmente se acalmou, ela limpou a boca e cobriu os ombros com
seu casaco, e cambaleou pelo guarda sorridente, de volta para a sua tenda, trêmula. Embora os
salteadores os tivessem alimentados, sentia-se perpetuamente faminta e enregelada. Tinha a
impressão que seu cabelo estava prestes a cair. Achava que era capaz de dar a mão direita por
um bom banho quente.
David havia despertado enquanto ela tropeçava para o banheiro primitivo.
– Você se sente bem, amor? – ele perguntou preocupado enquanto ela atravessava com
certo esforço a aba da tenda.
– Nada que não se resolverá sozinho dentro de alguns meses – ela suspirou, pegando o
copo de água que ele ofereceu, para limpar o gosto azedo da boca. – É a única coisa boa da
gravidez: termina no seu próprio tempo.
– Poderia ser pior – ele disse procurando animá-la. – Imagine sofrer de mal-estar matinal
em gravidade zero.
Ela mexeu os ombros.
– Imagine você; eu prefiro não pensar nessa possibilidade.
Ele a abraçou mais apertado, e ela aninhou-se nos seus braços, procurando se esquentar um
pouco mais.
– Tem certeza de que está bem? – ele insistiu. – Não gosto do fato de você estar doente e
não termos cuidados médicos disponíveis. Já é o terceiro dia seguido em que você vomita o
desjejum.
– Não é não – ela respondeu – porque eu ainda nem tomei o desjejum. E mulheres têm
bebes e enjoo matinal há milhares de anos sem ajuda médica. Eu ficarei bem.
Ele a abraçou mais apertado.
– Queria que eles simplesmente nos deixassem ir... ou alguma coisa. Mas como você não
consegue entrar em contato com Ysaye... não vou ficar na ansiedade.
– Com certeza pelo menos Ysaye está fazendo um escarcéu. Eu nunca fiquei tanto tempo
fora de contato com ela.
Mas David sacudiu a cabeça.
– Nós nos acostumamos à ter esse contato constante, mas antes de aterrissarmos aqui, esse
elo telepático era muito impreciso. E não sabemos como a distância o afeta, de modo que ela
pode presumir que você está muito longe para ser contatada. Ou muito ocupada.
Elizabeth mordeu o lábio e tentou não pensar em como ele tinha razão.
– Mas há também Kadarin e Zeb...
– E Kadarin poderia ter armado isso – David interrompeu. – E mesmo que não tenha feito,
não estou inclinado a colocar muita fé nele. Ele tem um senso de humor demasiado peculiar
para o meu gosto. Pode achar essa situação bastante divertida.
Isso era tão verdadeiro que Elizabeth nem sequer tentou discutir. Ela caiu num melancólico
silencio. Após um tempo – muito tempo – um de seus captores entrou com o que passava por
desjejum; algum tipo de pão mofado e carne seca, e copos mornos daquela bebida local
equivalente ao café.
Era tão insípida quanto todas as outras refeições que eles tiveram, e Elizabeth apanhou um
pedaço do pão e começou a mordiscá-lo, desanimada.
– Queria que eles nos dissessem alguma coisa – ela disse, quebrando o silencio.
– Por exemplo? – David lutava com uma fatia da carne.
– Qualquer coisa – ela disse fervor. – Se eles entraram em contato com Lorde Aldaran ou
não. E se eles o procurarem, e ele fizer uma contagem e simplesmente informar a eles que não
está sentindo falta de ninguém? Aonde isso nos leva?
– Talvez eles compreendam que estávamos dizendo a verdade – disse David, e suspirou. –
Mas só Deus sabe quanto tempo isso pode levar.
Mas uma coisa chamara a atenção de Elizabeth – um som que não existia antes. Ela
inclinou a cabeça para o lado, franzindo o rosto.
– David, você ouve alguma coisa?
Ele parou de mastigar e escutou por um momento.
– Isto é... não, não é o vento, é? – ele disse admirado. – Parece uma aeronave! Não pode
existir uma aeronave nesse planeta que não seja nossa. Liz, eles vieram nos buscar!
Sua voz foi engolfada pelo rugido de uma aeronave pairando baixo sobre os muros e dando
a volta.
– Aqui fala o Capitão Gibbons da espaçonave Minnesota! – rugiu uma voz amplificada de algum
lugar fora dos muros.
– Esse não é o Gibbons. É o Grant Kelly... – disse David, mas Elizabeth o silenciou.
– Vocês estão cercados. Vocês mantêm reféns dois membros da espaçonave Minnesota. Têm cinco minutos
para libertá-los. Não negociaremos; não pagaremos resgate. Se os libertarem, nós nos retiraremos. Se não o
fizerem, usaremos armas contra vocês. Se os ferirem ou matarem, mataremos vocês. Seu tempo começa agora.
– Ótimo! – David gritou, ficando de pé de um pulo. – Isso ensinará a eles!
Elizabeth estava aterrorizada.
– Não! – ela gemeu. – Não podem fazer isso! Eles não sabem que falam sério!
– Então terão de aprender – David respondeu impiedosamente. – Pelo que nossa gente
sabe, já estamos mortos.
Dez minutos se arrastaram; então surgiu o som inconfundível de um lançador de mísseis
portátil, e um cheiro penetrante de fumaça, seguido do rugido da aeronave se aproximando
novamente do nível do topo das árvores, e o som da arma disparando.
A tenda encheu-se de fumaça, obscurecendo tudo. Elizabeth tossiu e se engasgou, e David
ficou mortalmente pálido. Soaram gritos, e as paredes da tenda sacudiram.
Elizabeth atirou-se ao chão da tenda; David jogou-se por cima dela para protegê-la. Os
momentos seguintes foram puto caos; cheio dos gritos de homens e animais, o fedor sufocante
de queimado, e berros de “Fogo! As arvores pegaram fogo!”.
Então um de seus captores abriu a aba da tenda e arrastou os dois para fora, o rosto uma
máscara de terror. Ele atirou-os à sua frente, através da fumaça, na direção do que havia sido o
grande muro do lugar.
E Elizabeth viu, por sobre os muros irregulares, a muralha de chamas onde antiquíssimas
árvores existiram antes.
Elizabeth tossiu e engasgou-se com a fumaça enquanto os bandidos os empurravam para
fora das muralhas e para campo aberto. Ela caminhou aos tropeços, David ao seu lado, muito
embora ela não pudesse ver nada na fumaça espessa que fazia seus olhos lacrimejarem e arder.
Num momento, ela estava nos braços de Aurora Lakshman.
O bandido segurou o braço de David por um momento. O linguista ficou estarrecido pela
profundidade do ódio e amargura no rosto do homem.
– Pensam que nós somos bárbaros – ele disse. – Mas vocês é que não observam a Aliança.
Não podem ser civilizados. Um animal selvagem tem mais morais do que vocês.
Então ele atirou David atrás da esposa, e desapareceu na fumaça.
Ele vai combater o incêndio, David ouviu em sua mente, e voltou-se para encontrar Kadarin
aguardando para acompanhá-lo até a aeronave. Até mesmo um bandido combaterá um incêndio nessas
florestas. E só um louco provocaria um incêndio.
Kadarin acedeu ao perceber o choque de surpresa de David, e voltou-se sombriamente para
conduzi-lo através da fumaça.
Epílogo

Ao se apresentar perante o Conselho do Comyn, Lorill Hastur sentia mais cansaço do que
qualquer outra coisa. Sabia que em circunstâncias normais apenas a ideia de enfrentar tantas
pessoas importantes seria assustadora, mas tudo o que ele sentia era uma enorme exaustão.
Ainda não sabia como tantas coisas puderam ter dado errado, nem tinha ideia do que fazer
para corrigi-las. Talvez não fosse possível fazer qualquer coisa a respeito. O combate ao
incêndio só durara alguns dias, mas ele se sentia anos mais velho.
– Em suma – ele concluiu – embora eu não seja muito maduro ou muito sábio, e embora a
vontade de Hastur não tenha mais força legal do que a de qualquer outro lorde do Comyn,
aconselho que nós tenhamos o mínimo possível a ver com esses terráqueos. Eles ainda se
relacionam intimamente com Aldaran, e todos sabemos que as vontades de Aldaran muitas
vezes contrariam violentamente os melhores interesses dos outros Domínios. Eles não são
pessoas ruins, mas Aldaran é tudo o que conhecem... e aquilo que Aldaran lhes contou a nosso
respeito. Seus costumes diferem tanto dos nossos que eu muitas vezes achei quase inadequado
considerá-los humanos. Mas o pior não é isso. O pior são as armas deles.
Ele fechou os olhos por um instante, tentando esquecer as coisas que havia visto. Tinha ido
ajudar o combate ao fogo, como todos os homens, mulheres e crianças da região. Foi um
pesadelo, e as lembranças custariam para desaparecer.
– Eles possuem armas terríveis que funcionam à distância, numa violação da Aliança. E se
mostram prontos para se valer delas com bem pouca provocação, mesmo existindo outras
saídas. Duvido muito que eles abrissem mão de tais armas de boa vontade.
Houve um murmúrio de incredulidade e Lorill abriu os olhos e fitou-os.
– Acreditem, eu vi essas armas em ação! Testemunhei como acidentalmente botaram fogo
na floresta, um incêndio que demorou três dias e três noites para se extinguir, e que destruiu
duas dúzias de léguas de floresta! Combati esse incêndio pessoalmente, e quando ele terminou
vim diretamente para cá. Embora os terráqueos tenham utilizado suas máquinas e líquidos
especiais para ajudar a controlar o fogo que provocaram, sem os quais o combate às chamas
teria seguramente durado semanas, digo que o melhor é deixarmos essa gente sozinha, pois
eles são muito perigosos para ficar no nosso meio.
– Mas o que diz sua irmã, Leonie? – indagou um homem. – Ela encorajou o contato com
essas pessoas... o que tem ela a dizer a respeito?
– Nada – Lorill respondeu bruscamente. – Ela se encontra em reclusão; deu início ao seu
treinamento como Guardiã em Arilinn, e não tem permissão para se comunicar com a família.
E de qualquer modo, senhores, acredito que os desejos de uma menina não são nada em
comparação com a violência de homens capazes de violar a Aliança.
Ele se sentou o debate teve início, mas Lorill já sabia como ele iria terminar. Ele
prevaleceria... por enquanto. Mas não para sempre.
Leonie estava certa; nem toda a vontade do Comyn poderia manter os terráqueos ao largo
para sempre. E Lorill queria, com uma intensidade dolorosa, poder conversar com ela. Há
poucos dias atrás, acreditava que nada no mundo seria capaz de separar Leonie dele... nem
mesmo a vontade de todas as Guardiãs do mundo.
Continuara a se comunicar com ela até o momento em que saiu de Aldaran para voltar para
casa; dois dias depois, ele se descobrira obrigado a se abrigar de tempestade. Tentou entrar em
contato com Leonie de novo, e tudo com que se deparou foi uma barreira impenetrável.
Então chegaram homens procurando ajuda no combate ao grande incêndio, e antes de ir
embora ele ficou sabendo que foram as armas dos Terranan que haviam causado o incêndio.
Ouvira pessoalmente as histórias das armas deles, que funcionavam à distância. E quando
expressou sua incredulidade, os Terranan fizeram a cortesia de demonstrar essas armas para ele.
Isso fez Lorill saber que precisava desesperadamente falar com Leonie, para descobrir como
os Terranan podiam fazer esse tipo de coisas. Havia continuado a tentar se comunicar com ela,
acreditando que a barreira era obra das Guardiãs e que Leonie não demoraria a vencê-la, mas
no dia seguinte já sabia que aquela ela não havia sido criada pela Guardiã de Arilinn com o
intuito de apartá-lo da irmã, mas uma barreira construída por um trauma intenso e terrível que
Leonie sofrera.
E quando voltou para casa, encontrou uma mensagem que dizia que Leonie não teria
permissão para se comunicar com nenhum parente durante o restante do seu treinamento em
Arilinn. Lorill poderia jurar que nada menor que a morte ou alguma catástrofe poderia separá-
lo de Leonie. E agora receava que tal catástrofe houvesse ocorrido.
Esfregou os olhos fatigados e assistiu enquanto os últimos lordes do Domínio registravam
os seus votos.
Ele vencera. Era o homem mais jovem do Conselho, e a sua vontade prevalecera. Não
haveria contato com os Terranan. Eles continuariam em isolamento involuntário nas Hellers.
Em circunstâncias normais, a ideia de tantos homens mais velhos e mais poderosos se
submeterem à sua vontade, sem a menor intervenção do seu pai, seria motivo do maior
orgulho.
Mas a vitória tinha o sabor de poeira e cinzas.

Lista de tradução: http://circulodehali.groups.live.com


Blog: http://mzbuniverse.blogspot.com/

Vous aimerez peut-être aussi