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O abraço de Morpheus

Quem és? Perguntei ao desejo.


Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.
Hilda Hilst

Momento perfeito é o nó que ata todos os fatos da vida, todas as pontas soltas ganham
sentido. É a libertação de todos os tempos, a sintonia da eternidade, sincrônica harmonia,
plenitude, o céu na terra.

Naquela tarde de domingo, raios de sol outonais iluminavam a paisagem de folhas


carmesins e flores despetaladas que cobriam casas vizinhas, perceptível através das frestas de
sua janela fechada.
Eu ainda tentava compreender o que acontecia ali.
Contigo nu entre minhas pernas, meu mundo se despedaçava com sua acusação:
- Como pôde? Durante meu sono!
Teria eu enlouquecido? Imaginara suas ações?
Observava seus olhos em busca de resquícios da alma que me acompanhava segundos
atrás.
Nunca me sentira tão exposta.
Conversamos, porém minha mente tomada pela guerra entre a insanidade factual e
minha sensatez usual mal podia lhe enxergar.
Caminhei, o ar me faltava. Como pude violar nossa amizade? Como, em sã
consciência, permiti-me tal desatino? A que ponto cheguei? Seria compreensível por tanto
sentimento represado? Não, não era.
Nada justifica tamanha infração.
Meu coração em frangalhos não me permitia pensar, doía-me a possibilidade de
condenar-me à sua ausência. Feria-me ainda mais minha traição contra o que sentia e pensava.
Eu jamais me aproveitaria de suas condições para me satisfazer um capricho.
As lágrimas não rolavam, magoavam-me até os ossos, tiravam-me os sonhos e a
esperança de que tudo não passasse de um pesadelo.
Não era.
Anoitecia.
Em meio ao turbilhão, perdia-me de mim, mas, pela primeira vez em tantos outonos,
justamente quando me era imprescindível, sua complacência me faltava.
Estava igualmente atordoado. Examinava os fatos que nos conduziram àquela
conjuntura. Torturavam-me sua indignação e minha culpa na qual acreditara.
Com o tempo, pude esquadrinhar o trajeto do mito ali concretizado.
Um beijo inesperado no rosto, a admiração por sua personalidade perfurou meu peito e
fez-se paixão.
Uma confissão, lisonja retribuída com exaltação à minha forma singular.
Maturação, a saudade definia pouco a pouco minha afeição.
Um beijo no ombro, resposta à provocação em teu colo, assento passageiro na carona
de um amigo.
Sorrisos instintivos se abriam com a possibilidade de sua presença.
Visitas ao café, torpor de minhas horas livres.
Eventos culturais, um erudito e uma leiga.
Filmes detestados tornavam-se um bom programa ao seu lado.
Piromaníacos anônimos na exposição do Parque da Luz em companhias inusitadas.
Trilhas na escuridão pelo centro da cidade.
Sons revelados em palcos sem público.
Peregrinações infinitas sob a sua proteção.
Prantos noturnos apaziguados por sua coberta.
Noites de lamúria e sarcasmo, maldizendo relações recém despedaçadas.
Novos amores, ora seus, ora meus.
Jantares e coquetéis por presentes artesanais, troca de olhares cúmplices.
Singelas alegrias compartilhadas.
Não se despedia:
- Fique um pouco mais...
Abraçava-me, imobilizando-me a partida.
Tantos agrados correspondidos, carências simultâneas.
Mimos e cuidados, embriaguez.
Diálogos filosóficos na madrugada entrelaçavam nosso percurso, inconscientes das
tramas do acaso.
Migalhas.
Pó jogado ao vento munido de seu perfume alimentava meu vício em você. Minha
fixação aumentava ao mimetizar seu estilo, sua fala, seus trejeitos, seus gostos...
- Pura ilusão.
Condenava a cada declaração.
Tateei, então, a realidade visceral do senso comum.
O primeiro amor foi-se com desdém.
A cara metade, com descuido.
A alma gêmea, com desgosto.
O príncipe partiu-se com seu encanto.
O amigo de infância, com suas crises.
O amor adolescente, com sua meninice.
O amor mais puro, com insegurança.
O cúmplice, com sua parceira.
Restava-me você, minha esperança.
Resisti a seus trejeitos, seus conselhos, seu bom gosto.
Drinques e pratos cheios, picantes.
Danças excêntricas na estação e sua maneira inoportuna de chamar a atenção.
Nem tanto às suas aventuras, intensidade e carisma.
Caricatura dos bons e velhos heróis incompreendidos.
Um verdadeiro homem de letras e boêmio inveterado.
Cedi à carícia de sua voz, ao seu estilo envolvente donjuanesco, às suas travessuras,
aos seus toques quase involuntários, à sua sincronicidade.
Abandonei-me em suas mãos sem que desconfiasse.
Antecedia seus passos para disfarçar a perseguição.
Analisava com cautela suas amizades, agora minhas.
Acreditava em seu olhar crítico e coração puro.
Não me convencia do cínico e manipulador.
Escutava para me aproximar.
Negava a complexidade de nossas diferenças.
Ignorava suas advertências.
Excedia-me em deleite.
Espreitava-me o delírio.
Inebria.
Deitamo-nos lado a lado como de costume.
Aconchego-me em seus braços, zelo seu sono.
Observo-lhe a paz, o silêncio, a respiração, a pele, o aroma...
Odor incansável de suas cobertas, livros amarelados, tabaco, suavidade, calor.
Pescoço exposto, convidativo à overdose.
Inspiro, suspiro, paixão, utopia...
Utopia? Um beijo.
Imaginação? Por favor, não.
Não é.
Lágrimas felizes, mãos trêmulas. Conquista etérea. Psique desgovernada.
Momento perfeito.
Sem hesitar, entrelaça-me e me domina.
Ígneo desfecho de nossa canção.
A volúpia de nossas almas.
Toca o telefone.
Desconexão, distância.
Despertar.
- Como pôde? Durante meu sono!
- Como poderia eu saber de seu distúrbio?
Se me perguntar novamente o que houve em nosso crepúsculo, direi apenas:
“adormecemos e sonhamos”, pois estávamos sós, se fôssemos dois, seria real. Em mim habita
a marca de Icarus.
Quanto aos grãos em brasa com os quais me nutria enquanto alcoolizado ou
sonâmbulo, preferi o abraço de Iemanjá, águas sóbrias para libertar-te de minha moléstia.

A defasagem entre a magnitude do amor e a pequenez do mundo impossibilita o


arrebatamento sem extinção, o paraíso sem inferno. Esse mundo de duplos turva a realidade,
equilíbrio de bem e mal, terno e rude, alma e corpo, pensar e sentir, vida e morte.
O vazio natural, misterioso e assustador como a efemeridade de um tufão, a ausência
de egos e significados, é a lacuna na qual reside nossa existência, imperceptível, indescritível,
inominável.
Assim, minha vida acontecia enquanto você dormia.

Sophie Siegfried

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