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J. J. Gomes Canotilho1
Em primeiro lugar, pela sua proximidade dialógica, temos em mente a excelente análise
feia pelo Ex-Presidente deste Tribunal – o Dr. José Manuel Cardoso da Costa – na
“República do Direito” em Coimbra. Aí se aflorou, com conhecimento de causa, a análise
política de alguns acórdãos do Tribunal Constitucional.
Em segundo lugar, cumpre fazer referência à incomodidade que vimos sentindo com
alguns dos nossos colegas brasileiros, firmemente convictos de que é possível e
desejável a fiscalização judicial das políticas públicas.
Por último, assinalaremos o provável impacto que relativamente ao nosso tema irá
produzir a constitucionalização das políticas públicas na Constituição da União Europeia.
Quem se der ao trabalho de ler o prolixo Projecto de Constituição verificará, com efeito,
que nele se positivaram as políticas e acções internas da União (mercado interno, livre
circulação de mercadorias, capitais e pagamentos, regras de concorrência, política
económica, monetária, política social, coesão económica, social e territorial, etc.). A este
propósito, não deixa de ser estranha a décálage entre as propostas de revisão da
Constituição Portuguesa ultimamente difundidas pela comunicação social e as propostas
da Constituição Europeia. As primeiras retomaram a “questão constitucional” debatida há
vinte anos e procedem a um “expurgo” ou “desbaste” revisionista do texto de Abril. As
segundas, transmutam ou pretendem transmutar o acquis comunautaire – convencional,
regulamentar e jurisprudencial – em regras e princípios constitucionais europeus.
§§2º Jurisprudências
A leitura das sentenças que o Tribunal Constitucional proferiu ao longo destes vintes anos
denota claramente as mudanças na sua composição, mas revela, igualmente, algumas
constâncias que tentarei sistematizar.
1. Pragmatismo jurisprudencial
Talvez se possa dizer que o Tribunal assumiu um papel regulativo e recentrador das
controvérsias jurídico-constitucionais e político-constitucionais, reduzindo as
complexidades do político e da política através de duas formas metodicamente
pragmáticas:
(1) através da rejeição, ou, pelo menos, prudência quanto à utilização dos amparos
maiêuticos das grandes teorias” (“discurso racional”, “razão pública”, “agir comunicativo”,
“teoria da justiça, “teorias referenciais”);
(1) a encontrar uma solução prática, operacional, aceitável e credível para o problema
constitucional concreto e apenas para este;
3. Jurisprudência contextualista
Num interessante artigo de Doris Luke intitulado “Doxa e Prudentia: conflitos de
racionalidade e problemas de comunicação como paradoxos jurídicos da
profissionalidade”, colhemos um conceito que se nos afigura apropriado: o da
jurisprudência multicontextual. Ela aponta basicamente para a necessidade e
indispensabilidade de os profissionais do direito estarem dentro das situações da vida e
das experiências primárias. Se o Tribunal Constitucional, pela sua própria natureza e
funções, não está imerso na vida, nem por isso pode deixar de estar atento às sugestões
da jurisprudência multicontextual. Algumas sentenças são reveladoras desta articulação
da prudentia com a aceitação dóxica (ex.: jurisprudência sobre transmissão de
arrendamento no caso de existência de filhos menores, extensão de regime da lei dos
cônjuges às uniões de acto com filhos, jurisprudência sobre tratamento de nacionais e
não nacionais para efeito de aposentação).
4. Jurisprudência precedentalista
A fórmula literal indicia já o sentido: jurisprudência precedentalista é aquela que recorre
sistematicamente a remissões e reenvios para sentenças anteriores onde foram
discutidos as mesmas questões ou questões semelhantes.
Este tipo de jurisprudência merece sérias reticências à doutrina. Num trabalho publicado
em 1984, um jurista alemão (R. Schmidt) chamava a atenção para a prática profissional
dos juízes. Ter-se-ia instalado um positivismo jurisprudencial jurisdicional ancorado num
precedentalismo metodico judicialmente fechado. Mas de que precedentalismo se trata?
De reenvio para leading cases que se transformaram em casos de arte jurisprudencial?
Não! De “assentos” ou de uniformizações de jurisprudência, tendencialmente inevitáveis e
desejáveis? Não! O que se passa é um pragmatismo do caso baseado noutros “casos”. A
remissão de “sentença para sentenças”, o “reenvio de acórdãos para acórdãos”poderá ser
um meio de “descarga” da inflação processual, mas pode transformar-se também na
morte da própria jurisprudência. Se o teoreticismo jurisprudencial corre o risco de uma
scientia sem prudentia, o positivismo precedentista coloca-nos perante os perigos de uma
prudentia sem scientia.
§§3º
Políticas
O Tribunal Constitucional fez política por linhas do direito. Formulamos assim a segunda
intriga. Porquê falar em políticas? As razões já foram atrás explicitadas quando aludimos
à fala de Cardoso da Costa, à incomunicabilidade com a doutrina brasileira em torno da
fiscalização da constitucionalidade das políticas públicas e aos desafios da
constitucionalização das políticas comunitárias no Projecto de Constituição Europeia. O
que se segue não é mais do que uma observação sobre estas observações.
Não deixa de ser intrigante que o Tribunal tenha feito tanta política – e “alta política
constitucional” – sem ser crucificado (salvo pelos críticos do “bloqueio”) no diálogo
intersubjectivo da comunidade jurídica. É certo que a doutrina e o próprio Tribunal já
tinham dedicado particular atenção aos problemas de legitimidade e legitimação da justiça
constitucional.
Regressemos então à nossa intriga: qual a razão de o Tribunal ter feito política chegando
mesmo aos limites da revisão constitucional por via jurisdicional, ou, pelo menos
avançando sugestões de desenvolvimento constitucional, sem que a doutrina
constitucional tenha dedicado trabalhos à ocultação discursiva, retórica e metódica do
controlo jurídicoconstitucional de políticas públicas?
Uma das razões é seguramente a de que a discussão dessas políticas estava sujeita a
um princípio jurídico-constitucional incontornável: a limitação do controlo a actos
normativos. Ao deslocar-se o problema para a inconstitucionalidade da norma e não das
políticas públicas, acabava-se por discutir e dar centralidade decisória a temas como os
de “reserva de lei” e “reserva de decreto-lei”, competência da Assembleia” e “competência
do governo”, “lei abstracta” e “lei medida”, “separação de poderes” e “núcleo essencial de
direitos”, ou seja, temas de grande relevância jurídico-constitucional e jurídico-dogmática,
mas tendencialmente ocultadores da natureza de political question dos problemas a
decidir.
Acresce que - e isto nem de propósito mas a propósito – as questões políticas das
políticas públicas constituíam verdadeiros tabus políticos. O Tribunal Constitucional, ao
discutir temas tão politicamente sensíveis como o das “taxas moderadoras” dos serviços
de saúde, o da “actualização de propinas” do ensino superior, o da liberalização do
comércio farmacêutico, nunca passou dos direitos às políticas. Por mais que fosse
evidente que law is politics e law is economics e que as normas garantidoras de direitos
sociais, económicos e culturais traziam acoplados direitos sociais e políticas públicas, o
problema era sempre o de conformação, modelação e restrição normativa de direitos
fundamentais e não o de controlo de políticas públicas concretizadoras destes direitos.
Além disso, como a Constituição deixava pouca liberdade de conformação ao poder
político-legislativo ao consagrar os esquemas organizativos e funcionais da realização das
políticas (direito à saúde realizado através de um serviço nacional de saúde universal e
gratuito, direito ao ensino mediante uma política de democratização do ensino baseada na
gratuitidade progressiva dos vários graus de ensino, direito à segurança social com base
num sistema nacional e unificado de segurança social), compreende-se que o Tribunal
Constitucional tivesse de emprestar força normativa à Constituição em vez de se
empenhar numa insegura discussão sobre políticas públicas. A consagração concreta de
políticas de direito implicava um mandato constitucional de optimização dos direitos
através de uma política predeterminada com a consequente restrição da liberdade
conformadora do legislador e a entrada do controlo das políticas no da constitucionalidade
ou da inconstitucionalidade. A forma como o Tribunal Constitucional português aborda
estas questões é uma verdadeira ars judicandi. Vejamos porquê. O Tribunal não podia
alargar as dimensões multicontextuais da sua jurisprudência, invocando a pluralidade
racional ou a racionalidade plural de mundos parciais como a economia, o ensino e a
ciência. Em linguagem mais sofisticada, o Tribunal não podia invocar as exigências de
responsividade e as dimensões de reflexividade incontornavelmente presentes nas
políticas constitucionais de direitos.
Nem sempre, porém, o Tribunal Constitucional abordou o problema das políticas públicas
em termos jurídico-constitucionalmente aceitáveis. Para darmos um exemplo basta referir
os acórdãos sobre a política pública de ensino concretamente incidentes sobre o ensino
de religião e moral católicas nas escolas superiores de educação e nos centros integrados
de formação de professores das universidades (Acs. Nº 174/93). Além de sustentar teses
jurídico-dogmáticas manifestamente insustentáveis (como a da exigência de lei de bases
quanto a regimes jurídicos dela carecidos apenas quando se trata de regimes inovatórios,
o que possibilitou a repristinação de normas corporativas inconstitucionais, o Tribunal
Constitucional radicalizou o multicontextualismo fazendo apelo a critérios sociológicos em
vez de recorrer aos princípios constitucionais (princípio de separação, princípio da
neutralidade, princípio de não identificação). A nosso ver, o Tribunal perdeu aqui uma boa
ocasião para recortar com profundidade as incidências destes princípios, que, note-se,
não tinham de conduzir a um wall of separation entre o Estado e as Igrejas, mas sim a um
recorte material da neutralidade confessional do Estado e da neutralidade política das
Igrejas e Confissões Religiosas. Acresce que, em termos de políticas públicas, teria sido
importante saber como é que um “direito de liberdade” é camufladamente transmutado em
direito a prestações. Mesmo assim, é com grande expectativa que aguardamos a revisão
da Concordata para sabermos se, também, aqui, o Tribunal Constitucional operou ma
verdadeira mutação constitucional através da interpretação.
§§4º
Saudações