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Da Reflexão na Essência da
Ação a uma Prática Reflexiva
Se a situação for definida por sua causa e seus desafios mais que por uma
unidade de tempo e lugar, ela pode se desenrolar de forma intermitente, às
vezes em múltiplos cenários. De repente, entre seus momentos mais intensos,
podemos observar períodos de latência, durante os quais o ator pode refletir
com mais tranqüilidade sobre o que aconteceu após as operações. Nesse caso,
estamos falando de uma reflexão na ação ou sobre a ação? A distinção não
resiste a uma análise mais profunda. Propomos que se distinga:
lho realizado, pode haver uma reflexão durante a ação quando o fluxo
dos acontecimentos não se interrompe e impede uma verdadeira “para-
da na ação” (Pelletier, 1995). Desse modo, a não-intervenção também é
uma forma de ação, já que essa atitude influenciará, embora de outra
forma, o curso dos acontecimentos. Se não decidimos nada, deixamos a
situação evoluir e talvez piorar. Assim, a reflexão na ação tem de ser
rápida; ela guia um processo de “decisão” sem a possibilidade de recor-
rer a opiniões alheias nem de “pedir um tempo”, como ocorre com os
jogadores de basquete durante um jogo.
Esse processo pode levar à decisão de não haver intervenção imediata
a fim de que haja tempo de refletir com mais tranqüilidade. Isto é o que
Pelletier (1995) sugere aos administradores, invocando um “saber de ina-
ção” que pode ser interpretado como uma forma de sabedoria incorpora-
da ao habitus, o que resulta no adiamento da decisão. Nem todas as inde-
cisões são fatais. Algumas situações justificam o postergar de uma respos-
ta. O professor, quando sente que uma ação rápida demais não seria ade-
quada, tendo em vista que ele está sob o império da emoção ou que não
possui todos os elementos de apreciação para tomar uma decisão com
pleno conhecimento de causa, por vezes, pode dizer abertamente aos alu-
nos: “Não sei. Vou refletir. Amanhã lhes direi minha decisão”. Em outras
situações, esse pensamento não é manifestado em voz alta.
Na sala de aula, alguns comportamentos só se tornam problemáticos
quando são repetitivos; por exemplo, tagarelice crônica, atrasos regulares,
preguiça de trabalhar, agressão constante a um colega, impertinências ha-
bituais. Desse modo, a decisão não se refere a uma situação singular, mas
a uma série de situações semelhantes, o que nos dá algum tempo para
formarmos uma opinião e considerarmos diferentes estratégias. Uma im-
portante parcela da reflexão na ação induz-nos a decidir apenas se deve-
mos agir de forma imediata ou postergar a ação para que possamos refle-
tir mais tranqüilamente.
No caso de se considerar a urgência de uma decisão ou o seu adia-
mento, os profissionais devem desenvolver uma capacidade reflexiva que
possa ser mobilizada “na urgência e na incerteza” (Perrenoud, 1996c):
Mesmo quando a ação presente é breve, os atores devem ser treinados a pensar
naquilo que farão. Entre trocas de bola que duram apenas frações de segundo,
um bom tenista aprende a refletir para planejar a próxima jogada. Ele tergiver-
sa um momento, e seu jogo só melhora se ele consegue avaliar corretamente e
no tempo de reflexão disponível e integra sua reflexão ao desenrolar normal da
ação [...]. De fato, nossa concepção da arte da prática deveria reservar um lugar
central às formas pelas quais os profissionais aprendem a criar oportunidades
de refletir durante a ação (Schön, 1996, p. 332).
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plo, dispensar um aluno da aula de educação física que não se sente bem
ou suspeitar do trabalho entregue por outro. A reflexão sobre o que ocor-
reu ou ocorrerá durante a aula ocupa, de forma quase planejada, grande
parte do tempo livre dos professores, seja nos congestionamentos de trân-
sito, no momento do banho, seja em conversas com colegas ou amigos.
A pressão “física” dos alunos é menos forte nesses momentos, mas, na
verdade, um professor dispõe de pouco tempo para repensar todas as ações
passadas, presentes ou futuras, as quais mereceriam uma atenção maior.
Mesmo distante da sala de aula, ele pode ter uma sensação de urgência,
de zapping insatisfatório entre diversos problemas, com a frustração de
não poder chegar à conclusão de nenhuma hipótese enquanto lê, discute
ou forma-se...
Por outro lado, a reflexão sobre a ação renova-se constantemente.
Nada é tão efêmero quanto as interações e os incidentes críticos em uma
sala de aula. Todos os dias, novos elementos assumem o papel de protago-
nistas. Dessa forma, na maior parte das vezes, a reflexão sobre a ação é
interrompida após ter sido iniciada, devido ao fluxo dos acontecimentos,
os quais levam a outras decisões e reflexões – e estas, por sua vez, também
são substituídas por fatos mais atuais. A imprensa diária é uma excelente
metáfora do que vivencia um profissional imerso na ação: os aconteci-
mentos mais recentes sempre tomam o lugar dos anteriores.
Em contrapartida, podemos nos perguntar: não haverá situações e
ações que se repetem, sobre as quais poderíamos refletir como se fossem
objetos duradouros ou mesmo permanentes? Sim, mas, então, o profissio-
nal passa para outro tipo de registro, que é o da reflexão sobre as estrutu-
ras relativamente estáveis de sua própria ação e sobre os sistemas de ação
coletiva dos quais participa.
Com efeito, as ações não se sucedem por acaso, mas repetem-se e aplicam-se de
forma semelhante às situações comparáveis. De forma mais precisa, elas se re-
produzem como se, aos mesmos interesses, correspondessem situações análo-
gas; porém, elas se diferenciam ou se combinam em um novo arranjo se as
necessidades ou as situações mudam. Vamos denominar esquemas de ação tudo
aquilo que, em uma ação, pode ser transposto, generalizado ou diferenciado de
uma situação com relação à seguinte, ou seja, tudo o que existe de comum nas
diversas repetições ou aplicações da mesma ação (Piaget, 1973, p. 23).
Ou ainda:
dos alunos ou a responsabilizar seus pais por sua conduta (atrasos, lições
de casa não-feitas, indisciplina).
Essa reflexão sobre seus esquemas de ação resulta da tomada de cons-
ciência do caráter repetitivo de algumas reações e de algumas seqüências,
ou seja, da existência de cenários que se reproduzem em situações seme-
lhantes. Essa permanência é uma fonte de identidade, mas também de
insatisfação, fazendo com que o ator se torne muito desconfiado, impulsi-
vo, tímido, ansioso, ingênuo, lento, cheio de veleidades ou irritável...
Em geral, a reflexão de um profissional sobre seus esquemas de ação
tem origem em casos concretos; no entanto, ele tenta ultrapassá-los para
verificar que disposições estáveis explicam por que chegou onde está; por
exemplo, um confronto eterno com um aluno que o professor considera
rebelde ou preguiçoso. A reflexão sobre uma ou sobre várias ações singu-
lares, mas com a mesma estrutura, acaba, de forma talvez aleatória, na
tomada de consciência de uma forma estável e, às vezes, rígida de ser, de
pensar e de agir, contrária ao interesse do ator.
Nesse caso, o desafio não se resume a agir de forma diferente na
próxima vez que uma situação semelhante ocorrer, mas a se transformar –
em alguns aspectos – em alguém diferente. Vimos que da reflexão no calor
da ação, mais centrada no sucesso de curto prazo, passamos, através de
sucessivas etapas, a uma reflexão do sujeito sobre si mesmo, sobre sua
história de vida, sobre sua formação, sobre sua identidade pessoal ou pro-
fissional e sobre seus projetos.
Além disso, destacamos que essa reflexão torna-se cada vez mais difí-
cil devido à fragilidade de uma parte do habitus aos olhos do ator, bem
como a suas ambivalências diante da tomada de consciência. O desenvol-
vimento dos métodos de explicitação (Vermersch, 1994) indica os limites
da reflexão selvagem e da tomada de consciência voluntária.
A reflexão sobre a própria ação e sobre os esquemas de ação motiva o
ator a inserir-se em sistemas sociais e a relacionar-se com os outros. Todos
nós participamos de sistemas de ação coletiva. Aportamos nossos habitus a
esses sistemas, que se enriquecem, empobrecem ou diferenciam com a
interação, para que seja possível existir junto com os outros, de forma
relativamente estável e harmônica. Bourdieu (1980) introduziu a idéia de
uma orquestração dos habitus. Ela explica por que é difícil, sozinho, o pro-
fissional promover mudanças e justifica as abordagens sistêmicas da tera-
pia e da mudança.
Devido ao seu papel, ao seu saber, à sua responsabilidade ao ministar
uma aula, ao tipo de contrato e à relação que ele privilegia, o professor
tem mais poder que os alunos no sistema de ação coletiva; porém, não é o
único dono dele. Por outro lado, seu habitus é fruto do que vivenciou e
ainda vivencia em sua classe atual, em outras classes ou em diversos gru-
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• problema a resolver;
• crise a solucionar;
• decisão a tomar;
• ajuste do funcionamento;
• auto-avaliação da ação;
• justificativa frente a um terceiro;
• reorganização das próprias categorias mentais;
• vontade de compreender o que está acontecendo;
• frustração ou raiva a superar;
• prazer a ser salvaguardado a todo custo;
• luta contra a rotina ou contra o tédio;
• busca de sentido;
• desejo de manter-se por meio da análise;
• formação, construção de saberes;
• busca de identidade;
• ajuste das relações com o outro;
• trabalho em equipe;
• prestação de contas.
• conflito;
• desvio, indisciplina;
• agitação da turma;
• dificuldades de aprendizagem;
• apatia, falta de participação;
• atividade improdutiva;
• atividade que não alcança seu objetivo;
• resistência dos alunos;
• planejamento que não pode ser aplicado;
• resultados de uma prova;
• tempo perdido, desorganização;
• momento de pânico;
• momento de cólera;
• momento de cansaço ou desgosto;
• momento de tristeza ou depressão;
• injustiça inaceitável;
• elementos que surgiram na reunião do conselho de classe;
• chegada de um visitante;
• chegada de um novo aluno;
• boletins a serem preenchidos;
• conselho de orientação a ser dado;
• pedido de ajuda;
• formação desestabilizadora;
• discussão em grupo;
• conversa com alunos;
• conversa com colegas;
• conversa com terceiros;
• entrevista com pais.
Sem dúvida, cada pessoa reflete de modo espontâneo sobre sua práti-
ca; porém, se esse questionamento não for metódico nem regular, não vai
conduzir necessariamente a tomadas de consciência nem a mudanças. Todo
professor principiante reflete para garantir sua sobrevivência (Holborn,
Wideen e Andrews, 1992; Woods, 1997); depois, à velocidade de cruzeiro,
para navegar um pouco acima da linha de flutuação e, por fim, às vezes,
para realizar grandes ambições. Essa reflexão espontânea não o transfor-
ma em um profissional reflexivo no sentido utilizado por Schön (1983,
1987, 1991) ou St. Arnaud (1992).
Um “professor reflexivo” não pára de refletir a partir do momento em
que consegue sobreviver na sala de aula, no momento em que consegue
entender melhor sua tarefa e em que sua angústia diminui. Ele continua
progredindo em sua profissão mesmo quando não passa por dificuldades
e nem por situações de crise, por prazer ou porque não o pode evitar, pois
a reflexão transformou-se em uma forma de identidade e de satisfação
*
N. de RT. Significa “Pensar de boca cheia”.
44 Philippe Perrenoud