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Universidade Federal Fluminense (UFF)

Departamento de Filosofia (GFL)

1° Capítulo do TCC

Gianluca Vilela

16/02/2018

1. Apresentação da genealogia do poder de Michel Foucault

1.1. Introdução

Com frequência, os comentadores da obra de Michel Foucault dividem o seu


pensamento em três fases: a arqueologia do saber (década de 1960), a genealogia do poder
(década de 1970) e a genealogia da ética ou genealogia dos modos de subjetivação (década de
1980). Mesmo sabendo que todas as organizações cronológicas ou metodológicas não
correspondem à complexidade do pensamento de Foucault, seguiremos com essas balizas para
refletir especificamente sobre alguns aspectos da temática presente na chamada genealogia do
poder.

Em seu texto de apresentação à coletânea Microfísica do poder (1979), o comentador


Roberto Machado comenta sobre a transição da arqueologia do saber para a genealogia do
poder.1 se deu quando a "questão do poder", que não era um novo tema para Foucault, apareceu
como um deslocamento para o posicionamento teórico e político do pensador francês:

A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pelas análises de Foucault.
Surgiu em determinado momento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação
de objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos primeiros livros,
ao menos não eram explicitamente colocados, complementando o exercício de uma

1 Microfísica do poder (1979) consiste numa coletânea de textos de Michel Foucault e a edição brasileira foi
organizada pelo próprio Roberto Machado, que inclusive escreveu a introdução presente no livro chamada "Por
uma genealogia do poder". Machado escreveu esse texto quando Foucault ainda estava produzindo e avistando
"novos horizontes da genealogia do poder". C.f. MACHADO, 1979, p. VII-XXIII.

1
arqueologia do saber pelo projeto de uma genealogia do poder. (MACHADO, 1979,
p. VII)

Na década de 1970, assim como em todos os seus outros momentos, Foucault possui
afinidades com o pensamento de Friedrich Nietzsche, como é possível perceber através da
utilização da noção "genealogia" para as suas análises histórico-filosóficas sobre a relação
poder-saber.2 Segundo Machado:

É essa análise do porquê dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas
transformações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um
dispositivo político, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará
genealogia. (idem, p. X)

As obras publicadas de Foucault nesse período são poucas comparada à sua fase
anterior.3 Consistem em Vigiar e punir: nascimento da prisão (1975) e A vontade de saber
(1976), primeiro volume da História da sexualidade. Com elas, Foucault está longe de propor
uma "teoria geral do poder". 4 Segundo o comentador José Augusto Guilhon Albuquerque,
"quando trata de maneira mais sistemática do poder, Foucault prefere falar em 'precauções
metodológicas', 'regras', etc., e nunca em teoria". 5

O pensamento de Foucault, cada vez mais distante do caráter sistêmico, não é marcado
por uma filosofia da identidade, como é proposta as reflexões metafísicas da tradição filosófica
ocidental, mas por uma filosofia da diferença. Isso significa que ao invés de buscar um
elemento imutável, permanente e único, ou seja, uma substância do poder, Foucault descreve
a sua analítica a partir da rede de relações que permeia as sociedades modernas, onde reside a
mutabilidade, a impermanência e a variabilidade.

A abordagem genealógica de Foucault não limita o exercício do poder ao Estado, como


a maior parte do pensamento político concebe. Segundo o comentador Antônio C. Maia:

2 Foucault tem um texto chamado "Nietzsche, a genealogia e a história" (1971), onde há uma referência clara da
influência nietzscheana na sua genealogia do poder. Trata-se do único texto que Foucault se dedica
exclusivamente ao pensamento de Nietzsche, onde faz alusão, inclusive, ao prólogo da obra Genealogia da moral
(1887): "A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergaminhos
embaralhados, riscados, várias vezes reescritos." Foucault se demonstra contrário à investigação da "origem" dos
processos históricos assim como Nietzsche. C.f. FOUCAULT, 1979, p. 15.
3 Mesmo que tenha publicado menos livros com relação à década de 1960, Foucault não deixou de ter uma vida

intelectual intensa na década seguinte: editou livros, escreveu prefácios e introduções de livros, produziu artigos,
deu cursos, palestras e conferências, concedeu entrevistas e participou de diálogos e debates. C.f. ALVARES;
FILHO, 1995, p. 199-224.
4 MACHADO, 1979, p. X.
5 ALBUQUERQUE, 1995, p. 105.

2
A perspectiva aberta pela analítica do poder vai impor, também, um deslocamento
sensível, em relação às análises tradicionais sobre esta noção, no que concerne ao
papel do Estado. (MAIA, 1995, p. 87)

Partindo das "técnicas infinitesimais de poder", que se relacionam à elaboração de


saberes específicos, principalmente sobre os indivíduos considerados anormais, criminosos,
doentes, loucos, pervertidos, etc., Foucault analisa, segundo Machado, como os micropoderes
institucionais estão vinculados ao poder exercido no nível do aparelho estatal. 6 O pensador
localiza as teorias políticas centradas na noção de Estado e se questiona sobre o fato de que
"foi muitas vezes fora dele que se instituíram as relações de poder, essenciais para situar a
genealogia dos saberes modernos". 7 A partir de sua análise do poder, Foucault lança uma
hipótese central da genealogia: "o poder é produtor de individualidade". 8

Em Vigiar e punir, Foucault empreende uma "genealogia do atual complexo científico-


judiciário onde o poder de punir se apoia", tendo a prisão como um paradigma para a prática
de uma relação particular sobre os indivíduos continuamente controlados. 9 Segundo o
comentador Josué Pereira da Silva, "a prisão, no entanto, era apenas uma entre as instituições
que incorporavam a nova forma de poder descrita por Foucault". 10 Além disso, Foucault afirma
que a história que traça do que chama de "microfísica do poder punitivo" se trataria, na verdade,
de uma "genealogia ou uma peça para uma genealogia da 'alma moderna'", indicando a relação
entre poder de punir e produção de individualidades.11

6 Em Vigiar e punir, Foucault afirma que não há poder sem saber (e vice-versa): "Temos antes que admitir que o
poder produz saber (...); que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem
constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações
de poder." C.f. FOUCAULT, 2014, p. 31; MACHADO, 1979, p. XIII.
7 Ibidem, p. XIV.
8 Ibidem, p. XIX.
9 FOUCAULT, 2014, p. 26-27.
10 Em suas atividades como militante, Foucault atuou no início da década de 1970 no Grupo de Informação sobre

as Prisões (GIP) e isso resultou em um conjunto de deslocamentos em sua obra, inclusive na escrita de Vigiar e
punir: "No ano de 1971, por sua vez, Foucault será um dos fundadores do Grupo de Informação sobre as Prisões
(GIP), agrupamento cujo objetivo era o de dar forma a um tipo de luta contra o poder que pudesse denunciá-lo
(...). Anos depois, e como momento tributário da experiência de Foucault junto ao GIP, a publicação de Vigiar e
punir em 1975, a primeira obra propriamente genealógica de Foucault." C.f. SILVA, 2016, p. 161; YAZBEK,
2013, p. 97.
11 É bastante controverso o que Foucault fala sobre a existência de uma "alma" em Vigiar e punir, mas não

podemos entender com o mesmo sentido atribuído tradicionalmente na filosofia, como uma realidade imaterial e
transcendente. Foucault aproveita para colocar a sua crítica à noção de ideologia: "A ver nessa alma os restos
reativados de uma ideologia, antes reconheceríamos nela o correlativo atual de uma certa tecnologia do poder
sobre o corpo. Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirma que ela existe,
que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo
funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos - de uma maneira mais geral sobre os que são
vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados
a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência." C.f. FOUCAULT, 2014, p. 32.

3
Foucault compreende, segundo Machado, que as relações de poder possuem uma
"eficácia produtiva", quer dizer, uma "riqueza estratégica", uma "positividade", e não pretende
explicá-lo somente através da sua "função repressiva".12 Em Vigiar e punir, Foucault afirma
que até mesmo "rituais da verdade" são produzidas por relações de poder. 13 Segundo o
pensador:

Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele
"exclui", "reprime", "recalca", "censura", "abstrai", "mascara", "esconde". Na
verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da
verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa
produção. (FOUCAULT, 2014, p. 189)

As sociedades capitalistas industriais passaram a funcionar de acordo com estratégias


econômicas que visam a maximização da produção, buscando, através dos dispositivos de
poder-saber, reforçar a condução de condutas, a incitação para a docilização dos corpos, etc.14
Em correspondência com o aproveitamento dos corpos no processo fabril, Foucault declara:

Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos


aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre
esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com sua materialidade e suas
forças. (FOUCAULT, 2014, p. 30)

Os operários das fábricas se submetem a relações de poder que atuam sobre os seus
corpos, que expressam formas de subjetividades, com o objetivo de aumentar as suas
capacidades produtivas. Em seu diálogo com Foucault de Vigiar e punir, Gilles Deleuze utiliza
o exemplo da "oficina" para associar os aparatos de poder com as "relações de produção":

12 MACHADO, 1979, p. XVI.


13 Em 1977, Foucault concede uma entrevista intitulada "Verdade e poder", onde explica a sua trajetória enquanto
pensador e como o seu pensamento veio a desembocar na genealogia do poder. Nessa entrevista, Foucault afirma
que "não existe verdade fora do poder", ou seja, que a "verdade é deste mundo" e a sua produção consiste em
"efeitos regulamentadores de poder". O comentador Josué Pereira da Silva considera que, segundo Foucault, "as
palavras poder, direito e verdade são de tal forma vinculadas umas às outras, que formam um triângulo, isto é,
uma única e só figura. C.f. FOUCAULT, 1979, p. 12; SILVA, 1995, p. 151.
14 Foucault mostra o lugar privilegiado do corpo em sua analítica do poder na obra Vigiar e punir, quando expõe

sobre "investimento político" que recebe para a "utilização econômica". Segundo Foucault, esse investimento tem
como objetivo a produção do corpo a um só tempo "produtivo" e "submisso": "Mas o corpo também está
diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem,
o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este
investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica;
é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação;
mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de
sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e
utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. C.f.
FOUCAULT, 2014, p. 29.

4
Toda economia, a oficina, por exemplo, ou a fábrica, pressupõe esses mecanismos de
poder agindo, de dentro, sobre os corpos e as almas, agindo no interior do campo
econômico sobre as forças produtivas e as relações de produção. (DELEUZE, 2013,
p. 36)

Segundo Foucault, em A vontade de saber, as relações de poder dispõem de "funções


de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças
que lhe são submetidas". 15

Essa positividade presente nas formulações genealógicas de Foucault salienta a sua


"concepção não-jurídica do poder", uma vez que o poder não é entendido da mesma maneira
que no direito clássico, como um objeto, como o poder, algo que se transfere ou se confisca,
em termos de posse ou de cessão, mas como relações tecidas em todas as camadas da
sociedade.16 Segundo Silva, Foucault defende que a teoria política tradicional, que se baseia
nas "relações entre direito e poder", estão centradas na "figura do rei":

(...) Foucault argumenta que, tradicionalmente, as relações entre direito e poder,


assumidas como o princípio geral que guia seus estudos, foram elaboradas tendo
como referência a figura do rei. (SILVA, 2016, p. 152)

Para Foucault, o poder não pode ser assimilado apenas sob a forma do contrato, porque
não se reduz apenas a uma "figura jurídica" que resguarde alguma espécie de autoridade, isto
é, o soberano:

E talvez se devesse relacionar essa figura jurídica [o soberano] a um tipo histórico de


sociedade em que o poder se exercia essencialmente como instância de confisco,
mecanismo de subtração, direito de se apropriar de uma parte das riquezas: extorsão
de produtos, de bens, de serviços, de trabalhos e de sangue imposta aos súditos. O
poder era, antes de tudo, nesse tipo de sociedade, direito de apreensão das coisas, do
tempo, dos corpos e, finalmente, da vida; culminava com o privilégio de se apoderar
da vida para suprimi-la. (FOUCAULT, 2015, p. 146)

Para Maia, as consequências da ênfase do "aspecto produtor do poder" por Foucault


fazem com que haja uma insurreição "contra uma visão do poder" que valoriza excessivamente
as leis e as proibições. Pares como "Estado"/"família", "príncipe"/"pai", etc., não são
determinantes para se analisar as relações de poder que se espalham por todo o tecido social.

15 FOUCAULT, 2015, p. 146.


16 MACHADO, 1979, p. XV.

5
Para Foucault, a análise do poder está mais de acordo com os seus mecanismos estratégicos e
técnicos com fins produtivos do que apenas no âmbito do direito:

Por conseguinte, ao enfatizar o aspecto produtor do poder, Foucault se insurge contra


uma visão do poder que o encara predominantemente como uma expressão de uma
operação que teria a forma de enunciação da lei e dos discursos da proibição, com
toda uma série de efeitos negativos: exclusão, rejeição, ocultação, obstrução, etc.
Com efeito, a partir desta perspectiva é a lei da interdição e da censura que atravessa
todo o corpo social – do Estado à família, do príncipe ao pai; dos tribunais à toda a
parafernália das punições quotidianas – como forma por excelência de exercício do
poder. Para ele impõe-se uma mudança neste enfoque, encarando o exercício do
poder menos em termos jurídicos e de proibição e mais como técnicas e estratégias
com efeitos produtivos. (MAIA, 1995, p. 86)

Em suas relações micropolíticas, o poder revela sua característica moderna: a incitação


ao comportamento normativo e a docilização dos corpos. Logo, Silva afirma que o direito deve
ser entendido, para Foucault, em termos de poder:

Para Foucault, era necessário expandir tal concepção de poder, encontrar uma
definição mais abrangente para apreender os vários dispositivos de poder em
diferentes níveis e setores da sociedade. (SILVA, 2016, p. 146)

Foucault critica os filósofos contratualistas (Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques


Rousseau, etc.) por entenderem o poder somente no sentido de "direito originário", ao modo
da "legalidade", como uma coisa que se dá ou se retira, e não como uma relação extrajurídica
ou micropolítica. Segundo Machado, a crítica de Foucault é destinada às seguintes teorias:

(...) as teorias que têm origem nos filósofos do século XVIII que definem o poder
como direito originário que se cede, se aliena para constituir a soberania e que tem
como instrumento privilegiado o contrato; teorias que, em nome do sistema jurídico,
criticarão o arbítrio real, os excessos, os abusos de poder. Portanto, a exigência que o
poder se exerça como direito, na forma da legalidade. (MACHADO, 1979, p. XV)

Assim como a teoria jurídica do poder, Foucault critica a "concepção marxista do poder
político", que tem a mercadoria e o poder de compra e venda como pontos centrais. 17 Parece

17É importante lembrarmos que Foucault foi um crítico de dogmatismos teóricos e um leitor de Karl Marx. Isso
significa que fez críticas aos marxistas do seu tempo que não pareciam ter uma postura crítica diante da obra de
Marx. Seu contemporâneo e alvo de críticas das alas mais tradicionais do marxismo francês, Deleuze aborda sobre
a distinção da concepção marxista de poder em detrimento da concepção foucaultiana: "O que ainda há de
piramidal na imagem marxista é substituído na microanálise funcional por uma estreita imanência na qual os focos
de poder e as técnicas disciplinares formam um número equivalente de segmentos que se articulam uns sobre os
outros e através dos quais os indivíduos de uma massa passam ou permanecem, corpos e almas (família, escola,
quartel, fábrica e, se necessário, prisão)." C.f. DELEUZE, 2013, p. 37.

6
se tratar de uma certa semelhança entre ambas as visões sobre o poder, que é a máxima
importância dada tão somente à economia, a um "economismo" presente na teoria jurídica,
fortemente marcada pelo liberalismo clássico, assim como no interior do marxismo:

Para Foucault, há um ponto comum entre a concepção jurídica e a concepção marxista


de poder político, que reside no fato de que, em ambas as concepções de poder, o
fundamento último situa-se na economia. Existe, portanto, um economismo de base
por trás da concepção jurídica, liberal, de poder político, desenvolvida pelos filósofos
do século XVIII, assim como por trás da concepção sustentada pelo marxismo.
(SILVA, 2016, p. 146)

Por não compreender as relações de poder-saber unicamente de maneira contratual,


econômica ou repressiva, Foucault dá grande importância ao "modelo de guerra" para analisá-
las.18

No curso chamado Em defesa da sociedade (1976), Foucault entende que a genealogia


trava combates "contra os efeitos de poder próprios de um discurso considerado científico". 19
Com esse modelo das estratégias e das lutas, Foucault tem em vista, segundo Maia, "outro
aspecto capital da analítica do poder". Consiste na "adoção do modelo da guerra à
inteligibilidade das relações de poder". 20

Foucault reconhece, a partir dos séculos XVII e XVIII, duas técnicas distintas de
exercício do poder além daquele de tipo soberano, mas que visam igualmente majorar as
capacidades produtivas.

18 No primeiro capítulo de Vigiar e punir, Foucault afirma que a analítica do poder deve antes corresponder ao
modelo da "batalha perpétua" do que ao modelo do contrato, não sendo a sua compreensão somente jurídica.
Desse modo, as relações de poder não devem ser estudadas em termos de "propriedade", mas de "estratégias";
nem de "apropriações", mas de "táticas", "técnicas". Elas não se tratam, segundo Foucault, de um "privilégio" da
"classe dominante", mas do "efeito de conjunto de suas posições estratégicas", não podendo ser analisada somente
em termos econômicos. Por fim, as relações de poder não se aplicam apenas a uma "obrigação" ou uma "proibição"
para aqueles que "não têm", mas estes são investidos por elas e nelas se apoia para "sua luta contra esse poder".
Para Foucault, a função repressiva não dá conta de uma análise minuciosa do poder. C.f. FOUCAULT, 2014, p.
30.
19 FOUCAULT, 2010, p. 10.
20 Ministrado no mesmo ano de publicação de A vontade de saber, o curso Em defesa da sociedade tem a sua

abertura ("Aula de 7 de janeiro de 1976") com a inversão de um aforismo do estrategista militar Carl von
Clausewitz ("A guerra não é mais que a continuação da política por outros meios") para abordar a concepção
foucaultiana de poder e as lutas políticas no interior da sociedade: "Seria, pois, o primeiro sentido a dar a esta
inversão do aforismo: a política é a guerra continuada por outros meios; isto é, a política é a sanção e a recondução
do desequilíbrio das forças manifestado na guerra. E a inversão dessa proposição significaria outra coisa também,
a saber: no interior dessa 'paz civil', as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo
poder, as modificações das relações de força - acentuações de um lado, reviravoltas, etc. -, tudo isso, num sistema
político, deveria ser interpretado como as continuações da guerra." C.f. FOUCAULT, 2010, p. 16; MAIA, 1995,
p. 91.

7
A primeira é a disciplina e está melhor ilustrada em Vigiar e punir, obra na qual
Foucault expõe os mecanismos de determinadas estratégias de poder-saber para adestrar os
corpos dos indivíduos através de meios normativos e econômicos:

Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como
máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas
forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em
sistemas de controle eficazes e econômicos - tudo isso assegurado por procedimentos
de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano.
(FOUCAULT, 2015, p. 150)

A segunda técnica é a do biopoder e aparece na obra de Foucault especificamente no


último capítulo de A vontade de saber.21 Nele, o pensador mostra as técnicas de gestão
populacional, levando em consideração os aspectos biológicos da vida do homem enquanto
espécie:

O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII,
centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o
nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem
fazê-lo variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções
e controles reguladores: uma biopolítica da população. (idem)

A disciplina e o biopoder são mecanismos modernos de poder, que surgem quando um


conjunto de saberes sobre o homem (antropologia, criminologia, psiquiatria, psicologia, etc.)
dão o suporte necessário para funcionarem no nível do corpo individual e da vida biológica,
respectivamente. Ao tratar do "corpo político", Foucault entende que esses saberes se articulam
e engendram relações institucionalizadas de poder, fazendo com que os corpos sejam
subordinados e tornados seus objetos:

Trataríamos aí do "corpo político" como conjunto dos elementos materiais e das


técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de
apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os
submetem fazendo deles objetos de saber. (FOUCAULT, 2014, p. 31)

Portanto, as relações de poder e os saberes legitimam práticas institucionais, que


orientam "gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos", etc., tendo os corpos

21Trata-se do capítulo "Direito de morte e poder sobre a vida", onde discute sobre a passagem do poder soberano
de "confisco" da vida para a sua majoração através do biopoder. C.f. FOUCAULT, 2015, p. 145-174.

8
individuais e as populações (ou os corpos múltiplos) como alvos, que produzem, por sua vez,
efeitos de assujeitamento:

O que Foucault chamou de microfísica do poder significa tanto um deslocamento do


espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente
ligados, na medida e que a consideração do poder em suas extremidades, a atenção a
suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos
procedimentos técnicos de poder que realizam um controle minucioso do corpo –
gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. (MACHADO, 1979, p. XII)

1.2. Disciplina e biopoder

A partir do século XVII, aparece um determinado conjunto de mecanismos de poder


que está acoplado a práticas institucionais diversas e atua sobre o corpo individual, que
Foucault dará o nome de disciplina ou poder disciplinar em Vigiar e punir. Essa obra traça uma
história da "relação de poder, direito e verdade", que vai dos suplícios do poder soberano,
exemplificado na "tortura de Damiens", até o surgimento das primeiras prisões modernas e o
aprimoramento do poder disciplinar, "idealizado no panóptico de Jeremy Bentham". 22 Silva
comenta sobre Vigiar e punir:

Essa relação ou rede formada pela conexão de regras de direito, mecanismo de poder
e efeitos de verdade – tema central de Vigiar e punir - é, pois, o tema central das
preocupações de Foucault. A história que ele nos conta da tortura de Damiens à
produção ou reprodução da criminalidade em/pela prisão, passando pela reforma
humanista e o desenvolvimento do poder disciplinar, idealizado no panóptico de
Jeremy Bentham, é a história dessa relação de poder, direito e verdade. (SILVA,
2016, p. 152)

Diferentemente do poder de tipo soberano, que tem por função "apropriar" e "retirar",
o poder disciplinar possui, segundo Foucault, a influência do militarismo de adestramento dos
indivíduos. Ao invés de ser um "poder triunfante" que privilegia o exibicionismo e os excessos
do rei, a disciplina é modesta, desconfiada, "funciona a modo de uma economia calculada, mas

22Vigiar e punir abre com fragmentos que relatam o suplício de Damiens, parricida francês do século XVI, no
capítulo intitulado "O corpo dos condenados". Mais adiante,Foucault trata da relação entre o projeto arquitetônico
de Bentham e a disciplina.

9
permanente".23 Ela "se exerce tornando-se invisível", de forma que, dessa vez, os assujeitados
assumem o lugar de visibilidade nas suas estratégias. Portanto, "são os súditos que têm que ser
vistos" na "iluminação" do poder disciplinar:

(...) tradicionalmente, o poder é o que se vê, se mostra, se manifesta e, de maneira


paradoxal, encontra o princípio de sua força no movimento com o qual a exibe.
Aqueles sobre os quais ele é exercido podem ficar esquecidos; só recebem luz daquela
parte do poder que lhes é concedida, ou do reflexo que mostram um instante. O poder
disciplinar, ao contrário, se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos
que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos
que têm de ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre
eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito
o indivíduo disciplinar. (FOUCAULT, 2014, p. 183)

Em Vigiar e punir, Foucault nota que o sucesso da disciplina se deve aos seus seguintes
componentes: a "vigilância hierárquica", a "sanção normalizadora" e o "exame". 24

A vigilância hierárquica está associada a um "dispositivo que obrigue pelo jogo do


olhar". Esse dispositivo é capaz de desenvolver técnicas que incitam os corpos a efeitos de
poder e, ao mesmo tempo, deixa-os expostos em uma posição favorável à observação contínua.
Tendo um "modelo quase ideal" na arquitetura do "acampamento militar", uma "cidade
apressada e artificial" que abriga "homens de armas", a vigilância tem que ser exata: com
intensidade, mas ainda assim discreta. Nessa ordem, "cada olhar seria uma peça no
funcionamento global do poder". 25

Com a passagem do poder soberano para a disciplina, a própria arquitetura sofre sérias
transformações. O seu propósito não é mais que uma construção seja feita para ser vista ou para
vigiar o espaço exterior, mas para que haja um "controle interior, articulado e detalhado", para
vigiar aqueles que nela se encontrem. 26

Uma vez que é uma "peça interna no aparelho de produção" e uma "engrenagem
específica do poder disciplinar", a vigilância se transforma em um "operador econômico
decisivo".27

23 FOUCAULT, 2014, p. 167.


24 No capítulo "Os recursos para o bom adestramento", Foucault analisa cada um desses componentes do poder
disciplinar. C.f. Ibidem, p. 167.
25 Ibidem, p. 168.
26 Ibidem, p. 169.
27 C.f. Ibidem, p. 172.

10
Essa vigilância é considerada "hierárquica" por estar assentada em indivíduos, por
consistir em uma "rede de relações de alto a baixo", mas, nas palavras de Foucault, "até um
certo ponto de baixo para cima e lateralmente". Cada indivíduo do "conjunto" fiscaliza e é
fiscalizado, vigia e é vigiado, captura e é capturado por relações de poder. A vigilância
hierarquizada funciona integrada como uma "máquina", que, apesar de sua "organização
piramidal", todos os seus componentes produzem relações de poder. A sua iluminação contínua
e permanente controla até mesmo aquele que tem a função de controlar os outros, deixando
nada "às escuras". 28

Desse modo, a disciplina não opera com o "brilho das manifestações" dos suplícios,
mas por meio de cálculos que visam um poder praticado com mais eficácia e com menos
dispêndio. E com a relação poder-saber, a vigilância busca, nessa "física" do poder, o "domínio
sobre o corpo" por meio de "olhares calculados":

A disciplina faz "funcionar" um poder relacional que se autossustenta por seus


próprios mecanismos e substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos
olhares calculados. Graças às técnicas de vigilância, a "física" do poder, o domínio
sobre o corpo se efetua segundo as leis da ótica e da mecânica, segundo um jogo de
espaços, de linhas, de telas, de feixes, de graus, e sem recurso, pelo menos em
princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em aparência ainda menos
"corporal" por ser mais sabiamente "físico". (FOUCAULT, 2014, p. 174)

O segundo componente da disciplina, a sanção normalizadora, está ligada a um "modelo


reduzido de tribunal", ao qual o seu poder de punir remete. 29

Essa punição do poder disciplinar está baseada, segundo Foucault, em um agrupamento


"gratificação-sanção".30 Através desse sistema, as práticas das instituições disciplinares julgam
os indivíduos, recompensando-os apenas pelo "jogo das promoções que permitem hierarquias
e lugares".31 Cada instituição disciplinar (escola, hospital, manicômio, prisão, fábrica, etc.)
corresponde, para Foucault, a um pequeno tribunal permanente, que recompensa aqueles
considerados "normais", enquanto pune o infrator, o doente, o louco, o delinquente, o
improdutivo, etc., ou seja, os "anormais".

28 Ibidem, p. 173-174.
29 Ibidem, p. 175.
30 Ibidem, p. 177.
31 Ibidem, p. 178.

11
Essa sanção "não visa", segundo Foucault, "nem a expiação, nem mesmo exatamente a
repressão".32 Ela visa, na verdade, instituir um poder normativo e regulamentador. Esse poder
homogeneiza, mas também "individualiza":

Em certo sentido, o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas


individualiza, permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as
especialidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras. Compreende-
se que o poder da norma funcione facilmente dentro de um sistema de igualdade
formal, pois dentro de uma homogeneidade, que é a regra, ele introduz, como um
imperativo útil e resultado de uma medida, toda a gradação das diferenças
individuais. (idem, p. 180-181)

O terceiro componente do poder disciplinar, o exame, é compreendido, por Foucault,


como aquele que forma uma combinação dos outros dois (vigilância hierárquica e sanção
normalizadora).33 "Altamente ritualizado", o exame é o ponto de encontro da "cerimônia do
poder" e da "forma da experiência", da "demonstração da força" e do "estabelecimento da
verdade".34

Na área médica, o doente é colocado em uma condição de "exame quase perpétuo": essa
técnica passa a ser confiada também ao "enfermeiro", um profissional que está subordinado ao
médico, gerando uma "hierarquia interna"; e o hospital, por sua vez, vai se tornar, graças ao
35
exame, um "local de formação e aperfeiçoamento científico".

Na área escolar, os alunos são, através do exame, aqueles que a transmissão de saber
do mestre se dirige, mas também objetos para conhecimento restrito a ele:

(...) o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de saberes: garante


a passagem dos conhecimentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno um
saber destinado e reservado ao mestre. A escola se torna o local de elaboração
da pedagogia. (...) a era da escola "examinatória" marcou o início de uma
pedagogia que funciona como ciência. (idem, p. 183)

32 Ibidem, p. 179.
33 Mais adiante, Foucault afirma o seguinte sobre essa "combinação" do exame: "É ele que combinando vigilância
hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de
extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões."
C.f. Ibidem, p. 167; Ibidem, p. 188.
34 Ibidem, p. 181.
35 Em 1974, Foucault realizou a conferência "O nascimento do hospital" no Instituto de Medicina Social da UERJ,

onde já apresentava a noção de disciplina: "Não foi a partir de uma técnica médica que o hospital marítimo e
militar foi reordenado, mas, essencialmente, a partir de uma tecnologia que pode ser chamada política: a
disciplina." C.f. FOUCAULT, 1979, p. 105; FOUCAULT, 2014, p. 182.

12
Através das relações de poder na instituição médica, todo um saber sobre o doente é
capturado através de um "poder de escrita", presente em documentos, que relatam suas
informações particulares. 36 O poder disciplinar tem na escrita um meio para incluir cada um
nas suas estratégias, possibilitando que o "exame individual" possa ser encontrado em
"qualquer registro geral" e que esse exame reflita nos "cálculos de conjunto":

Entre as condições fundamentais de uma boa "disciplina" médica nos dois sentidos
da palavra é preciso incluir nos processos de escrita que permitem integrar, mas sem
que se percam, os dados individuais em sistemas cumulativos: fazer de maneira que
a partir de qualquer registro geral se possa encontrar um indivíduo e que inversamente
cada dado do exame individual possa repercutir nos cálculos de conjunto. (idem, p.
186)

A partir do século XVIII, Foucault defende que é possível encontrar com mais
facilidade a "criança", o "doente", o "louco", o "condenado", etc. como "objeto de descrições
individuais e de relatos biográficos", com o objetivo de fazer uma análise minuciosa destes:

E essa nova descritibilidade é ainda mais marcada, porquanto é estrito o


enquadramento disciplinar: a criança, o doente, o louco, o condenado se tornarão,
cada vez mais facilmente a partir do século XVIII e segundo uma via que é dos
mecanismos de disciplina, objeto de descrições individuais e de relatos biográficos.
(idem, p. 187)

Como a disciplina privilegia a individualidade dos súditos em detrimento do soberano,


o "homem memorável" é substituído, segundo Foucault, pelo "homem calculável":

O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da


individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou lugar
do ancestral, e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do
homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do
homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma
tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. (idem, p. 188-189)

Portanto, Foucault defende que em um "sistema de disciplina, a criança é mais


individualizada que o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinquente mais que
o normal e o não delinquente". 37

36 Ibidem, p. 185.
37 Ibidem, p. 188.

13
*

Foucault identifica uma outra técnica de poder importante na modernidade, que é o


biopoder.38 Se trata de um mecanismo que se ocupa com a regulação das populações e atua
sobre o homem enquanto espécie com o fim de garantir a vida, diferentemente do poder
soberano, onde uma figura jurídica tem o "direito de causar a morte ou deixar viver". 39 Segundo
o comentador Márcio A. Fonseca, Foucault defende que o biopoder se constitui a partir de um
"outro direito":

Com a tomada da 'vida' como objeto de agenciamento do poder, a época moderna


opõe ao velho direito de vida e morte da soberania a um outro direito ou, antes, um
poder de 'fazer viver e deixar morrer'. (FONSECA, 2000, p. 192)

Ao contrário dos cálculos do poder soberano, as estratégias do biopoder tem em vista a


manutenção da vida, de sua majoração, e não um direito de vida e morte, ou seja, um poder de
confisco, de posse. Segundo Machado, Foucault entende que certos assuntos relacionados à
natalidade, mortalidade, padrão de vida, expectativa de vida, por exemplo, passam a estar
relacionados aos cálculos desse biopoder, que gere o "corpo-espécie" no nível social:

Questões como as do nascimento e da mortalidade, do nível de vida, da duração de


vida estão ligadas não apenas a um poder disciplinar, mas a um tipo de poder
determinado que se exerce ao nível da espécie, da população com o objetivo de gerir
a vida do corpo social. O que não significa que as estratégias e táticas de poder
substituam o indivíduo pela população. (MACHADO, 1979, p. XXII)

Em A vontade de saber, o biopoder é apresentado por Foucault como um "elemento


indispensável ao desenvolvimento do capitalismo", que, em tempos da industrialização e da
urbanização, contribuiu no "ajustamento da acumulação dos homens à do capital". 40 Sobre o
biopoder, Foucault declara:

Esse biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento


do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos

38 Em "O nascimento da medicina social" (1974), conferência realizada na UERJ, Foucault comenta sobre a
biopolítica: "O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela
ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo,
investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica."
C.f. FOUCAULT, 1979, p. 80.
39 FOUCAULT, 2015, p. 149.
40 Ibidem, p. 151-152.

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no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população
aos processos econômicos. (FOUCAULT, 2015, p. 151-152)

Essa contribuição do biopoder para o desenvolvimento do capitalismo está associada a


uma organização da vida biológica através da relação poder-saber:

No terreno assim conquistado, organizando-o e ampliando-o, os processos da vida


são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlá-los
e modificá-los. (idem, p. 153-154)

Assim como a disciplina, o biopoder se utiliza de "mecanismos contínuos, reguladores


e corretivos", que, por sua vez, se encarregam de gerir a espécie humana. 41

É bastante característico também que Foucault tenha introduzido o biopoder em um dos


volumes da sua História da sexualidade.42 Buscando compreender o sexo não apenas como
algo que foi reprimido, Foucault investiga os dispositivos de poder que o incitam, que atuam
sobre os corpos e sobre as populações com o objetivo de incrementar as forças produtivas.
Foucault identifica a importância do sexo para os cálculos do poder que gerem a vida no nível
do corpo e da espécie:

De modo geral, na junção entre o "corpo" e a "população", o sexo tornou-se o alvo


central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida, mais do que da
ameaça de morte. (idem, p. 159)

Foucault encontra na sexualidade um cruzamento entre a disciplina e o biopoder, no


qual essas duas técnicas modernas de poder possuem uma capacidade de gerir a vida de forma
produtiva, fazendo com que, no caso do biopoder, o "corpo-espécie" seja proliferado e
reforçado, tornando-o mais vigoroso:

Quanto a nós, estamos em uma sociedade do "sexo", ou melhor, "de sexualidade": os


mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que a faz proliferar, ao que

41 Ibidem, p. 155.
42 Dividido em três volumes, História da sexualidade contém A vontade de saber (1976), que é uma obra integrada
à genealogia do poder, O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984), que mostram o interesse de Foucault pela
cultura greco-romana e a passagem de seu pensamento para uma nova fase, que aqui chamamos de genealogia da
ética ou genealogia dos modos de subjetivação. Esses dois últimos volumes são resultados de deslocamentos no
seu pensamento desde a "inclusão" do "tema do governo" e da "governamentalidade" (termo cunhado pelo próprio
Foucault) nas análises do poder a partir do curso Segurança, território, população (1978). Segundo Tereza
Cristina B. Calomeni: "A 'passagem' para o 'eixo da ética' é prenunciada e viabilizada pela inclusão -- ou pelo
refinamento – do tema do governo na reflexão sobre as diferentes modalidades de biopoder. É aí que se pode
localizar o tempo da inflexão que irá amadurecer e, afinal, desembocar e florecer na discussão dos dois livros
publicados em 1984 e dos cursos da década de 1980: por uma trajetória sinuosa, marcada por recuos e atalhos,
Foucault caminha da compressão do sujeito como 'efeito' das relações de poder à postulação do sujeito ético, do
poder disciplinar e da biopolítica às 'técnicas' e 'práticas de si'." C.f. CALOMENI, 2012, p. 227; FOUCAULT,
1979, p. 277-293.

15
reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser
utilizada. Saúde progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o
poder fala da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou
símbolo, é objeto e alvo. (idem, p. 159-160)

Mas posto que o biopoder diz respeito aos fenômenos populacionais, ele apresenta
também a característica de atuar no nível da "raça". O problema do racismo é colocado por
Foucault ao analisar esse novo mecanismo de poder do século XVIII, que uma série de normas
legitimam seus discursos e suas práticas ao longo de toda a sociedade com o objetivo de fazer
uma "raça" prevalecer em detrimento de outras, consideradas biologicamente inferiores. Para
Foucault:

O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal,


biologizante): toda uma política do povoamento, da família, do casamento, da
educação, da hierarquização social, da propriedade e uma longa série de invenções
no nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida cotidiana, receberam então cor e
justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer
triunfar a raça. (idem, p. 162)

Na última aula de Em defesa da sociedade, Foucault se dedica na análise da relação


entre racismo de Estado e biopoder. Já vimos que o biopoder tem o objetivo de potencializar
ao máximo a vida da população, mas ainda assim algumas vidas são tiradas. Em outros termos,
há o assassínio na "sociedade de normalização", há os genocídios em escala industrial. 43 Para
Foucault, o Estado pode matar para defender a sociedade de certas ameaças, de um conjunto
de indesejáveis através do racismo, que cumpre a sua "função assassina":

Em outras palavras, tirar a vida, o imperativo da morte, só e admissível, no sistema


de biopoder, se tende não à vitória sobre os adversários políticos, mas à eliminação
do perigo biológico e ao fortalecimento, diretamente ligado a essa eliminação, da
própria espécie ou da raça. A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar
a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de
normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície

43 Ainda na última aula desse curso, Foucault aborda sobre o nazismo. Tendo em vista os "genocídios em escala
industrial", para ele, a "sociedade nazista" combinou e "generalizou" procedimentos do biopoder e do "direito
soberano de matar": "Tem-se, pois, na sociedade nazista, esta coisa, apesar de tudo, extraordinária: é uma
sociedade que generalizou absolutamente o biopoder, mas que generalizou, ao mesmo tempo, o direito soberano
de matar." Além do nazismo, que representa um determinado modelo de "sociedade capitalista", Foucault aponta
a ligação entre racismo de Estado e biopoder no interior do "socialismo" ou, mais especificamente, do stalinismo:
"Em compensação, em todos os momentos em que o socialismo foi obrigado a insistir no problema da luta, da
luta contra o inimigo, da eliminação do adversário no próprio interior da sociedade capitalista; quando se tratou,
por conseguinte, de pensar o enfrentamento físico com o adversário de classe na sociedade capitalista, o racismo
ressrgiu, porque foi a única maneira, para um pensamento socialista que aesar de tudo era muito ligado aos temas
do biopoder, de pensar a razão de matar o adversário." C.f. FOUCAULT, 2010, p. 219; Ibidem, p. 221.

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e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é
indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a
vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o
Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. (FOUCAULT, 2010, p. 215)

Portanto, esse processo de inferiorização de certas vidas com relação à outras está
presente igualmente nas táticas da disciplina e do biopoder. Apesar de funcionarem diferente
do poder soberano, esses mecanismos modernos de poder possuem ainda assim maneiras de
produzirem marcas em vidas através dos seus efeitos, sendo uma delas a infâmia. Veremos a
seguir como Foucault não apenas analisa o funcionamento das relações de poder, como também
aquelas que são consideradas de contrapoder, ou seja, que buscam, através de estratégias de
lutas próprias, resistir aos seus efeitos.

1.3. A dimensão do contrapoder

Segundo Machado, Foucault não entende que seja possível resistir em um lugar exterior
à atuação do poder, até porque esse lugar não existe. O "caráter relacional" do poder lhe confere
um aspecto imanente em sua análise, não havendo nada que esteja neutro a ele e às lutas que
envolvem as relações sociais. Ainda, ele frisa uma ideia que pode ser considerada fundamental
para as formulações de Foucault sobre as relações de poder e as lutas contra o seu exercício:
onde existe poder, também existe resistência. Para Machado:

(...) esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício
não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois nada está isento de
poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria rede do poder, teia que se
alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode escapar: ele está sempre presente
e se exerce como uma multiplicidade de relações de forças. E como onde há poder há
resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e
transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. (MACHADO,
1979, p. XIV)

Por isso que mesmo com relação à "ordem do saber", que produz efeitos de poder, há,
para Foucault, discursos que, por sua marginalidade, dispersão e desqualificação confere um
testemunho da atuação do poder. 44 Segundo o comentador César Candiotto, Foucault se propõe

44 YAZBEK, 2013, p. 95.

17
a estudar a "ilegalidade" para justificar a "importância da moral punitiva no interior do sistema
penal" e de uma certa "continuidade da guerra social por outros meios", dando a entender a
relação entre poder e lutas:

A reconfiguração dos ilegalismos, de gesto político de resistência no decorrer do


século XVIII, ao estatuto de ilegalidade no começo do século XIX, permite entender
a importância da inserção da moral punitiva no interior do sistema penal e como esse
sistema não deixa de ser uma forma sedimentada de continuidade da guerra social
por outros meios. (CANDIOTTO, 2016, p. 119)

Os dispositivos de poder possuem objetivos políticos que visam a dominação através


da docilização dos indivíduos, ou seja, através do processo de torná-los mais produtivos, mas
menos revoltosos, resistentes, insurgentes. Em Foucault, as técnicas de poder têm, segundo
Machado, o "objetivo ao mesmo tempo econômico e político" de conter os efeitos de
contrapoder através de processos de adestramentos:

Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho,


isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica;
diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra
as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contrapoder, isto é, tornar os homens
dóceis politicamente. (idem, p. XVI)

Foucault aponta para a alternativa de propor um mapeamento das relações de poder na


sociedade, de forma que seja viável também estratégias para a atuação de um contrapoder. Em
"Os intelectuais e o poder" (1972), Foucault comenta sobre diversas lutas que correspondem a
uma "forma particular de poder", que não podem se dar apenas com a alteração de
titularidade.45 Para ele:

As mulheres, os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais


iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de coerção, de
controle que se exerce sobre eles. Estas lutas fazem parte atualmente do movimento
revolucionário, com a com a condição de que sejam radicais, sem compromisso nem

45 "Os intelectuais e o poder" se trata de uma conversa entre Deleuze e Foucault. Nela, ambos se demonstram
críticos sobre o papel do intelectual comumente difundido e defendem uma outra perspectiva de luta contra o
poder. Sobre as insurgências ao sistema prisional, Foucault defende: "E se designar os focos, denunciá-los, falar
deles publicamente é uma luta, não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse
respeito - forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o alvo - é uma
primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra o poder. Se discursos como, por exemplo,
os dos detentos ou dos médicos de prisões são lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder
de falar da prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus compadres reformadores." C.f.
FOUCAULT, 1979, p. 76.

18
reformismo, sem tentativa de reorganizar o mesmo poder apenas com uma mudança
de titular. (FOUCAULT, 1979, p. 78)

Ao modo de um cartógrafo, Foucault marca a existência de lutas locais, específicas,


que não estão apenas em um processo de "centralização" ou de "totalização" do poder. 46
Deleuze comenta sobre um "novo questionamento do poder" referente ao que chama de
"esquerdismo":

O que, de maneira difusa ou mesmo confusa, caracterizava o esquerdismo era, em


termos de teoria, um novo questionamento do poder, voltado tanto contra o marxismo
quanto contra as concepções burguesas e, em termos de prática, um certo tipo de lutas
locais, específicas, cujas relações e necessária unidade não poderiam mais vir de um
processo de totalização nem de centralização, mas, como disse Guattari, de uma
transversalidade.

Foucault se dedica à atividade cotidiana do poder em seu "registro capilar": batalhas


que são travadas no interior do direito, da medicina e da psiquiatria, etc. 47

Portanto, nessa apresentação da genealogia do poder de Michel Foucault, onde


buscamos entender como o pensador caracteriza o poder, quais são os seus mecanismos e a
possibilidade de existência de lutas contra a sua atuação, ficamos com a seguinte questão: em
termos práticos, como é possível resistir ao poder com um contrapoder?

BIBLIOGRAFIA

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nos faz pensar; Rio de Janeiro, Nº 31: fevereiro de 2012.

46 No texto "Um novo cartógrafo (Vigiar e punir)", Deleuze defende uma função política da escrita em sua
definição: "Daí a tripla definição de escrever: escrever é lutar, resistir; escrever é vir-a-ser; escrever é cartografar
(...)." C.f. DELEUZE, 2013, p. 53.
47 Como veremos nos capítulos seguintes com a análise e o resgate de Foucault dos casos de Pierre Rivière e de

Herculine Barbin.

19
CANDIOTTO, César. "Os ilegalismos e a reconfiguração das lutas políticas em Michel
Foucault". In: Pensando – Revista de Filosofia; Vol. 7, Nº 14, 2016.

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