O presente texto resgata vência humana - a troca de mulheres criticamente a contribuição de Lucien (sistema de parentesco), a troca de Goldmann no âmbito da comunicação bens (sistema econômico) e a troca de apontando em especial para o nexo mensagens (o sistema lingüístico). Na entre recepção e política no contexto mesma linha de raciocínio, Lacan do pensamento do mesmo autor. celebrizou a tese segundo a qual “o inconsciente é estruturado como uma Artigo linguagem”. A comunicação de massa não Nada mais natural, portanto, do passou despercebida na obra de Lucien que a utilização dos estudos Goldmann. Nas condições intelectuais lingüísticos, em especial da semiótica, da época, ele defrontou-se com o para entender os meios de comuni Celso Frederico é professor Livre- intenso debate teórico que se desen cação de massa. François Dosse Docente e pesquisador junto ao volvia na França nos anos 60 sobre os arrolou um número impressionante de Departamento de Comunicações e Artes meios de comunicação. O estrutura- revistas através das quais os da Escola de Comunicações e Artes da lismo lingüístico, em pleno apogeu, estruturalistas expunham suas idéias: Universidade de São Paulo. retomava as idéias de Saussure, fazendo La linguistique, Langages, Commu delas um modelo rígido de interpre nications, Tel quel, La nouvelle tação aplicável às ciências humanas e, critique, Les cahiers pour l'analyse, por extensão, aos estudos da comunica Langue française, Littérature, ção. Goldmann, defendendo o método Change1. estrutural e, ao mesmo tempo, preten Goldmann, defendendo o (01) Cf. François Dosse, História dendo introduzir nele a dimensão estruturalismo-genético, precisou do estruturalismo, (S. Paulo: Ed. histórica ausente, precisou posicionar- posicionar-se não só no debate teórico Ensaio, 1993), especialmente, vol. se no intenso debate sobre os meios metodológico, como também em seus I, cap. 29 "O apogeu das revistas" de comunicação de massa. reflexos nos estudos de comunicação. e vol. II, cap. 15, "O revistismo Naquele momento, a lingüística O pensamento goldmanniano, continua próspero". Convém era uma das áreas mais influentes nas contudo, não permaneceu o mesmo, lembrar que, no Brasil, as editoras ciências humanas - o prestígio de mas oscilou, com o passar dos anos, Tempo Brasileiro e Perspectiva, Barthes, Kristeva, Todorov, Benveniste de uma visão otimista - advinda de sua entre outras, encarregavam-se de e Pêcheux vivia então sua fase áurea. leitura de História e consciência de divulgar entre nós os textos Não por acaso, Lévi-Strauss enfatizava classe, de Lukács - para um pessimis produzidos pelos estruturalistas o parentesco entre os fenômenos mo crescente, fruto de seu desalento franceses e por seus discípulos sociais e os fenômenos lingüísticos: perante as transformações sociais em brasileiros (um dos livros de Décio ambos seriam exteriores aos indiví curso promovidas pelo “capitalismo de Pignatari, Informação. Linguagem. duos e teriam princípios reguladores organização”. Comunicação, era leitura dados de antemão. Daí o seu empenho Inicialmente, para opor-se à obrigatóría em todos os cursos de em estudar os três níveis da “comuni rigidez do estruturalismo não-gené- comunicação no país). tico, ele lançou mão, como veremos a a) a primeira delas, apoia-se na ca seguir, do conceito de consciência tegoria da possibilidade. Essa corrente, possível, fazendo-o migrar dos estudos diz o autor, “permite reconhecer em filosóficos e artísticos para o estudo todas os domínios da realidade natural e dos meios de comunicação. Contra o humana o papel do acaso e fala apenas de descentramento do sujeito, anunciado ordens plúrimas, relativas e variáveis, de pela vaga estruturalista, ele trouxe à esquemas operativos e de modelos, cena a consciência possível dos sujei planos ou projetos, nos quais as opções tos coletivos. do homem se podem inserir com alguma probabilidade de êxito”. Nessa tendência, O colóquio de Royaumont o autor inclui o pragmatismo, o neoempirismo, a teoria da informação, a Em 1965, em Genebra, num dos cibernética e o estruturalismo; colóquios de Royaumont, dedicado ao b) a segunda corrente, baseia-se na tema “O conceito de informação na categoria da necessidade. Aqui, exclui-se ciência contemporânea”2, Goldmann o acaso e se reconhece “a necessidade dá falou sobre “A importância do conceito ordem ou das ordens que se sucedem no de consciência possível para a comuni movimento do universo e consente apenas cação” e travou, em seguida, um acirra que se fale em nome ou por conta da do debate com diversos interlocutores. Totalidade absoluta, da Razão, do Ser, do Examinando o conjunto das Mundo, reduzindo a um grau mínimo ou a comunicações apresentadas naquele zero a possibilidade de interferência do encontro, percebe-se que a intelec homem em qualquer setor da tualidade presente, formada por realidade4. A matriz dessa concepção é acadêmicos que trabalhavam nas a biologia oitocentista, que teria inspirado ciências exatas, discutia basicamente o positivismo, o espiritualismo, o natura as idéias de Norbert Wiener, o criador lismo, bem como autores tão diferentes (2) Le concept d'information dans da cibernética, também participante do como Nietzsche, Pierce, Bergson, Ia Science contemporaine. Cahiers evento. Goldmann pretendia participar Santayana, Teillard de Chardin etc. de Royaumont (Paris: Les Éditions do congresso apenas como ouvinte, Evidentemente, essas duas cor de Minuit-Villars: 1965). A mas, convidado na última hora para rentes não abarcam todo o pensamento comunicação de Goldmann, "A substituir um dos oradores, impro filosófico e o próprio autor se apressa importância do conceito de visou uma comunicação que se tomou a citar inúmeros filósofos que se consciência possível para a referência básica nos estudos opõem ao esquema proposto sem, comunicação", foi publicada em comunicacionais e presença constante entretanto, referir-se a Hegel, que, em três obras, em diferentes em diversas antologias. seu tempo, havia-se empenhado na traduções, no Brasil. Cf. Gabriel Em Genebra, as várias interven superação do “eterno” dilema entre Cohn (org.), Comunicação e ções gravitaram em tomo da teoria da possibilidade e necessidade. Na indústria cultural (S. Paulo: informação e da cibernética. Uma dialética hegeliana, a possibilidade, Companhia Editora Nacional e estreita relação teórica aproximava além de não se opor rigidamente à Edusp, 1971); como anexo na essas teorias do estruturalismo. Para necessidade, não deve ser identificada dissertação de mestrado de entendermos as implicações gerais à probabilidade, conceito estatístico Jussara Resende Araújo, A dialética dessa relação, podemos remeter às abstrato, vazio, “não-essencial”. Na na relação emissor receptor: o idéias propostas no último volume da Lógica, Hegel insiste na oposição referencial de Lucien Goldmann extensa História da Filosofia do entre: (São Bernardo do Campo: Instituto pensador italiano Nicola Abbagnano3. a) a “possibilidade abstrata” ou Metodista de Ensino Superior, Num esforço final para classificar “formal”, que separa o real do possível, 1993); L. Goldmann, A criação as linhas mestras que conduziram as entregando o devir ao puro acaso, à cultural na sociedade moderna (S. diversas correntes na história da filosofia contingência, a fatores externos; Paulo: Difusão Européia do Livro, até o presente e, assim, poder enquadrar b) a “possibilidade concreta”, 1972). Utilizaremos esta última as perspectivas que se projetam no aquela que tem o fundamento do seu tradução. futuro, Abbagnano propôs uma divisão ser em si mesma, e que, quando todas (3) Nicola Abbagnano, História da entre duas tendências recorrentes do as condições estão dadas, efetiva-se filosofia, vol. XIV (Lisboa: Editorial pensamento filosófico através das necessariamente. O necessário, portan Presença, quarta edição, 1993). “categorias modais” que as orientam: to, não decorre daquilo que é provável (4) Op. cit., pp.205-6. ou de fatores externos aleatórios, mas pensamento humano”7. Inspirado no sim da evolução objetiva da coisa, da “segundo princípio da termodinâmica”, razão nela presente: “que tal coisa seja Wiener construiu a teoria cibernética, possível ou impossível, depende do visando acompanhar a tensão entre conteúdo, isto é, da totalidade dos informação e entropia - entendendo momentos da realidade que, desenvol esta última como perda de energia vendo-se, se põe e se afirma como ocorrida na “transformação do trabalho necessidade”5. mecânico em calor”. Também na comu Goldmann recorre à tradição dia nicação, a interferência do acaso pro lética sem comprometer-se, como duz entropia: “assim como a entropia veremos mais em frente, com o caráter é uma medida de desorganização, a imanente da dialética hegeliana. A seu informação produzida por um grupo de modo, procurou enfrentar a cibernética mensagens é uma medida de e o estruturalismo, recorrendo à cate organização”8. goria da possibilidade - entendida pela Se formos acompanhar as impli ótica da liberdade humana e do papel cações filosóficas dessas teorias, vere ativo da consciência na construção da mos, sem muita dificuldade, que elas realidade social, opondo-se, com essa partem de uma clara negação do visão, à teoria da probabilidade. evolucionismo presente na biologia e, O texto de Abbagnano tem ainda por extensão, às idéias de progresso, o mérito de rastrear o método estrutu- desenvolvimento etc. Para Wiener, ralista e mostrar o seu parentesco com “palavras como vida, finalidade e alma a teoria da informação e a cibernética. são toscas e inadequadas para o Como é sabido pelos estudiosos da pensamento científico preciso”9. Além comunicação de massa, a teoria da disso, a comunicação (confundida com informação, também conhecida como informação) é vista como atividade “teoria matemática da informação”, foi própria da máquina, do autômato, inventada por dois engenheiros ameri projetando, assim, a utopia de um canos, Shannon e Weaver, preocupados mundo governado pelas máquinas com a transmissão de sinais entre as pensantes. Nesse prisma, a questão máquinas. O objetivo desses autores central é a tensão entre ordem e era saber como transmitir a máxima desordem, informação e entropia, quantidade de informação no menor comunicação e ruído, tensão contorná- tempo possível, com a máxima fideli vel pela auto-regulagem por feedback dade e sem a interferência do acaso - - a auto-ordenação cada vez maior das os ruídos que se interpõem no pro máquinas, que se reproduzem por si cesso comunicacional. mesmas, sobre o mundo dos homens. No mesmo período, Norbert A informação, observa Abbagnano, Wiener, que havia sido professor de “torna-se um modelo do qual são Shannon e Weaver, produzia os fun excluídos todos os elementos humanos damentos da cibernética. Contra o e que se pode portanto aplicar aos (5) G. W. F. Heget, Lógica (Madrid: determinismo da física newtoniana, campos mais diversos do saber”10. Não Miguel Aguillera Editor: 1971), p. que “descrevia um universo em que é casual, portanto, que Lévi-Strauss 239. tudo acontecia de acordo com a lei; um tenha chamado a sua antropologia (6) Norbert Wiener, Cibernética e universo compacto, cerradamente estrutural de “teoria da comunicação”. sociedade. O uso humano de organizado, no qual todo futuro As bases filosóficas, segundo o autor seres humanos (S. Paulo: Ed. depende estritamente de todo o italiano, são as mesmas, já que todas Cultrix, segunda edição, 1968), p. passado”6, Wiener recorre a Gibbs, que elas se submetem “à exigência de 9. colocou no centro da física a categoria encontrar uma mediação entre a ordem (7) Op. cit., p. 13. da probabilidade, do acaso, para, com e a desordem, ou seja de reduzir a (8) Idem, p. 21. isso, poder reconhecer “um elemento causalidade dos fenômenos que sur (9) Idem, p. 31. de determinismo incompleto, de quase gem num certo campo (ou em vários (10) N. Abbagnano, História da irracionalidade no mundo”, análogo “à campos) de investigação ou expe filosofia, cit., p. 297. admissão freudiana de um profundo riência a uma ordem relativamente componente irracional na conduta e no constante que mostre as suas relações recíprocas e tome possível a sua ex plicação e provável previsão”11. “...numa transmissão de infor Os teóricos marxistas não demo mações, não há apenas um homem ou raram a perceber no apego ao descen- um aparelho que emite informações e tramento do sujeito “o reflexo ideoló um mecanismo que as transmite, mas gico do mundo manipulado”12. Henri também, em qualquer parte, um ser Lefebvre, que também percebeu a humano que as recebe (...) e nós sabe “combinatória universal” do estrutura mos que a sua consciência não pode lismo como sendo uma “retomada da “deixar passar” seja o que for”14. cibernética e da teoria da informação”, afirmou a respeito de Lévi-Strauss e A consciência humana não é sua escola: “se se vai até o fim de seu passiva, e nem é moldável pelas pensamento, encontra-se uma predi mensagens e sua correção através de leção curiosa, quase maníaca, quase feedbacks do processo comunica esquizofrênica, pelo imóvel, pelo cional. A consciência é “opaca a toda quadro, pela grade. O tipo de inteli uma série de informações que não gibilidade que eles valorizam exclui o passam em razão mesmo de sua movimento. Em lugar de procurar as estrutura”15 - outras, passam de modo insuficiências de uma matriz, de uma deformado. O eixo da pesquisa, por grade, de uma tabela, para apreender a tanto, deve se deslocar para a esfera da mobilidade, eles preferem negar a recepção, esfera que será marcada pelo mobilidade...”13. E, com a negação da descompasso entre a consciência real (11) Um dos exemplos dados é o “mobilidade”, desaparece a possibili e a possível. estudo das relações de dade humana de interferir na realidade. Tal descompasso encontra, em parentesco em Lévi-Strauss, Promover a volta da “mobilidade” Lênin, um exemplo clássico para a fundadas, como se sabe, na foi a intenção de Goldmann no coló- reflexão. Em 1917, o revolucionário proibição do incesto: "se a quio de Royaumont. Para isso, apresen russo surpreendeu o movimento natureza abandona o conúbio ao tou uma comunicação em que se comunista internacional ao levantar a acaso e ao arbítrio, é impossível à alinhava à “categoria modal” da pos palavra de ordem “terra para os cultura não introduzir uma ordem sibilidade procurando, entretanto, camponeses”. Como se sabe, a tradição de qualquer natureza, lá onde ela diaietizá-la e, assim procedendo, socialista defendia até então a não existe. A principal tarefa da permanecer longe da probabilidade, propriedade coletiva da terra. Por isso, cultura é a de garantir a essa abstração estatística vazia de Lênin foi duramente criticado, entre existência do grupo como grupo e conteúdo. outros por Rosa Luxemburgo. portanto de substituir, neste Os sociólogos que realizam Goldmann, tomando a defesa do domínio como nos outros, o acaso pesquisas empíricas geralmente pri revolucionário russo, observou que a pela organização" (Lévi-Strauss, vilegiam o que os indivíduos, tomados partir de 1917 as idéias socialistas Les structures élémentaires de Ia isoladamente, pensam. Assim fazendo, haviam penetrado no meio rural, parenté, 1967, p. 37, citado por N. eles enfatizam a imobilidade e transformando rapidamente a men Abbagnano, p. 217. duplicam o real. Goldmann, em sua talidade dos camponeses. Mas, a defesa (12) Entre nós, Carlos Nelson comunicação, pretendia uma nova da propriedade coletiva era ainda Coutinho, O estruturalismo e a modalidade de pesquisa sociológica, inviável, pois estava muito além do miséria da razão (Rio de Janeiro: propondo o deslocamento do foco da máximo de consciência possível dessa Ed. Paz e Terra, 1972), p. 61. consciência real dos indivíduos atomi- classe social, sendo, desse modo, uma (13) Henri Lefebvre, "Claude Lévi- zados para a consciência possível dos “informação” impossível de ser Strauss e o novo eleatismo", in indivíduos integrados a grupos e assimilada. Por isso, Lênin, fazendo Debate sobre o estruturalismo (S. classes sociais diferenciadas. Percebe- papel de “sociólogo e mesmo de Paulo: Ed. Documentos, 1968), p. se aqui o seu desejo deliberado de teórico da informação”, percebeu “ser 40. intervir nas mensagens comunica possível transmitir aos camponeses (14) L. Goldmann, "A importância cionais, de tomar os meios de determinado número de palavras de do conceito de consciência comunicação como momento estra ordem socialistas, porém em nenhum possível para a comunicação", in A tégico de uma política cultural. caso fazer-lhes compreender as criação cultural no mundo Contra a teoria da informação, vantagens da grande exploração e os moderno, cit., p. 13. centrada na perspectiva da emissão, convencer de que deviam renunciar à (15) Idem, p. 8. Goldmann observa: propriedade individual da terra” (16) Idem, p. 9. A partir desse exemplo, Goldmann sociólogo deve isolar as estruturas propõe quatro níveis de análise - “para sociais e “construir, em cada caso, o quem deseje intervir na vida social” - conceito de consciência possível”. para entender os obstáculos à trans Para isso, ele precisa recorrer aos missão de informações: ensinamentos de Piaget que demons tram o caráter significativo dos fatos 1) uma informação pode não pas humanos, sempre orientados para sar por falta de informação prévia. Uma equilíbrios dinâmicos e provisórios. fórmula matemática complexa, apre Trata-se, em poucas palavras, de des sentada a um leigo, exemplificaria esse cobrir as estruturas significativas, primeiro nível de análise; construídas pelos grupos sociais e que 2) um segundo obstáculo diz orientam o seu comportamento. O respeito à estrutura psíquica do indi máximo de consciência possível de um víduo. Recorrendo a Freud, Goldmann grupo é explicitado pelas obras lembra os processos de resistência do literárias, artísticas e filosóficas - eu consciente que bloqueiam ou aquelas que “aspiram à totalidade”, à deformam o sentido das informações. afirmação de uma visão global do Esse obstáculo só pode ser removido mundo. Em todos os grupos existe através do tratamento psicanalítico; sempre um mínimo de coerência, que 3) o terceiro nível situa-se já no estrutura de forma significativa os plano sociológico. Um grupo social valores comuns compartilhados. Sem particular resiste a certas informações esse conhecimento prévio, a trans que possam contrariar a estrutura de sua missão de mensagens encontrará consciência real. O exemplo citado: bloqueios. pesquisadores ligados a uma determi Goldmann encerrou a comuni nada escola científica tendem a recusar cação reafirmando sua tese central: o teses formuladas por pesquisadores sociólogo não deve restringir-se à ligados a uma outra escola, porque consciência real dos indivíduos, mas essas podem pôr em xeque os resul sim sondar as mudanças suscetíveis de tados de suas próprias pesquisas. Aqui, se produzirem em sua consciência. a dificuldade pode ser superada pelo Após a comunicação, iniciou-se diálogo, e a transformação da cons um confuso debate, reunindo, basica ciência real não ameaça a existência do mente, acadêmicos ligados às ciências grupo social; exatas (biólogos, engenheiros eletrô 4) o último nível de análise nicos, físicos etc). As diversas inter refere-se ao máximo de consciência venções demostram um típico diálogo possível. Há situações em que a de surdos. Em meio a um encontro que aceitação de determinada informação reuniu pessoas interessadas princi implica no desaparecimento do grupo palmente em discutir o aspecto ou na perda de suas características quantitativo, mensurável, da informa sociais básicas. Portanto, a informação ção, Goldmann transpôs para o estudo não pode ir além dos limites da da comunicação as categorias centrais consciência possível do grupo, não de sua teoria sociológica. Desse modo, pode contrariar os fundamentos de sua deixou perplexos os cientistas existência social. A atitude de Lênin presentes que nada entenderam de sua perante a questão agrária exemplifica palestra. E, como é natural nesses bem a relação entre existência social momentos, os participantes derivaram e consciência possível. a conversa para assuntos periféricos (a objetividade nas ciências humanas, a O esforço analítico de Goldmann interferência dos valores no julgamen para classificar os entraves à comuni to dos fatos etc). cação enfatiza, como era de se esperar, A objeção de fundo, implícita no a dimensão social. A sociedade, diz ele, debate, diz respeito à intenção de não é um todo homogêneo, ela “com nosso autor em utilizar-se dos meios põe-se de grupos sociais”. Assim, o de comunicação para interferir no curso da vida social. Não faltaram sua obsessão pelos aspectos sintáticos, censuras nesse sentido: “nós formais e estruturais da organização e discutimos proposições que não são transmissão de mensagens. informativas, mas monitórias, Finalmente, marcava sua distância em exortativas, recomendativas, e é um relação ao existencialismo e à tradição erro falar delas como se fossem uma fenomenológica que enfocavam a informação”; “a palavra informação linguagem como transmissão da tem um sentido termodinâmico”; experiência vivida, consagrando, desse “Goldmann utiliza a palavra informação modo, a centralidade do sujeito tanto no sentido de educação quanto no individual e da subjetividade como de propaganda”; “no decorrer desse criadora dos sentidos (e não das colóquio, nós passamos de operações estruturas mentais dos grupos sociais de filtragem eletrônica, que podemos e da relação entre consciência real e calcular de maneira precisa, às consciência possível). operações de filtragem quase biológicas e, até mesmo, com o sr. O real e o possível Goldmann, às operações de filtragem de estruturas sociais” 17 etc. As duas formas de consciência - O que se pode dizer, para a real e a possível - permanecem, permanecermos no interior da teoria entretanto, tensionadas na reflexão de desenvolvida por Goldmann, é que sua Goldmann, numa relação de exposição procurava manter distância exterioridade, num dualismo. Percebe- em relação à teoria da informação e sua se aqui a diferença de Goldmann em influência sobre o estruturalismo. As relação à dialética hegeliana e à sua bases filosóficas dessas duas correntes utilização no Lukács de História e são, como vimos anteriormente, consciência de classe. Também nesta idênticas, mas havia entre elas uma obra, a passagem da consciência real diferença de enfoque nos estudos para a Consciência de Classe sobre comunicação de massa. permanecia um mistério. O próprio Enquanto a teoria de informação Lukács, no posfácio de 1967 para pressupunha o controle do emissor História e Consciência de Classe, sobre a informação posta em chamou atenção para o fato: ignorando circulação, o estruturalismo, os chamados “estudos de opinião”, as concentrava sua atenção no código, pesquisas sobre a consciência empírica enfatizando de tal forma o significante dos indivíduos que compõem a classe que, no limite, chegava a constituir o operária, a consciência verdadeira, num próprio significado. passe de mágica, era chamada para Num contexto de hegemonia do realizar a revolução social. O caráter pensamento estruturalista, Goldmann messiânico dessa passagem não apegou-se ao conceito de consciência invalida, contudo, a sua rigorosa possível. Com isso, ele pôs em coerência lógica. Admitindo, como primeiro plano a recepção, o papel ativo Hegel, a identidade entre sujeito e do receptor na decodificação da objeto e, ao mesmo tempo mensagem. A decodificação, como identificando objetivação com procurou demonstrar, depende das alienação, o proletariado em Lukács, estruturas mentais dos diversos grupos ao realizar a revolução, suprimia a sociais. Goldmann, assim, opunha-se às alienação e, assim, tornava-se um tentativas de entender a comunicação sujeito-objeto idêntico. como uma mera transmissão de sinais, Goldmann, contrariamente, não desprovidos de qualquer carga fala em classes, mas, quase sempre, semântica e, por isso mesmo, num sujeito coletivo fluido e destinados aos exercícios de impreciso - os grupos sociais. Além quantificação (teoria matemática da disso, admite apenas a identidade “parcial” (17) Cf. Le concept d'informations informação); mas, ao mesmo tempo, entre sujeito e objeto. Portanto, livra-se dans Ia sciences contemporaines, distanciava-se do estruturalismo e de com essa admissão do logicismo e da cit., pp. 61, 71, 73. tendência a ver a história como o curso revolucionária, a reconciliação final. No de um silogismo lógico que se realiza, jovem Marx, é o ser do proletariado e a necessariamente, através da falsa cons ação conforme esse ser; no texto da ciência dos homens. Mas, nem por isso maturidade, é a humanidade que consegue equacionar a relação entre o real “levanta” e “resolve” os problemas que e o possível. Como se dá essa passagem? lhe foram postos pela história, e que só Em Hegel e em Lukács, quando as con são postos quando as “condições dições necessárias estão dadas, o possível materiais” de resolução já se apresen se realiza necessariamente. O possível, tam. Mas, nesses três autores, estamos assim, não é o outro do real, mas sua ne perante uma concepção de totalidade cessidade interna. que se autodesenvolve. Nada, portanto, O próprio Marx não escapou das está fora da totalidade. No caso que nos tentações logicistas em sua juventude, interessa: a possibilidade não está fora embora conservasse sempre uma visão da totalidade, pois, se algo fora existir, imanentista da história. Na famosa a totalidade espatifou-se, perdeu sua passagem de A Sagrada Família, afirmou coesão interna, transformou-se numa que o importante não é saber o que parte coexistindo ao lado de outra. pensa tal ou qual operário, mas de Em Goldmann, contrariamente, há saber “o que é o proletariado” e “o que uma “aspiração à totalidade”, a busca de deve historicamente fazer de acordo algo fora da realidade “in progress”. O com o seu ser. Sua finalidade e sua ação possível, posto fora da totalidade, é histórica estão traçadas, de maneira perseguido pelos grupos sociais e não tangível e irrevogável, em sua própria pelas classes - e, nessa substituição dos situação de existência e em toda a sujeitos coletivos transparece outra organização da sociedade burguesa demonstração da fragmentação da atual”18. Muitos anos depois, voltou ao totalidade. Adorno e Horkheimer tema, reafirmando sua visão imanen observaram, a propósito, que a palavra tista do processo histórico, mas evi grupo assemelha-se ao que a teoria da tando o logicismo (que, como se sabe, linguagem chama de “expressão oca contaminou alguns textos de seu amigo sional”, ou seja, “um lugar vazio que, Engels). No famoso prefácio à segundo o contexto de cada ocasião, se Contribuição à Crítica da Economia enche de diferentes significados” 20. Em Política, afirmou: “... a humanidade só Goldmann, sobe para o primeiro plano, na levanta os problemas que é capaz de conceituação de grupo, a dimensão resolver e assim, numa observação subjetiva, a “estrutura mental”. Nesse atenta, descobrir-se-á que o próprio contexto, a “consciência possível”, problema só surgiu quando as con desponta como uma projeção utópica - dições materiais para o resolver já uma aposta, como diria Pascal. existiam ou estavam, pelo menos, em O empenho em afirmar a vias de aparecer”19. centralidade da consciência possível nos (18) Karl Marx e F. Engels, La Goldmann, ao contrapor-se à estudos de comunicação levou o nosso Sagrada família (Buenos Aires: “teoria da informação”, procurou não autor a conceber um amplo projeto de Editorial Claridad, 19 ), p. 51. identificar o possível com o provável. pesquisa que, infelizmente, não pôde ser (19) Karl Marx, Contribuição à Mas a consciência possível, que ganha realizado. O projeto, intitulado, crítica da economia política (S. expressão articulada nas obras de arte “Epistemologie differentielle et Paulo: Ed. Martins Fontes, 1977), e na filosofia, como pode realizar-se conscience possible” foi descoberto por p. 25. nos indivíduos empíricos? Se não há dois de seus discípulos, Samir Naïr e (20) Max Horkheimer e Theodor uma necessidade lógica, imanente, Michael Löwy21. W. Adorno, Temas básicos de como fundamentar sua efetivação? Na Goldmann pretendia realizar “uma sociologia (S. Paulo: Ed. Cultrix, lógica hegeliana, é o automovimento pesquisa epistemológica orientada para 1973), p. 61. da totalidade que, ao cancelar as alie o estudo diferencial das estruturas (21) Cf. Goldmann et Ia nações, produz o momento luminoso mentais correspondentes à diversos dialectique de Ia totalité (Paris: do autoconhecimento. Em Lukács, grupos sociais”. Essas estruturas mentais Ed. Seghers, 1973), pp. 159-162. cabe ao proletariado realizar, através da constituiriam “campos de variações” tomada de consciência e da ação possíveis através do quais se estabe leceriam as resistências da consciência e as expressões da consciência, trouxe possível das camadas médias da ram o “encolhimento” da consciência, sociedade francesa, representadas por expresso com nitidez nos romances de dois grupos distintos: a) técnicos de nível Robbe-Grillet, interpretados como superior e profissionais liberais; b) sintomas do triunfo definitivo da empregados da administração. reificação. A pesquisa teria dois momentos: no O ensaio de 1957 começa primeiro, uma pré-enquete deveria ser apresentando a visão apologética dos aplicada num grande número de meios de comunicação: as transfor indivíduos. Para tanto, seria utilizado um mações recentes do capitalismo exi questionário visando descobrir as gem mais qualificação da mão-de-obra, atividades culturais dos entrevistados e houve uma diminuição da jornada de seu grau de engajamento em atividades trabalho, aumentou a escolaridade, há sociais. Com isso, selecionaria inici mais tempo livre, aumentou o número almente um grupo composto de cem de pessoas com acesso aos bens indivíduos - aqueles que demostraram culturais e, nesse novo contexto, a um grau mais elevado de consciência. mídia é um agente da democratização Esses indivíduos selecionados seriam da cultura etc. objetos de novas entrevistas, dirigidas e Tal visão, segundo o nosso autor, não-dirigidas. Finalmente, eles seriam ignora “o aspecto fundamental do ouvidos a respeito de dois livros problema da comunicação: a transmissão previamente lidos (Madame Bovary, de de um conjunto de conhecimentos não Flaubert e um romance contemporâneo depende apenas da quantidade, nem a ser definido), e de dois filmes projeta mesmo da natureza (...) das informações dos (um sobre a atitude perante a vida emitidas, mas, também, e em primeiro moderna, Sandra, de Visconti ou O lugar, disso que, em linguagem moderna, deserto vermelho, de Antonioni; e outro, poderíamos chamar a estrutura do um “filme de evasão”, Zorba, o grego, de receptor e que, no caso preciso, é Cacoyannis). constituído pela estrutura mental e Essa interessante e ampla pesquisa, psíquica dos indivíduos que freqüentam contudo, não pôde ser realizada. as escolas, ouvem rádio, assistem televisão, vão ao cinema e lêem livros A comunicação nos tempos de bolso e histórias em quadrinho”23. do "capitalismo de organização" A estrutura mental, por sua vez, relaciona-se diretamente com as fases A segunda intervenção nos da vida social e, no “capitalismo de estudos de comunicação de massa deu- organização”, ocorre uma drástica se em 1967, no seminário internacional transformação. “Mass-media e criação imaginária”. A antiga sociedade liberal Goldmann, então, apresentou o ensaio encerrava uma aparente contradição. O Possibilidades de Ação Cultural através processo de reificação nela presente dos “mass-media”22. ocultava o caráter humano das relações Nesse momento, Goldmann vivia sociais, trazendo para o primeiro plano um processo de redefinição de sua uma visão individualista que apagava a teoria marcado pela perda de esperança imagem da comunidade humana e dos na utopia, em especial no papel valores. Nesse contexto adverso, revolucionário atribuído à classe contudo, surgiu uma notável floração operária. A referência à “consciência cultural extremamente crítica da ordem possfvel”, válida para o capitalismo vigente, cujo exemplo maior é o concorrencial e a fase imperialista, romance realista. Contra a desuma- cedeu lugar, no “capitalismo de nização, “o romance guardava, embora (22) O texto encontra-se organização”, ao completo predomínio unicamente sobre o modo de ser da publicado no livro A criação do processo de reificação. O desapa ausência, o vínculo com os valores...”24. cultural na sociedade moderna. recimento da antiga “opinião pública”, O “herói problemático”, símbolo maior (23) Idem, p. 20. mediando as relações entre a sociedade do período, debatia-se nesse mundo (24) Idem, p. 22. opaco para tentar, inutilmente, realizar informações numa visão global. Esse os valores ameaçados. é o pano de fundo da dominação Goldmann busca uma explicação burguesa: a violência física é substi sociológica para essa resistência tuída pela “violência intelectual” e pela cultural: a sociedade liberal gerou uma “redução da atividade do campo da camada social heterogênea, chamada consciência”. por ele de notáveis, que incluía os Diante de tal diagnóstico, Goldmann quadros intelectuais divididos entre o observa o caráter global e circular do apoio aos setores dominantes ou aos novo padrão de dominação que não pode partidos operários. Essa camada, esteio mais ser rompido unilateralmente. A ação da opinião pública e base da democracia cultural encontrará pela frente a parlamentar, mediava as instâncias que passividade e o desinteresse, isto é, “as tomavam decisões e os executantes. estruturas de consciência” moldadas pelo Assim, apesar do processo de reifica- capitalismo. A ação política, por sua vez, ção crescente, continuava existindo encontrará o mesmo obstáculo, que “uma importante autonomia da toma incompreensível suas palavras de consciência individual fundada sobre as ordem. Toda ação em defesa do huma responsabilidades”25. nismo terá que ser feita nas duas frentes O desenvolvimento posterior do de batalha, ganhando assim um caráter capitalismo suprimiu essa camada in global e circular, ao buscar uma reori- termediária e, com ela, a antiga opinião entação da vida “no sentido de um re pública, pondo em seu lugar os nascimento da atividade e das res tecnocratas que passaram a monopolizar ponsabilidades dos indivíduos”26. as decisões. A concentração do poder Como se pode perceber, o decisório fez-se acompanhar da diagnóstico sombrio apresentado por passividade da imensa maioria dos Goldmann é acompanhado de indi trabalhadores. E a passividade, nos novos cações tímidas e imprecisas sobre as tempos, não se restringe mais ao possibilidades da emancipação trabalho, atingindo também à esfera do humana, seja na esfera do mundo do lazer e, portanto, a elaboração, recepção trabalho, seja através da “ação comuni e assimilação dos bens culturais. cativa”. O pessimismo que caracterizou A recepção integrada, ou melhor o pensamento do autor nesse período dizendo, mediada, da sociedade foi subitamente abalado pelo vendaval capitalista liberal, cede agora lugar à revolucionário de 1968. Goldmann, “desorganização dos receptores”. então, procurou atualizar a sua teoria. Além disso, a quantidade massiva de Mas não teve tempo: a morte o informações lançada sobre o receptor surpreendeu, dois anos depois, aos 57 torna impossível a integração dessas anos de idade.
(25) Idem, p. 23.
(26) Idem, p. 27. Bibliografia do Artigo
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1993. COUTINHO, Carlos Nelson. O estruturalismo e a miséria da razão, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1972. DOSSE, François. História do estruturalismo, S. Paulo, Ed. Ensaio, 1993. GOLDMANN, Lucien. A criação cultural na sociedade moderna, S. Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972. __________________ . A importância do conceito de consciência possível para a comunicação, in A criação cultural no mundo moderno. HEGEL, G W. F. Lógica, Madrid, Miguel Aguillera Editor, 1971. HORKHEIMER, Max - ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia, S. Paulo, Ed. Cultrix, 1973. LEFEBVRE, Henri. Claude Lévi-Strauss e o novo eleatismo, in Debate sobre o estruturalismo, S. Paulo, Ed. Documentos, 1968. MARX, Karl - ENGELS, F. La Sagrada familia, Buenos Aires, Editorial Claridad. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política, S. Paulo, Ed. Martins Fontes, 1977. NAÏR, Sami - LOWY, Micahel. Goldmann et la dialectique de la totalité, Paris, Ed. Seghers, 1973. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade. O uso humano de seres humanos, S. Paulo, Ed. Cultrix, 1968.