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TEXTO CRÍTICO 1

Sermão de Santo António [1654], do Padre António Vieira


PADRE ANTÓNIO VIEIRA (1608‑1697)
A alegoria e o «exemplo»
O desenvolvimento de Bossuet é de ordem lógica, procurando no dogma basear a dedução doutrinal
e moral — ao passo que o de Vieira é de ordem analógica, por semelhança e «exemplo». Este predomínio
da analogia sobre a dedução provém tanto do ambiente e do gosto generalizado da época como, mais
particularmente, da constituição do espírito profético do orador português. Este levava à interpretação de
5 textos em função da realidade a que se ajustasse misteriosamente; ou, de modo recíproco, levava a reali‑

dade a um texto que a iluminasse. Para este pendor «teorético» não se trata, portanto, de deduzir provas de
princípios gerais, mas de realizar uma construção maravilhosa do sentido dos acontecimentos, ajustando‑os
à palavra da Verdade que é a Bíblia.
Já dissemos que, para Vieira, o mundo e a história estão dados no simultaneísmo da profecia. E, nesse
10 caso, o que verdadeiramente interessa é a aplicação ao acontecimento que surge, da luz permanentemente

dinâmica dos oráculos divinos. A dedução de causa para efeito e de princípios para consequência, essa é
que seria tarda e vagarosa. Pelo contrário, esta sala de espelhos do tempo e do espaço, que é a Bíblia, ime‑
diatamente responde, em múltiplos reflexos, à proposta de quem nela entrar. Assim se realizará, na oratória,
o que, já vimos antes, se dava na História do Futuro: «uma perpétua novidade sem nenhuma coisa de novo».
15 E fica o sermão, muitas vezes transformado numa multiplicidade de reflexos e de ecos, em diferentes
espaços e idades, o que oferece flagrantes analogias, agora em ponto grande, com o que se dava nas alu‑
sões e perífrases do estilo, em ponto pequeno. O que faz a subtileza do estilo seiscentista é, quase sempre,
a perífrase ou rodeio, a alusão àquilo que se não formula claramente. Donde se vê que a alusão é muito
própria da «forma aberta», e permite tocar, ao longe e ao perto, em muitas sugestões. Aí estão os planos em
20 profundidade e os espaços arbitrários da pintura barroca.

Ora bem. Vieira, que não é cultista no estilo, é‑o, em ponto grande, na conceção do discurso. Por outras
palavras: o conceptismo é um cultismo desenvolvido. O que é para o estilo uma alusão rápida a um objeto
distante é, no sermão de Vieira, um parágrafo inteiro, alusivo à realidade que vai tratando. E com tanta natu‑
ralidade realiza esse confronto de tempos e acontecimentos que nem sequer se dá ao trabalho de suavizar
25 as transições. É um reflexo que ao longe brilha, e que nos introduz na profundeza dos tempos, sem mais

explicações, porque a semelhança alusiva, por si mesma, estabelece a ligação: «Pelejaram os pastores de
Abraão com os de Lot…»; «Lá viu S. João no seu Apocalipse…»; «Depois da morte de el‑rei Saul…».
E aí temos como a oratória vieirense gira, naturalmente, sobre a alegoria e o «exemplo», que são a visão
do mundo em dois planos: «Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso…»; e como a sua
30 estética se pode definir como «estética do espelho»: a realidade humana, vista na imagem da Bíblia, que é

«o espelho das profecias», em exemplos quase sempre extraídos dos Livros Sagrados. E por esse lado,
enquanto aplicação à vida de um paradigma divino, a alegoria está tão longe de ser fautora de irrealidade,
como já se tem dito, quanto é o caminho mais comum de Vieira entrar na vida, por alusão, ironia e perífrase.
Todo o «Sermão da Confissão dos Ministros» (sermão do terceiro Domingo da Quaresma, pregado na capela
35 real), o «de Santo António aos Peixes», os vários «de Pretendentes», e quantos outros, atingem a bem acesa

refrega da vida real, precisamente através da alegoria. Esta combina‑se muito facilmente com a ironia, que
consiste em significar o contrário do que as palavras significam na sua materialidade. Servem‑lhe, pois,
muito bem os dois planos da linguagem para os mais acerados a certeiros golpes. E temos, assim, uma
espécie de paralelismo, mas de linhas em sentido contrário. Os exemplos são infinitos. Só um por mais
40 breve:

A aranha, diz Salomão, não tem pés, e sustentando‑se sobre as mãos, mora nos palácios dos reis. Bom
fora que moraram nos palácios dos reis e tiveram neles grande lugar os que só têm mãos. Mas a aranha não
tem pés, e tem pequena cabeça, e sabe muito bem o seu conto. Sobe‑se, mão ante mão, a um canto dessas
abóbadas doiradas, e a primeira coisa que faz é desentranhar‑se toda em finezas. Com estes fios tão finos,
45 que ao princípio mal se divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em

uma rede para pescar e comer. Tais são (diz o rei que mais soube) as aranhas de palácio.
Poderá dizer‑se que esta alegoria, que é também finíssima ironia, distrai da vida o orador? E quantas e
quantas passagens como esta se encontram na sua pena combativa!

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana 141

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Interação vida-verbo na oratória de Vieira


1 O que mais impressiona nos escritos do padre António Vieira (Lisboa, 1608‑Baía, 1697) é o facto de
neles emergir, em modos vários, a consistência de uma personalidade e de uma vida: uma biografia. Não
Sermão de Santo António [1654], do Padre António Vieira

admira pois que os mais íntimos conhecedores da sua obra sejam os seus biógrafos: André de Barros, João
Lúcio de Azevedo, António Sérgio, Hernâni Cidade, José van den Besselaar, ou o próprio João Mendes,
5 apesar do seu temperamento tendencialmente crítico e ensaístico. Só Raymond Cantel e António José

Saraiva parecem ter fugido um pouco a esse tropismo biográfico. O primeiro, porém, tendo começado por
estudar o estilo de Vieira, logo passou do estilo para um outro aspeto dos mais ligados à vida de Vieira: o
profético. O segundo fixou‑se e investigou a fundo e desassombradamente dois passos ou temas fulcrais
dessa biografia (a questão indígena e a judaica) e pretendeu compreender a bizarra lógica do discurso
10 vieiriano, em O Discurso Engenhoso. A o longo do presente trabalho, tentarei aproximar estes dois esforços

de A . J. Saraiva por pensar que na génese da identidade discursiva de Vieira se encontra uma espécie de
compulsão biográfica, e que o efeito literário e barroco de tal discurso corresponde a um processo de subli‑
mação verbal e simbólica dessa disposição primacial. A oratória sagrada, enquanto formação e género
discursivo, para mais hegemónico na época, possibilitou e fomentou essa sublimação, ao gerar o que foi a
15 «vocação enunciativa» de Vieira.

A verdade é que a referência literária ao autor padre António Vieira arrasta imediatamente para a
memória, senão para a imaginação, a evocação da sua personalidade e do seu destino particular, aberto à
especulação e à significação. Dificultoso se torna falar da obra sem que a vida do homem se venha interpor;
mas não a vida de um homem «sem qualidades», antes já a de uma identidade e a de um tipo heroico: o do
20 pregador. Não se pode explicar o biografismo apenas por os sermões serem obras de circunstância: ações

verbais aplicadas à ocasião ou tempo (kairos), fundadas e atuando sobre um tema do calendário litúrgico,
da festa do dia ou da vida política, social, institucional e religiosa num determinado momento. Neles se
envolvia a pessoa que verbalmente atuava sobre ou a partir dessas circunstâncias: o pregador Vieira. Deste
modo, alguns dos traços próprios da oratória sacra como formação discursiva foram eles mesmos determi‑
25 nantes na compulsão biográfica. Todavia, outro fator concorre. Vieira ia construindo ou perseguindo a sua

própria identidade e a imagem dela através dos discursos que fazia; por sua vez, esses discursos, dada a sua
natureza, animavam‑no nessa busca. A energia vital tinha assim uma proveniência dupla e em interação:
existencial e textual. Nas orações colocava o autor os sinais ou avisos de um sentido para a sua existência, ou
seja, de um destino; mas tal destino vinha já alicerçado nos próprios meios discursivos. Procuraremos com‑
30 preender melhor este fenómeno, integrando‑o numa constelação cultural, mental e existencial específica

da época, e que o jesuíta pode contribuir para melhor definir. A estampa de uma pessoa e de uma vontade
de ser fica gravada na sua obra escrita, fecundando‑a literariamente; por sua vez, a sua obra, oral e escrita,
trabalha no sentido de esculpir uma imagem. Desenha‑se um círculo que julgo compreender, sem que,
contudo, o possa vir a explicar.
35 Tal equação não resulta de uma ideia ou tese caprichosa; é com naturalidade que a relação biografia‑
‑discurso se evidencia, e daí eu supô‑la interveniente na dimensão estética e literária alcançada pela obra
do pregador. Todo o trabalho aqui empreendido se esforçará por verificar isso mesmo. Simultaneamente,
mostrará o teor dessa dimensão literária, ou seja, tentará adjetivá‑la com atributos colocados sob a desig‑
nação genérica de barrocos.
40 Assim se podem considerar certos fenómenos capitais nas obras de Vieira, assentes mais na atividade
enunciativa do que neste ou naquele conteúdo; assentes sobretudo na enérgica e produtiva interação vida‑
‑verbo. Entre outros, o autorretrato por mediação textual, a teatralização e ficcionalização de um locutor
heroico e ideal, a assimilação empenhada das palavras às coisas (ou seja, às situações pragmáticas, ao con‑
texto real da enunciação), o vedetismo da ação ilocutória e dos desempenhos oratórios, o trabalho exercido
45 sobre um certo imaginário primordial e sobre um opulento acervo de paradigmas linguísticos e textuais.

Será este o contributo de Vieira para o esclarecimento do conceito de barroco.


Vieira não escrevia para falar de si próprio, mas a sua vitalidade e a paixão por alguns dos temas que
tratou e por muitas das teses que expôs, assim como pelo jogo com o significante linguístico e retórico
(a engenhosidade), conduziram à edificação de uma subjetividade que surge materialmente no discurso.
50 E surge com a força revigoradora de uma espécie de «centro vital» ou de «étimo», para utilizar parte da

terminologia do crítico Leo Spitzer, largando propositadamente a adjetivação, no meu entender contro‑
versa, de «interno» e de «espiritual» com que Spitzer quis precisar a sua intuição teórica.

marGarida vieira mendes, A oratória barroca de Vieira, Lisboa, Editorial Caminho, 1989.

142 ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 11.o ano • Material fotocopiável • © Santillana

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