Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
O CRAVO E A ROSA:
IDENTIDADES GENERIFICADAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Ijuí (RS)
2007
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
O CRAVO E A ROSA:
IDENTIDADES GENERIFICADAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Ijuí (RS)
2007
2
AGRADECIMENTOS
- Aos meus irmãos, pelo apoio e incentivo para que eu buscasse a realização pessoal.
- Às professoras e colegas da EFA: Denise, Fátima, Liane P., Lisiane, Maristela H.,
Rosane B., Sônia P., Sônia K., pelo apoio e compreensão. À diretora da Escola, Gisela
Kusiack, por viabilizar formas possíveis para a realização do Mestrado.
- Às amigas Ana Maria, Maristela Maurer, Vânia, Marlene e Nelly, que foram cúmplices
na minha formação como professora.
- Ao Osmar, pelas horas roubadas do seu convívio, que serão compensadas com a chegada
da nossa filha Maíra.
RESUMO
ABSTRACT
The present work analyzes the representations of gender in a full-time public school in
Ijuí/RS. This research, with a ethnographic nature, with children whose ages range (from 4 to
5 years old) and with four teachers, was carried out based on the talk of these individuals,
having as focus the representations of gender – to be a boy or to be a girl. The talks were used
to map the different significations diffused in a space constituted by the female work. This
investigation considered identity questions, in a special way the generational identity –
childhood – the gender identity and the professional identity, constituted and traversed by
different discourses and pedagogical practices that go beyond the educational process in the
school. The gender identity was analyzed through some representations which are present in
the everyday life of the children in different learning situations: in infant songs, in children’s
plays and in the literature, as a way to distinguish positions and show the relational difference
through the representations of the female and the male as a historical, social and cultural
difference, which build ways of being a boy and being a girl by means of discourses and
social practices. The references about Feminist Studies and Contemporary Cultural Studies
contributed to enrich the discussion about the plurality of this theme. From the activities
observed, it was verified that they organize time, rituals, attitudes and ways of being boy or
being girl, according to the reality of his or her social environment. However, it is not only the
school, but also many other institutions, with their discourses and social practices, that
constitute the different identities as male and/or female, as well as identities of social classes,
ethnicities, religiosity, sexuality and generational.
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 95
ANEXOS........................................................................................................................... 102
7
Imagem da música infantil O cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte e
publicada pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 1).
8
quem brincava e de um amigo, o “Jefe”, com quem poderia brincar por não ter problema
nenhum, pois ele era “educado como uma menina”. É nesse sentido que busco utilizar esse
fragmento da minha história de vida para construir a primeira ponte, relatando que desde a
infância fui educada, ou melhor, moldada/ensinada, para ser uma “boa moça” que aprendeu a
bordar, a limpar e a cozinhar.
Mas a sociedade, digo, a vida social na escola proporciona-nos outros rumos e, como
toda e “boa” adolescente, chegou o momento de quebrar a regra. Então fui cursar Técnico em
Mecânica, tido como um curso masculino. Eu era a única menina numa turma de doze
meninos. É claro que virei chacota da supremacia masculina e não agüentei a pressão. Talvez
tenha sido a forma por mim encontrada de não admitir ser apenas mais uma mulher envolvida
nos afazeres femininos, mas comprometida em desenvolver uma função social. É por essa
função que nos anos seguintes fiz a opção pelo trabalho com a Educação, mais
especificamente, com a Educação Infantil que, na década de 90, ainda recebia a denominação
de creche, na qual trabalhei alguns anos como monitora. Apesar de ser considerada, naquele
momento, leiga em questões educacionais, lembro de minha angústia em relação ao trabalho
desenvolvido, pois desejava contribuir na formação das crianças para que se tornassem
sujeitos, e não apenas cuidá-las enquanto as suas famílias trabalhavam, situação que se
evidenciava no cotidiano.
Uma dessas vivências está relatada no texto produzido em uma das disciplinas do
Mestrado, posteriormente publicado1. Tal vivência faz referência a meu primeiro dia de
trabalho, em 1991, quando cheguei à escola infantil e a diretora levou-me para conhecer as
colegas – monitoras e as crianças. O último lugar que ela me apresentou foi a sala onde
desempenhei minhas funções. Quando apresentada para as crianças como a “profe nova”
houve um silêncio que pareceu prolongado, então um menino de três anos quebrou esse
silêncio: “Profe, olha o meu cabelão”. Ele estava usando uma touca de bebê com cordões e
pompons nas pontas, girava a cabeça como se estivesse movimentando seus longos cabelos.
Neste momento, a outra professora da sala vem a meu encontro afirmando que esse menino
desejava ser uma menina igual a sua irmã de cinco anos, e que sua fala era muito delicada e
afeminada, mas a família não havia percebido ou não queria perceber.
Essa não foi a única vivência em relação à identidade de gênero, muitas outras
permanecem na memória, algumas, é claro, mais significativas. Um outro exemplo é a
vivência em outra escola, em 2002, em que uma menina fazia acrobacias no pátio da escola,
subia nos galhos mais altos das árvores, estava sempre envolvida em brincadeiras e brigas
com os meninos, sendo que eles sempre levavam a pior, pois ela batia neles. Por outro lado,
um dos meninos brincava de bailarina, de bonecas e queria usar batom, ações que,
supostamente, seriam típicas de menina. Entretanto, em uma conversa com a mãe desse
menino, ela argumentou que ele poderia brincar com as fantasias (vestidos, saias de balé...)
desde que o avô, quando viesse à escola para buscá-lo, não o encontrasse vestido de menina.
Segundo a mãe, no ano anterior, o avô teria comentado que essa brincadeira incentivaria para
que o neto desejasse ser menina, já que é uma criança muito carinhosa e meiga. Tais atitudes
eram consideradas, pela mãe, uma forma de expressar seu afeto. Mas para o avô, isso não era
tranqüilo diante dos referenciais e pré-conceitos estabelecidos por sua geração e suas
manifestações culturais.
A terceira ponte possível de construir é aquela que se refere ao processo pelo qual se
consolida um sujeito pesquisador. Ao ingressar no Mestrado, logo após ter concluído o curso
de Pedagogia na Unijuí, fiz muitas leituras de pesquisas realizadas sobre as identidades
1
Texto em que discorro sobre Representações de gênero na Infância, constituído e organizado pelo Grupo de
Estudos sobre Infância e Adolescência – Crisálida, coordenado pela Professora Doutora Noeli Valentina
Weschenfelder (APPELT, Jussara Pietczak. Representações de gênero na Infância. In: SOUZA, Cristiana
Callai de; WESCHENFELDER, Noeli Valentina. Cultura, infância e sociedade: constituindo uma comunidade
de leitoras. Ijuí, Ed. Unijuí, 2006. Coleção trabalhos acadêmicos científicos. Série Educação nas Ciências, 13).
11
2
Os Estudos Culturais, com objetivo de definir a movimentação intelectual no panorama político pós-guerra,
provocaram uma reviravolta na teoria cultural, atravessando o terreno de noções e concepções extremamente
complexas como cultura e popular. Desta forma, os Estudos Culturais não vêm desvelar, mas duvidar,
questionar, apontar diferentes possibilidades, ferramentas conceituais e saberes que emergem das leituras de
mundo, principalmente no campo da educação (COSTA, 2003, 2004).
3
Os Estudos Feministas foram consolidados, principalmente, por mulheres que buscam os direitos de igualdade
entre homens e mulheres, lutam por melhores salários e condições de trabalho, entre tantos outros, como foi a
luta pelo direito ao voto. Além de ajudar a entender a desigualdade entre homens e mulheres e ampliarem seus
direitos civis e políticos, ajudaram a expressar questões como relações de gênero. Na dimensão do Feminismo
como dos Estudos Culturais, ambos querem questionar e transformar o que é dado como “verdade”.
“Questionar e transformar não significa destruir.” (AUD, 2003, p. 59).
4
Os estudos Pós-Estruturalistas provocaram a “virada lingüística”, afirmando que a linguagem não seria
propriamente uma representação da realidade feita pelos sujeitos, mas sim constituidora dos sujeitos e da
realidade. O Pós-Estruturalismo traz a proposta da desconstrução, principalmente em relação à oposição
binária como homem/mulher, masculino/feminino, entendido como natural e imutável (LOURO, 1995, p.
110).
12
Considero as distinções de gênero para esta etapa da educação formal com as crianças:
a organização das crianças em filas para sair da sala de aula – uma fila de meninas e outra de
meninos, depois, de mãos dadas, formam pares (casais); a chamada (relação de alunos) da
turma exposta na sala – a cor rosa para identificar as meninas e a azul para os meninos; o
momento dos brinquedos – as meninas brincam com as bonecas e os meninos com os
carrinhos (na sala); no pátio – as meninas brincam na casinha, enquanto os meninos jogam
futebol; o momento de organizar a sala para colocar os colchões para o repouso6 - ou quando
a professora pede auxílio, pois segundo o seu relato “sempre quem se propõe são as meninas,
elas têm mais jeito e gosto por essas tarefas”.
5
No decorrer da Dissertação serão intercaladas imagens da música infantil O cravo brigou com a rosa,
registrada como literatura por Luiz Duarte e publicada pela Editora Kuarup, em 1987.
6
Por ser uma escola de período integral, as crianças têm o momento de repouso, dormem depois do almoço na
sala de aula.
13
Dornelles (2005). Ainda, abordo a origem das instituições infantis no Brasil, faço uma breve
retomada histórica da Educação Infantil no município de Ijuí/ RS e o mapeamento da escola
pesquisada.
No capítulo III, Qual é o gênero da Educação Infantil, abordo o tema enquanto campo
de atuação feminina e as significações das professoras na escolha profissional nesse espaço
constituído por mulheres, em que são veiculadas representações de gênero. Para tal, busco
contribuições nas idéias de Denise Catani (1997) e Valeska Fortes de Oliveira (2004).
Neste estudo, voltei meu olhar para as questões de gênero na infância, escolhendo
uma escola pública para realizar a pesquisa de campo por meio de observações e entrevistas,
associando uma vivência familiar. Necessariamente, por tratar-se de pesquisa sobre gênero,
7
Além desta canção muito presente no cotidiano da escola infantil, inspirei-me em muitas outras tais como:
Terezinha de Jesus; A Linda Rosa Juvenil; Viuvinha, por que Choras?
14
8
Esses registros foram arquivados em papéis na antiga Secretaria da Ação Social, à qual pertencia enquanto
creche. Esta estava locada em um prédio muito velho (Tiro de Guerra, construído entre 1927 e 1930), que
atualmente é a única construção do município tombada pelo Patrimônio Histórico-Cultural da Humanidade.
Esse prédio, além de sofrer as ações do tempo, também sofreu a ação de uma tempestade, com o seu
destelhamento e a má conservação. Alguns documentos perderam-se em função da umidade e da deterioração.
9
Utilizo este termo por assim ser denominado o trabalho com as crianças menores de seis anos de idade, o qual
provém da cultura do assistencialismo que foi sendo constituído desde o início da história da Educação
Infantil. Elas são atendidas enquanto suas famílias trabalham, embora neste período de permanência nas
escolas esteja acontecendo o processo educativo, de acordo com a sua faixa etária. Esse termo talvez se dê
também pela falta de vagas, pois há listas de espera para as crianças que não são atendidas.
10
Segundo Nelson, Treichler e Grossberg (1995) em Estudos Culturais: uma introdução, a etnografia está
enraizada primariamente na teoria e na prática antropológica. Embora ela não se defina por si mesma, se junta
a um corpo de trabalho feito por teóricos/as feministas, negros/as e pós-coloniais preocupados com a
identidade, a história e as relações sociais.
15
É essencial considerar essa citação pois os autores mencionam que as falas das
crianças são elementos fundamentais para a compreensão das culturas infantis, com
significação e ação no mundo diferentes do olhar dos adultos. Nesse sentido é que busquei
ouvir as vozes infantis para captar um pouco de seu mundo e perceber representações de
gênero nas suas vivências, nas canções, nas brincadeiras...
acordo com o que pressupõe ser significativo para o desenvolvimento de outros trabalhos que
poderão vir a se constituir como pesquisa.
Mesmo consciente de que várias pesquisas11 vêm sendo realizadas a partir dessa
abordagem, a que realizo tem um caráter significativo para mim, por ter sido desenvolvida no
campo em que atuo por vários anos – sala de aula – e por estar escrevendo sobre a história da
qual faço parte. Refiro-me à história recente, à fase de transição de creche para Escola
Infantil. Assim como Scliar, citado na epígrafe, busco lembrar de momentos que a memória
deixa transportar, como se fosse um rio que passa, extrapolando o terreno pessoal que me
motivou. É preciso considerar o compromisso com a escola pública como um do lócus do
desenvolvimento infantil, no qual crianças e professoras, neste estudo, são as principais
interlocutoras, colaboradoras, denominadas “sujeitos” da pesquisa.
11
Refiro-me especialmente àquelas apresentadas e veiculadas nos GTs Educação de crianças de 0 a 6 anos, e
Gênero, sexualidade e Educação, na 28ª Reunião anual da ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação – Caxambu/MG, 2005.
12
Para me referir à Proposta Político-Pedagógica da Escola, passarei a utilizar as iniciais PPP.
13
Para me referir aos Planos de Estudos da Escola, passarei a utilizar as iniciais PE.
14
Considero antigas funcionárias as primeiras monitoras do município, e também à Coordenadora Geral das
Creches e Núcleos do CEBEM, no ano de 1985 a 1992, Romi Marli Rohde, atualmente Coordenadora
Pedagógica da Educação de Jovens e Adultos – EJA da SMED de Ijuí.
17
Os sujeitos da pesquisa são crianças de quatro a cinco anos de idade que freqüentam a
turma do Jardim II e quatro professoras em uma Escola Municipal Infantil no município de
Ijuí/RS. Tanto o nome da escola, como das crianças e das professoras são nomes fictícios,
para a preservação de suas identidades e, conforme a proposta do Termo de Consentimento,
tive o cuidado ético com as autorizações. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados
foram: observações, análise documental e entrevista semi-estruturada, registrada em fita
cassete e Diário de Campo. Com as crianças foram realizadas observações de atividades
livres e dirigidas, entrevistas, registros fotográficos, que serviram somente para análise e não
para publicação, conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Anexo 1),
momentos de interação com brincadeiras, literaturas citadas ao longo da pesquisa (Anexo 2),
passeios pelo bairro onde se localiza a Escola.
15
Durante o Mestrado, fiz a opção pela Licença-Interesse, em função da carga horária do curso.
18
Imagem da música infantil O cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte
e publicada pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 2).
19
Capítulo I
INFÂNCIA E EDUCAÇÃO INFANTIL
Neste capítulo abordo a infância como uma categoria social histórica, construída pela
sociedade nas relações sociais, bem como a origem das instituições de Educação Infantil,
mostrando as vertentes históricas da assistência, da família e da educação. Contextualizo a
escola pesquisada com o objetivo de situar sua realidade sócio-cultural-histórica. Ainda,
busco no contexto da Educação Infantil identificar algumas representações de infância,
ouvindo sujeitos da escola.
16
Período considerado aqui como a construção social, cultural e histórica e não apenas uma fase biológica da
vida.
20
sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período vivido pela criança, o sujeito real
que vive essa fase da vida” (KUHLMANN Jr.; FERNANDES, 2004, p. 15, grifo dos autores).
Para discorrer sobre a infância recorro à sua caracterização a partir das sociedades
antigas, nas quais as famílias eram numerosas e não atribuíam a si funções afetivas, sendo
considerada, até mesmo pelas artes, como uma fase sem importância, portanto não merecia
ser registrada, pois não fazia sentido fixar na lembrança crianças pequeninas.
Anterior ao século XVI, a criança não era diferenciada do adulto, não havia infância, o
que não quer dizer que não havia crianças. Estavam misturadas em atividades do cotidiano,
isso não significa que as crianças eram abandonadas, apenas não havia uma grande afeição
por elas. Elas aprendiam ofícios, comiam, se divertiam e dormiam no meio dos adultos. E,
assim que se demonstravam independentes dos cuidados e de necessidade de proteção da mãe
ou da ama de leite, as crianças eram incorporadas à sociedade, ao convívio da vida coletiva
dos adultos.
A in-fans (criança), assim denominada segundo a terminologia latina, não tinha vez e
nem voz. Por se dizer que na primeira infância se plantam os dentes (até os sete anos), a
criança não fala perfeitamente por não ter seus dentes bem ordenados e firmes. Se não tem
linguagem, não tem pensamento, nem conhecimento e racionalidade. A criança era então
percebida como alguém menor, alguém a ser adestrado, a ser moralizado, a ser educado. A
organização socioeconômica familiar e os saberes daquele período eram passados de geração
em geração e estavam alicerçados na visão religiosa do catolicismo. E, segundo essa
organização, a criança era alguém que provinha do pecado da união dos pais. Essa era a visão
de Santo Agostinho, que via “a criança imersa no pecado” (GHIRALDELLI Jr., 2000, p. 46).
Segundo Ariès (1981), ainda na Idade Média, na Europa, surge um novo sentimento
para a infância, denominado de “paparicação”, característico das mães e amas de leite para
com as crianças, embora ainda consideradas sem muita importância para a sociedade. É no
início da Modernidade que a infância conquista um novo “lugar”, do anonimato passou a ser
21
“adulto em miniatura”, com intenção de se produzir a criança para a sociedade. Desta forma,
o autor escreveu sobre a noção de infância como algo que foi sendo criado a partir das novas
formas de falar e de expressar os sentimentos dos adultos em relação às crianças.
Ao descrever a infância a partir do século XVII, Ariès (1981, p. 161) destaca que, ao
longo da história, a infância e sua educação estiveram divididas em dois sentimentos
extremos: a paparicação e a moralização. O primeiro é permeado pela visão da inocência e da
fragilidade, “quando a criança ainda era uma coisinha engraçadinha”, visão que critica as
formas rígidas de educação, propondo uma educação livre que não perturbe a natureza das
crianças. Momento esse em que a criança provoca um sentimento por sua ingenuidade,
gentileza e graça, pois ela se tornou uma fonte de distração e relaxamento para o adulto. Esse
sentimento se presenciava não só com crianças bem nascidas, mas também entre as crianças
de classe economicamente menos favorecida. O segundo é marcado pela moralização, dá
continuidade a um discurso religioso e vê as crianças como seres que devem ser controlados,
com ênfase na disciplina e na ordem para conter os impulsos infantis. Esse era o discurso dos
moralistas e educadores do século XVII, que constituiu o conceito de infância que inspirou a
educação até o século XX, através do interesse psicológico e da preocupação moral.
quarentena, produzindo um novo sentido à criança que foi capturada pelas instituições para
serem escolarizadas, iniciou o processo de enclausuramento das crianças. A escola e a família
juntas retiraram os infantis do cotidiano dos adultos a fim de educá-los para a escolarização
nas instituições.
Para Sarmento e Pinto (1997, p. 38), os estudos de Ariès têm “o mérito de nos ter
proporcionado a consciência de que aquilo que parecia um fenômeno natural e universal era
afinal o resultado de uma construção das sociedades moderna e contemporânea”. Sendo que, à
medida que foram criadas novas perspectivas educacionais, a partir da invenção da infância, a
família e a escola criam instrumentos de disciplinarização e gerenciamento, colocando a
criança como aluno. A partir desse gerenciamento, as crianças passam a serem descritas,
classificadas, hierarquizadas, diferenciadas, tornando-as indivíduos operacionalizáveis e
calculáveis, úteis e capazes de trazer retorno social e econômico para a sociedade
(DORNELLES, 2005). Cada vez mais as crianças são objeto de ações educativas, e/ou de
avaliação com a finalidade de descrever e mensurar a criança, buscando a melhor forma de
administrá-las. Segundo Dornelles (2005), ao serem descritas e classificadas, as crianças
tornam-se objeto de conhecimento, são assim objetivadas. Bujes (2002 apud DORNELLES,
2005, p. 22), demonstra que é em situações do cotidiano das salas de aula que as crianças são
objetivadas pelas práticas de avaliação e planejamento e pela fala de cada educador,
produzindo o controle e domínio destes sujeitos. É nesse sentido que Dornelles (2005, p. 54)
esclarece:
Dornelles (2005, p. 35) assinala que Rousseau, em sua obra Emílio dedicada à
educação dos meninos, aos aspectos biológicos em relação às distinções e expectativas
atribuídas aos mesmos, defende uma educação diferenciada em função do sexo, levando em
consideração que a época moderna foi um período constituído a partir do padrão do gênero
masculino até mesmo pela educação. Com essa idéia de educar crianças, Rousseau (1712-
1778), diante da perspectiva de oposição ao ideário da Reforma e da Contra-Reforma
religiosa, propôs que a educação das crianças pequenas, ao invés do disciplinamento, fosse
fundamentada pela liberdade e pelo ritmo da natureza, pois ele “não vê a criança como um
adulto em miniatura, pelo contrário, ele a vê como o começo e a origem do adulto”.
17
Ainda em nota de rodapé, a autora afirma que o filósofo Rousseau não concordava com os incitamentos pela
igualdade de direitos para as mulheres na Revolução Francesa. Ele defendia a posição de que elas não eram
iguais aos homens, eram apenas seus complementos.
18
“Condições sociais adversas, em que dois fenômenos se faziam muito presentes: as mortes por falta de
condições materiais de higiene, nutrição, moradia etc., e o infanticídio” (BUJES, 2002, p. 59).
24
É preciso lembrar que foi no século XIX que grande parte dos sistemas de
educação nacional organizaram-se nos países europeus e que essa inovação,
com sua amplitude e fundamentação pedagógica, materiais e métodos,
também era tomada com um dos critérios para medidas de desenvolvimento
dos países. As creches e pré-escolas apesar de não fazerem parte dos
sistemas educacionais fazem parte de uma nova concepção cultural que
define que as crianças podem ser cuidadas e educadas em um ambiente
extrafamiliar (BARBOSA, 2000, p. 91)20.
19
Crianças não desejadas eram os filhos considerados ilegítimos, fora do casamento.
20
Na sua tese, Maria Carmen Barbosa (2000) refere-se a creches e pré-escolas num período em que estas não
estavam locadas no sistema de ensino com a função de educar.
25
Para Kuhlmann Jr. (1998, p. 74), “as instituições de educação infantil foram
difundidas amplamente durante as Exposições Internacionais (1851-1922), como modernas e
científicas, como modelo de civilização” (grifos do autor). Essas instituições fizeram parte
dos grupos dedicados ao ensino, mesmo que também tivessem relação com os grupos
dedicados a economias sociais, relacionados à educação popular e às estratégias básicas das
políticas assistenciais.
[...] as crianças passam a ser tomadas, nos tempos modernos, não mais como
responsabilidade apenas familiar, mas como uma preocupação social. [...].
Elas se tornam objetos de interesse de inúmeras classes profissionais, de
distintas iniciativas governamentais, de práticas especializadas, de
legislação, de regimentos, de estatutos, de convenções.
Assim, é possível reafirmar que sempre existiram crianças, mas nem sempre existiu a
infância. A infância como grupo etário próprio e com características identitárias geracionais é
uma construção social muito recente. Por esse motivo, falar em infância é também considerar
o universo das culturas infantis, em que cada criança possa ser compreendida no seu
individual, tecida pelas tramas do contexto que, segundo Bujes (2002), a sociedade moderna
inventou sobre elas e para elas – as crianças.
Esta investigação considera a infância como categoria geracional, sendo seus papéis
sociais e culturais produzidos historicamente no interior de determinadas sociedades, objeto
de variação e mudanças de acordo com outras variáveis como classe social, etnia, religião... É
nesse sentido que o conjunto de processos sociais atravessa também o cotidiano infantil. A
infância emerge como realidade que produz cultura, que é em última instância, também
produzida pela cultura.
26
Imagem da música infantil O cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte e
publicada pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 3).
27
Todo esse conjunto fez com que a sociedade necessitasse de uma nova estrutura
organizacional para as mulheres trabalhadoras e seus filhos, logo uma nova forma de perceber
a infância para além das exigências da mão-de-obra para implantação da sociedade industrial.
Nesse sentido, Kuhlmann Jr. (2005) refere essa vontade de normalizar as classes
trabalhadoras por meio da educação no século XIX, promovendo a educação moral para todas
as classes através da universalização do ensino pelo instrumento de cidadania e
conhecimentos básicos necessários, para promover a estruturação da sociedade industrial.
21
Educação Infantil – utilizo-me desta nomenclatura para a faixa etária de 0 a 6 anos para instituições que
anteriormente denominávamos como creche – 0 a 3, e pré-escola – 4 a 6 anos, mas que a partir da LDB
9.394/96 passam a ser denominadas como Escolas de Educação Infantil. Entretanto, a Lei n. 11.114, de
16/05/2005, determina a obrigatoriedade da matrícula da criança de 6 anos no ensino fundamental de 9 anos e
fixa a Educação Infantil dos 0 aos 5 anos, sendo organizadas em creche crianças até 3 anos de idade, e na pré-
escola crianças de 4 e 5 anos de idade. Seguida pela Lei n. 11.274 de 06/02/2006, que amplia o Ensino
Fundamental para 9 anos.
22
A Constituição de 1988 foi a primeira constituição do país que considerou explicitamente a criança como
sujeito de direito, regulamentando sobre creches e pré-escolas, com “direito à assistência gratuita aos filhos
dependentes desde o nascimento até os seis anos de idade em creches e pré-escolas” (CF/88, art. 7º, inc.
XXV).
28
Assim, foram criadas duas estruturas para a expansão da educação das crianças pequenas: as
creches e os jardins de infância. Ambas possuem histórias distintas, que justificam seus
projetos e distinguem suas instituições, delimitando também a classe social de seus
freqüentadores, determinando do mesmo modo, os conteúdos escolares e a população infantil
que usufrui tal atendimento.
No Brasil, a primeira instituição que se encontra registrada como jardim é por volta de
1875, no Rio de Janeiro. Neste mesmo período, na Bahia, discutiu-se um projeto para a
criação de jardins-de-infância, e alguns anos depois, criou-se o Jardim de Infância da Escola
Americana. Somente em 1882, Rui Barbosa, através do Decreto n. 7.247, de 1879, considera
como primeiro estágio do ensino primário o jardim-de-infância, dedicando um capítulo na
Reforma Leôncio de Carvalho a essa etapa que visava ao desenvolvimento harmônico da
criança.
Para Kuhlmann Jr. (2005), a história da Educação Infantil das creches, atendendo
crianças pobres, com caráter exclusivamente assistencial, está distante das preocupações
educacionais, subordinadas aos órgãos de saúde pública ou de assistência. Essa situação pode
ser percebida na história da Educação Infantil no Município de Ijuí.
23
A Puericultura visava assegurar o perfeito desenvolvimento físico, mental e moral da criança.
29
para o controle da vida social” (KUHLMANN Jr., 2005, p. 74). Como exemplo, poderíamos
citar as brincadeiras, pois havia uma grande preocupação com os conflitos sociais de classe,
em que as crianças representavam o burro, o cocheiro, o negro fugido ou o capitão do mato.
Segundo o referido autor, não há evidências sobre a criação, no século XIX, no Brasil,
de instituições de educação infantil para as crianças pobres. Suas pesquisas mostram que os
registros encontrados referem-se aos jardins-de-infância que atenderam crianças de classe
social privilegiada pela iniciativa particular. O jardim da Escola Normal Caetano Campos, em
São Paulo, foi a primeira instituição pública criada (1896); tinha a função de servir de
observação e estágios para a formação docente das professoras, mas as crianças pertenciam à
elite paulista, o que se evidencia pelo seu horário de atendimento (10 às 15 horas).
As creches na sua origem atuaram num campo mais voltado à assistência, pois à
época, o objetivo não era a educação formal, o que acontecia era uma educação informal
como a familiar. Este período teve como marca a precariedade, a insuficiência de recursos e a
ausência de propostas educativas, estando estas voltadas à proposta reducionista de apenas
cuidar, com a intencionalidade de assistir à criança pobre. Desta forma, devido ao trabalho
assistencialista que desenvolvia e também pela diferenciação de tempo de permanência da
criança nestas instituições – tempo integral, para atender filhos de mães trabalhadoras, a
creche teve a clara distinção dos jardins-de-infância.
As rotinas foram analisadas por Barbosa (2000), contribuindo com uma leitura crítica
sobre as mesmas. A pesquisadora afirma que é a partir da sua contextualização e análise que
se pode conhecê-las, ampliá-las para produção de novos sentidos. Questiona: o que são
mesmo rotinas ou horários, o emprego do tempo, a seqüência de ações, o trabalho dos adultos
e das crianças, o plano diário, a rotina diária, a jornada? Ela avalia que, independentemente da
denominação dada, a rotina provém da possibilidade de construir a concepção de educação e
cuidado e, até mesmo, ser utilizada como cartão de visita nas instituições para apresentação
aos pais em suas propostas de trabalho. A rotina também é um mecanismo para padronização
de comportamento e configura subjetividades infantis, possibilitando a objetivação da criança.
24
Rotinas, ver mais em Barbosa (2000).
31
Diante das mudanças nesse sistema de ensino, a perspectiva foi deixar de ser
compensatório para visar o desenvolvimento da criança até cinco anos de idade, em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da
comunidade e a criança passou a ser minuciosamente descrita e analisada a fim de ser
transformada em aprendiz sob esta forma de escolarização.
Para as crianças maiores (10 a 14 anos) foi criado o núcleo denominado “Os
Mosqueteiros”, sendo que a partir dos 12 anos de idade lhes eram oferecidos cursos
preparatórios para o trabalho, tais como: engraxate de calçados, vendedor de picolés,
empacotadores em lojas e supermercados. Essas crianças recebiam as orientações de duas
monitoras, mas somente participava deste “programa de assistência ao menor” aquela criança
que tinha o acompanhamento da família, sob a exigência de que cada criança freqüentasse a
escola. Sendo assim, meio turno estava na escola e meio no trabalho, evitando que esses
ficassem nas ruas enquanto suas famílias trabalhavam. Esta política de assistência não
considerava o trabalho infantil como forma precoce para a passagem da vida adulta, segundo
o conceito de Ariès (1981), “infância curta”, pois ao mesmo tempo em que ofereciam trabalho
também ofereciam auxílio escolar.
Além dos Núcleos – CEBEMs e das creches em Ijuí, havia os lares vicinais que
cuidavam cerca de 10 crianças por família, os quais recebiam alimentação do governo e as
cuidadoras eram consideradas funcionárias do município. Essa foi uma política experimental
para ampliar o atendimento de crianças, cujas mães comprovadamente eram trabalhadoras.
Como a lei não permitia que o serviço público funcionasse em casas particulares, o
fechamento desses lares mobilizou as famílias atendidas a buscarem alternativas. Aos poucos,
foram ampliadas as creches, nas quais as mulheres trabalhadoras dos lares vicinais assumiram
os cuidados e a educação como funcionárias de serviços gerais das creches e núcleos.
Com o aumento da demanda e procura por estas instituições, foram abertas várias
outras creches, de acordo com a necessidade de cada região do município. Cada creche ou
núcleo de atendimento à criança recebia um nome indicado, priorizando personagens de
histórias infantis, como foi o caso dos núcleos Tio Patinhas, Mosqueteiros, Soldadinho de
33
Foi apenas no final da década de 90, com a Lei 9.394/96 que ocorreu a inclusão das
creches no sistema educativo como primeira etapa da Educação Básica, o que representa a
abertura de novas perspectivas para a criança de 0 a 6 anos. Estas perspectivas visavam à
superação do caráter assistencialista de uma educação voltada ao cuidado, cria-se a
necessidade de formulação de uma política nacional, estabelecendo diretrizes básicas para a
implantação e desenvolvimento de programas de creches e pré-escolas. Assim, a educação
torna-se direito também da criança e não apenas da mãe trabalhadora ou de família pobre. A
LDB 9.394/96, na seção II, do capítulo II da Educação Básica, dispõe o que segue:
No momento desta escrita, mais uma vez a educação da “criança pequena” encontra-se
em fase de transição para garantir o que a LDB 9.394/96 refere em seu artigo 21, item I, em
que afirma que a Educação Básica é formada pela Educação Infantil, Ensino Fundamental e
Ensino Médio. Em fevereiro de 2006, a Lei n. 11.114 para a Educação Básica determina a
obrigatoriedade da matrícula da criança de 6 anos no Ensino Fundamental, e a Lei n. 11.274
amplia o Ensino Fundamental para 9 anos de duração com a inclusão das crianças de 6 anos
de idade. Dessa forma, as crianças iniciam o Ensino Fundamental no ano que completam 6
anos de idade25.
Em abril de 1981, essa Escola foi inaugurada e conhecida como um dos Núcleos do
Centro de Bem-Estar do Menor de Ijuí (CEBEM), com recursos subsidiados pela Fundação
Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM), Prefeitura Municipal e LBA, sem a ajuda do
Governo do Estado. Iniciou suas atividades atendendo 80 crianças na faixa etária de 1 ano e 2
25
Desde que completem a idade até o inicio do ano letivo.
26
Optei por manter a integridade do nome da escola em que realizo esta pesquisa, então a denominarei com o
nome fictício de Escola Estrela, a qual atendia crianças de 0 a 6 anos, em turno integral, até o ano de 2005.
36
meses a 6 anos de idade. Seu quadro funcional era composto por monitoras, cozinheiras,
serviçais da limpeza, porteiro, recepcionista, coordenadora e secretária.
No ano de 2005, a Escola Estrela conta com boa estrutura física quanto a salas de aula,
que são em número de 7 (berçários I e II, Maternais I e II, jardim I e II e pré-escola). Entretan-
to, são consideradas pequenas para o atendimento do número de alunos e ao desenvolvimento
de um bom trabalho, apresentam mobiliários inadequados, obrigando a retirada de mesas e
cadeiras após as atividades para a organização do repouso. Os espaços externos são amplos,
mas com pouco recurso recreativo e pedagógico para atender 150 crianças provenientes
também de bairros vizinhos, pois apenas 53,5% delas residem no bairro da Escola.
Como descrevo a estrutura dos espaços pedagógicos (no Diário de Campo), passo a
analisar esses espaços a partir do foco de observação do tema de pesquisa.
Ao longo de sua história de 25 anos, a Escola Estrela não modificou a sua estrutura
física, apenas pequenas reformas foram feitas para conservação do prédio e pintura das
37
paredes internas. Suas paredes tinham uma faixa pintada com mais ou menos um metro de
altura na cor cinza e, posteriormente, marrom escuro na parte inferior da parede para não
aparecer a sujeira, enquanto que o restante das paredes era pintado de branco.
O salão da Escola tem as paredes pintadas da mesma forma, esse é o espaço central. A
Escola tem a forma de uma cruz27. O prédio que comporta as salas de aula possui um corredor
interno que possibilita ir do berçário à pré-escola (de uma ponta da escola a outra). Esse
corredor é denominado por algumas professoras como “vitrine”, pois a partir deste visualiza-
se, pelas grandes janelas de vidro, o pátio externo em frente à escola e a chegada das crianças
com seus pais, assim como os pais também visualizam seus filhos quando chegam à escola no
final da tarde para buscá-los.
Todas as salas de aula têm duas portas: uma liga as salas ao referido corredor, é a porta
de recepção das crianças; a outra é pouco utilizada e está localizada no lado oposto da sala e
da escola pela localização frente/fundo, que também liga a um outro corredor. Esse segundo
corredor é cercado com grades e próximo ao espaço externo e ao berçário no sentido oeste.
No final de semana anterior à primeira observação feita para esta pesquisa, a equipe de
funcionárias, juntamente com os pais haviam organizado um mutirão28 para pintar as paredes
internas da escola. As salas de aula já tinham sido pintadas no ano anterior. Neste momento,
faltavam o salão, o refeitório e o corredor interno que liga as salas de aula umas às outras.
Esses espaços foram pintados de azul bebê. A diretora estava “feliz” pela concretização da
pintura, pois era algo muito desejado pela equipe e também pelas famílias. Ela me mostrou a
“transformação” dos ambientes.
27
Romi Rohde (em entrevista) considera interessante a observação deste protótipo e relata o significado da cruz,
que para os cristãos é a seguinte: a linha vertical significa elevar a Deus – Pai, e a linha horizontal significa os
braços, abraçar os irmãos – comunidade.
28
Muitas das reformas da Escola e a aquisição de materiais são feitas pelo grupo de pais constituído pelo CPM
que convoca as demais famílias para contribuírem na organização da mesma.
38
Quanto à cor azul das paredes, segundo a diretora, esta não foi uma opção do seu
grupo de trabalho. Optou-se por essa cor a partir de um estudo realizado pelo engenheiro
responsável pelas escolas da rede municipal, que levou em conta a luminosidade do ambiente
e o favorecimento à tranqüilidade das crianças nos momentos das refeições e outros encontros
no salão, pois nestes momentos havia um número expressivo de pessoas reunidas ali,
inclusive com a alteração da produção e emissão da voz. Então, ao usar a cor azul bebê,
considerando o estudo das cores, a intenção foi de proporcionar um ambiente tranqüilizador
aos usuários, não que estes não se agitem ou conversem, apenas sintam-se em um ambiente
harmonioso segundo a classificação das cores.
A escola ainda possui espaços cercados com muros e grades, nos quais as crianças
podem brincar conforme a organização das turmas. Em um dos espaços há uma pracinha e
uma casinha de bonecas. Em outro, há calçada, grama e algumas árvores, onde as crianças
brincam de subir no muro e nas grades, por não terem outra alternativa29. Ambos os espaços
localizam-se em frente à escola.
O pátio que fica atrás da Escola e tem os corredores cercados por grades também está
dividido em dois ambientes. Um deles possui pracinha e mais uma casinha de bonecas; o
outro espaço, o mais solicitado, é a quadra. É uma calçada de alvenaria com duas goleiras,
não possui marcação de uma quadra esportiva, apenas uma grade que a separa do corredor
externo. É nesse espaço que realizo grande parte das observações e entrevistas com as
crianças.
29
Neste espaço já foram construídas cadeiras e mesinhas com guarda-sol, casinha de taquara, mas tudo foi
destruído pela falta de cuidado das próprias crianças, segundo as professoras.
39
Ao utilizar esses dados coletados pela Escola, procurei ser sensível à descrição do
cotidiano das famílias em relação à estrutura da sua organização familiar. Com relação aos
dados, é visível a existência de diversos tipos de famílias, pois não existe um único modelo de
estrutura familiar. Além da família nuclear constituída pelo pai, mãe e filhos, também
encontramos as famílias monoparentais, ou seja, nas quais apenas a mãe ou o pai está
presente. E ainda há as famílias que se reconstituem por meio de novos relacionamentos e têm
filhos advindos dessas relações, como se constata na fala de uma das crianças, em situação
informal, durante as visitas à escola.
A minha mãe casô duas vezes, uma com o O..., pai do E...e da C..., e outra
com o meu pai P..., daí eu nasci. O P... casou duas vezes tem a C..., e a L...,
e agora ele vai casar mais uma vez. (Juliana, Diário de Campo, 20/12/2005).
A mãe com o V..., mas eu não quero ter mais uma irmã (Juliana).
41
30
O percentual das famílias refere-se à totalidade das famílias que compõem a comunidade escolar.
31
Trata-se de um conjunto habitacional popular, tal fato explica a fonte desse percentual da casa própria.
42
ritmo existente entre os sexos, além das características individuais, familiares e regionais, e se
respeite as especificidades motoras, cognitivas e afetivas da criança, quando se dá início a
essa aprendizagem” (PPP, 2005, p. 34). A partir dessa proposição busco prestar atenção a
situações em que são consideradas as diferenças ao ressaltar a distinção na organização e
decoração das salas de aulas, pois o que se refere aos meninos está caracterizado na cor azul e
às meninas, na cor rosa, como por exemplo, a chamada e o ajudante do dia, ou os brinquedos
organizados e separados por carrinhos ou bonecas, diferenciando e classificando as
brincadeiras pelo gênero feminino ou masculino.
Durante essa pesquisa li a PPP da Escola e seu PE, com a intenção de identificar nos
documentos e no trabalho proposto pela Escola, representações sobre identidade de gênero
das crianças. Na ausência dessas de forma explícita, evidencio a proposta de trabalho e cito
alguns temas e ambientes priorizados, pois acredito que nesses espaços – do brincar e da
literatura –, circulam o tempo todo, representações de gênero e outras identidades.
Nesse sentido:
A minha prima só tem aula de tarde, ela brinca com os amigos dela, e eu
não vou de meio-dia, vou de tarde (Giovana).
Neste relato, assinalo a fala das crianças, expressando talvez o desejo que esse grupo
de meninas demonstra em não freqüentar a escola de período integral. Em diferentes
momentos das observações, quando elas manifestavam esse desejo, eu questionava sobre o
que estariam fazendo se não estivessem na escola. As respostas foram comuns quanto ao
desejo de brincar em casa, mesmo que tivessem que ficar sozinhas. Considero importante,
nesse momento, salientar que as brincadeiras realizadas em casa são brincadeiras livres,
espontâneas, são brincadeiras não dirigidas por adultos, estão fora da organização de uma
rotina.
Associo a essa idéia, os estudos de Barbosa (2000) sobre rotinas na Educação Infantil,
quando descreve a precisão de horários e atividades às quais as crianças são submetidas, e
confronto com a fala das crianças quando questionadas sobre o desejo de brincar, sem rotina,
45
regras, limites e olhares de vigilância. Essa rotina a que as crianças estão submetidas, às
vezes, torna-se pouco sedutora e desejável, pois a ela a criança é submetida durante todos os
dias do ano escolar (fevereiro a dezembro), iniciando pelo brincar com brinquedos da sala,
tomar café, ir ao banheiro, na sala de aula cantar e/ou ouvir uma ‘historinha’, fazer um
desenho sobre a história, brincar novamente com os mesmos brinquedos, ir para a quadra,
para o almoço, para o banheiro (esporadicamente escovar os dentes), repousar e iniciar a tarde
como se fosse o horário da manhã com um único diferencial: a troca de professora do turno da
tarde enquanto as crianças dormem. Mas é preciso salientar que além da rotina escolar, a
criança também está submetida à rotina familiar, a qual muitas dessas crianças descrevem em
seus relatos durante os momentos informais, quando situam as tarefas domésticas dos seus
familiares, marcando o quer está instituído como função para o papel de ser feminina-mãe e
de masculino-pai, ambos papéis representados nas brincadeiras.
Mesmo com uma rotina que ao primeiro contato parece deixar a criança sem situações
em que possam expressar seu jeito de ser, é durante o brincar, a literatura, as músicas cantadas
que elas demarcam o seu modo de ser e de perceber o contexto da sua realidade. E nesse
sentido, a leitura dos documentos da escola foi utilizada para estabelecer relação em entender
os sujeitos da pesquisa e o discurso da prática pedagógica apresentada anteriormente pela
Escola como proposta de trabalho. Proposta que está fundamentalmente contextualizada como
alicerce do trabalho pedagógico realizado através do brincar e da literatura. Tais situações do
cotidiano escolar que se dão principalmente através da literatura e do brincar não acontecem
de forma inocente, estão atravessadas por um discurso da cultura, o qual está instituído de
novos sentidos e é por meio de artefatos culturais que a criança é interpelada na sua
subjetivação e identidade geracional, assim como nas demais identidades.
Nesta perspectiva, em que as crianças são reduzidas a artefatos culturais que são mais
interessantes e sedutores que os da escola, se faz necessário pensar de que forma a escola
poderia demarcar seu espaço, gerando o foco de atenção para situações em que as crianças
viessem também a questionar suas situações vivenciadas neste espaço. Fundamentalmente,
penso que o trabalho pedagógico precisaria ter como função primeira, instigar os sujeitos
como questionadores.
46
Imagem da música infantil O cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte
e publicada pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 4).
47
Capítulo II
IDENTIDADE DE GÊNERO NA INFÂNCIA
Este capítulo trata da representação de gênero como identidade marcada pela diferença
relacional através das representações do feminino e do masculino como construção histórica,
social e cultural, as quais constroem mentes e corpos feminilizados e masculinizados dos
sujeitos infantis.
2.1.1 Identidade
Sobre esta questão, tenho buscado caminhos investigativos para observar e refletir
sobre representações veiculadas acerca das identidades infantis. Não podemos deixar de
considerar que as escolas infantis são instituições educativas nas quais as crianças estão
aprendendo um jeito de ser. Elas convivem com os conceitos e definições presentes nos vários
48
discursos, estes são representações da cultura, de modo a marcar identidades femininas e/ou
masculinas, em pequenos atos cotidianos. Hall (1997, p. 26) auxilia a compreender a
emergência de tal identidade quando afirma que:
Nesse aspecto, o pesquisador chama a atenção para o fato de que as identidades são
construídas por meio de diferentes posições de sujeitos, embora essa identidade seja apenas
uma representação, a representação do outro. Nesse sentido, na pesquisa realizada, a atenção
está em observar como os sujeitos são posicionados nas canções, na literatura infantil, nas
brincadeiras..., por exemplo, uma posição relativa a identidades geracionais e de gênero, entre
outras.
Sobre as identidades, Moreira (2005, p. 127), ao referendar Hall, afirma que “vive-se
um momento em que ocorrem vários deslocamentos, constituindo-se uma pluralidade de
distintos centros, dos quais podem emergir inúmeras identidades”. Ambos referem-se a
diferentes identidades como étnicas, geracionais, gênero, de classe, de sexualidade, de
religiosidade etc. Para o pesquisador e demais estudiosos citados por ele34, no mundo
contemporâneo, as identidades estão se diversificando e passando a ser compreendidas como
históricas e discursivamente construídas, fragmentadas, descentradas e relacionais.
34
Moreira (2005) referenda Hall (1997, 2000, 2003); Laclau (1996); Carlson e Apple (2000); Silva (2000);
Souza Santos (1997).
49
Sendo a produção das identidades marcadas pela cultura, faz-se necessário assinalar a
concepção de cultura com a qual esta pesquisa está trabalhando. Segundo Hall (1997),
existem várias definições para a noção de cultura que interferem no que somos. Tal
abordagem possibilita poder pensar nas diferentes identidades do sujeito infantil. Para
Dermatini (2002), a construção das identidades se dá no processo de socialização da criança,
com quem ela convive e suas relações sociais na escola, na família, na igreja e com vizinhos.
Esse processo influencia consideravelmente a construção de identidades infantis, um jeito de
ser criança, de ser menino ou de ser menina.
A escola, sem dúvida, é o espaço que proporciona vivências através das diferentes
linguagens – oral, literária, escrita, corporal, musical, plástica, etc, veiculando representações
que contribuem para construir as identidades atravessadas por marcadores identitários como
um modo de ver e perceber o branco/negro, pobre/rico, além do ser masculino ou feminino.
Desta forma,
A identidade constitui-se como uma ponte entre o eu e as dimensões
cultural e social. A subjetividade, por sua vez, dá conta dos sentimentos,
dos processos psíquicos mais íntimos, mais particulares. É no discurso dos
sistemas sociais e culturais que essa particularidade é significada e se
significa. Subjetividade e identidade dão lugar ao sujeito (MOREIRA,
2005, p. 135).
35
Como Apple (1995) e Bordieu (1995).
36
Joan Scott (1995) é historiadora feminista, defende que gênero é a primeira forma de dar significado às
relações de poder. Ela conceitua gênero priorizando os processos históricos e sociais presentes na construção
do feminino e do masculino, rejeitando quaisquer explicação essencialista e naturalizante, pautada pelo
determinismo biológico.
37
Guacira Lopes Louro (1992, 1995, 1998, 2005) pesquisa as questões de gênero articuladas com o campo
educacional. Para ela, o gênero está ligado a construções sociais dos sujeitos masculinos e femininos,
expressando as representações sobre mulheres e homens.
38
Jane Felipe (1998, 1999, 2000, 2001, 2003, 2005) é integrante do Grupo de Estudos em Educação e Relações
de Gênero (GEERGE), coordenadora do Grupo de Estudos em Educação Infantil (GEIN) na UFRGS e
Coordenadora do Fórum de Educação Infantil/RS.
39
Dagmar Meyer (2005) pesquisa as políticas de corpo e saúde, o foco de suas análises possibilitam que a
biologia do corpo passe a funcionar como causa e explicação de diferenciações e posicionamentos sociais.
51
Louro (1992, p. 54) vale-se do que referenda Scott (1995): “o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos”. Essa
categoria é entendida como construção social que abrange a formação de homens e mulheres,
em suas mais diversas possibilidades expressas no estabelecimento de subjetividades.
Portanto, há necessidade de entendê-las como categoria relacional constituída por diferentes
atravessamentos como classe, etnia, sexualidade, religiosidade, nacionalidade e de geração.
“Homens e mulheres são, ao mesmo tempo, muitas coisas” (LOURO, 1998, p. 86).
camponesas e classes trabalhadoras das cidades que desempenhavam atividades nas oficinas
manufatureiras e no processo de industrialização, numa demonstração, portanto, de que não
são as características anatômicas e fisiológicas que definem as desigualdades.
40
Desigualdades que derivam não da biologia e sim da simbolização que se faz dela (SCOTT, 1995).
41
Terezinha de Jesus; A Linda Rosa Juvenil; Viuvinha, por que Chora; entre muitas outras.
42
Meninas que brincam de casinha, bonecas, maquiagens e meninos que brincam com carrinhos, super-heróis,
policia e ladrão e jogam futebol.
43
Literaturas doadas pelos pais de acordo com a lista de materiais no início do ano letivo, adquiridas com baixo
custo em lojas de produtos de R$ 1,00, e que fazem parte do acervo da biblioteca da escola: Rapunzel, A Bela
e a Fera, Cinderela, Branca de Neve, Histórias da Bíblia...
53
Tanto nas brincadeiras livres, como nos momentos de atividades dirigidas, as crianças
expressam vivências do cotidiano familiar, escolar e também da mídia por meio das
representações. Nesses momentos, identificamos o quanto as brincadeiras, as canções e as
literaturas, assim como os espaços sociais, convocam-nas a essas culturas.
2.1.3 Representação
44
Nesse sentido, Woodward (2000) afirma que a identidade situa-se entre a representação. Segundo ela, em nota
de rodapé, afirma que “a representação refere-se a sistemas simbólicos (textos ou imagens visuais), sendo que
esses sistemas produzem significados sobre a pessoa que utiliza tal artefato, produzindo desta forma identidade
por meio da representação”.
54
Isso implica em pressupor que o que somos é significado – atravessado pela dimensão
cultural, pelo que é dito às crianças, o que lhe é narrado através de poemas, literatura infantil,
pelas canções e o conteúdo das brincadeiras. Cultura que a sociedade construiu e constrói em
termos de seus significados, símbolos e características, no caso em questão, definindo cada
um dos sexos no decorrer da sua história, ou seja, como se constituir masculino e/ou
feminino.
Quando pergunto se meninos e meninas podem brincar juntos, ela afirma que podem,
mas em seguida começa a nomear as brincadeiras dos meninos, como carros, bola, afirmando
ser brincadeiras quase igual às meninas, como:
Ser um guri inteligente, que aprende tudo, que brinca, joga bola, brinca de
carrinho, meu irmão brinca de boneca com os amigos dele, eu não (Alex).
Para além de observar essas questões em espaço escolar, vivenciei em família uma
situação, no mínimo instigante com um sobrinho de 9 meses de idade. Num momento em que
ele chorou tentei acalmá-lo, mas a sua avó (minha mãe) o pegou no colo e começou a imitar
sons de carro. Ele em seguida parou de chorar, e ela toda contente me dizia: “Que coisa
incrível, menino já nasce gostando de bola e de carro”. Naquele momento fiquei pensando
em como lhe explicar que era justamente o tema que vinha investigando com crianças
maiores. Então, passei a questioná-la na tentativa nem de negar e nem de afirmar sua idéia, se
estava ou não correta, de que juntas encontrássemos a explicação adequada para a reação do
menino de apenas 9 meses.
Passamos, então, a recordar quais foram seus primeiros brinquedos (carrinhos, bolas,
trenzinho...), quais os sons que produzimos para ele nos dar atenção (carros, buzinas, apitos,
gols...), e quando ele chora, onde os adultos costumaram a acalmá-lo? Pois é, justamente
dentro de um carro, onde ele fica em pé e brinca com o volante como se estivesse dirigindo.
Seus tios até construíram com tábuas, tijolos, volante, um carro para ele brincar lá na chácara.
Então retorno a questão para a minha mãe: “como ele vai gostar de outros brinquedos, se tudo
o que lhe dizem, mostram e ele próprio balbucia são sons e brinquedos, percebidos na
56
cultura como brinquedos apenas de meninos?” Em algum momento, a família poderia ter
proporcionado o contato com outros brinquedos. O curioso é que quando ele se aproxima de
outros objetos e brinquedos, já dizem que não, porque as bonecas são da prima. A situação
vivenciada permite assinalar o quanto meninos e meninas, desde muito cedo, aprendem a
nteragir com objetos distintos tidos como masculinos e/ou femininos.
Imagem da música infantil o cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte,
pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 5).
58
Essa canção infantil marcou a minha infância, nos momentos de rodas cantadas nos
finais de tarde na rua onde morava. É uma canção que faz parte do folclore infantil e é muito
utilizada durante o trabalho com as crianças da Educação Infantil, não tenho a intenção de
utilizá-la como marcador de gênero. Utilizo-me dela agora para problematizar o meu tema de
pesquisa, pressupondo que é por meio das canções, brincadeiras e literaturas, dentre outros
artefatos culturais que são oferecidos às crianças, que são veiculadas as representações de
gênero. Seria interessante observarmos a maneira como são posicionados o masculino (cravo)
e o feminino (rosa) no conflito narrado pela canção.
Numa rápida análise do conteúdo destes versos, percebe-se que o feminino é frágil e
está posicionado num determinado lugar, dizendo que “o cravo saiu ferido e a rosa
despedaçada”. É a rosa quem procura o cravo para resolver a situação. No entanto, em análise
mais profunda, é possível identificar a rosa como uma força assumindo o lugar de controle da
situação, pois vai em busca da solução, realizando o pedido de trégua.
45
Outdoor divulgando uma marca de jeans para o Dia dos Namorados, em 2005, referindo-se à idéia de que se
ela estivesse usando o jeans dessa marca, ele jamais brigaria com ela.
59
Diante do que propõe o PPP da Escola Estrela, faz-se necessário também considerar
que é através do brincar que a criança vivencia e expressa certas representações. Na
brincadeira livre e/ou dirigida, novos significados são produzidos pelo sujeito – criança. Em
muitas situações experimentam processos de troca, negociações e confrontos, gerando
desequilíbrios no modo de pensar. Algumas observações do cotidiano escolar referem-se às
situações geradas pelas próprias crianças, às vezes questionam o que está instituído,
naturalizado, como brincadeiras para meninos ou para meninas, conforme esta observação
registrada em Diário de Campo. As crianças dialogam enquanto um pequeno grupo de
meninas brinca com jogos de encaixe, bonecos Dunga e animais:
Vocês olham a novela Belíssima? Sou louca por ti América... (Juliana canta
a música da novela América).
46
Eles vão subjetivando, produzindo e fixando as diferentes e novas identidades e subjetividades dos sujeitos.
60
A mãe disse para não falar com estranhos, vai pelo caminho que não é
perigoso. Aí o lobo apareceu...(Juliana, contando a história da Chapeuzinho
Vermelho na mesma brincadeira).
Segundo Felipe (1999, p. 169), diversas produções culturais não só interpelam como
dão uma visão de mundo e um estilo de vida, constituindo-os como sujeitos masculinos e
femininos:
Apesar de, no cotidiano da Educação Infantil estas instâncias serem menos visíveis,
podemos afirmar que também encontramos desigualdades. Ao observar o cotidiano da
Educação Infantil é possível identificar alguns momentos em que meninos e meninas são
encaminhados para brincadeiras, de modo a favorecer distinções de gênero. Em entrevista,
pergunto a uma das professoras: “As crianças têm brinquedos e brincadeiras separadas? Isso
é para menino, isso para menina?”
Eles têm. No momento que tu dá jogos de montar, se tu não ficar junto com
eles, os meninos vão fazer carrinhos, armas, as meninas vão fazer o quê?
Montar casinhas, fazer potinhos pra dar comidinhas umas pras outras, daí
no momento em que o professor entra junto na brincadeira e direciona a
brincadeira daí tu consegue trabalha a coletividade. Digamos no momento
que eu entro na brincadeira e convido pra montar letras do alfabeto, inicial
do nome, brincar de casinha com eles onde os meninos também podem fazer
comidinhas, meninos também podem socializar-se nas brincadeiras, é isso
que eu estou trabalhando como questão de gênero (Mariana, Diário de
Campo, 06 dez. 2005).
A gente não é guri pra jogar bola. Eu e a Gigi gostamos mais de desenhá
(Juliana).
Durante as brincadeiras, percebo que as meninas falam muito sobre a boneca Barbie
que elas têm em casa, mas na Escola não havia nenhuma. Então, propondo-me a iniciar um
diálogo sobre o brincar, identificado como a preferência dos meninos, pergunto ao Ken por
que ele gosta de jogar bola.
Porque nasci homem (imitando uma voz grossa), tenho chutera de joga
bola!
Eu permito que os meninos tipo assim, menino vão vestir roupas de meninas,
não vejo nada de mal né, mas eu procuro falar, não sei se é certo, mas eu
procuro falar: Ah, tu ta fazendo a mamãe? Mas tu sabe que tu vai ser papai
quando crescer. Ah, eu sei, eles me dizem, mas quero ser mamãe agora,
então eu deixo, não sei se isto é correto ou não é, mas as vezes eu interfiro,
principalmente quando eles me chamam..., Daí eu digo, mas ele vai ser
mamãe só pra brinca, deixa ele ser a mamãe, e tu vai ser o papai...
(Marlene).
As famílias questionam: Profe, a ‘Gabi’ quer trazer tal coisa que ela quer
brincar e não tem no baú, porque um dia ela queria brincar de ser tal coisa
e não tinha. Daí a gente coloca que eles brincam, que tem menino que veste
vestido, tem menina que veste outras roupas, é bem tranqüilo, nunca
ninguém disse meu filho não pode usá isso, nunca eu ouvi isso de pai
nenhum.
Assim como as demais escolas infantis do município, a organização das turmas são de
acordo com a faixa etária das crianças. Em uma das observações na quadra de futebol,
localizada próxima à sala do berçário – escuto o comentário de uma das professoras em
relação ao fato de uma das meninas não estar brincando com as demais crianças da sua turma.
Como a Giovana tem jeito de adulto em miniatura! Mas ela é chamada a ser
assim pela mãe, para assumir o irmão menor (professora do berçário).
Passo então a observar Giovana (5 anos): realmente, ela está sempre a cuidar do irmão
menor (1 ano e 4 meses), ela pega o irmão, brinca de roda, canta e lhe dá muitos beijos. Nessa
ação de cuidar, identifico a visão de Gobbi (2002). A autora afirma que as meninas são
convocadas a assumir a função materna ao desenvolver cuidados com suas bonecas e irmãos
mais novos, como se estivessem sendo preparadas para assumir esses papéis. Quando a
professora refere-se ao fato de Giovana ser “chamada a ser assim”, ela argumenta que quem
cuida do irmão menor em casa é essa menina, pois, por ser a filha mais velha (5 anos de
idade), já é considerada, pela mãe, como a “mocinha da casa”.
Por muito tempo, na Idade Média, a criança foi considerada como adulto em
miniatura, e elas aprendiam em meio aos adultos, assumindo funções e sendo incorporadas à
47
No jogo do faz-de-conta, um dos recurso utilizados pelas professoras é o brincar com baú das fantasias e suas
roupas de variados modelos e tamanhos que circulam de sala em sala.
64
A infância ninja significa, para a autora, a infância “que está à margem de tudo”, das
novas tecnologias, do acesso aos produtos de consumo, em que “sobrevivem os sujeitos da
vida urbana”. Essas crianças são o retrato da desigualdade, da exclusão, da falta de atenção
aos seus direitos como sujeitos integrantes de uma sociedade, pois vivem às margens desta e
foram assim denominadas por estarem associadas a essa idéia como os guerreiros dos filmes e
desenhos das tartarugas ninjas. Essa infância não é recente em nossa sociedade, ela é
conseqüência das desigualdades sociais presentes desde os tempos das rodas dos expostos48,
dos hospícios, do trabalho infantil, do preconceito à diferenciação da cor de pele – criança
negra, pela falta de vaga nas instituições de ensino a partir do século XVIII em nosso país
(DORNELLES, 2005).
Narodowski (1998, p. 174) foi pioneiro em analisar a infância nessa perspectiva, seu
entendimento nos mostra que existem dois tipos de infância: a hiper-realizada – cyber-
infância; e a des-realizada – ninja. É denominada des-realizada por Narodowski (1998) a
infância que não tem acesso às novas tecnologias. Em ambas as infâncias as crianças brincam,
mas com objetos diferentes, de acordo com a realidade do seu meio social.
48
A roda dos expostos foi uma das instituições brasileiras de mais longa vida. Criada no Brasil Colônia, só foi
extinta na República, em 1950, sendo o Brasil o último a acabar com esse sistema. Ela exerceu importante
papel social, pois foi praticamente a única assistência à criança abandonada, evitando que as mesmas fossem
abandonadas pelos caminhos, bosques e lixos. O nome roda é procedente do dispositivo onde eram colocadas
as crianças abandonadas (na forma de um tabuleiro cilíndrico fixado no muro da instituição, a criança era
colocada e rodava-se este tabuleiro, introduzindo-as para dentro destes locais, sem identificar quem a estava
deixando). Esses locais eram assistências caritativas com caráter missionário, sua primeira preocupação com a
criança era o batismo para salvar a sua alma (MARCILIO, 2003, p. 53-57).
65
A literatura é um artefato cultural utilizado para que as pessoas se encantem por ela.
Além de ser uma invenção do adulto e de proporcionar o encantamento, tem a
intencionalidade de transmitir forma e conteúdo sobre o que o adulto considera adequado para
a criança. As histórias infantis e os livros de literatura são lugares nos quais circulam
diferentes representações que contribuem para produção de significados pelas crianças.
Referentemente à literatura, a Escola Estrela
aposta que a criança acostumada a ouvir histórias, poderá ser uma excelente
leitora e, conseqüentemente, irá adquirir um vasto vocabulário. Se desde
pequenas oportunizamos um trabalho com literatura as nossas crianças terão
gosto pela leitura (PPP, 2005, p. 37).
quanto à qualidade dos livros em relação a seu conteúdo, muitas famílias buscavam o que lhes
era mais acessível economicamente (livros adquiridos em lojas populares ao valor de R$
1,00).
filmes de Hollywood dos anos 80. Ela o rejeita para dedicar seu amor à Fera, que a mantém
cativa em seu castelo. Ela, além de se apaixonar, civiliza-o, transformando-o em um novo
homem – de tirano a sensível. Na visão de Giroux (2004, p. 98), Bela simplesmente se torna
uma mulher cuja vida era estimada por resolver os problemas de um homem, primeiro seu pai,
depois a Fera.
Ao meu ver, gênero seria trabalhado mais nas brincadeiras, nas histórias
que têm muito pouco, na verdade a gente não tem nada aqui na escola que
fala sobre isso ou que ta incutido isso, não sei de nenhum livro, de momento
não lembro de nenhum, eu acho que mais nas brincadeiras que a gente faz,
nas recreações, nas brincadeiras tanto na sala como fora da sala (Larissa).
Na Trilha dos Livros – Ao mesmo tempo em que buscava literaturas infantis para esta
pesquisa, fui à procura de suporte teórico em outros trabalhos na perspectiva dos Estudos
Feministas. Assim, conheci o trabalho de investigação realizado pela nicaragüense Zandra
Argüello, ao considerar a literatura pautada pelos modelos binários e sexistas, apresentando a
literatura não-sexista. Argüello realizou sua pesquisa com crianças porto-alegrenses de 4 a 6
anos de idade, observando como estas se posicionavam perante as narrativas literárias que
problematizam as representações de gênero.
Ao trilhar esse caminho, a estudiosa fez contatos com a Rede de Educação Popular
entre Mulheres da América Latina e do Caribe (REPEM), o que resultou em um concurso
Latino-Americano de Contos Não-Sexistas, desafiando autoras a escreverem contos nessa
perspectiva. Isso resultou em um aumento de produção literária não-sexista.
outras coisas eles eram bons juntos, como jogar cartas e se desafiar para realizar ações
diferentes, como passar embaixo de um arco-íris.
Mas passar embaixo de arco-íris pode ser problema, pois uma tia falou a essas crianças
que se alguém passasse por baixo do arco-íris ao meio-dia, se for homem vira mulher e se for
mulher vira homem. Como Pedro não acreditava nessas coisas, deram-se as mãos e passaram.
Minutos depois se sentiam estranhos, quando falaram, suas vozes estavam trocadas: eles se
olharam muito espantados, pois aquilo que duvidavam havia acontecido. Sua mãe pensou que
fosse brincadeira, mas não era. Isso gerou um grande rebuliço em casa. Os pais conversaram
sobre o que os outros iriam pensar, que os nomes precisariam ser trocados por Joano e Pêdra,
assim como as roupas que as crianças usavam.
Em suma, o desejo dos irmãos foi atendido, pois agora Joana poderia subir em
árvores, jogar futebol e Pedro poderia chorar sem ter que dizer que foi de raiva, mas sim de
dor. Depois de alguns dias, a situação foi piorando, continuavam caçoando e implicando sobre
o que menino pode e menina não pode, até o dia em que acordaram e estava chovendo, e eles
ficaram torcendo para parar a chuva e aparecer um arco-íris. Como um continuava implicando
com o outro, cada um passou sozinho pelo arco-íris, cada um de uma vez. Não aconteceu
nada, continuaram Pêdra e Joano. Então lembraram que precisavam passar por baixo do arco-
íris ao meio-dia e que, se para mudar de sexo haviam passado de lá pra cá, para desvirar
precisariam passar daqui pra lá. Quando realizaram essa troca, Pedro e Joana saíram jogando
tampinha até em casa, sem discordarem se era brincadeira para menino ou menina.
50
Literatura considerada infanto-juvenil, publicada pela Editora DCL, São Paulo, 2000.
70
Dudu, e concluiu dizendo que isso era normal para a idade dele. A mãe também não gostou
desse médico.
Um dia após o trabalho, o pai chega em casa e vê Dudu usando vestido, sapatos e
brincos, e pergunta ao menino se ele era mulherzinha. O menino, que não gostava de ser
chamado assim, chora e sua mãe ajuda-o, argumentando que o médico disse que isso passa. O
pai que não sabia sobre as visitas aos médicos ficou muito preocupado, pois ele, quando tinha
6 anos, nunca brincara assim. Então, isso não poderia ser normal como afirmam os médicos!
Na tentativa de solucionar o problema o pai decide levar o filho para comprar o uniforme
completo para jogar futebol.
No outro dia, os dois foram para o clube, no qual Dudu foi obrigado a jogar sob
ameaças de uma surra ou ficar de castigo. O menino jogou, fez gols, mas não pelo pai, e sim
pelo colega da escola que corria atrás dele para chamá-lo de mulherzinha. O pai estava
radiante pelos gols, pensando que o colega da escola estava com inveja do seu filho. Quando
seus avós vieram visitá-lo, Dudu ouviu a mãe contar sobre o médico. O menino entra na sala e
a avó fica horrorizada em ver seu neto vestido de mulher, sugerindo uma grande surra para
Dudu. Nesse momento chega em sua casa a outra avó, dizendo-lhe: “meu filho, como você
está bonito!” Todos direcionaram olhares espantados, enquanto Dudu olhava de um lado para
outro sem saber que atitude tomar.
O pai, para ajudar a avó (sua mãe) entender a situação conta-lhes que Dudu estava
com problemas, pois queria ser menina. Então a avó paterna, pergunta qual era o problema
disso, se ele mesmo também já havia desejado ser tanta coisa. Enquanto a confusão
continuava na sala, o menino e sua avó foram para o quarto conversar e vestir uma fantasia de
bruxa que ela acabara de trazer.
No outro dia, pais e avós decidiram levar o menino ao endocrinologista, o qual era um
velhinho muito simpático que também gostava de histórias de bruxas, e achava que era perda
de tempo examinar Dudu, mas pela cara da família, examinou-o. O pai, mais uma vez, saiu do
consultório desanimado, o menino não tinha nada de errado, era normal para a idade dele
brincar com fantasias.
A avó paterna convidou Dudu para ir ao teatro, e quando chegaram lá, encontraram
uma amiga da avó que conhecia os atores e os levou até o camarim. Dudu ficou
impressionado, pois ali homem passava batom e usava meia fina rendada. Quando a peça
71
terminou, o menino quis outra vez visitar o camarim e perguntar ao ator se homem pode
brincar de ser mulher e mulher brincar de ser homem. O ator explicou-lhe que ali ele pode
cada dia ser uma coisa diferente, esse era o trabalho dele. Mas Dudu tinha ido ao teatro,
principalmente, para encontrar a amiga da avó e perguntar sobre o que ele ouvira falar do
arco-íris, se quem passasse por baixo de um pode trocar de sexo. Mas ao sair do teatro Dudu
não quis mais passar por baixo de um arco-íris, pois achava que não queria mais ser menina,
mas queria a ajuda da avó para pedir ao pai que gostasse dele do jeito que ele era. Nesse
instante ele pára para olhar o arco-íris, enquanto o rapaz do teatro passa por eles e lhe dá um
sorriso. O menino com lágrimas nos olhos diz: - Vó, acho que eu quero continuar sendo eu.
Não quero mais virar menina pra sempre. – Vó, já sei, eu quero é ser ator de teatro!
Após contar essa literatura, pergunto-lhes o que pensam sobre a mesma. As crianças
relatam:
Eu brinco de se macho e não de mulher, porque eu sô macho (Ken).
O que é macho? (professora da turma)
É ser forte (Alex).
Porque eu nasci homem, porque eu nasci homem. (Ken) (Diário de Campo,
05 dez. 2005.
Então, pergunto às crianças como elas são quando nascem. Os meninos e as meninas
como sabem o que são?
As falas das crianças estão diretamente relacionadas com a fala dos adultos,
principalmente seus pais. Percebemos isso quando familiares relatam a história de vida e do
72
nome de cada criança em projetos trabalhados pela escola. Juliana relata sobre a ultra-
sonografia, comentando sobre o desejo da mãe em saber o “sexo” do seu bebê. Esta é apenas
uma das formas de instigar a construção da identidade de gênero na criança a partir dos seus
primeiros meses de vida, ou antes mesmo do seu nascimento.
A obra Por que meninos têm pés grandes e meninas têm pés pequenos? visualiza num
primeiro momento, mecanismos culturais da produção e naturalização daquilo que é da
identidade feminina e daquilo que é da identidade masculina. Posteriormente, apresenta a
idéia de que indiferente do tamanho dos pés, meninos e meninas podem brincar sem a
preocupação de transgredir o que lhes é apresentado como natural. Em momento informal em
que não identifiquei para as crianças como uma entrevista para que elas fossem mais
espontâneas, elas comentam:
Durante essas falas, as crianças não fazem a referência quanto à distinção, pois estão
associando o tamanho dos pés com o crescimento biológico do corpo sem referirem-se aos
mecanismos culturais considerados naturalizados, de que as meninas têm pés pequenos para
serem mais delicadas e os meninos, pés grandes por serem mais robustos e para jogarem
futebol.
Aninha e João é uma literatura conhecida por muitas professoras como um clássico
para trabalhar com relações de gênero. Essa história apresenta o quanto a mulher, desde
menina, tem sido posicionada como responsável pelo trabalho doméstico. Ao escolher
profissionalmente um trabalho que não corresponde a essa expectativa, Aninha, que queria ser
marinheira – é chamada à atenção pela professora. Era uma menina, porém o seu irmão fora
aplaudido na escola por fazer essa escolha. Aninha consegue tomar atitude de oposição a esta
desigualdade, ressignificando as tarefas domésticas do seu contexto familiar.
A associação apresentada pela idéia do não-sexismo poderá também ser utilizada nos
momentos de brincadeiras e músicas como um dos subsídios que contribui na formação da
identidade de gênero, produzindo as identidades das crianças.
Ao conversar com uma das professoras sobre a literatura infantil, pergunto-lhe: Como
você percebe as representações de gênero no cotidiano das crianças?
Nas turmas menores isso não ta assim tão caracterizado, mas a gente
percebe que nas turmas maiores, do maternal em diante, há bastante isso,
essa diferenciação de menino e menina porque primeiro inclusive pela
vestimenta, pela cor, pelos brinquedos, e por uma série de coisas que até a
própria televisão vem colocando a questão assim. E as literaturas são
poucas que tratam propriamente deste fim, você que ta fazendo esse
trabalho deve conhecer algumas, mas não são muitas que a gente possa
perceber essa questão (Liane).
Para problematizar tal afirmação, compartilho com as idéias de Sabat (2005) quando
enfatiza que, muito além dos produtos de consumo adquiridos pelas famílias, estão inseridos o
conjunto de valores consumidos e reproduzidos através da repetição e da aquisição de
“objetos” e pela linguagem. O que está implicado nessa fala da professora refere-se à maneira
como as famílias cogitam gênero pois, muito antes do nascimento da criança, geram
expectativas em relação ao bebê na organização de suas roupas, cores, e futuramente,
confirmam essa expectativa quanto aos brinquedos e futuras profissões, que são
freqüentemente verbalizados. É desta forma que Meyer (2005, p. 99) assevera ser a linguagem
“concebida como uma forma de ação, como produtora do mundo, como constituidora de
identidades”, neste caso, identidade de gênero.
51
Esta criança está se referindo à literatura e à tatuagem do seu braço com um adesivo de goma de mascar.
74
Uma coisa que me preocupa muito, esse modelo de família que a maioria
das literaturas traz que o papai, a mamãe, o filhinho, né, então isso me
preocupa também porque muitas crianças não têm esse modelo de família, e
o modelo de famílias delas quase nunca aparece nas literaturas, e elas ficam
perdidas, onde que eu me encaixo nisso daí e algumas até questionam: profe
e quem não têm pai como que faz? Aí a gente procura falar você não tem
pai, mas você tem alguém que faz tudo aquilo que um pai ia fazer, então eu
acho isso complicado (Marlene).
A música é uma das linguagens que na Educação Infantil tem uma forte ligação com o
brincar. É através dela que as crianças expressam-se, envolvendo gestos, movimentos, canto,
dança e o faz-de-conta em jogos e brincadeiras. Segundo o Referencial Curricular Nacional
para Educação Infantil – RCN (BRASIL, 1998, p. 59, v. 3), “Quando cantam, as crianças
imitam o que ouvem e assim desenvolvem condições necessárias à elaboração do repertório
de informações que posteriormente lhes permitirá criar e se comunicar por intermédio dessa
linguagem”.
75
Inspirada em Maria Carmen Barbosa (2000), em sua tese Por amor e por força:
rotinas na Educação Infantil, arrisco-me a afirmar que a música está ligada à questão da
rotina, muitas vezes como forma disciplinar. Segundo esta pesquisadora, participar ou não das
atividades de rotina, ter ou não sucesso em tais práticas, classifica as crianças entre as
adaptadas e as não adaptadas, as que vão bem ou as que precisam de algum tipo de atenção
especial do educador. Além de socializar a criança, intrinsecamente ligadas a valores sociais e
a hábitos culturais dominantes, as rotinas, de certa forma, foram empobrecidas e banalizadas
pelos adultos que a utilizam para normatizarem as crianças. Muitas canções infantis são
utilizadas para dar conta da rotina com as crianças como hora da higiene, da alimentação etc.
Estas poderiam deixar de ser vistas como atividade repetitiva e de regulação para tomar a
dimensão simbólica.
Valho-me das considerações feitas por Barbosa (2000, p. 212; 236) acerca das rotinas,
em que estas operam em direção à padronização, em direção ao comum. Em se tratando da
rotina, da regulação social, da segurança e estabilidade necessárias à construção dos seres
humanos como sujeitos, é preciso abrir espaço para o não padronizado, para o diferente, saber
suportar o novo e inserir a rotina, a arte, a literatura, a música, a dança etc, e transformá-la em
vida cotidiana.
76
Esta música é cantada na brincadeira de roda, na qual uma criança fica com os olhos
fechados no meio da roda para levantar e abraçar outra criança que irá trocar de lugar (entrar
no meio da roda). Nas observações, percebi que todas as crianças cantam a Viuvinha. Somente
depois de algum tempo entenderam, após a explicação da professora, que para as meninas
deveriam cantar viuvinha e para os meninos viuvinho. Ao que as crianças alteraram as
palavras, mas nos dias seguintes, elas tornaram a cantar como haviam internalizado essa
canção.
52
Cantigas de ninar definidas como acalanto por Fernandes (2004), como: Boi da cara preta; Dorme nenê;
Bicho-papão.
53
Parlendas como: Amanhã é domingo pé de cachimbo; Dedo mindinho, seu vizinho; Cadê o toicinho que estava
aqui?; Bão-ba-la-lão, senhor capitão (FERNANDES, 2004).
54
Rodas cantadas como: Ciranda cirandinha; A canoa virou; Vamos passear na floresta enquanto seu lobo não
vem; Boca de forno (FERNANDES, 2004).
77
A partir de estudos realizados, percebe-se que a música não é tão espontânea, mas
uma linguagem marcada e constituída pela sociedade, ou seja, traz as marcas da cultura do seu
tempo. Além disso, a maneira como as professoras organizam suas práticas e suas ofertas
musicais determinam o acesso ou não a uma diversidade de materiais e atividades para as
crianças experimentarem e conhecerem. Importante seria proporcionar no cotidiano destas
crianças situações em que pudessem vir a falar sobre o conteúdo das canções, sobre distinções
de gênero, através das diferentes linguagens e vivências.
A música O cravo brigou com a rosa também está presente no cotidiano da Educação
Infantil. Ao observar como cantam e ao discutir sobre os protagonistas e as ações do cravo e
da rosa, sem o auxílio da literatura infantil55, as crianças interpretam estes como flores em
uma ação lúdica, sem fazer muita distinção do masculino e do feminino. Quando passamos
para a dramatização da mesma, os meninos agem de acordo com a representação do cravo,
assim como as meninas procuram ser a rosa.
55
O cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte e publicada pela Editora Kuarup, em
1987.
78
Percebo que ao ser dramatizada pelas crianças desta faixa etária, a letra da música
determina a escolha de papéis que seguem uma lógica sexista, embora em muitas situações as
crianças sugerem a possibilidade de troca de posições, ou seja, trocam feiticeira por feiticeiro,
rei por rainha, mostrando como as posições de sujeito não são fixas naquele momento. Fica a
impressão de que por ouvirem por diversas vezes a música, esta fica registrada pela
linguagem oral como algo marcado que não deve ser alterado, mas que durante a escolha dos
papéis, estes podem ser alterados.
Terezinha de Jesus,
De uma queda, foi ao chão,
Acudiram três cavaleiros,
Todos os três de chapéu na mão.
O primeiro, foi seu pai,
O segundo, seu irmão,
O terceiro, foi aquele
Que a Tereza deu a mão.
Como diz a professora, a discussão sobre gênero ou outras identidades não está no
debate. Assim, não parece importante problematizar tais questões ao apresentar brinquedos,
brincadeiras, literaturas e músicas que marcam os significados masculinos e femininos,
subordinação e submissão para as crianças. Considero importante esse debate, pois inocentes
canções, brincadeiras e histórias podem ser formas de distinguir e constituir meninos e
meninas pela lógica do sexismo. Ao planejar é preciso atenção para normas instituídas pela
79
sociedade por meio do binarismo marcado também nos artefatos culturais oferecidos e na
maneira como as crianças brincam. Uma preocupação que poderá nos acompanhar em nossas
práticas pedagógicas é que o conteúdo daquilo que oferecemos às crianças é tão importante
quanto a forma que contamos histórias, cantamos em brincadeiras com as crianças.
Outro aspecto a considerar é com relação a pessoa do/a professor/a. Como cada uma
de nós torna-se professor(a)? O que temos vivenciado em nossos cursos de formação, em
nossas famílias, na nossa sociedade? Foi essa preocupação, após ter constatado estar
realizando a pesquisa num espaço de trabalho constituído pelo gênero feminino, que
possibilitou outros questionamentos, como: Afinal qual é a cor da Educação Infantil? Com
esta pergunta convido o leitor a caminhar comigo no próximo capítulo.
80
Capítulo III
QUAL É O GÊNERO DA EDUCAÇÃO INFANTIL?56
Até o século XIX eram vedados os estudos superiores para as mulheres, sendo-lhes
permitido que freqüentassem somente a escola normal, as quais atuavam dando continuidade
às concepções do passado, ou seja, atuando e exercendo a função materna através do cuidado
com as crianças, reafirmando assim a concepção da função reprodutora e materna da mulher,
também enquanto profissional, envolvida por uma ideologia masculina e machista.
Essa configuração a partir do século XX foi alterada pelas lutas e conquistas, tanto de
homens como de mulheres nesse campo de trabalho, demonstrando em âmbito histórico e
cultural, que a profissão “professor” configura a imagem de atuação tanto feminina como
56
Esta temática já foi abordada por Louro (1998), Weschenfelder (2004) e Oliveira (2004), ver mais nas
Referências.
81
Desta forma, busquei, através das entrevistas realizadas com as professoras, assinalar
alguns fatores históricos e sociais que permearam as escolhas destas profissionais, bem como
o tempo de atuação e expectativas futuras em relação à mesma, partindo das questões: Como
foi feita a escolha profissional? Que fatores históricos e sociais determinaram a escolha pela
profissão?
Olha, quando a gente escolhe, na verdade, a gente é muito nova, a gente não
tem muito, porque eu tinha quinze anos quando escolhi fazer o magistério,
na verdade, não tenho muito uma explicação do porquê, com certeza em
função dos pais estarem colocando que seria uma profissão que
provavelmente teria sempre um emprego pesa muito, para a gente que vem
de uma família humilde, e porque eu já namorava, e o meu namorado era do
interior, a gente sabe que pra fora é bem difícil pra gente que escolhe uma
área que é da educação, e isso foi uma das coisas que pesaram e depois com
certeza na escolha da faculdade foi em função de ter gostado e ter visto que
era isso que eu queria fazer (Liane).
solteiras ou viúvas. As solteiras, por não terem ocupação com as tarefas do lar e da família, e
as viúvas, por restringirem-se ao lar ou à Igreja. Essa profissão não representava ascensão
salarial, nem o sustento da família que provinha do trabalho masculino. Por esse motivo, as
mulheres foram designadas a ficarem com a precariedade das condições de trabalho em
relação à remuneração, pois ascensão salarial pertencia aos homens.
Pelas falas, observei que a necessidade de trabalhar, a buscar o primeiro emprego era
urgente, uma necessidade de sobrevivência. Larissa e Liane dizem ter permanecido com as
crianças pequenas após concurso para a Educação Infantil. Já Mariana afirma ser sua primeira
experiência como professora, diz que gostou e não quer trocar, não quer sair da Educação
Infantil. Observei também a preocupação, por parte das professoras, em justificar a sua
permanência neste campo de trabalho devido ao fato de relacionarem a Educação Infantil com
questões afetivas, gostar de crianças. Mas elas se contradizem em relação a isso quando falam
sobre a sua opção como uma escolha da família, ou uma necessidade da remuneração salarial
complementar na renda familiar. Pelo resultado das entrevistas, todas as professoras
selecionadas de acordo com o tema da pesquisa e que contribuíram com informações para a
mesma, são mulheres de origem de classe de baixa renda, filhas de trabalhadores rurais, ou
que residem em distritos no interior deste Município, necessitando estudarem na “cidade”.
Quanto à escolha para atuar com crianças no campo da Educação Infantil aconteceu
em conseqüência da busca de remuneração, pois não havia muitas outras opções. Isso se dá,
segundo as professoras pesquisadas, pela falta de experiência em outras áreas de trabalho,
conforme manifesta uma professora: “saímos muito novas do segundo grau, do magistério, e
parece ser mais fácil trabalhar com crianças pequenas, não nos exigem experiência, a gente
vai aprendendo no dia-a-dia”. Arrisco dizer que este poderia ser um fator que contribuiu, por
um longo período, para que a Educação Infantil fosse considerada como espaço de
assistencialismo. Historicamente, essas instituições tinham a função de substituir a família,
logo as profissionais tinham como principal atributo – serem afetivas. Para isso não haveria
maiores exigências, como experiência profissional ou cursos de formação.
As falas dessas entrevistadas mostram como a ausência masculina é dada como fato
“naturalizado”. Creio que posso associar essa perspectiva com a historicidade da Educação
Infantil, em que a mesma foi por muito tempo, e ainda é, um campo de trabalho
predominantemente de mulheres. Segundo Rosemberg (1997 apud WESCHENFELDER,
2004, p. 191), ao discorrer sobre a desqualificação do trabalho na Educação Infantil, “o
magistério, nesse nível de ensino, é uma atividade considerada do gênero feminino, exercida
sempre por mulheres com concepções ainda muito presas ao assistencialismo, suas marcas
vocacionais se baseiam nas qualificações como amor, treino e cuidado”. Essa probabilidade
de ter homens trabalhando com crianças pequenas também se evidencia na fala de Larissa e
Liane:
86
Eu não sei, olha é verdade a gente só tem mulheres que trabalham, tanto
aqui na escola como a maioria das escolas são poucos homens professores.
Eles têm só representação feminina,não tem nenhum homem o único contato
é os pais que vem trazer e a grande maioria ainda são as mães que trazem,
os pais já estão indo para o trabalho... (Larissa).
modo de ser pelas narrativas, que segundo Costa (2006, p. 88), “instituem sentido,
hierarquizam e articulam relações especificas, fabricando significados. Tudo tem sido dito
sobre as professoras, sobre a docência, não apenas ‘fala-se sobre’, mas cria, inventa, institui”.
A maneira como essas mulheres foram interpeladas por suas famílias na perspectiva da
escolha profissional fez com que as mesmas acolhessem essas expectativas, participando do
jogo constitutivo das identidades, como afirmou a autora.
No século XIX, essa área de atuação pertencia somente aos homens, por dominarem
as ciências e a aritmética; eram apreciados pela sociedade por deterem a posse do
conhecimento científico e técnico. Os estudos superiores estavam vedados às mulheres, sendo
permitidas apenas as escolas normais em conseqüência de “que a mulher exerce a profissão
magistério, envolvida por uma ideologia masculina que determinava e mesclava sua
influência na postura adotada pelas mulheres dentro e fora do lar” (OLIVEIRA, 2004, p. 163).
Essas concepções, marcadas pela distinção e elitismo, perpetuaram até o século XX. Foi a
partir da transformação da sociedade (industrialização e urbanização) e ascensão salarial
masculina que o magistério, até então exercido por homens, passou a ser concebido como
“vocação maternal”, ainda que este espaço de ação estivesse restrito à sala de aula, pois as
mulheres permaneceram por um longo período subordinadas às burocracias e aos cargos
administrativos escolares ocupados por homens.
Costa (2006) afirma que as mulheres atuam neste campo por mais de 100 anos, o
processo de feminização da profissão docente ocorreu progressivamente a partir da década de
50 não só no magistério primário, como também no secundário, assim como nas escolas
normais. O trabalho feminino também esteve associado à desvalorização econômica e social,
pois às mulheres cabiam as tarefas de ensinar trabalhos manuais com linha e agulha, enquanto
que aos homens cabiam as geometrias e demais conhecimentos. Destinadas a essa cultura
escolar dos trabalhos manuais e ao ensino das boas maneiras, das técnicas e na aceitação da
vigilância na forma moralista, penso que se foi adequando este campo de trabalho para o
Ensino Fundamental e, atualmente, a Educação Infantil para as mesmas.
A constatação de que essa área profissional é formada maciçamente por mulheres não
é coincidência, mas resultado do forte investimento das sociedades em destacar valores,
práticas e comportamentos considerados como femininos ou masculinos. Nesse estudo,
percebo um destaque para o cuidado e o zelo com a criança pequena, como condição
“natural” das mulheres, ou instinto materno. Como afirma Catani (1997, p. 39), “desde que os
seres humanos nascem, a masculinidade e a feminilidade são marcas que identificam cada
sexo e são impostas à psique da criança”. Essa é a forma que atua a cultura no
desenvolvimento da criança, por meio das construções históricas e culturais, e também na
identidade profissional do sujeito professora, na concepção de seus valores, hábitos, crenças,
modos de pensar e de agir.
Nessa fala, a professora demonstra a sua preocupação e destaca a forma como foi
criada, relacionando a sua maneira de agir ao que vivenciou no seu passado. Fator que afirma
que, além de serem construídos social e culturalmente, os sujeitos professores e professoras
são profissionalmente construídos, marcados pela representação, processos sociais, pessoais e
culturais das suas experiências de formação e trajetória profissional/pessoal através do
passado e do presente. Por isso considero importante ouvir as professoras da Educação
Infantil, pois ao narrar suas trajetórias de vida, retomando à luz das questões presentes em sua
prática de sala de aula, há a possibilidade de serem pensadas e repensadas questões
identitárias, tanto das crianças como dos adultos, uma vez que as identidades são produzidas
na linguagem e na cultura. Sendo estas produzidas desta forma, posso afirmar que meninos e
meninas são moldados como cravo ou rosa, assim como seus professores são constituídos
profissionalmente. Esse fator nos instiga a pensar que o gênero da Educação Infantil é um
espaço de trabalho predominantemente feminino e de constituição de sujeitos do gênero
masculino e feminino.
90
Imagem da música infantil o cravo brigou com a rosa, registrada como literatura por Luiz Duarte,
pela Editora Kuarup, em 1987 (Imagem nº 6).
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitos pesquisadores afirmam que uma pesquisa não pode se dar por encerrada
porque ela nunca tem fim, mas seu autor precisa determinar esse momento mesmo que muitas
idéias possam ficar pendentes, talvez para um olhar futuro. Assim sendo, considero ter
chegado esse momento.
Dessa ponte lancei novos olhares para questões já vividas no cotidiano da Educação
Infantil. Questões essas relativas à produção das identidades e suas relações em espaços de
convivência pedagógica numa escola dedicada à educação de crianças. As práticas sociais e
os discursos, aqui refiro-me às canções infantis, à literatura e às brincadeiras, “cercam os
sujeitos, produzindo e reproduzindo diferenças, distinções e desigualdades” (LOURO, 1998,
p. 87). Em minhas observações realizadas na Escola fui percebendo como através de
atividades rotineiras, lúdicas e nada inocentes, as crianças vão aprendendo de modo vagaroso
um jeito de ser menino e menina, de ser criança de seu tempo num espaço que lhes ensina
cores, formas, gestos, modos de ver, de sentir.
Posso dizer que fui embalada pela metáfora: O cravo e a rosa, canção do folclore
infantil utilizada durante o trabalho com as crianças da Escola Infantil. Essa canção ajudou a
problematizar o meu tema de pesquisa, uma vez que se apresenta como um par homem/
mulher de um modo um tanto fixo. Os referenciais teóricos, outros modos de olhar
descortinaram o meu olhar já tão acostumado à concepção polarizada de gênero. As leituras
92
Conforme constatado através das falas dos sujeitos da pesquisa e das observações, as
próprias crianças nem sempre distinguem brincadeiras por gênero de modo tão fixo. No
entendimento de Britzman (1996 apud LOURO, 1998), esse jeito de dividir o mundo é algo
produzido pelos adultos e presente na cultura. Como bem nos ensinam as feministas, o modo
como vivemos nossa masculinidade ou feminilidade, ou seja, nossa identidade de gênero, é
alvo de ações e normalizações produzidas pela escola e outras instituições. Creio que
podemos aprender com as crianças, pois elas podem nos ajudar a desnaturalizar a fixidez de
papéis e/ou posição de sujeitos.
considerar que, muito além dos produtos de consumo adquiridos pelas famílias, vem inserido
um conjunto de valores consumidos e reproduzidos através da repetição e da aquisição de
“objetos” e da linguagem.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaksman, Dora.
2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
AUD, Daniela. Feminismo: que história é essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
BARBOSA, Maria Carmen. Por amor & por força: rotinas na Educação Infantil. Campinas,
SP, 2000 (Tese de Doutorado).
BIAGIO, Rita de. Meninas de azul, meninos de rosa. Revista Criança. Brasília: Ministério da
Educação, set. 2005. n. 40.
BUJES, Maria Isabel. O fio e a trama: as crianças nas malhas do poder. Educação &
Realidade. Porto Alegre, 2000. v. 25. n. 1.
______. Escola infantil: pra que te quero? In: CRAIDY, C. M. Educação infantil: pra que te
quero? Porto Alegre: Artmed, 2001.
CATANI, Denice Bárbara et al. Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São
Paulo: Escrituras, 1997.
COSTA, Marisa Vorraber. Poder e política da representação. In: COSTA, Marisa Vorraber
(Org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
______; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos culturais, educação e
pedagogia. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, maio/jun/jul/ ago. 2003. n. 23.
______. Quem são? Que querem? Que fazer com eles? Eis que chegam às nossas escolas as
crianças e jovens do século XXI. VI Colóquio sobre questões curriculares, II Colóquio Luso-
Brasileiro sobre questões curriculares. Anais... Rio de Janeiro, 2004.
DEL PRIORE, Mary. História da criança no Brasil. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1998.
DERMATINI, Zeila de Brito Fabri. Infância, pesquisa e relatos orais. In: FARIA, Ana Lúcia
Goulart de; DERMATINI, Zeila de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias (Orgs.). Por uma
cultura da infância: metodologia de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores
Associados, 2002 (Coleção Educação Contemporânea).
DORNELLES, Leni Vieira. Infância que nos escapa: da criança na rua à criança cyber.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
DUARTE, Luiz. O cravo brigou com a rosa. Porto Alegre: Kuarup, 1987 (Coleção Nova
Ciranda).
ERIKSON, Erik Homburger. Infância e sociedade. 2. ed. São Paulo: Zahar, 1976.
FELIPE, Jane. Sexualidade nos livros infantis: relações de gênero e outras implicações. In:
MEYER, Dagmar. Saúde e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 1998 (Cadernos Educação
Básica, 4).
______. Entre tias e tiazinhas: pedagogias culturais em circulação. In: SILVA, Luiz Heron da
(Org.). Século XXI: Qual conhecimento? Qual currículo? Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
______. Erotização dos corpos infantis. In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane; GOELLNER,
Silvana (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. 3. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.
FURLANI, Jimena. Educação sexual: possibilidades didáticas. In: LOURO, Guacira; FELIPE,
Jane; GOELLNER, Silvana (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. 2. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2005.
GIROUX, Henry A. Os filmes da Disney são bons para meus filhos? In: STEINBERG,
Shirlei; KINCHELOE, Joe L. (Orgs.). Cultura infantil: a construção corporativa da infância.
Tradução de George Eduardo Japiassú Bricio. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004.
GOBBI, Márcia. Desenho infantil e oralidade: instrumentos para pesquisas com crianças
pequenas. In: FARIA, Ana L. G.; DEMARTINI, Zeila B. F.; PRADO, P. D. (Orgs.). Por uma
cultura da infância: metodologia de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores
Associados, 2002 (Coleção Educação Contemporânea).
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
Educação e Realidade. Porto Alegre, jul./dez. 1997. v. 22. n. 2.
______. Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
KUHLMANN Jr., Moisés. A educação infantil no século XIX. In: STEPHANOU, Maria;
BASTOS, Maria Helena Câmara (Orgs.). Histórias e memórias da educação na Brasil.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. v. II – Século XIX.
______; FERNANDES, Rogério. Sobre a história da infância. In: FARIA FILHO, Luciano
Mendes (Org.). A infância e sua educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 15-34.
______. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação,
1998.
LOURO, Guacira. Uma leitura da história da educação sob a perspectiva do gênero. Teoria &
Educação. São Paulo, 1992. n. 6.
98
______. O currículo e as diferenças sexuais e de gênero. In: COSTA, Marisa (org). Currículo
na contemporaneidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.
MARCILIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada na História do Brasil.
1726-1750. In: FREITAS, Marcos Cezar de. História social da infância no Brasil. 5. ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
MARTINS, Georgina da Costa. O menino que brincava de ser. São Paulo: DCL, 2000.
MEYER, Dagmar Esterman. Saúde e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 1998 (Cadernos
Educação Básica, 4).
______. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane;
GOELLNER, Silvana (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005.
NARODOWSKI, Mariano. Adeus à infância (e a escola que a educava). In: SILVA, Luiz
Heron da. A escola cidadã no contexto da globalização. Porto Alegre: Vozes, 1998.
OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de (Org.). Educação infantil: muitos olhares. São Paulo:
Cortez, 1996.
da infância: metodologia de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores Associados, 2002
(Coleção Educação Contemporânea).
SABAT, Ruth. Gênero e sexualidade para consumo. In: LOURO, Guacira; FELIPE, Jane;
GOELLNER, Silvana (Orgs.). Corpo, gênero e sexualidade. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005.
SCLIAR, Moacyr. As aulas vêm aí ou: o tracajá é um quelônio anfíbio. Zero Hora. Caderno
Donna. Porto Alegre, 18 fev. 2001. p. 7.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de analise histórica. Educação e Realidade. Porto
Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, jul./dez. 1995. v. 20. n. 2.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
______. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2001.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel (Org.). Professoras que as histórias nos contam. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
TAVARES, Maria Tereza Goudard. Uma escola: texto e contexto. In: GARCIA, Regina Leite
(Org.). Método: pesquisa com o cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
OBRAS CONSULTADAS
ANGOTTI, Maristela. Semeando o trabalho docente. In: OLIVEIRA, Zilma Moraes Ramos de
(org). Educação Infantil: muitos olhares. São Paulo: Cortez, 1996.
APPLE, Michael. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de
gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
BRITZMAN, Débora. Sexualidade e cidadania democrática. In: SILVA, Luis Heron da (Org.).
A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
COSTA, Marisa Vorraber. Sujeitos e subjetividades nas tramas da linguagem e da cultura. In:
CANDAU, Vera Maria (Org.). Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender.
Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
BUJES. Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FELIPE, Jane. Infância, gênero e sexualidade. Educação e Realidade. São Paulo, dez.-
jan./jul. 2000. v. 25. n. 1.
______. Produções e estudos do Geerge: algumas considerações. In: CATANI, Denice et al.
Docência memória e gênero. Estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras Editora, 2000.
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Identidade, cultura e mídia: a complexidade de novas questões
educacionais na contemporaneidade. In: SILVA, Luiz Heron da (Org.). Qual conhecimento?
Qual currículo? Petrópolis: Vozes, 1999.
101
FLEURY, Maria das Graças. Uma criança dentro da professora. In: OLIVEIRA, Zilma
Moraes Ramos de (Org.). Educação Infantil: muitos olhares. São Paulo: Cortez, 1996.
FONTANA, Roseli; CRUZ, Maria Nazaré da. Psicologia e trabalho pedagógico. São Paulo:
Atual, 1997.
GRAUPE, Mareli. Gênero e docência: discursos e práticas sociais nas escolas municipais de
Inhacorá. Ijuí, Unijuí, 2004 (Dissertação de Mestrado).
GUIZZO, Bianca Salazar, FELIPE, Jane. Estudos culturais, gênero e infância: limites e
possibilidades de uma metodologia em construção. I° Seminário Brasileiro de Estudos
Culturais em Educação: poder, identidade e diferença. Anais... Canoas, RS: Ulbra, 2004 (CD-
ROOM).
______. Entre batons, esmaltes e fantasias. In: MEYER, Dagmar. Corpo, gênero e
sexualidade. Porto Alegre: Mediação 2004.
LAMAS, Marta. Gênero: os conflitos e desafios do novo paradigma. Revista Proposta. São
Paulo, mar./ago. 2000. n. 84/85.
LISPECTOR, Clarice. Entrevista TV cultura – Programa Panorama especial, por Júlio Lerner.
In: GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: uma vida que se conta. 4. ed. São Paulo: Ática, 1995.
______. Sexualidade: lições da escola. In: MEYER, Dagmar. Saúde e sexualidade. Porto
Alegre: Mediação, 1998 (Cadernos Educação Básica; 4).
______. Segredos e mentiras do currículo. Sexualidade e gênero nas práticas escolares. In:
SILVA, Luiz Heron da (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1998.
SABAT, Ruth. Só as bem quietinhas vão casar. In: MEYER, Dagmar. SOARES, Rosângela
R. (Org.). Corpo, gênero e sexualidade. Porto Alegre: Mediação, 2004.
ANEXOS
103
Anexo 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Esta pesquisa tem por objetivo dialogar com as crianças, meninos e meninas, da turma
do Jardim II da Escola Infantil Branca de Neve, observando, registrando alguns momentos e
utilizando histórias infantis sobre as suas representações quanto às questões de gênero. Para
isso, serão realizados alguns encontros, no próprio período de aula, de aproximadamente 2
horas diárias, 2 ou 3 vezes na semana. Esses encontros serão planejados de diferentes
maneiras: leitura de histórias, problematização de tais histórias e de algumas representações
de gênero através de perguntas de caráter aberto, permitindo a maior abertura para a
participação das crianças, solicitando o uso de diferentes linguagens como desenhos, pinturas,
músicas, brincadeiras livres e orientadas etc.
Realizarei também observações das manifestações das crianças nos diferentes
momentos da rotina pedagógica da Escola.
Também realizarei entrevistas com algumas professoras, que têm interesse em
contribuir com esta pesquisa, a fim de dialogar sobre qual é o gênero da educação infantil,
diante do trabalho desenvolvido por mulheres.
As informações e os resultados desta pesquisa estarão sob sigilo ético, não sendo
mencionados os nomes dos participantes, nem da escola em nenhuma apresentação oral ou
trabalho escrito que venha a ser publicado.
Pelo presente termo de consentimento, declaro que fui informada dos objetivos, da
justificativa para a realização dessa pesquisa, bem como dos procedimentos a que meu/minha
filho/a será submetido/a.
A pesquisadora responsável por esta pesquisa é Licenciada em Pedagogia – Educação
Infantil – Jussara Pietczak Appelt, ex-funcionária desta Escola, professora de Educação
Infantil de uma escola da rede particular, aluna do Programa de Pós-Graduação em Educação
nas Ciências – UNIJUÍ, Mestranda orientada pela Profª Drª Noeli Valentina Weschenfelder,
professora do curso de Pedagogia, Coordenadora do curso de Especialização em Educação
Infantil e professora do Mestrado - UNIJUÍ.
Ijuí,______Dezembro de 2005.
_________________________________ _________________________________
Assinatura do/a responsável pelo/a aluno/a Assinatura da pesquisadora
104
Anexo 2
LITERATURAS INFANTIS CITADAS NA PESQUISA
- Faca sem ponta galinha sem pé. Ruth Rocha. São Paulo: Ática, 2005, 7. ed.
- Procurando firme. Ruth Rocha. São Paulo: Ática, 2005, 7. ed.
- Marcelo, marmelo, martelo e outras histórias. Ruth Rocha. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1976, 31. ed.
- Mariana. Maria Lucia Amaral. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, 3. ed.
- Menino brinca com menina? Regina Drumond. São Paulo: Melhoramentos, 1999.
- Por que meninos têm pés grandes e meninas têm pés pequenos? Sandra Branco. São
Paulo: Cortez, 2004.
- Zero zero alpiste. Mirna Pinsky. São Paulo: Ática, 1990, 10. ed.
- Joana banana. Cristina Porto. São Paulo: Melhoramentos, 1985, 4. ed.
- O menino que brincava de ser. Georgina Costa Martins. São Paulo: DCL, 2000, 2. ed.
- Aninha e João. Lúcia Miners. São Paulo: Ática, 1982, 4. ed.
105
Anexo 3
QUESTÕES DA ENTREVISTA COM AS PROFESSORAS
Entrevista