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IV CLASSICISMO (1527-1580) PRELIMINARES Quando Gil Vicente encenava a derradeira pega (1536), ia alto 0 processo torico que levou 0 povo portugues a posigdes jamais alcancadas, antes ou depois: o Renascimento. Antecedeu-o e preparou-o um movimento de cultu- ra que estremeceu as ultimas décadas medievais — o Humanismo — caracteri- zado pela descoberta dos monumentos culturais do mundo greco-latino, de modo particular as obras escritas, em todos os recantos do saber humano, € acao e cultura, parcialmente esquecido ou confinado em cor rante a Idade Média, seguiu-se o desejo de fazer ressuscitar 0 espirito da An- suidade Greco-Latina, Tal estado de cois toricos, bem como as novidades e as mudangas operadas a0 longo desse npo (clescobertas cientificas, invengoes, o progresso no campo do saber fi- ‘rio, a Reforma luterana, a Contra-Reforma, etc), veio ligado aos acontecimentos r situagao geografica determina- © povo lusitano desempenthasse papel de relevo na evolucio do Re- por intermédio de alguns estudiosos e, particularment ERATURA PORTUGUESA io, Diogo), Aquiles Fstaco, Aires Barbosa e outros, disseminavam as no- vvas ideias em universidades estrangeiras, entre elas a de Paris. Todavia, foi o alargamento do horizonte geografico, com as suas consequléncias econdmicas € politicas, que conferiu relevancia historica ao povo portugues, no periodo que corre desde os fins do século XV até meados do século XVI. Com efeito, a descoberta do caminho maritimo para as indias, empreen- dida em 1498 por Vasco da Gama, seguida pelo “achamento” do Brasil em 1500, cercou-se duma série de semelhantes ¢ lizes cometimentos, que per- mitiram a Portugal gozar de momentanea mas intensa euforia, sobretudo en- quanto reinou D. Manuel, entre 1495 e 1521: a conquista de Ormuz, em 1507, de Safim, em 1508, de Goa, em 1510, de Azamor, em 1513, a viagem de circunavegacio realizada por Fernao dle Magalhaes, em 1519-1520, ete Sobrevém extraordinaria prosperidade econdmica: Lisboa transforma-se em centro comercial de primeira grandeza; na Corte, impera um luxo desmedi- do; a maioria da populacdo acredita cegamente haver chegado Portugal a uma inalteravel grandeza material a Enfim, um quadro de ilusio coletiva,fruto de um otimismo ufanista, que ‘40s poucos se vai atenuando, até a derrocada final em Aleacer-Quibir, em 1578, quando morte D. Sebastido ¢ 0 exército portugués se dobra, fragorosamente vencido, a maliciae ao poderio da cavalaria sartacena. A atividade literdria em Portugal reflete esse ambiente de exaltacdo épica e desafogo financeiro que cru- za 05 decénios iniciais do século XVI, mas nao deixa de refletir também o desa- ito dos Iticidos perante a diibia e provisoria hegemonia: a fala do Velho do logo de Os Lusiadas constituem indices do pensamento dominan- conscia do perigo que ameacava a Pat no tmpeto revolucionario da Renascenga, ¢ como desenvolvimento wal do Huma smo, que o Classicismo se difundiu amplamente, por cor- ino literario, ao geral e ef€mero complexo de supremacia his- de indole paga, fruto duma sensagio de pleno gozo da existencia, pi pela vitoria do homem sobre a Natureza e seus “assombramentos” turas, mas sim de estender 0 olhar até os a voltipia de ascender para as ‘centifico”, voltado para a tealidade ma ins da Terra. O saber concre tende a valorizar-se em detrimento do abstrato; notavel avango opera-se campo das ciéncias experimentais; a mitologia greco-latina, despojada de ficado religioso ou ¢tico, passa a funcionar como simbolo ou ommamento. se 0 humano prevalece ao divino. Em 1527, depois de ausente seis anos, Sa de Miranda regressa da Telia, de convivera com estudiosos peninsulares impregnados das novas idéias, vando-as para Portugal. Introduziu, ou colaborou para que fossem difun 's, 0 verso decasstlabo, o terceto, o soneto, a epistola, a elegia, a canglo, a le, oitava, a égloga, a comédia classica (escreveu Os Estrangeiros em 1526). rmou-se o principal divulgador da estética clissica em Portugal, mas o papel teorico do movimento caberia a Antonio Ferreira, mais adiante posto em staque. Estando 0 solo preparado ha muito tempo, pouco demorou para al- incar éxito o empenho de S4 de Miranda em transmitir aos confrades as no- ina. Desse_modo, 0s ideals classicos Vidades lteritias de origem predominam em Portugal até a morte de Camoes e & passagem de Portugal 1a 0 dominio espanhol, em 1580. Na verdade, tais ideais vigoraram, de al- gum modo, até o século XVIII, sob formas diversas, paralelas, quando nao opostas, as tendéncias em moda, ou incongruentes. A ESTETICA CLASSICA — O Classicismo consistia, antes de tudo, numa concepgao de arte baseada na imitacéo ow mimese dos classicos gregos ¢ lat nos, considerados modelos de suma perfeigao estética. Imitar nao significava ;piar, mas, sim, a procura de criar obras de arte segundo as formulas, as me- idas, empregadas pelos antigos. Dat a observancia de regras, estabelecidas spostos da obra literaria, aceitas como verdades como suport, leis ou pres a forca do talento pessoal. Conquanto fossem aprioristicas, nao impediam o despertar e a manifestagao das qualidades peculiares de cada um. As demais caracteristicas decorrem dessa obediencia a regras ¢ modelos ‘dos. A ante clissica ¢ racionalista por exceléncia: “Haja a Razo 'ERATURA PORTUGUESA seja entendida”, como afirma Antonio Ferreira (Carta X, a D. Simao da ). © racionalismo classico nao significa auséncia de emocao e senti- apenas pressupde que a Razao exerce sobre eles uma espécie de contro- le, de vigilancia, a fim de evitar que tombem no exagero, Estabelece-se, ou. leseja-se, um equilibrio entre Razao e imaginac: universal e impessoal. A universalidade e a impessoalidade implicavam, no en- tanto, uma concepcao absolutista de arte: esta, dleveria expressar verdades eter- as € superiores, visando apros sreco-latinos. Dat que os classicos renascentistas (a rigor, neockissicos) procurassem a Bele- za, 0 Bem e a Verdade, com maitisculas iniciais, em virtude dessa concepgao ab- solutistacidealistade arte. Fmborandoentendessem queaarte fosse wtilitariamente ‘empregada para fins de jnstrucdo moral, ~ 0 que seria rebaixar-lhe a categoria, estavam longe de aceitar a “arte pela arte” ao modo parnasiano (Fins do século XIX), Lim alto objetivo ético, o do aperfeigoamento clo homem na contemplacao dlas paixdes humanas postas em arte (a catarse dos gregos), tendo em mira o Belo, nar-se dos arquétipos, ou seja, os modelos o Bem ea Verdade —€ 0 que tencionavam aleancar com as suas obras. Isso tudo pressupunha conferir superior papel ao intelecto na compreen- sao do Cosmos: o classico quer-se intelectual antes de sensit ‘gencia voltada para fora de si, para o Cosmos, e nao para dentro, na sondagem do proprio “eu”. O classico procura entender a harmonia do Universo, e dela participar, utilizando 0 tnico meio possivel para isso, a Razio ou a inteligén- cia, E a estética do Cosmos, em contraposicao a dos romanticos, que, como se vera na altura propria, defendiam uma arte que hes exprimisse 0 microcos- io. ‘mos, 0 “eu” Const i natural corolatio © culto extremado da forma: os clssicos sto malistas, no duplo sentido de aceitarem os modelos preestabelecidos ¢ de zarem a suprema perleigao formal em prosa e em poesia: logicidade na o do pensamento, limpeza ¢ vernaculidade gramatical, rigor no que iz respeito a cadéncia, a cesura, a estrofacao, a ordem interna do poema, etc. igos, mas sem perder de vista o carater ingua: numa espécie de “defesa ¢ ilustracao da Lingua Portugue- 3s preconizam ardorosamente a pureza da linguagem, Como diz a Pero de Andrade Caminha: ha Carta cLassicisMo uca-se, € viva iguesa lingua, ¢ ja onde for 1a va de si soberba, ¢altiva” a melhor compreensao da época classica em Portugal, € preciso levar ‘a que, em paralelo com a cultura européia do tempo, o ideario me- nao foi totalmente abandonado. Ao contratio, a sua presenca se faz de modo patente, lado a lado com as novas idéias: 0 século XVI portu- tui época bifronte, justamente pela coexisténcia, € nao raro cia, das duas formas de cultura, a medieval e clissica. Do angulo da essio poética, a primeira seria a “medida velha”, e a segunda, a "medida ", Tal dicotomia, Iugar-comum nos escritores quinhentistas portugue- a compreensio das aparentes ambivalencias de sta pro- Explica-se a dualidade quinhentista do seguinte modo: para alguns ho- moldados conforme os padroes medievais ainda vigentes, nao era facil ar de pronto e integralmente a nova moda. Em conseqiténcia, s6 Ihes res- a tentativa de assimilar 0 novo ao velho, formando um rosto de dupla ‘uma, voltada para o passado medieval, a outra, para a antiguidade cla: idindo-a com a atmosfera trazida pelas descobertas e pelas invengoes. jutro modo, nao se compreence como a novela de cavalaria, medieval por lencia, tenha alcancado o pice e tivesse sido cultivada com apaixonante esse precisamente no século XVL Mais ainda; as notas medievais quinhentistas contem um impulso que se 1 presente, subterraneamente ou nao, 20 longo de toda a Literatura Por- .,cruzando os séculos ¢ fazendo-se tradigao. Ao correr das €pocas € pe- rismo tradicional, caracterizado por ser popular, imental e individualista, dialogard sempre com as novas modas, ¢ sobrevi- sa, chamando os escritores para 0 sett 10 no curso dos séculos, io, explica a permanencia desse remoto li As novas formas literarias introduzidas pelo Classicismo logo foram absor- re outras razdes porque, sendo notadamente poéticas, vinham cor- \der as mais intimas preocupacées do portugues letrado dessa época, Ao po, acusam a tendéncia segundo a qual as formulacoes poeticas ladas pelo portugues, ao passo que as novi- espontaneamente as "RATURA PORTUGUESA 's da prosa romanesca custam a deitar ratzes fundas e produzir obras de levante sentido. ‘Compreende-se, assim, por que a época do Classicismo apresenta um gru- Po notavel de poetas, encimado por Luts Vaz de Camoes, ¢ que a poesia se co- loque a frente das outras manifestagdes literirias coevas, nao obstante estas, em sua espectfica area de acio e interesse, hajam atingido por vezes nivel de primeira grandeza, Alias, diga-se de passagem, os tedricos antigos (notada- mente Aristoteles, com a Poética, e Hotacio, com a Epistola aos Pisdes) e seus comentadores ou seguidores quinhentistas autorizavam e estimulavam o ardor posto na criacao de poesia Decorre disso que o Classicismo portugues principia e termina com um poeta: Sa de Miranda ¢ Camdes. Numa visto de conjunto, este tltimo é 0 grande poeta, enquanto os demais se colocam em plano inferior, naturalmente ‘ofuscados pelo seu brilho. A explicagao do fato reside na circunstancia de-se- tem poetas de menor talento e de haverem tomado ao pé da letra os postula- dos clissicos. Imitaram, copiaram, parafrasearam os antigos, nao raro friamente, sem acrescentar-lhes novidades nascidas da experiencia ou dos recursos pes- lade, inteligencia, etc. Faltava-lhes o sopro que, animando los axiomas estéticos, sugere a criagdo de obras or Os seus textos reduzem-se, com frequencia, a exercicios de arte (técnica Pottica), a que esta faltando o engenko (inspiragao, talento): a reuniao de am- bos resulta bem, mas arte, sem 0 engenho, consiste no trabalho artesanal destituido de inspiragao ou talento, De passagem, recordemos que Cam@es cesperava contar com a sua ajuda, como diz no prélogo de Os Lusiadas ais. “Cantando espalharei por toda parte, Sea tanto me ajudar engenho ¢ arte” wo ignorava que os dois requisgos devem estar inextricavelmente asso- dos para que vingue o intento poético. Os poetas menores do tempo, os imados 8pigonos, agarraram-se as regras classicas como se bastasse conhe- para criar arte, Nao compreendiam que os canones deviam mo meio de expressdo de sua mundividéncia (necessariamente nna base de todo artista, pequeno ou grande), € nao como validos por n _MANEIRISMO — Quando Camoes entra em cena com todo 0 fulgor do seu genio postico, ja ia alto o sol classico, apontando para uma mudanga de rumo_ que veio a consti wrde, se convencionou chamar de Maneiris- mo: tendéncia intervalar, entre 0 modelo clissico ¢ a estética barroca, perdu- raria até o inicio do século XVIL. Os primeiros sinais dessa metamorfose podem ser vistos na emergéncia da fantasia, da imaginagao, como faculdade relevante na eriacao literati, ¢ “a crescente importancia atribuida aos afetos patético” (Antbal Pinto de Castro 1973). Dai que o seu cultivo passasse a ser entendido como afetagao, ot seja, uma maniera, vocabulo italiano em uso no século XVI, entre os cultores das artes, plasticas, como sinonimo O designativo “ que dele provém, teria sido inventado no século XVII, pelo historiador italiano Luigi Lanzi, para designar a nova corrente hibrida da segunda metade do Quinhen- tismo. E da palavra original decorre nao s6 “maneita’, mas ainda os termos que gravitam ao redor da idéia de “afetagao”, como “amaneirado” e "amaneira- mento”. Ainda que escape, como todas as correntes intervalares, a uma confi- uracao plena e decisiva, 0 Maneirismo pode ser entendido como a estética que visa unir 05 extremos, representados pelos padrdes clissicos ainda vigen- tes ¢ pelos antincios de transigao no rumo da estética barroca. Periodo de crise, caracteriza-se pela tensio “entre classicismo e anticlassicis- formalismo, racionalismo e irracionalismo, sensualismo e es- , convencionalismo ¢ revalta contra 0 mismo". Coneebe 0 mundo como labirinto, distingue a dissimulacto so prinefpio condutor da arte, enaltece o formalismo, 0 artificialismo, o di obscuro, 0 oculto, situados nas vizinhancas da magia e dos reptos misti- Dando as costas & Natuteza, os seus adeptos acreditam que o dialogo deva travado com outros artistas, de modo a desenvolver-se como um estilo que se nutre de outros estilos, um espeticulo somente acessivel a iniciados. Para se rer na estética do paradoxo ¢ um passo e, na sua cola, erige-se como esté- namento, do individualismo, do fragmento, da “falta de senso de pro- ao, unidade e ordem’; “a esséncia das coisas tornou-se instavel einconstante, contra em estado de fluxo e mutagdo perpétua", com “a mistura do eco pelos contrastes marcantes e pelas contradigdes in= ¢ paradoxal” (Hocke 1974; Hauser 1976), wualismo, tradicionalismo e inovac 72 © A LITERATURA PORTUGUESA 3s criticos portugueses que se interessaram pela vertente maneitista, em- bora possam concordar em que a poesia de Camoes é um dos mais altos exem- plos dessa estética paradoxal, divergem quanto aos autores que nela se enquadram, chegando alguns a relacionar uma série de nomes quinhentistas, re 05 quai incluem Pero de Andrade Caminha, ¢ cujo mais distante aficio- nado seria D. Francisco Manuel de Melo, jé em plena época barroca LUfS VAZ DE CAMOES Pouco se conhece da vida de Luis Vaz de Camdes. Teria nascido em 1524 ou 1525, talvez em Lisboa, Alenquer, Coimbra ou Santarém. Entroncado numa ossivel familia aristocratica da Galiza, teria tido acesso a vida palaciana duran- tea juventude, da qual recebera estimulos para sua formacao intelect ses anos, talvez acompanhasse algumn curso escolar. Homero, Horacio, Virgilio, Ovidio, Petrarca, Boscén, Garcilaso constituem alguns dos seus autores preferi- dos. Talentoso ¢ culto, naturalmente provocaria paixio em damas da Corte, dentre as quais a Infanta D. Maria, filha de D. Manuel e irma de D. Joao Ill, e, sobretudo, D. Catarina de Atalde. Por causa desses amores proibidos, é “dester- ado” algum tempo para longe da Corte, até que resolve “exilar-se” em Ceuta (1549), como soldado raso. Perde um olho, e regressa a Lisboa. Em 1552, na Procissito de Corpus Christi, fere Goncalo Borges, servidor do Paco. Preso, logo ais ¢ liberto sob a condigio de engajar-se no servico militar ultramarino, Com efeito, em fins de 1553, chega as Indias. Em 1556, da baixa, e € no- ‘meado “provedor mor dos bens de defuntos e ausentes", em Macau. Ali, teria 0 parte de Os Lustadas. Acusado de prevaricacao, vai a Goa defender-se, as natufraga na foz do rio Mecon: salva-se a nado, levando Os Lusiadas, como wer a lenda, e perdendo a sua companheira, Dinamene. Finalmente, chega a pa, € encarcerado e solto pouco depsis. Esté-se em 1563. Quatro anos de- em Mocambique, da outra vez com os costados na cadeia por causa de las. Posto em liberdade, arrasta uma vida miseravel, até que Diogo do tra ¢ se empenha em recambid-lo para a Patria, aonde chega a de 1569. Em 1572, publica Os Lustadas e recebe como recompensa ra da miséria em que Morre pobre e abandonado, a 10 de junho de 1580, Escreveu teatro ao modo vicentino (Auto de Filodemo e El-Rei Seleuco) e a0 classico (Anfitrides), mas sem alcangar maior nfvel, relativamente a sua poesia € aos comedidgrafos do tempo. A sua correspondéncia encerra valor biografi- co ou histérico-literatio, Camées € grande, dentro e fora dos quadros literarios portugueses, por sua poesia. Esta, divide-se em duas maneiras fundamentais, conforme as ten- dencias predominantes ou em choque no século XVI: de um lado, a maneira medieval, tradicional, a “medida velha”, expressa nas redondilhas; de outro, a maneira classica, renascentista, a “medida nova’, subdividida em lirica, vazada ‘em sonetos, odes, elegias, cangbes, églogas, sextinas e oitavas, e em épica (Os Lusiadas, 4572), ‘Tendo permanecido viva, no decorrer do século XVI, a poesia medieval de cunho popularesco ou folclérico, o lirismo tradicional exprime-se notadamen- te em redondilhas (nome genérico dos poemas formados do verso redondiho iaior, isto €, de sete sflabas, ou redondilho menor, de cinco stlabas). Camoes cempresta ao velho popularismo ingenuo, o das cant mais vastas, fruto de suas experiéncias pessoais e do singular tale sui. Ultrapassando as limitacdes formais das redondilhas, insula problematica nova, que o exemplo da poesia amorosa de Petrarca ¢ do Cancio- neiro Geral de Garcia de Resende, estruturada sobre antiteses ¢ paradoxos, ajuda a compreender, Dai resultam quadros de aliciante beleza em torno de cenas da vida dria, protagonizadas, nao raro, por alguma mulher do povo, a quem o poeta conhe- ceria muito de perto. Quase que apenas compostas para durar 0 tempo de sua enunciagao murmurante, essas redondilhas deixam no ar uma sonoridade € uma ‘atmosfera” que perduram indefinidamente, como ressonancia dentro dum buzio. E 0 caso, por exemplo, da obra-prima, em matéria de redondilha, que tem por mote o seguinte terceto: “Descalea vai pera a fonte Lianor pela verdura; Vai fermosa, ¢ nao segura” Quando nao, uma gravidade tensa, dramatica, ocupa o lugar dessa jovialidae sendida, manifesto duma alegria de viver meio paga. E 0 caso de *Sobolos ERATURA PORTUGUESA «que va0", ou “Babel e Sido”: numa solenidade quase litirgica,trigica, o poe- lasma em vers0s, cujo ritmo vai num crescendo sufacante, toda a angustiosa «scalada para o plano das transcendéncias. Seguindo na esteira de Plato, o poe- onsidera-se “caido" no plano humano, o mundo “sensivel’, esmagado pelas ‘eminiscéncias’ do mundo “inteligivel”, onde moram as “idéias”, a verdadeira realidade, de que as coisas deste mundo sio apenas lembrangas ou sombras Para aleancar o seu designio, Camdes apela para o auxilio da Graca, “que a satide” (= salvacao), mas o seu Deus nao deve ser confundido com 0 Deus ismo, Tratar-se-ia duma espécie de “para além do Bem e do Mal’, sintese dum absoluto estético-filosofico-1 igido ou atingivel em ‘unfssono pela inteligencia e pela sensibilidade, sem qualquer mediacao prees- tabelecida (isto €, religides, sistemas filosoficos ou estéticos). Chegado a esse wa da poesia tradicional lassica ‘As excepcionais faculdades criativas le Camoes encontram plena realiza- io na poesia de inspiracio cléssica. De certa forma, Camées seria clissico mesmo sem que existisse 0 Classicismo; por isso, aderiu vivamente a nova ‘moda (e superou-a em mats de um aspecto, com isso tornando-se um poeta de Permanente valia e precursor da poesia barroca), visto ela conter meios de al- cangar resposta as suas inquietantes interrogacoes de homem sivel, vivendo uma quadra de profunda crise na historia da Nasce dat uma poesia que espelha a confisséo cluma tormentosa vida inte- Tior, repassada de paradoxos e incertezas, a reflexito em torno dos magnos problemas que lhe assolavam o espirito, nao s6 provocados por suas vivencias pessoais, mas também pela tomada de consciéncia dum desconcerto universal em que todos os seres humanos estivessem imersos. de e tudo o mais que Ihe confere a romantica aura de genio e de ( 0 la desgracada que levou e o quanto sofreu na carne o drama da condi- ‘Camoes entra a sondar o sombrio mundo do “eu”, da mulher, ria, da vida e de Deus. E unta ascensio, ou dlescensio: 0 poeta penetra to, descortinaclo pela sondagem no proprio “eu”, marcada por es- igtistia crescente, a medida que progride a viagem interior. tom permanente de dor, mas de dor césmica, no sentido em ‘ofrimento individual do poeta, é 0 universal ecoando io de expressao. Por conseguinte, o resultado dessa incursto nos escaninhos da alma consiste numa confissio ou autobiografia moral, assinalada pela “ansia de infinito”. Assim, a proporgao que avanca em sua peregrinagao desintegrando o proprio “eu” a fim de erguer o retrato do ‘composto da soma de todos 0s “eus” alheios que Ihe ficaram impressos na in- teligencia e na sensibilidade. Serve de exemplo a cangao “Junto de um seco, fero e estéril monte”, obra-prima de auto-andlise realizada num plano de vas- tidao césmica. Dessa perquiricao no “eu” nasce a duivida em que se debate Ca- Indes: ser € ndo-ser © dilema, que mais adiante se universaliza na figura simbolica de Hamlet, jé se revela em Camdes, como obsessiva e nuclear ques- 1Wo. No terreno amoroso, 0 conflito atroz faz que o poeta abstraia a mulher, ou as mulheres, em favor da Mulher. Partindo das varias criaturas que amou, Camoes pinta, com 0 auxilio da Razio, o retrato da Mulher, formado da reunito de todas ¢ de nenhuma em particular, porque subordinado a um ideal de beleza perene e universal. Ado- tando uma concepgio racionalista e platonica da bem-amada, ama a mulher nao por ela propria mas por encontrar nela refletido o sentimento do Amor em. ‘grau absoluto; amor do Amor, e nao do ser que o inspirou. Amor, portanto, mais pensado que sentido, ou, ao menos, submetido ao crivo da Razao, © poeta procura conhecer, conceituar o Amor, 0 que s6 consegue realizar lancando mao de antiteses e paradoxos (cf. o soneto “Amor € fogo que arde sem se ver"), Mas pensi-lo ¢ sofre-lo duplamente; de onde a dualidade em que merge 0 poeta, expressa, de um lado, pelo sentimento do bem perdido que ndo mais se alcanga e, por isso, mais desejado e, de outro, pela presenca da ‘morte, revelando o plano transcendente para onde emigrou a bem-amada, deixando-o sentir-se “bicho da terra, tdo pequeno”. O conhecido soneto a Di- lismo amoroso de base racionalista terior, © poeta vai namene € exemplo tipico desse id “Alma minha gentil, que partiste ‘Tao cedo desta vida, descontente Repousa lé no Céu etermamente E viva eu ca na terra sem triste Se la no assento etéreo, onde subiste, ta vida se consente, "RATURA PORTUGUESA, Nao te esquecas daquele amor ardente Que j4 nos olhos meus to puro viste Ese vires que pode merecerste Alguima cousa a dor que me ficou Da ma magoa, sem remédio, de perderte, Roga a Deus, que teus anos encurtous, Que tao cedo de ca me leve a verte, Quao cedo de meus othas te levou” A dicotomia interna da poesia lirico-amorosa camoniana resolve-se numa espécie de contraditéria esperanca, porquanto sé the resta a morte como refri- {gério & dor provocada pela auséncia da mulher: A longa e dramatica meditacao acerca dos mistérios do Amor, Camdes acrescenta idéntica reflexao a propésito da condigao humana. A vida, tema muito mais vasto que o da mulher e o amor, € que agora Ihe interessa. Para tanto, somente conta com o recurso da auto- sondagem, pois em si encontra a stimula da tragédia humana espalhada pelos quatro cantos do mundo. E a proporgao que aprofunda a andlise, vai reparando que uma espécie de fatalismo, o “fado", o impede mesmo de recorrer ao deses- pero. A mente debate-se num mar de paradoxos e pensamentos desencontra- dos, e ndo pode interromper 0 processo nem com a ajuda do desalento, pois “que até desesperar se (Ihe) defende”. Entao onde a salvagao? Na morte? “Nao cuide o pensamento Que pode achar na morte (© que nao pode achar tao longa vida" At ontcleo da poesia flexiva He Camoes: a vida nao tem razao de ser, € descobri-lo e pensé-lo ¢ int lem de perigoso, uma vez que acentua a cons- iremediavel miséria inerente & condicao humana, O poeta vive beco sem saida, $6 Ihe resta submeter-se ao desespero e viver conscien- nte a dor de pensar, ow algar voo para outras regides, transmigrando para luos horizontes a sua angistia existencial: a Patria é o passo seguinte, We nascem Os Lusiadas, e depois Deus, ou a razao primeira ¢ sem-razio da vida, ¢ fonte dum consolo inacessivel ao poeta enquanto enclausurado no plano senstvel. Essa poesia de reflexdo, que ¢ também de confissao no mais alto sentido da palavra, exprime-se notadamente nos poemas longos, em especial as can- es, como, dentre outras, “A Instabilidade da Fortuna’, “Junto de um seco, fero e estéril monte”, “Manda-me Amor que cante docemente”. Identificado ‘com a melhor tendéncia cultural do tempo, Cambes confessa, a0 longo de sua torturada reflexao, um pronunciado amor e respeito pelo Homem, o que con- fere a tal espécie de poesia indiscutivel permanéncia, 0s Lusiadas representam a faceta épica da poesia camoniana. Publicaram- se em 1572, em duas edicdes simultaneas, uma delas falsa, a que traz o pelica~ no do frontispicio voltado para a direita do leitor. Considerada 0 “Poema da Raca”, “Biblia da Nacionalidade”, ete., a epopeia teve o condao de co! feliz retrato da visto de mundo propria dos quinhentistas portugueses, e, a0 ‘mesmo tempo, sincera e comovida reportagem do momento em que Portugal atingia 0 apice de sua progressio historica O poema tem como niicleo narrativo a viagem empreendida por Vasco da Gama a fim de estabelecer contacto maritimo com as indias (a frota portugue- sa levantow ancora a 8 de julho de 1497, e arribou a Calicut, fim da viagem, a 24 de maio de 1498) Contém 10 cantos, 1102 estrofes ou estancias e, portanto, 8816 versos; as estancias estio organizadas em oitava-rima (compoem-se de oito versos com 0 seguinte esquema rimico: abababcc); 0s versos sao decassilabos herdicos (com cesura na 24 silaba, ou 3, ou 42, na 6! na 10°), Divide-se em trés partes: 14, Introdugao (18 primeiras estancias), subdivi- ida em Proposicao (estancias 1-3): 0 poeta se propde a cantar as facanhas das “armas e 0s bardes assinalados", isto é, os feitos bélicos de homens ilustres (baroes = vardes); Invocacdo (estancias 4-5): 0 poeta invoca as Tagides, musas do rio Tejo; Oferecimento (estancias 6-18): 0 poema ¢ dedicado a D. Sebastiao, a cujas expensas se deve a sua publicacao; 2, Narracao (Canto I, estancia 19 Canto X, estancia 144); 34, Epilogo (Canto X, estancias 145-156). Quando a ago do poema comeca (estancia 19), as naus esto navegando em pleno Oceano indico, a meio da viagem. Enquanto isso, no Olimpo redinem= se 0s deuses em concilio, a deliberar acerca dos navegantes. De um lado, Jupiter que hes € favoravel; de outro lado, Baco, defendendo posicao contriria, Com a 78 © A LITERATURA PORTUGUESA adesio de Venus e Marte a Jupiter, o conciio desfaz-se a bem dos navegantes. ‘Chegam a Mogambique; Vasco da Gama desce a terra; Baco prepara-lhe uma ci- lada, mas o comandante da frota triunfa e segue viagem. Chegada a Mombaca; do atraca, gracas a ajuda de Venus, que percebera outra armadilha de Baco. Indignada, reclama a Japiter maior prote¢do aos portugueses, e consegue-a, Chegada a Melinde, onde so magnificamente recebidos, © Rei de Melin- or D. Henrique de Borgonha, e prossegue cor ricos: o de Egas Moniz, Inés de Castro, a batalha de Ourique, a batalha do Sa- lado, a batalha de Aljubarrota, a tomada de Ceuta, o sonho profético de D. ‘Manuel, os aprestos da viagem, a fala do Velho do Restelo e a largada. A se © Gama narra a primeira parte da viagem, detendo-se nas peripécias mais pal Pitantes: o fogo de Santelmo, a tromba marinha, a aventura de Veloso, o epi- sodio do Gigante Adamastor, chegada a Melinde. Partida. Baco desce ao fundo do mar para incitar os deuses marinhos con- tra a frota, Kolo, deus dos ventos, decide solta-los. Enquanto dura a calmaria, conta-se 0 caso dos “doze da Inglaterra”, Desata pavorosa tempestade, mas ‘Venus envia as ninfas amorosas para abrandar 0 furor dos ventos Cessada a tormenta, chegam a Calecut. O Gama desembarca e € recepcio- nado pelo Samorim. Enquanto isso, Paulo da Gama recebe a bordo da nau ca- Pitania o Catnal, a quem comunica o significado das figuras desenhadas nas bandeiras; uma thima tentativa de Baco ¢ desfeita Regresso a Patria. Chegada a Ilha dos Amores, onde os navegantes sio favo- recidos pelas ninfas em recompensa do herdico feito. Depois do banquete, Te- thysconduz Vasco da Gama ao ponto mais alto da lhae desvenda-lhe a “maquina lo mundo” e o futuro glorioso dos portugueses. Partida. Chegada a Portugal Os Lustadas representam, com rara fidelidade e alto nivel ideativo, o espi- Tito novo trazido pela Renascencat de modo tal que as suas caracteristicas resultam em ser um tanto heterodoxas quando postas em face da ida, de Homero, e Eneida, de Virgilio). A come- que nao € Vasco da Gama, salvo como porta-voz dos que leva- @ ousada empresa, ou simbolo do povo portugues em sua contra os mares, no encalgo de amplos horizontes geo- € humanos, Os navegantes como uma unidade, ou mesmo Portugal 77% CLASSICISMO como terra eleita de “armas e bardes assinalados”, € que representam 0 de her6i no poema. Mais ainda: a viagem as Indias carecia de forca dramatica, como episod ico e motivagio literdria, para justificar por si so uma epopéia de tao intengio. Além de ser entao muito recente para se tornat mito (con- {sto é, faltava-lhe instituirse num cometimento que, transcendendo o plano humano, se aproximasse do divino (0 heréi classico resultava do consércio deus € uma mortal: dai o seu carster de semideus, ¢ as faganhas so- brenaturais que operava; o seu flanco humano revelava-se numa como o calcanhar de Aquiles). Sé assim a viagem poderia ser adi base da obra-padrio do povo portugues. Na verdade, 0 poeta viu-se obrigado a colocar maior enfase naquilo que ‘0 eixo central da epopéia, como se pode observar na fisionomia de alguns epis6dios fundamentais: a tha dos Amores, os Doze de Inglaterra, Inés de Castro, o Gigante Adamastor, a fala do Velho do Restelo Tais inovacoes, e outras que se Thes poderiam juntar, significam a edificacdo ‘uma epopéia renascentista, moderna, desobediente aos ensinamentos dos amtigos (“Cessem do sibio grego e do troiano / As navegacoes grandes que fi- e inclinada a espelhar a nova idade do homer. Fis por que se apresenta marcada de contradicoes ¢ dualidades, como, por cexemplo, a coexistencia do maravilhoso (intervencio de seres sobrenaturais no poema) pagio e do cristo, quando seria de esperar que o segundo predomi- nasse. Tal dualismo, como salemos, é francamente renascentista. Outro exem- dentro da mesma tendéncia: poema de exaltacao patristica, verdadeiro 10 de ufania, como a Proposi¢ao declara, Os Luisfadas deveriam manter-se coetentes até o fim, mas nao é o que acontece, visto o Eptlogo conter uma nota pressiva e melancélica. © poeta da-se conta de que tem a lira era excrescente ou margi “destemperada ea vor enrouquecda, Cantar a gente surda e endurecida” (© Epilogo da epopeia camoniana traduz 0 instante em que o vate se dt de que vinha de cantar um povo tristemente inebriaclo com as gloria 80° A LITERATURA PORTUGUESA \quistadas no ultramar, de modo a transformar as estancias finais numa de- ada confissio de visionario alquebrado pelo panorama decadente da Pa- tala, Essa nota pessoal do Eptlogo, identificando o poeta ao seu povo de uma forma altamente profética, contrapoe-se ao carater “objetivo”, histérico, cole- 'vo, da poesia épica. Em poucas palavras: estamos diante duma escancarada ide subjetiva, como se o poeta desabafasse os seus contlitos intimos no ‘momento em que chegava ao fim de uma trégico processo historico, represen- tado pela simultaneidade patente entre a sua desventurada existéncia num longo desterro e os anos mal-afortunados vividos pela Patria aps o periodo de grandeza delitante nas primeiras décadas do século XVI Por fim: ao longo de todo o poema, percebe-se a presenca de Camdes, di- Iida, indireta, dramatica (isto, ransferindo para os protagonistas da acao os a seus proprios sentimentos ¢ frustracdes), mas plena de verossimilhanca subje- tivae particular, Assim se explica que tenha posto o maximo de inspiracao po- ética nos episddios liricos (Inés de Castro, a lha dos Amores, © Gigante ‘Adamastor, os Doze de Inglaterra, apenas para continham nao a verdade propria do achamento dum caminho maritimo as fndias, mas a sua verdacle mai ima, de homem e de poeta. Contradizendo o carter narrativo, heroico-guerteito do poema, 0 mo- mentos liricos constituem o que ha de melhor, esteticamente, em Os Lusiadas ‘Sabe-se que 0s interludios liricos sao comuns as epopéias clissicas, mas & pre- ciso considerar que eram obra do her6i ou herdis, e nao das personagens se- cundarias & fabulagao central do poema, como ocorre no caso camonia Basta ver que é no episédio da ilha dos Amores que os navegantes ~ protago- nistas da herdica empresa — ganham o seu quinhao de experiencia amorosa, e, ainda assim, transfigurada pelo halo mitico que envolve o contato com as nin- fas que habitavam uma ilha imaginaria. Tudo isso, jé 0 dissemos, constiyi uma epopéia renascentista, moderna. E desse carater que devemos compreender Os Lusiadas, a fim de evitar reduzamos o aleance do poema ao mero gozo est icos, Simbolizando a conqu ico oferecido por esses a dos mares pelo navegante portu- gues, representa igualmente o dominio pelo homem novo, da Renascenca, so- os elementos da Natureza, Numa época de sulcado antropocentrismo, € icado dum poema que fixa um dos raros momentos em. {que o homem experimenta com éxito a magnitude de sua forga fisica e moral rum embate de proporgdes césmicas. Neste sentido, a obra ultrapassa o século XVI, e adquire valor universal e pe- rene, pois contém a imagem do homem de sempre, ansioso de conquistas novas ‘que Ihe deem a impressao de superar a certeza da propria pequenez, dependen- cia e efemeridade, identificada com a sensa¢ao ao mesmo tempo de angustia € de assombro, que acompanha o ato de contemplar os multiplos e variados as- pectos da natureza oriental e contracenar com os povos que ali viviam. Dat nao estranhar que Camdes, pela representagio universal do seu pensamento, fruto de um singular poder de transfiguracao poética,tipica do visionatio e do genio, ‘eja considerado um dos maiores poetas de todos os tempos. SADE MIRANDA Francisco Sa de Miranda nasceu em Coimbra, no ano de 1481, ¢ faleceu na Quinta da Tapada, provincia do Minho, em 1558. Formou-se em Leis, mas pre- feriu dedicar-se aos trabalhos literarios. Em 1521, viajou para a Italia, vivendo em Roma e outras cidades italianas, onde se deixou impregnar dos ideais classi- cos ali dominantes. De regresso a Coimbra, em 1527, pos-se a divulgar 0 canone classico. Com o casamento, pouco tempo depois, recolheu-se a Quinta da Tapa- la, entregue inteiramente a sua obra poética, até o fim dos dias. As suas Obras foram editadas inicialmente em 1595; ¢ uma nova edig40, com acréscimos, veio aluz em 1614. Carolina Michaélis de Vasconcelos preparou uma edicio publicada em 1885, edicao essa reproduzida em fac-simile no ano de 1989. Apesar do empenho em favor da estética , ou "media nova”, Sa de Miranda também cultivou a poesia a maneira antiga, mais precisamente a sé- culo XV, a chamada “medida velha”, numa bipolaridade que também seria praticada por outros poetas do tempo, inclusive Camdes, de certo modo espe- Iando o quadro cultural do Renascimento, oscilante entre os vestigios medie- vais e os valores da Antiguidade greco-latina, tanto, as suas trovas, cantigas, vilancetes, em vernaculo e em lingua castelhana, sob a influencia de Jorge Manrique, ja transpiravam as qualidades as caracteristicas que o realcariam no cenario da poesia quinhentista em Por- tugal, Essa dualidade fica evidente no uso do paradoxo ¢ da antitese, em torno te & musicalidade cantante e sentiment ‘go, regida por principios que o convivio diuture do amor e dos graves problemas existenciais, centrados na desconfortavel sen- sagao da passagem fugaz das horas (“Tudo passa como um vento"), numa ten- sto permanente entre contrarios desavindos, que ora Ihe inspiram a conhecida trova iniciada pela seguinte quadta: “Comigo me desavim, sou posto em todo perigo: ‘nao posso viver comigo rnem posso fugir de mim” ora Ihe ditam os seguintes versos, em que a anguistiaexistencial se manifesta como experiéncia viva, de que o poeta, dando mostras dle ser uma das vozes ‘ais sonoras do seu tempo, extrai um lirismo de superior inventividade: “A minha alma nao repousa dentro nela contraria toda cousa e toda cous © cuidado, que mais ousa «que mais confia em si, ora €assi, € ora assi" A aparente dissociagao entre estruturas tradicionais e uma problematica nova, decorrente da renascenca do gosto classico, atentia-se quando S4 de Mi- randa adota a clave que ajudou a disseminar em Portugal. Ao inicio, € a poesia buedlica que serve de cenario para as suas incursdes, conduzido pelos mes- ‘Omicos j4 observados na “medida velha’: as églogas, A “Nemorosq’, “Encantamento”, “Epitalamio Pastor”, entre as quais se destaca “Basto”, porventura a sua obra-prima no 10 impregnadas de reflexao doutrinaria, suscitada pelas questoes e pela faceta classica da sua forma- (os mestres antigos € a cuassicismo © 83 Razio comandam e engendram, nao € exclusividade sua, mas também do am- biente social a sua volta, como se o “eu” do poeta e o mundo renascente cons- tituissem espelhos paralelos: emudece a fantasia ver tanta contradicio; perde a verdade a anda corrida a razio ia, Como a tirar uma ilagao desse quadro dissonante, diz ele: “este mundo € tal / que é melhor cé nos desertos / softer e calar 0 mal / que descobrir os se cretos deste nosso Portugal”. A escolha da Quinta da Tapada como reftigio em que pudesse devotar-se tranquilamente as lides poéticas parece uma coerente opcao ¢, de resto, a tinicaalternativa oferecida pelo panorama que o poeta di- vvisava ao redor e dentro de si: 0 desconcerto universal ‘Acestrutura formal em que melhor vaza esse conilito, num jogo dialético incessante, jamais resolvido, é o soneto, que ajudara a difundir em Portugal. Com os olhos postos no modelo de Petrarca, que emprestara grandeza 8 novi- dade descoberta na [dade Média italiana, e no magistério de Horacio, buscaria decerto uma conciliagdo quase impossivel entre as tendéncias esteticas que tum e outro representavam, Focalizando o tema do amor, exercita uma casus- tica que tevela um clima de refrega sem descanso: 0 *desarrezoado amor, dentro em meu peito, tem guerra com a razio. [1 [Nao espera razoes, tudo € despeito, tudo soberba e forga {-.] Doutra parte, a Razdo tempos espia, espia ocasides de tarde em tarde, ‘que ajunta o tempo” Nao estranha que se volte para temas mitologicos, a semelhanca da trgica historia de Leandro e Hero, ¢ para as fontes clissicas da filosofia, dentre as is ressalta a melancolia banhada pelas aguas de Heraclito, fruto de uma Identifieagao de raiz, como evidencia o soneto justamente célebre, em que a {nspitagao alcanga os niveis mais altos a que subira o lirismo quinhentista: “O 4 © A LITERATURA PORTUGUESA sol € grande, caem co’a calma as aves”. Imerso numa “clara locura”, como diz mneto emt Espanhol, sentindo que estava com o “siso abalado”, nao dis- a lancinant ia de um tempo imemorial em que teria ocorrido 0 lagre do equilibrio entre © Amor, como o sentimento humano mais comple- xoe mais fundo, e a Razio, logo convertida em funda melancolia A clegia torna-se 0 meio expressivo mais adequado para comunicar esse estado de espirito melancélico, resultante da escassa valia da Razio, ou do siso, quando em face das “grandezas do Amor". Vendo-se sujeito ao “cruel fado”, avassalado pela certeza de ser 0 “mundo, tudo vento e tudo enganos", somente Ihe resta o estoicismo, a resistencia a um mal sem remédio, como Ihe ensina a visio da Natureza ~ "Muda o tempo costume, muda as leis / humanas, esta firme o natural”, ~ eo regresso a sabedoria dos Antigos: “a fortaleza lou- vada / anda em bracos com a prudéncia” e “poe-na avante a experiéncia”, pois que “tudo sem governo é nada [...}; todo 0 mal jaz nos extremos, /o bem todo Jaz no meio”. Em suma “Homem dum s6 parecer, dum 56 rosto € dum fe antes quebrar que volver, uta cousa pode ser, ras de corte homem nao é” senhor de uma rara integridade moral, governado por um entendimento das coisas e um talento poético que o distinguem como mestre e guia dos outros poetas quinhentistas. E também servido por um aforismo de onde extrai o cla- ro pensamento inscrito na sua alta voltagem lirica ~ “quem muito sabe duvi- da”, ~no qual se diria esbocar-se a duvida met6dica que faria de Descartes um divisor de aguas na historia do pensamento filosdfico. Coerente como pensador e podta, S4 de Miranda ainda cultivou o teatro, ha de Gil Vicente, senao de Plauto e Teréncio. Escreveu duas comé- Os Estrangeiros e Os Vithalpandos, a primeira das quais abre com as seguin- 's palavras: “A comédia qual vai, aldea e mal ataviada. Esta s6 lembranca fda, que se no desculpasse de querer as vezes arremedar Plauto € | A comédia, tio estimada nos tempos antigos, que al disseram ‘aqueles grandes engenhos que era, senao uma pintura da vida comum?" CLAssicIsMo. 8S ANTONIO FERREIRA Nasceu em Lisboa, no ano de 1528, Em Coimbra, formou-se em Leis. De volta 4 Lisboa, tomou-se desembargador do Tribunal da Relacao, entéo chamado de Casa do Civel. Faleceu em 1569, vitimado pela peste que entio grassava, dei- xando uma obra poética que somente foi publicada em 1598, gracas ao empe- nnho do seu filho mais velho, Miguel Leite Ferreira, sob o titulo de Poemas Lasitanos. Em 1587, viria 8 luz a Tragédia mui Sentida e Elegante de Dona Inés de Castro, mais conhecida por Castro, ¢ em 1622 seriam publicadas das comé- dias, Bristo € Cioso. Enquanto Sé de Miranda introduziu a moda classica em Portugal, a AntO- nio Ferreira couberam as funcoes de teorico. Em Horacio foi buscar os funda- ‘mentos da “medida nova’, como bem deixa patente na oitava-rima, intitulada “Aos Bons Engenhos”, que serve de prélogo aos Poemas Lusitanos. O seu verso inicial nao pode ser mais significativo dessa filiagdo: “A vos s6 canto espritos bem nascidos", diz ele, retomando 0 “adi profanum vulgus” horaciano (Ode 1, liv. IU), recorrente, de varias maneiras, a0 longo dos poemas, como “ama o se- guro / Silencio, fuge 0 povo e maos profanas”, “Fuja daqui 0 odioso / Profano ‘vulgo", “Fuge o vulgo profana”. Nas epistolas, com dlestaque para as enderega- das a Péro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes e Simao da Silveira, demo- rouse na explanacao dos principios que, norteando a arte poética de Horacio, regiam a poesia latina digna de ser imitada. Sob o império da Razao, prega o culto a “doutrina, arte, trabal lima’, para que “haja juizo e regra ¢ diferenca / Da pratica comum a0 pensa- “haja Raza lugar, seja entendida”, e defende o vernéculo: “Floresca, fale, cante, ouca-se e viva / A portuguesa lingua, e ja onde for / Senhora va de si soberba e altiva”. Nessa parelha, formada pela doutrina horaciana e pelo acentuado amor 4 lingua portuguesa, assenta a teoria que preconizava, ‘Antonio Ferreira seguiu coerentemente os postulados da “escola nova”: dessa ‘coeréncia € que provém, nas qualidades e nos desacertos, os limites da sua obra poética. Cultivou as estruturas poéticas trazidas pela Renascenca ~ 0 soneto, a oepigrama, aclegia, a égloga, 0 epitalamio, 0 epitafio, a epfstola—e recusou- icar a “medida velha”. Como era voga no tempo, mirou-se no exemplo ccuja presenca se faz sentir de varios modos nos seus poemas, Em tempoe 86 © A LITERATURA PORTUGUESA teza ante a indiferenca da mulher amada, numa equacio corriqueira no tempo, ‘mas que, em suas maos, ganha uma fluéncia nem sempre visivel nos poetas da ‘epoca, Exceto Camées, obviamente, como se pode observar no soneto que parece uma versio do célebre poema que o autor de Os Lusiadas dedicou a Dinamene: 0 alma pura, enquanto ca vvias, ‘Alma It onde vives ja mais pura, Por que me desprezaste? quem tio dura Te torou a0 amor, que me devias? Isto era, o que mil vezes prometias, Em que minh’alma estava tao segura, (Que ambos juntos uma hora desta escura Noite nos subiria aos claros dias? ‘Como em tao triste carcere me deixaste? ‘Como pude eu sem mim deixar parti-te? Como vive este corpo sem sua alma? Ah! Que o caminho tu bem mostraste, Por que correste a gloriosa palma? Triste de quem nao mereceu seguir-te! Afo binomio que constitui o fulcro da melhor poesia de Antonio Ferreira: amor e tristeza, amor e lagrimas, as mais das vezes em antiteses que Ihe povo- am a meméria. Habitado por “pura magoa”, “desfeito em fogo e em agua”, ou seja, desfeito em paixao ardente e em pranto por ela desencadeado, lidou mais wemente do que Péro de Andrade Caminha com a influencia de Petrar- -a, Compensaria, porventura, a rigidez fon d sta do ideario classico, deixan- Was emocdes experimentadas no trato amoroso com a bem-amada, ura, ao mostrar-se plena de “divina fermosura, alma divina’, 0 rato acabado da perfeicao feminina, uma vez que “tais gracas raramente 0 Cow reparte”, Fundia, desse modo, num s6 golpe de vista, os dois planos en- carnados na mulher, o fisico e o transcendental, que, a época, sol cespiritos mais avidos de perenidade Se a forma determina ou configura o contetido, ou se este requer uma for ‘ma especifica, é nos sonetos que o lirismo amoroso de Antonio Ferreira e dle ‘outros poetas coevos ganha lugar de eleicao, em decorréncia, quem sabe, da ‘musicalidade, do “son”, que esti na raiz do vocabulo. Era como se a “medida vvelha’, vingando-se por nao ocupar espago no horizonte estético do poeta, impelisse a cultivar uma forma tipicamente medieval. E certo que 0 soneto en- trou em uso no bojo da reforma do gosto instaurada por Sa de Miranda, mas tambem ¢ verdade que a estrutura de catorze versos, inventada no século XI, pelo poeta siciliano Giacomo da Lentino, estava associada aos modelos em voga na Idade Média, Acresca-se que o dolce stil nuovo, a que pertenciam Dan- te, Petrarca e outros poetas, ¢ que tao larga influéncia exerceu no século XVI portugues, era caudatario, de algum modo, da lirica trovadoresca provencal. Eis por que as demais estruturas poéticas empregadas por Antonio Ferrei- ra oferecem outro panorama, o da vitéria do ideario classico, a “verdadeira / doutrina”: nas odes, apos confessar que ao “brando Amor s6 sigo / Levado do costume”, concentra-se na defesa e ilustragao da lingua portuguesa, na stiges- ‘ao aos confrades para se lancarem na poesia épica, a fim de cantar 0s feitos historicos dos compatriotas, e na exaltacdo do bucolismo como ideal de vida, da “santa, ristica vida", em “louvor da vida campestre”, Diferentemente de ero de Andrade Caminha, 0 tom, nas elegias, € funéreo, mesclado por vezes de apologia ao morto, embora as antiteses, como “saudade ¢ alegria” ou “con tente e triste”, lembrem Petrarca; nas églogas, intervém 0 tema funéreo (ha ‘mesmo uma égloga dedicada a morte de Sé de Miranda: “Ah, meu bom mes- tre, ah, Pastor meu amigo”, em mistura com recordagdes do “Amor cruel, ‘Amor tirano”, sob a égide freqiente de Virgilio. ‘As duas comédias de AntOnio Ferreira seguem de perto 0 modelo das pe- as de Plauto e Teréncio, o que Ihes tira autonomia e brilho proprio. E na tra- ‘gédia Castro que 0 seu engenho teatral alcanga um dos raros momentos de plenitude exibidos pela dramaturgia quinhentista de vies classico. Glosando ‘medieval, que Camoes exploraria com todo o seu genio poético em (0s Lusfadas, como que reeditava o clima em que transcorrera o seu c\ soneto: se nao era a “medida velha’ que se impunha, com todo o peso de uma radicao secular, era, pelo menos, um tema que vinha da Idade Média, aureo- {rico amoroso e um sentido tragico que nao podiam es lade. Aqui, liberta-se da camisa de forga clissica para lado por um fase ‘capar & sua sensi

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