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Ruan Didier Bruzaca

(Org.)

ATUAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DO SISTEMA DE JUSTIÇA


NA PROTEÇÃO DA POSSE E DO TERRITÓRIO NAS AÇÕES
POSSESSÓRIAS AJUIZADAS CONTRA COMUNIDADES
QUILOMBOLAS NO BAIXO PARNAÍBA MARANHENSE
Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e
do território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense
Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular – PAJUP
Orientadores
Ruan Didier Bruzaca
Arnaldo Vieira Sousa
Igor Martins Coelho Almeida

Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB


Reitora
Maria Ceres Rodrigues Murad

Fundação de Amparo à pesquisa e ao desenvolvimento Tecnológico e Científico do


Maranhão – FAPEMA
Presidente
Alex Oliveira de Souza

Ruan Didier Bruzaca (Org.)


Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, com
período sanduíche na Università degli Studi di Firenze – UNIFI, Itália. Mestre em Direito e
Instituições do Sistema de Justiça pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
Graduado em Direito pela UNDB. Professor licenciado da UFMA e da UNDB. Orientador do
PAJUP.

Arthur Nunes Lopes Martins


Advogado. Graduado em Direito pela UNDB. Integrou a equipe enquanto bolsista da
FAPEMA e integrante do PAJUP.

Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa


Graduanda em Direito pela UNDB. Integrou a equipe enquanto bolsista da FAPEMA e
integrante do PAJUP.
Ruan Didier Bruzaca
(Org.)

Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e


do território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense

2018
São Luís
PAJUP
Diagramação e capa: Ruan Didier Bruzaca
Foto da capa: Igor Martins Coelho Almeida

B914d Bruzaca, Ruan Didier, 1989-


Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e do
território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades quilombolas no
Baixo Parnaíba Maranhense/ Ruan Didier Bruzaca. São Luís: PAJUP, 2018.
266 p.

ISBN 978-85-69617-17-4

1. Instituições do sistema de justiça. 2. Ações possessórias.


3. Comunidades quilombolas. 4. Baixo Parnaíba Maranhense. I. Título.
II. Ruan Didier Bruzaca.

CDD: 340
CDU: 342.7

Este livro é resultado de pesquisa fomentada pelo


Edital BIC PARTICULAR/FAPEMA nº 04/2016,
referente ao projeto BIC-05682/19.
Sumário

Apresentação
Ruan Didier Bruzaca ............................................................................... 11

Prefácio
Igor Martins Coelho Almeida ................................................................. 15

Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e


do território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense: projeto
Ruan Didier Bruzaca ............................................................................... 19

Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e


do território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense: relatório
Ruan Didier Bruzaca ............................................................................... 39

Atuação do judiciário na tutela de direitos de comunidades


quilombolas nas ações possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense
Arthur Nunes Lopes Martins ................................................................... 76

Tutela de direitos das comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba


Maranhense pela postulação de instituições de justiça estatais nas ações
possessórias
Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa ....................................................... 94
Deslegitimando a propriedade: luta quilombola no judiciário
maranhense sob a ótica descolonialista
Arthur Nunes Lopes Martins e Ruan Didier Bruzaca ........................... 125

Rompendo o direito tradicional: a atuação da advocacia popular


junto às comunidades quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense
Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa e Ruan Didier Bruzaca ................ 139

Entrevistas

Entrevista com Yuri Michael Pereira Costa, Defensor Público da


União no Estado do Maranhão .,............................................................. 159

Entrevista com Hilton Araújo de Melo, Procurador da República no


Estado do Maranhão ................................................................................. 169

Entrevista com Filipe Farias Correia, assessor jurídico do Centro de


Cultura Negra ........................................................................................... 180

Entrevista com Alexandre Silva Soares, Procurador da República no


Estado do Maranhão ................................................................................. 194
Entrevista com Antônio Fernando Rites do Sacramento, assessor
jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e Diogo Diniz
Ribeiro Cabral, assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos e da Diocese de Brejo .............................................................. 207

Entrevista com Izalmir Sousa Santos, quilombola e representante da


Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Estado do
Maranhão .................................................................................................. 211

Entrevista com Entrevista com José Carlos do Vale Madeira, juiz


federal da 5ª Vara da Justiça Federal no Maranhão ............................ 233

Entrevista com Ana Carolina Quadros Costa Reis Sousa e Martfran


Albuquerque de Sousa, representantes do setor quilombola do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Maranhão ................ 242
Lista de siglas

ACP Ação Civil Pública


ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade
BIC Bolsa de Iniciação Científica
BR Rodovia federal
CCN Centro de Cultura Negra
CPISP Comissão Pró-Índio de São Paulo
CPT Comissão Pastoral da Terra
DPU Defensoria Pública da União
FAPEMA Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Tecnológico e Científico do Maranhão
FETAEMA Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e
Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão
FETRAF Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na
Agricultura Familiar do Maranhão
FUNAI Fundação Nacional do Índio
GERUR Grupo de Estudos Rurais e Urbanos
JF/MA Justiça Federal no Maranhão
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ITERMA Instituto de Terras do Maranhão
MA Maranhão
MOQUIBOM Movimento Quilombola do Maranhão
MPF Ministério Público Federal
PAJUP Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular
PRONAF Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar
OIT Organização Internacional do Trabalho
PA Projeto de Assentamento
PT Partido dos Trabalhadores
RTIR Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
SEMA Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais
SINTRAF Sindicato da Agricultura Familiar
SMDH Sociedade Maranhense de Direitos Humanos
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UNDB Unidade de Ensino Superior Dom Bosco
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Apresentação

O presente livro é resultado de um projeto desenvolvido por membros do


Programa de Assessoria Jurídica Popular (PAJUP), da Unidade de Ensino
Superior Dom Bosco (UNDB), amparado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico e Científico do Maranhão
(FAPEMA).
O pontapé inicial para tal surgiu da preocupação em compreender a
realidade das comunidades quilombolas no Maranhão, principalmente pelo
fato de o PAJUP, não raro, ter contato com demandas do referido grupo
étnico – a exemplo de ocupações ocorridas no Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária.
Precisamente, buscou-se estudar as ações possessórias envolvendo
comunidades quilombolas e o tratamento dado pelas instituições do sistema
de justiça a tais conflitos. Para tal, elegeu-se o Baixo Parnaíba Maranhense
como delimitação espacial da pesquisa, justificada pelo fato de a região ser
marcada historicamente por conflitos fundiários decorrentes da expansão do
agronegócio e consequente ameaça aos direitos territoriais de quilombolas.
Do projeto obtiveram-se relatórios, artigos científicos, entrevistas,
compilados no presente livro, que objetiva difundir não somente as
reflexões, os resultados e as análises realizadas ao longo de um ano, mas
também dificuldades e empecilhos no desenvolver da pesquisa.
Com isso, a obra inicia-se com os escritos produzidos pelo orientador do
Projeto, Ruan Didier Bruzaca, intitulados “Atuação das instituições do
12

sistema de justiça na proteção da posse e do território nas ações possessórias


ajuizadas contra comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense:
projeto” e “Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da
posse e do território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense: relatório”.
Em seguida, tem-se os relatórios apresentados à FAPEMA pelos bolsistas
do projeto, Arthur Nunes Lopes Martins e Jordana Letícia Dall Agnol da
Rosa, respectivamente “Atuação do judiciário na tutela de direitos de
comunidades quilombolas nas ações possessórias no Baixo Parnaíba
Maranhense” e “Tutela de direitos das comunidades quilombolas no Baixo
Parnaíba Maranhense pela postulação de instituições de justiça estatais nas
ações possessórias”.
Quanto aos artigos científicos, o artigo “Deslegitimando a propriedade:
luta quilombola no judiciário maranhense sob a ótica descolonialista”, de
autoria de Arthur Martins e Ruan Didier Bruzaca, que utilizando o marco
teórico marxista e autores da antropologia, buscou-se questionar o instituto
da propriedade no direito. Em seguida, no artigo “Rompendo o direito
tradicional: a atuação da advocacia popular junto às comunidades
quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense”, visou-se estudar a atuação da
advocacia popular e sua importância para a luta pelo território de
comunidades quilombolas, constituindo uma ruptura com o direito
tradicional.
O livro é composto por entrevistas com membros do movimento
quilombola, de entidades da sociedade civil organizada, de instituições do
13

sistema de justiça e de órgãos estatais, que desde já agradecemos pela


contribuição para o desenvolvimento da pesquisa. Algumas das entrevistas
foram adaptadas para que o leitor tenha uma leitura mais agradável, assim
como redimensionada, com a devida autorização dos entrevistados.
Por fim, agradecemos ao imprescindível incentivo dado pela FAPEMA,
com a concessão de bolsas de iniciação científica aos discentes Arthur
Martins e Jordana da Rosa, bem como à Unidade de Ensino Superior Dom
Bosco (UNDB) e à Coordenação do Curso de Direito, pelo constante apoio à
pesquisa e à extensão.

Florença, Itália, 24 de julho de 2018


Ruan Didier Bruzaca
14
15

Prefácio

Estado do Maranhão. Ano de 2018. A Constituição da República


Federativa do Brasil completa 30 anos e nela está inscrita, dentre os seus
dispositivos originais, uma das mais importantes políticas de reparação
histórica da sociedade brasileira: o reconhecimento e a titulação de
propriedade de áreas ocupadas por comunidades remanescentes de
quilombos. Infelizmente, como será bem demonstrado ao longo dessa obra, o
Estado Brasileiro (nesse caso, os Poderes Executivo Federal e Estaduais)
ainda falha enormemente na efetivação desse direito. Até então, nada de
novidade para muitas pessoas, principalmente aquelas que já têm alguma
imersão nesse problema.
Mas aqui encontramos o grande valor da presente obra: apresentar um
olhar sobre as demais instâncias estatais acionadas quando da falha do
executivo no cumprimento de seu dever constitucional: o sistema de justiça.
Por si só, realizar uma análise sobre as instituições do sistema de justiça já
apresenta ao pesquisador e acadêmico um certo grau de dificuldade por
conta de diversos fatores (dentre eles a dificuldade no retorno de
informações para pesquisadores). Ocorre que esta obra se apresenta ainda
mais desafiadora (e alcança sucesso, de já adianto) em virtude do tema a ser
abordado: a atuação do sistema de justiça na proteção da posse e do território
nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades quilombolas no Baixo
Parnaíba Maranhense.
16

Dentre os desafios, podemos elencar sucintamente dois (sem prejuízo de


outros que serão apresentadas ao leitor): a primeira por se tratar de uma
pesquisa que envolve a presença e análise da atuação do sistema de justiça
para um dos grupos em situação de vulnerabilidade mais invisíveis da
sociedade brasileira (em especial, da sociedade maranhense, mesmo esta
sendo majoritariamente negra e rural): as comunidades remanescentes de
quilombos. O segundo desafio é retratar a realidade de violações contra
comunidades quilombolas em uma das áreas do território maranhense que
passa por um significativo processo de expansão de sua fronteira agrícola,
em especial com a implantação da sojicultora e do cultivo de eucalipto. Ou
seja, apresentando e enfrentando os atores sociais e econômicos que se
utilizam do sistema de justiça para se colocar em oposição aos direitos
garantidos aos quilombolas.
A obra está dividida em duas partes. Na primeira apresenta o projeto, seu
relatório e artigos sobre a atuação do Judiciário, da advocacia popular, bem
como a (re)construção de conceitos, como o da propriedade dentro da esfera
do judiciário. Na segunda parte, são transcritas entrevistas com sujeitos que
integram órgãos, instituições e entidades que acompanham diretamente as
comunidades remanescentes de quilombo no sistema de justiça.
Assim, apresenta-se como uma obra de grande valor na medida em que
traz todas as informações necessárias tanto para aquele leitor que quer
começar a imergir no tema, bem como para os pesquisadores e profissionais
que atuam com essas comunidades, possibilitando que possam ser pensadas
estratégias para a defesa das mesmas no sistema de justiça.
17

Portanto essa é mais uma obra acadêmica de grande importância não


apenas para o fortalecimento da pesquisa sócio-jurídica no Maranhão, mas
sobretudo na contribuição daqueles sujeitos que mesmo após trinta anos
ainda travam árduas batalhas com o Estado e com outros oponentes para a
efetivação do reconhecimento e titulação das terras que tradicionalmente
ocupam.

São Luís, 20 de dezembro de 2017


Igor Martins Coelho Almeida
Mestre em Direito e Instituições do Sistema de Justiça pela UFMA
Professor da UNDB e do Instituto Florence
18
19

Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e do


território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense: projeto1

Ruan Didier Bruzaca

Problema e Objeto

No Brasil, os conflitos possessórios que envolvem comunidades


quilombolas são dotados de grande complexidade, trazendo desafios para o
Direito em razão das particularidades do referido grupo social. Tais desafios
podem ser visualizados quando, na judicialização dos referidos conflitos, as
instituições do sistema de justiça deparam-se com questionamentos à visão
tradicional do direito, com dinâmicas sociais próprias das comunidades
quilombolas e os modos diferenciados de viver, criar e fazer.
As comunidades quilombolas, que podem ser consideradas enquanto
povos e comunidades tradicionais2, têm seu direito ao território previsto nos

1
Projeto de pesquisa apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), cuja fundamentação teórica serviu de
base para a elaboração do artigo “Linguagem dos juristas frente a representações jurídico-
culturais de povos e comunidades tradicionais: o caso do conflito possessório envolvendo a
comunidade quilombola de São Bento, Brejo/MA”, escrito em coautoria com Adriana Dias
Vieira e publicado na revista Prisma Jurídico (BRUZACA, VIEIRA, 2017, in passim).
20

Atos das Disposições Constitucionais Transitórias que, em seu art. 68


determina: “as comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes
os títulos respectivos” (BRASIL, 1988). O procedimento administrativo de
titulação está previsto no Decreto nº 4.887/2003, cujo órgão responsável é o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, trazendo inclusive o
conceito legal de comunidade quilombola3.
2
O termo “povos e comunidades tradicionais” é controverso, não se sabendo se nele pode se
alocar o quilombola – o que remeteria ao fato deste ser espécie daquele gênero. Um exemplo
de conceito legal de “povos e comunidades tradicionais” está previsto no art. 3º do Decreto nº
6.040/2007, que determina serem “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem
como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios
e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição”. Trata-se de um conceito que não possibilita qualquer pacificação no termo.
Entretanto, deve-se atentar à utilização do termo “povos e comunidades tradicionais” pelos
movimentos, remetendo à construção da ideia de “tradicional”, redefinindo-se a ideia de
“primitivo” e “natureza”, atribuídos às “comunidades locais”, sendo o termo “primitivo”
deslocado pelos sujeitos coletivos e o termo “natureza” integrante do discurso e dos atos
desses sujeitos, representados por “quilombolas, seringueiros, ribeirinhos, pescadores
artesanais, quebradeiras de coco babaçu, castanheiros, faxinalenses, garaizeiros e piaçabeiros,
dentre outros” (ALMEIDA, 2007, p. 11-12).
3
O Decreto nº 4.887/2013 traz o conceito de “remanescentes de comunidades de quilombos”,
considerando-os como “grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com
trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
2003).
21

Não obstante a previsão do direito ao território, existem conflitos


possessórios decorrentes da ausência de titulação ou da morosidade da
atuação da referida autarquia. Os problemas e embaraços a respeito do
procedimento de titulação quilombola no INCRA são patentes, sendo objeto
de pesquisas, cujas conclusões demonstram o cenário negativo na garantia
do acesso ao território.
Neste sentido, destaca-se a pesquisa realizada pela Comissão Pró-Índio
de São Paulo (CPISP, 2016), apresentando um total de 164 terras tituladas
em todo Brasil, assim divididas: Amapá (3), Bahia (17), Goiás (1),
Maranhão (55), Mato Grosso do Sul (3), Pará (58), Pernambuco (2), Piauí
(5), Rio de Janeiro (3), Rio Grande do Norte (1), Rondônia (1), Rio Grande
do Sul (4), Santa Catarina (1), Sergipe (4) e São Paulo (6).
O Estado do Maranhão, como se pode observar, é um dos estados com
maior número de titulação de comunidades, ao lado do Estado do Pará.
Entretanto, o referido número não reflete a inexistência de conflitos e de
problemas, muito pelo contrário. Até o ano de 2013, não se verificava

Não obstante, é necessário advertir problemas na utilização da referida expressão. Assim,


O’Dwyer (2010, p. 42-43) destaca que o termo quilombo vem assumindo novos significados,
sendo “ressemantizado” para designar situações de segmentos negros em várias regiões
brasileiras – exemplo é o termo “remanescentes de quilombo”, instituído pela Constituição
Federal de 1988, e que é utilizado por tais grupos. Ademais, não se refere a “resíduos ou
resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica”, não sendo
também grupos isolados ou homogêneos, constituídos por movimentos insurrecionais ou
rebelados, mas sim por práticas de “resistência na manutenção e reprodução de seus modos de
vida característicos e na consolidação de um território próprio”.
22

qualquer titulação finalizada pelo INCRA, autarquia federal responsável pela


titulação, sendo todas as existentes provenientes do Instituto de Terras do
Estado do Maranhão (ITERMA).
Neste sentido, a CPISP (2016b) traz que, do total de 55 comunidades
tituladas no Maranhão, 52 foram tituladas pelo Instituto de Terras do
Maranhão e apenas 3 pelo INCRA. Tais problemas administrativos4 agravam
os conflitos territoriais envolvendo comunidades quilombolas.
Na medida em que não se assegura a titulação das comunidades
quilombolas, particulares ajuízam ações visando manter-se na área ou
expulsar os quilombolas. Consistem principalmente em ações possessórias
(reintegração de posse, manutenção de posse e interdito proibitório) que, no
4
Além dos problemas administrativos, as comunidades quilombolas sofrem com investidas
que questionam seus direitos ao território. Primeiramente, atenta-se aos questionamentos ao
Decreto nº 4.887/2003 na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239-DF, ajuizada pelo
atual Partido Democrata, no qual se questiona a constitucionalidade do decreto anteriormente
citado, em seu aspecto formal e material – quanto a este, chega-se a levantar a incongruência
em se prever a possibilidade de desapropriação de terras particulares, visto que a Constituição
apenas prever o reconhecimento, não desapropriação; questiona-se a autoatribuição da
condição de quilombola; e indefinição do sujeito beneficiado pela legislação (BRASIL, 2012,
p. 2-3).
Ademais, existem outras investidas que buscam evitar a concretização do direito à terra e ao
território dos povos e comunidades tradicionais, principalmente indígenas e quilombolas.
Neste sentido, Santos (2013, p. 105-107) destaca a Proposta de Emenda à Constituição nº 215,
que tem como objetivo transferir do Poder Executivo para o Poder Legislativo (Congresso
Nacional) o poder de decidir sobre a demarcação de terras indígenas e a titulação de terras
quilombolas.
23

cenário de conflitos rurais, marcam-se por situações de injustiça e de ofensa


a direitos.
Tais ações trazem diversos debates para a ciência jurídica, como no
embate entre a interpretação contemporânea do Direito Privado e a visão
tradicional, sendo que aquela se volta para observância dos princípios do
Estado Democrático de Direito, apesar do Código Civil de 2002 conceituar a
posse de forma abstrata e unitariamente, sujeita à propriedade “ameniza-se a
concepção patrimonialista e utilitarista no restante do tratamento da matéria”
(FARIAS, ROSENVALD, 2014, p. 57).
Não obstante, a problemática de tais conflitos é ainda mais grave. Neste
sentido, Wolkmer (2001, p. 105) apresenta que há uma falência no modelo
jurídico estatal (de seu ordenamento positivo e de seu órgão de decisão, ou
seja, o judiciário) ao se limitar à regulação de conflitos
interindividuais/patrimoniais e não sociais de massa – não garante uma
regulamentação de tensões coletivas que digam respeito ao acesso à terra e
ocupações de áreas rurais e urbanas.
Observa-se no contexto brasileiro um confronto, que envolve disputa pela
posse, uso e distribuição da terra, que se desenrola em uma estrutura agrária
de privilégios e injustiças, assentada na dominação política autoritária e
clientelista, marcada pelo capitalismo especulativo e pelo comprometimento
com os interesses das tradicionais elites agrárias (WOLKMER, 2001, p.
106).
Em outros termos, trata-se de uma visão elitista, patrimonialista e
individualista que marca o direito brasileiro – incluindo as decisões e
24

atuações envolvendo conflitos possessórios. A insuficiência do modelo


jurídico estatal, do judiciário e, quiçá, das demais instituições do sistema de
justiça envolvidas (Ministério Público, Defensoria Pública, advocacia etc)
pode estar presente também no específico caso dos conflitos envolvendo
comunidades quilombolas.
Não bastasse o cenário marcado pela insuficiência administrativa na
titulação quilombola, pelo questionamento do direito ao território e à
autodeterminação das comunidades, e pelas pressões políticas para controlar
o procedimento de titulação, pode-se operar simultaneamente o agravamento
das situações de conflitos no campo envolvendo territórios quilombolas com
a tramitação de ações possessórias.
Shiraishi Neto (2007, p. 28) atenta que o reconhecimento do plural e
multiétnico têm favorecido a construção de um campo jurídico do “direito
étnico” e de uma forma própria de refletir o direito, Resultando no
afastamento de posturas cristalizadas de “práticas jurídicas”, abrindo espaço
para novas interpretações jurídicas. Conclui que pensar o direito sob a ótica
dos povos e comunidades tradicionais resulta em uma ruptura com esquemas
jurídicos pré-concebidos.
Entretanto, no que tange as ações possessórias decorrentes de conflitos
territoriais, inseridas no cenário de tentativas de deslegitimar os direitos de
comunidades quilombolas e no predomínio de um modelo jurídico estatal
elitista, patrimonial e burguês, mostra-se salutar compreender como as
instituições do sistema de justiça atuam na concretização dos direitos do
referido grupo social.
25

Wolkmer (2001, p. 115-116) aduz que os conflitos envolvendo a terra


transcendem o caráter de mero conflito por Direito à propriedade, “pois
abrangem um amplo espectro reivindicatório de direitos à vida, à vida digna
com segurança e com garantia de subsistência”. Em relação às comunidades
quilombolas, em razão das suas particularidades étnicas, o conflito perde
ainda mais o caráter de mero conflito por Direito à propriedade.
Inclusive, Almeida (2008, p. 134-135) apresenta que a forma de uso da
terra por comunidades tradicionais, como as comunidades quilombolas,
colide com disposições jurídicas e econômicas vigentes, cujo catálogo por
instituições estatais é quase inexistente, dependendo o reconhecimento desse
sistema por atuações de pesquisadores e técnicos que realizam pesquisas e
vistorias in loco.
Em outras palavras, as práticas do referido grupo não necessariamente
coadunam com as formas legais tradicionais envolvendo os Direitos Reais.
Resumir a atuação das instituições de justiça a esta visão pode resultar na
desconsideração de diversos direitos em favor de direitos individuais e
patrimoniais. Duprat (2007, p. 23) destaca que é necessário que o aplicador
do direito, em relação aos direitos de comunidades quilombolas, deve
compreender o ambiente que recai a norma e dar atenção às pessoas que lhe
conferem – compreender, ao invés de interpretar, é sair do pensamento e iro
à prática, fazendo-a falar.
Utilizando-se o judiciário como exemplo, é possível observar em
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a preservação do direito à
posse de comunidades quilombolas:
26

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO


ESPECIAL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE.
TERRENO DE MARINHA. ILHA DA MARAMBAIA.
COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBOS.
DECRETO N.º 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003, E
ART. 68 DO ADCT. [...] 6. Os quilombolas tem direito à
posse das áreas ocupadas pelos seus ancestrais até a
titulação definitiva, razão pela qual a ação de reintegração de
posse movida pela União não há de prosperar, sob pena de por
em risco a continuidade dessa etnia, com todas as suas
tradições e culturas. O que, em último, conspira contra pacto
constitucional de 1988 que assegura uma sociedade justa,
solidária e com diversidade étnica. 7. Recurso especial
conhecido e provido (BRASIL, 2010, grifos nossos).

Por outro lado, existem decisões que concedem reintegração de posse em


desfavor das comunidades:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE. IMÓVEL INSERIDO EM ÁREA CUJA POSSE
FORA ASSEGURADA À COMUNIDADE QUILOMBOLA
DO SÃO FRANCISCO DO PARAGUAÇU.
CONTROVÉRSIA ACERCA DA EFETIVA
LOCALIZAÇÃO DO IMÓVEL. I - Restando comprovado os
requisitos constantes no art. 927 do CPC, afigura-se devida, na
espécie, a reintegração de posse de imóvel objeto do litígio até
que seja realizado, pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária - INCRA, o devido procedimento de
27

delimitação e demarcação da área rural em discussão, a fim de


comprovar se o imóvel está inserido em área destinada à
Comunidade Quilombola do São Francisco do Paraguaçu. II -
Agravo de instrumento provido (BRASIL, 2013).

Neste compasso, as dificuldades não se restringem ao procedimento de


titulação quilombola, mas também podem ser observadas nas ações
possessórias, impedindo o amplo acesso ao território e o desenvolvimento
dos modos de viver, criar e fazer das comunidades quilombolas.
O Baixo Parnaíba Maranhense5 é marcado por diversos conflitos agrários,
como os decorrentes das investidas do agronegócio, que causam problemas
socioambientais, violência e expulsão da população do campo (GERUR,
2014, passim) – além de ser marcado por problemas decorrentes da histórica
ausência de distribuição de terras. Neste cenário, também se inserem

5
A respeito da referida região, Gaspar e Andrade (2015, p. 111) destacam: “Oficialmente
denominada de Leste Maranhense pelo IBGE, essa Mesorregião é conhecida também
genericamente como Baixo Parnaíba. Esta denominação é adotada, principalmente, por
integrantes de movimentos sociais como o Fórum em Defesa da Vida do Baixo Parnaíba
Maranhense, membros de associações comunitárias, instituições confessionais e sindicatos de
municípios da região. A referência ao chamado Baixo Parnaíba não coincide com a área
oficial correspondente à Mesorregião Leste Maranhense, mas se refere, principalmente, às
áreas geográficas que integram alguns municípios dessa região, como Santa Quitéria do
Maranhão, Brejo, Anapurus, Mata Roma, Chapadinha, Buriti, Urbano Santos, São Bernardo,
Barreirinhas, Belágua, São Benedito do Rio Preto, Santana do Maranhão, Milagres do
Maranhão”.
28

conflitos envolvendo comunidades quilombolas, várias sem titulação


finalizada, situação agravada com o ajuizamento de ações possessórias.
Com isso, é salutar problematizar a respeito da forma como as
instituições de justiça reconhecem o direito à posse e ao território das
comunidades quilombolas – tendo em vista que a proteção dos direitos
destas conflitam com visões tradicionais dos direitos reais, acarretando no
aprofundamento das desigualdades e na negação de direitos.

Objetivo geral

O projeto tem como objetivo geral analisar em que medida a atuação das
instituições do sistema de justiça nas ações possessórias possibilitam a
concretização do direito à posse e ao território de comunidades quilombolas
no Baixo Parnaíba Maranhense.

Objetivos específicos

O projeto tem como objetivos específicos: 1) mapear as ações


possessórias envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba
Maranhense; 2) analisar a situação do acesso ao território das comunidades
quilombolas envolvidas em conflitos possessórios e; 3) estudar a
fundamentação utilizada pelas instituições do sistema de justiça nas ações
possessórias envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba
Maranhense
29

Relevância

Na medida em que a judicialização dos conflitos possessórios envolvendo


comunidades quilombolas pode estar cercada por uma visão tradicional e
civilista do Direito, é necessário compreender a forma como as suas
particularidades étnicas e sociais são compreendidas nas decisões e
instituições do sistema de justiça. Consistem em conflitos que acarretam no
aprofundamento da histórica negação de direitos e desigualdade, servindo o
Direito como instrumento que serve ao patrimonialismo, elitismo e
individualismo.
A relevância consiste em analisar a situação de conflito e violência em
que as comunidades quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense estão
inseridas; compreender a atuação das instituições do sistema de justiça frente
a tais conflitos; colaborar para a percepção da relevância em superar uma
visão tradicional e civilista frente a conflitos envolvendo comunidades
quilombolas e, consequentemente, construir um conhecimento crítico a
respeito dos referidos conflitos.

Estado Atual do Conhecimento

Os estudos e pesquisas referentes a povos e comunidades tradicionais, aos


seus direitos reconhecidos nacional e internacionalmente, e aos problemas
do acesso ao território são vastas, principalmente nas áreas da sociologia e
da antropologia. Em relação à área jurídica, observam-se debates nas
30

subáreas do Direito Constitucional, do Direito Agrário e dos Direitos Reais.


Não obstante, a interligação entre as múltiplas áreas pode não ocorrer. Com
isso, é possível que existam visões estritamente legalistas, sem a
compreensão das complexas relações sociais existentes nas comunidades
quilombolas, que tornam insuficiente a pura e simples análise legal face à
complexidade e pluralidade decorrente do caráter étnico diferenciado do
referido grupo social.

Metodologia

A metodologia do projeto será constituída em primeiro lugar pelo


levantamento de bibliografia relevante para a temática, não somente na área
do Direito, mas também na sociologia e na antropologia. Ademais, serão
levantadas as legislações pertinentes ao tema, para compreensão dos direitos
assegurados às comunidades quilombolas.
Em segundo lugar, será realizada pesquisa documental e de campo para
identificar as comunidades quilombolas envolvidas em conflitos
possessórios. Isto será feito junto às organizações da sociedade civil que
atuam junto a comunidades quilombolas, como o Centro de Cultura Negra, o
Fórum em Defesa da Vida do Baixo Parnaíba Maranhense, a Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos, a Comissão Pastoral da Terra, a
Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão e o
Movimento Quilombola do Maranhão – diálogo possibilitado pela atuação
31

junto a sociedade e os movimentos sociais realizada pelo Programa de


Assessoria Jurídica Universitária Popular.
Em terceiro lugar, averiguar-se-á a situação do acesso ao território das
comunidades quilombolas em situação de conflito no Baixo Parnaíba
Maranhense, analisando-se os procedimentos existentes no Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária e no Instituto de Terras do
Maranhão.
Por fim, far-se-á a análise das ações possessórias ajuizadas em face de
comunidades quilombolas tanto no âmbito estadual quanto no âmbito
federal. Assim, será possível investigar tanto a atuação do judiciário quanto a
atuação das demais instituições de justiça envolvidas no caso.

Plano individual dos bolsistas

Foram elaborados dois planos individuais para bolsistas. Um de título


“Atuação do judiciário na tutela de direitos de comunidades quilombolas nas
ações possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense”. Teve como objetivo
geral analisar a atuação do judiciário na tutela de direitos de comunidades
quilombolas nas ações possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense. Como
objetivos específicos: estudar a concessão de decisões liminares pelo
judiciário que repercutem na expulsão de comunidades quilombolas ou
manutenção de particulares nas áreas conflituosas no Baixo Parnaíba
Maranhense; identificar os fundamentos das decisões judiciais nas ações
possessórias envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba
32

Maranhense; investigar as consequências da morosidade na prestação


jurisdicional em relação às comunidades quilombolas envolvidas em ações
possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense. A metodologia do plano de
trabalho teve desenvolvimento semelhante à do projeto do orientador.
O outro plano de pesquisa foi intitulado “Tutela de direitos das
comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense pela postulação de
instituições de justiça estatais nas ações possessórias”. Teve como objetivo
geral investigar os atos postulatórios das instituições de sistema de justiça
estatais face à tutela de comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba
Maranhense nas ações possessórias. Como objetivos específicos: analisar as
atribuições legais das instituições do sistema de justiça estatais passíveis de
postular a tutela de direitos das comunidades quilombolas nos conflitos
possessórios no Baixo Parnaíba Maranhense; investigar as implicações da
atuação extrajudicial das instituições do sistema de justiça estatais face aos
conflitos possessórios envolvendo comunidades quilombolas no Baixo
Parnaíba Maranhense; identificar os fundamentos dos atos postulatórios em
juízo das instituições do sistema de justiça estatais nos conflitos possessórios
no Baixo Parnaíba Maranhense envolvendo comunidades quilombolas. A
metodologia do plano de trabalho teve desenvolvimento semelhante à do
projeto do orientador.
33

Perspectivas do Projeto

O projeto tem como perspectiva: a) contribuir para uma tutela efetiva dos
direitos de comunidades quilombolas, inseridas perenemente em situações de
conflito e violência; b) conscientizar as instituições do sistema de justiça a
respeito das particularidades étnicas que envolvem as comunidades
quilombolas, sob pena de perpetuar uma visão elitista, patrimonialista e
individualista do Direito que impossibilitam a tutela daquelas; d) contribuir
para a construção de um conhecimento jurídico crítico que possibilite a
compreensão das formas de viver, fazer e criar de comunidades quilombolas;
e) consolidar uma atuação e produção científica crítica alinhada à atuação do
Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular – PAJUP, projeto de
pesquisa e extensão da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

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38
39

Atuação das instituições do sistema de justiça na proteção da posse e do


território nas ações possessórias ajuizadas contra comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense: relatório1

Ruan Didier Bruzaca

Objetivo geral

Diante do objetivo geral de “analisar em que medida a atuação das


instituições do sistema de justiça nas ações possessórias possibilitam a
concretização do direito à posse e ao território de comunidades quilombolas
no Baixo Parnaíba Maranhense”, entende-se que o mesmo foi cumprido em
sua totalidade. Apesar da incerteza na listagem de todos os processos
judiciais envolvendo comunidades quilombolas na região, foi possível
esquematizar a atuação de diferentes instituições do sistema de justiça.
Para tal, utilizou-se pesquisa documental, com a análise de processos, e
de campo, com entrevistas com representantes das instituições do sistema de
justiça e representantes do movimento quilombola. Neste sentido, importa
destacar que se estabeleceu contato com: a Defensoria Pública da União; o
Ministério Público da União; o Ministério Público Estadual; as varas da

1
Relatório dos resultados gerais obtidos na execução do projeto “Atuação das instituições do
sistema de justiça na proteção da posse e do território nas ações possessórias ajuizadas contra
comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense”.
40

Justiça Federal; o Centro de Cultura Negra; a Sociedade Maranhense de


Direitos Humanos; a assessoria jurídica da Diocese de Brejo; a assessoria
jurídica da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Estado
do Maranhão e; lideranças comunitárias.
Em especial, tem-se o destaque às instituições do sistema de justiça que
representam em juízo tal grupo étnico, como é o caso da Defensoria Pública
da União e do Ministério Público da União. Da mesma forma, a advocacia
popular, especificamente em relação à Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos e ao Centro de Cultura Negra, referencia uma atuação que visa
tutelar os direitos de comunidades quilombolas. Por outro lado, a advocacia
enquanto instituição do sistema de justiça também é pontuada quando atua
representando interesses de particulares, geralmente contrários aos direitos
das comunidades.
Ademais, não se pode deixar de lado o judiciário, crucial no debate sobre
direitos possessórios e territoriais em jogo. No caso, foi possível analisar
diferentes aspectos desta atuação por meio da análise das decisões judiciais.
Interessante notar a existência de diferentes questões debatidas,
principalmente quanto à concessão de liminares e à competência, na medida
em que as ações analisadas tramitam tanto na justiça federal quanto na
justiça comum.
Deste modo, diante da diversidade das instituições e das atuações, cuja
análise é possível pela coleta de informações por entrevistas e documentos,
foi possível observar em que medida os direitos de comunidades
quilombolas na região do Baixo Parnaíba Maranhense são ou não tutelados.
41

Objetivos específicos

Quanto ao objetivo de mapear as ações possessórias envolvendo


comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense, este foi
parcialmente cumprido. Foi possível realizar um mapeamento de ações
possessórias envolvendo comunidades na referida região, mas é necessário
atentar que esse mapeamento pode não incluir todas as ações possessórias
existentes, visto que apenas engloba aquelas acompanhadas pelo Ministério
Público Federal, pela Defensoria Pública da União, pela Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos e pelo Centro de Cultura Negra. Inclusive,
as dificuldades em acesso aos dados no judiciário, pela inexistência de uma
ferramenta de busca mais específica e pelo grande volume de processos nas
varas, impediram um levantamento mais preciso.
Quanto a analisar a situação do acesso ao território das comunidades
quilombolas envolvidas em conflitos possessórios, foi cumprido em sua
totalidade. Conforme listagem apresentada pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária, foi possível pontuar todas as comunidades
quilombolas que possuem processo administrativo de titulação na região.
Ademais, junto a tal listagem, há a situação de cada comunidade, sendo
possível observar a situação do acesso ao território conforme a respectiva
fase processual da qual a comunidade encontra-se.
Por fim, estudar a fundamentação utilizada pelas instituições do sistema
de justiça nas ações possessórias envolvendo comunidades quilombolas no
Baixo Parnaíba Maranhense foi cumprido em sua totalidade. Analisando os
42

processos listados a partir do contato com as instituições e entidades antes


destacadas, foi possível observar o conteúdo da fundamentação das
instituições envolvidas. Seja por meio das entrevistas, nas quais alguns
deixam claro seus fundamentos de atuação, seja por meio das peças
processuais elaboradas pelos representantes das instituições, principalmente
petições iniciais e decisões judiciais, identificou-se a referida fundamentação
e, com isso, o alinhamento ou não à concretização de direitos de
comunidades quilombolas.

Resultados
Conflitos possessórios envolvendo comunidades quilombolas no Baixo
Parnaíba Maranhense

Foram solicitados dados referentes aos conflitos possessórios que


envolvem comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense a
instituições do sistema de justiça e a órgãos estatais, por meio dos ofícios
PAJUP-BIC nº 11/2017, endereçado ao Ministério Público Federal; PAJUP-
BIC nº 12/2017, endereçado ao Centro de Cultura Negra; PAJUP-BIC nº
13/2017, endereçado à Defensoria Pública da União; PAJUP-BIC nº
15/2017, endereçado ao setor quilombola do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária e; PAJUP-BIC nº 19/2017, endereçada à
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
Neles, solicitava-se de forma padrão acesso às informações de processos
administrativos e ações possessórias existentes na instituição de justiça ou no
43

órgão, bem como realização de entrevistas com seus representantes.


Novamente, importa destacar que os dados se referiam às comunidades
existentes nos municípios que envolvem o Baixo Parnaíba Maranhense.
Inicia-se com os dados apresentados pelo setor quilombola do Instituto
Nacional de Terras e Reforma Agrária. Obteve-se listagem de comunidades
quilombolas em processo de titulação, mas não se obteve informação a
respeito da existência de ações possessórias. Assim, na região do Baixo
Parnaíba Maranhense, destaca-se a existência das seguintes comunidades em
processo de titulação:

1) Saco das Almas, município de Brejo, proc. nº


54.230.003791/2014-87, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase de elaboração do relatório antropológico, já
contratado;
2) Bonsucesso, município de Mata Roma, proc. nº
54.230.00368/2005-47, com certidão da Fundação Cultural
Palmares e com estudo antropológico;
3) Santa Cruz, município de Buriti, proc. nº
54.230.003910/2005-82, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase de elaboração do relatório antropológico, já
contratado;
4) Arvore Verde, município de Brejo, proc. nº
54.230.004960/2005-87, com certidão da Fundação Cultural
44

Palmares, sem Relatório Técnico de Identificação e Delimitação


Territorial;
5) Data Arraial, município de Brejo, proc. nº
54.230.003615/2007-98, sem certidão da Fundação Cultural
Palmares, sem Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
Territorial;
6) Alto Bonito, município de Brejo, proc. nº
54.230.005031/2007-57, com certidão da Fundação Cultural
Palmares e Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
Territorial em conclusão;
7) Barro Vermelho, município de Chapadinha, proc. nº
54.230.005393/2009-18, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase de elaboração do relatório antropológico, já
contratado;
8) Depósito, município de Brejo, proc. nº 54.230.009564/2010-
11, com certidão da Fundação Cultural Palmares, em fase de
elaboração do relatório antropológico, já contratado;
9) Bandeira, município de Brejo, proc. nº 54.230.012469/2010-
97, com certidão da Fundação Cultural Palmares, em fase inicial;
10) Funil, município de Brejo, proc. nº 54.230.01269/2011-90,
com certidão da Fundação Cultural Palmares, em fase inicial;
11) Cana Brava, município de Santa Quitéria, proc. nº
54.230.001929/2011-32, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
45

12) Caruaras, município de Santa Quitéria, proc. nº


54.230.001930/2011-67, sem certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
13) Boa Vista, município de Brejo, proc. nº
54.230.003933/2011-35, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
14) Bom Princípio, município de Brejo, proc. nº
54.230.003937/2011-13, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
15) São Bento da Data Genipapo, município de Brejo, proc. nº
54.230.001024/2013-24, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
16) Prata do Quirino, município de Chapadinha, proc. nº
54.230.001496/2013-87, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
17) Poço de Pedra, município de Chapadinha, proc.
nº54.230.001503/2013-41, com certidão da Fundação Cultural
Palmares, em fase inicial;
18) Povoado Quarimã, município de São Benedito do Rio Preto,
proc. nº 54.230.001397/2017-29, com certidão da Fundação
Cultural Palmares, sem Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação Territorial;
46

Seguindo, em resposta, o Ministério Público Federal apresentou quatro


relatórios. Três deles decorrentes da busca na ferramenta “Consulta Aptus”,
com texto para pesquisa “quilombola”, gênero “ato judicial”, UF
Cadastramento “Maranhão”, UF Localização “Maranhão” e Unidade
Cadastramento “PR-MA – PROCURADORIA DA REPÚBLOCA –
MARANHÃO”. O quarto relatório traz um filtro manual apresentado pelo
Ministério Público Federal. Diante do volume de processos apresentados,
elenca-se aqui os que tem pertinência ao projeto desenvolvido, com inclusão
de algumas ações de natureza distinta da possessória, mas consideradas
afins, pois envolvem o cenário de conflito territoriais. Assim, obteve-se a
seguinte listagem, quanto aos processos judiciais:

1) JF/MA-0023130-55.2013.4.01.3700-ACP – CÍVEL –
TUTELA COLETIVA, referente à implementação do Programa
Luz para Todos, na comunidade quilombola de Barro Vermelho,
município de Chapadinha;

Quanto aos inquéritos civis públicos:

1) 1.19.000.002228/2016-82 – CÍVEL – TUTELA


COLETIVA, referente ao inquérito civil que averigua denúncia
de violação de direitos na comunidade de Saco das Almas,
município de Brejo, que teria resultado em ação possessória que
tramita na justiça estadual;
47

2) 1.19.000.000197/2015-44 – CÍVEL – TUTELA


COLETIVA, referente ao inquérito civil que averigua vícios na
implantação do Programa Minha Casa Minha Vida na
comunidade quilombola de Vila Tiúba, município de
Chapadinha;
3) 1.19.000.001285/204-82 – CÍVEL – TUTELA COLETIVA,
referente ao inquérito civil que averigua denuncia referente à
agressão sofrida pelos quilombolas da Associação dos Moradores
do Povoado de Santa Maria, município de Urbano Santos.

No que se refere aos dados apresentados pelo Centro de Cultura Negra,


destaca-se:

1) Proc. nº 98/2009, Justiça Estadual de Santa Quitéria,


referente a ação de reintegração de posse face à comunidade de
quilombola de Cana Brava, município de Santa Quitéria;
2) Proc. nº 0003737-81.2012.4.01.3700, JF/MA, referente a
ação possessória face à comunidade de Depósito, município de
Brejo.

Solicitado informação à DPU, houve apresentação de doze Processos de


Assistência Jurídica, dos quais os pertinentes à presente pesquisa são:
48

1) 2013.012.00880, Comunidade de Depósito, referente à ação


civil pública com pedido de antecipação de tutela, proc. nº 84610-
63.2015.4.01.3700, JF/MA, que discutiu a implantação do
Programa Luz Para Todos;

A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, em resposta ao ofício,


apresentou os seguintes dados:

1) Processo nº 989-69.2014.8.10.0031 (9512014), Comarca de


Chapadinha, referente à ação civil pública ajuizada pelo
Ministério Público Estadual do Maranhão, quanto à comunidade
de Barro Vermelho, município de Chapadinha;
2) Processo n° 243-17.2008.8.10.0031 (2432008), Comarca de
Chapadinha, referente a ação possessória ajuizada em face da
comunidade de Barro Vermelho, município de Chapadinha, que
corre atualmente na Justiça Federal, sob o nº
003446979.2011.4.01.3700, JF/MA, em razão da identificação de
interesse processual pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária;
3) Processo nº 003545040.2013.4.01.3700, JF/MA, referente à
ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal,
envolvendo a comunidade de Barro Vermelho, município de
Chapadinha;
49

4) Processo nº 580-02.2007.8.10.0076 (5802007), Comarca de


Brejo, referente à ação de despejo em face de Manoel Natal
Bastos, da comunidade quilombola de Depósito, município de
Brejo;
5) Processo nº 5182009, Comarca de Brejo, referente a
Embargos de Terceiro com Pedido Liminar, ajuizada pela
Associação Comunitária Afro Descendente do Povoado Depósito,
município de Brejo;
6) Processo nº 0003737-81.2012.4.01.3700, JF/MA, referente à
interdito proibitório em face da Associação Comunitária Afro
Descendente do Povoado Depósito e outros, município de Brejo;
7) Processo nº 0051743-51.2014.4.01.3700, JF/MA, referente à
ação de demarcação ajuizada pelo Ministério Público Federal,
referente a área que envolve a comunidade de Depósito,
município de Brejo;
8) Processo n.º 1534-33.2016.8.10.0076 (15342016), Comarca
de Brejo, referente a ação possessória ajuizada em face de
membros da comunidade quilombola de Saco das Almas,
município de Brejo;
9) Processo n.º 0013982-88.2011.4.01.3700, JF/MA, referente
à demarcação de terras quilombolas, de autoria do Ministério
Público Federal, referente à titulação da comunidade quilombola
de Saco das Almas, município de Brejo.
50

Com isso, apresenta-se a seguinte tabela, referente a ações possessórias


ou que decorram do exercício do direito de propriedade:
# Comunidade Município Número do processo Juízo Assunto
1 Barro Chapadinha 003446979.2011.4.01.3700 JF/MA Possessória
Vermelho

2 Depósito Brejo 580-02.2007.8.10.0076 Com. Despejo


Brejo
3 Depósito Brejo 0003737- JF/MA Possessória
81.2012.4.01.3700
4 Saco das Brejo 1534-33.2016.8.10.0076 Com. Possessória
Almas Brejo

5 Cana Brava Santa 98/2009 Com. Possessória


Quitéria Santa
Quitéria

Tabela 1- Ações possessórias envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba


Maranhense
Fonte: Sociedade Maranhense de Direitos Humanos; Centro de Cultura Negra
Elaboração: Ruan Didier Bruzaca
51

Atenta-se que apesar do processo nº 580-02.2007.8.10.0076 não ter


natureza possessória, optou-se por incluí-la na tabela tendo em vista
impactar, tal qual na disputa da posse, a manutenção da comunidade na área.
Seguindo, em relação a ações de outra natureza, ajuizadas por instituições do
sistema de justiça visando a concretização de direitos às comunidades
quilombolas, tem-se como resultado a seguinte tabela:
# Com. Município Número do processo Juízo Assunto
1 Barro Chapadinha 003545040.2013.4.01.3700 JF/MA Ação civil
Vermelho pública –
titulação
quilombola
2 Barro Chapadinha 0023130- JF/MA Ação civil
Vermelho 55.2013.4.01.3700 pública –
implementação
do PLPT
3 Barro Chapadinha 989-69.2014.8.10.0031 Com. Ação civil
Vermelho Chapadinha pública –
extração
irregular de
areia
4 Depósito Brejo 84610-63.2015.4.01.3700 JF/MA Ação civil
pública –
implementação
do PLPT
5 Depósito Brejo 0051743- JF/MA Ação civil
51.2014.4.01.3700 pública –
demarcação
52

6 Saco das Brejo 0013982- JF/MA Ação civil


Almas 88.2011.4.01.3700 pública –
titulação
quilombola
Tabela 2- Ações para satisfazer direitos de comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba
Maranhense
Fonte: Sociedade Maranhense de Direitos Humanos; Defensoria Pública da União; Ministério
Público Federal
Elaboração: Ruan Didier Bruzaca

Deste modo, elabora-se o seguinte mapeamento, deixando claro que diz


respeito apenas aos dados levantados juntos às referidas instituições de
justiça e órgãos, podendo haver outras ações que não sejam por eles
acompanhadas.
53

Mapa 1- Mapeamento de processos de comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba


Maranhense
Fonte do mapa: EcoDebate (https://ecodebate.com.br/foto/baixoparnaiba.jpg)
Elaboração do mapeamento: Ruan Didier Bruzaca
54

De um total de 18 (dezoito) processos administrativos de titulação


quilombola existentes no Instituto Nacional de Terras e Reforma Agrária no
Maranhão, observa-se um total de 5 (cinco) ações possessórias e afins,
incluída a ação de despeje – destas, importa destacar que quatro são as
comunidades envolvidas, sendo elas Barro Vermelho (Chapadinha), Saco
das Almas e Depósito (Brejo) e Cana Brava (Santa Quitéria). Com isso,
conforme acompanhamento das instituições e órgãos anteriormente
destacados, aproximadamente 27% das comunidades quilombolas em
processo de titulação na região encontram-se em situação de conflito
possessório.
Por outro lado, levantam-se 6 (seis) processos de natureza distinta das
possessórias, mas caracterizadas por serem ajuizadas por instituições do
sistema de justiça para assegurar direitos às comunidades quilombolas, como
acesso ao território, às políticas públicas e proteção da dignidade. Destaque
para a comunidade de Barro Vermelho, que está envolvida em 3 (três)
processos, envolvendo: 1) conclusão do procedimento administrativo de
titulação quilombola; 2) implementação do Programa Luz para Todos e; 3)
situação de dano ambiental provocada por retirada irregular de areia no
território.
Estas últimas ações não deixam de ser inseridas no contexto dos conflitos
fundiários, servindo para a presente pesquisa por trazer um contraponto em
relação à manutenção de uma tradição jurídica de vertente individual, liberal
e burguesa. Por um lado, aqueles que ajuízam ações possessórias baseiam-se
em instrumentos e direitos reconhecidos e pouco questionados, como os
55

referentes à propriedade e à posse. Por outro lado, ações civis públicas são
ajuizadas por instituições do sistema de justiça, como a Defensoria Pública
da União e o Ministério Público da União, debatendo direitos que são
dificilmente efetivados, por exigir uma atuação estatal contínua e célere, e
que são reiteradamente questionados, principalmente por envolver grupos
étnicos postos em suspeita.
Trata-se de uma constatação que corrobora com marcos teóricos
estudados ao longo do projeto, bem como com aspectos empíricos
presenciados tanto nas entrevistas quanto nas peças processuais existentes
nos autos das ações possessórias e das de natureza diversa. Neste sentido,
importa trazer aspectos dessas ações, com a finalidade de deixar clara a
atuação das instituições de justiça e órgãos envolvidos enquanto parte, por
um lado, e, de forma apartada, da atuação do judiciário, por outro.
Com isso, verifica-se a existência de tratamentos diferenciados quanto às
reivindicações quilombolas e, em especial, quanto à sua percepção de mundo
e suas formas de ser, viver e criar, seja pela continuidade de uma tradição
jurídica que impede avanços no reconhecimento dos direitos daqueles, seja
pelas diferenciadas tentativas de assegurar o reconhecimento e a efetividade
de direitos.
56

Atuação das instituições do sistema de justiça


Ministério Público

O Ministério Público Federal interveio nas seguintes possessórias: 1)


003545040.2013.4.01.3700, JF/MA (Barro Vermelho) e; 2) 0003737-
81.2012.4.01.3700, JF/MA (Depósito). Quanto às ações civis públicas, a
referida instituição ajuizou as seguintes: 1) 003545040.2013.4.01.3700,
JF/MA (Barro Vermelho); 2) 0051743-51.2014.4.01.3700, JF/MA
(Depósito) e 3) 0013982-88.2011.4.01.3700, JF/MA (Saco das Almas).
Atualmente, é 13º Ofício do Ministério Público Federal no Maranhão,
representado pelo procurador Hilton Araújo de Melo, que acompanha as
referidas ações. Sobre os conflitos possessórios, o procurador afirma em
entrevista:
Esses conflitos sempre desaguam na Justiça Federal, onde o
MPF além de custos legis, atua também na defesa irrestrita
dos direitos territoriais dessas comunidades. Não é pura e
simplesmente defender o solo, mas sim o que ele
representa para a manutenção dessas comunidades. Então
o modo de fazer, de viver tem que ser mantido e é sempre de
acordo com o meio ambiente que eles necessitam para se
manter, subsistir basicamente. E subsistir está sendo uma
tarefa das mais árduas para esses povos aqui no Maranhão
(MELO, 2017, s. p., grifos nossos).
57

Nas duas possessórias observa-se a utilização de ações possessórias pela


parte autora, pretensos proprietários, seguindo a concepção civilista da
proteção da propriedade, apesar de inadequada, e da posse. Entretanto, sobre
a atuação da instituição de justiça em comento, verifica-se a busca por inserir
a compreensão da particularidade de comunidades tradicionais que seu
autodeterminam como quilombolas.
Em outros termos, a tutela não se resume a uma perspectiva pura e
simplesmente civilista, como se observar reiteradamente nas ações
possessórias. Trata-se de uma atuação que se sustenta nas especificidades
culturais, territoriais e identitárias que marcam as comunidades quilombolas,
sob pena de desconsiderar a realidade destas. Isto ocorre quando se resume
os acontecimentos a situações de “posse”, “propriedade”, “esbulho”,
“turbação”, por um lado, e não se compreende as formas de ser, viver e criar
do grupo étnico.
Sobre este conflito de traduções da realidade, o referido procurador
afirma:

Precisamos ser conscientes de que só existe um ordenamento


jurídico brasileiro. As leis existem várias, mas o ordenamento,
o que dá unidade para esse sistema, ele é uno. Então é preciso
que a gente sempre concilie quando a gente se deparar com
conceitos que aparentemente são adversos. [...] o conceito de
posse na visão mais tradicional do nosso direito, que
acompanha bem a nossa história civilista-patrimonialista,
inclusive de séculos, ela é sim posse sempre relacionada a
direito de propriedade e a um direito de produzir do ponto de
58

vista do enriquecimento, de produção econômica propriamente


dita. Essa posse que é tutelada com esses institutos de direito
civil tradicional, ela precisa ser coadunada, precisa
conversar e é um esforço frequente do Ministério Público
Federal quando se posiciona nas ações de conflito
possessório, saber reconhecer que a realidade dessas
comunidades quilombolas é bem distinta na forma como
elas visualizam a relação com a terra do que de um modo
geral o direito civil costuma fazer. Muitas vezes o Ministério
Público Federal já conseguiu acordos onde se preservou a
posse com o que a gente quase que chamou como
sobreposições de posse (MELO, 2017, s. p., grifos nossos).

Ademais, afirma que “na ordem do dia, para nós aqui do Ministério
Público Federal, é fazer de fato a defesa territorial o primeiro aspecto a gente
tem se preocupado” (MELO, 2017, s. p.). Assim, não somente nas
possessórias, quanto nas ações civis públicas, observa-se a atuação do
Ministério Público Federal no sentido de garantir o acesso ao território das
comunidades quilombolas, bem como a outros direitos, como o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Quanto ao primeiro, utilizando-
se como exemplo o processo nº 0051743-51.2014.4.01.3700, JF/MA, que
trata da comunidade Depósito, Brejo/MA, destaca-se a busca pela tutela dos
direitos territoriais.
Diferente do uso de ações possessórias, a ação civil pública é identificada
enquanto instrumento capaz de trazer com maior adequação as
reivindicações das comunidades. Isto corrobora com a conformação do
59

referido instrumento, visto que, conforme apresenta Berclaz e Moura (2013),


atribuiu ao representante do Ministério Público característica de Agente
Político e, quanto maior a aproximação e o diálogo com a sociedade, mais
legitimado e resolutivo será o seu trabalho. Na pesquisa realizada, observa-
se que os canais de comunicação entre o Ministério Público Federal e as
comunidades quilombolas são fortes, possibilitando, conforme destacado,
uma atuação alinhada aos seus interesses e à sua realidade.
Com isso, entende-se que a atuação do Ministério Público Federal tem
como fundamento não uma perspectiva restrita a respeito dos direitos,
principalmente no que diz respeito ao direito civil. Os referidos conflitos
possessórios envolvendo comunidades quilombolas enseja uma compreensão
diferente dos direitos e dos sujeitos envolvidos, empenhando-se o Ministério
Público Federal para tal.
Por fim, importa destacar a existência de uma ação civil pública ajuizada
pela Promotor de Justiça da Comarca de Chapadinha, referente ao processo
nº 989-69.2014.8.10.0031, visando impedir a continuidade de extração
irregular de areia às margens do Rio Munim, que afetava a comunidade
quilombola de Barro Vermelho. Trata-se de ação que resultou da provocação
da comunidade e da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos ao
Ministério Público Estadual. Novamente, identifica-se a busca da instituição
e do instrumento da ação civil pública para dar continuidade às condições
territoriais necessárias para as formas de ser, viver e criar da comunidade.
60

Defensoria Pública

Conforme dados apresentados pela Defensoria Pública da União, não se


observa habilitação em possessórias na região do Baixo Parnaíba
Maranhense. Por outro lado, quanto às ações civis públicas, a referida
instituição ajuizou as seguintes: 1) 0023130-55.2013.4.01.3700, JF/MA
(Barro Vermelho) e; 2) 84610-63.2015.4.01.3700, JF/MA (Depósito).
Tratam-se de ações civis públicas voltadas para garantir condições de vida
digna para as populações quilombolas, que historicamente sofrem tanto pela
ausência de reconhecimento de seu território quanto pela falta de prestação
de serviços públicos pelo Estado.
Quanto à atuação da referida instituição, o defensor público da união Yuri
Costa (2017, s. p.) afirma:
Predomina na atuação da DPU ações judiciais de natureza
coletiva, com destaque para a ação civil pública. O objeto
dessas ações é variado. Temos, por exemplo, demandas
movidas contra a Fundação Cultural Palmares, para dar
regularidade ou rapidez ao procedimento que certifica a
autodeclaração de coletividades como quilombolas. Há ações
que buscam viabilizar o acesso de quilombolas a políticas
públicas, sobretudo ligadas à educação, à saúde, à moradia e à
eletrificação. Outro relevante eixo de atuação são demandas
possessórias ou de regularização fundiária de territórios, quer
provocando o Judiciário em nome da comunidade, quer
61

defendendo os quilombolas em ações movidas por


particulares, por empresas ou pelo próprio Estado.

Quanto aos casos acompanhados, destaca-se o caso de Depósito, em que


se observa a ausência de infraestrutura (saneamento, água, energia etc),
essencial à vida digna, agudizada pela situação de tensão social na qual as
comunidades quilombolas estão inseridas. Isto é, marcada pelo conflito
agrário que envolve tais comunidades em relação às áreas correspondentes
aos seus territórios. Apesar de não se tratar de uma ação possessória, na
inicial da referida ação civil pública destaca-se a existência de disputa pela
posse, marcado por ameaças e ofensas a direitos da comunidade de Depósito.
Trata-se de uma situação que não atinge somente aquela comunidade,
mas também outras, como Barro Vermelho. Em outros termos, observa-se
reiteradamente a ausência de prestação de serviços às comunidades em
situação de conflito fundiário, impedido uma vida digna e,
consequentemente, impactando na forma de vida daquelas.
Importante destacar que, sobre as defensorias públicas, concorda-se com
Santos (2011, p. 50), para quem a revolução democrática da justiça exige
uma consulta e assistência jurídica diferente, possuindo papel relevante.
Continua destacando que, no Brasil, são instituições essenciais à
administração da justiça, objetivando a orientação jurídica e a defesa da
população carente.
Com isso, a fundamentação da Defensoria Pública da União, quando da
tutela de direitos de comunidades quilombolas, o que não seria diferente das
62

ações possessórias, envolvem a compreensão dos direitos territoriais, não se


resumindo a uma visão restrita dos direitos. Assim, a fundamentação da
instituição de justiça em comento aproxima-se daquela apresentada pelo
Ministério Público Federal.

Advocacia popular

Duas foram as entidades analisadas que representam a advocacia popular:


a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e o Centro de Cultura Negra.
Todos os processos listados foram acompanhados pelo menos por uma das
duas entidades, apesar de não existir habilitação em todas elas. Não obstante,
nos registros das referidas entidades, indicam-se os seguintes
acompanhamentos: 1) quanto à Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos, os processos (1.1) 003446979.2011.4.01.3700, JF/MA (Barro
Vermelho), (1.2) 5802007, Comarca de Brejo (Depósito), (1.3) 0003737-
81.2012.4.01.3700, JF/MA (Depósito), (1.4) 15342016, Comarca de Brejo
(Saco das Almas); 2) quanto ao Centro de Cultura Negra, os processos (2.1)
98/2009, Comarca de Santa Quitéria (Cana Brava) e (2.2) 0003737-
81.2012.4.01.3700, JF/MA (Depósito).
Importa destacar ainda que, quanto às ações diversas, a Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos acompanha os seguintes processos: 1)
989-69.2014.8.10.0031, Comarca de Chapadinha (Barro Vermelho); 2)
003545040.2013.4.01.3700, JF/MA (Barro Vermelho); 3) 0051743-
63

51.2014.4.01.3700, JF/MA (Depósito); 4) 0013982-88.2011.4.01.3700,


JF/MA (Saco das Almas).
Na atuação das referidas entidades, também se verifica o empenho na
compreensão da particularidade da relação das comunidades quilombolas
com a terra. Com isso, a despeito da conformação do caso à condição de
ação possessória, a atuação não se resume em replicar a dominante visão
individual, liberal e burguesa a respeito da posse e da propriedade. Esta
visão é observada na inicial do processo nº 003446979.2011.4.01.3700, ação
de manutenção de posse que inicialmente tramitou na justiça comum
(processo nº 243-17.2008.8.10.0031, Comarca de Chapadinha). Na referida
ação omite-se qualquer informação a respeito da identidade da Comunidade
de Barro Vermelho, reduzindo membros desta a “agitador social” que
incentiva “invasões de propriedades particulares”. Fundamenta-se no Código
de Processo Civil o “direito a ser mantido na posse”, bem como no Código
Civil.
Entende-se que há uma aproximação da atuação de tais entidades de
defensa de direitos humanos com o positivismo de combate que, ao lado do
uso alternativo do direito e do direito alternativo em sentido estrito, constitui
uma estratégia do movimento do direito alternativo, conforme apresenta
Wolkmer (2008, p. 199). Isto é observado na contestação do caso
supracitado, apresentada pelo então assessor jurídico da Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos, no qual destaca uma outra leitura do
processo civil e do direito civil, baseado na cidadania e nos direitos da
pessoa humana.
64

Sobre a atuação da advocacia, observa-se o afirmado por Santos (2011, p.


65) para quem a evolução daquela representa a passagem de um modelo de
base individualista para outro baseado na politização e coletivização do
direito. Assim, ambas as entidades não se resumem a atuar processualmente,
também atuando na organização política e coletiva das comunidades, além
de romperem com uma concepção puramente individual e liberal dos
direitos.
Isto é patente na apresentação do Projeto Sementes da Esperança, projeto
específico de acompanhamento de comunidades da região do Baixo Parnaíba
Maranhense Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, financiada pela
entidade Misereor, no qual afirma que “realiza acompanhamento socio-
jurídico às comunidades, intervenções junto aos órgãos fundiários, de gestão
de politicas públicas e do sistema de justiça [...] e o fortalecimento das
organizações que lutam por direitos na região” (SMDH, 2017, s. p.).
Ademais, sobre a atuação no Baixo Parnaíba Maranhense, Filipe Farias
Correia, assessor jurídico do Centro de Cultura Negra, destaca em entrevista:
Olha, o Baixo Parnaíba, por conversa [...] quando a gente teve
a reunião com a SMDH [Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos], o que pareceu que eles falaram é que lá tem uma
situação meio peculiar, tanto que tem uma denúncia na OEA
[Organização dos Estados Americanos], mas também não
caminha. Mas me parece lá ser um pouco mais grave, porque o
conflito a pessoa não deixa a incidência de políticas públicas
de jeito nenhum, [...] tem extração mineral, tudo irregular, não
tem nada de licenciamento ambiental. [...] o que me parece no
65

atual cenário é que apesar de ter esta instabilidade da questão


possessória do direito à terra, o que me parece agora no
contexto quilombola é que não está tão grave. Eles tão
conseguindo desenvolver suas atividades, [...] mas Barro
Vermelho, pelo que a gente escutou, está numa situação bem
caótica, [...] tanto que eles tem ido sempre nas mesas
quilombolas, que é nossa forma de atuação com o INCRA
[Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e
exposto a situação deles, que eles tem pedido até questão de
cestas básicas, porque houve um incêndio lá muito grande e
eles não tão conseguindo desenvolver suas atividades
agrícolas rotineiramente [...] (CORREIA, 2017, s. p.).

Entende-se que o acompanhamento por entidades de defesa de direitos


humanos contribui para evitar que as atividades das comunidades
quilombolas nas áreas em conflito sejam impedidas. Pensa-se nesse sentido
principalmente pelo fato de a atuação, por vezes, existir indiretamente no
âmbito processual, havendo reiteradas articulações com outras instituições
do sistema de justiça, como o Ministério Público e a Defensoria Pública,
conforme destacado anteriormente, além de outros órgãos e representantes
estatais, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e com
o Delegado Agrário Nacional.
O fundamento da atuação da advocacia popular na tutela de direitos de
comunidades quilombolas em conflitos possessórios, a exemplo da
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e do Centro de Cultura Negra,
segue a esteira do reconhecimento dos direitos territoriais e de outros direitos
66

correlatos. Além disto, não se resume a intervenções pura e simplesmente


jurídicas, contribuindo para articulação política e coletiva dos grupos étnicos
acompanhados.

Judiciário

Por fim, destaca-se a atuação do judiciário nas ações possessórias


envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense, seja
no âmbito da justiça comum, seja no âmbito da justiça federal. Para tal,
destacam-se alguns processos e decisões, bem como a visão de
representantes de outras instituições do sistema de justiça.
De início, caso paradigmático é o de Barro Vermelho. Quando corria na
justiça estadual, a ação de manutenção de posse atualmente sob nº
003446979.2011.4.01.3700, JF/MA, teve liminar concedida em decisão de
duas páginas, na qual conclui pela presença dos “requisitos indispensáveis a
concessão da liminar, quais sejam: fumus boni iuris e periculum in mora”,
destacando a alegação da posse pelo autor, fundamentada em escritura
pública, e no dano sofrido.
Há que se destacar que no processo nº 003446979.2011.4.01.3700,
JF/MA, houve decisão da justiça federal em que se descarta interesse do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária em ação possessória e,
com isso, sua competência. Afirma-se que “o processamento desta ação
possessória em absolutamente nada repercute no processo administrativo de
regularização fundiária”. Esta decisão foi posteriormente agrava, no qual em
67

juízo de retratação, admite a intervenção do referido órgão fundiário em


ações possessórias.
Em decisão interlocutória, o juízo federal entendeu que o conflito “diz
respeito a tema exclusivo do Direito Civil” e declarou novamente a
incompetência, remetendo à 13ª Vara da Justiça Federal do Maranhão. A
questão referente ao conflito de competência é observada em outros
processos, como é o caso daquele de nº 0003737-81.2012.4.01.3700,
referente a Depósito, no qual também há decisão na qual se declara
incompetência da Justiça Federal no feito. Não obstante, observa-se
despacho seguinte que redistribui o processo para a 8ª Vara da Justiça
Federal.
Sobre a questão da competência, o assessor jurídico do Centro de Cultura
Negra, afirma:
Em relação ao poder judiciário nós temos posicionamentos
diferentes em relação às atribuições federal e estadual. [...] as
atribuições da estadual, que não necessariamente é a vara
competente eles, são muito influenciáveis pelas autoridades
locais. Então muitas vezes tinham liminares contra as
comunidades, de despejo e uso de força policial, sem qualquer
tipo de contraprestação. A atuação que a gente tinha jurídica
era pedir o deslocamento para a vara federal, que a gente
oficiava o INCRA e pedia que ele manifestasse interesse na
causa e eles remetiam à vara federal, que é a 8ª vara. Ela que
concentra os processos e a atuação dele era de certa forma
boa. [...] É uma estratégia processual que é muito válida. A
68

gente vê que ele realmente tem uma ponderação na forma de


atuação. Ele sabe que uma determinada liminar pode causar
prejuízo em uma certa comunidade pode não se reestabelecer
de volta caso a decisão seja alterada [...] (CORREIA, s. n.,
2017).

Sobre a mesma questão, o procurador federal Alexandre Silva Soares, do


13º Ofício do Ministério Público Federal no Maranhão, afirma:
[...] nas ações que chegam da justiça estadual, nós
observamos exatamente esse perfil que é levantado pela
hipótese de vocês. O direito civil é utilizado como marco
normativo e como um marco normativo mal aplicado, pois
via de regra aí a gente não está falando mais de direito civil,
mas de processo civil. O que é requisito para o deferimento de
uma medida possessória? A comprovação da posse anterior da
pessoa e do ato de esbulho ou turbação. Certo, o que que
acontece muitas vezes? Não há prova da posse anterior do
autor da ação. Você tem provas da existência de um grupo
ali que planta, que faz roça, que às vezes faz queimada,
que tem casa, que reforma a casa, mas você não tem prova
da posse anterior daquela pessoa que muitas vezes faz essa
alegação pela sua condição de proprietário, que junta
normalmente documentos pertinentes a propriedade [...].
Assim, a gente não pode dizer que isso é uma conduta de
todos os juízes do poder estadual do Maranhão, pois há
aqueles que, digamos assim, reconhecem esse viés étnico, esse
viés coletivo na demanda e remetem o processo para a justiça
federal, e outros gostam de tratar do processo [...]. Então eles
69

seguram essa declinação de competência em alguns casos até


de forma equivocada, pois em alguns casos quem tem que
avaliar a pertinência ou não da competência da justiça federal
é a própria justiça federal, pois há uma sumula na verdade que
tem essa definição. Quem delibera sobre a competência da
justiça federal é a própria justiça federal. O juiz estadual não
pode deliberar sobre a competência alheia, assim como o juiz
federal não pode deliberar sobre o estadual. Ele delibera sobre
a sua e aí reflexamente ele manda para o estado. É aquele
princípio competência sobre competência, né? Você só diz
sobre sua competência, você não diz sobre a competência do
outro. Então o que você tem observado que em muitos casos
alguns juízes estaduais chegam a discutir exatamente isso.
Eles querem deliberar sobre a competência ou não da justiça
federal, uma clara violação a uma regra processual de
competência (SOARES, 2017, s. p., grifos nossos).

Seguindo, em nova decisão, reconhece-se a posse pela “escritora de


compra e venda”, que revelaria o animus de proprietário, bem como a
turbação. Com isso, há a ratificação da liminar antes proferida na justiça
comum. Assim, observam-se duas decisões, tanto no âmbito federal quanto
no estadual, no sentido estritamente civilista e que reitera o padrão liberal,
individual e burguês do direito à posse e à propriedade. Por outro lado, não
se considera a particularidade do grupo étnico.
Assim, malgrado Santos (2011) destacar que o reconhecimento do direito
étnico e da titulação do território quilombola estarem presentes em
demandas ao judiciário, observa-se ainda certa resistência ao
70

reconhecimento de seus direitos, principalmente no que diz respeito aos


conflitos possessórios. Tais decisões seguem, tal qual atenta Wolkmer (2001,
p. 107), a legislação convencional, cuja decisão se dá de forma inadequada,
podendo gerar inclusive um agravamento maior do conflito – é o que ocorre
com Barro Vermelho, tal qual destacado anteriormente no relato do assessor
jurídico do Centro de Cultura Negra.
Neste sentido, interessante a pontuação sobre a atuação do judiciário
apresentado pelo procurador Hilton Araújo de Melo, quando indagado a
respeito da compreensão diferenciada da posse de comunidades quilombolas
por outras instituições do sistema de justiça:
A gente está aqui no bojo de uma pesquisa acadêmica-
científica. Aqui a gente precisa falar o que nós hoje vivemos
para quem sabe vislumbrarmos onde chegaremos. A
resistência de determinadas instituições, em especial o
judiciário, ainda é notada. O que existe na verdade são
membros, são magistrados com perfil mais tendente a um
lado e de perfil mais tendente a outro, mas eu acredito sim
que é cada vez mais comum que essa discussão perpasse no
processo de maturação ou mesmo no processo de iniciação
do magistrado. Os cursos de vitaliciamento que existe tanto
no Ministério Público quanto na magistratura, de
responsabilidade das escolas de cada ramo, eles têm se
preocupado cada vez mais (MELO, 2017, s. n, grifos nossos).

Seguindo, outro caso diz respeito a um existente em Saco das Almas, no


qual houve audiência de justificação, seguida de concessão de medida
71

liminar. Refere-se ao processo nº 1534-33.2016.8.10.0076, Comarca de


Brejo. Neste há novamente a definição de um conflito possessório
envolvendo uma comunidade quilombola em termos estritamente civilistas,
precisamente, conforme o art. 1210 do Código Civil e dos artigos 561 e 562
do Código de Processo Civil. Da mesma forma se observa quanto a Cana
Brava, referente ao processo nº 98/2009, Comarca de Santa Quitéria, quando
da concessão de mandado de reintegração de posse.
Com isso, observa-se no judiciário, em primeiro lugar, o problema em
reconhecer a competência do juízo federal em relação ao interesse do
Instituto Nacional de Terras e Reforma Agrária. Em segundo lugar, há a
questão referente à própria fundamentação das decisões, seja na esfera
federal, seja na estadual, havendo a replicação da perspectiva fundamentada
única e exclusivamente no direito civil e processual civil, desconsiderando se
tratar de um grupo étnico com especificidades nas formas de ser, viver e
criar que não se encaixam naquelas formas jurídicas.

Avaliação do projeto

Entende-se que o projeto cumpriu com o objetivo geral proposto e


parcialmente com os objetivos específicos, conforme destacado
anteriormente, apesar da dificuldade do acesso aos dados, principalmente
quando solicitados ao judiciário. Assim, foi possível analisar a situação da
titulação das comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense, o
mapeamento dos conflitos possessórios e a fundamentação da atuação das
72

instituições do sistema de justiça quanto à tutela dos direitos de comunidades


quilombolas nas ações possessórias.
Os dados levantados e os artigos, resumos e banners produzidos servem
para expor a situação dos conflitos possessórios envolvendo comunidades
quilombolas e pretende contribuir para a reflexão dos agentes que atuam
naqueles. Verifica-se a manutenção de uma visão estrita dos direitos,
eminentemente civilistas, face a situações envolvendo grupos étnicos,
impendido a compreensão e o respeito ao modo de ser, viver e criar destes.
Houve produção de conhecimento jurídico crítico capaz de suscitar a
aproximação com as formas de vida de comunidades quilombolas e de
questionar a cultura jurídica dominante. Algumas instituições do sistema de
justiça, como o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União,
contribuem para repensar as formas jurídicas postas, necessário para garantir
direitos àquelas comunidades.
Por fim, por se tratar de um projeto executado com membros do
Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular, projeto de pesquisa e
extensão da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco, entende-se que houve
atuação e produção científica que servirá futuramente à atuação do grupo.

Referências

BERCLAZ, Márcio S.; MOURA, Millen C. M... Para onde caminha o


Ministério Público? Um novo paradigma: racionalizar, regionalizar e
reestruturar para assumir a identidade constitucional. In: FARIAS, Cristiano
73

Chaves de, ALVES, Leonardo Barreto Moreira, ROSENVALD, Nelson.


Temas Atuais do Ministério Público. 4ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p.
203-234.

CORREIA, Filipe Farias. Entrevista concedida a Ruan Didier Bruzaca e


Arthur Lima Lopes Martins. São Luis, 2017.

COSTA, Yuri Michael Pereira. Entrevista concedida a Ruan Didier


Bruzaca e Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa. São Luís, 2017.

MELO, Hilton Araújo de. Entrevista concedida a Ruan Didier Bruzaca.


São Luís, 2017.

SOARES, Alexandre Silva. Entrevista concedida a Jordana Leticia Dall


Agnol da Rosa e Arthur Lima Lopes Martins. São Luís, 2017.

SOUSA SANTOS, Boaventura. Para uma revolução democrática da


justiça. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.

WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico critico.


6 ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008.
74

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma


nova cultura no Direito. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega,
2001.

Processos consultados

MARANHÃO. JUSTIÇA ESTADUAL. Processo nº 1534-


33.2016.8.10.0076. Brejo, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA ESTADUAL. Processo nº 98/2009. Santa


Quitéria, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0051743-


51.2014.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0023130-


55.2013.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 84610-


63.2015.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº


003446979.2011.4.01.3700. São Luís, 2017.
75

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0003737-


81.2012.4.01.3700. São Luís, 2017.
76

Atuação do judiciário na tutela de direitos de comunidades


quilombolas nas ações possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense1

Arthur Nunes Lopes Martins

Objetivo geral

O presente trabalho possuiu como objetivo geral “analisar a atuação do


judiciário na tutela de direitos de comunidades quilombolas nas ações
possessórias no Baixo Parnaíba Maranhense”. Busca-se com esse objetivo o
estudo da disputa por espaço, desvinculada de uma visão dogmática do
direito.
Entende-se que o mesmo foi cumprido tendo em vista o levantamento
realizado junto a órgãos e instituições, bem como da respectiva análise
processual dos casos levantados. As entrevistas possuem papel fundamental
para efetivação desse certame central, onde a partir de relatos de sujeitos de
diferentes esferas foi possível construir um panorama da atuação do
judiciário na matéria.
Neste sentido, para a concretização do objetivo, foram realizadas
entrevistas com:

1
Projeto de pesquisa apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).
77

 Ministério Público Federal (03/03/17) – realizada com o


Procurador da República Alexandre Silva Soares;
 Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (10/03/17) –
realizada entrevista com os advogados Diogo Cabral e Rafael
Rites;
 Diretor da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na
Agricultura Familiar do Maranhão (10/04/17) – realizada com o
Sr. Izalmir;
 Centro de Cultura Negra (08/05/17) – realizada com o
advogado Felipe Farias;
 Procuradoria do INCRA (08/05/17) – realizada com Luiz
Fernando Pedrosa Fontoura, chefe da Procuradoria Regional
Especializada;
 Setor Quilombola do INCRA (25/09/17) – realizada com
Martfran Albuquerque de Sousa chefe do serviço de
regularização de territórios quilombolas e Ana Carolina Quadros
Costa Reis Sousa chefe da divisão de ordenamento da estrutura
quilombola;
 Ministério Público Federal – realizada com o Procurador da
República Hilton Araújo de Melo;
 Defensoria Pública da União – realizada com o defensor
público Yuri Michael Pereira Costa;
78

Foram realizados levantamentos junto ao Poder Judiciário. Não obstante,


há que se destacar a dificuldade em adquirir dados que pudessem tornar mais
substanciais os resultados alcançados, apesar de não os comprometerem.
Trata-se principalmente da dificuldade em acessar dados junto às varas
federais de São Luís e os processos na esfera Estadual, onde nesse caso por
uma questão de logística não foi possível acessa-los.
Apesar da existência das referidas dificuldades, os dados levantados
possibilitam a compreensão de um panorama de instituições de justiça que
são produtoras e reprodutoras de desigualdade, onde a construção do espaço
contribui para criação de populações invisibilizadas e à margem da
“legalidade”.

Objetivos específicos
Estudar a concessão de decisões liminares pelo judiciário que repercutem
na expulsão de comunidades quilombolas ou manutenção de particulares
nas áreas conflituosas no Baixo Parnaíba Maranhense

O primeiro objetivo específico foi cumprido parcialmente. Como


destacado, houve dificuldade em acessar os dados dos processos junto a
Justiça Estadual e Federal. Desse modo nessa seara foram analisados dados
apenas referentes a justiça Federal onde foi possível vislumbrar alguns
aspectos acerca das decisões liminares.
79

Identificar os fundamentos das decisões judiciais nas ações possessórias


envolvendo comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense

O segundo objetivo específico foi cumprido parcialmente. Com o acesso


aos processos e essencialmente a partir das entrevistas, foi possível
identificar os fundamentos jurídicos que tanto contribuem para a manutenção
de uma visão civilista para a matéria. Esse objetivo se constrói na medida em
que a judicialização dos conflitos possessórios envolvendo comunidades
quilombolas pode estar cercada por uma visão tradicional e civilista do
Direito, assim se faz necessário compreender a forma como as suas
particularidades étnicas e sociais são tratadas em juízo. Assim como o
objetivo anterior este foi prejudicado por fatores alheios à vontade dos
pesquisadores, em suma a burocratização do judiciário dificultou o
andamento do processo.

Investigar as consequências da morosidade na prestação jurisdicional em


relação às comunidades quilombolas envolvidas em ações possessórias no
Baixo Parnaíba Maranhense

O terceiro objetivo específico foi cumprido com sucesso, onde considera-


se esse objetivo o mais exaustivamente investigado. As demandas foram
levantadas junto às instituições do sistema de justiça, o que possibilita
compreender o panorama jurídico que envolve os casos. Neste aspecto, o
contato com as instituições civis e do sistema de justiça, como Sociedade
80

Maranhense de Direitos Humanos e Ministério Público Federal, foram


essenciais para a realização do objetivo.

Resultados

Esta análise do judiciário é feita também por meio de entrevistas e


leituras bibliográficas, essencialmente por meio das entrevistas buscou-se
entender a dinâmica do sistema judiciário e sua atuação nestes casos.

A região do Baixo Parnaíba

Foram elaboradas entrevistas com diferentes atores do cenário da


proteção de direitos e também com sujeitos que vivem a realidade dos
quilombos, a partir disso foi possível construir um lacônico panorama do
Baixo Parnaíba Maranhense e seus conflitos quilombolas.
A região é símbolo da expansão da monocultura e do agronegócio no
Maranhão, sendo uma intensivamente apropriada pelo agronegócio. Essa sua
característica corrobora de forma fundamental para que a região também seja
símbolo de conflitos agrários, socioambientais e étnicos. A região é marcada
pela disputa pelo espaço no contexto da terra e propriedade privada como
mercadoria e ativo financeiro.
A região então marca uma disputa por terra onde de um lado se tem
comunidades tradicionais socialmente afetadas pela imensa expansão do
agronegócio e do outro lado se tem a elite local, classe dominante econômica
81

e política, que luta pela terra visando sua função econômica que busca
sobretudo uma modernização da região.
A elite local da região tem papel essencial na manutenção do caráter de
mercadoria da propriedade diante do judiciário. Esse aspecto da propriedade
corrobora para expropriação de sujeitos e limitação do uso da terra por todos
e para todos, desse modo sendo uma visão extremamente colonial da terra
que não permite a existência de atores sociais como os quilombolas.

Insuficiência de disciplina jurídica dos quilombos

A partir do material colhido nas entrevistas percebeu-se, inicialmente,


que o arcabouço doutrinário acerca da matéria é escasso. Há de modo
crescente a abordagem da discussão por meio da produção científica, mas
infelizmente essa produção possui restrita ou inexistente discussão dentro da
academia, principalmente na esfera do Direito onde o tema dos direitos
quilombolas é inexplorado.
Nos casos de conflito, por exemplo das ações possessórias, os operadores
do direito muitas vezes não possuem amparo material para resolução da lide
com base em uma visão que não seja civilista, assim o deslinde da questão
corrobora para perpetuação do uso de um arcabouço teórico inapropriado
para as demandas.
Desse modo os operadores supramencionados, de modo geral, utilizam a
legislação existente que se pauta majoritariamente no positivismo jurídico
massivamente influenciado pelo colonialismo. Em síntese essa legislação
82

adotada pelo judiciário se pauta principalmente no direito civil e direito


constitucional pátrio, assim limita-se a complexa discussão quilombola ao
campo teórico desses institutos, cerceia-se a discussão dado que com o uso
dessa legislação o litígio só é discutido até os limites do regime dessas
disciplinas.
Assim pontua-se que a disciplina jurídica utilizada para a matéria
quilombola é inexistente ou insatisfatória. O problema central nasce nas
universidades, com foco nos cursos de direitos que se resumem em sua
grande maioria a lecionar unicamente diante do paradigma do direito civil
que não abrange diferentes grupos estigmatizados, como os quilombolas.

Da necessidade de um Direito Étnico

Como visto o tratamento jurídico dado à matéria quilombola limita-se ao


positivismo jurídico que permeia a academia. Desse modo o saber jurídico
estabelece-se de maneira distante ao quilombo e seu povo, dificultando a
efetivação de direitos e respeito à dignidade humana desses sujeitos.
A produção de material que se contrapõe ao paradigma vigente de análise
do quilombo pauta-se na complexidade e especificidades do tema que recai
sobre as comunidades tradicionais e quilombos. A primordialidade de
reconhecimento e estudo do direito étnico ocorre visto a necessidade fática
de novas formas de interpretação e aplicação do direito não só no campo
quilombola, mas também na esfera indígena por exemplo.
83

Pontua-se que a necessidade de incorporação de um direito étnico está


intimamente ligado com a superação do pensamento colonial que permeia o
ordenamento jurídico brasileiro. Assim sendo o pensamento pós-colonial é
aquele que rompe com as narrativas do colonizador e propõe sua
desconstrução a partir de uma visão que permita a ressignificação de
conceitos dentro do contexto de lugares que foram colônias europeias.

Posse e propriedade no direito formal

Com base nas entrevistas, principalmente alicerçado na entrevista feita ao


Diretor da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura
Familiar do Maranhão, Sr. Izalmir, quilombola da comunidade Bandeira e a
efetuada com a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, vislumbrou-se
que posse e propriedade possuem lógica distinta no campo jurídico e no
quilombo, essencialmente a relação do quilombola com a terra se mostra
distinta da noção geral e capitalista de terra e propriedade que a sociedade
ocidental possui.
A propriedade privada possui previsão normativa de tutela pelo
ordenamento, cujo questionamento enquanto figura jurídica não é observado,
diferente de direitos de comunidades quilombolas, postos a prova. No
judiciário, esta questão ganha conotação especial, com a manutenção de
conceitos, normas e técnicas jurídicas fundamentadas única e
exclusivamente na propriedade privada.
84

Cindia Brustolin (2016, in passim) atenta para a contínua


“desconsideração” de direitos de quilombolas em contraposição à
inquestionabilidade da propriedade, representada por meio de títulos,
documentos oficiais e reconhecimento do Estado. A legitimidade da
propriedade privada no país decorre, segundo a referida autora, da primazia
de uma elite local na consolidação do Estado-nação, visando assim tutelar e
garantir suas formas de apropriação da terra.
Isto não deixa de se relacionar à legitimidade de uma razão maturada pelo
capitalismo. Weber (2004, 64) destaca que as formas do capitalismo, como o
ethos e os bens necessários à humanidade resultam da economia capitalista,
tem como objetivo ser racionalizada com cálculos rigorosos, ser gerida de
forma planejada para alcançar o sucesso econômico.
Assim se contribui para a legitimidade da propriedade privada, entrando
em choque com outras formas que podem ser tidas como “irracionais”. Estas
outras formas de apropriação da terra são justamente empreendidas por
comunidades quilombolas, que não seguem a lógica de produtividade, de
lucratividade e de apropriação da forma “racional” imposta pelo capitalismo.
Almeida (2008, p. 134-135) apresenta que a forma de uso da terra por
comunidades tradicionais, como as comunidades quilombolas, colide com
disposições jurídicas e econômicas vigentes, cujo catálogo por instituições
estatais é quase inexistente, dependendo o reconhecimento desse sistema por
atuações de pesquisadores e técnicos que realizam pesquisas e vistorias in
loco.
85

A forma de apropriação da terra que se reflete na propriedade privada


decorre de uma experiência econômica e social específica, mas que se impõe
a outras realidades. Com isso se constata seu caráter etnocêntrico e
colonizador, cuja continuidade pode ser destacada com os conflitos
fundiários quando levados à juízo.

Análise das demandas judiciais

Cumpre salientar que a análise se restringe a esfera da Justiça Federal,


por uma questão de logística e pela excessiva burocratização do judiciário.
Por meio de ofícios encaminhados às varas federais foram solicitados dados
referentes aos conflitos possessórios que envolvem comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense, na impossibilidade da produção
de dados solicitou-se de modo subsidiário o acesso às varas para análise dos
processos.
Foram encaminhados os ofícios PAJUP-BIC nº 14/2017, 16/2017,
17/2017 e 18/2017 respectivamente à 8ª, 5ª, 6ª e 13ª Vara da Seção Judiciária
do Maranhão da Justiça Federal. Mesmo com a insistência de diversas vezes
se ter ido pessoalmente acompanhar o andamento dos ofícios em nenhuma
das varas houve resposta, onde o órgão se mostrou atarefados demais e não
conseguiu atender nossos pedidos.
Também foram solicitados dados referentes aos conflitos possessórios
que envolvem comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense a
instituições da sociedade civil, PAJUP-BIC nº 19/2017, endereçada à
86

Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e PAJUP-BIC nº 12/2017,


endereçado ao Centro de Cultura Negra, havendo resposta em ambos os
casos. A partir do retorno favorável à solicitação elaborou-se tais gráficos
para melhor compreender o panorama dos processos que tais entidades
acompanham, segue:

Gráfico 1 – Processos acompanhados pelo CCN conforme competência


Elaboração: Arthur Nunes Lopes Martins
87

Gráfico 2 – Processos acompanhados pela SMDH conforme competência


Elaboração: Arthur Nunes Lopes Martins

Gráfico 3 – Processos na JF/MA conforme tipo


Elaboração: Arthur Nunes Lopes Martins
88

Desse modo listou-se os processos da esfera federal acompanhados pelo


Centro de Cultura Negra e pela Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos. Tal tabela irá ajudar a compreender a análise de tais processos que
segue, sendo necessário observar no levantamento dos dados quanto as
entidades civis só há 01 processo de caráter de reintegração/manutenção de
posse.

Processo Classe Vara


0034469-79.2011.4.01.3700 Reintegração/Manutenção de 13ª Vara São Luís
Posse
0051743-51.2014.4.01.3700 Ação Civil Pública 13ª Vara São Luís
0035450-40.2013.4.01.3700 Ação Civil Pública 8ª Vara São Luís
0013982-88.2011.4.01.3700 Ação Civil Pública 8ª Vara São Luís
0003737-81.2012.4.01.3700 Interdito Proibitório 3ª Vara São Luís
Tabela 1 – Processos na JF/MA
Elaboração: Arthur Nunes Lopes Martins e Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa

Desse modo pontua-se que a análise das liminares se concretizou a partir


do limitado acesso ao judiciário maranhense, que se demonstrou
excessivamente burocrático e moroso quanto às solicitações feitas. Dentre os
processos em analise destacam-se o 0034469-79.2011.4.01.3700 e 0003737-
81.2012.4.01.3700, reintegração de posse e interdito proibitório
respectivamente.
No caso do processo 003446979.2011.4.01.3700, JF/MA, houve liminar
que representa significativamente a utilização do direito civil de forma
89

basilar nos processos de cunho quilombola, na situação em questão foi


concedida liminar na qual conclui pela presença do periculum in mora
(perigo da demora) e o fumus boni iuris (fumaça do bom direito) o que
permitiu habilmente a concessão da liminar.
Ainda no mesmo processo acima supramencionado há outro episódio que
necessita de atenção por sua importância diante de uma análise da atuação
do judiciário. Há no processo nº 003446979.2011.4.01.3700, JF/MA, decisão
da justiça federal que pontua desinteresse do INCRA na ação, dispõe a
decisão que a ação possessória em julgamento não teria relação direta com
processo administrativo de regularização fundiária.
O processo nº 0003737-81.2012.4.01.3700 expõe uma problemática
encontrada em boa parte dos processos quilombolas do judiciário brasileiro,
o conflito de competência que acaba por gerar desgastes aos sujeitos que
requerem seus direitos. O processo em questão demonstra faticamente
conflito de competência entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual.
Os processos pautados de forma geral expõem a já discutida necessidade
de incorporação do direito étnico por parte do judiciário, para efetivação de
direito e concretização do respeito à identidade dos quilombolas a
necessidade de se criticar o modelo de decisões proferidas pelo judiciário. O
atual panorama do judiciário é pautado na manutenção de conceitos, normas
e técnicas jurídicas fundamentadas única na dogmática jurídica e no direito
civil.
90

Da morosidade na prestação jurisdicional

Principalmente a partir das entrevistas feitas aos Ministério Público


Federal ressalta-se a morosidade do judiciário. A morosidade na apreciação
dos processos causa insegurança jurídica à situação dos quilombolas que são
uma população marcada pela vulnerabilidade no que se refere ao seu
contexto de existência no Brasil.
A morosidade na prestação jurisdicional nesses casos possui
especificidades que agravam a situação, se tratando de ações possessórias há
o risco iminente do quilombo sofrer ameaça, turbação ou esbulho por
exemplo. Assim compreende-se ser necessário uma prestação jurisdicional
mais célere, cabe ressaltar que a partir da análise processual nota-se que
muitas vezes a morosidade jurisdicional é reflexo direito da vagareza de
outros órgãos, principalmente o INCRA.
Primordialmente devido à falta de recursos do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária há uma atuação deficiente por parte do
órgão o que reflete diretamente na morosidade jurisdicional que diversas
vezes depende de atuação do INCRA para produzir suas decisões, por
exemplo.

Conclusão

As comunidades quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense possuem


como característica o embate com cresceste agronegócio na região. Essa
91

“indústria” exterioriza toda a problemática da existência de capital


especulativo sobre as terras e domínio que as elites agrarias possuem
perpetuando a mentalidade de que a propriedade de terra é símbolo de
riqueza e poder.
É necessário entender a importância de uma concepção descolonial da
propriedade, sendo essa perspectiva um mecanismo de apoucamento dos
ônus do capitalismo. Sobretudo é evidente que as mudanças das políticas
atuais quanto à concepção de propriedade dependem também da sociedade
civil organizada, devendo ser sujeito protagonista da luta por transformação
social.
O papel do Direito é central mas há necessidade de mudanças estruturais
na sua aplicação. O discurso que utiliza o Direito para a manutenção de um
status quo das elites agrícolas e que o compreende de maneira engessada e
distante das lutas sociais, não deve prosperar.
O Poder Judiciário se estabelece como peça fundamental da construção
do espaço, sua atuação interfere na existência do território quilombola. A
solução dos conflitos no Judiciário precisa incorporar ditames que não deem
primazia à forma “propriedade privada”, necessitando o judiciário renunciar
de seu conservadorismo para superarmos as complicações criadas em nome
de um direito unicamente civilista.
A forma como a proteção possessória é concebida judicial e
juridicamente está intimamente ligada à manutenção das desigualdades
sociais no país. Neste cenário de comunidade tradicionais pleiteando suas
terras, o desfecho dos conflitos jurídicos acaba resultando no aumento das
92

desigualdades. O judiciário dentro dos casos que envolvem comunidades


quilombolas trabalha com um modelo de propriedade baseado numa ótica
somente civilista e baseado na economia, que precisa ser deslegitimado.
Cria-se um modelo de direitos reais que baseado no capitalismo especulativo
só atende às necessidades de rentabilidade.

Referências

BRUSTOLIN, Cindia. Reconhecimento e desconsideração: a regularização


fundiária dos territórios quilombolas sob suspeita. São Luís: Café & Lapis;
EDUFMA, 2015.

WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São


Paulo: Companhia das Letras, 2004.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Apresentação. Terra de quilombo,


terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e
fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus:
PGSCA-UFMA, 2008.

Processos consultados

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0051743-


51.2014.4.01.3700. São Luís, 2017.
93

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0023130-


55.2013.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 84610-


63.2015.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº


003446979.2011.4.01.3700. São Luís, 2017.

MARANHÃO. JUSTIÇA FEDERAL. Processo nº 0003737-


81.2012.4.01.3700. São Luís, 2017.
94

Tutela de direitos das comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba


Maranhense pela postulação de instituições de justiça estatais nas ações
possessórias1

Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa

Objetivo geral

Transpôs-se como objetivo geral “investigar os atos postulatórios das


instituições de sistema de justiça estatais face à tutela de comunidades
quilombolas no Baixo-Parnaíba Maranhense nas ações possessórias”.
Tal delimitação se baseia no próprio problema da pesquisa, no qual
remete à complexidade dos conflitos envolvendo quilombolas,
principalmente no que concerne ao ajuizamento de ações possessórias nas
quais estes sejam parte.
Têm-se que as instituições de justiça, quando atuam em tais demandas,
promovem verdadeiro enfrentamento ao denominado Direito Tradicional,
visto que não encontram amparo jurídico à questão na seara dos Direitos
Civis e Direitos Reais.

1
Projeto de pesquisa apresentado à Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA).
95

Buscou-se, por isso, compreender a saída lógica adotada por estas, de


modo a entender em que se baseiam, e a relação que desenvolvem com as
comunidades.
Nesta medida, conclui-se pelo cumprimento integral do que
genericamente foi proposto, visto o próprio resultado da pesquisa, onde se
efetuou contato com as instituições ora estudadas, sendo este, por exemplo,
através de entrevistas, tendo-se executado, ademais, análise de dados
fornecidos por estas, bem como de processos judiciais nos quais as mesmas
atuam.
Enfatiza-se, ainda, a interação direta com os membros das comunidades,
sendo esta de suma importância para a perquirição das conclusões da
pesquisa, pois a medida em que se investigou questões prático-jurídicas
acerca dos conflitos quilombolas, ponderou-se a atuação das instituições de
justiça por meio do relato de quem vivencia as consequências de tal
intervenção.
Ressalta-se que a metodologia adotada no trabalho também foi parte
crucial para a satisfação do projeto, já que permitiu o desbravamento de
outras áreas, que não o Direito, tais como Sociologia, Antropologia, História,
Ciência Política, possibilitando, inclusive, o desprendimento dos institutos
jurídicos tradicionais.
Por fim, para efeitos de delineamento do objeto pesquisado, bem como
ante as considerações feitas pelas lideranças quilombolas, sobrelevou-se a
atuação das seguintes instituições: Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos – SMDH, assessoria jurídica da circunscrição eclesiástica do
96

Município de Brejo – Diocese de Brejo, assessoria jurídica da Federação dos


Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais do Estado do Maranhão –
FETRAF/MA, Centro de Cultura Negra do Maranhão – CCN, Fundação
Palmares, Defensoria Pública da União – DPU, Ministério Público Federal –
MPF, e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

Objetivos específicos
Atribuições legais das instituições do sistema de justiça estatais passíveis de
postular a tutela de direitos das comunidades quilombolas nos conflitos
possessórios no Baixo-Parnaíba Maranhense

A análise da questão quilombola no Baixo-Parnaíba perpassou o


desbravamento não só da atuação das instituições do sistema de justiça com
capacidade postulatória, mas também das organizações da sociedade civil,
como Centro de Cultura Negra, Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos, dentre outros.
Isto se deu, preeminentemente, em decorrência das conclusões do projeto,
onde se identificou efetiva complementação entre os trabalhos das citadas
instituições, depreendendo-se, portanto, a existência de certa colaboração
entre as entidades, mesmo ante atribuições diferenciadas, que, no caso,
evocam da Constituição ao corpo dos movimentos sociais.
Aferiu-se, entretanto, diferenças no trato da questão quilombola entre as
mesmas, por vezes decorrendo da própria estrutura burocrática da
instituição, ou ante o tradicionalismo e postura de seus membros. Tal fato
97

não esmaeceu, contudo, que há, na medida do possível, convergência entre


os ideais destas.
Em face do exposto, conclui-se que tal objetivo foi integralmente
cumprido, já que se examinou as incumbências das instituições ora
estudadas, inclusive, superando-se tal aspecto, visto que se investigou entes
outros que não só DPU, MPF e MPE, ante necessidade germinada no
decorrer do projeto, face à constatação de certa frigidez de alguns destes no
trato das demandas quilombolas.
Tais aspectos se comprovam através dos resultados da pesquisa, que
inferem críticas e comparativos que só se perfazem possível ante o
conhecimento do funcionamento de tais entes, concluindo-se que a avaliação
estacional apenas se faz exequível ante materiais respaldados
cientificamente, como levantamentos bibliográficos, legislativos, entrevistas,
todos estes percebidos no projeto aqui avençado.

Implicações da atuação extrajudicial das instituições do sistema de justiça


estatais face aos conflitos possessórios envolvendo comunidades
quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense

Este objetivo buscou averiguar a situação do acesso ao território das


comunidades quilombolas em situação de conflito no Baixo-Parnaíba
Maranhense por meio da análise dos procedimentos existentes no Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e no Instituto de
Terras do Maranhão – ITERMA.
98

Antes as conclusões da pesquisa, entende-se que este objetivo foi apenas


parcialmente cumprido, isto porque não houve extenso estudo baseado nos
procedimentos realizados pelo ITERMA, cabendo aduzir que tal fato
decorreu dos próprios meandros que tomou os estudos, onde se concluiu que
tal Instituto, até mesmo pela sua competência, apenas titula terras das quais
não se depreende conflitos, transpondo-se como mais vantajoso, portanto, a
própria análise fática de tal atuação, como por meio da identificação das
falhas nos processos de titulação e do contexto que influencia a efetivação
destas.
No que diz respeito ao INCRA, todavia, houve o levantamento dos
processos administrativos que dizem respeito às comunidades quilombolas
da região ora estudada, tendo ocorrido, ademais, entrevista com os
responsáveis pelo setor de Ordenamento da Estrutura Fundiária e
Regularização de Territórios Quilombolas.

Fundamentos dos atos postulatórios em juízo das instituições do sistema de


justiça estatais nos conflitos possessórios no Baixo Parnaíba Maranhense
envolvendo comunidades quilombolas

As instituições ora estudadas promovem verdadeiro embate com os


formalismos e tradicionalismos do direito, a medida em que reconhecem,
quando de suas atuações, que para haver a efetiva extensão e facticidade dos
direitos e garantias constitucionais, é necessário que, por vezes, se reconheça
99

institutos para além dos jurídicos, neste caso compreendidos na própria


cultura quilombola.
Ante tais ilações, conclui-se pelo total cumprimento de tal objetivo, isto
porque houve acesso aos processos que envolvem as comunidades
quilombolas do Baixo-Parnaíba, onde se pode analisar as documentações
juntadas aos autos, e as efetivas fundamentações, em juízo, das instituições
aqui estudadas.
Insta ressaltar, porém, que houve certo engodos a tais análises, pois o
acesso se perfez de maneira limitada, visto que os materiais verificados
disseram respeito a tão somente as possessórias ajuizadas em âmbito federal
ou atribuídas à Justiça Federal após análise de competência.
Tal aspecto, todavia, não obsta a conclusão do objetivo, pois, ainda
assim, obteve-se dados e considerações acerca dos processos em âmbito
estadual no que diz respeito à forma de atuação das instituições de justiça,
através de entrevistas com os membros comunitários, DPU, SMDH, CCN,
MPE, dentre outros.

Corolário
Perspectivas

O Plano de Trabalho em questão teve como perspectiva a contribuição


para uma tutela efetiva dos direitos de comunidades quilombolas, inseridas
perenemente em situações de conflito e violência. Mais que isso, buscou
conscientizar as instituições de justiça estatais a respeito das particularidades
100

étnicas que envolvem as comunidades quilombolas, contribuindo para a


construção de um conhecimento jurídico crítico e consolidando a atuação e
produção científica crítica alinhada à atuação do Programa de Assessoria
Jurídica Universitária Popular – PAJUP, projeto de pesquisa e extensão da
Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB, diametralmente ligado
aos movimentos sociais e à contracultura do Direito.
Embasou-se no aspecto de que uma visão elitista, patrimonialista e
individualista do Direito impossibilita a tutela das diversidades culturais e
étnicas, como os quilombolas.
Fundamentou-se, ainda, no próprio engodo que envolve a questão, onde
se identifica que, para além dos conflitos possessórios, se faz morosa a
solução destes, visto a própria ausência de titulação das comunidades, ou
ante a burocracia dos responsáveis.
Perfaz-se como necessário, ademais, para a própria análise da postura do
projeto, o que apresenta Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008), o qual
dispõe que o uso da terra provém dos próprios privilégios históricos das
elites, fato que explica as motivações do direito, e, mais especificamente, a
razão dos direitos territoriais de comunidades tradicionais colidirem com as
próprias disposições jurídicas do ordenamento.

Breve análise da situação quilombola no Baixo-Parnaíba Maranhense

Compõem a região do Baixo-Parnaíba Maranhense, às margens do Rio


Parnaíba, divisa com o estado do Piauí, os municípios de Araioses, Tutoia,
101

Santana do Maranhão, Água Doce do Maranhão, Santa Quitéria do


Maranhão, São Bernardo, Magalhães de Almeida, Anapurus, Mata Roma,
Chapadinha, São Benedito do Rio Preto, Urbano Santos, Belágua, Vargem
Grande, Brejo e Buriti – embora nem todos componham os dados oficiais,
diante das constatações construídas pelas comunidades, considera-se, no
presente projeto, todos estes integrantes da região ora estudada.
A referida região, como outras no Maranhão, é marcada por diversos
conflitos envolvendo a terra, principalmente em razão do avanço do
agronegócio, pela insuficiente reforma agrária e ante a histórica
concentração de terras, sendo as investidas do agronegócio os maiores
causadores de problemas socioambientais e violência contra a população
regional.
Conforme constatado em entrevista com o membro da comunidade
Bandeira, atual membro da direção da FETRAF/MA, Izalmir, só nas regiões
de Buriti e Brejo existem 18 comunidades, sendo 14 certificados e 4 sem a
respectiva certificação.
Estão presentes em Brejo as comunidades de Boa Esperança – Povoado
de São Raimundo, Eclíures [sic], Boca da Mata, Vila das Almas e Faveira.
Em Buriti, por sua vez, estão Santa Cruz, Vila São José e Vila Pitombeira,
pertencentes ao território de Saco das Almas.
Em Data Arraial, estão localizados os territórios das comunidades de
Funil, Bandeira, Árvore Verde, Alto Bonito, Boa Vista, Depósito, Santa
Alice, Bom Princípio, Bom Princípio Um, Estreito e Vila Dezoito.
102

Há, ainda, mais três comunidades na intitulada Data Jenipapo, possuindo


esta uma área entorno de 7 mil hectares, Data Arraial com extensão de cerca
de 18 mil hectares e Data Saco das Almas com um total de 23 mil hectares,
possuindo cerca de 1.623 famílias.
Nos demais municípios há várias sem titulação finalizada, situação
agravada com o ajuizamento de ações possessórias. A constituição das
comunidades, via de regra, remontam à existência da ancestralidade negra,
bem como do desmonte histórico das relações sociais e territoriais
provocadas pela intervenção de latifundiários, com consequente expulsão da
população, todavia, tal aspecto pode se diferenciar conforme cada região,
visto a diversidade cultural, culinária, artesanal, musical, religiosa e dos
meios de relação com a terra e o espaço – agricultura familiar, plantação
alternada, plantação conjunta etc.
No Baixo-Parnaíba, ainda, perfaz-se peculiaridades quanto à história, pois
se trata de uma região anteriormente dominada por coronéis, partindo de um
povoamento por lavradores, os quais fizeram da pesca, extrativismo,
artesanato, dentre outros, parte de sua identidade e da tradição dos
municípios ocupados, sendo esta realidade aos poucos modificada por meio
dos problemas desenvolvidos pela empresa Suzano Papel e Celulose e pelos
[por eles] intitulados gaúchos (GERUR, 2016).
103

Discussão

É do cenário jurídico-sociológico da luta por terra que surgem os mais


dificultosos e controversos paradigmas, dentre eles as ambiguidades do
judiciário. É nas decisões judiciais, inclusive, que se revelam as maiores
falhas da história “liberal” brasileira, pois se concebe, in concreto, a quem
ainda serve e com que valores trabalha as instâncias jurídicas, percebendo-se
não só a existência de um patrimonialismo arraigado, como também a
própria incapacidade ainda existente de se lidar, no país, com direitos de
coletividades e direitos fundamentais, principalmente se, estes últimos, de
origem social (WOLKMER, 2003).
O Maranhão, na classificação do índice de Gini – que avalia a
concentração da estrutura fundiária na escala de 0 a 1 –, se encontra na
marca de 0,864 pontos (REIMBERG, 2009). Este fato explica, por exemplo,
o extenso número de conflitos fundiários no estado, o crescimento das ações
possessórias no Judiciário maranhense e o próprio crescimento dos
movimentos comunitários e de assentamentos, principalmente se se
vislumbrar que 36,4% da área total do território maranhense pertence a tão
somente 0,4% da população (PEDROSA, s.d.).
O judiciário maranhense, portanto, em face da história e dos dados que
cercam a realidade do estado quanto a luta por terra, ganha medular encalço
não só pela responsabilidade de se resolver os casos levados a juízo, mas
pela própria existência de uma dívida nacional no tratamento das demandas
104

populares, que é inegavelmente agravada se envolta de conflitos


distributivos.
Cresce, aqui, a necessidade de colaboração de um poder do Estado em
prol das próprias necessidades sociais.
O direito dos povos é muito mais que mera construção abstrata. É, na
verdade, “abstenção [...] [para com o] [...] governo, [...] que deve [...]
proteger esse direito de possíveis agressões oriundas do próprio órgão
protetor ou de particulares” (PINHEIRO apud SANTOS, 2013, p. [?]). Cabe,
portanto, muito mais o dever de materializar um direito, sendo estes
envolvendo a dignidade, intentando prevalecer a humanização da norma, e
impedindo, ademais, meras apreciações econômicas e mercadológicas de
situações fáticas e subjetivas, como quando no desmerecimento das
demandas de comunidades quilombolas.
É factível, porém, que a prática ainda prenuncia muito mais a defesa do
“status quo” que a busca pelo próprio direito fundamentado (LOPES, 1998).
A cultura normativista sequencia muito além de um apego aos ritos e
procedimentos, mas descaracteriza o essencial vislumbre dos direitos sociais,
onde
[...] apesar de formalmente consagrados pela Constituição, em
termos concretos eles quase nada valem quando homens
historicamente localizados se vêem reduzidos à mera condição
genérica de ‘humanidade’, [...] sem a proteção efetiva de um
Estado capaz de identificar as diferenças e singularidades dos
cidadãos, de promover justiça social, de corrigir as
105

disparidades econômicas e de neutralizar uma iníqua


distribuição tanto de renda quanto de prestígio e de
conhecimento (FARIA, 1998b, p. 95).

Na região estudada, percebe-se que o vislumbre fático-jurídico coisificou


os membros das comunidades, de modo que estes, via de regra, não
adentram ao título abstrato de “detentores”.
Ocorre que a forma, por parte dos proprietários de terra, de enxergar as
peculiaridades das comunidades do Baixo-Parnaíba e suas fragilidades foi
propulsora da legitimação da violência nestes espaços, onde o mecanismo
coercitivo e de controle passou a atuar em prol da tomada local pelos que ali
nada construíram.
Segundo Diogo Cabral (2017), tornou-se a força bruta um meio
comunicacional, o qual pouco atenta às necessidades dos que ali vivem e
muito, porém, corroboram para o desenvolvimento dos aparatos de poder.
É nesta medida que se enxerga como necessidade a partida por uma nova
perspectiva de análise do Direito, onde os sujeitos deixam de ser quem dele
fala, para serem quem da realidade vive: seria um panorama para além de
uma ponte entre sociedade e justiça, mas a própria abertura de caminhos para
o acesso da mesma (GOHN, 2011).
Aqui nasce o dever das instituições de justiça e dos demais entes a elas
envolvidos de promover a noção de que os que vivem na pele a realidade
são, de fato, pessoas legítimas para tratarem de suas realidades e para,
inclusive, afirmarem o que é a desigualdade e o quem é o Quilombo
(TRECCANI, 2006).
106

Resultados

Segundo Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008), os movimentos


sociais no campo foram cruciais para tratar uma visão para além do
clientelismo, onde as lutas étnicas e a consciência ecológica fosse pautada
para além de uma visão de terra baseada meramente em questões político-
administrativas, ou seja, seus desdobramentos propiciaram uma associação e
luta que escapassem da até então maneira de transpor as comunidades
tradicionais perante o Poder Público.
É fato, porém, que as conquistas até aqui obtidas, principalmente por
meio da colaboração das instituições da advocacia popular, não foram
exclusivamente suficientes para pôr de lado os aparatos burocráticos-
administrativos, de maneira tal que estes acatassem todas as propostas
demandadas. É nessa medida, assim, que as tensões não se findaram com o
comprometimento de certas instâncias, haja vista que a problemática de
terras provém de uma histórica disparidade, onde a apropriação específica
dos territórios, como os quilombolas, ainda assim não seria abarcada por
seus desígnios próprios (ALMEIDA, 2008).
Na presente pesquisa, constata-se que nem todas as instituições de justiça
vislumbram as comunidades quilombolas de forma tal que lhes assista, visto
ainda possuírem fortes esteios de aparatos jurídicos tradicionais. Dentre elas,
destaca-se a atuação do INCRA.
O INCRA, entretanto, possui objetivo de implementar a reforma agrária,
de modo a promover a democratização do acesso à terra, e destinar as terras
107

públicas à titulação das comunidades quilombolas e tradicionais,


organizando a estrutura fundiárias.
Antes de mais nada, é fundamental compreender que para as demandas
quilombolas não cabe a singela aplicação do direito tal como o ordenamento
pátrio impõe, visto que, se assim se perfazer, muito provavelmente se
destituirá destes o próprio sentido de cultura, luta e história.
O Quilombo está para muito além do que o âmbito civil transpõe, já que
encontra na terra sentido para existir, todavia, não se limita a isso, até porque
os diferentes esteios quilombolas demonstraram, no decorrer da pesquisa,
que a ancestralidade negra pode ser nada ou tudo – ou seja, não
necessariamente há um padrão do qual deverá resultar o reconhecimento dos
mesmos e suas titulações.
Ocorre que, no que concerne à prática do INCRA, vêm se tentado
homogeneizar as lutas quilombolas, onde, de maneira mais grave, promove-
se como solução aos conflitos entre o massacrante agronegócio e as
comunidades a própria divisão “pacífica” das terras entre as partes do litígio.
Destaca-se que, como apontado nas entrevistas com os membros, os
Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação apenas surtem efeito
quando inexistente as disputas por Terra. Todavia, neste aspecto se encontra
o óbice, visto que na maioria dos casos não ocorre o fechamento do ciclo de
Titulação, de modo que as comunidades quilombolas permanecem
vulneráveis, ante não só a expansão das plantações de soja na região, como
também pela própria invisibilidade cultural decorrente da ineficiência de
reconhecimento das Terras de Preto – o formalismo, portanto, ainda vale
108

mais que os próprios fatores histórico e cultural destes povos, mesmo diante
do responsável pela democratização da terra.
A lógica da Titulação do INCRA promove que, após elaboração e
publicação dos RTID’s, publique-se Portaria pelo Presidente do INCRA,
pois esta é o que demarca o território reconhecido, e demonstra, por óbvio, o
reconhecimento em si.
Como dito, porém, esta raramente ocorre, quiçá em breve período de
tempo. Tal fato se comprova ante o tempo em que se movem os processos,
os quais datam de 2011, 2009, 2007, 2005 e até mesmo 2004.
Frise-se, ainda, que a política de titulação intentada atualmente não
engloba o reconhecimento coletivo. Promove-se, todavia, a divisão de
glebas/terrenos, corroborando, com isso, para a desintegração da
comunidade, a medida em que dispõe de brecha para a compra de terrenos,
mesmo que ilegal, por parte dos fazendeiros ou sojeiros da região.
São os processos concernentes ao Baixo-Parnaíba levantados no INCRA:
Certidão da Portaria
Comunidade Número Fundação Cultural Administrativa do
Palmares INCRA
Saco das Almas 54.230.003791/2004-87 SIM NÃO
Bonsucesso 54.230.003668/2005-47 SIM NÃO
Santa Cruz 54.230.003910/2005-82 NÃO -
Árvore Verde 54.230.004960/2005-87 SIM SIM
Data Arraial 54.230.003615/2007-98 NÃO NÃO
Alto Bonito 54.230.005031/2007-57 NÃO NÃO
Barro Vermelho 54.230.005393/2009-18 NÃO NÃO
109

Depósito 54.230.009564/2010-12 NÃO NÃO


Bandeira 54.230.012469/2010-97 SIM NÃO
Funil 54.230.01269/2011-90 SIM NÃO
Cana Brava 54.230.001929/2011-32 SIM NÃO
Caruaras 54.230.001930/2011-67 NÃO NÃO
Boa Vista 54.230.003933/2011-35 SIM NÃO
Bom Princípio 54.230.003937/2011-13 SIM NÃO
São Bento Data 54.230.001024/2013-24 SIM NÃO
Genipapo
Prata do Quirino 54.230.001496/2013-87 SIM NÃO
Poço de Pedra 54.230.001503/2013-41 SIM NÃO
Quarimã 54.230.001397/2017-29 SIM NÃO
Tabela 1 – Processos no INCRA
Elaboração: Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa

Quanto ao ITERMA, têm-se que este foi instituído nos termos da Lei nº
6.272, de 06 de fevereiro de 1995 e reorganizado pelo Decreto nº 17.171 de
15 de fevereiro de 2000, sendo autarquia vinculada à Gerência de Estado de
Desenvolvimento Social – GDS, tendo como missão executar a política
agrária do Estado.
Sua função seria organizar a estrutura fundiária no território maranhense,
possuindo amplos poderes de representação, para promover a discriminação
administrativa das terras estaduais, bem como reconhecer posses legítimas,
titularizar os respectivos possuidores, e incorporar ao patrimônio do Estado
as terras devolutas, ilegitimamente ocupadas.
110

Ocorre que, diferentemente do inicialmente compreendido, têm-se que o


ITERMA, em verdade, vem contribuído para a própria estruturação do
agronegócio a medida em que suas titulações são, assim como as do INCRA,
eivadas de questionamentos no âmbito fático.
Conforme o acostado em entrevista com o membro da comunidade
Bandeira, Izalmir, o ITERMA, ao realizar a identificação da terra, pouco se
atenta a quem está lidando.
É que constantemente há a compra irregular de áreas das comunidades
por parte dos sojeiros, e alguns títulos, portanto, por vezes estão saindo ou
em nome daqueles que a comunidade não compõe, ou mesmo em nome de
espécie de “laranjas”, fato que sequencia sérios prejuízos à região, uma vez
que os conflitos se veem aumentados com a “morada do inimigo” no local, e
já que o desmatamento se torna intenso durante esta estadia.
Os impactos da atuação do agronegócio são visivelmente negativos na
região, pois monta cenário no qual não só desmerece a cultura local, como
também consome das terras toda a fertilidade e diversidade que possui por
meio da plantação de, por exemplo, Eucalipto.
Ressalta-se, inclusive, que a tais empreendimentos veem consumindo
grande parte da água na região, secando aquíferos e prejudicando o próprio
modo de vida dos membros dos quilombos.
Nesta medida, mensura-se a importância de uma atuação crítica frente às
titulações e ao cenário dos conflitos, uma vez que os órgãos e instituições
possuem influência direta sobre os resultados, tanto no que pode vir a
111

proteger os direitos quilombolas, quanto no que venha os afetar


sistemicamente.
Face a tal cenário, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos,
Diocese de Brejo, FETRAF, bem como o Centro de Cultura Negra, vem
atuado significativamente na região, buscando uma mudança da situação a
partir da própria mutação dos paradigmas envolvidos.
Tais instituições começam a entender e confirmar que a luta quilombola
possui fundamentos que, por vezes, não cabe ao Direito fazer, sob pena de se
reduzir o próprio interesse desses ou a própria história.
Assim, através da análise processual, capta-se um envolvimento destas
efetivamente com as comunidades, de modo que se esteja presente os
conceitos e contextos por estas criados, dando-se lugar, por isso, à
legitimação de ideias como autodefinição, e negando-se, ao revés,
denominações como “remanescentes de quilombos”, uma vez que não há
como se interferir na autoafirmação quilombola com valorações tais como
mais ou menos quilombo, melhor ou pior.
Tais aspectos são confirmados ante esteio do processo nº 243/2008, onde
se infere a cobrança por parte de tais entes no andamento dos processos,
como por meio da juntada de petições com este teor, ou mesmo pela
exposição de documentos que não só comprovam o georeferenciamento de
comunidades quilombolas, como também não permitem o desmerecimento
de suas culturas, lutas, história e construções, porque não, jurídicas – um
novo panorama jurídico contra o próprio Direito.
112

Nem sempre, contudo, há verdadeiro alento de tais teses pelo Judiciário, e


daí incube aos Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado e
Defensoria Pública da União agregarem valores constitucionais à questão.
A atuação do MPF, MPE e DPU se remonta aos fundamentos do que
dispõe o art. 68 do ADCT, o qual invoca a necessidade de regularização das
terras tradicionalmente ocupadas. A, por vezes, defesa realizada por tais
instituições leciona os princípios da Administração Pública, bem como a
Instrução Normativa do INCRA nº 57/2009, e o Decreto 4.887/2003 como
critério para a identificação dos quilombos.
Dentre os processos estudados, todavia, constatou-se, por vezes, a própria
comutação das instituições de justiça com capacidade postulatória pelas
sociedades civis, e não porque estas invadiram a competência alheia, mas
porque, ante a também morosidade e abarrotamento judicial, fez-se mais
presente a atuação das, por exemplo, Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos e Centro de Cultura Negra, percebendo, inclusive, certas
intervenções da própria Fundação Cultural Palmares, a qual, normalmente,
traz ao judiciário as certidões de reconhecimento das comunidades.
Digna-se importante, todavia, compreender que os deslindes processuais
caminham para uma assistência e comprometimento coletivo destas, ou seja,
conclui-se que há, em verdade, efetiva complementariedade das funções de
tais instituições dentro da ótica judicial, sendo tais cobranças fundamentais
para a construção de novas visões, já que não permite que os processos
caiam em esquecimento e, prioritariamente, que os institutos jurídicos
sucumbam as peculiaridades dos povos de comunidades tradicionais.
113

Tal fato não amiúda, porém, que ainda há certo entranhamento na postura
das instituições, digamos, oficiais da justiça. Isto se percebe por meio das
constatações acerca dos processos em nível estadual, que pouco ou nada
possuem intervenção de, por exemplo, o Ministério Público Estadual, fato
que obsta, inclusive, a própria análise da verdadeira competência da justiça
estadual aos casos.
Ocorre que ainda há processos que tramitam em âmbito estadual que
tratam, inegavelmente, de demandas de interesse da União, ante as
interferências diretas aos direitos das comunidades quilombolas regionais.
Nesta medida, ao passo que se constata certa higidez de algumas
instituições em não permitir que se questione a autoatribuição e a cultura do
outro – ora quilombola –, os responsáveis pelos cenários mais alarmantes
continuam frígidos, seja pela ausência de diagnóstico da questão e
sobrecarregamento dos entes, seja porque há interesses maiores envolvidos,
como o próprio capital especulativo.
A diversidade, assim, torna-se matéria complexa, pois não basta a
simplória identificação da relação tradicionalmente estabelecida entre
comunidades e recursos naturais, mas, sim, necessita-se de uma análise dos
conflitos que refletem diretamente nos direitos e nas relações coletivas dos
povos tradicionais, pautando-se que as terras identitariamente ocupadas
devem ser amparadas por um mecanismo jurídico para além do civilista e,
ademais, que considere essas mudanças do aparato estatal e tendências dos
movimentos de mobilização (ALMEIDA, 2008).
114

Tal fato é constatado, inclusive, por meio das complicações transpostas


pelos órgãos brasileiros no trato das demandas quilombolas, os quais
afirmam não haver precisão nos conceitos de “terra tradicionalmente
ocupada” e nos critérios de autodefinição, promovendo, assim, a inegável
procrastinação do reconhecimento jurídico-formal dos povos em conflitos, já
que haveria uma imprecisão na generalização das regiões tensionadas e haja
vista que, em breve interpretação, poderia haver informações quantitativas e
técnicas que poderiam ser burladas para efeito de regularização ou reforma
agrária (ALMEIDA, 2008).
Outro aspecto de relevância primária seria as diferentes formas de se
relacionar com a terra que, em regra, não são difundidas pelo direito
brasileiro, de maneira que se acate como relação jurídica apenas o que se
enquadrar na matéria do proposto direito civil – e, quiçá, do antigo regime
civilista. Os laços solidários, assim, ainda não seriam maneira legítima para
se controlar recursos básicos, sendo as normas locais e as delimitações
coletivamente reconhecidas indiferentes para a atuação do Judiciário e do
próprio Estado.
Para Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008), aliás, isto não é
historicamente destituído de fundamento, já que as terras em questão dizem
respeito à própria exclusão colonialista, onde os negros fugidos eram os
sujeitos que passavam a ocupar as regiões, principalmente as de área
interiorana. Sendo assim, há uma constância tradicional do Direito – e
colonial, por consequência –, de tentar afastar estes do papel de detentores
de algo, já que o contexto agrário e fundiário brasileiro demonstra inegável
115

extermínio da população, até então, de escravos, os quais, em sua maioria,


como já abordado, eram negros, havendo relação direta entre o poderio da
propriedade com o racismo encabular, devido a articulação mercantil com a
restrição da identidade de quem diferia do poder econômico, ou seja, de
quem era privado, desde os primórdios do Brasil, de sua existência política.
Trata-se, na verdade, de uma propriedade, de uma terra que se
revela como condição de existência desse grupo na sua
singularidade e não no aspecto patrimonial; tanto que a nota
que se dá, geralmente, é de indisponibilidade, sob uma forma
ou outra, porque é um território que não se destina ao
comércio; mais uma vez tiramos esse bem da mercancia, que
se destina não só às gerações atuais, mas também às gerações
futuras, exatamente pela possibilidade de transmissão desses
valores que orientam o grupo, na atualidade, e que vão sendo
reformulados (ALMEIDA; PEREIRA, s.d., p. 245-246).

O território, sendo assim, é elemento essencial, que integra a identidade


de grupos e identifica seus membros por meio da própria existência da
coletividade. A terra, portanto, é base para toda e qualquer postulação que
envolva o quilombo, pois é esta condição de vivência, mas, mormente, de
existência. A simbologia que envolve e evidencia a cultura, a economia e a
própria relação social dos grupos em questão são, indiscutivelmente,
superiores a toda e qualquer análise externa e (des)vivida das condições que
a caracterizam. É deste aspecto, inclusive, que o sobrepujar remanescente se
faz necessário, pois não se trata de um elemento do campo imaginativo e
116

meramente atemporal. Diz respeito, porém, a uma permanência de


identidade, que colabora para os resgates dos valores ali nascidos e, ademais,
do próprio papel social que a diversidade assume (TRECCANI, 2006).
Por fim, têm-se como processos analisados ou, pelo menos, interessados a
este presente Plano de Trabalho, para além do total levantado, os seguintes:
Processo Classe Vara
0034469-79.2011.4.01.3700 Reintegração / Manutenção de 13ª Vara São Luís
Posse
0051743-51.2014.4.01.3700 Ação Civil Pública 13ª Vara São Luís
0035450-40.2013.4.01.3700 Ação Civil Pública 8ª Vara São Luís
0013982-88.2011.4.01.3700 Ação Civil Pública 8ª Vara São Luís
0003737-81.2012.4.01.3700 Interdito Proibitório 3ª Vara São Luís
Tabela 2 – Processos na JF/MA conforme tipo
Elaboração: Arthur Nunes Lopes Martins e Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa

A preferência decorreu ante o cruzamento de dados das Instituições ora


tratadas, onde todas – ou praticamente todas –, aludiram atuar ou ter atuado
juridicamente nos citados autos, cabendo aduzir que nem todos foram
passíveis de acesso, visto o fato de o Proc. nº 0003737-81.2012.4.01.3700
ainda estar em carga, e ademais, porque o Proc. nº 0013982-
88.2011.4.01.3700 se encontra em remessa para Brasília – DF.
117

Dificuldades

Dentre as próprias questões jurídico-conceituais, a pesquisa possui certas


limitações no que diz respeito ao acesso à processos, visto alguns estarem
em âmbito estadual e, mormente, pela demora em meses de a Justiça Federal
fornecer os processos solicitados através dos ofícios entregues às Varas.
Quanto ao conteúdo, ainda, percebe-se uma esvaída produção sobre o
Baixo-Parnaíba, fato que conduziu mais esforços na construção de teses
cientificamente amparadas, as quais assim foram montadas por meio dos
dados fornecidos pelos órgãos e instituições em que se teve contato, e
através de entrevistas, que permitiram a compreensão, de fato, da questão
local.
Quando aos resultado, alguns dados e informações restaram insuficientes
para permitir determinadas conclusões sobre o caso, mas cabe conduzir que
as amostras do Baixo-Parnaíba apontam dois vieses em comparativo com
outros locais, já que, atualmente, coincide com o que vem ocorrido no Brasil
– no que diz respeito ao agronegócio –, mas se diferencia quanto à história
do território, haja vista que há tempos ocorre conflitos territoriais no Estado
e violência no campo, mesmo antes da chegada da soja, e isto porque a
região possui, originariamente, como citado, problemas acerca da
concentração de terras.
Quanto ao contato com as Instituições, ressalta-se que o INCRA se
transpôs como sendo o mais burocrático, isto porque o ofício entregue
requereu análise de, praticamente, todas as suas instâncias.
118

Por fim, merece destaque a brigada de competência entre as justiças


estaduais e federais que, em verdade, limitaram a análise de certas atuações,
já que, por vezes, mantinham-se na inferência processual da questão e
deixaram de analisar a própria matéria dos autos.

Conclusões

A atuação da magistratura, mesmo após a compreensão da posição


funcional da propriedade no ordenamento pátrio e de sua necessidade de
aplicação mediante as questões de étnico raciais, não parece ter espelhado
como fonte para suas decisões o histórico de concentração de terra no Brasil
e em estados como o Maranhão.
É nesta medida, com isso, que se compreende que deixar de lado o
vislumbre deficitário é omitir-se perante a realização de direitos, ignorando,
ademais, a importância do juiz enquanto intérprete do Direito, ao reduzir a
capacidade de concretude direitiva por parte do judiciário, tal como se a
Constituição fosse mera abstração ao pautar princípios.
Mexer com a propriedade privada é maneira viável para tratar da
desigualdade histórica de divisão de terras, sendo a regularização de
comunidades forma legítima para se começar a modificar tal realidade, visto
a emergência da situação tratada que, sobretudo, colabora não para a garantia
do morar, mas para o fortalecimento do excluir por meio da ética do
mercado e do próprio ditame do poder através do capital.
119

É através disso, portanto, que se afirma que o emprego da identidade


enquanto critério, e do viés comunitário como relação com a terra, embora
em constante inquirição, são legítimos aplicadores de direitos. A não
observância da autoafirmação, assim, é um desrespeito não só ao modo de
vida das comunidades em si, como também clara negação social dos modos
de vida que divergem da sociedade moderna.
A diversidade, inquestionavelmente, beneficia a coletividade por meio da
memória cultural, histórica e patrimonial abarcada e esta diz respeito à
própria proteção da identidade da humanidade como um todo (TRECCANI,
2006).
A importância, assim, dos que se propõem a discutir tal aspecto e a
articular com os sujeitos dos movimentos, vislumbra-se na necessidade de
alardear o Estado brasileiro sobre sua incapacidade de relacionar-se com as
demandas étnicas, onde o desenvolvimento nacional se torna
inquestionavelmente prejudicado ao ignorar a voz dos que não tem alcance
para além de seus meios.
As instituições de justiça, assim, via de regra, através da reconstituição
dos espaços públicos, consolidam o respeito aos direitos humanos,
promovendo maior participação daqueles que, no aspecto cidadão, foram
calados, compondo a leitura conflitiva não como negação da propriedade,
mas como reafirmação desta, de modo que, de fato, esta reitere seu papel
funcional, e não simplesmente mercantil. Cabe enfatizar, porém, que estas
também não estão imunes a problemas administrativos e burocráticos,
circunstância que, mais uma vez, confirma a importância de se elencar
120

enquanto sujeitos não os que do Direito vivem, mas os que vivem as


consequências da aplicação do Direito.
Nesse sentido, permeia um dever da advocacia popular em representar
tais comunidades para além da judicialização de conflitos, de forma a
intervir nas circunstâncias percebidas, onde se possa discutir e provocar o
Ministério Público Federal, por exemplo, através de denúncias, colaborando
para a viabilização das políticas públicas e, ademais, para a própria
regularização de terras por parte do INCRA e Instituto de Colonização e
Terra do Maranhão – ITERMA, sobretudo, para a proteção possessória das
comunidades em conflitos e, ademais, para a própria busca por reforma
agrária e respeito à composição dos povoados existentes.
Cabe aos movimentos integrantes, ainda, discutir os critérios e políticas
tomadas para a regularização fundiária no ordenamento, já que há inegáveis
objeções de competência, sendo constante o exímio dos responsabilizados
INCRA e, regionalmente, ITERMA – sendo este atuante não em casos de
conflito possessório, mas apenas em circunstâncias apaziguadas; ademais,
pelo trato ainda burocrático e arcaico das instituições, as quais enviam
equipes raramente capacitadas para lidar com a realidade das comunidades,
onde, em sua maioria, vislumbram os casos em que atuam não com
necessário recorte antropológico e social, mas com visões formalistas e
reducionistas, que não valorizam a identidade dos povos e, muito menos, o
valor do saber geracional
121

Referências

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras


indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e fundos de
pasto: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus: PGSCA–UFAM,
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Maranhão. In: Revista Catirina, Sociedade Maranhense de Direitos
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Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo:
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Revista Brasileira de Educação, v. 16, n. 47, mai./ago. 2011.
122

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e os problemas socioambientais no Baixo Parnaíba Maranhense: a luta
dos lavradores em defesa de um modo de vida. 2. ed. São Luís: GERUR,
2016.

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judiciário. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos humanos, direitos
sociais e justiça. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 1998.

PEDROSA, Luís Antônio Câmara. A questão agrária no Maranhão. São


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concentração de terras. [s. l.]: Repórter Brasil, 2009. Disponível em:
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Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 116, set. 2013. Disponível em:
<http://www.ambito-
juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13677>.
Acesso em: 28 ago. 2016.
123

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entraves do processo de titulação. Belém: Secretaria Executiva de Justiça –
Programa Raízes, 2006.

WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. rev.


atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
124
125

Deslegitimando a propriedade: luta quilombola no judiciário


maranhense sob a ótica descolonialista1

Arthur Nunes Lopes Martins


Ruan Didier Bruzaca
Introdução

Ao trabalhar com assessoria jurídica universitária e educação popular no


Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular – PAJUP refleti sobre
a necessidade de questionar a estrutura normativa do estado e da sociedade
que oprime. Com a assessoria jurídica tive contato com comunidades que
são ocupações e nasceram da falta de acesso à terra e renda, gerando
populações que vivem em condições precárias, enxerguei na prática a
“cidade para poucos”. O caso em estudo não se refere a déficit habitacional
nas cidades, já que a linha de estudo é acerca das ações possessórias que
envolvem as comunidades quilombolas, mas muito tem em comum em
lutarem pelo fim do capitalismo especulativo e estruturas de dominação.
O presente trabalho tem como objetivo central analisar em que medida a
atuação das instituições do sistema de justiça nas ações possessórias

1
Artigo apresentado no III Seminário Internacional do Observatório dos Movimentos Sociais
na América Latina – Educação, movimentos sociais e direitos humanos: epistemologias
subversivas, realizado de 12 a 14 de julho, em Caruaru/PE, publicado nos anais do evento,
com ISSN 2448-1300, em seu volume III, que consta o Grupo de Trabalho 04 – Estudos Pós-
Coloniais.
126

possibilitam a concretização do direito à posse e ao território de


comunidades quilombolas no Baixo Parnaíba Maranhense. Relacionando tal
objetivo com as singularidades de uma ex-colônia em sua formação social
indo em direcionamento do processo de produção do espaço. Aborda de
forma crítica a relação da desigualdade e dominação com as práticas
inseridas e legitimadas no ordenamento jurídico brasileiro.
Na medida em que a judicialização dos conflitos possessórios envolvendo
comunidades quilombolas pode estar cercada por uma visão tradicional e
civilista do Direito, é necessário compreender a forma como as suas
particularidades étnicas e sociais são compreendidas nas decisões e
instituições do sistema de justiça. Consistem em conflitos que acarretam no
aprofundamento da histórica negação de direitos e desigualdade, servindo o
Direito como instrumento que serve ao patrimonialismo, elitismo e
individualismo. O trabalho busca salientar a mentalidade colonial do
judiciário na organização da terra, analisando suas decisões e seu caráter
segregacionista e patrimonialista.

Metodologia

Em primeiro lugar pelo levantamento de bibliografia relevante para a


temática, não somente na área do Direito, mas também na sociologia e na
antropologia. Ademais, serão levantadas as legislações pertinentes ao tema,
para compreensão dos direitos assegurados às comunidades quilombolas. Em
segundo lugar, será realizada pesquisa documental e de campo para
127

identificar as comunidades quilombolas envolvidas em conflitos


possessórios.
Averiguar-se-á a situação do acesso ao território das comunidades
quilombolas em situação de conflito no Baixo Parnaíba Maranhense,
analisando-se os procedimentos existentes no Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária e no Instituto de Terras do Maranhão. Por
fim, far-se-á a análise das decisões liminares e sentenças existentes nas ações
possessórias ajuizadas em face de comunidades quilombolas tanto no âmbito
estadual quanto no âmbito federal, possibilitando investigar a atuação do
judiciário
Esta pesquisa é classificada sob o método de abordagem como jurídica-
sociológica, devido a sua intensa relação com o mundo fático. O projeto de
pesquisa possui vertente do tipo indutivo, pois segundo Gil (2002) esta
vertente “parte-se da observação de fatos ou fenômenos cujas causas se
deseja conhecer”.
Quanto aos procedimentos podemos classifica-la em documental e estudo
de caso. Estudo de caso pois segundo Gil (2002) este procedimento se refere
ao estudo de um fenômeno atual de forma profunda e exaustiva. Documental
pois pilar essencial deste trabalho é o uso de posicionamento e entendimento
dos tribunais. Ainda segundo o mesmo, o procedimento documental utiliza
matérias que não receberam tratamento analítico, onde se encaixa as
jurisprudências.
Quanto aos objetivos é exploratória e descritiva. Segundo Gil (2002) é
descritiva a pesquisa de levantamento e análise de dados, pesquisa que
128

descreve características de grupos. A pesquisa também se caracteriza como


exploratória, segundo o mesmo este objetivo de pesquisa visa o
aprofundamento do tema, proporcionando maior familiaridade com o
problema.

Resultados

O trabalho se contextualiza diante deste panorama de instituições de


justiça que são produtoras e reprodutoras de desigualdade, onde a construção
do espaço contribui para criação de populações invisibilizadas e à margem
da “legalidade”. Assim as decisões do judiciário são reflexos das relações de
poder, podendo ser um instrumento de segregação ou democratização social.
Assim sendo, o presente trabalho tem como objetivo o estudo da disputa por
espaço, desvinculada de uma visão dogmática do direito, ocorre que a
pesquisa ainda está em andamento, possuindo apenas perspectivas de seus
resultados futuros, podendo estas serem sucintamente elencadas a seguir.
Essencialmente este trabalho busca ser um instrumento de denuncia às
práticas do judiciário e também contribuir para uma tutela efetiva dos
direitos de comunidades quilombolas, inseridas perenemente em situações de
conflito e violência no Baixo Parnaíba Maranhense. É essencial que no
decorrer do trabalho, em suas entrevistas e visitas aos órgãos públicos, e ao
final se alcance algum nível de conscientização das instituições do sistema
de justiça a respeito das particularidades étnicas que envolvem as
comunidades quilombolas.
129

Não havendo a conscientização supracitada há o riso de perpetuar-se uma


visão elitista, patrimonialista e individualista do Direito que impossibilitam a
tutela das comunidades quilombolas. Anseia o trabalho ser fonte de
informação para contribuir para a construção de um conhecimento jurídico
crítico que possibilite a compreensão das formas de viver, fazer e criar de
comunidades quilombolas, levando tais conceitos e informações para dentro
da academia.
E por último cabe como perspectiva de extrema importância consolidar
uma atuação e produção científica crítica alinhada à atuação do Programa de
Assessoria Jurídica Universitária Popular – PAJUP, visto que o grupo surge
na emergência de apresentar o uso do direito como instrumento de
emancipação social, por intermédio de uma práxis jurídica diferenciada que
se propõe viabilizar a efetivação da função social da universidade quanto
centro gerador de conhecimento e ferramenta de transformação da
sociedade.

Discussão

O Estado do Maranhão, é um dos estados com maior número de titulação


de comunidades no país, ao lado do Estado do Pará. Entretanto, o referido
número não reflete a inexistência de conflitos e de problemas, muito pelo
contrário. Até o ano de 2013, não se verificava qualquer titulação finalizada
pelo INCRA, autarquia federal responsável pela titulação, sendo todas as
130

existentes provenientes do Instituto de Terras do Estado do Maranhão


(ITERMA).
Na medida em que não se assegura a titulação das comunidades
quilombolas, particulares ajuízam ações visando manter-se na área ou
expulsar os quilombolas. Consistem principalmente em ações possessórias
(reintegração de posse, manutenção de posse e interdito proibitório) que, no
cenário de conflitos rurais, marcam-se por situações de injustiça e de ofensa
a direitos.
Não obstante, a problemática de tais conflitos é ainda mais grave. Neste
sentido, Wolkmer (2001, p. 105) apresenta que há uma falência no modelo
jurídico estatal (de seu ordenamento positivo e de seu órgão de decisão, ou
seja, o judiciário) ao se limitar à regulação de conflitos
interindividuais/patrimoniais e não sociais de massa – não garante uma
regulamentação de tensões coletivas que digam respeito ao acesso à terra e
ocupações de áreas rurais e urbanas.
Observa-se no contexto brasileiro um confronto, que envolve disputa pela
posse, uso e distribuição da terra, que se desenrola em uma estrutura agrária
de privilégios e injustiças, assentada na dominação política autoritária e
clientelista, marcada pelo capitalismo especulativo e pelo comprometimento
com os interesses das tradicionais elites agrárias (WOLKMER, 2001, p.
106).
Entretanto, no que tange as ações possessórias decorrentes de conflitos
territoriais, inseridas no cenário de tentativas de deslegitimar os direitos de
comunidades quilombolas e no predomínio de um modelo jurídico estatal
131

elitista, patrimonial e burguês, mostra-se salutar compreender como as


instituições do sistema de justiça atuam na concretização dos direitos do
referido grupo social.
O judiciário dentro dos casos que envolvem comunidades quilombolas
trabalha com um modelo de propriedade baseado numa ótica somente
civilista e baseado na economia, que precisa ser deslegitimado. Cria-se um
modelo de direitos reais que baseado no capitalismo especulativo só atende
às necessidades de rentabilidade.
As ações possessórias do Baixo Parnaíba refletem a visão colonial do
judiciário que não possui abertura para diferentes formas de uso da terra.
Inclusive, Almeida (2008, p. 134-135) apresenta que a forma de uso da terra
por comunidades tradicionais, como as comunidades quilombolas, colide
com disposições jurídicas e econômicas vigentes, cujo catálogo por
instituições estatais é quase inexistente, dependendo o reconhecimento desse
sistema por atuações de pesquisadores e técnicos que realizam pesquisas e
vistorias in loco.
Resumir a atuação das instituições de justiça a esta visão pode resultar na
desconsideração de diversos direitos em favor de direitos individuais e
patrimoniais. Duprat (2007, p. 23) destaca que é necessário que o aplicador
do direito, em relação aos direitos de comunidades quilombolas, deve
compreender o ambiente que recai a norma e dar atenção às pessoas que lhe
conferem – compreender, ao invés de interpretar, é sair do pensamento e iro
à prática, fazendo-a falar.
132

A forma como a proteção possessória é concebida judicial e


juridicamente está intimamente ligada à manutenção das desigualdades
sociais no país. Neste cenário de comunidade tradicionais pleiteando suas
terras, o desfecho dos conflitos jurídicos acaba resultando no aumento das
desigualdades.
No juízo possessório discute-se quem possui o exercício fático sobre o
imóvel e, consequentemente, quem faz cumprir sua função social – em
outros termos, quem trabalha de fato na terra. Assim sendo, nas referidas
ações, aspectos importantes devem ser levados em consideração, como
ancestralidade na ocupação e utilização da terra em regime de agricultura e
extrativismo familiar e coletiva voltada para subsistência – elementos que
suscitam a autodeterminação enquanto quilombola. Não obstante, numa
ótica estritamente civilista, a proteção da posse não se aprofunda em tais
aspectos – o que é favorável para o mercado imobiliário.
Assim, observa-se na ordem jurídica brasileira e nas decisões judiciais
uma “tradição incipiente de estudos jurídicos urbanísticos [...]
essencialmente legalistas, reforçando a noção civilista do direito de
propriedade individual e irrestrito” (FERNANDES, 2012, p. 17).
Evidenciando a incapacidade do modelo jurídico estatal que se limita a
regulamentar conflitos entre indivíduos e de cunho patrimonial, não
regulamentando de forma satisfatória os conflitos sociais.
Segundo Faria (2005, p. 16-17), essa incapacidade reflete a inefetividade
das instituições jurídicas e judiciais. Estas mostram-se incapazes de resolver
conflitos emergentes das contradições socioeconômicas e de lidar com
133

comportamentos contrários às leis, resultando em uma atuação


organizacionalmente enrijecida, uma cultura técnico-profissional fundada em
teorias arcaicas e processual/procedimentalmente formalistas e ritualistas.
Quanto ao acesso à justiça, destaca-se que esta não pode ser reduzida à
uma “dimensão técnica, socialmente neutra”, devendo-se apresentar suas
funções sociais, bem como “o modo como as opções técnicas no seu seio
veiculavam opções a favor ou contra interesses sociais divergentes ou
mesmo antagônicos” (SOUSA SANTOS, 2010, p. 167-168). Em outros
termos, as técnicas processuais podem não garantir acesso à justiça se
desalinhadas a interesses sociais, como os que envolvem os conflitos
possessórios.
Neste compasso, as dificuldades não se restringem ao procedimento de
titulação quilombola, mas também podem ser observadas nas ações
possessórias, impedindo o amplo acesso ao território e o desenvolvimento
dos modos de viver, criar e fazer das comunidades quilombolas. As
comunidades quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense possuem como
característica o embate com cresceste agronegócio na região. Essa
“indústria” exterioriza toda a problemática da existência de capital
especulativo sobre as terras e domínio que as elites agrarias possuem
perpetuando a mentalidade de que a propriedade de terra é símbolo de
riqueza e poder.
134

Conclusão

O trabalho é construído dentro do campo de atuação do PAJUP –


Programa de Assessoria Jurídica Universitária Popular, O "PAJUP” é um
núcleo de extensão universitária criado por alunos da Unidade de Ensino
Superior Dom Bosco em meados de 2008, desta forma, uma das áreas de
atuação do grupo é o acompanhamento sócio-jurídico de comunidades
inseridas em conflitos relacionados à terra.
O grupo tem sua prática alicerçada nos moldes da educação popular,
fundamentada nos ensinamentos de Paulo Freire (2008, 1996), que propõe
uma atuação dialética e dialógica, no que tange a busca pela conscientização
e empoderamento por meio do conhecimento construído em conjunto entre
os discentes e os atores sociais. Como acadêmico do curso de Direito, onde
desde cedo aprendemos acerca da igualdade que rege um estado democrático
de direito, me sentiria envergonhado em me abster de criticar um discurso
que escolhe a quem quer proteger e a quem garantir direitos. Dentro do
contexto político-social do Brasil, buscar garantir direitos a todos é uma
decisão contra majoritária. É paradoxal saber que vivemos sob a égide do
Estado Democrático de Direito que deveria superar o término da fase política
e ditatorial, incorporando ao Texto Constitucional os direitos fundamentais e
as garantias para sua efetividade.
Não há como pautar a discussão sobre comunidades quilombolas sem
citar que é necessária uma profunda reforma jurídica no Brasil. Fernandes
(2006, p.12) apresenta que a organização de uma nova ordem jurídico-
135

urbanística no Brasil – e de resto na América Latina – é um caminho com


obstáculos e poucas comemorações. É preciso que se entenda a importância
do Direito nesta luta, sendo o próprio Direito mecanismo de segregação e
invisibilidade este pode ter sua lógica subvertida para atuar em favor de
todos. A transformação social encontra percalços no sistema marcado pelo
capitalismo, pelas elites agrarias e no judiciário brasileiro, demonstrando o
caráter conservador e patrimonialista da sociedade brasileira.
É necessário entender a importância de uma concepção humanista da
propriedade, sendo essa perspectiva um mecanismo de apoucamento dos
ônus do capitalismo. Sobretudo é evidente que as mudanças das politicas
atuais quanto a concepção de propriedade depende também da sociedade
civil organizada, devendo ser sujeito protagonista da luta por transformação
social.
O Poder Judiciário se estabelece como peça fundamental da construção
do espaço urbano, sua atuação interfere no projeto e logística do território. A
solução dos conflitos no Judiciário precisa incorporar ditames que
enxerguem a propriedade privada em prol do bem coletivo, necessitando o
judiciário renunciar ser conservadorismo para superarmos as complicações
criadas em nome de um direito unicamente civilista.
136

Referências

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Apresentação. Terra de quilombo,


terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faixinais e
fundos de pastos: terras tradicionalmente ocupadas. 2. ed. Manaus:
PGSCA-UFMA, 2008.

CARLOS, GIL Antônio. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo:


Atlas, 2002.

DUPRAT, Deborah. Prefácio. In: SHIRAISHI NETO, Joaquim. Direito dos


Povos e das Comunidades Tradicionais no Brasil: Declarações,
Convenções Internacionais e Dispositivos Jurídicos definidores de uma
Política Nacional. Manaus: UEA, 2007. p. 19-24.

FARIA, José Eduardo. Introdução: o judiciário e o desenvolvimento


sócioeconômico. In: FARIA, José Eduardo (Org.). Direitos humanos,
direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.

FERNANDES, Edésio. A nova ordem jurídico-urbanística no Brasil. Direito


urbanístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del
Rey/Lincoln Institute, p. 3-23, 2006.
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como implementar. São Paulo: Instituto Pólis, 2002, p. 11-26.
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas
notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In: Revista da
Faculdade de Direito do Alto Paranaíba, p. 12-33, 2012.

SOUSA SANTOS, Boaventura. Pela mão de Alice: o social e o político na


pósmodernidade. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma


nova cultura no Direito. 3 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Alfa Omega,
2001.
138
139

Rompendo o direito tradicional: atuação da advocacia popular junto às


comunidades quilombolas do Baixo Parnaíba Maranhense1

Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa


Ruan Didier Bruzaca

Introdução

Os remanescentes quilombolas possuem características cultural,


econômica e socialmente próprias, quesitos estes pouco atentados em
questões tais como os conflitos possessórios. Tal fato, inclusive, não se
difere na realidade maranhense, onde, em regiões como o Baixa-Parnaíba,
raramente se pretere as relações tradicionalmente construídas.
O Direito, portanto, historicamente usufrui de conceitos socialmente
dominantes para aplicar seus paradigmas e perpetrar relações formalmente

1
Artigo originariamente elaborado para apresentação no III Seminário Internacional do
Observatório dos Movimentos Sociais na América Latina – Educação, movimentos sociais e
direitos humanos: epistemologias subversivas. Uma versão modificada e atualizada do
referido artigo, que conta também com a autoria de Ruan Didier Bruzaca, foi apresentado no
“III Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política – A Desigualdade e
a Reconstrução da Democracia Social”, realizado de 24 a 27 de outubro de 2017, em
Curitiba/PR, que será publicado em e-book e cujo resumo consta no caderno de resumos do
evento (ISBN 978-85-8238-376-6). Adverte-se ao leitor que parte do texto é replicado no
relatório referente ao plano de pesquisa da bolsista Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa,
presente neste livro.
140

construídas. Há, entretanto, movimentos e instituições, como a advocacia


popular, que remam contra a lógica aplicada, adentrando ao âmbito jurídico
não só para desestabilizá-lo, como também para inserir os grupos, até então,
destituídos de voz, ao debate que lhes diz respeito. O entrave, porém,
vislumbra-se na viabilização desse propósito. De que forma articular-se com
as comunidades corroboraria para a ruptura do Direito até então conhecido?
É fato, porém, que os problemas historicamente perpetrados com a má
divisão de terras criaram um contexto cruel e sorrateiro para os quilombos,
onde se denomina proprietário aquele que usufrui de objetos formais que o
definam, e nunca os que possuem suas histórias confundidas com a própria
história que envolvem a terra em que cresceram.
Ocorre, assim, que domina a terra aquele que economicamente se
sobressai, estando os direitos sociais, com isso, à deriva de uma aplicação
mercantil do Direito, que dele pouco promove justiça social, e muito
alavanca o pretenso Estado de poucos, onde o ideal da Carta Magna
permanece de lado, ao passo em que os formalismos pré-constitucionais –
portanto, civilistas – propagam-se por quem tem a legitimidade de os
proferir.
Portanto, faz-se necessária uma análise acerca da atuação da advocacia
popular, exatamente pela mesma se envolver, diferentemente das outras
instituições de justiça, de características populares e sociais, que inovam a
maneira de relacionar o Direito com os povos, principalmente aqueles
diametralmente distintos da conjuntura formalista e tradicional jurídica. No
presente trabalho, com isso, será pautado os enfrentamentos de tal instituição
141

em articulação com as comunidades quilombolas do Baixo-Parnaíba


maranhense, principalmente pela realidade local tomada por disputas por
terra, onde não só se envolve de factuais lutas “identitárias”, como também
de pretensas inviabilidades sociais e dignitárias, que indubitavelmente
necessitam de alarde e valência do Poder Público.
Examina-se, assim, o contexto do Baixo-Parnaíba maranhense através de
breve análise histórico-sócio-jurídico da região, situando as instituições que
compõem a advocacia popular no Maranhão e, ademais, pontuando a
atuação desta e sua devida articulação perante as comunidades quilombolas
regionalmente alocadas, de forma a compreender a sua colaboração conjunta
para a ruptura do direito tradicional no estado.

Metodologia

Este projeto parte de um levantamento de bibliografias relevantes, de


modo a abordar áreas como o Direito, Antropologia e Sociologia, ademais,
situando as legislações pertinentes e relevantes ao tema.
Utiliza-se, ademais, de pesquisas documentais e de campo, em prol de
identificar a atuação das instituições do sistema de justiça, como a advocacia
popular, sendo seus membros, em suma, o Centro de Cultura Negra – CCN,
Fórum em Defesa da Vida do Baixo Parnaíba Maranhense, Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos – SMDH, Diocese do Município de Brejo,
Comissão Pastoral da Terra – CPT, Associação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas do Maranhão – ACONERUQ e Movimento Quilombola
142

do Maranhão, os quais partem de um diálogo direto com as comunidades


quilombolas, atuação conjunta, esta, facilitada pelos movimentos sociais e
assessorias jurídicas, tal como o Programa de Assessoria Jurídica
Universitária Popular – PAJUP, grupo o qual a autora é membra.
Analisa-se, ainda, a situação de acesso à terra por parte dos
remanescentes quilombolas, buscando os procedimentos existentes no
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e no Instituto de Terras
do Maranhão.
Portanto, esta pesquisa possui caráter jurídico-exploratório, estando seu
desenvolvimento inerente a materiais bibliográficos e pré-prontos,
possibilitando, também, vislumbre jurídico-comparativo e histórico-jurídico
(GUSTIN, 2010), por meio da contextualização da situação dos quilombos
no Baixo-Parnaíba.
A utilização de entrevistas, dados e gráficos, ademais, demonstram a
tentativa de melhor aprofundar e familiarizar a temática através de um objeto
hermeneuticamente e argumentativamente projetado, o qual se envolve de
uma vertente crítico-metodológica, contornando, porém, tão somente o
âmbito teórico (GUSTIN, 2010).
Cabe enfatizar, ademais, que a pesquisa em voga preceituará uma análise
do Direito necessariamente vinculada à ideia de fenômeno social e cultural,
questionando os institutos do ordenamento brasileiro, de forma que tal
metodologia represente uma postura político-ideológica, haja vista a
complexidade do caso e a constante reprodução do “status quo, [...] [que]
143

praticamente desconhece as demandas de transformação da realidade [...]”


(GUSTIN, 2010, p. 19).

Resultados

Em vista de se tratar de pesquisa ainda em desenvolvimento,


compreende-se que suas primeiras acepções são decorrentes dos materiais
levantados até o momento da elaboração deste projeto, como entrevistas com
o Ministério Público Federal, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos,
Diocese de Brejo, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –
INCRA e representantes das comunidades do Baixo-Parnaíba.
Preleciona-se, assim, que o judiciário maranhense atua em
desconformidade mediante a identidade dos quilombos, preconizando
decisões que fortalecem a dominação do Direito, sendo a advocacia popular
aliada a contracultura judicial, de forma a colaborar para a salvaguarda dos
direitos dos povos tradicionais.
Há inegável precariedade no trato dos direitos das comunidades
tradicionais maranhenses, as quais, embora possuam um modo peculiar de se
relacionar com a terra, têm suas condições de vida afetadas diretamente pela
linguagem jurídica abarcada, onde não só se produz um ambiente de
incerteza “criteriológica” ao destituir a concepção da autodefinição como
critério fundamental de reconhecimento quilombola e demarcação de terras,
como também se engaja e reforça noções formalistas do direito, que trata a
propriedade não com o ideal de sua formulação constitucional de moradia,
144

mas, sim, com a concepção de controle dos meios de produção, onde a Lei
passa a servir ao poder político e econômico e pouco – ou quase nada – ao
grupos étnicos.
Nesse sentido, permeia um dever da advocacia popular em representar
tais comunidades para além da judicialização de conflitos, de forma a
intervir nas circunstâncias percebidas, onde se possa discutir e provocar o
Ministério Público Federal, por exemplo, através de denúncias, colaborando
para a viabilização das políticas públicas e, ademais, para a própria
regularização de terras por parte do INCRA e Instituto de Colonização e
Terra do Maranhão – ITERMA, sobretudo, para a proteção possessória das
comunidades em conflitos e, ademais, para a própria busca por reforma
agrária e respeito à composição dos povoados existentes.
Cabe aos movimentos integrantes, ainda, discutir os critérios e políticas
tomadas para a regularização fundiária no ordenamento, já que há inegáveis
objeções de competência, sendo constante o exímio dos responsabilizados
INCRA e, regionalmente, ITERMA – sendo este atuante não em casos de
conflito possessório, mas apenas em circunstâncias apaziguadas; ademais,
pelo trato ainda burocrático e arcaico das instituições, as quais enviam
equipes raramente capacitadas para lidar com a realidade das comunidades,
onde, em sua maioria, vislumbram os casos em que atuam não com
necessário recorte antropológico e social, mas com visões formalistas e
reducionistas, que não valorizam a identidade dos povos e, muito menos, o
valor do saber geracional.
145

Discussão

É do cenário jurídico-sociológico da luta por terra que surgem os mais


dificultosos e controversos paradigmas, dentre eles as ambiguidades do
judiciário. É nas decisões judiciais, inclusive, que se revelam as maiores
falhas da história “liberal” brasileira, pois se concebe, in concreto, a quem
ainda serve e com que valores trabalha as instâncias jurídicas, percebendo-se
não só a existência de um patrimonialismo arraigado, como também a
própria incapacidade ainda existente de se lidar, no país, com direitos de
coletividades e direitos fundamentais, principalmente se, estes últimos, de
origem social (WOLKMER, 2003).
No Brasil, assim como já abordado, o tema propriedade é por si só
polêmico, à medida que se entende ser o mesmo um dos países de estruturas
mais desiguais do mundo, com índices de concentração de terra alarmantes.
Segundo o 10º Censo Agropecuário do IBGE (apud REIMBERG, 2009), que
avaliou as desigualdades fundiárias no ano de 2006 no país, o território
brasileiro é tomado por mega propriedades agropecuárias que ocupam cerca
de 36% da área nacional total, sendo estas de propriedade de somente 5,2
milhões da população brasileira (cerca de 2,7% da população total). Quando
os índices passam a ser trabalhados nas realidades de cada estado, os
números chegam a duplicar, sendo os estados mais desiguais em distribuição
Alagoas, Mato Grosso e Maranhão.
O Maranhão, na classificação do índice de Gini – que avalia a
concentração da estrutura fundiária na escala de 0 a 1 –, se encontra na
146

marca de 0,864 pontos (REIMBERG, 2009). Este fato explica, por exemplo,
o extenso número de conflitos fundiários no estado, o crescimento das ações
possessórias no Judiciário maranhense e o próprio crescimento dos
movimentos comunitários e de assentamentos, principalmente se se
vislumbrar que 36,4% da área total do território maranhense pertence a tão
somente 0,4% da população (PEDROSA, s.d.).
O judiciário maranhense, portanto, em face da história e dos dados que
cercam a realidade do estado quanto a luta por terra, ganha medular encalço
não só pela responsabilidade de se resolver os casos levados a juízo, mas
pela própria existência de uma dívida nacional no tratamento das demandas
populares, que é inegavelmente agravada se envolta de conflitos
distributivos. Cresce, aqui, a necessidade de colaboração de um poder do
Estado em prol das próprias políticas governamentais. Remete-se, assim, ao
uso dos instrumentos que também materializam o direito dos povos em si,
como a própria função social da propriedade e da posse, de forma que o
mesmo se comprometa a envolver o direito à moradia, de vislumbre
constitucional e com status de Direito Fundamental, como forma
interpretativa e expansiva, promovendo não uma neutralidade axiológica, já
que a mesma é quase impossível de realização, mas a percepção exegética da
própria desigualdade real entre os sujeitos de direito, cousa pouco percebida
se se define poder meramente declarativo e reativo por parte dos magistrados
(FARIA, 1998a).
É da realidade, com isso, que se exprime a maior caracterização da
moradia, e é dos cumprimentos, ou não, das responsabilidades sociais, por
147

parte do Estado, que se capta a sua prestação. O direito dos povos, assim, é
muito mais que mera construção abstrata. É, na verdade, “abstenção [...]
[para com o] [...] governo, [...] que deve [...] proteger esse direito de
possíveis agressões oriundas do próprio órgão protetor ou de particulares”
(PINHEIRO apud SANTOS, 2013, p. [?]). Cabe, portanto, muito mais o
dever de materializar um direito, sendo estes envolvendo a dignidade,
intentando prevalecer a humanização da norma, e impedindo, ademais,
meras apreciações econômicas e mercadológicas de situações fáticas e
subjetivas que envolvem, sem sombra de dúvidas, o direito fundamental de
ter onde sobreviver e morar (TORRES, 2010).
É factível, porém, que a prática ainda prenuncia muito mais a defesa do
“status quo” que a busca pelo próprio direito fundamentado (LOPES, 1998).
A cultura normativista sequencia muito além de um apego aos ritos e
procedimentos, mas descaracteriza o essencial vislumbre dos direitos sociais,
onde
[...] apesar de formalmente consagrados pela Constituição, em
termos concretos eles quase nada valem quando homens
historicamente localizados se vêem reduzidos à mera condição
genérica de ‘humanidade’, [...] sem a proteção efetiva de um
Estado capaz de identificar as diferenças e singularidades dos
cidadãos, de promover justiça social, de corrigir as
disparidades econômicas e de neutralizar uma iníqua
distribuição tanto de renda quanto de prestígio e de
conhecimento (FARIA, 1998b, p. 95).
148

Na região estudada, a história parte de um povoamento por parte de


lavradores, o qual fizeram da pesca, extrativismo, artesanato, dentre outros,
parte de sua identidade e da tradição dos municípios ocupados, sendo esta
realidade aos poucos modificada por meio da atuação da agropecuária no
Baixo-Parnaíba, e dos problemas desenvolvidos pela empresa Suzano Papel
e Celulose e pelos intitulados gaúchos (GERUR, 2016). Ocorre que, assim
como o vislumbre judiciário como um todo, os bruscamente afetados com
essas mudanças foram coisificados pelo mercado, não adentrando ao título
abstrato de “detentores”. Segundo o professor Ruan Didier Bruzaca (s.d., p.
8), “[...] a terra é traduzida em ‘propriedade privada’, passível de
apropriação, cujo trabalho na terra transforma-se ‘posse’ ou ‘domínio’. Disto
há a possibilidade de tutela, por meio de ‘ação de reintegração de posse’, ou
‘ação manutenção de posse’, ou ‘interdito proibitório’”.
Ocorre que a forma, por parte dos proprietários de terra, de enxergar as
peculiaridades das comunidades do Baixo-Parnaíba e suas fragilidades foi
propulsora da legitimação da violência nestes espaços, onde o mecanismo
coercitivo e de controle atua em prol da tomada local pelos que ali nada
construíram. Segundo Diogo Cabral (2017), tornou-se a força bruta um meio
comunicacional, o qual pouco atenta às necessidades dos que ali vivem e
muito, porém, corroboram para o desenvolvimento dos aparatos de poder.
O Brasil, mesmo frente a mobilização mundial mediante os Direitos
Humanos, e a constitucionalização dos mesmos, ainda se encontra deficitário
em matérias de propriedade e posse da terra, quanto se envolve
circunstâncias resultantes da concentração de renda. Neste diapasão,
149

concretizar planos sociais ainda é um desafio enorme para o Poder Público,


mas não impossível se se contar com das instituições de Justiça, Judiciário e
sociedade, que não devem apenas tomar posição de pressionadoras, mas de
conscientizadoras da finalidade social e funcional da propriedade, superando
a concepção absoluta, econômica e individualista da terra, caminhando,
assim, rumo à utilidade e bem-estar comum.
Embora a realidade em questão não seja palatável, cabe compreender,
porém, que a mesma caminha para a quebra de determinados padrões pré-
estabelecidos juridicamente. Os movimentos sociais da década de 90, por
exemplo, abriram espaço para o questionamento de determinados aspectos
sobre a terra e a concepção de propriedade, corroborando para a maior
expressividade da advocacia popular, a qual atua não conforme a rigidez do
Direito, mas em constante articulação com o cotidiano, tendo adjetivação de
“popular” não à toa. Parte-se de uma nova perspectiva de análise do Direito,
onde os sujeitos deixam de ser quem dele fala, para serem quem da realidade
vive: seria um panorama para além de uma ponte entre sociedade e justiça,
mas a própria abertura de caminhos para o acesso da mesma (GOHN, 2011).
Tais instituições promovem finalmente a noção de que os que vivem na
pele a realidade são, de fato, pessoas legítimas para tratarem de suas
realidades e para, inclusive, afirmarem o que é a desigualdade e o quem é o
Quilombo (TRECCANI, 2006). Nem todas as instituições de justiça, porém,
vislumbram as remanescentes de tal forma, já que, por vezes, estão tomadas
de valores e visões clássicas do Direito, que não questionam os instrumentos,
mas os aplicam sem maiores reflexões.
150

Segundo Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008), os movimentos


sociais no campo foram cruciais para tratar uma visão para além do
clientelismo, onde as lutas étnicas e a consciência ecológica fosse pautada
para além de uma visão de terra baseada meramente em questões político-
administrativas, ou seja, seus desdobramentos propiciaram uma associação e
luta que escapassem da até então maneira de transpor as comunidades
tradicionais perante o Poder Público.
É fato, porém, que as conquistas até aqui obtidas, principalmente por
meio da colaboração das instituições da advocacia popular, não foram
exclusivamente suficientes para pôr de lado os aparatos burocráticos-
administrativos, de maneira tal que estes acatassem todas as propostas
demandadas. É nessa medida, assim, que as tensões não se findaram com o
comprometimento de certas instâncias, haja vista que a problemática de
terras provém de uma histórica disparidade, onde a apropriação específica
dos territórios, como os quilombolas, ainda assim não seria abarcada por
seus desígnios próprios (ALMEIDA, 2008).
A diversidade, assim, torna-se matéria complexa, pois não basta a
simplória identificação da relação tradicionalmente estabelecida entre
comunidades e recursos naturais, mas, sim, necessita-se de uma análise dos
conflitos que refletem diretamente nos direitos e nas relações coletivas dos
povos tradicionais, pautando-se que as terras identitariamente ocupadas
devem ser amparadas por um mecanismo jurídico para além do civilista e,
ademais, que considere essas mudanças do aparato estatal e tendências dos
movimentos de mobilização (ALMEIDA, 2008).
151

Tal fato é constatado, inclusive, por meio das complicações transpostas


pelos órgãos brasileiros no trato das demandas quilombolas, os quais
afirmam não haver precisão nos conceitos de “terra tradicionalmente
ocupada” e nos critérios de autodefinição, promovendo, assim, a inegável
procrastinação do reconhecimento jurídico-formal dos povos em conflitos, já
que haveria uma imprecisão na generalização das regiões tensionadas e haja
vista que, em breve interpretação, poderia haver informações quantitativas e
técnicas que poderiam ser burladas para efeito de regularização ou reforma
agrária (ALMEIDA, 2008).
Outro aspecto de relevância primária seria as diferentes formas de se
relacionar com a terra que, em regra, não são difundidas pelo direito
brasileiro, de maneira que se acate como relação jurídica apenas o que se
enquadrar na matéria do proposto direito civil – e, quiçá, do antigo regime
civilista. Os laços solidários, assim, ainda não seriam maneira legítima para
se controlar recursos básicos, sendo as normas locais e as delimitações
coletivamente reconhecidas indiferentes para a atuação do Judiciário e do
próprio Estado.
Para Alfredo Wagner Berno de Almeida (2008), aliás, isto não é
historicamente destituído de fundamento, já que as terras em questão dizem
respeito à própria exclusão colonialista, onde os negros fugidos eram os
sujeitos que passavam a ocupar as regiões, principalmente as de área
interiorana. Sendo assim, há uma constância tradicional do Direito – e
colonial, por consequência –, de tentar afastar estes do papel de detentores
de algo, já que o contexto agrário e fundiário brasileiro demonstra inegável
152

extermínio da população, até então, de escravos, os quais, em sua maioria,


como já abordado, eram negros, havendo relação direta entre o poderio da
propriedade com o racismo encabular, devido a articulação mercantil com a
restrição da identidade de quem diferia do poder econômico, ou seja, de
quem era privado, desde os primórdios do Brasil, de sua existência política.
Trata-se, na verdade, de uma propriedade, de uma terra que se
revela como condição de existência desse grupo na sua
singularidade e não no aspecto patrimonial; tanto que a nota
que se dá, geralmente, é de indisponibilidade, sob uma forma
ou outra, porque é um território que não se destina ao
comércio; mais uma vez tiramos esse bem da mercancia, que
se destina não só às gerações atuais, mas também às gerações
futuras, exatamente pela possibilidade de transmissão desses
valores que orientam o grupo, na atualidade, e que vão sendo
reformulados (ALMEIDA; PEREIRA, s.d., p. 245-246).

O território, sendo assim, é elemento essencial, que integra a identidade


de grupos e identifica seus membros por meio da própria existência da
coletividade. A terra, portanto, é base para toda e qualquer postulação que
envolva o quilombo, pois é esta condição de vivência, mas, mormente, de
existência. A simbologia que envolve e evidencia a cultura, a economia e a
própria relação social dos grupos em questão são, indiscutivelmente,
superiores a toda e qualquer análise externa e (des)vivida das condições que
a caracterizam. É deste aspecto, inclusive, que o sobrepujar remanescente se
faz necessário, pois não se trata de um elemento do campo imaginativo e
153

meramente atemporal. Diz respeito, porém, a uma permanência de


identidade, que colabora para os resgates dos valores ali nascidos e, ademais,
do próprio papel social que a diversidade assume (TRECCANI, 2006).

Conclusão

A atuação da magistratura, mesmo após a compreensão da posição


funcional da propriedade no ordenamento pátrio e de sua necessidade de
aplicação mediante as questões de étnico raciais, não parece ter espelhado
como fonte para suas decisões o histórico de concentração de terra no Brasil
e em estados como o Maranhão.
É nesta medida, com isso, que se compreende que deixar de lado o
vislumbre deficitário é omitir-se perante a realização de direitos, ignorando,
ademais, a importância do juiz enquanto intérprete do Direito, ao reduzir a
capacidade de concretude direitiva por parte do judiciário, tal como se a
Constituição fosse mera abstração ao pautar princípios.
Mexer com a propriedade privada é maneira viável para tratar da
desigualdade histórica de divisão de terras, sendo a regularização de
comunidades forma legítima para se começar a modificar tal realidade, visto
a emergência da situação tratada que, sobretudo, colabora não para a garantia
do morar, mas para o fortalecimento do excluir por meio da ética do
mercado e do próprio ditame do poder através do capital.
É através disso, portanto, que se afirma que o emprego da identidade
enquanto critério, e do viés comunitário como relação com a terra, embora
154

em constante inquirição, são legítimos aplicadores de direitos. A não


observância da autoafirmação, assim, é um desrespeito não só ao modo de
vida das comunidades em si, como também clara negação social dos modos
de vida que divergem da sociedade moderna.
A diversidade, inquestionavelmente, beneficia a coletividade por meio da
memória cultural, histórica e patrimonial abarcada e esta diz respeito à
própria proteção da identidade da humanidade como um todo (TRECCANI,
2006).
A importância, assim, dos que se propõem a discutir tal aspecto e a
articular com os sujeitos dos movimentos, vislumbra-se na necessidade de
alardear o Estado brasileiro sobre sua incapacidade de relacionar-se com as
demandas étnicas, onde o desenvolvimento nacional se torna
inquestionavelmente prejudicado ao ignorar a voz dos que não tem alcance
para além de seus meios.
A advocacia popular, assim, através da reconstituição dos espaços
públicos, consolida o respeito aos direitos humanos, promovendo maior
participação daqueles que, no aspecto cidadão, foram calados, compondo a
leitura conflitiva não como negação da propriedade, mas como reafirmação
desta, de modo que, de fato, esta reitere seu papel funcional, e não
simplesmente mercantil. Cabe enfatizar, porém, que estas também não estão
imunes a problemas administrativos e burocráticos, circunstância que, mais
uma vez, confirma a importância de se elencar enquanto sujeitos não os que
do Direito vivem, mas os que vivem as consequências da aplicação do
Direito.
155

Referências

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WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 3. ed. rev.


atual. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
158

ENTREVISTAS
159

Entrevista com Yuri Michael Pereira Costa, Defensor Público da União


no Estado do Maranhão

Ruan Didier Bruzaca (R. B.): A questão quilombola tem ganhado nos
últimos tempos grande repercussão, bem como questionamentos, a exemplo
da ADIN 3239 e a PEC 215. Paralelamente, conflitos fundiários aumentam,
resultando no judiciário enquanto palco de disputa. Diante desse cenário,
trazemos alguns questionamentos. Primeiro, quais as suas impressões a
respeito da questão quilombola na atualidade?

Yuri M. P. Costa (Y. C.): No Brasil, os direitos dos quilombolas são


direitos ainda frágeis e em construção. Infelizmente, a previsão
constitucional de proteção aos quilombolas, sobretudo quanto à posse e à
regularização dos territórios ocupados tradicionalmente, não se fez
acompanhada da estruturação institucional que lhe dê suporte. Apenas para
exemplificar um desses problemas institucionais, o INCRA geralmente trata
a defesa do território por quilombos como se fosse uma luta fundiária, típica
da reforma agrária, quando em verdade, essas são dimensões absolutamente
distintas, quando não opostas. Por outro lado, os agentes públicos
responsáveis pelo planejamento e pela implementação de políticas voltadas a
essas comunidades resistem à uma mais radical reformulação do Estado,
tendente à efetiva defesa dos quilombos. Entendo esse aspecto fundamental
para o entendimento dos entraves ao acesso a direitos pelos quilombolas.
Muito pouco serve a previsão normativa de garantias ou a determinação de
160

competências na burocracia estatal se não houver um redirecionamento


ideológico. O Estado que hoje tem o dever de salvaguardar os quilombos é o
mesmo que, histórica e sistematicamente, estigmatizou, perseguiu e mesmo
eliminou os homens e as mulheres herdeiros do sistema de cativeiro. A
superação de uma mentalidade escravocrata e racista é um passo
fundamental para a efetiva garantia de direitos aos quilombolas.

Jordana L. D. A. Rosa (J. R.): Como tem sido a atuação da DPU com
comunidades quilombolas?

Y. C.: Em âmbito nacional, a Defensoria Pública da União (DPU) vem


tentado articular sua atuação na defesa de comunidades tradicionais
quilombolas. Há 2 anos, por exemplo, houve a constituição de um Grupo de
Trabalho voltado à defesa de grupos tradicionais, denominado “GT
Comunidades Tradicionais”, composto por um defensor público federal de
cada região geográfica do pais. Represento atualmente a região Nordeste
nesse grupo. O GT tem boa parte de sua atividade voltada à defesa de
quilombolas, povos de terreiro e da população brasileira afrodescendente de
modo geral, concentrando sua atuação em uma dimensão macroestrutural.
Exemplos dessa dimensão é a política de cotas para negros em concursos
públicos e a promoção da liberdade e da diversidade de religiões e
religiosidades. No âmbito mais específico, casuístico, temos a atuação dos
chamados Defensores Regionais de Direitos Humanos, lotados nas diferentes
Unidades da Federação e com atuação prioritariamente coletiva. Nesse caso,
161

o foco principal é a resolução extrajudicial de demandas envolvendo


quilombolas, com destaque para a certificação da comunidades como
quilombola, a regularização fundiária de territórios e o acesso a políticas
públicas. Sendo necessário, há a provocação do Poder Judiciário na defesa
dessas comunidades.

J. R.: Geralmente, em que tipos de ações judiciais envolvendo quilombolas a


DPU tem atuado?

Y. C.: Predomina na atuação da DPU ações judiciais de natureza coletiva,


com destaque para a ação civil pública. O objeto dessas ações é variado.
Temos, por exemplo, demandas movidas contra a Fundação Cultural
Palmares, para dar regularidade ou rapidez ao procedimento que certifica a
autodeclaração de coletividades como quilombolas. Há ações que buscam
viabilizar o acesso de quilombolas a políticas públicas, sobretudo ligadas à
educação, à saúde, à moradia e à eletrificação. Outro relevante eixo de
atuação são demandas possessórias ou de regularização fundiária de
territórios, quer provocando o Judiciário em nome da comunidade, quer
defendendo os quilombolas em ações movidas por particulares, por empresas
ou pelo próprio Estado.

J. R.: Quais os desafios e as dificuldades que tem se deparado ao atuar em


conflitos envolvendo quilombolas?
162

Y. C.: Na esfera administrativa, ou seja, fora do Poder Judiciário, creio que


os desafios são de duas ordens principais. Por uma via, penso ser
inquestionável o quanto é reduzida a estrutura institucional voltada à
assistência aos quilombolas. Nunca houve, concretamente, investimentos em
recursos físicos e humanos necessários à implementação das garantias dos
quilombos previstas constitucionalmente. A parca estrutura do Estado é, por
si só, fator de sistemática lesão aos interesses dessas comunidades
tradicionais, intensificando e, não raras vezes, produzindo situações de
conflito. Há, de outra parte, um componente ideológico que densamente
dificulta a resolução dos conflitos. Os agentes públicos e mesmo as
instituições responsáveis em salvaguardar os quilombolas reproduzem
preconceitos que trazem invisibilidade e marginalização aos grupos
tradicionais, por vezes com forte componente racista. Esse é um desafio por
demais complexo, pois, quase sempre, essa ideologia não é evidenciada de
forma explícita, mas velada. No âmbito judiciário, o cenário não é melhor. A
morosidade da Justiça, a dificuldade no efetivo cumprimento de decisões e
sentenças de magistrados e a pouca afinidade do Judiciário com a adequada
apreciação de direitos de grupos tradicionais, por exemplo, dificultam
bastante a defesa dos interesses de quilombolas em situação de conflito. A
judicialização de casos no âmbito federal, infelizmente, não tem contribuído
muito para a resolução dessas demandas. Não raras vezes, há indeferimento
de tutelas de urgência pleiteadas em favor dessas comunidades e, bem mais
reiteradamente, quando há a determinação de obrigações pelo Estado, tal
como o dever do INCRA de concluir uma regularização de território
163

quilombola, há explícito descumprimento da decisão por anos a fio,


convertendo-se tal obrigação, tão vital aos quilombolas, quando muito, em
pena pecuniária.

R. B.: Qual a sua avaliação a respeito dos conflitos fundiários no Maranhão


envolvendo quilombolas?

Y. C.: O Maranhão possui peculiaridades quando se fala em comunidades


tradicionais quilombolas e nos conflitos fundiários que as atingem.
Historicamente, nosso estado recebeu um imenso contingente de negros
escravizados nos séculos XVIII e XIX, que se espalhou por diferentes
regiões, estruturando o trabalho servil no campo e nas cidades. A derrocada
da economia de exportação no final do século XVIII e ao longo da primeira
metade do século XIX, por sua vez, reconfigurou drasticamente nossa
sociedade e a forma de organização da economia e do trabalho. Em algumas
localidades, como Alcântara, por exemplo, houve o literal abandono de
fazendas por senhores, deixando-as na posse de escravos. A resistência de
negros e de negras ao cativeiro, por outro lado, foi constante durante a
vigência do regime de escravidão. A organização de quilombos, nem sempre
fixos, e sua mescla com aldeamentos indígenas, produziu uma diversidade
de formas de ocupação de terras do interior do Maranhão difícil de se
delinear com clareza. De outra parte, imperou (e impera) no Maranhão o
padrão de concentração de terras por latifundiários, formalizado com a lei do
império de 1850 e recrudescido, no Maranhão, na segunda metade da década
164

de 1960. Isso produziu um radical descompasso entre a propriedade de terras


formalmente registradas e a ocupação efetiva de imóveis rurais. A previsão
constitucional de 1988 da regularização fundiária de quilombos trouxe
tensão a esse cenário, já conflituoso em demasia. Se por um lado grupos
tradicionais se organizaram e reivindicaram o direto ao território, por outro
latifundiários e grileiros entenderam que as terras que possuíam no papel
estavam sob ameaça. A quantidade e a qualidade dos litígios se modificou,
muitas vezes direcionando-se a assassinatos de lideranças quilombolas e à
expulsão de comunidades de terras ocupadas há mais de uma centenas de
anos.

R. B.: Na sua opinião, quais as implicações dos conflitos fundiários na


garantia de direitos a quilombolas?

Y. C.: Os conflitos ameaçam diretamente o território ocupado


tradicionalmente pelos quilombolas. Para essas comunidades, território não
significa terra, na conotação individualista e capitalista com que tratamos
esse conceito. Mais do que lugar de plantio ou de moradia, o território é o
ambiente de reprodução da comunidade, marcado, estruturalmente, por sua
relação com a natureza, com a religiosidade e com os membros do grupo. A
terra é substituível, já o território não. Não há, por isso mesmo, identidade
quilombola sem território. O conflito fundiário no quilombo coloca em
xeque a comunidade como um todo, não raras vezes desestruturando-a. A
partir de minha atuação pela DPU, percebo evidente, por exemplo, a
165

dificuldade que uma comunidade quilombola tem de reproduzir suas práticas


e saberes, inclusive numa perspectiva intergeracional, sempre que ameaçada
de violência em seu território e ou de despejo. No caso brasileiro, a
instabilidade gerada nas comunidades pelos conflitos ganha ainda maior
amplitude diante da ineficiente, desviada e morosa política de regularização
fundiária protagonizada pelo INCRA e pelas outras instituições públicas
responsáveis pela regularização fundiária no Brasil.

R. B.: Qual a sua avaliação a respeito do uso de ações possessórias por


proprietários face a comunidades quilombolas?

Y. C.: No Maranhão, o uso de ações possessórias por proprietários, tanto por


particulares quanto por empresas, tem prejudicado bastante o acesso de
grupos quilombolas ao território, mesmo quando ocupados por décadas ou
mesmo durante séculos pelas comunidades tradicionais. Impera ainda,
sobretudo nas comarcas do interior, uma concepção de direito fundiário
eminentemente formalista e cartorial. A presunção da propriedade e da posse
de quem possui registro das terras em cartório tem se apresentado quase
absoluta nas ações aqui comentadas, salvo raras e louváveis exceções. O
componente quilombola na maior parte das vezes sequer é considerado
nestas ações, mesmo quando a coletividade já possui sua autodeclaração
certificada pela Fundação Cultural Palmares e quando já iniciado o processo
de regularização de terras junto ao INCRA ou ao ITERMA. A mesma
situação é observada, por vezes, no Judiciário federal, havendo a remessa ou
166

a devolução de autos às comarcas do interior, por entender o magistrado que


o conflito possessório, mesmo a envolver grupo quilombola, não possui
comunicação com o procedimento de regularização das terras ocupadas
tradicionalmente, deixando de atrair, segundo esse entendimento, a atuação
do INCRA e, por consequência, a competência da Justiça Federal para
processar e julgar essas ações.

R. B.: Você acredita que as ações possessórias consistem em um instrumento


judicial adequado para se debater e reconhecer os aspectos étnicos e sociais
que configuram uma comunidade quilombola?

Y. C.: Absolutamente não. As ações possessórias, seja pelo seu


procedimento seja pelos institutos jurídicos nela presentes, não foi
historicamente construída para dar o devido tratamento à defesa de
territórios étnicos. Primeiro porque, como já mencionado, confunde o
território com a terra. Ao assim fazer, enfraquece toda a dimensão étnica
presente no território tradicional, reduzindo-o a um imóvel, por isso mesmo
substituível – abrindo a possibilidade, por exemplo, da realocação de uma
comunidade quilombola – ou mesmo indenizável. Dessa forma, regra geral,
os territórios étnicos tornam-se disponíveis nas ações possessórias. Prova
disso é a desvinculação que o Judiciário faz, não raras vezes, entre o conflito
possessório entre a comunidade e particulares e a regularização do território
quilombola pelo Estado. No meu entendimento, não há como separar essas
duas demandas. De outra parte, as ações judiciais de natureza possessória
167

reformam um conceito de propriedade eminentemente tradicional. Ali a terra


disputada é tratada somente em sua dimensão privada e por isso mesmo
excludente – a posse de um exclui posse dos demais. Da mesma forma, as
ações possessórias reforçam uma noção capitalista da propriedade, já que a
própria qualidade do imóvel é medida pela sua produtividade e por seu valor
de mercado. Esse referencial é diametralmente oposto aos territórios
tradicionais, atrelados, essencialmente, ao uso coletivo da terra e à
vinculação do território à reprodução material e imaterial da própria
comunidade.
168
169

Entrevista com Hilton Araújo de Melo, Procurador da República no


Estado do Maranhão

Ruan Didier Bruzaca (R. B.): Doutor Hilton, bom, é, nós estamos aqui
representando o PAJUP, a UNDB e a FAPEMA, em um projeto de pesquisa
voltado a ações possessórias envolvendo quilombolas e nós queríamos
inicialmente lhe perguntar como é que é a atuação do MPF em relação a
conflitos possessórios envolvendo quilombolas.

Hilton Araújo de Melo (H. M.): Bom, historicamente, o Ministério Público


Federal do Maranhão tem se preocupado, dá uma atenção bem especial a
essa temática. O Estado do Maranhão é disparado a unidade federada no país
que mais tem pedidos em tramitação pra a posse, o auto reconhecimento, a
posse, a certificação pela Fundação Cultural Palmares. Busca junto ao
INCRA ou ao ITERMA, que são Institutos rurais que nós temos no estado,
pra de alguma forma identificar, demarcar e prover de fato esse pessoal com
os territórios na forma do ADCT 68. Já é de muito tempo que as primeiras
comunidades foram identificadas, foram tituladas. Um case muito
importante e histórico, e disso eu me recordo de uma época que eu fui
analista, assessor aqui do Ministério Público Federal, há uns 10 anos atrás, é
o case de Alcântara. A titulação das terras em Alcântara não foi tarefa fácil,
uma ação civil pública absolutamente difícil, conflituosa, porque tinha toda a
questão da segurança nacional, que envolvia o Centro de Lançamento de
Foguetes de Alcântara, mas historicamente, desde a atuação dos
170

procuradores Nicolau Dino e Alexandre Silva Soares. O Ministério Público,


sim, tem procurado a tutela, inclusive, jurisdicional pra resolver esses
problemas. Na ordem do dia, pra nós, aqui no Ministério Público Federal, é
fazer de fato a defesa territorial. É o primeiro aspecto que a gente tem se
preocupado. A partir do auto-reconhecimento, o INCRA tem que ser instado
a promover os estudos, pra identificar qual é a terra tradicionalmente
ocupada por eles, pra saber se eles realmente preenchem os requisitos que a
Constituição lançou, da ancestralidade, de algum aspecto que remeta ao
aspecto quilombola histórico, apesar de hoje o próprio Ministério Público
Federal já tá discutindo muito a forma como esse conceito evoluiu, do que é
de fato ser remanescente de quilombo. Mas, depois da busca territorial,
outros grandes aspectos têm circundado a temática de quilombola. Primeiro,
os conflitos fundiários. Conflito de posse entre fazendeiros, posseiros de
modo geral, e comunidades que fazem uso, às vezes, de propriedades para
além da sede, digamos assim, das suas comunidades, pra extrativismo, e
outras culturas relacionadas a atividade tradicional, de conhecimento
tradicional reconhecido. Esses conflitos sempre deságuam na Justiça
Federal, onde o MPF, além de custus legis, atua também na defesa irrestrita
dos direitos territoriais dessas comunidades. Não é pura e simplesmente
defender o solo, mas sim o que ele representa pra manutenção dessas
comunidades. Então o modo de viver, de fazer, tem que ser mantido e é
sempre de acordo com o meio ambiente que eles necessitam pra se manter,
pra subsistir basicamente, e subsistir tá sendo uma tarefa das mais árduas pra
esses povos aqui no Maranhão. Isto não apenas pros quilombolas, nós temos
171

visto aí até em mídia nacional escândalos envolvendo conflitos fundiários


das mais variadas espécies, inclusive com as comunidades indígenas. Além
disso, serviços públicos, de saúde, de educação, são sempre muito avivados
aqui. Então, saber qual o papel do Governo Federal, do Governo Estadual,
ou mesmo da esfera municipal, pra prover esses serviços, essas ações e esses
serviços básicos de saúde e de educação também é assunto corriqueiro aqui,
e aí a gente precisa ver se a gente tá falando do sistema único de saúde, de
alta complexidade, que a gente vai demandar um determinado ente, ou se é o
de baixa complexidade que a gente pode conseguir junto ao município, esse
tipo de coisa também tem sido bastante enfrentado. Apenas no meu ofício, a
gente não trata de aspectos criminais de improbidade, mas o recurso que é
enviado pelo governo federal pra prover programas sociais como educação e
saúde são bastante relevantes, e eles sempre têm uma rubrica, um valor mais
alto do que se o mesmo serviço fosse prestado pra comunidades urbanas,
comunidades rurais de modo geral. Quando esse tipo de recurso sofre algum
embaraçamento, má gestão, ou mesmo desvio, vai pros colegas aqui que a
gente chama dos Ofícios de Combate ao Crime e à Corrupção, que são outra
esfera, já vai atuar de repente sobre o gestor que não prestou contas, enfim,
uma série de outras temáticas também. Por último, e esse é um dos temas
que eu tenho me deparado ainda em reflexão, tenho conversado com colegas
no Brasil inteiro, que é a questão da omissão por parte de grandes
empreendedores, do dever de ouvir as comunidades na forma da Convenção
nº 169 da OIT, a oitiva que tá lá é uma oitiva bastante específica e distinta
das chamadas audiências públicas, que tem em qualquer licenciamento
172

ambiental nas resoluções CONAMA. Para além de você chegar numa


determinada comunidade, comunicar que o empreendimento está chegando e
discutir com elas compensações, a OIT diz mais, e isto tem sido
desrespeitado, pelo menos pontualmente aqui no Estado do Maranhão. Falta
muita consciência por parte de empreendedores, por parte de quem licencia,
por parte de quem faz os estudos, as empresas socioambientais, e mesmo das
comunidades que as vezes ignoram o próprio direito, que é de ser ouvido
previamente ao empreendimento para saber se a comunidade concorda ou
discorda, e, se concorda, em que condições. Eu me lembro de pelo menos
dois empreendimentos aqui relacionados à instalação de linhas de
transmissão em que a gente percebeu, conversando tanto com o
empreendedor quanto com as comunidades, que não houve um respeito
efetivo pra esses requisitos da OIT, que inclusive foi internalizado no direito
brasileiro, salvo engano em 2002. Então basicamente são essas principais
temáticas. A gente busca sim por muita demarcação, por muita titulação de
terra quilombola, a quem cabe ao INCRA empreender os esforços no sentido
de identificar o eventual direito dessa comunidade e provê-la com a Terra
respectiva. Saúde pública, educação, serviços sociais, e, para além disso, a
OIT que eu mencionei.

R. D.: Você falou uma questão muito interessante que, em juízo, o


Ministério Público, para além de buscar a tutela da posse, ele dá um
significado maior por conta da questão étnica envolvida. Uma das questões
que a gente levanta aqui nos problemas de pesquisa é o fato de os conflitos
173

fundiários serem traduzidos em ações possessórias, e, em termos civilistas,


as ações possessórias são eminentemente técnicas, e voltada para a proteção
da propriedade, ou seja, vai operar em termo de posse, de propriedade, de
esbulho, turbação, termos jurídicos que sempre serão voltados a proteção da
propriedade ou de uma posse voltada pra fins eminentemente econômicos.
Em relação a quilombolas, por exemplo, posse, se nós formos entender como
animus de ser dono, os quilombolas já não são donos. Eles são uma
coletividade, um grupo étnico, que tem raízes históricas ou culturais naquela
localidade. Como é que a gente lida com esse choque de traduções
envolvendo, por um lado, um direito que é produzido de forma civilista,
voltada pra proteção da propriedade e de interesses individuais e, por outro,
um direito de conteúdo étnico, que não necessariamente corresponde a
posse, a propriedade, e esses direitos que são protegidos.

H. M.: A primeira compreensão que a gente tem que ter pra resolver esse
conflito aparente, digamos, é sermos bastante consciente que só existe um
ordenamento jurídico brasileiro. As leis existem várias, mas o ordenamento,
o que dá unidade pra esse sistema, ele é uno. Então, é preciso que a gente
sempre concilie quando a gente se deparar frente a seres que aparentemente
são adversos. Enquanto, como você pontuou, a visão de posse na visão mais
tradicional ao nosso direito, que acompanha bem a nossa história, é civilista
e patrimonialista, inclusive de séculos, ela é sim posse sempre relacionada ao
direito de propriedade e a um direito de produzir, um direito de produzir do
ponto de vista do enriquecimento, de produção econômica propriamente dita.
174

Essa posse, que é tutelada com os institutos do direito civil tradicional, ela
precisa ser dialogada, ela precisa conversar, e é um esforço frequente no
Ministério Público Federal quando se posiciona em conflitos possessórios. É
saber reconhecer que a realidade dessas comunidades quilombolas é bem
distinta na forma como elas visualizam a relação com a terra do que de um
modo geral o direito civil costuma fazê-lo. Muitas vezes o Ministério
Público Federal já conseguiu acordos onde se preservou a posse, com o que
a gente quase chamou de sobreposições de posse. É saber que o fazendeiro
às vezes empreende criação de gado em um território que ainda é discutido,
pra saber se ele vai ser reconhecido e titulado em favor da comunidade, mas
enquanto o conflito fundiário persiste no aguardo de uma decisão
administrativa, que pode redundar numa eventual desapropriação. O que a
gente tem procurado é disseminar a ideia de que a coabitação é possível,
desde que haja uma aceitação de que, num pasto, por exemplo, é possível
que quebradeiras de coco adentrem pra extrair o seu sustento através do
extrativismo. Enfim, é possível fazer com que ao mesmo tempo que um
fazendeiro mantenha provisoriamente parte de um seguimento de posse, ele
também tem deveres para com quem coabita aquele ambiente. Por exemplo,
é o dever de não matar as piabas, não matar a palmeira que tá em
crescimento, não devastar. Tudo isso tem a ver com a dinâmica de direitos
que tá inserida naquele espaço. Então o que a gente tenta é, com base no
discurso, convencer as partes e o juízo de que a dinâmica dessa posse é vista
de forma distinta pelos dois lados. E como você bem falou também, para o
quilombola não existe essa ideia de você conseguir titular a terra pra eles e
175

eles dizerem amanhã “opa, esse lote é meu e aquele lote ali vai ser do Senhor
Raimundo, e aquela do Senhor Antônio”. Não, a posse eles veem de uma
forma muito coletiva, então eles não tem necessidade de fazer esse recorte de
terra tão típico do homem branco e da história civilista tradicional nossa.

R. B.: Você tem visto em juízo, tanto pelo judiciário, quanto pela parte
contrária, ou por outras instituições do sistema de justiça envolvidas, essa
compreensão a respeito dessa posse diferente e que merece proteção
específica?

H. M.: A gente tá aqui num bojo de uma pesquisa academia científica, que a
gente precisa falar o que nós hoje vivemos pra quem sabe vislumbrarmos
onde chegaremos. A resistência de determinadas instituições, em especial o
judiciário ainda é notada. O que existe, na verdade, são magistrados com
perfil mais tendente a um lado e um perfil mais tendente a outro. Eu acredito
sim que é cada vez mais comum que essa discussão perpasse no processo de
maturação, ou mesmo no processo de iniciação do magistrado. Os cursos de
vitaliciamento, que existe tanto no Ministério Público, quanto na
Magistratura, de responsabilidade das escolas de cada ramo, eles têm se
preocupado cada vez mais. Eu mesmo tenho uma proximidade muito grande
com os cursos que acontecem, por exemplo, na sede do Tribunal Regional da
Primeira Região, e na sede do Ministério Público Federal em Brasília. Lá, os
capacitadores sempre se preocupam em deixar para os cursos de formação
um espaço onde é possível fomentar esse amadurecimento por parte dos
176

membros pra que, de repente, uma pessoa que sempre morou na cidade, é
branco, é de boa condição, que nunca foi, por exemplo, pros recantos do país
mais distantes, como, por exemplo, na Amazônia, na Amazônia legal, de
modo geral, proceda a uma análise sociológica diferente. Então, tanto na
etapa do concurso, como após a entrada na carreira, eu tenho verificado que
vem tido sim um esforço pra, digamos, as novas gerações estejam cada vez
mais abertas a esse debate amplo a respeito dessa questão. Mas, sim, a
prática ainda assim nos revela surpresas não tão gratas, se é que me entende.

R. D.: Então, por fim, eu queria fazer uma pergunta mais específica pro
objeto da gente, que é o Baixo Parnaíba maranhense; Este é marcado por
diversos conflitos fundiários, principalmente provocados pelo latifúndio,
pelo agronegócio, pelo cultivo de soja, eucalipto, e em muitas situações a
gente consegue perceber uma articulação local de proteção dos interesses
desses grupos, e uma certa criminalização ou desconsideração de grupos
camponeses, e quilombolas especificamente. Esse contexto em que tá
inserido o Baixo Parnaíba maranhense, como é que você analisa e como
melhorar essas situações de conflito?

H. M.: Especificamente em relação à nossa região ali do Baixo Parnaíba, é


uma região que foi digamos que afetada por novos grandes
empreendimentos num passado já não tão distante. A criação de gado
começou de uma forma muito mais intensa, digamos assim, na ampliação
dos pastos vindo do sul do estado e do Piauí principalmente, e eucalipto, que
177

eu lembro que é um problema que surgiu não mais do que dez anos pra cá,
como empreendimentos como a Suzano Celulose, que inclusive fez uso de
um expediente que o Ministério Público Federal impugnou na justiça, que é
o fato de elas estarem, digamos assim, disseminando pequenos
empreendimentos de forma recortada, tanto do lado maranhense, quanto do
lado do Piauí, de forma a fugir de um licenciamento mais global. Então a
preocupação histórica do Ministério Federal foi suscitar que o IBAMA,
enquanto instituto federal, pro licenciamento ambiental, quando se reportar a
fatos de danos regionais, a potencial dano regional, pra que ele licencie e
faça com que a política de licenciamento desses empreendimentos levem em
consideração o todo, inclusive a enorme gama de comunidades que existem
nessa região. Brejo é um exemplo que me vem muito a cabeça, pra que fazer
com que essas ações, essas discussões relacionadas às comunidades
quilombolas encontrem a sede própria pra eles, em um debate efetivamente
justo pro direito que elas pleiteiam, e evitar que mais uma vez a simples
ótica civilista tradicional predomine. Nós acreditamos, no Ministério Público
Federal, que quando a gente discute essas possessórias, discute no âmbito
desses conflitos fundiários o que é posse pro quilombola e o que é posse pro
fazendeiro, essa dinâmica ela é melhor tratada e, no caso do baixo Parnaíba,
essa resistência inicial nós percebemos por parte da Justiça Estadual. Nós
temos tentado, digamos assim, reverter, dar uma guinada no processo,
fazendo com que ações possessórias não mais sejam julgadas pela Justiça
Estadual, mas sim pela Justiça Federal. É um remédio que, se ainda não
178

adequado ou perfeito, é o que pelo menos se comata melhor como uma


solução de curto prazo.
179
180

Entrevista com Filipe Farias Correia, assessor jurídico do Centro de


Cultura Negra

Ruan Didier Bruzaca (R. B.): Filipe, como é a atuação jurídica do Centro
de Cultura Negra junto a comunidades quilombolas?

Filipe Farias Correia (F. C.): Na parte jurídica, sou eu e o Masson. Nós
somos assessores jurídicos lá do CCN, mas não necessariamente é só a gente
que compõe o grupo técnico que trabalha no projeto Vida de Negro, que é o
projeto com financiamento internacional, atualmente, da MISERIOR em
conjunto a Fundação Ford. Eu não vou saber precisar tecnicamente quem tá
em cada projeto, porque lá eles fazem a contabilidade, fazem um orçamento
geral e são as mesmas comunidades para os dois projetos, e fica um
financiamento mútuo. Nossa forma de atuação é o seguinte: há o
planejamento, onde as áreas são as que têm articulação com as pessoas do
CCN, porque na nossa forma de atuação a gente tem que ter sempre uma
abertura política para adentrar ao espaço. Então, nessas áreas geralmente
temos ligações com as pessoas que tão lá, por exemplo, o Ivo é quilombola e
algumas pessoas são lideranças quilombolas. Então, eles têm essa
articulação, não só a nível de CCN. Eles participam de outras entidades que
é articulação de quilombolas, e aí eles conseguiram essas comunidades que
são mais próximas, e com essas comunidades que são mais próximas se
elaborou uma lista da atuação também em relação a gravidade de conflito e
tudo mais. Essas comunidades foram divididas entre atuação direta e atuação
181

indireta, sendo que as de atuação direta são aquelas que nós atuamos
sistematicamente, ou seja, além de uma atuação processual, nós vamos lá e
conversamos com eles, nós vemos os problemas imediatos e tem toda uma
questão positiva do CCN, que sempre tá naquela comunidade. Já nas outras
comunidades, as indiretas, a gente tem uma atuação pontual. A atuação
pontual às vezes tem um processo, tem uma liminar saindo, a gente vai lá,
faz a atuação jurídica, faz a defesa, mas não necessariamente a gente vai
acompanhar até o final, ou seja, é meio que residual, até porque os recursos
são escassos, então é até uma deficiência que a gente tem. É porque a gente
deveria se articular com as outras entidades até para ver quando a gente
deveria atuar ou não nessas residuais. E a gente tá tentando começar a
conversar com a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e a Rede
Justiça nos Trilhos. O projeto até agora já tem um ano e até agora a gente tá
fazendo certas viagens de mobilização e algumas atuações pontuais em
processos, e fazendo levantamentos ainda para saber a situação e quais são
os processos. Então o lugar que a gente tem mais avançado em relação aos
processos é naquela região de Bacabal, da comunidade de Santarém, São
Pedro, mas a gente tá tentando dar prioridade para algumas áreas que tem o
conflito maior. Por exemplo, Matinha a gente não chegou a fazer uma
pesquisa aprofundada, a gente ainda não olhou processo, a gente tem o
número, mas ainda não foi lá ler, além da questão jurídica que é o assunto
imediato do projeto. Só para ressaltar que outras pessoas atuam, por
exemplo, quanto às políticas públicas que vão incidir diretamente na
comunidade quilombola. Aí é mais o trabalho do Ivo e da Célia, que pegam,
182

se articulam, vão ver como tão as implicações legais, perguntam para gente,
pedem essa assistência, e eles levam para comunidade essa explicação. É
uma forma de atuação mais informal, então a gente sempre faz essa atividade
extrajurídica, que não deixa de ser jurídica

R. D.: Tu teria conhecimento de como é a situação das comunidades no


Baixo Parnaíba, e se existe algum aspecto que torna aquelas comunidades
inseridas num contexto mais específico relacionado ao Maranhão como
todo?

F. C.: Tu diz em relação a violência a violação de direitos humanos?

R. D.: Sim

F. C.: Olha, o Baixo Parnaíba, por conversa. Não diretamente indo lá, mas
por conversa. Quando a gente teve a reunião com a SMDH, o que pareceu é
que lá em Barro Vermelho tem uma situação meio peculiar, tanto que tem
uma denúncia na Organização dos Estados Americanos, mas também não
caminha. Mas me parece que lá é um pouco mais grave, porque neste
conflito, existem pessoas não deixam incidir políticas públicas de jeito
nenhum. Parece que tem extração mineral, tudo irregular, não tem nada de
licenciamento ambiental e nada. Parece que lá é um pouco mais, não
bastante, mais grave que nas outras comunidades. Nas demais áreas, o que
me parece, no atual cenário, é que, apesar de ter esta estabilidade da questão
183

possessória, do direito à terra, o que me parece agora, no contexto


quilombola, é que não tá tão grave, sob o aspecto processual. Eles tão
conseguindo desenvolver suas atividades. De repente surge algum problema.
Mas Barro Vermelho, pelo que a gente escutou, tá numa situação bem
caótica mesmo, tanto que eles tem ido sempre nas mesas quilombolas, que é
nossa forma de atuação com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária, e
exposto a situação deles, que eles tem pedido até questão de cestas básicas e
eles não tão conseguindo desenvolver suas atividades agrícolas
rotineiramente, então eu destacaria essa assim para vocês.

Arthur Nunes Lopes Martins (A. M.): Quando tu falou que existia uma
atuação residual e uma atuação mais direta, quais são os critérios que vocês
usam? E a atuação residual pode passar a ser uma atuação mais direta de
vocês?

F. C.: É uma discussão recente que a gente teve, porque é financiado, então
a gente presta conta. Eu sei que as violações são inúmeras, mas a gente tem
que delimitar nosso campo de atuação até mesmo para ter efetividade na
nossa forma de atuação. A gente estava atuando com vários casos pontuais,
isolados, que estavam atrapalhando o andamento do projeto, e quando a
gente teve a conversa com o financiador, isso foi meio que destacado, que
não estava andando nossa atuação em relação às comunidades diretas. E aí, o
que acontece, a gente infelizmente atua nas indiretas só de forma pontual
mesmo, quando há uma situação grave de violação ou outra entidade não
184

atua em cima dela na atual situação. A gente sempre tenta dialogar com
outras entidades para ver se elas assumem.

A. M.: E quais são as comunidades acompanhadas?

F. C.: Chapadinha tem Barro Vermelho, Santa Quitéria, tem Cana Brava,
Riacho do Meio, Lagoa dos Patos, Santa Helena, Caruaras e Santo Antônio.
Aí Milagres, outro município tem Panelas. São 11 comunidades.

R. B.: E dessas comunidades, todas estão em conflito possessório?

F. C.: Do Baixo Parnaíba eu vou dizer para vocês, a gente já fez uma viagem
para lá, mais especificadamente para Santa Quitéria. Nossa atuação é meio
problemática, porque a gente depende dessa articulação política. Por
exemplo, quando eu fui lá, eu tive bastante saída de atuação para Cana
Brava. Mas, por exemplo, a gente foi lá em Caruaras, e cancelaram a
reunião. Já em Milagres, Panelas é uma família que se dividiu, é pequena, e
agora tem um problema que eles não tão mais nem se afirmando como
quilombola, então dessas comunidades bem aqui, somente a de Milagres.
Tem até uma discussão se a gente vai tirar elas do projeto ou não, porque a
gente não tá conseguindo se inserir. Elas foram colocadas no projeto por
causa da situação de conflito que tem lá, porque lá tem plantação de soja,
tem fazendeiros do sul. Quando a gente foi lá em Panela, chegou um cara
que era do sul que comprou terras lá, e já estava olhando e tudo mais, e aí
185

eles tão sempre nessa situação lá. A situação é bem conflituosa. Ainda não se
instalou o conflito frontal porque a comunidade ainda não bateu de frente.
Eles tão chegando ainda, mas a gente também não tem articulação política de
atuação dentro, não tem muita saída. Se a gente marcar uma reunião, eles
desmarcam, ou então não vão, e a gente não tem pernas para ficar tentando e
não conseguindo. A gente tem que tocar para outras comunidades

A. M.: Mas nas comunidades que vocês têm acesso, a atuação tá


judicializada ou existe alguma assessoria sobre o processo de demarcação,
essas coisas? Ou a atuação é realmente em ações judicializadas?

F: Olha, a gente atua no CCN de forma judicializada, com mais destaque nos
processos administrativos do INCRA ou do Instituto de Terras do Maranhão.
Só que os processos administrativos do INCRA, especialmente, geralmente
estão todos parados. Até se você for ver a dotação orçamentária prevista para
esse ano de 2017, praticamente o INCRA não vai funcionar. Não tem como
fazer nada com a dotação, então alguns locais aqui, algumas comunidades, o
CCN está chegando agora. Então, se existe processo, a gente não sabe
nessas. Por exemplo, de Milagres, não sabemos. Já em Cana Brava, tem
processo lá que eu já sou habilitado e eu sou o advogado oficial. Já as outras
aqui, praticamente todas do Baixo Parnaíba, informações mais detalhas vai
ser só Barro Vermelho, em Chapadinha, e Cana Brava, em Santa Quitéria.
186

R. D.: Filipe, como a gente já tinha adiantado, o projeto é sobre conflitos


possessórios. A gente quer analisar a atuação de todas as instituições de
justiça envolvidas para ver como elas tratam a questão da identidade do
território de comunidades quilombolas, e tu falou que em algumas você já
está atuando. Essa atuação, em ações possessórias envolvendo quilombolas,
como é que tu tem percebido a atuação das instituições do judiciário, do
Ministério Público Federal, da Defensoria?

F. C.: Dessas três que tu mencionou, eu só não vou falar sobre a Defensoria,
porque eu nunca tive contato com eles. Agora, do MPF, que é o competente
para áreas quilombolas, eles são muito bons, na verdade. Assim, era o
procurador Alexandre, e de conhecimento da vivência da relação quilombola
ele realmente entendia. Esse novo, o procurador Hilton, não tenho
conhecimento ainda. Eu tenho um caso que tá lá que a gente fez uma
denúncia, mas até hoje, por questões burocráticas, a gente não conseguiu ter
uma reunião com ele, e tem todos os empecilhos da forma de atuação. O
MPF tinha isso, eu achava, na minha percepção, que ele tinha o domínio
teórico e que tinha uma vontade institucional de contribuir. Já em relação ao
poder judiciário, nós temos posicionamentos diferentes em relação às
atribuições federal e estadual. Sobre qual é as atribuições da estadual, que
não necessariamente é a vara competente. Eles são muito influenciáveis
pelas autoridades locais, então muitas vezes tinha liminares contra as
comunidades, de despejo e uso de força policial, sem qualquer tipo de
contraprestação. A atuação que a gente tinha jurídica era pedir o
187

deslocamento para a vara federal, que a gente oficiava o INCRA, e pedia que
ele manifestasse interesse na causa e eles remetiam à vara federal, que é a 8ª
vara. Ele que concentra os processos e a atuação dele era de certa forma boa,
não vou dizer que era cem por cento, uma ou outra tinha algum problema,
mas muito melhor. Há uma diferença, é uma estratégia processual que é
muito válida. A gente vê que ele realmente tem uma ponderação na forma de
atuação, ele sabe que uma determinada liminar pode causar prejuízo em uma
certa comunidade, pode não se reestabelecer, de volta, caso a decisão seja
alterada, mas o grande problema é a demora processual. Às vezes a liminar
sai e a inércia das entidades que trabalham com direitos humanos, que às
vezes não atuam de forma eficiente e acontece que o processo fica na vara
estadual e aí acontece a possibilidade de despejo. Só depois que pede o
deslocamento de competência. Aí o dano já foi causado e a comunidade não
consegue se reestabelecer em determinada área!

A. M.: Como vocês encaram a atuação tanto do INCRA como do ITERMA?

F. C.: Na atuação do projeto com o ITERMA, é um pouco mais fraca,


porque não são áreas que a gente tem essa atuação política mais
intensificada, apesar de serem diretos. São até essas áreas do Baixo Parnaíba
que o ITERMA atua, se eu não me engano. Como a gente não tá tão
articulado, a gente não atua diretamente. Agora, a forma de atuação
institucional do INCRA é muito mais burocratizada. Não tem dotação
orçamentária, praticamente. As ações andam em enormes lapsos temporais,
188

que não dá nem para acompanhar. Às vezes a gente não sabe nem qual foi a
última manifestação que o INCRA fez em determinado processo. Já o
ITERMA não. Até mesmo pela legislação estadual ser mais
desburocratizada, não é tão amarrado. Eles fazem procedimentos jurídicos de
compra da terra e doam a terra. Não é a desapropriação quilombola em si.
Eles fazem a doação para o quilombola. Eles têm uma amplitude de atuação
melhor, e acho que eles tem um corpo técnico mais amplo também, tem um
recursos humanos melhor, mas isso também foi mais desse governo que a
gente viu o ITERMA. Tinham esses instrumentos jurídicos flexíveis, só que
antes desse governo, o órgão era totalmente desorganizado. Na instituição já
tinha os instrumentos, mas a forma de atuação era desregulada. Organizaram
os funcionários, de modo que há uma eficiência de sua atuação. Sempre tem
a questão da dotação orçamentária, mas ele funciona bem melhor que o
INCRA. O outro instrumento que vou ressaltar é a mesa quilombola, que é
um instrumento previsto por meio de uma portaria nacional, que é um
diálogo que os quilombolas fazem no INCRA, ou seja, eles vão lá, mostram
suas demandas, perguntam a questão no processo administrativo e o INCRA
dá respostas.

A. M.: E vocês estão sempre presentes na mesa?

F. C.: Sim. Nós somos a principal instituição que tá lá dentro, de voz dos
quilombolas para o INCRA. Recentemente, nós sempre questionamos
porque as outras entidades não compareciam à mesa, mesmo porque eles têm
189

o dever de comparecer à mesa. Nessa última não sei se porque tinha gente de
Brasília, apareceu gente de outras instituições. Se for para falar da eficiência
da mesa, ainda é fraca. A gente chega lá e sempre escuta não. Então a mesa é
um instrumento muito bom, de diálogo, mas ainda não tem uma eficiência
muito boa.

R. D.: Retornando para os conflitos possessórios, porque sempre quando a


gente discute direito civil, tem aquela parte da doutrina civilista que critica a
perspectiva civilista da propriedade e defende a visão constitucionalista em
relação a quilombolas. Como tu enxerga manter ou não uma comunidade
quilombola em uma localidade específica, em termos de posse e de
propriedade, de título de propriedade, que não são formas jurídicas que tem
relação com o que eles vivenciam na prática, ou seja, as relações que eles
estabelecem com a terra não são necessariamente definidas em termos de um
título de propriedade, mas sim uma ancestralidade um modo de viver ser e se
reproduzir?!

F. C.: Isso é uma questão interessante, porque os quilombolas têm isso. Essa
ancestralidade. Mas eles foram condicionados a esses instrumentos jurídicos
e eles estão se apropriando agora. Então, na Constituição tem o art. 68 do
ADCT, que é o principal artigo de comunidade quilombola. Eles vão falar
em artigo 68, “aqui é nosso”. Então eles se apropriaram daquilo por questão
de necessidade. É um discurso que veio para complementar, não teve a
substituição de um discurso por outro. Eles ainda têm a ancestralidade, mas
190

somente as lideranças e cada vez mais o restante se apropria desse discurso.


A gente sempre tem o discurso de falar para eles que se tiver alguma dúvida
que venha a nós, que iremos esclarecer. Geralmente nosso primeiro contato é
para falar sobre os instrumentos jurídicos.

R. D.: Num conflito possessório, geralmente quem ingressa com a ação é o


proprietário, o fazendeiro. O advogado faz a petição inicial, em termos do
direito civil, então posse é ter animus de dono, é ter a propriedade. Vai para
o judiciário dessa forma, digamos, nessa linguagem, e o judiciário, quando
analisa, às vezes se omite que é quilombola, às vezes nem coloca que é
quilombola, e é a partir daquilo que o judiciário vai decidir. Mas como que
vai ser decidido uma questão envolvendo quilombolas, em termos de posse e
animus de ser dono, se o animus de ser dono não é a mesma vontade que o
proprietário tem? Porque o proprietário tem vontade de ser dono em termos,
assim, digamos capitalistas, o quilombola não. Ele não é dono da terra, a
comunidade que usa em coletividade aquela terra. Então como que esses
instrumentos processuais serviriam para as comunidades quilombolas a teu
ver?!

F. C.: Vendo da perspectiva do poder judiciário com suas decisões, ele já


tem ciência desses instrumentos quilombolas. Muitas vezes quando não tem,
eles prestam atenção e não negam aquilo. Só que muitas ações não há essa
manifestação dizendo que a comunidade é quilombola. Quando não há essa
manifestação, o juiz não analisa. Taí um caso do Baixo Parnaíba: Cana
191

Brava. Não tinha, de forma bem clara, que era comunidade quilombola na
sua defesa. Tinha, mas era superficial. O que aconteceu: o juiz concedeu
liminar. Quando eu fui lá fazer a visita, descobri esse processo e vi que tinha
liminar, e que só não tinha sido cumprida ainda porque não tinha sido
deslocada força policial para região. O que aconteceu: eu fiz uma
manifestação dizendo que era quilombola, e pedi o deslocamento para
federal, e pedi a intervenção do INCRA. Aí ele suspendeu a liminar. Então o
poder judiciário tem certo receio de burlar de forma absoluta esses
instrumentos, que já foram impostos. Precisamos de uma atuação cirúrgica
das entidades de direitos humanos, que tem que se apropriar desses
instrumentos e utilizar eles, e sentença final. Geralmente eles tentam evitar
conflitos na região. Geralmente eles não querem resolver esses processos,
eles sabem que você tem uma pessoa que tem o instrumento jurídico
tradicional do direito da doutrina civilista, e tem outras pessoas que vem com
o art. 68 da CF. Aí é um choque muito grande. Eles não chegam a se decidir
qual seria o que sobrepõe um ao outro. Então eles sempre evitam nas suas
decisões intensificar conflitos. O que isso demonstra é que o judiciário já
tem ciência dos instrumentos quilombolas e da sua importância no nosso
ordenamento pátrio. O que eu não vou dizer é que o judiciário sabe que
determinada comunidade é quilombola, porque as vezes nem a população de
determinado município tem ciência que uma comunidade é quilombola. Às
vezes até porque dentro dessa comunidade várias pessoas não se afirmam
quilombolas. Então há essa multiplicidade de afirmações que eu
sinceramente não espero que o juiz saiba. Então meu trabalho é justamente
192

esse. Para mim, a questão de sobreposição de instrumentos jurídicos é que o


judiciário não entra na profundidade dessa questão.
193
194

Entrevista com Alexandre Silva Soares, Procurador da República no


Estado do Maranhão

Jordana L. D. A. Rosa (J. R.): Dr. Alexandre, como se dá atuação do


Ministério Público Federal nas ações possessórias no Baixo Parnaíba
Maranhense?

Alexandre Silva Soares (A. S.): Quanto às ações possessórias, o que é


comum não apenas no Baixo Parnaíba, mas em todo o Estado, é que as
pessoas entrem com a ação possessória na Justiça Estadual e após ocorra a
intervenção do INCRA, e por força dessa intervenção ocorra o deslocamento
de competência. E para que isso ocorra, o INCRA tem que intervir na
condição de assistente dessas comunidades, e ele, na verdade, é obrigado a
fazer isso por força de um dispositivo que existe no decreto que regulamenta
a demarcação de terras quilombolas. Uma vez acontecendo isso, o processo
vem para a Justiça Federal e a gente começa a trabalhar nesses processos.
Então, a gente não atua naquilo que acontece em sede possessória na Justiça
Estadual. Mas uma vez vindo o conflito para a Justiça Federal, a gente
começa a atuar, e o que é frequente também é que as comunidades nos
comuniquem situações nas quais existe as ações possessórias, mas não existe
atuação do INCRA. Então o que nós fazemos em muitos casos é provocar o
INCRA para que ele tome conhecimento do conflito e passe a intervir na
situação, e intervindo o feito venha para a Justiça Federal. Esse quadro não é
195

peculiar no Baixo Parnaíba, ele é um quadro comum a todo o Maranhão, tem


o mesmo quadro de conflito possessório.

Arthur N. L. Martins (A. M.): E quanto à titulação quilombola?

A. S.: As duas coisas costumam acontecer de forma simultânea. Há muitos


casos nos quais há ações possessórias movidas pelos proprietários contra as
comunidades, e também existe ações civis públicas propostas pelo MPF em
desfavor do INCRA para obrigá-lo a titular. Há alguns casos também que é
mais difícil, contra os proprietários, para que eles se abstenham de turbar ou
esbulhar a posse dessas comunidades. Oo mais comum é que essas ações
sejam propostas contra o INCRA que é, digamos assim, o Poder Público
nessa feição de responsável pela titulação.

A. M.: E quais são os casos no Baixo Parnaíba?

A. S.: Na verdade são vários, e eu teria que fazer esse levantamento, porque
de cabeça eu não sei levantar isso do Baixo Parnaíba, pois os problemas vão
chegando e você não vai designando eles por região. Mais fácil até designar
por comunidade do que propriamente por região. O que acontece no Baixo
Parnaíba é que tem outra feição de atuação também, que é aquela ambiental,
que é relacionada à exploração de empreendimentos lesivos a essas
comunidades que tem também causado problemas possessórios a esses
grupos. Ou seja, você não está discutindo posse, você está discutindo meio
196

ambiente, mas na discussão ambiental você acaba tocando no problema


possessório, pois é a implantação do empreendimento que está gerando o
conflito possessório, o empreendimento licenciado irregularmente. Muitas
vezes há essa situação, como no caso da Suzano Papel e Celulose. Os outros
casos são relacionados ao uso de agrotóxicos também no Baixo Parnaíba,
que afetam as comunidades, no caso especifico do lifotosato, substância que
é usada como agrotóxico de certa variante da soja transgênica. Aí você
também acaba tocando em outra questão que é a questão do agronegócio no
Baixo Parnaíba. Você tem uma atuação que é, digamos assim, uma atuação
de viés administrativo contra o INCRA, você tem uma atuação de viés
ambiental, e você também tem uma atuação que é propriamente possessória.
Então são formas diferentes de atuação que ainda que não possa rotulá-las
todas como possessórias, mas todas se relacionam com o conflito pelo
território dessas comunidades tradicionais, seja na feição de propriedade,
seja na feição de posse.

J. R.: A gente queria saber também quais são os critérios que vocês utilizam
para acompanhar o caso de alguma comunidade quilombola.

A. S.: O critério é quando chega mediante provocação. Via de regra, essas


comunicações são feitas por integrantes das comunidades ou por entidades
representativas, especialmente sindicatos de trabalhadores rurais do interior.
Em alguns casos a gente tomou conhecimento do caso através da
Universidade Federal. Na verdade, a Universidade Federal, através do curso
197

de Ciências Sociais, através da professora Maristela. Ela desenvolveu umas


pesquisas na região do Baixo Parnaíba. Então essa pesquisa foi fonte de
informação de vários casos que suscitaram essa intervenção. O mais comum
é a provocação pela própria comunidade e, via de regra, as comunidades
procuram elas. Claro, o que se passa antes delas nos procurarem é uma coisa
que eu não tenho muitos dados, pois também é uma discussão que é sobre
instituições que fazem a mediação entres esses grupos tradicionais e o Poder
Público que ensinam, digamos assim, o caminho. Aí você tem um leque de
instituições. Você tem SMDH, você tem a CPT, você tem pastorais da igreja
católica na região, que é a pastoral da Arquidiocese de Brejo, você tem os
sindicatos que eu já havia falado, FETAEMA. São múltiplos agentes que
intervém. Há um tempo também tinha o Fórum de Defesa do Baixo
Parnaíba, que agora está meio parado, mas que durante um bom tempo atuou
nos casos que envolvem os empreendimentos da Suzano Papel e Celulose,
que foi o caso do Polo Baixão e Coceira.

A. M.: O MPF usa algum critério interno para definir que aquela atuação
envolve quilombola? Como o órgão enxerga aquela identidade quilombola?

A. S.: Autodefinição. A gente segue o critério da Convenção 169:


autoatribuição. Se o grupo chega aqui e afirma que é comunidade
quilombola, ainda que não exista ainda em curso nos órgãos competentes
para o reconhecimento dessa condição, essa atribuição é levada em
consideração. Se não existe ainda, nós comunicamos os órgãos da existência
198

dessa demanda, mas, via de regra, quem chega aqui já chega tendo passado
por outras instituições. Então, em geral, já formulou um pedido perante o
INCRA, perante a Fundação Cultural Palmares. Então pelo menos a
provocação ao MPF é concomitante com a de outros órgãos. Dificilmente ela
é primária. É diferente do que ocorre na situação indígena, que as vezes o
pessoal procura primeiro o MPF para depois procurar FUNAI, para depois
procurar o Ministério da Saúde. Muitas vezes é a própria eclosão de um
conflito que faz nascer a demanda pela regularização fundiária. Então,
muitas já vêm para cá tendo passado por outras instituições do estado com
pedidos de regularização fundiária, mas há também aqueles casos onde isso
é concomitante. Via de regra, o primeiro demandado é, muito frequente, que
os grupos passem por outras instituições, principalmente do Poder
Executivo.

A. M.: Como você analisa o uso das ações possessórias aqui no Maranhão
envolvendo quilombolas? Nossa hipótese é que dentro desses processos é
utilizado predominantemente o Direito Civil, sem levar em conta a
identidade das comunidades.

A. S.: A gente pode dizer diante disso, via de regra, que nas ações que
chegam da Justiça Estadual, nós observamos exatamente esse perfil que é
levantado pela hipótese de vocês. O Direito Civil é utilizado como marco
normativo e como um marco normativo mal aplicado, pois, via de regra, aí a
gente não está falando mais de Direito Civil, mas de processo civil. O que é
199

requisito para o deferimento de uma medida possessória? A comprovação da


posse anterior da pessoa e do ato de esbulho ou turbação. O que acontece,
muitas vezes, é que não há prova da posse anterior do autor da ação. Você
tem provas da existência de um grupo ali, que planta, que faz roça, que às
vezes faz queimada, que tem casa, que reforma a casa, mas você não tem
prova da posse anterior daquela pessoa que muitas vezes faz essa alegação
pela sua condição de proprietário, que junta normalmente documentos
pertinentes a propriedade. Na Comarca de Brejo, se vê um posicionamento a
favor desses pedidos que são formulados por proprietários contra
comunidades quilombolas, aí vocês vão encontrar alguns absurdos jurídicos.
Então, por exemplo, você vai encontrar prisão preventiva sendo decretada de
ofício em autos processuais relativos a reintegração de posse, ou seja, uma
medida cautelar penal sendo decretada em um processo civil, que é uma
coisa absurda do ponto de vista jurídico. Há várias decisões semelhantes. A
gente não pode dizer que isso é uma conduta de todos os juízes do poder
estadual do Maranhão, pois há aqueles que, digamos assim, reconhecem esse
viés étnico, esse viés coletivo na demanda, e remetem o processo para a
Justiça Federal. Outros seguram essa declinação de competência em alguns
casos até de forma equivocada, pois em alguns casos quem tem que avaliar a
pertinência ou não da competência da Justiça Federal é a própria Justiça
Federal, pois há uma sumula, na verdade, que tem essa definição. Quem
delibera sobre a competência da Justiça Federal é a própria Justiça Federal.
O juiz estadual não pode deliberar sobre a competência alheia, assim como o
juiz federal não pode deliberar sobre o estadual. Ele delibera sobre a sua e aí
200

reflexamente ele manda para o estado. É aquele princípio “competência


sobre competência”. Só diz sobre sua competência, você não diz sobre
competência do outro. Então o que você tem observado é que em muitos
casos alguns juízes estaduais chegam a discutir exatamente isso. Eles querem
deliberar sobre a competência ou não da Justiça Federal, uma clara violação
a uma regra processual de competência. Eu recomendo a vocês que
pesquisem, se vocês acharem pertinente, algumas comunidades como Alto
Bonito, pela quantidade de ações possessórias que tem. Alto Bonito,
Depósito e Saco das Almas, em todos os três casos há Ações Civis Públicas.

J. M.: Como é a relação com o INCRA nesse cenário?

A. S.: Via de regra, nossa intervenção remete ao controle da atuação da


administração pública quanto à mora administrativa na implementação desse
direito à terra, que é uma garantia constitucional. Esse é o ponto: a mora
administrativa, via de regra. Esse é o ponto central de investigação. O
INCRA entende que essa intervenção acaba furando a fila. Em que sentido?
De que as comunidades que são mais organizadas e mobilizadas e que,
digamos assim, podem contar com institutos de mediação que as assistem,
essas comunidades acabam passando na frente das outras e acabam
quebrando, digamos assim, um planejamento que o INCRA tem. Eu atuei em
matéria quilombola durante um bom tempo, quase 10 anos. Eu deixei de
atuar agora no começo do ano, pois a gente criou um Ofício especifico para
conflitos agrários No conjunto de conflitos agrários também ficou incluída
201

ao lado de conflitos agrários os conflitos étnicos. Aí a demanda quilombola


foi para lá, mas, assim, o colega que esta nesse Oficio chegou a pouco tempo
aqui. Aí eu passei quase 10 anos nessa. É o Hilton Araújo. O que eu tava
falando mesmo era sobre o INCRA. Quando a nossa intervenção começou,
há cerca de 10 anos atrás, o INCRA não tinha planejamento algum, então ele
simplesmente não fazia nenhuma comunidade, quando a gente começou a
cobrar. Aí ele dizia que não fazia as outras, pois a gente tava cobrando de
“a”, “b” e “c”, quer dizer, eu também deixei de entender, pois se você cobra
“a”, “b” e “c”, não anda, pois “a”, “b” e “c” estão sendo preteridas, sendo
tratadas de forma privilegiada, aí se você não cobrasse nenhuma, aí nenhuma
era feita. Mas, assim, isso é um fato. Hoje em dia a maior parte dos relatórios
técnicos de identificação e delimitação que foram feitos de terras
quilombolas maranhenses, todos foram pautados por meio de ações judiciais
onde houve algum tipo de decisão judicial proferida, ou liminar, ou sentença.
Todos os relatórios publicados nos últimos anos têm essa marca, isso eu
posso afirmar de forma peremptória. De fato, é a judicialização que tem
pautado a intervenção do INCRA, e não é simplesmente a intervenção
extrajudicial do MPF. Uma recomendação, na verdade, o INCRA ignora,
pois o planejamento administrativo deles é inexistente. Na verdade, o
planejamento administrativo do INCRA é feito por força dessas obrigações
judiciais, então é fato que essas comunidades são pautadas por decisões
judiciais. Isso é fato. Porém, o problema é que se não fossem as decisões
judiciais, será que alguma comunidade seria pautada? Que comunidades
seriam pautadas? Pois o grande problema, muitas vezes, é que os
202

procedimentos não andam em virtude das próprias dificuldades de instrução


deles, enquanto que outros, nas quais as situações são menos conflituosas,
poderiam de fato ter uma instrução mais célere, pois até na facilidade de
obtenção de elementos instrutores permitiria isso. Mas será que essa ordem é
a ordem apropriada? Assim, são muitos casos de judicialização. O MPF não
é o único ator que judicializa, embora seja o que mais judicializa. Tem
também a DPU, e tem também essas instituições de mediação que muitas
vezes também pautam. A CPT tem sido um grande agente responsável pela
pauta de diversos pleitos quilombolas, o MOQUIBOM também tem feito
esse papel, às vezes não de forma judicial, mas com mecanismos de pressão
política que são próprios dos movimentos. As ocupações do INCRA dizem
bem dessa eleição de prioridades. Inclusive com relação a isso chegou a ser
feito com o INCRA um planejamento conjunto, que foi exatamente
decorrente dessas ocupações. Então o INCRA apresentou para o Movimento
Quilombola e para o MPF um cronograma e disse “esse aqui é a nossa
proposta de trabalho, então nós vamos fazer 30 relatórios técnicos para tais
comunidades neste ano de 2014, depois mais 15 para esse outro grupo de
comunidades”. 2016 outras tantas, 2017 outras tantas. Era um planejamento
factível, só que em 2016 a gente teve uma situação de crise econômica no
país mais grave que levou a sérias restrições orçamentárias. No orçamento
do INCRA, em resumo, nada foi cumprido, aí também entrou outro
problema que foi de uma conjuntura política muito complicada no Brasil,
que foi a situação do impeachment, pois isso foi acordado em uma gestão do
INCRA em 2015. Aí em 2016 começou uma dança de cargos, pois na época
203

a gestão do PT começou a negociar os cargos de diversas autarquias e ficou


um movimento de sobe e desce de pessoas, e aí quando muda, por sua vez,
para o governo Temer, também há uma nova mudança. Então, na verdade, o
que aconteceu num curto espaço de tempo: se alternaram diversos gestores,
o que dificultou o diálogo com a instituição. Aí em Brasília, por sua vez, o
orçamento para titulação de áreas quilombolas foi extremamente reduzido,
ou seja, aquilo que dependia de medidas administrativas internas ficou
prejudicado por força dessas mudanças de gestão. Mudanças, portanto, de
prioridades, aquilo que dependia de orçamento, e quase tudo depende de
orçamento, pois tem muita viagem a campo, diárias, contratação de
empresas. Isso aí, por sua vez, ficou parado, pois não tinha dinheiro. Então,
assim, a conjuntura para matéria quilombola é sempre uma conjuntura
difícil. O INCRA com o passar do tempo, efetivamente se equipou com mais
servidores para tratar da matéria. A equipe que estava ano passado no
INCRA era uma equipe que era acusada de ter uma perspectiva reducionista
do movimento quilombola e essa acusação era feita pelo próprio movimento
quilombola. Então o próprio movimento taxava os documentos técnicos do
INCRA de restritivos, de limitadores ao direito à terra, e de fato isso
aconteceu em alguns casos, algumas compreensões foram um pouco
equivocadas. Isso está expresso em outros municípios, nem tanto do Baixo
Parnaíba, mas lá na comunidade de Cruzeiro, e no Baixo Parnaíba na
comunidade Alto Bonito, pois Alto Bonito tem uma situação complicada que
é: tem um grupo que se identifica como quilombola e tem um outro grupo
que não se identifica como quilombola, famílias que não se identificam, mas
204

são pessoas que igualmente são pequenos agricultores que muitas vezes
compraram daquele grande fazendeiro um pedacinho de terra, que foi
desmembrado incidente na área da comunidade quilombola. Então Alto
Bonito ele tem uma situação fundiária que é complicada, pois você tem 33
propriedades incidentes dentro do território e muito dessas 33 propriedades
você não tem uma luta do “Davi contra o Golias”, você tem uma luta do
pequeno contra o pequeno. Tem um aspecto que é interessante também que é
a própria gestão desses conflitos, que são intracomunidade, a própria
existência ou não de reconhecimento. E o que INCRA estava fazendo? Ele
estava excluindo nos RTIDs, e a comunidade por sua vez não admitia isso,
pois ela dizia “todo esse território aqui é comunitário”, e a regulamentação
que existe para a matéria diz que “havendo sobreposição não quilombolas
em território quilombola”, esse pessoal deve ser reassentado, só que nem
tudo é simples, o problema é: reassentar onde? Pois há uma escassez de terra
e há também uma escassez financeira para aquisição de novas áreas para
assentamento de pessoas, no caso dessas famílias que são potencialmente
beneficiarias da reforma agrária. Então a matéria é complicada, pois vai
exigir uma discussão. Aí as equipes do INCRA levantavam a seguinte
ponderação: “vem cá, mas esse cara vai sair daqui só porque ele não é
quilombola?”. Mas ele é tão pobre quanto o quilombola, a política de
afirmação étnica vai preponderar sobre a política de reforma agrária? Assim,
são sobreposições e cruzamentos que tem que ser bem pensados, e essas
situações, no ano passado, levaram a dois conflitos que são emblemáticos.
Um é o caso de Cruzeiro, que é na baixada, e Alto Bonito, que fica no Baixo
205

Parnaíba. Seu Raimundo Térreos é um homem sofrido, se vocês puderem


conversar com ele vai fazer muita diferença na vida de vocês, ele é um cara
que já foi preso por conta de conflito fundiário. De tudo já aconteceu na vida
dele. A pessoa tem um histórico de luta muito forte, é uma comunidade
muito pobre, que é Alto Bonito. Saco das Almas também tem um aspecto
interessante que foi o primeiro assentamento da reforma agrária criado no
Maranhão. E aí qual foi o problema: o INCRA desapropriou a área e
assentou nela muitas pessoas que eram jagunços ou funcionários do
fazendeiro. Então se criou um clima de hostilidade no qual alguns assentados
rivalizam com os assentados quilombolas, enquanto alguns quilombolas nem
foram assentados, mas ficaram na área como pessoas irregulares. Então, são
vários problemas que você tem com as políticas cruzadas de reforma agrária
ao longo do tempo com a questão quilombola.

A. M.: O Maranhão tem grandes números de titulação por conta do


ITERMA, certo?

A. S.: O ITERMA, na verdade, muitas vezes dá titulação em áreas que não


são conflituosas, pois o próprio pressuposto para a área ser titulada pelo
ITERMA é o fato dela ser uma área devoluta e não ter pretensão possessória
ou dominial sobre ela.
206
207

Entrevista com Antônio Fernando Rites do Sacramento, assessor


jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e Diogo Diniz
Ribeiro Cabral, assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos e da Diocese de Brejo

Jordana Letícia Dall Agnol da Rosa (J. R.): Quais são as comunidades
quilombolas que, vocês acompanham no Baixo Parnaíba, ou têm
conhecimento, que estão em conflitos possessórios?

Diogo Diniz Ribeiro Cabral (D. C.): A diocese de Brejo, ela acompanha
comunidades quilombolas no Município de Brejo, Município de
Chapadinha, Município de São Bernardo, Araioses, Tutóia, algumas já
certificadas e outras não certificadas. Mas a maioria das comunidades elas
estão em Brejo, que é onde tem uma concentração maior, já também no
limite do Município de Buriti. Esses são os municípios de abrangência da
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.

J. R.: No caso de vocês, quais são, basicamente, os critérios que vocês


utilizam na hora de acompanhar uma comunidade? De que forma essas
comunidades vêm até vocês?

D. C.: No caso de Brejo, a relação toda se dá com paróquias e com dois


agentes pastorais que atuam num projeto específico financiado pela
cooperação internacional, que tem a tarefa de fazer o mapeamento das áreas
208

em conflito e detectar quais são as formas de conflito, e se dentro desses


conflitos tem outros desdobramentos. A exemplo, se há inquérito policial por
conta do crime de ameaça ou outros crimes, se há procedimento
administrativo tramitando nos órgãos fundiários e no ITERMA, se há
demanda judicial. Então, até que se chegue no advogado, no caso eu que
tenho atuado especificamente, o contato se dá entre a comunidade e o agente
pastoral, e chega até o advogado. Então faz esse percurso. E aí eu tenho a
tarefa de fazer as interlocuções com os órgãos fundiários também, com os
órgãos de proteção, é, com outras políticas. No caso, as políticas de direitos
humanos, as políticas de segurança pública, o Ministério Público Estadual e
o Ministério Público Federal.

J. R.: Fernando, e no caso da SMDH, como chegam as demandas?

Antônio Fernando Rites do Sacramento (F. R.): A SMDH por meio do


projeto “Sementes de Esperança” tem uma atuação no Baixo Parnaíba
Maranhense em comunidades quilombolas, de camponeses, extrativistas e
pescadores artesanais. Penso que pela própria atuação histórica da SMDH, as
comunidades ficam sabendo da sua atuação e a procuram. A SMDH
participa do Fórum em Defesa da Vida do Baixo Parnaíba Maranhense, que
reúne entidades de atuação na região, como Diocese de Brejo, Paróquias,
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, Sindicatos dos
Trabalhadores na Agricultura Familiar, Sindicatos e Colônias de Pescadores,
e Regional da FETAEMA. Então a demanda chega até à SMDH, por meio
209

das entidades parceiras, de seus representantes e de pessoas e comunidades


que estão envolvidas diretamente nos conflitos fundiários.

J. R.: Vocês chegam a ir até as comunidades, a ter contato direto?

F. R.: Sim, nós visitamos as comunidades que são acompanhadas e apoiadas


pela SMDH. São realizadas visitas formativas com certa regularidade. É
mantido um contato e diálogo permanente com as comunidades em conflito.
É um acompanhamento sistemático, levando-se em consideração a
gravidades e o risco a que estão expostos os membros das comunidades.
Quando ocorre o acirramento do conflito, a equipe desloca-se até à
comunidade.

J. R.: A gente percebe muito ainda a presença da propriedade em si sendo


discutida no conflitos levados ao judiciário. A gente queria entender se vocês
percebem dentro dos processos ou na forma que o judiciário lida com as
questões a presença de uma noção de propriedade.

D. C.: De território?

J. R.: É, de território, de comunidade, a existência de comunidade?

D. C.: A gente tem vários problemas do ponto de vista técnico em relação à


interpretação do judiciário. Primeiro, a interpretação acerca do que é a
210

propriedade, que a propriedade está definida no Código Civil e na


Constituição Federal. Segundo, as definições sobre a proteção possessória
que a própria Constituição Federal e o Código Civil estabelecem. Terceiro,
as definições acerca de direitos territoriais, que tem isso no Decreto 4.887,
na Convenção 169, da OIT, e, enfim, em outras leis dentro do ordenamento
jurídico. Como desde a formação do juiz na Escola de Magistratura, é levado
ao entendimento, e muito antes da formação do juiz, nos próprios bancos das
faculdades de direito. O entendimento é de uma proteção integral da
propriedade, da propriedade concebida no Código Civil de 1916, enfim, de
outros ordenamentos jurídicos antigos, não só o problema de interpretação
técnica, mas também de posicionamento político. O judiciário, em grande
medida, tem privilegiado a proteção da propriedade privada sem contorno
constitucional de uma função social clara, em detrimento da posse
qualificada pela moradia, pelo trabalho, pelas manifestações culturais. Então
é um debate técnico, que é da técnica do direito, da hermenêutica
constitucional, mas é também um debate que adentra o aspecto político, de
definições, rompendo inclusive com o mito da neutralidade, com o
positivismo jurídico. Então nós nos deparamos com verdadeiros absurdos,
determinação de desalojamento compulsório de uma comunidade inteira sob
a alegação de que há um título de propriedade, muitas das vezes fraudada em
cartório. Então a constatação que eu tenho como advogado é que há uma
prevalência ao direito de propriedade sem o contorno dos limites que a
Constituição estabelece, em detrimento de outras normas, que também estão
na Constituição Federal, no nosso ordenamento jurídico. É a interpretação do
211

Código de 1916, em grande medida. Quando você traz, por exemplo, uma
discussão dentro do judiciário, conceitos como posse agroecológica, vão
longe, vão discutir lá. Então é muito difícil, por exemplo, para um
trabalhador rural, que tem o tempo de vida que é muito diferente do tempo
do processo, e a forma de vida é totalmente diferente das formas de vida de
dentro do poder judiciário, acerca de tempo, acerca de espaço, acerca de fala,
acerca de linguagem, de narrativas. Então, eu vejo que, por exemplo, você
levar um trabalhador rural para o banco dos réus numa ação possessória é
uma violência sem tamanho, porque o tempo de vida dele é totalmente
diferente daquilo que está delineado no processo. A concepção que o
trabalhador tem de terra é totalmente diferente daquilo que vai ser exposto
na petição inicial, inclusive o advogado também que atua na defesa, tenta
remeter às formas de vida dentro de um processo que é uma caixinha
fechada. Fato, fundamento e pedido. Em relação aos fatos, ok. Mas em
relação aos fundamentos, você acaba se moldando nessa caixinha mesmo,
bem tampada e outras discussões acerca de proteções territoriais não surgem,
não são debatidas com rigor científico, com rigor técnico que deveria ser
debatido dentro do poder judiciário. Então a gente, infelizmente, aqui no
Maranhão, está preso em esquemas arcaicos e isso se dá porque a estrutura
econômica e a estrutura política no Maranhão é arcaico. Então,
obrigatoriamente, a estrutura do poder judiciário, a interpretação acerca de
leis, de normas, ela vai ser arcaica, vai ser a interpretação do proprietário.
Por exemplo, técnicas que poderiam ser utilizadas para diluir situações de
conflitos que estão presentes no código civil, como inspeções, ou no novo
212

Código de Processo Civil, que é a possibilidade de você fazer uma audiência


conciliatória intimando todas as partes envolvidas no conflito, ou mesmo
chamar o Ministério Público quando há um conflito coletivo, que estão
presentes no ordenamento jurídico, não é utilizado. Quer dizer, algumas
questões, que são questões técnicas, para que defina na decisão judicial, não
são utilizadas. E prevalece a fala do proprietário. Se você participar de uma
audiência judicial, o local da fala do proprietário é totalmente diferente do
local da fala do trabalhador rural. Eu não estou vitimizando o trabalhador
rural, de forma alguma. Mas aquele espaço de disputa, que é um espaço de
disputa, um espaço de luta de classes, é um espaço muito desigual, no ponto
de vista das garantias judiciais. Recentemente, eu acho que ontem, ou
anteontem, eu vi uma decisão do Estado do Paraná condenando o estado
porque o juiz suspendeu uma audiência porque o trabalhador rural estava de
chinelo. Então essas situações ocorrem no Estado do Maranhão, não é só do
ponto de vista simbólico, mas é do ponto de vista técnico. Então há um
problema sério.

J. R.: Fernando, como que vocês captam a mensagem do judiciário em


relação a essas situações? Vocês também têm essa dificuldade e se sentem,
de certa forma, deslegitimados, no sentido de chegar para tentar ajudar e
saber que no final das contas as pessoas não vão ser basicamente ouvidas
como deveriam?
213

F. R.: Em relação ao judiciário, percebe-se certa mudança. A magistratura


conta agora com novos “candidatos”. Os estudantes já entram na faculdade
com o objetivo em ser juiz. É uma turma muito focada e que não mede
esforços. Em relação a certos membros do judiciário, temos alguns que
permanecem muito tempo nessas comarcas, mas outros não. Uns acabam
estreitando laços, outros acabam conhecendo muito superficialmente a
realidade da zona rural. A maioria das decisões liminares atendem
proprietários ou supostos proprietários que detém títulos de propriedade. E o
que chega até nós, é que existem muitos questionamentos na origem desses
registros. Títulos de propriedade, uns mais antigos, outros recentes, sem
cadeia dominial real. A situação agora é outra, os titulares das serventias são
mais cuidadosos, mas o que foi feito estaria valendo, até que se questione ou
se obtenha o cancelamento da matrícula. Então, havendo esse título de
propriedade, existe a possibilidade de ele ter vício na sua origem. Mas são
comunidades que permanecem na terra, morando e trabalhando nas áreas,
exercendo o direito de posse por décadas. Só que esses posseiros não tiveram
e não têm essa facilidade, como os outros, em obter os respectivos títulos.
No dia a dia, em relação ao judiciário, o que é que acontece? Mesmo em
posses antigas, e sem a oitiva da parte contrária, são concedidas liminares, de
pronto. São decisões, geralmente, concedidas sem aprofundamento dos fatos,
do conhecimento da realidade das nossas comunidades, sem a realização de
uma inspeção. Nos casos que envolvem direitos das comunidades agrárias,
deveria existir uma recomendação institucional com a exigência de
apresentação, por parte do demandante, do suposto proprietário, da cadeia
214

dominial da referida propriedade. Torna-se urgente o levantamento cartorial


de imóveis que são objeto de litígio, como é urgente a titulação das áreas das
comunidades tradicionais de camponeses, extrativistas, quebradeiras, sem-
terra e quilombolas. Importante que o ITERMA e o INCRA possam cumprir
com a sua finalidade institucional, em fazer a regularização fundiária em
prol das comunidades tradicionais e dos territórios quilombolas, mas, para
isso se torna necessário modernizar esses órgãos e dotá-los de recursos
financeiros e operacionais. As comunidades agrárias e quilombolas que
exercem posse centenária ou de décadas, de forma qualificada, contínua e
pacífica, aguardam apenas a conversão dessa posse em propriedade.

Arthur Nunes Lopes Martins (A. M): Se a gente pegar dados dos últimos
anos, a gente vê que o Maranhão foi o estado que mais concedeu titulações,
só que isso se dá por causa do ITERMA e não do INCRA. Queria saber
como é que vocês enxergam isso, dessa morosidade do INCRA aqui no
estado.

D. C.: Eu acho que tem que tratar dos dois órgãos. Porque o ITERMA
também é muito lento. O INCRA, então, nem se fala. Por exemplo, Bahia é o
estado que tem o maior número de comunidades certificadas depois do
Maranhão, se eu não me engano, Pará. Do ponto de vista estrutural, nós
temos uma única superintendência localizada em São Luís, no Maranhão. O
estado do Pará tem 3 ou 4 superintendências. O estado do Maranhão é o
estado que tem hoje o maior números de conflitos agrários no país pelo 5°
215

ano consecutivo, apesar de os dados atestarem o alto índice de conflitos


agrários envolvendo boa parte das comunidades quilombolas. Elevados
índices de pessoas ameaçadas de morte, elevado índice de assassinatos no
campo, elevado índice de despejos promovidos tanto pelo poder judiciário,
quanto extrajudiciais. Você não tem uma política de estado, não estou
falando em uma política de governo, mas uma política de estado definida,
para que debele os conflitos através de políticas estruturais. O quê que
aconteceu em relação ao ITERMA? O ITERMA adotou uma política de
governo, que culminou em algumas titulações, mas se você perceber como
se dá essas titulações, você tem aqui um território de 1000 hectares, a área
que pertence ao estado tem 20 hectares, então o ITERMA intitula 20
hectares e diz que aquilo é um território. Isso é propaganda enganosa. Você
não pode dizer que um quintal é um território quilombola, porque não é. “O
restante não é minha competência. É competência do INCRA”. O que eu
quero dizer é o seguinte: se fosse para resolver situações de conflitos, tanto o
Estado, quanto a União, poderiam usar de meios como tombamento, como a
desapropriação. Você pode desapropriar uma terra para fins de interesse
social ou tombar, utilizar o direito administrativo, tombar, e fazer o repasse
para a comunidade quilombola. Quer dizer, a gente se bitolou num modelo
estático. Outras possibilidades que o direito administrativo permite, não são
utilizadas, por exemplo, constituição de reservas extrativistas, por quê que
não pode se pensar? Por que não pode se pensar, por exemplo, no instituto
do tombamento? Porque, quando a Fundação Cultural Palmares certifica, ela
tomba no livro das comunidades certificadas aquele registro, só que aquele
216

registro, ele vai além do futuro título de propriedade, porque está se tentando
preservar uma identidade, as formas de reprodução social, as formas de
reprodução econômica. Eu vi o Ministro Osmar falando ontem, declaração
dele na Folha, que terra não enche barriga pros índios. Mas a questão não é
só encher barriga, é preservar uma forma de vida, preservar uma forma de
apropriação dos bens da natureza, uma forma de medicina, de uma forma de
direito.

F. R.: E da defesa do meio ambiente.

D. C.: ...e uma forma de defesa do ambiente.

F. R.: É proteger dos invasores. Invasores que só querem explorar e esgotar


os bens naturais. A SMDH que acompanha comunidades quilombolas na
região do Baixo Parnaíba participa, com outras entidades da sociedade civil
e representativas dos quilombolas, da Mesa Estadual de Diálogo
Quilombola. Atualmente as entidades pressionam bastante a
Superintendência Regional do INCRA no Maranhão, em razão da demora
nos procedimentos administrativos. Por sua vez, o Superintendente provocou
a presidência do INCRA para que fosse constituída uma força tarefa no
estado do Maranhão. O Superintende Substituto tomou conhecimento que
em outro estado, que não tem tanta demanda, foi constituída uma força tarefa
para agilizar os processos. Então, foi apresentada uma exposição de motivos
à presidência do INCRA. Não seriam atendidas todas as situações e isso
217

gerou insatisfação, já que os outros territórios também não podem ficar


aguardando por tanto tempo. A Superintendência Regional alega falta de
funcionários para elaborarem as peças do relatório e de orçamento reduzido
que possibilite a contratação de empresa responsável pela elaboração dos
relatórios antropológicos. Já que a elaboração de outras peças seria de
responsabilidade dos técnicos do INCRA. Eles alegam principalmente a falta
de recursos operacionais e recurso financeiros. Os orçamentos para o
INCRA são muito reduzidos. O que demonstra por parte do governo Federal
o descaso e falta de interesse em resolver essas questões. Os governos não
priorizam ações voltadas para a reforma agrária e para a regularização dos
territórios quilombolas. Precisa ser mais uma política de estado de que um
governo, já que o Estado brasileiro tem essa dívida histórica, tanto com as
comunidades tradicionais de camponeses, quanto com as comunidades
quilombolas..

J. R.: Fernando, você sente alguma falha dentro da SMDH que você acha
tão séria quanto as falhas que você consegue perceber dentro do judiciário,
por exemplo, de as vezes menosprezar alguns aspectos que seriam
importantes na colaboração, enfim, de uma visão diferenciada?

F. R.: Não, não existe falha na atuação por parte da SMDH. É realizado um
acompanhamento completo, realizado por profissionais da área jurídica e do
serviço social. O projeto “Sementes de Esperança” da SMDH tem a
coordenação de uma assistente social. Não é realizado apenas um
218

acompanhamento na área jurídica. É um acompanhamento no âmbito


sociojurídico. Sempre fazemos todo o possível para corresponder às
expectativas das comunidades apoiadas pela SMDH. Em relação à nossa
atuação, o nosso trabalho implica em visitas formativas às comunidades,
participação em audiências públicas com órgãos fundiários e ambientais,
defesa das comunidades perante órgãos de justiça e de segurança,
articulações institucionais em defesa das comunidades apoiadas, articulações
políticas e apoio às comunidades que resistem às violações aos seus direitos.
Destacaríamos o acompanhamento dos processos das comunidades perante
os órgão fundiários, ITERMA e INCRA, participação em momentos de
articulação política na região do Baixo Parnaíba Maranhense por meio do
Fórum em Defesa da Vida no Baixo Parnaíba, participação na Mesa Estadual
Quilombola que acompanha os processos de regularização dos territórios e
na Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade
(COECV), que acompanha os conflitos coletivos por terra. A nossa
participação se dá na condição de representante da sociedade civil. São
espaços privilegiados de reivindicação de políticas públicas, de regularização
dos territórios quilombolas e a COECV, de mediação de conflitos com a
finalidade de evitar o despejo das famílias envolvidas e que resistem pelo
direito à terra, para morar e trabalhar dignamente.

J. R.: Vocês podem dar um breve histórico do que está acontecendo


atualmente no Baixo Parnaíba?
219

D. C.: O Baixo Parnaíba ele está na região administrativa do Matopiba. Foi o


decreto de 2015, assinado pela Presidenta Dilma Rousseff, articulação do
CNA, Kátia Abreu, que definiu as prioridades nos investimentos do
agronegócio. Então, o que ocorre hoje no Baixo Parnaíba é uma efetiva
pressão empresarial estrangeiro, que estão com um incentivo do Estado,
através de isenções fiscais ou empréstimos a juros baixos, e uma total
ausência do estado, tanto do governo do Estado, quanto da União, que tem
que garantir os acessos definitivos as áreas tradicionalmente ocupadas pelas
comunidades. Então, isso tem feito surgir no Baixo Parnaíba uma situação de
extrema beligerância, que você percebe hoje no Baixo Parnaíba é a
utilização de maquinários ultramodernos. Então você vê uma destruição
sistemática do bioma serrado, assoreamento dos rios, pressão social sobre as
famílias camponesas, migração do campo pra cidade, aumento da violência
nas pequenas e médias cidades do Baixo Parnaíba, e você vê uma omissão,
como eu já mencionei, do Estado, em um processo de desmobilização social
muito intenso. Então, hoje, o que nós temos é um vácuo, pouquíssimas ações
de massa, os agentes de luta muito confinados também a espaços pontuais e
restritos, e um avanço exponencial do agronegócio e de um modelo de
economia insustentável, tanto pra natureza, quanto para as comunidades em
geral. Causa uma desestruturação social e econômica enorme.
220
221

Entrevista com Izalmir Sousa Santos, quilombola e representante da


Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura
Familiar

Arthur N. L. Martins (A. M.): Quais são as comunidades quilombolas do


Baixo Parnaíba que você acompanha e tem contato?

Izalmir Sousa Santos (I. S.): Eu tenho contato com as do Município de


Brejo em si, todas. São 14 comunidades, certificadas. Nós tem mais 4
comunidades dentro do território que não são certificadas ainda, mas nós
tamo trabalhando na questão de certificar estruturalmente, que tão dentro do
território. Nós temo três território identificado no Município de Brejo. É o
território de Saco das Almas, que tem toda uma história. Nós tem o Data
Arraial e o território Data Jenipapo. Entre todas, nós temos 14 comunidades
certificadas, e 4 em processo de certificação. Dentro da comunidade de Saco
das Almas, ela abrange Brejo e Buriti. Então são 7 comunidades dentro do
território, são 4 no município de Brejo e 3 no município de Buriti. Em Brejo
são as comunidades Boa Esperança, Povoado de São Raimundo, Ecliures e
Boca da Mata, Vila das Almas, Faveira. As de Buriti são Santa Cruz, Vila
São José e Vila Pitombeira. Essas são centralizadas no território de Saco das
Almas. No território da Data Arraial são Funil, certificada. Bandeira, Árvore
Verde, Alto Bonito, Boa Vista, Depósito, Santa Alice, Bom Princípio. Das
não certificada, dentro da Data Arraial é Estreito, Vila 18 e Bom Princípio 1.
São essas três. E na Data Jenipapo existe três comunidades dentro, mas só
222

uma certificada. Eles têm o pensamento de fazer uma abrangência pra fazer
uma comunidade em si, própria, dos três povoado. São Bento, da Data
Jenipapo, é uma área de aproximadamente em torno de 7 mil hectares. A
Data Arraial tem uma extensão de um pouco mais de 18 hectares. E a Data
Saco das Almas tem uma extensão de 23 mil e poucos hectares. É uma área
bem extensa, então.

Jordana L. D. A. Rosa (J. R.): Em relação ao INCRA, quando você ou as


outras comunidades conversam com o INCRA, o que normalmente eles
costumam dizer?

I. S.: Eu não participei da última mesa quilombola, mas hoje tive com o
Superintendente e ele disse que vai viajar pra Brasília agora e quando chegar
a próxima semana vai deslocar uma equipe pra ir no Município, inclusive
pra Saco das Almas, que é um processo muito velho já lá dentro, né? É a
primeira área desapropriada do Maranhão. Saco das Almas ela foi
desapropriada pra Reforma Agrária, naquele período que era feito dois
trabalhos: eles davam lote de morada, fazia o vilarejo, e depois dava o outro
lote de trabalho. Muitas vezes o lote de trabalho ficava com não só uma
família, mais de uma família. Acho que tem até lote lá que ocupa até mais de
10 família lá no lote de trabalho. Então, daí, depois acho que um torno,
depois acho que de uns 30 ano ou mais, dessa desapropriação, a comunidade
se mobilizou e buscou a própria identidade. Porque lá era, sempre foi, não só
lá, mas em todo o Município, era dominado pelos coronel, né? Era o pessoal
223

que veio de Portugal, tinha a Euzébia que mandava numa parte de Brejo,
tinha o Durval que ficava lá na Santa Cruz, Durval Castelo Branco. Tinha a
Linoca também que ficava em Brejo, a Euzébia que ficava em Brejo, mas só
que no Piauí. Eles tinham um domínio muito grande ali dentro daquela
região do Baixo Parnaíba. Eles tinham uma abrangência de Teresina a
Parnaíba, né? Eles tinham uma vivência ali. Eram 11 pessoas, né? Da
família, né? nem todos construíram família, bem poucos, o resto ficaram
solteiro a vida inteira, mas eles tinham domínio de grande propriedade.
Depois veio o coronel Chico Macatrão, Dona Claudina Macatrão, Osvaldo
Costa Bacelar, e daí por diante foram criando vários outros, os coronéis mais
novos que foram dando seguimento, que os outros foram deixando. Então,
daí, quando a Alma se mobilizou, que mostrou realmente a identidade que
era a verdadeira, o INCRA nunca deu o apoio necessário, nunca deu
assistência técnica lá dentro, não distribuía projeto de melhoramento de vida
do pessoal, os CrediApoio e o PRONAF não existiam, que nem outras
comunidades depois já receberam os CrediApoio e PRONAF, outras
comunidades ao lado. Da Data Arraial, tem as comunidade de Alvi Verde, e
outras tudo já receberam esses créditos. E Almas nunca teve esse privilégio
de receber e daí o processo. Pessoas que receberam o título e foram
transferindo pra outras pessoas, vendendo, as suas posse, seus direito. E daí
tá se tornando uma área que é do INCRA, do Governo Federal, mas se você
for identificar in locus, já tá quase toda em novos proprietários, né? O cara
vai comprando uma quantidade e termina tendo uma área bem extensa
dentro do território, e daí tá tendo esse instrumento de briga, novamente do
224

INCRA com as pessoas lá dentro. O INCRA tá se negando, diz que não pode
pagar uma propriedade duas vezes, né? Porque a terra era dele. Então a gente
tamo vendo, negociando com as pessoa que tão lá dentro uma forma de ser
atendido. Eles compraram com uma esperança, né? Dum futuro, e não tinha
essa orientação deles não comprarem antes, né? Então isso traz um conflito
dentro pra dentro da comunidade, com as própria pessoa que venderam lote
de trabalho, mas continuam morando no lote de morar. Eles venderam a área
de trabalho, mas ficaram morando na comunidade. Então, ele tá lá. A terra
vai retornar na mão de todos eles, novamente, tanto dos que receberam da
terra, quanto dos filhos, netos, bisnetos; uma área muito grande. Dentro das
Almas hoje nós temos pra mais de 400 famílias, só dentro da Vila das
Almas; em Cruriz nós temos mais de 400; No São Raimundo, que é Boa
Esperança, nós temos 117 famílias; em Bandeira nós tem 35, no Funil nós
tem 53, na Alvi Verde nós tem 200 e pouco. E daí por diante não são tão
pequenas as comunidades. As menores é Vila 18, Bandeira, Estreito, estão
abaixo de 30 família, né? Mas as outras são só assim. Então, hoje, a gente
fez um levantamento agora recentemente por uma em Brasília, entre as duas
comunidades nós temos 1623 famílias, dentro dos 3 território, e nós tinha
uma conversa que os aposentado não ia receber cesta básica, e Brasília disse
que não impede porque o aposento não é salário, é simplesmente um direito
adquirido. Então hoje nós tamo contando com isso, que futuramente vamo
receber essas 1623 cestas Aí a gente tamo batalhando por isso, tem um
colega nosso tá lá que é diretor do SINTRAF junto com a gente, e tá em
Brasília, tá saindo agora, de certo ia ser umas 10:30, aí tá lá, e tamo
225

cobrando isso pra que os problema, volte a ser assistido nas comunidades.
Nós tem lá a FETRAF, que eu sou diretor da FETRAF, sou diretor do
SINTRAF lá em Brejo. Nós tem Sociedade Maranhense de Direitos
Humanos, SMDH, nós tem a Diocese de Brejo, que tá lá junto com a gente.
Então a gente já fez umas mobilizações ano passado, levamo alguns
secretário de governo, secretário de segurança, promotor público, promotor
agrário, delegado agrário, uma equipe nossa, o secretário de direitos
humanos, Chico Gonçalves teve também, secretário de agricultura familiar já
foi também. A gente já tiramo uma equipe lá do governador, e mostramo a
necessidade, porque, quando o judiciário dá uma ordem de despejo, eles
executam, então é isso. O governador ficou muito chateado com essas coisa,
porque quem vai é a polícia militar, né? Então a gente pediu pra que ele
analisasse isso principalmente. Também cobrou pra fazer intervenção no
judiciário, porque território quilombola, hoje é considerado área federal,
apesar de Saco das Almas já ser desapropriado. Então tem Saco das Almas,
Santa Alice, e Bom Princípio II, e Alvi Verde e Estreito, já são
desapropriado pelo Governo Federal, já são PA. Aí, Vila 18 e Bom Princípio
I e Boa Vista são prédio fundiário, né? Tem uns que tão terminando de
pagar, tem outros que são extensão. Então nós, a gente defende esse ponto,
foi ameaçado pelos cara. A gente tem que andar com muito cuidado, sempre
com o pé atrás, pra não entrar em contradição com esse povo. Porque
quando a gente defende a vida daquele povo ali, eu me considero um dos
mais novos no município que abraçou a causa lá dentro, então a gente fica
um pouco marcado por isso, né? Quando a gente vamo buscar a história
226

realmente de quem era a gente lá dentro. Aí eu assumi com mais vontade de


defender meus companheiros, meus irmão, e daí a gente fomo chegando
assim avançando e crescendo e hoje tamo na direção da Federação. Então
são frutos que a gente plantamos e tamo colhendo para o crescimento e
conhecimento, né? Então a gente se sente honrado. Dr. Ruan foi advogado
da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, a gente se conheceu dento
de isso aí, então, é, vocês não são os primeiros que me procuram, né? Já
temo outras equipe me procurando, e a gente quer sempre trabalhar com, pra
divulgar isso aí, né? Que vocês tão fazendo as faculdade e a faculdade tá
cobrando isso, que vocês tenha conhecimento, né? Então a gente fica muito
grato de ter essa, o momento de contribuir com vocês, pra que isso aí se
expanda dentro do Brasil, né? Não só do Maranhão, mas que isso aí vai fazer
um aviamento bem fora disso aqui tudo, né?

A. M.: Essas comunidades que já tem a certificação, elas, de alguma forma,


sofrem algum processo de questão possessória, de alguém tentar reivindicar
aquelas terras, já depois da certificação?

I. S.: Quase todas. Por exemplo, a própria Saco das Almas em si, Depósito,
Alto Bonito, até a própria Santa Alice recentemente teve um problemazinho
lá porque o INCRA ia desapropriar uma propriedade e costumava deixar um
pedaço lá para o proprietário, daqui pra frente, nós tem que ter a fazenda
toda, né? Porque tem uma área de jazida lá, calcário, e essa deixaram pra
eles, tinha que deixar pra comunidade sobreviver dali também, né? Aí eles
227

foram agora pra querer explorar e a comunidade foi pra cima, né? Então eles
recorreram e provavelmente tá na justiça federal. Então, Alto Bonito é muito
forte a briga com os proprietário, né? Ameaça muito forte. No Depósito é
muito forte. Já impediram até as pessoas de saírem de dentro da propriedade,
teve até a Polícia Federal lá. Eu trouxe o presidente da associação pra cá. Ele
ficou 15 dias aqui esperando aquele de Brasília chegar pra que eles fossem
lá. Ficaram 4 dias lá até que, onde eles ia derrubaram uma árvore pra dentro,
eles botaram os cadeado nos colchete que a gente chama, né? É uma
cerquinha estaqueada, você chega e tira o passador. Eles pegaram e botaram
o cadeado. Para que os cara ficassem refém lá dentro. Tanto que nós
trouxemo o rapaz pelo Piauí, atravessando o rio Parnaíba, na beira do
Parnaíba, pra ele vim pra cá. Uma vez, também, foi muito forte em
Bandeira, também os cara ameaça. O Bandeira é a minha comunidade, os
cara vão pra cima da gente, mas a gente não se curva, né? Tem que defender
um pedaço de terra pra gente viver. Produzir com mais qualidade.

A. M.: E qual a relação com o ITERMA?

I. S.: Não, eles não acompanham. Tem pouca coisa assim. Porque as áreas
que o ITERMA tinha lá no município deu grande problema porque o pessoal
que receberam os título também venderam pra turma da soja, né? Tem uns
aí que regularizaram para as família. Daí quem vinha no ITERMA era o
próprio sojeiro, né? Aí trazia o nome do trabalhador dele, a aquisição ia pra
ele, aí quando chegava lá eles fazia um contrato para o dono do lote que tá
228

no ITERMA. Ele tava sendo dono. Ele tava fazendo um contrato que tava
arrendando. No fundo no fundo ele tá comprando a terra.

A. M.: Quem tinha interesse que o ITERMA fosse lá era o próprio produtor
de soja?

I. S.: Era o próprio produtor de soja. E deu tanto problema que o rapaz do
cartório perdeu o cartório, a gente denunciamo, e hoje tem outra equipe lá no
cartório lá. Tava tomando a Soja. Tava a Suzano, de celulose. Então hoje
tem a briga do trabalhador tanto com o sojeiro, como com o pessoal do
eucalipto. Com a Suzano. E tem a briga deles dois também, que quer ocupar
mais espaço cada um, né? Um quer plantar mais soja e o outro mais
eucalipto. Naquela região ali pra chegar em Urbano Santos ali, e Chapadinha
pra trás, Anapurus, Matarroma, Brejo, e Santa Quitéria, é muito cheia de
Soja e Eucalipto. Ali o negócio é muito forte. Então a gente tava saindo pra
buscar um menino no interior que ele ia vir também pra cá, e agente olhando
assim, na estrada que é de 7 metros você coloca dois carros, dois automóvel
pequeno, e já tá encostando na Soja, na beira da BR, na estrada. Uns quatro
ou cinco ano foi ruim. Eles utilizaram aviões com água, quando aquela
nuvem branca subia, eles sobrevoavam a nuve, e derramava água do avião
sobre a nuve pra poder chover, eles usaram esse método aí.
229

J. R.: Em relação ao ITERMA, ele está fazendo um papel no lugar do que o


INCRA deveria fazer, mas aparentemente os interesses do ITERMA não são
nem um pouco a favor da comunidade, certo?

I: Não. O servidor do ITERMA vai, identifica a área, pede a tombação, né?


A arrecadação sumária, pra que a terra vá na mão de fulano, x, tal tal, tem
uma quantidade de pessoas, aí cê vai lá na fazenda e aquelas pessoas tudinho
são funcionárias da fazenda do sojeiro. Ultimamente o que a gente tem visto
na região, a área lá que tem certeza que é pra comunidade, ainda tá em
processo aí e nunca anda. Cê vê eles tirar processo aí, título, em menos de
um mês. Aí quando o título sai, a área já tá desmatada. Eles têm uma
facilidade com o ITERMA. Então a gente tamo. A gente cobramo aqueles
dois diretores que votou contra a nossa ideia, né? Então alguns trabalhadores
já sabe de tudo isso. Eles defenderam os sojeiro. Por que a soja não deixa
nada pra nós lá. Nem pra nós, nem pro Maranhão. Digamos, pro Maranhão
pode vir depois que chega da China, né?

A. M.: Falando de como o Município também não ajuda, como se dá a


atuação da comarca de Brejo?

I. S.: Ela deixa a desejar, ela. Ela já fez algumas coisas, mas graças a Deus,
inclusive no Depósito, o dela pediu uma inspeção pra ela fazer. Ela utilizou,
um belo dia, que era uma festividade de Bom Jesus Navegante, 06 de agosto,
ela saiu 12:00, chegou na comunidade, 12:01. Acho que ela imaginou que ia
230

chegar aqui no horário e não tinha ninguém lá, tá todo mundo pra outra
comunidade, fazer a inspeção. Quando ela chegou e encontrou todo mundo
lá, ela voltou, depois que ela voltou ela foi fazer a verificação, pra fazer a
inspeção. Ela usou uma artimanha, porque, o advogado dos proprietários,
todos lá, todos os proprietários, quando o INCRA chega lá pedindo quem é o
proprietário, eles dizem que só recebem depois que o advogado autorizar
receber. Ele cedeu a casa dele um tempão gratuitamente para o Ministério
Público estar lá. Ele ficou muito íntimo do Judiciário lá local. Ela já faz de
acordo com o que ela quer e os interesses que estão envolvidos ali, né?
Querendo ou não, ela já tá totalmente a favor dos seus interesses .

A. M.: VocÊ acha que mudou alguma coisa, após a ocupação no INCRA ano
passado?

I: É, mudou de certa forma em certos pontos, né? Digamos, para o tamanho


da demanda que tem no INCRA hoje, são mais de 300 processos. Então,
hoje o que a gente viu lá pra ser executado em 2017 e 2018, 36 processos,
né? Então a gente cobrou o superintendente que, pra pelo menos pra chegar
ao final do ano com 100 processos, porque dentro desse ano todinho nós
vamo ter ainda algumas mesas quilombolas, né? Vai ser 15, não, vai ser 18
ou 19 de abril, tem até na minha agenda aí, em São Luís, no INCRA. São de
60 em 60 dias que tem mesa quilombola, né?
231

J. R.: Na tua visão, qual é o órgão que melhor dialoga, que melhor entende
vocês, pois a gente tem a visão de que o Judiciário não é o melhor em
conversar com a comunidade. Mas, na tua visão, quem que tu sente que
melhor entende vocês, de todo mundo que trabalha com vocês?

I. S.: Hoje, assim, nós tem dois que entende realmente as necessidade das
comunidades, que é a Sociedade de Direitos Humanos e a Diocese de Brejo.
Mas fundamental mesmo, quem tem conhecimento é o INCRA, né? Que
teria que tá na frente. Aí eles alegam questão de recurso, questão do corpo
humano, funcionário que não tem. Mas o que eu vejo que o INCRA deixa
muito a desejar é quando se abre um processo não finaliza o processo. Se tira
uma equipe, hoje, pra ir lá em Brejo, aquela equipe vai em Brejo, ela visita
um dia, dois dias, aquela equipe chega e vai pra Baixada, aí são muitos
processos da mesma categoria, daquele mesmo sentido ali, pra só uma
equipe técnica cuidar daquilo. Aí deixa a desejar. Porque, quando, eu falei lá
na mesa quilombola, dezembro, pra fechar o ano, o INCRA teria que pegar
um processo e finalizar. Tem 10 processos abertos em um mês, vamo pegar
aqueles processo e deixar aquele espaço praqueles processos mais grave,
pros conflito mais forte, né? O superintende George tá aí, e tá atuando na
prática com a gente. Pelo cadastro e reforma agrária em poucos dias o prazo
de contestação, pra nós é 90 dias. Que abre o prazo pra gente contestar, aí
são 90 dias, cê pára 90 dias pra esperar que o cara se pronuncie. Aí o INCRA
demora 90 dias pra se pronunciar ou mais.
232
233

Entrevista com José Carlos do Vale Madeira, juiz federal da 5ª Vara da


Justiça Federal no Maranhão

Ruan Didier Bruzaca (R. B.): A presente entrevista, ela é desenvolvida pra
fins de um projeto fomentado pela FAPEMA, no qual nós discutimos as
ações possessórias que envolvem comunidades quilombolas, na região do
Baixo Parnaíba maranhense, que é uma região marcada por diversos
conflitos territoriais, conflitos envolvendo empresas particulares, nas quais
as comunidades quilombolas são alvo de ações possessórias que visam ou
retirar a população quilombola do local, ou evitar que eles pratiquem algum
tipo de atividade. Nesse sentido, a gente insere nessa questão específica do
Baixo Parnaíba maranhense a questão quilombola, que há muitos anos já se
tem debates e que também existem questionamentos, como, por exemplo, a
ADIN 3239, e a PEC 215. E esses conflitos fundiários eles vão aumentando
e vão sendo levados ao judiciário. O judiciário, então, se torna um palco de
disputa. Nesse sentido, a gente fez alguns questionamentos pro senhor.
Primeiramente, queríamos saber, quais são suas impressões a respeito da
questão quilombola na atualidade?

José Carlos do Vale Madeira (C. M.): Eu vejo a questão quilombola como
algo marcante, e vejo como a possibilidade de um Estado brasileiro que
negligenciou, que negou direitos fundamentais às comunidades negras e
indígenas, de se redimir com a liberação, com o reconhecimento, a titulação,
a delimitação, a demarcação, a desintrusão, a titulação, e o registro dos
234

territórios ocupados por comunidades remanescentes de quilombo. Penso


que é a oportunidade que o Estado brasileiro tem de se redimir pelos danos
causados às comunidades negras ao longo de sua história.

R. B.: Certo. Geralmente, que tipos de ações judiciais envolvendo


comunidades quilombolas chegam aqui na Justiça Federal, em especial na
sua Vara?

C. M.: As ações que tem passado por aqui envolvem diretamente o INCRA,
e nesse ponto cabe um registro. Para a Justiça Federal somente são
encaminhadas ações que envolvem disputa com quilombolas se o Ministério
Público Federal for parte, portanto, leva a competência da Justiça Federal
pelo artigo 109, inciso I, da Constituição Federal, ou se o INCRA for parte,
normalmente como réu. Então as demandas que tem vindo para a Justiça
Federal, e que especificamente tramitam pela 5ª Vara da qual eu sou titular,
tratam basicamente de ações civis públicas, movidas pelo Ministério Público
Federal, em que o Ministério Público Federal pretende, basicamente, que o
INCRA seja condenado em obrigação de fazer consistente em concluir atos
de procedimento administrativo que tratam da identificação, do
reconhecimento, da delimitação, da demarcação, da desintrusão, titulação e
registro dos territórios ocupados por comunidades remanescentes de
quilombos em diversos lugares do Maranhão, diversos municípios. Essas
ações públicas passam pela Justiça Federal, principalmente pela 5ª Vara, e
aqui se travam, então, grandes debates, aqui vira um palco de discussão
235

desses temas. Além dessa temática, dessa atuação do Ministério Público


Federal, vez por outra, como na intensidade, passam ações em que
particulares, lavradores, negros que estão em determinadas comunidades,
movem ação contra o INCRA com o mesmo objetivo, neste caso o
Ministério Público atua nos processos como fiscal da Lei, pra acompanhar o
processo.

R. B.: Certo. E quais são os desafios e dificuldades que o judiciário tem se


deparado ao atuar nos conflitos envolvendo comunidades quilombolas?

C. M.: A inércia do INCRA. O INCRA é uma instituição, infelizmente,


leniente, omissa, e diria até irresponsável. Porque ele tem a prerrogativa, tem
a obrigação de cuidar da delimitação, do reconhecimento, da identificação
das comunidades quilombolas. No entanto, por evidente falta de opção
política, deixa de ter recurso suficiente para custear as despesas
administrativas necessárias com antropólogos, topógrafos, para fazer as
delimitações. E diante dessa inércia, dessa encolha do INCRA ao longo do
tempo, os conflitos acabam por se prosperarem, por se ampliarem, e acabam
ganhando dimensões muita das vezes trágicas. Se o INCRA tivesse
cumprido a sua obrigação ao longo do tempo, fazendo o que fosse
identificado, delimitado, enfim, cumprindo o que tá no artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, seguramente muitos dos conflitos
agrários, envolvendo comunidades quilombolas, não teriam acontecido.
236

R. B.: É, e qual a sua avaliação envolvendo os conflitos fundiários no


Maranhão envolvendo quilombolas?

C. M.: A avaliação que eu faço é nessa, como um desdobramento do que


disse. Ou seja, houvesse participação do INCRA, um compromisso
republicano do INCRA em cumprir sua atribuição, esses conflitos intensos,
que são imensos, não teriam ganhado a dimensão, quase trágica, ou mesmo
trágica, que receberam.

R. B.: E como é que esses conflitos fundiários afetam a concretização de


direitos dos quilombolas?

C. M.: Atingem direitos fundamentais. Os negros, os quilombos, as


comunidades quilombolas, por reconhecimento do legislador, do constituinte
de 88, no artigo 68 do ADCT, consagrou esse direito, e esse direito, embora
não esteja posto no artigo 5º da Constituição Federal, ele é um direito
fundamental. Então, se entende que o artigo 5º da Constituição Federal, ao
arrolar os chamados direitos fundamentais, não o fez de forma exaustiva, não
fez sob a forma do chamado numerus clausus, ou seja, cláusula fechada. Na
verdade colocou sobre o plano meramente exemplificativo. Além daqueles
direitos fundamentais que estão postos no artigo 5º, muitos outros estão
dentro da Constituição Federal, inclusive este do artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, de assegurar às comunidades
quilombolas o direito de usufruir das terras que ao longo do tempo
237

trabalharam. Então esse direito é fundamental, e a falta de uma atuação


efetiva do órgão em que o Estado Brasileiro outorgou a prerrogativa para
tratar do tema, os conflitos acabam por eclodir.

R. B.: E qual é a sua avaliação a respeito da adequação de ações possessórias


ajuizadas por particulares face às comunidades quilombolas?

C. M.: Eu não lidei muito com esse tema. Não é algo que passe muito aqui
pela Justiça Federal, eu não teria, digamos assim, um repertório de
sentimento técnico, como juiz. Tenho, todavia, um sentimento como
cidadão. De que esses conflitos instaurados entre particulares com
comunidades quilombolas refletem também a anomalia da sociedade
brasileira, que não reconheceu ao longo do tempo os direitos dos negros e
dos índios. Então, evidentemente que isso perpassa por esse sentimento
patológico de dominação de segmentos antigos da sociedade, que afastam,
por assim dizer, direitos essenciais das comunidades negras e quilombolas.

R. B.: Mas, em razão dos conflitos possessórios, existe ajuizamento dessas


ações possessórias. O senhor acredita, como juiz, que esse instrumento
processual é adequado para compreender a complexidade que é uma
comunidade quilombola, os caráteres étnicos e sociais que existem naquele
grupo?
238

C. M.: Eu acho que as ações possessórias não se mostram adequada para


esse tipo de enfrentamento, diante da evidente complexidade, da
multiplicidade de temas a serem tratados. Por isso que o mais razoável, o
mais adequado são as Ações Civis Públicas intentadas pelo Ministério
Público Federal, mas, quando o Ministério Público Federal não é acionado
adequadamente e, portanto, não promove a ação, penso que a ação
possessória pode ser utilizada dando-se à essa ação possessória tratamento,
todavia, diferenciado. O magistrado, nesse caso, terá que ter um olhar
diferente para compreender que aquela ação possessória não ostenta o viés
tradicional da ação possessória, mas sim veicula no seu conteúdo, na sua
essência, um direito fundamental que deve ser examinado sob o olhar da
Constituição de 1988.

R. B.: Esses tipos de ações possessórias normalmente não vêm à Justiça


Federal?

C. M.: Não vem enquanto não houver o envolvimento direto do Ministério


Público Federal ou do INCRA. Então se as ações forem travadas entre
particulares, por disputas de terras eventualmente remanescentes das
comunidades quilombolas, elas não trafegam pela Justiça Federal. No
entanto, penso que os advogados que lidam com esses temas poderiam, por
uma estratégia jurídica, ou processual, requerer a intervenção do INCRA
para que acompanhe a ação, porque há um evidente interesse do INCRA,
que é quem detém a prerrogativa de delimitar e demarcar esses territórios, de
239

modo que, requerendo a intervenção do INCRA, e o INCRA demonstrando


interesse, as ações naturalmente seriam levadas ou trazidas para a Justiça
Federal diante da intervenção do INCRA. Então, estrategicamente, penso
que seria mais adequado se os advogados adotassem esse procedimento, essa
estratégia jurídico-processual adequada, e que, por assim dizer, traria o tema
para a Justiça Federal. Acho que a Justiça Federal, como juiz natural das
questões envolvendo o INCRA, detém melhor repertório, melhor expertise
pra examinar essa temática.

R. B.: Certo. Então existiria diferença de tratamento em relação à questão


pela Justiça Estadual e pela Justiça Federal?

C. M.: Eu não diria diferença de tratamento, eu diria que a Justiça Federal,


diante das reiteradas ações civis públicas já examinadas, acabou por
incorporar, por assim dizer, um repertório de conhecimento que lhe dá uma
expertise sobre o tema. Os juízes estaduais, diante da multiplicidade de
temas que lidam, e lidando com ações possessórias com viés tradicional, em
que se discute apenas e tão somente a posse, podem não ter esse olhar mais
abrangente a envolver os direitos fundamentais dos quilombolas, que estão
postulados no artigo 68 do ADCT.

R. B.: Certo. E por fim eu queria perguntar se o judiciário, aqui,


especialmente na Justiça Federal, promove algum tipo de formação ao juiz
pra lidar especificamente com essas questões envolvendo quilombolas?!
240

C. M.: Não há. Nós não temos uma vara, digamos assim, que cuide
unicamente disso. Nós temos uma vara especializada aqui em questões
envolvendo meio ambiente, questões indígenas etc. Mas as varas cíveis, de
qualquer sorte, que são apenas 4 Varas Cíveis em São Luís, da sessão
judiciária do Maranhão, tem competência para tratar do tema, ou seja, acaba,
por assim dizer, criando um quadro mais seleto de magistrado para tratar do
tema. Acaba criando, por assim dizer, uma certa especialização.

R. B.: Certo. Então, em critérios de escolas superiores da magistratura não


há qualquer tipo de...

C. M.: Não... não há nenhum curso, tratamento, seria até conveniente o


exame disto, mas não há. O que se tem é aquilo que é padrão, de
compreender a Constituição Federal. Então, basicamente é isso que se
coloca. A Constituição Federal como mandamento dos direitos fundamentais
das comunidades quilombolas.
241
242

Entrevista com Ana Carolina Quadros Costa Reis Sousa e Martfran


Albuquerque de Sousa, representantes do setor quilombola do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Maranhão

Jordana L. D. A. Rosa (J. R.): Como se dá o reconhecimento do território


das comunidades quilombolas pelo INCRA?

Marfran Albuquerque de Sousa (M. S.): Quanto às comunidades, não é


competência do INCRA o reconhecimento, acredito que cê tenha
conhecimento disso aí. Se olharmos lá no Decreto 4887 que dá a
incumbência do INCRA da regularização fundiária, lá também coloca a
Fundação Palmares como a responsável pelo rezistro dessas comunidades,
reconhecimento e emissão de certificado. Então, ela que reconhece essas
comunidades, parte desse reconhecimento, que é uma auto atribuição,
também é uma solicitação formal do governo é que se abra-se a porta para as
políticas voltadas pro quilombola. E dentro dessas políticas públicas, a
regularização quilombola é uma delas, que cabe ao INCRA. Aí existe outras
também, várias outras, que no texto geral, deixa eu ver se tá aqui, o
programa geral, rede nacional, é chamado Enfrentamento ao Racismo. Deixa
eu ver o termo completo. Tá. O programa geral é chamado "Enfrentamento
ao Racismo - Promoção da Igualdade Racial". E dentro desse grande
programa maior, nossa ação é outra. Justamente a chamada de
Reconhecimento, Delimitação, Desintrusão em Territórios Quilombolas. É
bem específico pra área fundiária. Então, a partir desse reconhecimento que
243

parte da comunidade, ela pode vir ao INCRA solicitar formalmente via


ofício, requerimento, uma petição simples, um requerimento simples, e pode
ser representante da comunidade, ou representante da associação da
comunidade, ou, ainda, de alguma entidade que os representam. Pode vir
aqui fazer essa solicitação. Ou ainda representantes da comunidade, solicitar,
é, fazer solicitação verbal e alguém pode sim fazer a solicitação, a abertura
de procedimento. A partir de então a competência do INCRA é fazer todos
os trabalhos de natureza técnica pra identificar esse território. Verificar in
locu, através da indicação deles, qual é a área demandada, e qual o direito
étnico-territoriais assiste a eles. O fato de também já receber uma certidão
não significa que já é, já tem o direito territorial. Então há muita confusão
nesse sentido. Inclusive, algumas comunidades, talvez por falta de
orientação melhor por parte das entidades que as assiste, ao dizer que a
própria certidão já é um título da terra. Então isso causa um certo conflito, e
chegamos lá no conflito mais a frente por causa disso. A política é
praticamente, eu considero nova. Dez anos, dez anos, deixa eu ver. 2013, vai
fazer agora 14 anos. É realmente uma política nova para o INCRA. O
INCRA só trabalhou com pequenos agricultores, tradicionais agricultores,
não necessariamente voltado para um público específico como quilombola
está sendo agora. Então, toda a estrutura do INCRA é voltada para
assentamento, então, nós temos aqui o serviço quilombola, na verdade,
regularização dos territórios quilombolas, praticamente é o único setor que
pode-se falar dessa questão. Os demais são voltados pra todo um, toda uma
estrutura voltada para atender a reforma agrária, embora assim, ache também
244

muita confusão em relação a isso, regularização fundiária também não ser


considerada como parte dessa política de reforma agrária, mas sim pra
assentamento em si, criação de assentamentos, assentamentos de famílias.
Há uma visão um pouco diferente aí. Aqui tratamos na verdade de
legitimidade e não de assentamento, embora também há assentamentos que,
quando o INCRA vai na área, encontra determinado grupo social e lá se
estabelece um assentamento. Mas, na verdade, tá regularizando aquela
situação daquelas famílias. Muito um pouquinho parecido também com o
quilombola, mas existe essa especificidade. A legislação é outra, é o Decreto
4887 que eu te falei, posteriormente outras leis referentes à desapropriação,
voltada mais para utilidade pública, né? Interesse social, e aí já é diferente
também em relação a obediência constitucional que é a função social da
terra. Não cabe, nesse caso. A fazenda, por exemplo, pode ter uma fazenda
muito bem estruturada, produtiva, mas se for identificado quanto área
pertencente, área de uso, historicamente de uso, assim, de necessidade, de
condição dessas populações tradicionais quilombolas, ela também é passível,
de forma compulsória, de desapropriação, sem a necessidade de um estudo,
se ela atende ou não a função social da terra.

J. R.: Martfran, você poderia falar basicamente uma perspectiva geral do


que acontece no Baixo Parnaíba?

M. S.: O Baixo Parnaíba, deixa eu ver aqui. A gente tem, na verdade, de um


modo geral eu acredito que em si nós temos avançado muito pouco. E isso
245

não só no Maranhão, mas no Brasil inteiro. Atualmente estamos chegando,


beirando aos quase 400 processos abertos, desses 400, a gente conseguiu
efetivamente dar algum andamento, eu sei dizer que deu uns 6%. Né. Eu
queria ver em números mesmo. Eu não tô achando aqui, mas eu vou
falando. O processo aqui, o nosso procedimento, a regularização, é, o
reconhecimento, identificação e delimitação de áreas quilombolas e
desintrusão. A desintrusão é uma palavra, um neologismo, que trata
justamente das questões, encontramos na área delimitada, reconhecida,
digamos assim, pessoas que não é o perfil, que não é da comunidade, não
tem qualquer laço, não tem relação sociocultural, parentesco com o grupo.
Então, geralmente são fazendeiros, tem propriedade de terra, então a
desintrusão vem ou com a retirada ou desapropriação do imóvel. Bom, vamo
lá. É. O processo aberto passa por umas etapas. É o procedimento em si.
Então, primeiro a Superintendência tem que constituir um grupo técnico
multi-disciplinar pra fazer os estudos. Um desses estudos que mais nos
aborrece é o chamado Relatório Antropológico. Até pouco tempo aqui,
quase o INCRA não tinha um corpo técnico suficiente pra atender essa
demanda. E outros profissionais, né, agrônomo, geógrafo, historiadores pra
justamente fazer um estudo chamado RTID, Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação, da área quilombola. Aí entra estudos
agronômicos, estudos de levantamento fundiário, cadeia de imóveis
incidentes na área, algumas características ambientais, pra fechar tudo com o
teor do RTID. Posteriormente isso, é feito uma publicação, notificar todos os
envolvidos, todos os interessados, identificados nesse estudo, que são os
246

proprietários, que são os confrontantes, e esse pessoal tem um prazo de


contestação. Se se sentirem feridos, digamos assim, em seus direitos, tem um
espaço de 90 dias depois da notificação pra entrar com qualquer tipo de
contestação. Então usa toda a argumentação, e vai ser analisado aqui
mesmo...

Ana Carolina Q. C. R. Sousa (A. S.): Pela Superintendência.

M. S.: Pela Superintendência. É, uma vez, digamos assim, digamos que os


argumentos não foram suficientes, então vai se indeferir, foi indeferido o
pedido dele de revisão, sei lá, de exclusão da área dele, sei lá qual foi o
argumento, ele é notificado pra apresentar um recurso, só que esse recurso
seria uma segunda instância, vai pra Brasília. Brasília é quem analisa, é onde
é o comitê. É um colegiado, na verdade. Quem analisa aqui é o colegiado
interno, é o Conselho...

A. S.: Comitê de Decisão Regional.

M. S.: Regional e, em Brasília é o Conselho Diretor. Mas é bom depois


pegar a IN, a Instrução Normativa nossa, pra entender mais ou menos esse
passo a passo.

J. R.: Voltando àquela questão que eu tinha até colocado no início, a gente
sabe que tem toda uma problemática, claro, né? Pela própria complexidade
247

da questão que envolve, por exemplo, o que o Izalmir entrou em contato com
a gente falando né, que é a própria questão de que eles tão lá na terra. Aí na
hora, quando aquela questão vai ser regularizada, digamos assim, algumas
pessoas ficam sem terra porque parte da terra acaba ficando pros
proprietários, enfim. Tem toda aquela tentativa de conciliar as duas questões,
mas no final das contas parece que o conflito nunca se resolve. Dentro dessa
concepção de complexidade etc., o que vocês acreditam ser mais viável pra
tentar não só resolver a questão mesmo, mas pra tentar garantir essa
identidade quilombola em si?

M. S.: Na expectativa do direito, quando se autoatribui, cria já toda uma


expectativa de direito que eu tava te falando no começo. Sim, as
intervenções que o INCRA fazem geralmente, primeiro, é se a comunidade
já tem um procedimento aberto, né. O INCRA tem feito algumas
intervenções até mesmo sem a certidão da Palmares.

A. S.: É, justamente. Tem essa questão da comunidade ser certificada.

M. S.: Mas, assim, o primeiro passo é esse. É ter um, mesmo que o processo
esteja aqui, que não no seu curso normal, digamos assim, com todos os
procedimentos, a gente atua geralmente a fim de barrar qualquer tentativa de
reintegração de posse, sabendo que já são moradores antigos, sabendo que já
tem um direito de posse ali, na área. E intervenção de parar com algum tipo
de liminar, se elas vão tirar aquelas comunidades de lá. Assim,
248

administrativamente tenta-se, tenta-se, fazer algum tipo de conciliação, de


mediação, é o que é possível.

A. S.: Geralmente, vai técnico daqui pra dar uma conversada com o
proprietário. A gente também envolve a Ouvidoria, manda um Ouvidor pra
ver se dá pra a gente tentar alguma possibilidade de uma convivência
harmoniosa, de forma que não haja nem a limitação do uso da terra que os
quilombolas já vem utilizando pra agricultura ou pra criação de algum tipo
de animal, mas a gente também sabe que o proprietário não pode ficar
privado da sua propriedade. Aí a gente fica com esse dilema porque. O que
acontece, os proprietários, eles ficam, assim, cada vez mais temerosos em
investir na propriedade deles, pensando que no final, assim, “ah, vou ser
indenizado, então toda benfeitoria que eu fizer vai contar”. Não, porque
acaba que o que eles tentam fazer é desfeito pelos quilombolas, então a gente
fica realmente sem ter como fazer muita coisa, até porque a perspectiva da
gente indenizar esses proprietários é uma perspectiva muito fraca diante de
um cenário nacional aí de falta de recurso. A gente, assim, tenta mesmo
trabalhar só na parte mesmo da conscientização, de que eles devem tentar
conviver de forma harmoniosa, até que o processo se resolva.

J. R.: No caso essa convivência harmoniosa, essa tentativa, na verdade, de


conciliar essa convivência harmoniosa tem surtido algum efeito dentro do
cenário ou continua ainda tendo muita resistência?
249

A. S.: Em algumas comunidades que a gente as vezes consegue, né?

M. S.: De certa forma...

A. S.: Em algumas comunidades a gente consegue, geralmente nas


comunidades em que o proprietário realmente possui uma fazenda
improdutiva, alguma coisa assim. Agora, na região onde o proprietário de
fato quer fazer uso da sua fazenda é mais difícil. Também existem
comunidades mais violentas do que outras.

M. S.: É, tem toda também, uma história já de desgaste.

J. R.: E a questão das comunidades que estão especificamente envolvidas


em processos judiciais, a quanta andam esses processos, especificamente?
Vocês acham que, enfim, a intervenção que vem tendo, não só de vocês, mas
dos poderes em si como um todo, vem corroborado pra acontecer mais
conflito ou então elas tão barrando esse conflito, buscando uma solução? O
quê que vocês acham acerca de uma avaliação geral dessas comunidades
especificamente que tem ação?

M. S.: Acho que praticamente depois que nas ações judiciais aonde já foi
feito algum tipo de intervenção que tu falou. Geralmente, como a gente não
tem esse acompanhamento de perto, não dá pra gente te dar alguma
conclusão assim. Mas geralmente dá um alívio, digamos assim. Só sabe
250

quando a coisa tá ruim porque eles tão ligando pra gente ou batendo na
porta, mas geralmente quando não, isso acontece, aconteceu um certo alívio,
as pessoas tão podendo trabalhar, tão podendo continuar na área, então,
assim, mais ou menos por aí. Mas, dizer assim, esse conflito aí, quando cada
intervenção dessa é favorável e bom pras comunidades...

A. S.: Pois é, a gente não tem esse acompanhamento, assim, muito de perto,
mas eu acho que há casos e casos, porque, por exemplo, no caso de Cruzeiro,
eu achei que...

M. S.: Cruzeiro?

A. S.: Foi Cruzeiro? Não...

M. S.: Cruzeiro é complicado...

A. S.: Não, digo assim, porque as vezes há aquela situação de que, quando
há uma decisão judicial, quando há uma movimentação do Ministério
Público Federal, Defensoria Pública da União, informando os quilombolas, é
como se eles se achassem empoderados. Entendeu? Então quando esses
órgãos tomam partido a favor deles, existem casos, aí eles partem pra cima
do proprietário com toda vontade, porque eles já tem o Ministério Público, já
tem uma decisão judicial, e eles já consideram aquele território como deles.
Entendeu? Independentemente de conclusão de estudo, onde a gente, a gente
251

tinha um coordenador que costumava diferenciar o que seria uma área


pleiteada pra, efetivamente, um território reconhecido. E quando há essa
intervenção judicial de órgãos da Justiça, seja Defensoria, seja Ministério,
seja até mesmo decisões liminares, eles acham que já é uma coisa concreta,
que já é definitiva, e aí eles partem pra cima mesmo. Se antes eles ocupavam
só 300, 400, 500 hectares, a medida em que acontece uma situação dessas,
eles partem pra ocupar logo 800, eles partem pra ocupar até o que não
ocupavam e que viviam, antes, muito bem sem aquele pedaço. Então, assim,
a gente não tem esse acompanhamento de perto, mas eu acho que há essa
dificuldade quando há uma intervenção judicial.

M. S.: Ah tá. De números, que eu tava te falando. A gente publicou, até


agora, 24 RTIDs. Isso dá 6%, mais ou menos o que eu te disse. 6%, só. Dos
398 processos abertos. Até agora.

J. R.: Aí, no caso, inclusive sobre, sobre essa realidade mesmo que você
fala, vocês acham que, via de regra, o cenário em si, ele é mais favorável,
por exemplo, à própria resolução em si do conflito, do reconhecimento, por
exemplo, da própria identidade quilombola? Porque a nossa pesquisa
especificamente ela tenta, basicamente, entender porque que ainda há tanta
restrição em si de direitos como um todo e, no caso específico quilombola,
em relação a se entender, por exemplo, a identidade, a importância de um
direito que também é fundamental. E a gente tenta entender porque que
ainda há tanto esse civilismo dentro do judiciário. Mas especificamente
252

quanto à realidade, vocês acham que o caminho que se tem é normalmente


mais favorável ao agronegócio, ao agricultor, ao quilombola, dependendo da
situação. Porque, claro, a gente tem “n” casos. Eles podem, com certeza
divergir em determinado momento. Por exemplo, casos onde é mais fácil
você ver que a identidade quilombola, de ser percebida, é mais, meio assim,
facilitada, mais outros casos onde é mais fácil a gente perceber que o
agricultor meio que se sobressai. Vocês acham que, dentro do
acompanhamento de vocês, qual o cenário que é mais previsto?

M. S.: Atualmente, nenhum.

J. R.: Nenhum?

M. S.: Atualmente nenhum, que a coisa tá ruim. A gente não sabe quais são
os próximos passos do INCRA. O cenário é de incerteza, geral. E, assim, eu
entendo que tu tá querendo tentar instigar a gente, mas também é um pouco
complicado. Então, assim, quando se trata de bens, em matéria de bens
materiais, sempre o questionamento é sempre a não aceitação do outro. É
lógico que o quilombola ainda mais, ainda mais tem um certo, ainda tem
resquício de preconceito, então isso também, de certa forma, atrapalha um
pouco. Mas essa política, como eu tô te falando, eu considero ela
relativamente nova dentro do INCRA, e essa estrutura ela não foi bem
pensada pra isso, não se sabia que esse negócio ia crescer tanto. Como eu te
falei, aqui pouco andou, pra tu ter uma ideia aqui pouco andou, 6% é muito
253

pouco de durante 14 anos, digamos assim, 14 anos do INCRA ter essa, toda
essa, esse gerenciamento dessa política, só 6% é muito baixo. A gente não
tem perspectiva de melhorar isso não. O quê é pior ainda.

J. R.: Porque, assim, a gente tá falando de uma perspectiva de uma demanda


que é a maior, nacional. Então a gente tá falando de muitos casos, né? Ao
mesmo tempo. Mas, claro, né? Dentre tantos óbices que como toda, na
verdade, como toda relação entre demandas que precisam que você esteja na
realidade, enfim, dentre tantas dificuldades que vocês perpassam etc., qual
seria, por exemplo, a que vocês entendem como um dos principais passos
que o INCRA tomou pra conseguir evoluir em determinadas circunstâncias
dentro dessa demanda? Porque, claro, já foi um grande passo a gente poder,
por exemplo, falar sobre demandas quilombolas, que era uma circunstância
que não se falava, então, assim, o que vocês acham que necessariamente foi
um dos principais passos pra se começar a ter uma relação melhor com a
demanda em si, uma relação com as comunidades, quais são, ainda, os
empasses que vocês possuem?

A. S.: Olha, eu entendo que uma das conquistas é, foi a instituição da mesa
de diálogo, né? Há uma mesa de diálogo nacional, e há mesa de diálogo
estadual. Onde a gente justamente se aproxima mais das comunidades, das
representações, né? Se fazem presente, e a gente não tem como ir, como ele
falou, a equipe é pequena, não tem como ir, o recurso é pouco, a gente não
tem como tá em campo o tempo todo, e a mesa eu acho que foi uma grande
254

conquista, sim, apesar de que alguns considerem que não há tanto, tanto
encaminhamento após a mesa, mas é porque a gente trava justamente na
questão da situação burocrática e de limites mesmo orçamentários,
financeiros, humanos, mas eu acho que houve uma aproximação.

J. R.: É, o que foi colocado pra gente, por exemplo, pelo Izalmir, foi um,
digamos assim, um grande problema que eles pelo menos percebem, quem tá
mais a frente, como ele, né? Que tá a frente da Federação. Ele sente, assim,
na verdade, como se os poderes envolvidos se eximissem em determinados
momentos, né? Por exemplo, um é responsável aqui, só que diz que é o outro
que é responsável, é, vocês entendem que esse impasse realmente existe?

M. S.: Responsável?

J. R.: Dentro do, não necessariamente, do Brasil como um todo, porque a


gente sabe que, claramente sempre vai ter aquele impasse entre a União e
entre o estado, enfim, mas, o que vocês sentem, pelo menos aqui nas
demandas do Maranhão? Que a gente claramente percebe que é muito
grande. Vocês sentem que existe mesmo essa tentativa de, não digo nem
tentativa, mas a existência mesmo de um óbice entre essa questão de
competência, quem é competente pra regularizar, quem não é...

M. S.: Acho que não tem essa confusão não. Talvez o entendimento é que é
confuso. Por exemplo, por mais que o INCRA trabalhe numa área que é da
255

União, ou do Estado, ou do particular, ao final de tudo aquilo que foi


competência do INCRA ele vai fazer. O que for competência do Estado, o
Estado vai ter que fazer. Eu acho que a confusão é mais por aí, né? Se a área
é devoluta, a área é do Estado, quem vai arrecadar, quem vai titular é o
Estado. Pode até fazer convênio, sei lá, algum tipo de termo a qual os dois
faça a titulação em conjunto, mas, assim, a competência é do Estado. Se o
Município tiver também, que é mais difícil de acontecer, ter um patrimônio
municipal dentro de uma área quilombola, também a mesma coisa, quem
teria a competência pra fazer a titulação seria o Município, e não o Governo
Federal. Agora, assim, o que é, o quê que é prerrogativa federal, é área de
particular que visa a desapropriação.

J. R.: A gente sabe que a demanda quilombola tá dentro de um conflito


maior, que inclusive foi versado aqui, e dentro desse conflito maior, da
própria questão, dessa, digamos assim, da violência mesmo no campo, o quê
que vocês fazem pra intervir, ou, então, o que vocês acompanham dentro
desse cenário? Se possível, que dados mesmo que vocês têm acerca disso, os
levantamentos que vocês têm?

A. S.: A gente tem informações que são trazidas justamente pelas


comunidades e aí o que a gente fez, é, a gente convida pra essas mesas
estaduais, a gente tem convidado o delegado agrário, o promotor de justiça,
Haroldo, que também é o responsável também por essa questão de conflitos
256

agrários. E também se fez presente a, qual é a secretaria que tem o programa


de proteção? É a de Direitos Humanos ou é a de Igualdade Racial?

M. S.: Do Estado?

A. S.: É.

M. S.: É a de Direitos Humanos.

A. S.: A de Direitos Humanos, né? Pois é, e aí a gente, essa parte mesmo de


combate à violência a gente só informa do que a gente recebe de denúncia, e
a última vez o delegado, a última não, acho que foi a penúltima,
antepenúltima mesa, ele informou telefones, e-mails, tudo isso pra que a
comunidade também procure.

J. R.: Mas vocês tem alguma espécie de contato direto com as comunidades,
ou com alguém envolvido dentro conflito em si?

M. S.: Não, não, não. A mesa tem feito isso, mais ou menos, o trabalho, quis
trazer essa demanda, inclusive essa mesa já estendeu pros outros órgãos, pra,
o ITERMA, que trata regularização também fundiária, delegacia agrária,
delegacia...
257

A. S.: É, mas a gente bate mesmo nessa tecla, o próprio delegado já


disponibilizou o e-mail, telefones e tal, e disse pra procurar a delegacia mais
próxima, se não tiver no município, mas procurar. Se não tiver, que
procurasse inclusive o Ministério Público, ele deu todas essas possibilidades
de que as pessoas procurem, e da mesma forma a gente tem feito com a
questão, quando envolve crimes ambientais, né? Então a gente também já
trouxe a mesa, vieram representantes do IBAMA, do IBAMA não, nunca
veio, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, SEMA, veio o responsável
pela parte de fiscalização, dos crimes ambientais, então, também
disponibilizou e-mail, telefone, todos eles pegaram, a gente constou em ata,
distribuiu a ata pra eles, então, assim, a gente tenta justamente fazer com que
eles deem andamento a essas outras demandas, né? Não só que o INCRA
fique com esse encargo de demandar secretaria, de demandar delegacia, a
gente quer que as próprias comunidades, e suas representações, também
busquem saber como anda, até o delegado chegou a mencionar isso, uma
coisa é só abrir o inquérito, tá lá. Se ninguém procurar, se ninguém for tentar
se informar, saber qual o resultado daquilo ali, fica difícil a gente só, só o
INCRA informar.

J. R.: Vocês sentem maior autonomia, assim, das comunidades em si, ou


vocês sentem que ainda existe como se eles se sentissem protegidos quando
tem alguém a frente, ou se vocês percebem realmente que eles já estão
conseguindo meio que desenvolver muitas coisas sozinhos? Por exemplo, ter
258

acesso a pessoas, autoridades maiores, enfim, ou se eles ainda precisam de


uma intervenção?

M. S.: Não, são poucos.

A. S.: É, são poucos.

M. S.: São poucos que tem esclarecimento. E outra, tem a questão financeira
também, posto que eles têm que fazer esse deslocamento, mas, assim,
algumas que tão sendo assim, essa informação seria interessante passar pra
CPT, a CPT que acompanha muito, muito mais próximo, principalmente
esses que são ameaçados de morte, tem uns que são protegidos, antigamente,
não sei se pela Presidência da República, mas quando tinha a secretaria de
direitos humanos, eram assistidos por eles, não sei como é que tá agora. E a
do Estado também que vem acompanhando, também agora. Assim, a CPT eu
acho que tem um, bom, tem esses, tem documentado de forma bem mais
clara, assim, cada situação, a qual eles têm também uma relação, um
telefone.

J. R.: Via de regra, assim, como que se viabiliza a titulação


especificamente?

M. S.: Então, deixa eu terminar o passo-a-passo. Eu parei em recurso, né?


Digamos assim que passou, superou toda essa fase contestatória, de recurso,
259

bom, e aí a área vai ser aquela que foi apresentada um estudo, então o
INCRA vai emitir uma portaria, um ato interno, também de reconhecimento
do território, a partir do reconhecimento daquele território, é que se vai ser
levado a, vai ser encaminhado pra fins de decreto. Decreto de interesse
social na área, a fim de desapropriação dos imóveis de particular. Isso leva
geralmente uns 180 meses, se tudo corresse bem, teoricamente mais 30 dias
de portaria até, civil, que é pro decreto, mas não é assim. Leva um tempo
danado pra editar um decreto, porque vai pra Casa Civil, Presidência da
República, até eles analisarem, até autorizarem, publicar, demora um certo
tempo. Aí sim, estando com esse decreto, assim, tu entra com a parte já de
avaliação de imóveis, o reassentamento de família, se for o caso, ou se for só
posseiro, ocupante, né? Se foi identificado como pequeno agricultor, pode
ser reassentado numa área de assentamento, se for o caso de assim aceitar, e
proprietário, esse não, esse é só indenização de terra e benfeitorias.

J. R.: E quando coincide, por exemplo, de ter uma pessoa dentro do


território que não é da comunidade?

M. S.: Aí depende do caso. Se é uma pessoa que a própria comunidade


aceita, é uma questão dos critérios de pertencimento, a gente não mexe, não
é o nosso trabalho, digamos assim, tem mais que se identificar aqueles que
não fazem parte daquele grupo. Aí sim, vai ter que pensar como é que vai ser
a estratégia pra retirar aquela pessoa, reassentar numa outra área, uma área
do INCRA, no caso, de assentamento, ou aquele cidadão, mais, talvez, que
260

tenha a posse de uma área, mas não é proprietário, isso já complica porque
vai incidir apenas a benfeitoria, né? A indenização de benfeitoria, se for o
caso, se for uma área ainda não regularizada, como por exemplo o Estado,
não regularizado, não titulado, não registrado, aí, sim, as pessoas saem um
pouco mais prejudicadas, já que não pode ser assentado e nem nada. Só uma,
receber só uma indenização da benfeitoria, pela a terra não vai poder. E, sim,
aqueles que se identificarem como comunidade, respeitam as regras da
comunidade, se a comunidade assim aceitar, não tira. Não há previsão,
digamos, de retirada, de fazer a desintrusão pra esses casos.

J. R.: Via de regra a gente sabe que, não só o INCRA, mas todos que estão
envolvidos, precisam obviamente de critérios formais pra, enfim, analisar ou
então participar dentro de um processo mesmo, não só de titulação, mas,
dentro de uma ação judicial, etc., pelo próprio ordenamento mesmo que a
gente se encontra. Só que assim, pra além desses critérios formais, critérios,
por exemplo, de autoidentificação, que são critérios trazidos dentro das
próprias comunidades, de pertencimento etc., esses critérios em si também
são percebidos aqui dentro do trabalho de vocês, ou vocês percebem, assim,
que por enquanto o trabalho ainda é muito formal, ainda não tem como se
preocupar com essas outras formas de se analisar?

M. S.: Eu considero assim que, por mais que a gente busque conhecimento,
ler, entender uma matéria que é bastante das ciências sociais, né? Eu sou
261

agrônomo, né? Aí de certa forma a grade curricular tinha uma coisinha


chamada sociologia, mas ela não chega a essas coisas não.

A. S.: Mas eu acho que quem chega assim, porque tem aquelas situações,
Martfran, das pessoas, deles mesmos virem buscar aqui ajuda, ou orientação,
e tal, assim, sem às vezes ter o processo aberto, sem as vezes a gente já ter
iniciado algum estudo. A gente leva em consideração essa situação de que a
pessoa tá se definindo, tá se identificando como quilombola, ou como
pertencente aquela comunidade. Se a gente entra, talvez, em contato com o
presidente, o próprio presidente diz que a pessoa é. Então, assim, eu acredito
que tá chegando, não é ainda muito usual, mas acho que tem casos sim que
só esses critérios de pertencimento, autoidentificação,aparecem aqui nas
nossas atividades.

M. S.: É, de alguma forma, o pouco trabalho que, tem pelo menos uma
noção geral de onde começa, qual a origem de tudo. Se tu pegas aqui,
pegamos aqui, que eu acho mais emblemático, de perto, Itapecuru, ali, Santa
Rosa, aquilo lá foi no século XVIII uma imensa fazenda escravocrata, então
a partir disso aí a gente tem uma noção assim, bom, que tá ali no entorno,
que tem um quilombo. Se é todos, não sei, mas, de fato lá tem muitos, Santa
Rita, vai até Rosário, de Rosário vai até Icatu, Icatu já é um pouco diferente,
porque lá também já teve, lá as áreas já foram bem antiga também,
escravocrata e tal, mas tem o caso emblemático ali do Belfort, né? O irlandês
que foi pra Portugal fugido da Irlanda por perseguições acho que por
262

questões religiosas, e em Portugal recebeu um título português, veio pro


Brasil, se estabeleceu aqui nas margens do Rio Itapecuru, então as áreas, a
área dele, cedida a ele pra trabalhar, produzir, desenvolver, é algo muito
grande, pegava de Rosário até Itapecuru, então esses relatos também, então,
inclusive tem, é, os parentes, quer dizer, os herdeiros dele já deixou de
herança a alguns escravos da época, alforriados, tanto que chegar lá em
Santa Rosa tu vê um monte de gente chamado Belfort, então é um grande
exemplo, assim, pra gente saber, entender, também, a partir da história, a
origem de cada canto aí.

J. R.: Pra fechar, o quê que vocês acham que, atualmente, é a maior
dificuldade do INCRA, em atuação, interno, enfim, em relação mesmo a
acompanhar, o quê que vocês acham que é o principal óbice pra poder
acompanhar mais de perto essas comunidades?

M: Não, o procedimento em si, até chegar a titulação, ele é muito complexo,


ele é muito extenso. Improducente, até, eu diria, assim. Então, requerer uma
atenção maior. Maior não só de dinheiro, da parte orçamentária, porque, se
não tiver, ninguém faz nada, mas também da mão de obra, mão de obra
qualificada pra fazer o serviço, pelo menos nessa primeira parte, na
condução desse processo. O procedimento é muito extenso, o procedimento,
se olhar direitinho, você vai ver que é muitas peças pra você construir ao
final de todo processo, ainda vem os penduricalhos de processos também, de
desapropriação, as contestações, com outras, abrindo outros subprocessos,
263

demarcação da área física para, futuramente, se pensar na titulação, e até


judiciário também, que a gente nunca sabe quando vai dar a sentença, a
sentença final dizendo que, que na desapropriação dizer que aquela área é do
INCRA, pro INCRA poder fazer a destinação, enquanto o judiciário não der,
não tem o que fazer. Não tem como se titular uma área. A maioria dessas
nossas áreas tá tudo ainda rodando apenas como um, só com emissão de
posse provisória, sem a sentença lá, sem a homologação, de traslado de
domínio, não tem como fazer a titulação da área. Aqui não temos nenhuma
área, e já são 10 decretos publicados. 10 territórios quilombolas. Desses 10,
nenhum, ainda não tem uma área toda constituída, uma área única de um
território. A gente tem feito, a titulação que houve, as 4 titulações existentes
até agora, são o que a gente chama de parcial, de titulação parcial, mas não é
do todo.

J. R.: Então não tem nenhuma comunidade atualmente que esteja totalmente
titulada?

A. S.: Totalmente não.

M. S.: Não.

J: Então seria meio que um grande óbice a questão do Judiciário. Vocês


acham que o INCRA, então, ele é ainda muito dependente disso?
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M. S.: Isso, por exemplo, por mais que a gente também avance, a gente
atropela bem no judiciário, mas por enquanto eu não posso dizer isso, porque
são poucas as áreas que de fato a gente entrou com pedido de ajuizamento
para fins de desapropriação. E nós temos um sobrestado por causa que o juiz
diz que só vai analisar o mérito e tal, a posse...

A. S.: Por causa da ADIN, né?

M. S.: Depois que for, é, julgada a ADIN 3239. Tem outro caso aí também
que mudou de vara também nem sequer tem emissão de posse ainda. Nós
tamos também com a Charpa. A gente tá com uma ACP com sentença já,
para três anos, já se passou dois, mas tem lá processo que nem sequer tem
emissão de posse lá no Judiciário.

A. S.: Medida de desapropriação.

M. S.: De desapropriação.

J. R.: Então meio que também obsta o trabalho de todo mundo, né? Porque,
assim, se não tem uma resposta do judiciário, você fica naquele eminente
conflito sempre, e meio que complica também o trabalho de vocês em
relação a também poderem ver o quê que é competência, o quê que não é,
né?
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M. S.: É. Eu acho assim, chegando na fase de ajuizamento da ação de


desapropriação e emissão da posse, eu também já acho tranquilo, porque já
eliminou qualquer possibilidade daquele fazendeiro, aquele proprietário de
terra voltar a fazer qualquer tipo de turbação...

A. S.: A discutir de novo a questão da área.

M. S.: É. Então, pra mim eu já nem me preocupo mais com o título, estando
ali na posse já é um grande avanço.
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