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Carta ao Rei
João Calvino identifica dois objetivos para sua obra: ensinar alguns rudimentos da
fé cristã e declarar ao monarca Francisco uma confissão. Entretanto, essa mesma
doutrina que Calvino deseja ensinar é alvo de ataque. O ataque acusa a doutrina
defendida por Calvino, dentre outras coisas, de sedição e de malefícios. As
sentenças levantadas contra essa causa são denominadas por Calvino de
“mentiras, ardis e calúnias” (p 14).
Calvino, por seu turno, conclama ao rei exercer seu dever, isto é, “reconhecer-se
ministro na administração do reino de Deus” (p 15), pois o rei age legitimamente
quando reina para servir a glória de Deus e obtém prosperidade quando é regido
pelo Seu cetro.
Calvino alega estar consciente de sua miserabilidade não apenas em relação a
Deus, mas também diante de seus semelhantes, de sorte que não tem de que se
gloriar, a não ser na misericórdia de Deus “para que não sejamos admitidos à
esperança da salvação eterna por nada que seja mérito nosso” (p. 16). Não
obstante sermos “paupérrimos e abjetos”, é preciso “que nossa doutrina seja
elevada acima de toda a glória do mundo e permaneça invencível sobre todo o
poder, uma vez que não é nossa, mas do Deus vivo, e do seu Cristo, que o Pai
constituiu Rei, para que domine de mar a mar, desde os rios até os confins da
terra. E é certo que a domine de tal modo com sua força férrea e brônzea, com o
esplendor dourado e prateado, que apenas estalada a vara de sua boca, não se
quebre diferentemente que um vaso de oleiro, do mesmo modo que os profetas
anunciaram sobre a magnificência de seu Reino [Dn 2,32; Is 11,4; Sl 2,9]” (p. 16).
Calvino então menciona outra acusação, a saber, “nossos adversários nos acusam
tomar falsamente a palavra de Deus”. A resposta de Calvino estabelece um
princípio hermenêutico denominado “proporção da fé” extraído de Rm 12:6. Tal
princípio está relacionado à postura que deve ser adotada pelo intérprete: “O que,
com efeito, converge melhor e mais adequadamente com a fé do que nos
reconhecermos desnudados de toda virtude, para que sejamos vestidos por Deus?
Vazios de todo bem, para que sejamos preenchidos por Ele? Servos do pecado,
para que sejamos libertos por Ele? Cegos, para que sejamos iluminados por Ele?
Enfraquecidos, para que sejamos sustentados por Ele? Afastarmo-nos de toda
matéria de glória, para que apenas Ele seja eminentemente glorioso e sejamos
glorificados n’Ele?” (p. 16).
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Ao declarar plena confiança na obra de Cristo, Calvino recorda ainda outra
acusação, isto é, de que tal confiança é repleta de arrogância e presunção (p. 17). A
resposta de Calvino é apontar para o reconhecimento de sua falência: “E tal como
nada há de nosso, mas tudo deva ser presumido de Deus, não somos espoliados
de toda glória vã senão para que aprendamos nos gloriar no Senhor” (p. 17). E
mais, a acusação é mais uma calúnia, pois “somos censurados porque depositamos
nossa esperança no Deus vivo [1Tm 4, 10], uma vez que cremos ser esta a vida
eterna: conhecer um único Deus verdadeiro e aquele a quem Ele enviou, Jesus
Cristo [Jo 17, 3]” (p. 17).
Calvino alega que as autoridades do catolicismo romano permitem que a
verdadeira religião “seja ignorada, negligenciada, desprezada” e que “nem os
impressiona muito que a glória de Deus seja manifestamente poluída com
blasfêmias, desde que não se levante um dedo contra o primado da Sede
Apostólica e a autoridade da mãe Igreja” (p. 18). Por outro lado, combatem,
motivados pelo estômago, em favor de doutrinas sem embasamento bíblico. Esse
mesmo zelo pelo estômago é que leva tais autoridades a atacarem a fé reformada.
Nesse ponto Calvino identifica outro estratagema do catolicismo, a saber, rotular a
fé reformada de novidade para então escarnecer dela como duvidosa e incerta (p.
18). Calvino não se deixa impressionar com tal ataque. Ele mina a força dessa
injúria ao asseverar que “ao chamá-la de nova, injuriam de modo veemente a Deus,
cuja Sagrada Palavra não merecia ser acusada de novidade. Tenho, por certo,
poucas dúvidas de que seja nova para aqueles que tanto o Cristo é novo como o
Evangelho é novo, mas os que aprenderam que seja antigo aquele discurso de
Paulo, que Jesus Cristo, morto pelos nossos pecados, tenha ressuscitado para a
nossa justificação [Rm 4, 25], não encontram nada de novo junto de nós [...] Vem da
mesma fonte de ignorância que a tomem como duvidosa e incerta. Foi anunciado
que o Senhor tenha se queixado, pela palavra de seu profeta, de que o boi
conhecesse seu dono, e o jumento, a manjedoura de seu senhor, mas que Ele não
fosse entendido pelo seu povo [Is 1, 3]” (p. 19).
Os inimigos da fé reformada exigiam, como prova de sua autenticidade,
confirmação através de milagres. A resposta de Calvino