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A estatuária como cultura material constitutiva de

espacialidades nas áreas rurais missioneiras


La estatuaria como cultura material constitutiva de espacialidad en las zonas rurales misioneras
The statuary as material culture constitutive of spatialities in rural áreas
Jacqueline Ahlert*
Luiz Carlos Tau Golin**

dos e condicionantes da construção dos


Resumo espaços extra doutrinas, agenciado por
Este artigo trata da estatuária como cul- indígenas.
tura material constitutiva de espaços nas
áreas rurais das doutrinas fundadas por Palavras–chave: Cultura Material. Estân-
jesuíticas e indígenas na América meri- cias. Estatuária. Missões Jesuíticas.
dional. Considera-se a complexidade da
criação desses contornos em sua signi-
ficância relacional e sua remanescência.
As regiões que abrangiam as antigas es-
tâncias e chácaras missioneiras conser-
vam imagens em madeira que perten-
ceram a capelas e ermidas espalhadas *
Doutora em História pela Pontifícia Universida-
pelos postos e assentamentos campe- de Católica do Rio Grande do Sul, Brasil. Profes-
sinos. A permanência desse fragmento sora do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade de Passo-Fundo, Brasil. E-mail:
da cultura material, que compunha e ahlert@upf.br
caracterizava os espaços missionais, so- **
Doutor pela Pontifícia Universidade Católica do
mada às referências encontradas na do- Rio Grande do Sul, Brasil. Com pós-doutoramento
cumentação primária e às contribuições em História na Universidade de Lisboa, Portu-
gal. Professor do Programa de Pós-graduação em
teórico-metodológicas fundamentadas História da Universidade de Passo-Fundo, Brasil.
na ótica da espacialidade, problematiza- E-mail: golin@upf.br
da por Tilley (1994) e Santos (2014), con-
duzirão as aproximações com os senti- Recebido em 03/09/2016 - Aprovado em 10/11/2016
http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.17n.1.7239

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A conformação de uma das pelos atores sociais. Para decodificar as
representações oriundas do ajuste entre as
espacialidade missioneira demandas impostas pelo sistema jesuítico-
-colonial e sua assimilação pelos indígenas
Quais seriam as alternativas metodo-
missioneiros, partiremos da noção de to-
lógicas para mesurar e descrever espaços
talidade como categoria analítica capaz de
fluidos, fronteiras difusas, pontos abstratos
mediar uma aproximação epistemológica do
distribuídos em mapas coloniais?
espaço (SANTOS, 2014, p. 73), numa aborda-
Noções de localização podem ser aces-
gem voltada ao lócus material e à conforma-
sadas nos escritos jesuíticos, na iconografia
ção simbólica consequente, na dialética entre
elaborada por padres e indígenas, e mesmo
o imaginário e os dados empíricos e na estru-
na aplicabilidade a coordenadas de latitude
turação da experiência humana e das respos-
e longitude apontadas por GPS. Entretanto,
tas às imposições do contexto histórico.
circunscrever pontos de referência não satis-
No que tange ao lócus material, a exis-
faz o desvelar dos dilemas espaciais vincula-
tência das estâncias justificava-se por serem
dos ao agenciamento humano da apropria-
formas de ocupação territorial, em sua com-
ção do meio.
plexidade organizacional de sedes povoa-
Os lugares, como marcos iniciais, são
dos, rancherios de invernadas, lavouras de
muito mais do que pontos ou locais. As ex-
manutenção alimentar e unidades de pro-
periências geográficas começam no lugar,
dução pecuária - com predominância sobre
estendem-se por meio dos espaços e criam
a criação de gados vacum, cavalar, muar
paisagens ou regiões. Conforme Tilley
e ovino. Seus extensos rebanhos estavam
(1994), a identidade pessoal e cultural está li-
destinados ao abastecimento dos povoados
gada ao lugar, tendo ele significados e valo-
interioranos, às cidades missioneiras e à ex-
res distintos para as pessoas. Sob esta ótica,
portação, especialmente por meio do benefi-
o estudo topográfico (topoanalysis) abarcaria
ciamento do couro e do uso dos chifres para
a compreensão da criação de auto-identi-
confecção de utensílios domésticos.
dades perpassadas pelo lugar1, enquanto o
As demarcações territoriais das estân-
espaço é um produto contextualmente cons-
cias, bem como as das chácaras, estavam
tituído por relações entre as pessoas e des-
atreladas à fundação das cidades e dos po-
sas com os lugares. Está centrado nas práxis
voados durante toda vigência administrati-
diárias dos indivíduos, articulando o cogni-
va jesuítica.
tivo, o físico e o emocional (TILLEY, 1994).
Ao introduzirem missões religiosas
É, assim, um resultado da inseparabilidade
na América Meridional, os inacianos depa-
entre sistemas de objetos e sistemas de ações
raram-se com um imenso espaço onde seus
(SANTOS, 2014).2
limites de ocupação balizariam os territórios
A complexidade da compreensão dos
“civilizados” dos ocupados pelos “bárba-
espaços por esse viés decorre da dimensão
ros”, divisão espacial entre cristãos e “pa-
subjetiva que possuem, incompreensível
gãos”. A legitimação da posse, iniciava-se,
fora das vivências simbolicamente construí-

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geralmente, com a fixação de uma cruz de pecificado como abambaé (abá – índio; mbaé –
madeira. Símbolo do cristianismo, essa de- propriedade) (HERNANDEZ, 1913, p. 208).5
limitava o território, primeiramente, como Aos “necessitados em geral, [...] enfer-
espanhol e cristão e, logo, como jesuítico. mos, viúvas, órfãos”, era destinada a produ-
A esse espaço simbólico e geopolítico os in- ção do Tupambaé, ou seja, do campo comum.
dígenas fortaleciam a noção de pertença e, A esse domínio pertenciam os rebanhos de
invariavelmente, invertiam o sentido, agre- gado e o produto da manufatura da erva.
gando os europeus ao seu direito natural de Seus produtos podiam ser utilizados para
povos originários. Em alguns casos, tendo-se socorrer povos vizinhos ou famílias cujas
unicamente a existência da aldeia ou regi- reservas do Abambaé houvessem acabado e
ões de trânsito, “não se tratava de uma to- ser, ainda, vendidos para ornamentação da
mada de posse com vistas a estabelecer de igreja e pagamento de tributos (HERNAN-
imediato uma redução”, posto ou estância, DEZ, 1913, p. 208).
com a representação cristã, mas demarcar No entanto, mais do que elemento de
o território a ser ocupado na perspectiva da posse e usufruto dos loyolistas, as estâncias
ampliação dos domínios da Companhia de e chácaras constituíam-se em espaços indíge-
Jesus (BARCELOS, 2006, p. 411). O marco nas, fosse pelo longo domínio físico-geográfi-
serviria de referência aos índios missioneiros co dessas paragens, fosse pelos sentidos e usos
e, sobretudo, como aviso aos não reduzidos. que tinham e seriam ressignificados nelas.
Em 1670, em visita as vacarias do Uruguai, Os conflitos e a legitimação dos espa-
o padre Jacinto Marques seguia o protocolo, ços andavam lado a lado desde a instalação
colocando “uma cruz naquele território, a dos primeiros núcleos destinados ao plan-
qual ainda se conservava no ano de 1680, e tio e à pecuária.6 Na segunda metade do
foi vista por muitos índios, que ali foram va- Seiscentos, o cacique Don Thomas Potira,
quear” (MANUSCRITOS DA COLEÇÃO DE relatou ao ouvidor da Real Audiência de
ANGELIS (MCA) [1669-1749], 1954, p. 413).3 La Plata, Don Juan Blasquez de Valverde,
O sistema de cultivo dos povoados que, para o povo de San Francisco Javier,
era definido pela divisão a partir dos caci- havia a “necessidad se le senalassen tierras
cados.4 Assim, “cada um dos vinte ou mais sufficientes para tener en ellas estancias de
caciques” que formavam as parcelas das ganados, chacaras, y sembrados porque de
doutrinas recebia para a sua família extensa tenerlas en cumunion con los índios de los
“uma porção de todo o território em que po- demas pueblos sircunvecinos era ocasion
diam plantar e colher conforme sua necessi- de disgustos y discórdias entre ellos”. Ao
dade”. A produção familial ainda podia-se que os índios de Concepcion reagem adver-
subdividir para o esforço de casais (acresci- tindo que sua posse sobre a terra “entre el
dos de avós e filhos). O módulo territorial Uruguay e Yyiu” era um “derecho natural”
destinado ao conjunto de usos em benefício (MCA, [1611- 1758], 1970, p. 31).
dos indígenas, conforme suas capacidades Em contrapartida, alegavam os índios
familiares e individuais de trabalho, era es- de San Javier, lhes pertencer dito território,

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“pois fôra aí a estância de Nheçu, onde fo- Figura 1 – Mapa Compuesto por un indio guarani y en
el que se consignan las estancias de algu-
ram vitimados os Padres Roque, Afonso nas reducciones
Rodriguez e João del Castillo”, cujos povo-
adores, “mais tarde, temerosos da invasão
bandeirante”, se haviam trasladado para o
povoado homônimo, com seu cacique, D.
Francisco Nongi (PORTO, 1983, p. 322).
Os indígenas conheciam os lugares. O
domínio milenar do território era algo que os
inacianos valorizavam e do qual valiam-se
para localização e planejamento estratégico.
Na “Description de los Parajes cercanos al
fuerte [Forte Jesus, Maria, José do Rio Pardo, Fonte: FURLONG, 1936, Lâmina VII, n. 16 do Catálogo, p. 42
localizado à margem esquerda do rio Jacuí, do texto. In: BARCELOS 2006. CD.

na confluência do rio Pardo, na elevação


esquerda de sua foz] y de los rios de aque- Carmen Curbelo (2014) assinala o des-
las cercanias, y de sus duenos naturales” conhecimento do território por parte dos
(1754), o padre Bernardo Nusdorffer oferece sacerdotes, observável na dificuldade de re-
informações relevantes sobre a relação dos alizarem-se os inventários quando se concre-
indígenas com a região: sua habilidade de tizou a expulsão dos jesuítas. A arqueóloga
representação iconográfica da topografia; o atribui a situação ao distanciamento daque-
domínio histórico daqueles sítios - perpas- les que conheciam e atuavam nesses espaços.
sado pelos anos e gerações -, e a mobilidade A presença dos curas era rara nas áreas
desses no amplo território além-doutrinas. rurais. Fosse nos domínios da Província Pa-
raguaia, ou entre os chiquitos, os padres re-
Para q el que leiere este escrito tenga algu-
latavam: “Es mucha canga y trabajo para el
na noticia de la tierra y sítios de q se habla
me ha parecido conveniente dar en este lu- Cura”, cuidar das doutrinas, chácaras e das
gar alguna description della, especialmen- estâncias (MCA, [1703-1751), 1955, p.122).
te de los rios; no vendo yo esta description Destarte, como ocorreu nos demais domí-
por la mas exacta, aunq algunos rios y pa-
nios missioneiros, o agenciamento indígena
rajes yo mismo los he visto con mis ojos,
otros tengo de otros PP.” q han estado en conduziu o processo formativo das “redu-
ellos, y otros se leen en ei P. Del techo y lo ções”, porquanto dois curas não poderiam
pintan en sus estancias los índios como estan, impor um padrão de organização absoluto
los quales ay se criaron y los han andado con- a milhares de indígenas.8
tinuamente y los andan, assi quando van à los
A qualidade da administração indíge-
Yerbales y à sus estancias (MCA [1750-1802],
1969, p. 254) (grifo nosso).7 na variou durante a longa experiência ina-
ciana na América do Sul, no entanto, a sua
importância era destacada nas ânuas. “La
experiência ha mostrado q nuestros Yndios

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lo ban haciendo mui bien”, expõe o Padre Cargos estratégicos tinham o cuidado
José Paulo de Castanheda, em 1704 (MCA, criterioso dos missionários, muitas vezes
[1703-1751), 1955, p.100). atribuídos a alguma das irmandades da re-
As estâncias possuíam populações fi- dução, a exemplo dos conflitos de jurisdição
xas em suas sedes e nos postos administra- territorial, rebanhos que transitavam para
tivos das invernadas, em cujos ranchos os estâncias de outros povos, e os conflitos com
altares domésticos ou a presença de estátuas os índios “infiéis” e os gaudérios. Os alferes
certificavam o sistema missioneiro. Todavia, encarregavam-se da defesa e também do po-
em períodos sazonais de rodeios e tropea- liciamento interno, tendo, invariavelmente,
das, circulavam temporariamente tropeiros, a capacidade de associar aptidão militar e
alferes encarregados do controle contábil diplomática. As estâncias missioneiras de
e das milícias. Um sistema de milícias per- fronteira mantinham milícias organizadas,
manente e volante, conforme os desafios, operavam em conjunto entre elas, conforme
criou um tipo singular de homem campei- a região, e contavam com reforços de tropas
ro e guerreiro, preparado para o pastoreio das cidades do Povo. Em 1707, por exemplo,
e a guerra. Indivíduos que protegiam seus a invasão da estância de Yapeyú pelos “infi-
corpos com santitos de madeira, os quais éis” redundou no adestramento militar dos
campeiravam e percorriam o território no milicianos, a exemplo do que ocorrera em
enfrentamento de “infiéis”, gaudérios, por- toda a fronteira missioneira. No ataque fo-
tugueses, castelhanos, e demarcavam posses ram “mortas treze pessoas e levaram vinte e
em relação à disputa com outras reduções. seis mulheres e mais algumas crianças como
Dependendo da estância, os residentes fixos cativas, furtando no caminho quatrocentas
podiam oscilar de dezenas a mais de uma éguas mansas e outro número de cavalos”
centena de famílias, além dos campeiros e (MCA [1611-1758], 1970, p. 238-9). Além da
tropeiros. No conjunto era uma população autonomia militar dos Povos, suas forças re-
formada por gerações, que acumulavam co- alizavam expedições fronteiriças associadas
nhecimentos de pecuária, lavouras de sub- com tropas espanholas.
sistência, equitação para o trabalho e para a Tomando como exemplo o caso de Ya-
guerra de cavalaria e artilharia rústica, além peyú, nota-se que as soluções pensadas pelo
de dominarem a espacialidade territorial. cura para resolver os conflitos e recuperar os
Nelas existiam uma complexa divisão do cativos foram bastante elucidativas quanto
trabalho, de índios estancieiros (geralmente, ao relacionamento entre indígenas fiéis e in-
caciques ou irmãos administradores), capa- fiéis, bem como entre reduzidos e não redu-
tazes, posteiros, domadores, campeiros etc. zidos. Primeiro, chamou os guenoas cristãos
Em tais espaços também se associava a divi- da redução de Jesus Maria, solicitando-os
são de funções de gênero e idade, a exemplo para que interviessem junto aos seus paren-
da manutenção de uma diversificada lavou- tes infiéis, que se recusaram prontamente,
ra, pomares, e pequenos animais domésticos “alegando com demasiada energia” e que
para a alimentação. aquilo era um falso testemunho, sendo que

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haviam sido outros, “os mbohas e yaros”, os Os espaços rurais propiciavam a ma-
responsáveis. Convidou o cura, então, os ca- nutenção do ethos indígena guerreiro e co-
ciques das imediações para uma conferência munitário. A vivência com os parentes não
sobre o caso, “os quais não recusaram vir; reduzidos, a presença de nações distintas, as
porém, por melhor que fossem as argumen- defesas estratégias do território e os embates
tações, nada bastou para que escutassem”. com invasores estão descritas em inúmeras
Seguiu-se a solução drástica da “guerra Cartas Ânuas.
defensiva” contra os guenoas infiéis (MCA Conformava-se um espaço que mante-
[1611-1758], 1970, p. 238-9). ria seus sentidos de uso, ainda que com seus
A “população” missioneira fora das lugares reduzidos, após o início do processo
cidades sempre foi expressiva. Apenas de decadência missional no Paraguai.9 Seus
como exemplo, no pós-período jesuítico, as marcos principais eram as sedes/povoados,
estâncias continuavam funcionando arti- os postos e, sobretudo, as capelas. Os rema-
culadamente, administradas pelos indíge- nescentes de suas fundações, em sua maio-
nas. Registro de Gonzalo Doblas, de 1785, ria, perderam-se na exposição ao tempo e/
constata que nessas unidades de produção ou as atividades humanas. Restam, substan-
havia “pelo menos trinta índios, com suas cialmente, as imagens que os compunham,
mulheres, filhos e filhas”. Regularmente, como testemunhos iconográficos de práticas
passavam de “setenta pessoas, ainda que e traduções.10
não tenham que cuidar de mais de vinte mil
animais” (1836, p. 23). No entanto, como em
Capelas e imagens como elementos
toda a sua história, era na época sazonal dos
rodeios e de formação de tropas, que as es- relacionais
tâncias inflavam realmente sua demografia.
Até a invasão luso-brasileira de 1801, O espaço só pode existir como um con-
que desencadeou o bárbaro fenômeno de junto de relações entre coisas ou lugares.
Neste sentido, não há espaço que não seja
destruição e apropriação missioneira, a con-
relacional. O espaço é criado por relações
vivência interétnica era constante nesses es- sociais, objetos naturais e sociais (TILLEY,
paços, bem como entre indígenas reduzidos 1994, p.11).
e seus parentes “del monte”. Na estância
As sedes das estâncias missioneiras
supracitada, já no contexto das demarcações
constituíam-se de um núcleo populacional,
do Tratado de Madri, “estaban todos los in-
com ranchos, galpões e capelas, com carac-
fieles charruas, mohanes, yaros, guenoas y
terísticas de “povoados”. Representavam
minuanes, refugiados, porq todos estaban
unidades autossuficientes, na relação com a
mal con los espanoles, ni hallaban en otra
doutrina e demais áreas missionais.
parte sustento para vivir, sino con los índios
A existência de capelas acrescia ao es-
Yapeyuanos sus parientes” (MCA, [1750-
paço o lócus do sagrado. Além disso, a defi-
1802], 1969, p. 251).
nição de uma referência, de uma orientação.

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Os elementos básicos, que compunham o onde há por conseguinte a presença de um
sentido de sua materialidade eram as ima- conteúdo simbólico e discursivo e de um sig-
gens dos santos, fossem eles padroeiros da nificado operacional12 que lhe dão sentido.
doutrina a que pertencia a estância, fossem A presença das estruturas religiosas
entidades consagradas a labuta campesina. era parte fundamental da elaboração dos
Adentramos, assim, o âmbito da cul- espaços missionais. Os povoados estavam
tura material no espaço estancieiro. Con- repletos de capelas, altares improvisados,
siderando-a um “segmento do meio físico oratórios móveis e imagens de culto comum,
que é socialmente apropriado pelo homem”. familiar e pessoal (AHLERT, 2012).
Segundo propósitos e normas culturais, a Fora dos povoados, a presença de ima-
apropriação se faz por intervenções que dão gens fazia-se, sobretudo, nas chácaras e es-
função e sentido ao meio físico. Essa “ação, tâncias. Todos os postos das estâncias possu-
portanto, não é aleatória, casual, individu- íam capelas. Ao percorrer parte das antigas
al, mas se alinha conforme padrões, entre estâncias jesuíticas em território oriental,
os quais se incluem os objetivos e projetos” em fins do século XVIII, o historiador Alejo
(MENEZES, 1983, p.112).11 Peyret escreveu: “Em San Miguel [posto da
São compreendidos como objetos, além estância de Yapeyú], outro estabelecimento,
do arranjo espacial manipulado, as cercas, outro oratório dos jesuítas [...]. Em Santa Te-
currais, casas, postos e demais suportes de cla, outro estabelecimento, outro oratório”
desempenho das funções rurais. Objetos (1881, p. 64 e 66). Do mesmo modo que em
compósitos do espaço eram, ainda, as cape- Santa Maria, posto nas imediações do Rio
las e seus ornamentos, cujo conjunto forma- Negro/URY.
va, como cultura material, o núcleo religioso O padre Domingo Muriel, nos aponta-
da zona. mentos que realizou entre 1747 e 1767, enfa-
Santos elucida a dialética dos objetos e tiza que
espaços,
Además de los edificios construidos en las
Sem dúvida, o espaço é formado de obje- treinta Doctrinas, unos de piedra, otros de
tos; mas não são os objetos que determinam barro, unos más y otros menos perfectos,
os objetos. É o espaço que determina os ob- según la posibilidad de cada uno, todas
jetos: o espaço visto como um conjunto de las Doctrinas tienen algunos pagos o pue-
objetos organizados segundo uma lógica blecillos menores. En ellos hay una capilla
e utilizados (acionados) segundo uma ló- para que ejerciten sus actos religiosos y de
gica. Essa lógica da instalação das coisas e piedad unas cuantas familias que viven en
da realização das ações se confunde com a cada pago con un alcalde y mayordomo in-
lógica da história, à qual o espaço assegura dio. Y así como todas las Doctrinas tienen
a continuidade (2006, p. 24, grifo do autor). estos pueblecillos campestres, así también
cada indio particular se fabrica su cabana,
Por essas razões, não se pode dissociar sus chacras o abambaés, que a las veces es-
tán bastante apartadas del pueblo, y a ellas
os espaços dos objetos que materializam sua
se van por algún tempo (1919, p. 558).
existência, sendo esses articulados juntamen-
te com suas funções e ações que lhe dão uso,

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A devoção aos santos nos ambientes são, ao som de cânticos, a estátua de Santo
de cultivo estava intrinsecamente ligada às Isidro, padroeiro dos camponeses.
crenças ancestrais pela concepção de que
Ao som de tambores se juntam todos os
fatores externos aos mecanismos funcionais que são capazes de trabalhar, e os que têm
do plantio e da colheita tinham “poderes” ofício vão às suas oficinas [...], e os demais,
de intercessão no domínio das pragas, do ao som do mesmo tambor, vão como em
tempo e da produtividade. procissão ao campo, levando consigo al-
gum santo em um tablado, que comumen-
Os poderes da natureza e dos fenômenos te é Santo Isidro Lavrador, com quem os
naturais são transformados pelos indíge- pobres índios têm especial devoção em
nas em seres sobrenaturais [...]. Numa ta- todos estes povos, e chegando ao local de
xionomia ocidental corresponderiam a en- trabalho, colocam o santo em um lugar de-
tidades inferiores, ou seja, divindades que cente, [...] e trabalham [...] até a meia tarde.
atuam positiva ou negativamente sobre o Semelhantemente, as meninas por outro
ser humano. Esses seres são comumente lado, carregam a Virgem ou outra ima-
chamados, hoje em dia, de espíritos. Além genzinha e em procissão saem, trabalham,
dos espíritos de plantas e de animais de comem com suas Herequarás uns e outros
caça, há também os guardas das matas e (ESCANDON, 1965, p. 97).
dos montes, o que é bastante significativo,
já que a vegetação é concebida como uma Entre a intimidade e a afinidade com
espécie de pele ou de pelo do corpo da ter- os santos, estava o esmero: “Levam, com a
ra. Em muitos casos, os termos “espírito” e comida para o meio dia, […] instrumentos
“dono” são usados como sinônimos pelos
para o trabalho e uma pequena estátua de
índios. “Os espíritos são os cuidadores e
guardas, herekua, ijára, dos animais e das São Isidro Lavrador, em seu andor, com sua
plantas”, tenta explicar um indígena. Em caixa para protegê-lo quando chove” (CAR-
vários grupos kaiová e paĩ-tavyterã, esses DIEL, in HERNANDEZ, 1913, p. 107).
espíritos são chamados de “guardas do
Além da imagem que era carregada
ser” (Tekojára). Eles são os guardas ou as
donas do modo de ser de uma determina- para área de trabalho, nas chácaras e estân-
da espécie animal ou vegetal, bem como cias não poderiam faltar capelas para Santo
de alguma faculdade do ser humano. Os Isidro, por vezes, acompanhado de sua es-
“guardas do ser”, em algumas circuns- posa, Santa Maria de la Cabeza. “Cada es-
tâncias, parecem marcar o limite entre se-
res sobrenaturais e naturais. A diferença
tância jesuítica tem sua capelinha”, notou
essencial entre ambos os seres seria que Félix Azara, décadas depois da expulsão
os sobrenaturais são seres completos, co- dos jesuítas do território espanhol. Nelas, os
nhecedores de seu próprio modo de ser, “estancieiros e guardas do gado [posteiros,
enquanto que os naturais muitas vezes ca-
campeiros de ronda] rezavam o rosário e
recem de entendimento. A terminação jára,
“dono”, indica que os seres denominados outras orações, e aos domingos cantavam o
sob o epíteto Tekojára são os que conferem kyrie [eleison],13 credo, prefácio e tudo o que
características animistas à religião guarani se canta numa missa” (AZARA, 1873. p. 189
(CHAMORRO, 2008, p. 165). e 193). A terra para os guaranis, ancestral-
Sobretudo nos povoados, quando iam mente, ordenava e equilibrava-se no cosmos
aos campos, as crianças levavam em procis- pelo canto e pela festa e, nas doutrinas, em

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grande parte, através do ritual cujo centro por capelas, entre elas a ermida15 sempre
era a imagem, levada em procissão, presi- presente na área rural jesuítica, de Nossa
dindo o trabalho nos campos. Senhora de Loreto, que era “toda feita com
as mesmas medidas da capela donde Nossa
A terra recebe sua plenitude de seu funda-
mento religioso, baseado em um ato litúr- Senhora recebeu pelo anjo a embaixada para
gico realizado por “Nosso Primeiro Pai”. Mãe de Deus” (FARIA apud GOLIN, 1999,
A conservação do mundo consistia, conse- p. 493).16
quentemente, em manter viva e atual essa Após a Guerra Guaranítica e expulsão
liturgia [...]. Deixar de rezar e descuidar o
ritual seria como tirar da terra seu próprio dos jesuítas, durante o abandono gradual
suporte, provocando sua instabilidade e dos missioneiros aos povoados, as estâncias
consequente destruição (MELIÁ, 1991, constituíram um dos refúgios possíveis aos
p. 57). que não voltaram a viver nos montes ou
queriam manter alguma relação, ainda que
O espaço não é e não pode existir dis-
simbólica, com a antiga organização. As
sociado dos eventos e atividades nos quais
capelas representaram a possibilidade de
está implicado (TILLEY, 1994). As práticas,
manutenção de práticas religiosas e foram o
nessa perspectiva, demandavam estraté-
meio através do qual se firmou certa devo-
gias diferenciadas de culto nas áreas rurais.
ção rural crioula da qual muitas imagens são
A relativa distância dos curas, o habitus da
remanescentes.
religiosidade ancestral, a proximidade com
O mapa produzido pelo cabildo de La
segmento “não-reduzido” do mundo colo-
Cruz, em 1784, indica a existência de 57 cape-
nial, como mencionado acima, e as ressigni-
las nos arredores das reduções de San Tomé,
ficações da práxis produtiva, encontraram,
São Borja, La Cruz e Yapeyu. Percebe-se que
gradualmente, adequações na apropriação
elas estavam regularmente distribuídas no
dos segmentos físicos.
território. Suas distâncias, comumente, va-
Apesar das esparsas visitas dos padres,
riavam de duas a sete léguas, possibilitando
a importância do espaço sagrado comum
que a cada dia de caminhada, pelo menos
materializado pelas capelas mantinha-se
uma, servisse de parada para realizar as ora-
fundamental, potencializando sua necessi-
ções ou acampamentos.
dade. No diário do engenheiro militar José
Custódio de Sá e Faria, durante a demarca-
ção (1752-1759) do Tratado de Madri (1750),
a referência às capelas é numerosíssima.14
Essas edificações acabaram por se converter
em postos de referência para os demarcado-
res e local de acampamento. Assim ocorreu
nas margens do Jacuí, “onde havia uma ca-
pela de Santa Ana abandonada”, e do Vaca-
caí-Mirim. Entre os povoados de São João e
São Miguel, havia um caminho delineado

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Figura 2 – Detalhe do mapa produzido pelo cabildo de Na mesma época (1882), viravam-se
La Cruz, em 1784. Localizado no Archivo
General de la Nación, em Buenos Aires.
com o que dispunham os índios cristianiza-
Sala IX, 22-8-2 dos instalados a léguas de La Cruz, em San-
to Antônio da Palmeira, atual município de
Palmeira das Missões. Eles estavam ali des-
de 1847, conforme o “Relatório do presiden-
te da Província de S. Pedro do Rio Grande
do Sul”, redigido pelo senador conselheiro
Manoel Antonio Galvão,
Ocorreu neste ano [1847], no distrito de
Palmeira, onde tinha o tenente José Joa-
quim de Oliveira um campo: nos fundos
dele apareceram em maio 200 índios de
ambos os sexos: às expensas suas e com
o que pode obter dos moradores da Cruz
Fonte: BARCELOS, Arthur H. F. O compasso e a cruz. Carto- Alta, as solicitações do juiz municipal a
grafia jesuítica da América Colonial, 2006. CD quem escrevera, acudiu as primeiras ne-
Legenda: os pontos pequenos indicam as capelas. As redu- cessidades dos novos hospedes.17
ções de San Tomé, São Borja (acima, respectiva-
mente a esquerda e a direita do rio Uruguai), La Cruz
Nos períodos de crise, as estratégias
e Yapeyu estão sinalizadas por pontos maiores.
missionais pareciam emergir na urgência
de soluções que envolviam a sobrevivência.
A referência às práticas religiosas nas
Nas estiagens eram usados “vários meios
capelas rurais é, comparativamente, rara.
para pedir misericórdia e clemência divinas,
No entanto, há indícios do prosseguimen-
suplicando por chuvas”. Entre eles, eram or-
to dos cultos nos povoados. Na doutrina
ganizadas “procissões e feitas orações espe-
de La Cruz, os sacramentos e liturgias ca-
ciais” (BESCHOREN, 1989, p. 79). O espaço
tólicas haviam sido apropriados e estavam
continuava formado de objetos intercesso-
sendo realizados pelos próprios índios. Aos
res, entre o terreno e supraterreno, no âmbi-
domingos, “um jovem sacristão guarani ce-
to móvel da cultura material e identitário do
lebrava o ofício vespertino; uma índia anciã
lugar onde se estabeleceram.
conduzia o canto sendo acompanhada por
Das imagens processionais levadas
dois violões, uma flauta e dois violinos”. A
para lá, algumas se encontram no Museu
atitude dos poucos índios e mestiços que
Vicente Pallotti, de Santa Maria, outras, em
chegavam a desolada igreja espantou o his-
casas particulares de Cruz Alta.
toriador Alejo Peyret, pois “indicava a devo-
A conclusão da igreja de Palmeira das
ção e as lembranças”. O cemitério ao lado da
Missões aconteceu somente em 1879. Duran-
igreja estava “muito bem cuidado e muitas
te esses anos, a maioria dos sacramentos era
tumbas antigas têm a lápide com seu epitá-
realizada autonomamente, mesclando o que
fio em guarani” (1881, p. 255).
havia de memória e o que sentiam fazer-se

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necessário nas liturgias do calendário cristão passando a história dos objetos para acessar
que sobrevinham. aspectos da sociedade que os forjou.

Considerações finais Abstract


Como destacou Aurélio Porto, as es- This article deals with statuary as a ma-
tâncias e vacarias dos Povos Orientais ocu- terial culture constitutive of spaces in ru-
pavam quase todo o atual território rio- ral areas of doctrines founded by Jesuits
-grandense, “com exclusão apenas do trato and Indians in South America. It is con-
sidered the complexity of the creation of
de terra compreendido pela bacia oriental
these contours in its relational significan-
do Taquari, se bem que, no Planalto, esten-
ce and its remanence. The regions that
dam-se até os campos da Vacaria”. Mesmo
included the olden cattle ranches and
dentro desse trecho, “em plena Serra, esta- missionary farms retain wooden images
belecem entrepostos de aproveitamento de that belonged to chapels and hermita-
grandes ervais nativos, que exploram inten- ges scattered throughout the posts and
sivamente, como ocorre no Alto Uruguai, peasant settlements. The permanence of
desde as manchas riquíssimas dõ Nhucorá, this fragment of material culture, which
às cabeceiras do Rio da Várzea, até a Serra composed and identified the missiona-
do Erval, no Sul” (PORTO, 1983, p. 320). ry spaces, together with the references
Permanecem em seus antigos postos found in the primary documentation
as imagens. Algumas compondo acervos de and the theoretical-methodological con-
museus municipais, outras em coleções par- tributions based on the optics of spatia-
ticulares e várias em uso religioso, passados lity, discussed by Tilley (1994) and San-
tos (2014), will lead the approximations
séculos do contexto no qual e para o qual
With the senses and determinants of the
foram criadas. Representam o espaço que
construction of the extra doctrinal spa-
constituíam como cultura material, as inú-
ces, acted by indigenous.
meras evocações de Nossa Senhora, Jesus e
dos santos, em Canguçu, Cerro Largo, Rio Keywords: Material Culture. Jesuit Mis-
Pardo, Santiago, Ijuí, Alegrete, São Gabriel, sions. Cattle Ranches. Statuary.
Santa Maria, Passo Fundo, Santa Bárbara do
Sul, etc.
O que legam as imagens são apenas
Resumen
fragmentos materiais de um passado - de En este trabajo se analiza la estatua-
sucessivos passados - cuja simples ilustração ria como cultura material constitutiva
pouco responde. A articulação do espaço de espacios en las zonas rurales de las
com a cultura material, como unidade míni- doctrinas fundadas por los jesuíticas y
ma mediada e fabricada por um significado indígenas en sur de América Latina. Se
operacional e anímico (SANTOS, 2014), nos considera la complejidad de la creación
aproxima da dinâmica das relações, ultra- de estos contornos en su significado re-

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lacional y su remanencia. Las regiones 3
Informação Jurídica, por meio de questionário e
que abarcaban las antiguas estancias de respostas de várias testemunhas, sobre o direito
que têm os índios das Missões Guarani e Tape às
ganado y granjas misioneras conservan Vacarias do Uruguai Ou Do Mar. H-Ix-1722.
imágenes de madera que pertenecían a Para melhor assistência a esses campos, que ocu-
capillas y santuarios diseminadas en las pavam largas extensões territoriais, estavam eles
divididos em estâncias e estas em postos, em
estaciones y asentamientos campesinos. torno dos quais se erguiam pequenas capelas,
La permanencia de este fragmento de e igrejas, algumas de relativa importância, que
la cultura material, que formó e identi- deram origem a cidades e importantes povoados
rio-grandenses (PORTO, 1983, p. 330)
fica los espacios misionales, además de 4
Como se sabe, “os parientes agrupados en di-
las referencias encontradas en los docu- ferentes cacicazgos, regían la division interna
mentos primarios y los aportes teórico- de la reducción y, en última instancia, también
-metodológicos basados en el punto de marcaban las disputas por el control de espacios.
Puesto que la participación coordenada dependía
vista de la espacialidade, problematiza- de la lealtad basada en la inmediatez del paren-
da por Tilley (1994) y Santos (2014), con- tesco, la emergencia de líderes reconocidos más
ducirán las conjeturas sobre los sentidos allá de los límites de sus propios pueblos solo
podía tener una existencia temporaria y efímera.
y las condiciones de la construcción de Por lo tanto, las alianzas en torno de un gran líder
los espacios extra-doctrinas, llevados a respondían menos a una tradición de unificación
cabo por los indígenas. que las particulares circunstancias de la guerra,
que impedían a los cacicazgos afrontar la coor-
dinación de las acciones por sí solos.” (WILDE,
Palabras clave: Cultura Material. Estan- 2009, p. 173).
cias. Estatuária. Misiones Jesuiticas. 5
O projeto de inserir o indígena num trabalho re-
gular e que produzisse excedentes foi marcado
por dificuldades e resistências, conforme relatos
recorrentes nas correspondências ânuas e demais
fontes. De acordo com Hernández, citando as re-
Notas clamações de Cardiel, para evitar o abandono das
chácaras e a produção insuficiente para o sustento
1
Junto a Christopher Tilley, tais considerações do ano inteiro, “se mandava aos alcaides que per-
estão ancoradas nos estudos de Edward Relph, corressem as lavouras de cada um, para observar
cujo objetivo ao discutir a identidade dos luga- se eram suficientes e estavam em bom estado”;
res é entender a forma como a experiência dos ainda assim, por vezes era necessário que o “cura
lugares ocorre e seus componentes. Ele identifica saísse e vistoriasse” (1913, p. 208). Cf. SANTOS,
pelo menos três componentes do envolvimento Júlio R. Quevedo. A regulamentação do trabalho
dos sujeitos com os lugares: a configuração físi- indígena nas Missões Jesuíticas. Revista Latino-
ca, as atividades e os significados (RELPH, 1976, -Americana de História. Vol. 1, nº. 3, Março de 2012.
p.47) RELPH, Edward. Place and placelessness. Disponível em: <http://projeto.unisinos.br/rla/
London: Pilon, 1976. index.php/rla/article/viewFile/66/44>.
2
A relação entre espaço e lugar tem sido discutida 6
A primeira estância para a criação de gados que
e teorizada a partir de uma perspectiva particular se estabeleceu na Banda Oriental do Uruguai é
dentro de uma ‘escola’ fenomenológica da pes- a que pertenceu à Doutrina de São Xavier, nas
quisa geográfica (Taun 1974, 1975, 1977; Pickel terras fronteiras ao seu povo. A concessão tem a
1985; Relph 1976; Buttimer e Seamon 1980; Sea- data de 10 de Julho de 1657 e é feita por Valverde
mon e Mugerauer 1989). A principal preocupação (PORTO, 1983, p. 323).
nesta abordagem é a maneira pela qual lugares 7
De la relacion de lo succedido en estas doctrinas.
constituem espaços como centros do significado Tercera parte de la relacion de lo succedido en
humano, sua singularidade de ser manifestada estas Doetrinas, desde saliò delias el P.e Visita-
e expressada nas experiências do dia-a-dia e na dor Alonso Fernandez, hasta la retirada de los
consciência das pessoas dentro de vivências par- dos Exércitos Espanol y Português y fin del afio
ticulares. de 1754.

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8
A partir de meados dos anos 1980, estudos sobre 15
A diferença entre ermida e capela não é substan-
o agenciamento indígena nas Missões Jesuíticas cial neste estudo. A ermida consiste numa edifica-
problematizaram as tradicionais versões de um ção realizada numa área rural, para uso dos mo-
poder vertical imposto pela Companhia de Jesus. radores do local. No caso das Missões Jesuíticas,
9
O conhecimento do lugar deriva de experiências, as fontes denominam como capela estes espaços,
sentimentos e pensamentos humanos. Espaço é sendo que, a termo, designaria espaços de culto
uma construção muito mais abstrata do que lu- público, na constituição inicial de um povoado.
gar. Ele fornece um contexto situacional para os 16
Os trabalhos de campo para demarcação do Tra-
lugares, mas deriva seus significados de lugares tado de Madri ocorreram entre os anos 1752 a
particulares (RELPH, 1976, p.8). Sem lugares 1759. São inúmeras as capelas citadas, a exemplo
não podem haver espaços, e os primeiros têm das referências: “Neste Campo [de Santa Clara],
significado ontológica primária como centros de achamos 3 ranchos de palha e um deles havia
atividade corporal, significado humano e apego servido de capela”. O mesmo ocorria no Campo
emocional. das Vacas. “Achamos, neste Campo, 6 ranchos
10
Sobre a qualidade perecível do material utilizado de palha. Um deles era capela. Esta tinha mais
para construção de algumas habitações, o padre algum asseio do que as capelas que até aqui te-
Domingo Muriel observou: En esos pueblecillos mos encontrado. Tem junto à porta uma cruz de
y en esas cabanas apenas alcanzan los ojos a ver pau, de altura de 6 palmos; e de fronte da mesma,
más que cuero. Levántanse las paredes con esta- outra mais alta, distante 20 braças. Tem junto um
cas forradas de cuero. Todos los techos se cubren curral e a porta da capela fica para o sul” (p. 437
de cueros, y así duran tanto cuanto dura el tiem- e 441). Além das capelas, os campos paraguaios
po seco, porque, en empezando a llover, se hu- já possuíam oratórios rurais particulares, de for-
medecen y arrugan los cueros y resulta la casa ma que “no povoado de Itá, na estância de Don
inhabitable (MURIEL, 1919, p. 558) José Garay, “há um oratório onde são rezadas
11
Pertencem a cultura material os artefatos, estru- missas”. Ver: PARRAS, Pedro José de. Diario y
turas, o próprio corpo, na medida em que ele é derrotero de sus viajes, 1749-1753. España, Río de
passível desse tipo de manipulação ou, ainda, os la Planta, Córdoba, Paraguay. Buenos Aires: Ed.
seus arranjos espaciais. Argentinas “Solar”, 1943, p.191.
12
Optou-se por utilizar o termo significado operacio- 17
Relatório do presidente da Província de S. Pedro
nal para definir o modo particular como cada in- do Rio Grande do Sul, o senador conselheiro Ma-
divíduo cria um determinado objeto (HODDER, noel Antonio Galvão, na abertura da Assembléa
2003). Legislativa Provincial em 5 de outubro de 1847,
13
Kyrie é um vocativo de origem grega da palavra acompanhado do orçamento da receita e despesa
“Senhor”, traduzido livremente como “ó, Se- para o anno de 1847 a 1848. Porto Alegre, Typ.
nhor”, enquanto eleison é o imperativo aoristo do de Argos, 1847, p. 14. Disponível em: <http://
verbo “eleéo”, que designa “ter piedade”, “com- www-apps.crl.edu/brazil/provincial/rio_gran-
padecer-se”. No rito tridentino o Kyrie vinha re- de_do_sul>. Acesso em: 12 jan. 2017.
citado depois do ato penitencial.
14
O castigo infringido aos soldados que violassem
as capelas era severo. Em março de 1756, quando
os exércitos coligados luso-brasileiro e espanhol-
Referências
-platino passavam pelas imediações do arroio
Vacacaí-Mirim, “alguns peões castelhanos e por- AHLERT, Jacqueline. Estátuas Andarilhas: as
tugueses boliam nos trastes que haviam nas cape- Miniaturas na imaginária missioneira: sen-
las dos índios”. Imediatamente, foi determinado
tidos e remanescências. Tese de Doutorado em
que “se daria em cada peão 100 açoites; e, sendo
soldado, seis carreiras de vaquetas. Sua Excelên- História. Porto Alegre: PUCRS, 2012.
cia [Gomes Freire de Andrada] ordenou de sorte AZARA, Félix de. Viajes inédito de Don Félix de
que servisse de exemplo aos mais: sendo peão,
Azara, desde Santa Fé a la Asunción, el interior del
iria para galés; o que assim se distribuiu nas or-
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