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# DA POSSE #
Todavia, se o possuidor não é realmente o titular do direito a que a posse se refere, das
duas uma: a) o titular abstém-se de defender os seus direitos e a inércia vai consolidando a posição
do possuidor, que acabará eventualmente por ter um direito à aquisição da própria coisa possuída,
por meio da usucapião; ou b) o verdadeiro titular não se conforma e exige a entrega da coisa, pelos
meios judiciais que a ordem jurídica lhe faculta, que culminam na reivindicação e permitem a sua
vitória. Enquanto não o fizer, o possuidor continuará a ser protegido.
Assim, se o titular do direito não toma a iniciativa de solicitar a intervenção da pesada
máquina judicial, as finalidades sociais são suficientemente satisfeitas com a mera estabilização da
situação fundada na aparência do direito.
Em suma, no jus possidendi se perquire o direito, ou qual o fato em que se estriba (figurado:
que se fundamenta; que se apoia) o direito que se argúi; e no jus possessionis não se atende senão
à posse; somente essa situação de fato é que se considera, para que logre os efeitos jurídicos que
a lei lhe confere.
A lei socorre a posse enquanto o direito do proprietário não desfizer esse estado de coisas
e se sobreleve (exceder; suplantar; ser superior ou maior; superar) como dominante. O jus
possessionis persevera (continuar; conservar-se firme; constante) até que o jus possidendi o
extinga.
Em sua concepção, a posse seria o poder que a pessoa tem de dispor materialmente de
uma coisa, com intenção de tê-la para si e defendê-la contra a intervenção de outrem.
Os dois citados elementos são indispensáveis, pois, se faltar o corpus, inexiste posse, e, se
faltar o animus, não existe posse, mas mera detenção. A teoria se diz subjetiva em razão deste
último elemento. Para SAVIGNY adquire-se a posse quando, ao elemento material (poder físico
sobre a coisa), vem juntar-se o elemento espiritual, anímico (intenção de tê-la como sua).
SAVIGNY procurou uma solução tangencial, criando uma terceira categoria além da posse
e da mera detenção, a que denominou posse derivada, reconhecida na transferência dos direitos
possessórios, e não do direito de propriedade. Assim, “contrariando a própria tese, isto é, admitindo
a posse sem a intenção de dono, SAVIGNY mostrou a fragilidade de seu pensamento.
Tanto o conceito do corpus como o do animus sofreram mutações na própria teoria subjetiva.
O primeiro, inicialmente considerado simples contato físico com a coisa (é, por exemplo, a situação
daquele que mora na casa ou conduz o seu automóvel), posteriormente passou a consistir na mera
possibilidade de exercer esse contato, tendo sempre a coisa à sua disposição. Assim, não o perde
o dono do veículo que entrou no cinema e o deixou no estacionamento. Também a noção de animus
evoluiu para abranger não apenas o domínio, senão também os direitos reais, sustentando-se ainda
a possibilidade de posse sobre coisas incorpóreas.
Corpus: é o elemento que se traduz no controle material da pessoa sobre a coisa, podendo
dela imediatamente se apoderar, servir e dispor, possibilitando ainda a imediata oposição do poder
de exclusão em face de terceiros; animus: é o elemento volitivo, que consiste .na intenção do
possuidor de exercer o direito como se proprietário fosse, de sentir-se o dono da coisa, mesmo não
sendo. Não basta deter a coisa (corpus), mas haver uma vontade de ter a coisa para si. Só haverá
posse onde houver animus possidendi.
A teoria subjetivista estabelece o corpus como a apreensão da coisa. Todavia, não se trata
essa apreensão de mero contato corporal com o bem, mas da disponibilidade física, no sentido da
possibilidade do indivíduo de agir imediatamente sobre a coisa e dela afastar toda a ação de
estranhos. Excepcionalmente, nas situações em que alguém atue materialmente sobre a coisa sem
o animus, cogitar-se-ia de mera detenção (v. g., locatário, comodatário, usufrutuário e -outras
pessoas que entraram na coisa em virtude de relação jurídica). Os detentores não fariam jus à
tutela possessória, justamente pela carência do elemento volitivo. Por atribuir tamanha ênfase ao
aspecto psicológico, anímico, a teoria de Savigny sobejou conhecida como subjetiva.
Contudo, o grande mérito de Savigny foi o de projetar autonomia· à posse, por explicar que
o uso dos bens adquire relevância jurídica fora da estrutura da propriedade privada e que a
titularidade formal desse direito subjetivo não encerra todas as possibilidades de amparo jurídico.
A posse passa a ser vislumbrada como uma situação fática merecedora de tutela, que decorre da
necessidade de proteção à pessoa, manutenção da paz social e estabilização das relações.
jurídicas. A posse seria um fato na origem e um direito nas consequências, pois confere ao
possuidor a faculdade de invocar os interditos possessórios quando o estado de fato for objeto de
violação, sem que isso implique qualquer ligação com o direito de propriedade e a pretensão
reivindicatória dela emanada.
A posse seria o poder de fato, e a propriedade, o poder de direito sobre a coisa. O fato e o
direito: tal é a antítese a que se reduz a distinção entre a posse a propriedade. A posse não é
reconhecida como modelo jurídico autônomo, pois o possuidor seria aquele que concede a
destinação econômica à propriedade, isto é, visibilidade ao domínio. A posse é a porta que
conduziria à propriedade, um meio que conduz a um fim. A propriedade sem a posse seria um
tesouro sem a chave, pois a propriedade sem a posse restaria paralisada.
A posse é a exteriorização e complemento necessário à proteção da propriedade. Para
Ihering, a tutela da posse não decorre da necessidade de evitar a violência, mas tem como único
fundamento a defesa imediata da propriedade. Os interditos possessórios nascem em razão da
propriedade e não da posse em si mesma. A posse é evidenciada pela existência exterior, sem
qualquer necessidade de descermos a intricada questão do plano íntimo da vontade individual de
quem possui. O elemento subjetivo está implícito no poder de fato exercido sobre a coisa.
Ihering entende que o animus não pode ser compreendido como a "intenção de dono", mas
como a affectio tenendi, ou seja, a vontade do possuidor de se conduzir perante o bem como se
conduziria o proprietário. Esse modus operandi do possuidor seria objetivamente controlável, pois
se extrai de sua conduta visível diante da coisa. O animus é ínsito ao corpus.
Ademais, corpus, para Ihering, não estaria na possibilidade física de dispor da coisa - tal
qual argumentava Savigny, mas na simples visibilidade da propriedade em seus elementos
caracterizadores. Com efeito, se na teoria objetiva, a posse não existe sem que exista a
propriedade, a questão da apreensão material sobre o bem se torna secundária, tornando-se
relevante o seu destino econômico. Substitui-se a noção do controle material pela ideia da posse
como exercício da propriedade, pois só ela justifica a relação material entre a pessoa e a coisa,
assim como a necessidade de sua tutela.' Não. mais importa a possibilidade de apreensão imediata
da coisa, mas o fato de o possuidor agir como agiria o proprietário, concedendo destinação
econômica ao bem, fazendo valer a finalidade para a qual é naturalmente vocacionada. O que vale
é o uso econômico facilmente reconhecido por qualquer pessoa, tenha ou não o possuidor o animus
domini.
O corpus passa então a representar o estado normal externo da coisa, através da qual
cumpre o destino econômico de servir ao homem. Assim, nem a presença física, nem o contato
material, nem a presença, nem a custódia, são elementos decisivos, porquanto em cada caso
teremos que indagar como se comportaria o proprietário perante a coisa. A determinação do corpus
é uma questão de pura experiência e de senso comum. Ihering considerava que o interesse jurídico
movimenta a vontade. É o interesse da realização da destinação econômica da propriedade que
justifica a proteção à posse, pois em si mesma ela não teria qualquer valia. A posse só se converte
em direito, em homenagem ao direito superior de propriedade.
Assim, vem a ser a posse o exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao direito
de propriedade ou de outro direito real." Ao dispensar-se o elemento psicológico do animus,
estende-se a condição de possuidores àqueles que seriam considerados meros detentores pela
teoria clássica (v. g., locatários, arrendatários).
Savigny e Ihering concebem suas teorias com base em um ponto de partida comum: a
detenção. Todavia, visceral é compreender que a teoria de Ihering é tida por objetiva pelo fato de
explicar que a distinção entre possuidores e detentores não é traduzida à luz do elemento anímico
da vontade de possuir, e sim por uma prévia conformação do ordenamento objetivo, que cuidará
de explicitar as hipóteses em que certas pessoas não alcançarão a tutela possessória por expressa
opção de política legislativa, em razão da forma pela qual ingressaram na coisa.
A posse seria a regra: sempre que uma pessoa tenha uma coisa em seu poder, deverá ser
protegida legalmente. Excepcionalmente, o direito a privará de defesa: nesse caso, haverá
detenção. De fato, Ihering vislumbrava na detenção uma posse desqualificada pelo sistema jurídico,
por razões objetivas e de ordem prática.
Para IHERING, portanto, basta o corpus para a caracterização da posse. Tal expressão,
porém, não significa contato físico com a coisa, mas sim conduta de dono. Ela se revela na maneira
como o proprietário age em face da coisa, tendo em vista sua função econômica. Tem posse quem
se comporta como dono, e nesse comportamento já está incluído o animus. O elemento psíquico
não se situa na intenção de dono, mas tão somente na vontade de agir como habitualmente o faz
o proprietário (af ectio tenendi), independentemente de querer ser dono (animus domini). A conduta
de dono pode ser analisada objetivamente, sem a necessidade de pesquisarse a intenção do
agente. A posse, então, é a exteriorização da propriedade, a visibilidade do domínio, o uso
econômico da coisa. Ela é protegida, em resumo, porque representa a forma como o domínio se
manifesta.
Neste ponto reside a diferença substancial entre as duas escolas, de SAVIGNY e IHERING:
“para a primeira, o corpus aliado à affectio tenendi gera detenção, que somente se converte em
posse quando se lhes adiciona o animus domini (Savigny); para a segunda, o corpus mais a affectio
tenendi geram posse, que se desfigura em mera detenção apenas na hipótese de um impedimento
legal (Ihering)”.
Assim, “o lavrador que deixa sua colheita no campo não a tem fisicamente; entretanto, a
conserva em sua posse, pois que age, em relação ao produto colhido, como o proprietário
ordinariamente o faz. Mas, se deixa no mesmo local uma joia, evidentemente não mais conserva a
posse sobre ela, pois não é assim que o proprietário age em relação a um bem dessa natureza”.
Para se configurar a posse basta, portanto, atentar no procedimento externo, uma vez que
o corpus constitui o único elemento visível e suscetível de comprovação. Para essa verificação não
se exige um profundo conhecimento, bastando o senso comum das coisas.
Discorrendo sobre o motivo legislativo da proteção possessória, sublinha IHERING que ela
foi instituída com o objetivo de facilitar e aliviar a proteção da propriedade. Em vez da prova da
propriedade, que o proprietário deve fazer quando reclamar uma coisa em mãos de terceiros
(reivindicatio), bastará exibir a prova de posse, em relação àquele que dela o privou. A posse
poderá representar a propriedade, porque é esta em seu estado normal: a posse é a exterioridade,
a visibilidade da propriedade. Desse modo, “a proteção possessória serve de escudo à propriedade,
apresenta-se como um complemento de sua defesa, visto que por intermédio dela, no mais das
vezes, vai o proprietário ficar dispensado da prova de seu domínio.
É verdade que, para facilitar ao proprietário a defesa de seu interesse, em alguns casos vai
o possuidor obter imerecida proteção. Isso ocorre quando o possuidor não é proprietário, mas um
intruso. Como a lei protege a posse, independentemente de se estribar ou não em direito, esse
possuidor vai ser protegido, em detrimento do verdadeiro proprietário. IHERING reconhece tal
inconveniente. Mas explica que esse é o preço que se paga, nalguns casos, para facilitar o
proprietário, protegendo-lhe a posse”. Essa proteção é, no entanto, provisória, até o intruso ser
convencido pelos meios ordinários, na própria ação possessória.
3 DA DEFINIÇÃO DE POSSE
A crítica veemente que se faz à concepção objetiva concerne ao fato de Ihering subordinar
a posse à propriedade, extirpando a sua autonomia, por reduzir a posse a um direito ínfimo, como
mera exteriorização do direito de propriedade, ou seja, um complemento indispensável à sua tutela.
A proteção possessória seria uma sentinela avançada da propriedade, pois através da posse
poderia o titular formal aliviar a defesa do seu direito subjetivo mediante a adoção de uma via
defensiva preliminar (interditos possessórios). Nesse particular, temos evidente retrocesso,
comparando-se à teoria de Savigny, na qual há um prenúncio de tutela à função social da posse.
Ao conceituar a posse da mesma maneira que o seu antecessor, o Código Civil de 2002 filia-
se à teoria objetiva, repetindo a nítida concessão à teoria subjetiva no tocante à usucapião como
modo aquisitivo da propriedade que demanda o animus domini de Savigny. Com efeito, predomina
na definição da posse a concepção de Ihering. A teor do art. 1.196, "considera-se possuidor todo
aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade".
Assim, pela letra do legislador, o possuidor é quem, em seu próprio nome, exterioriza alguma das
faculdades da propriedade, seja ele proprietário ou não.
O Código Civil de 2002 ratificou a via eleita pelo Código de 1916, pela inserção da posse no
livro do direito das coisas. Seguidor das teses de Ihering, Clóvis Bevilaqua entendeu que a posse
é um caminho para a propriedade e deve ser inserida antes do seu estudo, como um ponto de
transição momentânea.
Será possível observar adiante que, nos dias atuais, no âmbito de uma sociedade plural, as
teorias de Savigny e Ihering não são mais capazes de explicar o fenômeno possessório à luz de
uma teoria material dos direitos fundamentais. Mostram-se envelhecidas e dissonantes da
realidade social presente. Surgiram ambas em momento histórico no qual o fundamental era a
apropriação de bens sob a lógica do ter em detrimento do ser.
Como observaremos por ocasião do estudo da função social da posse, não basta ao
possuidor se comportar como um proprietário, mas como um "bom” proprietário perante o bem.
Por isso, aproveitamos o conceito de posse de Caio Mário da Silva Pereira:" "Uma situação
de fato, em que uma pessoa, que pode ou não ser a proprietária, exerce sobre uma coisa atos e
poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a ", com o nosso acréscimo:" exercitando sobre
ela ingerência (intervenção; influência; intromissão) socioeconômica".
Enfim, a posse desperta para seus fins sociais, como exigência humana integradora, e não
de dominação e estratificação, apenas a serviço do direito de propriedade.