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Flexibilidade
Introdução
A falta de flexibilidade física usada como força motriz, foi o que inicialmente me
motivou a escrever essa pesquisa. Eu que comecei a ter um contato mais aprofundado com a
linguagem da dança aos 17 anos, em aulas de ballet clássico, comecei a me questionar sobre a
real necessidade de se possuir uma boa flexibilidade física para dançar. Fui estimulado a
pesquisar, principalmente pelo fato de ter um encurtamento muscular na parte posterior das
coxas, o que me impede de encostar os dedos das mão nos pés enquanto mantenho as pernas
esticadas e fator pelo qual, dentro do contexto da dança, fui muitas vezes advertido e
subjugado. A palavra flexibilidade se apresentou para mim como um termo que não abarcaria
só os parâmetros físicos da minha relação com a dança, mas também cognitivos, me levando a
questionar até que ponto a flexibilidade pode estar ligada ao processo criativo de uma
linguagem expressiva. Será que é possível e/ou necessário, flexibilizar o meu pensamento em
relação a dança para poder dançar?
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Artur Braúna de Moura, graduando em Bacharelado no curso de Artes cênicas da Universidade de Brasília.
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A disciplina de movimento 4 é uma disciplina optativa da cadeia de movimento do curso de Artes Cênicas da
Unb, que é ofertada por vezes sim e por vezes não, de acordo com a disponibilidade de professores. Nos
semestre em questão fomos convidados pela professora Fabiana Marroni a fazer parte de um processo criativo
que envolvesse o uso de objetos como um referencial para a criação de movimentos. E para tanto trabalhamos
com elementos de jogos, improvisação e movimentos coreografados.
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A Atmos Cia. de Dança atua a dez anos no panorama da dança brasiliense. Seus fundadores e atuais diretores
são os bailarinos Janson Damasceno e Scheyla Silva. A Cia. tem como base em seu trabalho o balé clássico mas
também se alimenta de diversas modalidades da dança na criação de suas composições.
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O uso das limitações físicas e as limitações de seu uso
Partir de uma limitação para a criação artística não é um processo inédito dentro da
área do estudo do movimento, muitos foram aqueles que conseguiram driblar seus entraves e
obtiveram resultados surpreendentes que deram vazão a uma série de estudos e técnicas
dentro dessa área. A exemplo temos: Gerda Alexander (1908-1994), que desenvolveu a
prática corporal da Eutonia, Mathias Alexander (1869-1955) que desenvolveu a técnica
Alexander, Moshe Feldenkrais (1904-1984) pioneiro da Educação Somática, Joseph Pilates
(1883-1967) inventor do método Pilates, entre outros. Ambos os citados não tinham uma
preconcepção estética e estavam em busca de novas formas de se pensar o corpo em
movimento.
Diferentemente por exemplo, do bailarino e coreografo Bob Fosse, o qual incialmente
influenciou o meu estudo nessa pesquisa. Fosse usou as imperfeições de seu corpo como mote
para a criação do que foi considerado o seu estilo de dança, o Jazz Fosse. O uso de chapéus
em suas coreografias adveio pelo fato de começar a ter ficado calvo muito cedo, as luvas que
também eram marca característica de seu trabalho foram usadas para esconder as mãos que
ele considerava feias4. O seu trabalho teve influência do sapateado e da dança burlesca(da
qual sua mãe era bailarina). Mas Fosse diferentemente dos nomes citados acima assumiu uma
escolha estética e a usou de forma a requisitar dos bailarinos com os quais trabalhou, uma
adequação dos seus corpos a essa estética. Em relação ao processo estético-criativo usado por
muitas escolas de dança, Marcia Strazzacappa comenta:
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Para mais informações alguns de seus trabalhos estão disponíveis em: < https://
www.youtube.com/watch?v=mcrZIK3gqbU> ou < https://www.youtube.com/watch?v=9UN68ujZdTE >
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Essa relação de “negação” da individualidade do dançarino comentada por
Strazzacappa, já se apresenta como um exemplo de inflexibilidade no processo de criação de
algumas escolas e professores de dança, pois, parte do pressuposto de que todos os corpos
presentes na composição são adaptáveis a uma só técnica e cria, como comenta a autora,
ideais de corpo, ou seja, aqueles que melhor se adequam aquela específica técnica seriam os
modelos a serem seguidos.
Na disciplina de Movimento 4 vários exercícios surgiram a partir de algumas
sequencias estruturadas que foram ensinadas no início do processo, todos eles exploravam a
possibilidade de desenhar compondo com o espaço e adaptando os movimentos
aprendidos/apreendidos. O fator da pessoalidade muitas vezes foi levado em conta na
execução dessas sequencias o que me chamou bastante atenção. A pessoalidade na dança é
um assunto muito estudado contemporaneamente, discute-se muito em relação à anulação do
individuo dentro de uma composição. O processo de aprendizagem dessas sequencias poderia
ter sido tratado de outra forma. Dorneles, em sua dissertação, pesquisa sobre o olhar
fenomenológico dentro da composição coreográfica, e em relação a esse assunto discorre:
A autora chama atenção para o estado de submissão que é gerado dentro dessa
metodologia o que apenas enfatiza uma inflexibilidade estrutural, ou seja, aqueles que não se
adequam ou se enquadram aquela técnica específica são os “azarados”. O papel que nos foi
dado dentro da disciplina foi o de interpretes-criadores, tivemos a liberdade para compor a
partir dos nossos interesses, dentro das regras dos jogos. E ao mesmo tempo de propor nessa
composição. Como quando usávamos as sequências no jogo de andar pelo espaço, pausar e
executá-la, esses exercícios agregavam uma série de fatores composicionais como: a
percepção do espaço, a relação com o outro, a dinâmica, o ritmo e etc. Esse tipo de
abordagem estimula o aluno a criar um pensamento composicional autoral, abre a
possibilidade de troca de experiências entre os participantes do jogo, e trabalha com a
autonomia dos envolvidos. Com o desenvolvimento da pesquisa pude ir percebendo e
relacionando uma ligação entre a dinâmica estrutural dos jogos e uma forma de abordagem
que me auxiliaria a trabalhar com a questão da falta de flexibilidade.
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Todo esse discurso de individualidade e submissão se mostrava admirável para mim
quando lido na teoria, tanto que no início da pesquisa segui com o intuito de buscar a
singularidade do meu corpo em movimento, entretanto tudo se alterou quando tive que
coreografar um grupo de pessoas, experiências que descrevo no decorrer desse artigo.
No meu caso, acredito ser importante enfatizar que a perspectiva com a qual trabalhei
não foi exatamente a do Movimento Autentico já que os ensaios não estavam sendo
acompanhados por outra pessoa que compartilhava a experiência de me observar, na verdade
o princípio dessa técnica que mais me chamou atenção foi o da Imaginação Ativa5, aquele no
qual me debrucei para essas experimentações, pelo fato de estar buscando um estado de
menos julgamento e mais execução. Dessa forma reservava ensaios para me movimentar
livremente pelo espaço sem a presença de outras pessoas, o que me dava a chance de agir
livremente, sem julgamentos, e me auxiliava no processo de escuta e percepção individual do
meu corpo. Elenquei tudo aquilo que parecia fazer parte do meu vocabulário “comum” e
previsível e filmei para que depois pudesse comparar com outros materiais produzidos por
mim. Nesse caso o olhar do observador adivinha do próprio movente, mas apenas com o
intuito de analisar a questão da repetição do uso de certos mecanismos de movimentação.
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“ A imaginação ativa visa fazer emergir o inconsciente para então buscar uma comunicação com ele ‘É um
processo do qual enquanto a consciência observa, participa sem direcionar, coopera mas não escolhe, o
inconsciente tem a permissão de falar quando e como quiser’.” Giselle (2006, p.45) cita Pallaro(2001, p.74)
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Passada essa primeira etapa parti para a fase em que tentei trabalhar a falta de
flexibilidade como propulsora de um vocabulário “individual” notando quais os tipos de
movimentação essa me impossibilitava de executar com “primazia6”. Percebi que para que eu
pudesse executar esses movimentos teria que fazer uma relação de compensação de
movimentação, ou seja, parte do meu corpo teria que ceder, para que a outra se esticasse ao
máximo, fazendo com que eu encostasse os dedos das mãos nos pés, por exemplo. Cheguei
inclusive a elencar uma série de movimentações que eram constituídas dessa relação de
compensação de elasticidade acreditando que esse poderia ser o material base com o qual iria
trabalhar.
Noto então que muitos dos meus pensamentos em relação a flexibilidade física da
dança e até mesmo a questões de composição coreográfica estão diretamente ligados a
influência do balé clássico. Havia uma preocupação muito grande quando iniciei a criação da
minha coreografia com o uso de movimento simétricos, a exatidão de angulação de
determinadas linhas, a preocupação com o saltar alto, de momentos com o pé em flex e em
ponta, do equilíbrio em determinadas poses, do uso do plié, do alongamento de linhas e etc.
Hoje em dia ainda paira sobre o mundo da dança um espectro que traz consigo os preceitos do
balé e tenta impô-los a todo o corpo que pretende dançar e seguir uma carreira profissional. O
Balé ainda é visto por muitos como a técnica base que fornece mecanismos chave para se
dançar bem qualquer estilo de dança:
Os preceitos do balé já não enrijeciam mais meus pensamentos a medida em que fui
percebendo que não precisava me guiar através deles para poder dançar. A etapa que acredito
ter sido a de maior importância para a pesquisa em si foi a em que a partir de reflexões e
leituras me questionei sobre a real necessidade de se possuir uma flexibilidade física para
dançar. Será que uma flexibilidade de pensamento não seria o bastante para dançar bem? Foi
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Com o amadurecimento dos meus pensamentos em relação a dança, comecei a perceber que muitas
terminologias usadas já empregam em seu significado um sentido pejorativo. O sentido de “primazia do
movimento” pode ser muito relativo de acordo com o contexto em que esse movimento está inserido.
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a partir daí que percebo que o mote das experimentações práticas não precisaria mais partir
daqueles movimentos que eu não conseguia fazer, mas sim do material criativo que o meu
corpo poderia produzir dentro de suas próprias limitações. A falta de flexibilidade não estava
mais sendo vista como um empecilho ou uma defasagem do meu corpo, mas apenas como
uma condição. Nesse sentido pude perceber que a perspectiva com a qual enxergo a minha
própria falta de flexibilidade poderia me auxiliar no trabalho de desdobramento da mesma. O
uso do termo “condição” me auxiliou a fazer uma ponte com a estrutura de regras de jogo,
isto é, a condição do meu corpo poderia ser tratada como uma espécie de regra no ato de
jogar/dançar. Assim como na disciplina de Movimento 4 em que uma série de “condições”
nos eram estabelecidas para que pudéssemos jogar, explorar nossa movimentação e
(re)descobrir7 a expressividade de nosso corpo. Noto que a falta de flexibilidade em um
sentido metafórico, funciona como essas condições que não impedem o movente de explorar a
suas potencialidades, mas sim proporcionam outros caminhos para que ele possa desenvolver
o seu próprio material criativo.
Quando percebi que há um grande potencial no ato de desfrutar dessa condição para
brincar com o meu próprio corpo, novas possibilidades começaram a surgir em minhas
práticas corporais. Segundo Nachmanovitch:
O bricoleur desfruta, com sabedoria, daquilo que está ao seu alcance para alcançar
aquilo que almeja. E demonstra que em muitas situações ter uma ampla possibilidade de
materiais não significa possuir a chave para melhor solucionar certos problemas. O trabalho
de análise do meu próprio corpo em movimento foi extremamente importante para que eu
pudesse perceber que a relação entre o movimento e dança não está vinculada com a
necessidade de alcançar determinados padrões estéticos (quando tentava trabalhar com a
compensação de elasticidade para alcançar os dedos dos meus pés vi que na verdade estava
apenas tentando seguir mais um padrão estético. Ou seja, criar formas vazias sem
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Enfatizo (re)descoberta pois o corpo humano por ser mutável está sujeito, ao longo da vida, a esquecimentos e
descobertas tanto no âmbito físico quanto mental. Sendo assim a redescoberta seria uma espécie de resgate
daquilo que um dia agiu de forma mais atuante no vocabulário desse corpo.
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significações internas) e dessa maneira a minha produção de movimento já poderia servir
como um rico leque de possibilidades criativas.
Durante todo o processo da pesquisa continuei fazendo aulas de balé clássico e isso se
tornou, para mim, um grande empasse. Pois como estar em uma busca diária de um
vocabulário individual, expressivo e flexível sendo que em boa parte dos meus dias estava me
dedicando a uma técnica que exige exatamente o contrário? As leituras de textos de autores
como Jussara Miller, Maria Fux, Klaus Vianna e Yoshi Oida, que pensam sobre o estudo do
movimento com uma perspectiva contemporânea, ao mesmo tempo que soavam encantadores
aos meus ouvidos me colocaram em dúvida quanto a forma como eu conduzia os meus
treinamentos corporais, à exemplo esse trecho de Oida:
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A primeira percepção que tive em relação a esse texto, foi de que a prática repetitiva
de movimentações rígidas poderia enrijecer também o pensamento, mas há um fator muito
importante, comentado pelo autor, que é o pareamento entre corpo e mente, quando
aproximados esses dois, de uma forma enrijecida, podem gerar um pensamento inflexível.
Nesse sentido o balé pode tornar o meu pensamento inflexível de acordo com a forma como
eu lido com ele. Ou seja, seria necessário que entendesse qual função o balé teria em minha
formação corporal para que não me alienasse e me tornasse apenas um repetidor de gestos.
Quando entendo que estou ali para agregar experiências relativas ao uso de equilíbrio, tônus,
foco e etc. não estou necessariamente negando a minha individualidade na dança mas apenas
vivenciando com meu corpo uma técnica e vocabulários que podem me servir como material
de trabalho futuramente.
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Nesse caso a Música usada foi: Cartoon trilha sonora do filme Micmacs dos compositores Raphaël Beaun and
Max Steiner . Essa música por possuir uma série de sons do cotidiano me estimulava a criar movimentações que
partiam da literalidade ou uma “ilustração” do que poderia ser a emissão de cada som. Para que depois esses
movimentos se desdobrassem e compusessem outros significados.
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pesquisador (aquele que buscava lidar com as limitações e dificuldades dos outros levando
em consideração as reflexões que o material da pesquisa gerava). Mesmo que pequenas
alterações na coreografia inicial desenvolvida por mim tenham sido feitas, percebo que o
processo ainda partiu de uma relação inflexível, pois se tratava de uma estrutura rígida e fixa
que exigia uma adequação daqueles corpos a movimentações elaboradas por mim, similar a
forma como Fosse trabalhava.
Bibliografia
MILLER, Jussara, Qual é o corpo que dança? Dança e Educação Somática para a
construção de um corpo cênico. Tese de Doutorado do Instituto de Artes da Universidade de
Campinas UNICAMP, 2010.
OIDA, Ioshi, O Ator Invisível, São Paulo: Beca Produções culturais, 2001
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FREDSCHANELONE. BOB FOSSE choreography - " The Rich Man's Frug ".
Disponível em: < https:// www.youtube.com/watch?v=mcrZIK3gqbU> .Acesso em: 5 Jul. de
2015;
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