Vous êtes sur la page 1sur 30
Esbogo de cosmologia yawalapiti A Paru, in memoriam Este artigo expe algumas nogdes cosmolégicas dos Yawalapiti, um povo aruaque do Alto Xingu. Principiando pela andlise de um as- pecto marcante da pritica classificatéria indigena, ele discorre so- bre a conceituagio dos seres vivos, sobre a légica do sensivel que subjaz.ao regime alimentar dos humanos, e sobre os processos de fa- bricagio e metamorfose corporal. ‘Modos do ser Um trago muito saliente do estilo de categorizagao yawalapiti con- siste na afixagdo de certos modificadores aos conceitos-base. Nao ir ‘curs visitas &aldeia yavalapiti, nos meses de setembro-ourubro de 1976 cjulho de 197 Escusado advert que minha imterlocugdo com o grupo fez-se em port- iginas seguir sio um resumo de parte de minha dssertaglo de mesteado Esta baseou-se em das oe saiedade no Alto Xingu: ot Yawalopt (1 ingua que a maioria dos membros masculinos da aldeis domina com fvén- cia, As interpretagdes aqui sugeridas encontram-se severamentelimitadas por tal circunstincia. Na verdade, minha estadas junto aos Yawalapt foram sobretudo dedicadas a conversa com eles, em minka lingua, sobre a lingua deles. Agradeso «a Roberto DaMatta, Anthony Seeger e Gilberto Velho peas sugestdesoferecidas {quando da defesa da dssertasio, ea Renata Bondim, estagiira de Linguistica do Museu Nacional que esteve entre of Yawalapii, pela discussio de axpectos cen- ttais dos temas aqui shordados. Como sempre,» responsabilidade pelos errs e ceunasreea apenas sobre o autor Par em 1977 (alela yaaa) tenhio competéncia para abordar as dimensdes propriamente lingitis- ticas desse fendmeno, nem elementos para avaliar sua eventual ocor- réncia pan-xinguana; ainda assim, julgo ser ttil chamar a atengio para o emprego extensivo de tais morfemas em yawalapiti, e temo ser inevitivel arriscar uma interpretagaio de seu significado. ‘Quando eu pedia a meus interlocutores que classificassem uma entidade qualquer (um objeto, um animal, uma qualidade, as fungies e relagdes portadas por um dado individuo), isto é, quando buscava subsumir um referente em uma classe mais geral, as respostas, quase sempre, levavam-me a inferir que existiam distingBes cruciais dentro do paradigma denotado pela categoria. Tudo parecia se passar como se alingua (ou a cultura) dispusesse de um repertério fechado de con- ceitos puros ou ideais, e como se a adequagao de um referente qual- quer a tais conceitos 36 fosse possivel através de dispositivos seman- ticos—esses que chamo de modificadores—cuja fung2o seria estabelecer a distancia metonimica ou a diferenca metaférica entre prot6tipo ideal e fenémeno atual. Ou, dit de outra forma, como se as categorias clas- sificatérias s6 pudessem ser proveitosamente acionadas através de afi- x05 que indicam o modo de pertinéncia do referente classe. Quatro modificadores parecem-me desempenhar essa funcio no discurso yawalapiti: -kuma, -riru, -mina e mali Eles s2o quase sem- Pre pospostos aos nomes. Assim, a classe zool6gica i, “cobra”, € pas- sfvel de se especificar em: t-tyumd (um alomorfe de -kuma), cobras espiritos cobras; ,, cobras venenosas; mina, animais semelhantes is -mali, cobras ndo-venenosas. Tais divisBes nio sio subclas- ses, mas formas de ajustar 0 taxon a casos coneretos. Certa feita, um homem censurava os Wauré por comerem poraqué. A minha ques- tio: “mas poraqué nao é peixe (kupdti)?”, respondeu: “nio, é cobra (di)* ? Retorqui: “cobra mesmo?”, a0 que ele replicou: “nio, $6 a= ‘mina. Os modificadores so encontrados em uma variedade de reas 2. O peixe, por oposigio 8 msioria dos animaistercestres ede muita aves, 0 ali- mento por exceléncia para os alto-xinguanos. a seminticas; ees definem as formas culturalmente seconhecidas de re- Jago entre 05 conceitos gerais eos individuos por eles clasificados. ‘Um exame de seu significado pode talvez, por isso, aproximar-nos de ‘uma atitude cognitiva fundamental da cultura alto-xinguana. (Os Yawalapiti traduziram-me os modificadores de modo mais cou menos constante. A classe ti, por exemplo, foi dividida em: co- bras “grandes, bravas, invisiveis” (-kumd); cobras “de verdade” (iru); cobras “imprestiveis, ruins” (-mal); “bichos parecidos com as cobras” (-mina). Os modificadores, portanto, designam respecti- vamente 0 ‘excessivo’, 0 ‘auténtico’, 0 ‘inferior’ ¢ 0 ‘semelhante”. Bass relagBes complexas envolvem uma oposigio entre forma e ¢s- séncia, segundo um principio de gradagio entre ipo ¢ individuo. Os sufixos constituem, ademais, um sistema de oposighes flexiveiss em idico subsume as outras relagées resi- varios casos, um contraste dualmente: ora -kumé opde-se a -rira como 0 ‘monstruoso’ a0 ‘per~ feito’, ora -kuma & 0 ‘arquétipo’ por contraste com -mina como 0 ‘existente’,¢ assim por diante. A andlise de cada modificador requer ‘uma consideragdo dos valores que ele assume no sistema total. Dois modificadores sio especialmente produtivos: -kumd, cu- jo sentido mais marcado parece-me ser o de ‘equivalente sobrenatu- ral’, ¢-mina, que se poderia glosar por algo como ‘anélogo a um mo- dlelo por patticipasio substancial neste’. Tanto a sobrenaturalidade de -huma quanto a analogia participativa de -mina, porém, ordenam- se segundo miltiplos eritérios e condensam significados aparente- ‘mente dispares. 0 SuPeRLariVO KUNA © sufixo -kuma (fem. -Rumélu) aplica-se, em geral: [1] A maior espécie de uma ordem animal: kui harpia, o maior dos pissaros (kutipira); kupdti-kumé sdo a pirarara © 0 ati, os maiores peixes (kupdti) da regio. sra-kuma &a 9 [2] A certas espécies ou variedades de seres vivos, elassificadas por derivagio de outra: iu (tracaja) e zruckumélu (jaboti), ou éwvew (caititu) ¢ dwtu-kuma (queixada). Nao me esti claro se as espécies marcadas por ~kuma sao necessariamente maiores que as nlo-mar- cadas; no caso das plantas, nao parece haver sempre proximidade taxondmica (botanica) entre as classes distinguidas pela afixagio de -kuma, a0 contririo dos dois exemplos zoolégicos acima. [5] A setes e objetos que estio fora do espago e do tempo lo- cais, como os animais vistos por alguns xinguanos nos zoologicos do Rio ¢ Sio Paulo ou, mais geralmente, quaisquer espécies exéti cas, quase sempre classificadas pela anexago de -kumd ao termo pa- +a uma espécie nativa vista como andloga; ou ainda, a posigdes de parentesco geracionalmente afastadas, como os bisnetos e demais descendentes, que Slo ipuyéka-kuma (neto-kumd). O Doi o cavalo sio txima-kumd, antas-kum; evaytluckumd (r- posa-kuma) 60 eachoros a girafa & um cervonkuma. E mais puté- | detaldeia)-tuma & a cidade; wardyu-kama si 0s indo (warayt) sobre ciros; duydé-kuma & 0 mar, “lagoa grande”. Yawalapii- uma 60 propo semilendirio de Yawalapiti que seseparow dos atunis | durante uma migragao, indo morar nas cabeceiras do Kuluene; sio is até hoje. Na literatura etnoldgica sto chamados de Aga- vvotoqueng, palavra caribe que traduz exatamente a autodesignacio dos Yawalapii: Ager-oro corresponde a Yawala-pii (a traducio do primeiro termo é algo como “donos [da aldeia] dos tucuns", a do segundo, “lugar [aldea] dos tucuns"), e-gueng ou -kuegi& 0 cor- | sespondente cate de um. [4] A seres espirituais correspondentes a seres reais-atuais: ya- numéka-kuma é a onga sobrenatural;iiskd-kuma, a canoa monstruo- sa dotada de animagao, que figura em um mito; pittpo-kuma, o bem- te-vi espiritual patrono dos xamis. [5] Mais geralmente, a todos 0s seres e coisas que figuram nos x0 imitos: deseritos pelo termo comum, quando eu perguntava se tal ou tal entidade era “a mesma qu pondiam-me: “nao, & (x)-Auma™. No sentido [1], -uma foi-me traduzido por “grande”. Em [2], apenas por “outro”. Em [3], 0 significado coincide em parte com 0 anterior, e, como veremos, com o de [5}; sua tradugo mais comum foi “longe”. Em [4], a glosa foi “apapalutdpa” ou, no caso de alguns interlocutores, diretamente sua tradugio portuguesa, “espirito”. Am- ” ou “como a que” vernos hoje, res bas as palavras quase sempre implicavam algum predicado antropo- mérfico. Em [5], por fim, eu diria simplesmente que & tas vezes hi ambigitidade entre os sentidos: Autipira-kuma é a harpia, animal empirico, mas é também o urubu bicéfalo, ave-espirito se- hora do céu; kupdti-kuma € a pirarara, e também qualquer peixe sobrenatural; aydma-kumd é tanto a girafa do zool6gico carioca co- itieo. Mui mo 0 veado do mito. Quando eu perguntava simplesmente a alguém 0 que signifi- cava otermo “(nome do animal)-Auma”, a resposta mais comum era: “bicho bravo, valente, grande, que ninguém vé". Esse modificador articula, assim, varios atributos: Ferocidade, tamanho, invisibilida- de, monstruosidade, alteridade, espiritualidade, distincia, O impor tante, aqui, é que eles se superpoem em larga medida, A nogdo mes- ma de ‘espirito’ parece radicar-se no sentido deste modificador. [A sufixago de -kumd a um conceito-tipo marca uma alteridade do referente face a esséncia do tipo. Essa alteridade é exterioridade, ‘mas também excesso. Um excesso que, esquematizado pelas imagens da ferocidade e do tamanho (-kuma é 0 ‘grande-outro’, com a licen- ‘gade Lacan), parece condensar os dois significados contraditérios, do modificador: ele indica o diferente, mas também o arguetipico. O Outro é 0 Proprio, e vice-versa. Como se estivéssemos diante destas duas proposigdes: todo modelo apresenta uma superabundincia on- tol6gica; toda superabundincia é monstruosamente outra Quando -kuma significa espiritual ou monstruoso, opde-se as coisas-niru, autémticas ou ‘propriamente ditas’. Mas quando ele sig- ” nifica grande ou arquetipico, opde-se as coisas-mina, que definem 0 cexistente como réplica enfraquecida de um modelo mitico: as per~ sonagens dos mitos so eminentemente ~Aumé neste sentido especi- fico, Alguns interlocutores me disseram que os animais originarios, ceram demasiado grandes e ferozes, ¢ que, no inicio do tempo histé- rico, todos eles foram mandados embora do Xingu pelos gémeos Sol ¢ Lua: “eles estio na Africa; aqui s6 ficou a onga”> ‘A analogia entre os diversos significados de -kuma— grande, outro, feroz, invisivel, distante — ilumina o fundo cosmolégico des- se modificador. Hi intersegdes entre o mundo da experiéncia coti- diana e a esfera das coisas-kum@ por exceléncia, que sto 0s espiritos 08 seres miticos; hd animais e (coisas) -kuma que so experiencial- mente ordinérios, e seres-kumd que sio apapalutdpa, entidades ex- traordindcias ‘espiritos’. O mundo como um todo parece dispor-se centre um polo ~Aum, cosmologicamente exterior, ¢a regido das en- tidades -rira, -mina ou -mali, modos diversos da interioridade cos- mol6gica. ‘Real’ e ‘imaginario’ nio so nogées que fagam qualquer sentido nesse contexto; a oposigio relevante & entre as coisas super lativas, originais, arquetipicas e/ou monstruosas, ¢ as coisas pré- prias, auténticas e atuais, mas que sio também réplicas minoradas dos modelos. CO CLASSIFIEADOR -tine Este modificador é mais difusamente empregado. Ele serve: [1] Como um operador de inclusio classificatéria, ou generali- zador: kutipira-mina sao 0s animais alados (kutipéra, ‘ave’; azata- ‘pé-mina sio as plantas de que se utilizam as raizes (atacapé, ‘raiz")s 4, Essa afiemagio contradie otras, segundo as quaisvérias spéciesanimais atwal- mente existentes no Alto Xingu sio origindrias: ver adiante, sobre a categoria » nesta acepgio, 0 sufixo significa algo como ‘do género de’, ‘uma sorte de’. [2] Para distinguir as entidades ou relagoes que, pertencendo a ‘uma dada classe, nfo sdo exemplares perfeitos, integrais, do modelo da classe: uma cobra; da-mina é um tio materno classificat6rio; amulaw-mina, um lider que nio preenche todos os critérios definidores do estatu- to, ou que no desempenha plenamente suas fundies; purdka-mina so 03 Suyé, Juruna, Kayabi e Trumai, povos que, embora diferen- tes dos alto-xinguanos (putdka)',estabeleceram-se na regio hé al- _gum'tempo, e mantém lagos de parentesco com estes tiltimos. Nesta acepgao, 0 sufixo conota as idéias de ‘parecido com’, “quase’, ‘for- ‘ma mais fraca de’. mina, como vimos, 60 poraque, que apenas parece com | Os"Tauacrame,nretant so wrayer “indo [oxo guanos] de verdad’ sto &, realmente ferozeseselvagens.* Note- Se que warayu-kumd sio 0s “outros selvagens’ ~ 05 chinese, 8 j= |. ponese,o atmale Nuee que meus interlocutor vias nos ios | queleveiao campo. Os frdgrafos e turitasjaponeses que vista ram o Alto Xingu, contudo, foram-me também clasificados de pa- | stk emo ge tai porous sper | guanos’. Os demais aienigenas de aparéncia ocidental, como os | antropélogos nort-americanos e europe, ests eram haratba-ku- 1a, ‘outros nio-indios’ ou ‘super-brasileiros'... [3] Como integrante de expresses que descrevem estados ou condiges da pessoa, como em katiipa-miina, ‘tristeza’, kaputsaké- «4. Putéke significa ‘povos alto-xinguanos,‘sociedade xinguana’,e também ‘al: deia, no sentido tanto humano como espacial; otermo exprime, portato, algo se- melhante & aogio grega de polis 5. Para continuarmos a analogia da nota anterior, se os Suys, Juruna, Kayabie Teuma si xenoio Kayapé (Txukarramée) so decididamente barbara ‘mina, ‘pele avermelhada pelo urucum’, ou ahi-mina, ‘cheiro do cor- po apés relagdes sexuais’ [4] H outra ocorréncia da forma /mina/, cuja assimilagao as anteriores no é evidente. A palavra mina-1ji foi-me proposta co- ‘mo a tradugio do portugués “corpo”, e dita aplicar-se aos seres hu- ‘manos ou a qualquer animal; ef parece ser uma particula reflexiva ‘ow enfitica. Nio tenho certeza de que 0 /mina/ , neste caso, seja 0 ‘mesmo -mina dos exemplos precedentes. Sua anteposicio ao -1ji e seu funcionamento aparente como substantivo militariam contra uma assimilagio ao sufixo -mina. Entretanto, a existéncia de uma forma feminina, edpa-tii, que designa o corpo das fémeas, sugere uma aproximagao entre esta ocorréncia da forma /mina/ e o modi- ficador. O argumento depende de se aceitar a segmentagao do ter- ‘mo apapalutdpa, ‘espirito’, em /epapdlu/ + /-2dpa/ onde o prime’ ro segmento seria. mesmo termo apapdlu que designa as flautas jacuf, insteumentos que sao, efetivamente, a manifestagio modelar da espiritualidade alto-xinguana.‘ Nesse caso, os espiritos em geral seriam ‘espécies de” apapdlu. Esta tltima palavra é gramaticalmente feminina; sua modificagio pela forma feminina de um */ména/ su- fixado sugeriria que 0 modificador -mina dos casos], [2] ou [3] po- de conhecer uma flexio idéntica & do /mina/ em mina-tfi: Seo que precede esté correto, no seria descabido postular uma cconexio entre 0 -mina nos empregos de tipo [1], ‘pertencente a clas- se X’; de tipo [2], ‘exemplar imperfeito de X’; de tipo [3], ‘no estado ia, nesse caso, ser concebida corporal X’ (a tristeza, katdpa, de como um estado som: ico, ndo psiquico); e, finalmente, de tipo [4], © /mina/ que integea a palavra para ‘corpo’. Uma tradugio de -mina 6, Tal deivasio etmoldgica¢ puramente especulativa, mas, cuido, plausivl +>. Absurdamente nfo me ocorres inquire ea expresso de tristeza por uma mu- ther deve-se dizer “(ne)Aatparidpa 20 invés de “hunipa-mina”, como penso de- ver sero caso se minha especulagio for acerada. us por ‘corporificagio da substancia X’ talvez desse conta do sentido eral do modificador, se entendermos a participagio substancial como nexo metonimico. B, de fato, pode-se dizer que ~kuma corres- ponde a metéfora, €-mina, & metonimia. Na acepgio [1], -mina indica a pertinéncia plena do referente @ ‘uma classe, opondo-se a -mali, modificador que indica ser 0 refe- rente um exemplar inferior do tipo. Por exemplo, jpufitdri-mina & “homem bom” (mais propriamente, ‘pessoa de bem’), e ipuititdri- ‘alii sto aquelesindividuos que jo sabem falar”, ou que sao egois- tas, agressivos e anti-sociais — que so 0 oposto dos aristocratas, 0s emitlawnaw. Aqui, portanto, -mina inclui positivamente o individu enquanto exemplar de um tipo-ideal. [Em minha dissertagio (Viveiros de Castro 1977), examino essa for- 1ma de classificagZo das pessoas, especialmente os atributos do amu- Jaw, “capitio”, i.e. chefe ow aristocrata, Observe que ipuitidri-ma- 24 60 anténimo de amulaw, mas que nem todo jpwdiri-mina & um amulaw, embora a reciproca seja idealmente verdadeira, Por fim, “homem mau, ruim” € mipuitdmdri-edr, lit. ‘nfo-gente’. Dos ho~ ‘mens-mali para os niio-homens trata-se, portanto, de un questio de grau. JpuabRéri-mina poderia ser traduzido, segundo a acepgio [1], por ‘da espécie humana’; segundo a acepgao [2}, por ‘préximo 20 tipo ideal de pessoa’. Significativamente, ipufdiri-riru & um six ndnimo de ipuidiiri-mina, opondo-se, aqui, tanto as ‘ndo-gentes’ 8. Nata d present edisio. Hoje estou um tanto mais convencido de que o modifica- dor -min, em sua Fungo de operador de incluso em uma class, contém uma re- feréncia essencial&idéia de corporaidade. & pelo corpo, seus afeos e seus esta- dos que os seres se distinguem ns dos outsos e se identificam coma si mesmos. Se 0 -kumé conota a alteragio expiritual (ou diferenga interna e intensiva), o-mi- ra conota a idemtidade corporal (ou diferenga externa e extensiva) Esse dois mo- Aificadores determinam, em suma, 0 sentido dos conetitos dela’ ede ‘corpo! no pensamento yawalapti. Cf caps. 7e8 inf ca ‘como aos ipuaditdri-kuma, espiritos anteopomorfos genéricos que soem habitar as lagoas do Alto Xingu No sentido [2}, 0 mais generalizado, -mina funciona como o opera dor bisico do estilo classificatério yawalapiti. Ele é aqui um marca- dor minorativo, indicando a distincia escalar entre 0 objeto classifi- cado ¢ 0 tipo-ideal que preside a classificagao, Nesta acepgio, ele se opie a-riru, ‘auténtico’ ou ‘proprio’, invertendo, curiosamente, 0 sentido [1]. As coisas-mina sio coisas que se enquadram apenas em parte no modelo, a0 passo que as coi plena: iaeaké-niru é um irmio ‘real’, filho do mesmo pai e/ou mesma me que Ego; itutaké-mina, todos os parentes paralelos (edependendo do contexto, também 0s eruzados) da geragaio de Ego, a quem se apli- cam, atenuadas, as mesmas regras de relacionamento. © proprio, ~ rire, pode ser coneretizado pelo qualificativo ueina, “muito”. O qua- se, mina, por pahttsi, “pouco”, pant, “metade” ou showku, “longe”? Na verdade, porém, é possfvel argumentar a favor de uma su- perposisio dos sentidos [1] ¢ [2]. Os membros de uma espécie so sempre exemplares imperfeitos, réplicas ou cépias do Arquétipo, 0 qual éfreqiientemente encarnado em um ser mitico. A totalidade dos centes, em certo sentido, & sempre -mina por oposigao aos modelos, 8 seres-kuma. O modificador -riru, por sua vez, fica a meio cami- nho: define aquelas coisas, dentre as atualmente existentes, que ten- dem ao modelo representado pelos seres-kuma, os quais, por sua ver, tendem a hipertrofiar-se em monstros. © modelo, a arquetipia, 0 ex- ‘cess0 € a monstruosidade, por um lado; a réplica, a atualidade, a ca- réncia ea inferioridade, por outro. O sistema se dispde entre dois polos, o dos seres-humd e 0 dos seres-mali: monstros perfeitos ver sus simulacros imprestiveis, passando pelas coisas-rira, adequadas, a0 modelo, ¢ as coisas-mina, proximas a0 modelo. ira mosteam adequagio 9-0 sufixo «rw pode ser usado como énfase, rex. em disa-nins, Seu regime sititico parece ser algo mais flexivel que o dos demais modifi does. 6 Um exemplo de variagao no uso dos modificadores conforme as exigéncias do contexto seria a categoria kutptra, ave. Kutipracmi- na em gera, todo animal alado, e utipira-kuma, como ji refer, atharpia, No encanto, oui, em certo passo, a expresso katie: ru, que me foi traduzida por “passarinhos de verdade",designando guaisse acha a harpia. Neste context, utiprra-minalimitava-se & significagio de “passarinho pequeno” (0s passeriformes, mas tam- | bém os pstacdeos ete.) ekutpiraskuma, conseqientemente, foi traduzido apenas por “passarinho-espirito”, No dominio dos pe- |. sex—outeo exemplo 0 poraqué &-min,preudo-cobra, ou a pati-parit, meio pebses jv araia&kapdri-mali, peineimprestvel ira, 05 peixes d ‘ou peixe impréprio, por oposigio 20s kupai sanascr apenas on pres epits A posible dese dedo- | rar am psi n/t -rir/mld) dado com escrignci de nein ina ue sens smo Fetes net xad a noon esti 0 SISTEMA Dos MonIFicADORES Em outro texto (Viveiros de Castro 1977), tive ocasido de me refe- ir & difusdio das nogies de “muito” e “pouco” na atribuigdo de iden- tidades grupais, na classificagZo dos graus de chefia (amulaw) na ordenagiio das relagdes de parentesco yawalapfti. O livro de Tho- ‘mas Gregor sobre os Mehinaku, publicado em 1977, chama atengio 10. Gregor correlaciona esse pendor gradatvista da clasifcagdo mehinéku com a Alexibilidade socioligica dos povos xinguanos, e, partir df, infere que os Mehi nik vishumbram elaramente “o homem por detis da mascara” (op. eit: 295,298 «1 passin), Aqui nio & local para diseutie estas conclusdes, mas alo me parece «que a questdo da flexbilidade dos sistemas socaissul-americanos autorize uma sohisSo deste tipo. ” para esse mesmo ponto (ver caps. 17 ¢ 18)" Na verdade, a classifi- cago por gradientes de distancia relativa a um tipo nio se aplica apenas as relagdes sociais: ela parece caracterizar um trago geral da cultura yawalapiti, que se exprime no uso freqiiente do modificador -mina. Tal estilo cognitivo continuo e escalar é consistente com uma organizagao sécio-espacial marcadamente concéntrica (ver Lévi- Strauss 1956), € com a auséncia de qualquer separacio radical entre as esferas da Natureza e da Cultura Uma palavra adicional sobre os dois modificadores restantes. O sufixo -rira, auténtico ou legitimo, conteasta em alguns contex- 10s diretamente com -malé, falso, imperfeito ou inferior. Apenas a grande casa do putdke wks, 0 “dono da aldeia” ou representante sgrupal, € pa-rira, “casa de verdade”; as demais sio pa-mali.!" Ou ainda, dentro da tipologia dos géneros de fala (Gregor 1977: 76-38), distingue-se entre yayakatualhi formal do chefe, pronuneiado no centro da ald ira, “fala verdadeira” — 0 discurso ou qualquer men- sagem Lingiiistca que exprima adequagao ao modo de ser xinguano ~e yayakatwalhi-mali, “fala raim”, expresso que qualifica os ru- motes e mexericos, proprios da casa e das reas periféricas da aldeia. Mas sao também fala-malio balbueio de eriangas pequenas, as brin- cadeiras verbais (normalmente de cunho sexual) entre primos cruza- dos, ¢ 0 discurso agressivo dos feiticeiros. O sufixo -mali costuma set aplicado a objetos e seres que ‘nao slo’ ou ‘ndo fazem’ confor ‘me seu protétipo. No exemplo ja utiizado, as i-malié so as cobras, sem veneno; 0 modificador ndo conota necessariamente, assim, a {dia de perigo ou malignidade, mas sempre a de imperfeigio. Acestrutura do sistema, em suma, pode ser visualizada de dois, mod Bsa casa & dita ser umanalhi, “fe te pela comunidade aldea se: construida coletva ecerimonialmen- win € ” cv, Fiera 12, Contrastes entre os madifcadores Se levarmos em conta que, na verdade, os modificadores se orde- ‘nam em uma escala continua, das subcoisas as supercoisas, terfamos também: Fgura 12, Escala dos modiicadores Com uma descontinuidade mais marcada entre -kuma e -niru, que podem, recordo, opor-se diametralmente como sobrenatural a atual -réira passa a subsumir a esséncia dos seres ndo-kuma, funcionando como limite superior de -mina ¢ -malt © esquema é bastante produtivo. Os animais terrestres, como ve~ |, semos, so chamados de apapalutdpa-mina, em contaste com o+ apapalutdpa-rina, 08 espiritos propriamente ditos. Como 05 espiti- | tosstios seres-Auma por exceléncia,teriamos entio um kumd-mina, um kumaerine e, no limite, um kuma-kuma: deve haver, aventou- me alguém uma vez, muitos apapalutdpa-kuma, isto €, espiitos- | Ruma no Rio de Janeiro. 9 Para concluir esta introdugdo, observo, em primeiro lugar, que 0 es- quema cognitivo acima descrito repercute no evhos yawalapiti. As coisas-niru e, sobretudo, as coisas-kuma, no sentido de sobrenata- rais, sio objetos do kawika, “respeito” ou “medo”. Em geral, quan- to mais proximo algo esté de seu modelo, mais forte e definida é a atitude face ao ente ou & relagio em causa, Em segundo lugar, seria instrutivo comparar 0 modelo aqui proposto com a quadriparti¢ao que Ellen Basso (1973:17-26) esta belece para os Kalapalo, baseada nos eritérios da “metdfora huma- nna” e do “sufixo de posse”. Embora um esquema fundado em opo- sigdes discretas, como esse de Basso, nfo me parega dar conta do caréter essencialmente continuo das classficagBes xinguanas, ele co- bre aspectos importantes que nio tenho condigdes de abordar, co- mo a das relagdes implicadas nos afixos de posse. Lembro, ainda, que o modificador -kuma foi atestado para linguas xinguanas nio- aruaque; ele corresponde ao /kuegi/ kalapalo (Basso op.cit.) e a0 /arewiyap/ kamayurd (Agostinho 1974). Nao ha informa bre 0s outros modificadores nessas linguas. O trabalho de Gregor (1977) sobre os Mehinku, falantes de aruaque como os Yawalapiti, além de indicar o mesmo uso de -kumé, registra um equivalente de -rtira,-waja, €.0 mesmo -mal. Quanto ao cognato de -miina, -mune, morfema que Gregor estima “de significado complexo”, este é glo- sado como “substancial”, solugdo que me soa demasiado restritiva, ‘mas certamente apropriada. O problema do autor ali (id. ibid.: 321) é traduzir apapaiyed mune, em yawalapiti epapaluedpa-mina, isto é, “animal terrestre’, Como ja indiquei, o termo certamente significa ‘espirito-mina’, € as conclusbes que se podem tirar disso sio dife- rentes das de Gregor. Estou ciente, por fim, de que a existéncia dos modificadores nao é de modo algum exclusiva dos Aruaque (e/ou demais povos) do Alto Xingu. Nao pretendo isolar um recurso lingitistico prova- velmente universal para torné-lo distintivo dessa regio. Os Suya, por exemplo e para nao irmos muito longe, bem como muitos ou ra 10s povos Jé, possuem algo semelhante (Seeger 1974; com.pess.).!? ‘A questo é antes a da prevaléncia de uma cosmologia de tipo con- ‘imuista ou coneéntrico no Alto Xingu; 0 uso sistematico e freqiien- te dos modificadores em yawalapiti foi aqui tomado apenas como via de aproximagao a essa caracteristica. Dovs ADENDUS & ESTA EDIGAO [1] Haveria uma outra maneira de esquematizar o sistema formado pelos sufixos modificadores. Combinando as propriedades dos dois diagramas precedentes, ela interpreta esse sistema como uma reali- zagio da estrutura discutida no capitulo 8 ina, que sugiro ao leitor consultar: Figura 13.0: momentos da ontolosa yawalait 12, Em suys, -bumen corresponderia ania; -uriga, a mina; e -kisdga condenst- ria kumi ¢ «mali, uma aproximagio improvivel em yawalapiti. Lembro ainda as analogies entre a série yawalapiti eos conhecidos modificadorestupiguaran -gua- ‘se ju (respectivamente grande" e ‘espvtual’ (li, “amarelo'), -2é Cauténtico"), ‘e-rana (als, 'semelhante"), no me ocorre nenhum equivalent exclusive do m= nna parcialmente recoberto (junto com -mealé) pelo -rane tpi A linha que desce descreve o processo de atualizagio e corpo- rificagdo dos existentes, e aquela que sobe, 0 movimento contra tivo de sua virtualizaglo ou ‘espiritualizagao’. O estado-kuma do mito, regime de alteridade absoluta ou de alteragio perpétua, distin- ‘gue-se globalmente do estado-mta caracteristico do mundo histéri- co (a que o estado-outro di origem e acompanha como seu fundo virtual), onde vigoram a semelhanga relativa e a identidade transi- ‘ria, O ritual, figura do mundo histérico, seria entretanto o momen- to onde o coletivo humano (-miina) reaproxima-se ao maximo (-ré- rd) dos sucessos miticos, perante o qual, por sua ver, a vida cotidiana (mina) € avaliada como ontologicamente inferior (-mali). [2] Quando da redagio deste ensaio, em 1977-78, eu desconhe- cia o trabalho pioneiro de Kenneth Kensinger sobre os modificado- res cashinahua (Pano) kuin, Ruinman, Rayabi ¢ bemakia, os quais nao deixam de apresentar analogias com a série yawalapiti* A conver- _géncia entre o tipo de problema de Kensinger e o aqui esbogado me- rece registro; quando mais nio sea, para assinalar a diferenga entre uma anilise baseada no conhecimento seguro do vernéculo indige- na, como é 0 caso daquele autor, e outra que partiu, muito ingenua- mente, de fragmentos de conversas em portugués sobre uma lingua que jamais cheguei a articular. Desde enti, 0s modificadores cashinahua deram, sem troca- dilho, muito pano para manga. Patrick Deshayes e Barbara Keife- nheim,em um liveo de 1994, dedicam-lhes a0 menos sessenta pagi- nas de discussio, propondo uma interpretagao que discrepa da de Kensinger em aspectos importantes." Nao tenho, obviamente, con- digdes de me pronunciar sobre a maior corregao dessa exegese. $ ja como for, a analise de Deshayes e Keifenheim permitiria corre- 15. Kensinger 1975, epublicado em id. 1995 caps. O sistema dos quatro qualificatt- ‘vos cashinahua tem como polatidades principaiskuia/kuinman ekayabi/ Bemakia 14. Esse livro foi originalmente uma tese de doutorado defendida em 1983. Ver ainda, sobre 0s modifieadorescashinahua, o argo de Keifenbeim 1993. 2 lacionar (bastante imperfeitamente, por certo) as série cashinahua ¢ yawalapiti da seguinte maneira: kuin, que os autores traduzem por “Eu” (ou ‘sicmesmo’, Soi), corresponde a -riru; Bemakia, 0 “Ou- tro”, assemelha-se ao -kumas kuinman, 0 “niio- ” (non-Soi), a-ma- tise kayabi, 0 “n20-Outro”, 20 -mina. Tal correlagao, porém, mini- miza o componente gradativo e continuo da série yawalapit Para o Alto Xingu, Bruna Franchetto (1986) apontou os para- Ielos , sobretudo, as lacunas e discrepancias entre a série yawalapiti seus possiveis andlogos kuiktiro (Caribe). A parte arecorréncia do contraste entre os equivalentes de -kumd e -riru, nenhuma forma correspondente a -mina existe em kuiktiro; uma auséncia, certamen- te, crucial, que limita a produtividade de qualquer extrapolagio pan- xinguana com base exclusiva nessa singularidade lingiistica. Para os Wau, de lingua aruaque como os Yawalapiti e os Mehindku, as pesquisas iniciais de Aristételes Barcelos Neto (1999: 74, 98-100, 12000) tendem a confirmar esta andlise dos modificadores yawalapi- tis 0 autor glosa o sufixo -miina (yaw. -mina) por “ordindrio” e “vi- sivel”, em contraste com 0s seres-kuma, extraordi Para as linguas jé setentrionais, a extensa revisio etnografica de Marcela Coelho de Souza (2002) discute o funcionamento dos quilificativos kumrem, dzway, kadk e kaigo,* bastante utilizados, por exemplo, na modalizagao do céleulo de parentesco. Eles foram em geral traduzidos, respectivamente, por “verdadeiro’ ” e“inauténtico”,e tidos por parcialmente redundantes (dois a dois). A autora sugere, ao contrério, que eles talvez.formem 20 ‘menos dois pares no-redundantes de oposigoes, um de tipo disere- , “auténtico”, “ficticio’ to e categérico, 0 outro de tipo continuo e casuistico, 0 que evoca o sistema cashinahua tal como analisado por Kensinger."* ‘Ainda mais gnorante andava eu, enfim, de uma abordagem lin- 15. A grafia correspond as realizagbes hayap6 dessa formas, 16, Salvo engano, uma diseassdo comparatva sri dos dispositivos de modalizagio ontoligica nas Kinguasindigenas é algo que sinda esté por fater. Por exemplo,> 6 slifstico-cognitiva entio na vanguarda, a chamada “teoria dos pro- ‘6tipos” de Eleanor Rosch, que langou um desafio formidavel & teo- ria clissica ou aristotélica da categorizagao (ver 0 balango em La- Koff 1987). Estivesse melhor informado, poderia ter sugerido que os Yawalapiti desenvolveram uma etnoteoria dos protétipos muito antes de Rosch... Mas penso que o interesse antropolégico pela gra- dagdo categorial, fruto do desconforto diante da hegemonia de uma concepeao excessivamente discretiva e ‘totemicista’ da razio classi- ficatéria ~ ou de uma concepsio excessivamente classificatoria da razao — era algo que se disseminava amplamente na atmosfera te6- rica de entio. Donde, com certeza, minha atengao a esse aspecto do pensamento yawalapiti” Tipos de seres Os modificadores yawalapiti desempenham papel importante na classificagdo dos seres vivos; -ména caracteriza as espécies ou géne- 10s de certas ordens animais, e uma define a esséncia dos espirie tos, apapaluzdpa. Homens, animais e espiritos s2o os pélos prinei- pais de uma macrotaxonomia que passamos a expor."* (Os Yawalapiti propuseram-me uma nogio geral, yakawakd, mo tradugdo para 0 portugués “coisas” — os entes e objetos do mun- > o fato de que as sériescashinahua, yawalapiti e kayapé contenham, cada uina, ‘quatro modifcadores & uma coincidéncis, ou no? 17. Bm 198, recebi uma carta de Willett Kempton comentando os paralelos entre série dos modifieadotes yawalaptiecertos sufixostarahumare, Esse antropélo- 18, que muito depois vim a saber autor de um livro fandamental sobre a prototi- pia cognitiva ea grado classficaéria naquela cultura mesoamerican (Kemp- ton 1981; ef Lakoff op.cit 1s), comou conecimento do presente artigo através de meu professor Anthony Seeger 18, Os trabahos de Basso (1972, 1973) sobre o simbolismo alimentar ea taxono- mia dos seresvivos dos Kalapalo trazem andlises bem mis rigorosa © exaustivas estes ema, “ do. As principais subdivisdes sio: apapala, bens; ¢iptla, 0s seres vi- ‘vos, que, embora sejam ‘teoricamente’ yakawakd, nunca sio desig- nados por este termo.” /pila inclui os humanos, certas ordens ani- mais e vegetais, Os espiritossio problematicos: alguns interlocutores 105 classificaram como ipa, ressalvandlo que sto invisiveis; outros os puseram a parte. Note-se que certas entidades inanimadas tam- bém podem assumir um cariter espiritual ou sobrenatural (quando so marcadas por -huma). Mas ipa também se aplica a itens como “peixe sem assar, pau verde atividade humana, ou que estio ‘vivos’ em um sentido particular: crus. pila se diz ainda do alimento em estado potencial. Tudo indi- refere-se, portanto, a objetos ainda nao transformados pela ca, assim, que no ha um conceito exatamente coextensive & nossa nosdo de (© trago mais saliente da taxonomia yawalapiti do que chama- riamos seres vivos ¢ a auséncia de separagio categrica entre os hu- ‘manos e demais animais. Nio existe um conceito correspondente & nossa nog de ‘animal (nio-humano)’; ¢ impossivel, portanto, fa- zer a Natureza corresponder a uma idéia geral de animalidade, co- 19, Nota desta edi, Em um artigo rocente, Emilienne Irland 6 idéntieo ermo wauri yakowakd por “coisas de pouea impor ichinhos", “coisas pequeninas espa- do que ce significa literalmente “insetos", Thadas". A palavra se aplicaria, em geval, 20s elementos da cultura material, em= hora os objetos de valor cerimonial seam dstinguidos pelo ermo gpape ala yj, coisas de real valor”. O segmento /ysj0/ (mehin. waa) corresponde certament 20 -rira, 0 yawalapiti apapsla deve corresponder 20 wausé gpepa alc. E bem cisas" (no sentido geral deen possivel que a radugio que me foi sugerida de dades’) por yakavaké tena sido uma concessio de meus iterlocutores a minha ‘busca ingénua de macrocategorias ontoldgicas eu procurava o nome do Objeto em geral, deram-me ‘bichinhos’e ‘coisas pequeninasespalhadas. 20. ple parece conte riz /ipu-/, presente em pak, “crescer”, "broro”, “a cestral”, em jputri, “gente”. Ji 08 vivos, ie. 05 sores atualmente vivos por ‘posi aos morts, slo kulew, “os acortados” 45 ‘mo seria 0 aso, a0 contritrio, dos Suy’, que opem mbru, “animal”, ce me, “humano” (Seeger 1974: 22). As principais distingdes que se me apresentaram no dominio dos ipila foram as seguintes: puri 1 “gente”, ou humanos); apapalutdpa-mina (animais terrestres; 05 ‘Yawalapiti traduziram o termo por “bichos”); kutipira-mina (aves); Aupati (animais aquiticos, categoria que, além dos peixes, inclui pe- Jo menos um quelénio, o tracajé); ¢ patshi, plantas cultivadas (as plantas selvagens foram-me descritas pela expressio ipika-pira, “erescem sozinhas”)."! Outras categorias que recortam o dominio io utd (“bichos da terra molhada”), aplicada a uma variedade de insetos, ey lu-ytle (*bichinhos que voam”). Nao hi taxon para ‘in- seto’ ou similar; e & importante ressaltar que muitos animais nao es- to incluidos nesse nivel mais geral de contraste.”” A parte (em parte) os humanos, vé-se que as linhas mestras da classificagio animal apéiam-se na distingao terra/Agua/céu, para as classes principais. Ha subdistingdes, por exemplo, entre pissaros “que andam a pé” (galindceos), péssaros “em cima d"gua”, pissa- +08 “no céu” etc. Por sua ver, as subclasses vegetais mais importan- tes pareceram-me ser araya, 05 eméticos ¢ irda, 0s “remédios”. Apopalutdpa-mina, que glosei por ‘animais terrestres’, pois es- tes, e mais particularmente os mamiferos, so os primeiros nomea- dos quando se exemplifica a classe, inclui na verdade certos animais -voadores, insetos e réptes aqusticos, como os morcegos, as abelhas e 0 jacarés, Inelui também, significasivamente, certos peixes: os kupé- ti-kuma, “peixes grandes”, isto é, 0s pimelodideos como a pirarara e © jai Isso nos leva a0 eri ério de ordenagao do dominio animal que 2 Diz-sepkapira também dos filhos de mde sleira 22. P. ex as cobras a formigns. Meus interlocutores nem sempre concordavam sobre inclsio de certs animais nesta ou naquela classe. Para alguns, as cobras 0 apapalutdpa-mina; para outros, So "x6 cobras mesmo”. © tracajé ora era ku- pi ora apapalutspa-mina ~o que parecia dependes de se este animal estava sen o consideradlo como aimento ou alo. 6 interessa mais diretamente a este trabalho, o regime alimentar. As ca- tegorias animais yawalapiti tém como umn de seus eixos conceituais principais as relagBes que as espécies mantém com os homens, ea ali- ‘mentagdo 6 certamente um componente essencial de tas relagdes. GENTE E MACACO DE ONGA 0s apapalusépa-miina, inclusive os kupdti-kuma, sio fundamental- mente incomestiveis. Dos kutipfra-mifna, comemse apenas uns pou cos, da subclasse dos que “andam a pé”. Os kupdti-rira, enfim, si0 co alimento animal por exceléncia (0s apapaluadpa-mina, ou “bichos”, Slo seres que hesitam, por assim dizer, entre os humanos e os espititos. ‘Quase-espiritos’, da classe dos espiritos’, seria a tradugao literal do termo. Quando se dia, entio, que os peixes grandes, os kupéti-kum@, sio apapalutdpa- ina, pode-se estar dizendo, ou que eles sio parecidos com espiri- tos, ou que eles nao sio peixes mas “bichos”, parecidos demais com cs humanos. Pois a relagio mitica dos apapalutdpa-mina com a bu- manidade é complicada. Os gémeos Sol e Lua, pais dos humanos ¢ filhos do Jaguar arquetipico, nasceram na aldeia dos epapalutdpa- ‘ina, chefiada por esse mesmo Jaguar. O surgimento da humanida- de esti associado a uma disjuncio entre os gémeos ¢ a tribo do paiz 60s primeiros indios, feitos de canigos de taquara pelo Sol, mataram todos 0s animais, Mas nos mitos subseqiientes do ciclo, quando Sol «Lua fazem a primeira festa dos mortos, @ luta cerimonial opde 05 convidados-peixes aos anfitrides-bichos, ¢ estes titimos sio defini- dos como 0 “pessoal do Sol” (Kami ipukiitri). Em outros mitos, os péssaros que enfrentam os apapalutdpa-niina, sempre comanda- dos por Sol e Lua. (© arquétipo ou “chefe” dos apapaludpa-mina ¢, como disse, a conga, yanumaka. Ela € 0 tinico animal que no tem kawika (medo ou respeito) dos humanoss isto a aproxima dos espiritos, de quem, 20 contraio, sio os humanos que tém grande kaw/ka. Seu oposto ab- ” soluto & 0 macaco Aiji-kiji (termo genérico para os pequenos cebi- eos), que € 0 tinico apapalutdpa-mina que 05 Yawalapiti admitem ‘comer, argumentando, bastante curiosamente, que € “porque ele pa- rece gente” (Basso 19.72 registra o mesmo argumento para os Kala- palo). As oncas comem os humanos, os humanos comem os maca- cos: “gente é macaco de onga”, disse-me alguém.” Em determinados contextos, notadamente durante sua caga, o macaco é chamado jpu- ‘bf, gente, metafora que evita que se esconda do cagador." Uma das caracteristicas fundamentais do ethos xinguano é seu professado pacifismo; dizer que se vai cacar gente, referindo-se a0 macaco, de- ve ser, assim, considerado uma forma irdnica. Os primeiros macacos eram bebeés do sexo masculino abando- nados pelas Amurikumdlu, as mulheres monstruosas que deixaram a sociedade humana. sso foi-me lembrado por um interlocutor, quan- do perguntei o porqué do consumo de macacos. Estes so, portanto, humanos que reverteram a0 mundo natural, provincia dominada pe- Ja figura do jaguar, de quem os humanos se separam no inicio dos tempos. Penso que a explicago para a eleigio do macaco como ali- ‘mento ~e alimento animal o menos perigoso, 0 primeiro 2 ser con- sumido apés 0s jejuns rituais — exige que se considere o jaguar co- ‘mo terceiro termo do sistema, Os macacos correspondem, no seio dos apapalutdpa-mina, aos humanos, enquanto a onga é a quintes- séncia ndo-humana desta categoria de seres.® Comer macaco, entio, embraria 20s homens que eles sio diferentes das ongas (isto é, dos bichos)? Macacos e jaguares parecem exercer um certo fascinio no pensamento yawalapiti, ao encarnarem aspectos complementares da 23. cap. 7 inf, para uma discussio geal do ‘perspecivismo"implicado nesse tipo de afiemago, 24. Ou eecebe outeos eufemismos, como gpalia-ritjé (“nossa cara”), jpuniirh ukina (“gente do mato”) jp tika-ind (“gente em cima da ievore”). A eaga, em ‘eral, € descrta por um verbo que significa primariamence ‘andar’ 25, Lévi-Strauss (1964: 142-8) observa um sistema correlativo entre os Ticuna: > 8 anti-humanidade."* Somos o que comemos; mas também somos oposto daquilo que comemos ~ ¢ estas proposigées coincidem no ‘consumo dos macacos pelos humanos. Se 0s macacos sio comida especialmente apropriada para os humanos, 08 apapalutépa-mina em geral, por sua vez, sio a presa adequada as ongas.” Sol e Lua tentaram conveneer seu pai de que doravante devia comer apenas bichos, ndo gente, um contrato que estabelece a separagdo humanos/jaguares, lembrada cada vez que cos homens comem macacos (¢, « contraro, cada vex. que uma onga ataca um humano). ' ‘Mas a comida humana por exceléncia é 0 peixe. Macacos e p -xes opdem-se em outro eixo que macacos € ongas: 0s peixes so 08 mais diferentes dos humanos, sendo assim 0 alimento caracteris destes; 0s macacos, os bichos mais parecidos conosco, so © alimen- to em situagdes ‘pré-alimentares’, aquilo que se come quando ainda no se pode comer pei. faicuo € ceNte Pode-se sugerir que a situagio especial dos “bichos” deve-se ao fato de que os humanos sio, na verdade, uma subeategoria dos apapalu- tdpa-mina, e/ ou vice-versa. Muitas vezes, ouvi que “apapalutdpa- > “0 jaguar & 0 contririo do homem; 0 macaco é ances, sua contrapartida”. O texemplo yawalapiilusta esuplementa esa propos, a0 inodrir uma regra alimentar. A peoibiglo do consumo dos apapalutdpa-mina possi alguma seme thanga com a proibigio do incest consumo de maeacos seria o simbolo que vio- Ia, esim, reeorda a separagio entre os humanos e 0s animais terrestres, 26, Note-se, porém, que a mitologiaxingwana ndo parece reservar grande papel 137. Os waréyunan, selvagens no-xinguanos, comein “carne de bicho” — 0 que o¥ torna agresivos lofvkd) e imprevisiveis como os jaguares, O regime aimentar tam dos ertéris dstintivos da humanidade verdadeira, eesti associado ao ethos pacifico e respeitoso propugnado pelos grupos xinguanos. ” ‘mina ¢ jpuar”, ou seja, que “bicho” & “gente”, Os arquétipos da bhumanidade, Sol e Lua, nasceram da unio do Jaguar com uma hu- mana (feita pelo demiurgo Kwamuty), ¢ estio associados aos “bi- cchos” em oposiglo aos peixes e passaros.** Vale notar que, ao nega- tema relagio com o Jaguar e se igarem afetiva e ‘especificamente’ a ‘mic humana, 0s gémeos miticos procederam a contrapelo da teoria concepcional indigena, que atribui exclusivamente ao pai a substin- cia do filho, Negar a animalidade negando a paternidade, atingir a cultura afirmando a maternidade — eis ai uma idéia que nao se pode dizer ortodoxamente freudiana.” A ptoximidade entre “bichos” e espiritos, matcada no préprio ‘nome da categoria, ndo é imediatamente bvia, uma vez que, se os apapalutdpa-mina ¢ os humanos vivem na terra, espiritos os hi em toda a parte; os mais poderosos, aligs, vivem sob as fguas. Minha impressdo é que 0s apapalutdpa-mina sio quase-espititos exatamer te por sua relagio ambigua com a humanidade, Semelhantes 20s bi cchos por seu habitat terricola e pela forma de nascimento,¥ os hu- ‘manos surgem ao negarem sua relagio com os apepalutdpa-mina. Observo que, ao glosarem o termo vernéculo por “bicho”, os Ya- wwalapiti estavam empregando este termo no duplo sentido que pos- sui no portugués popular: ele significa ‘animal’, mas também ‘coisa desconhecida, monstro’." O fato da onga ser 0 chefe ou modelo dos apapalutdpa-mina também é significativo, visto que este felino, por sua ferocidade e sua antropofagia, tangencia a classe dos espiritos. 28. O mito de criagio xinguano pode se ido, em vitias verses, em Villas Boas 172, Agostinho 1974, Monod-Beequelin 1975 25, Mas ébem verdade que os gémeos-arquétipos da humanidade ‘mataram o Pa", ‘matando metonimicamenteo Jaguar (e nfo, como em Totem ¢ tabu, um grande Macico...) sob a espécie de seus animais subordinados. 39. O nascimento vivipao & dito yams, A raiz/yu-/ define um paradigme de ermoslgados isiologia eeprodutva: menstruas,cranga pequena, eto ec 51 Esta, como se sabe, uma de nossas nogbes-mana: "que & ese bicho verme- tho? (Lévi-Strauss ros: ii) Note-se, parém, que 0 “dono” (wokit) dos apapaluadpa-mina no é 41. onga, mas um sobrenatural antropomorfo, Apasha, cuja aparéncia fisica é singularmente semelhante & de um macaco.* De qualquer forma, 0s apapalurdpa-mina distinguem-se das ou- tras categorias de seres vivos por serem essencialmente incomest. veis, como o sia, aids, os espiritos, modo supremo da incomestib dade. Causadores de doenga, os espititos impdem formas variadas de abstinéncia alimentar a0 doente e sua familia, além de exigirem uma distribuigao cerimonial de comida para a comunidade, levada a cabo pelos abstinentes. Muito a0 contrario de se darem a comer, 05 espiritos comegam por nos fazer no comer, e exigem em seguida que demos de comer, para que no sejamos, talver, comidos por eles.” PASSAROS € Feies [As aves (utipira-mina) habitam aldeias celestes, ¢ io chefiadas pe- Jo Urubu Bicéfalo (uldpu idhowtiw). Os representantes prototipicos da classe so 05 rapaces, que lutam com as almas dos mortos perio- dicamente, nas festas no céu. As aves ensinaram aos humanos vé- rias ceriménias, como 0 Iraléka (o ‘Java’, duelo de dardos) ¢ 0 Pi- hiked (rito de perfuragio da orelha dos adolescentes). A reclusio pubertiia foi inaugurada pelo Urubu. Em geral, os alados esto as- 42. Zar (1975172) afirma qu 0 pacha ests associado aos velhos, enquanto Bas tos (6/7) observa que 0 macaco s6 & comido pelos velhos, entre os Kamayur “Este dkimo ponto nfo e verifica para os Yawalapins mas “velho™ (Waki de fato, uma periftase para Apaske. O ritual do. Apacha admite ou mesmo exige pa thagadas, endo &considerado hawike. Os dangatinos vio de casa em casa pedindo comida, 0 ue nunca se faz no cotidiano. Tal comportamento destegrado talvez pudesse ser associado aos velhos, se atentarmos para os paralelos suyd (Seeger 1976): Helis Fénelon Costa sugerin-me uma relagio entre Apase eprimitividar ou humanidade pré- * a doenga e a gestagio.* Sobretudo, a teoria de Gregor —a tinica até agora formulada sobre a reclusio xinguana ~ desqualifica a inter~ pretagio nativa da instituigo, uma opgao tedrica que recuso. Se os ‘Yawalapiti dizem que a reclusdo é “para mudar o corpo”, esta afir- ‘mativa niio pode ser tomada como metifora; ela deve ser tomada es- tritamente ao pé da letra, Desde que se entenda que 0 corpo, para os Yawalapit, ¢ algo diverso do que assim chamamos.” Se a fabricasdia do corpo define o dominio da casa, da periferia da aldeia, do privado e do secreto; a exibigdo do corpo, seu uso co- ‘mo tela onde se depositam as marcas de estatuto (sexo, idade, papel cerimonial), caracteriza o patio da aldeia, a vida piblica, o confron- 10 com as outras aldeias da regio eo contexto cerimonial. Fabriea- do-teclusio opéem-se, assim, & decoragdo-exibigao. Tal contraste parece marcar fortemente a vida xinguana, que se desenrola como oscilagao entre esses dois momentos complementares, cuja dindmi- ca ilumina os modos de emergéncia da individualidade na socieda- de xinguana. O pitio, a fala do patio, aluta corporal, a danga, a exi- bigdo (tipicamente masculina) da propria singularidade no centro da aldeia sé existem articulados com o gabinete de reclusio, seu si- léncio e seu segredo, a fabricagio demorada do corpo, submetido a regras de continéncia alimentar e sexual. Aquilo que distingue 05 individuos ~ seus corpos ~ transforma-se, na reclusio, naquilo que os identifia. Como se vé, portanto, ha um sistema de trés termoss a fabrica- 0 do corpo, a exibigio do corpo, ea metamorfose. Esses proces > morrem pré-piberes chegam ao cé i pe-rechuos, Basso (1973 58) eslarece que ‘alma reoém-chegada aos ofus entra em reclusio para secuperar sua forgas aps longa perigosa viagem. Nao i erangas, como no hi sexo afinidade ou tabla rho mundo dos mortos~ mundo congelado, sucesso inindive de fesse situa 59. Cf. Whitherspoon 1977: 86, sobre anecessidade de dstinguir o que é metifora {do que € afirmasio literal nos termos da cultura do grupo estudad, e no da cul- turado pesquisador. 0s podleriam ser postos em correspondéneia com a triade: natureza, cultura, sobrenatureza, desde que com isso nao se retire deles seu caréter fundamental —o de serem, justamente, processos, que, mais que distinguindo esses trés dominios cosmolégicos, pdem-nos em comunicagio, Acrescente-se ainda que, a decoragio do corpo coti- diana, sobrepdem-se as pinturas e ornamentos cerimoniais. Tais or- ‘namentos representam freqiientemente os espiritos que ameagam, fora do contexto do ritual (e fora da aldeia), os humsanos; e o perigo que representam é sobretudo o de metamorfosear estes tiltimos em o-humanos. | Assim como a fabricagao do corpo se far no gabinete de reclusto, que é uma hipérbole do espago doméstico, as metamorfoses se dio sobretudo fora da aldeia, na floresta, quando os individuos esto A reclul fabricagao isola o individuo para poder incorpo- lo (em duplo sentido); a metamorfose expele o individuo para além das fronteiras do grupo e da forma corporal humana. O es- aso, em summa, também pode ser dividido em trés dominios cor | Pete « periferia doméstica (fabricagio), a praga central (exibi~ fo), 0 exterior da aldeia (metamorfose). Pode-se assim, talver, | concebera fabricagio como uma metamorfose controlada, ou me- thor, pode-se definir 0 processo geral da humanizagio como uma | coneracmetamorfose. (Os Yawalapiti postulam a existéncia de uma multiplicidade de seres espirituais com influéneia considerdvel nos negécios humanos: eles causam a maioria das doengas, encontram-se com os humanos na floresta, ajudam os xamis, sdo 0s “donos” de certas espécies ani- mais. Como ja observei, sua classificago como seres vivos é pro- blemitica. A categoria dos espiritos é fandamentalmente aberta; ¢ 2s aberta, inclusive, & invengio e manipulagio individuais, como bem mostrou Gregor (1977: cap. 19). Mais que de espititos, melhor se- ria falar, com efeito, de uma espiritualizasdo potencial a que todos os seres estdo submetidos. Em geral, ha duas classes de espiritos: (a) 08 seres-kumé, isto 5 animais ¢ classes de objetos acessiveis 4 experiéneia ordindria; (b) 0s apapalurdpa dotados de no- 6, duplos transcendentes de es mes préprios, de correspondéncia mais vaga com as entidades do mundo cotidiano. Este segundo conjunto inelui manifestagdes an- tropomérficas de fendmenos naturais, como 0 trovio € 0 raio, €es- piritos com uma forma singular. Os Yawalapiti possuem uma repre- sentagio visual deles, manifesta nos rituais. Entre os apapalutdpa ‘nomeados, os mais importantes sio os patronos de ceriménias, co- mo Apasha, Yakui-katu, Apapélu e outros. Em ambas as classes, & ‘comum conceber-se 0s espiritos como possuindo uma esséncia an- tropomorfa por baixo de uma aparéncia monstruosa, concretamen- te pensada como uma roupa ou envolt6rio (ind). (Os espiritos sao invisiveis, munupakindris s6 aparecem para os doentes ¢ 0s xamis em transe. Ver um espirito acidentalmente (sem- pre quando se esti s6, ¢ fora da aldeia) provoca por si s6 doenga ou morte. Ver, com efeito, é algo que parece definir a relagdo com 0 so- brenatural: 0 xama é aquele que tem uma visio poderosa (awiri nu- ritd, “olho bom”), Quando se esta morrendo, véem-se as almas dos ‘mortos; com febre, vé-se 0 espirito causador da doenga. A alma do doente viaja até as aldeias dos apapalutdpa, ¢ os Yawalapiti compra zem-se em contar 0 que viram nestas viagens febris. O feiticeiro, igualmente, é um ser que vé demais, sabendo 0 que se passa em casa alheia, Ele e os xamas langam mio de remédios que agugam a visto. (0s apapalutdpa esto usualmente em toda a parte, menos den- tro da aldeia, onde surgem apenas nas situagdes extraordinérias da doenga, do xamanismo ¢ do ritual. Eles abundam sobretudo nas la- .goas ena floresta profunda. O eéu nao é considerado especialmente como morada de espiritos, embora lé vivam alguns, como 0 Trovio © 0 Urubu Bicéfalo, Clareiras na mata, locais embaixo de drvores sprandes também sio “casa de apapalutdpa”. Certos sitios particula- res slo conhecidos por abrigarem espiritos individuais. Uma lagoi- nha que existe entre a aldeia e 0 Posto Indigena é morada de uma apapalutsé (auta pequena) causadora de doengas em recém-nasci- dos. A Lagoa do Segredo, érea de antigas aldeias yawalapi ‘gava uma legitio de espiritos maléficos. A vizinhanga de tais locais & perigosa, visto que o modo principal de relacionamento entre hu- ‘manos ¢ espiritos é a doenga. Aafixagio do modificador -kum@ ao termo para determinado animal ou objeto, indica, como vimos, que ele é um sobrenatural: grande, feroz, invisivel. Hé peixes-kumd, ongas-Aumd, canoas-ku- ‘ma, tachos de assar beiju que sio -kuma. Alguns animais, no entan- to, prescindem do modificador para que sejam considerados como ‘epapalusdpa: 0 jacaré, a onga, 0 cervo, 0 macaco, foram-me indica- dos como exemplos. Estes animais (todos, por sinal, apapalutdpa- ‘mina, bichos), por sua vez, incluem-se entre 0s umaié ou arquétipos. ‘Todos os personagens miticos s2o definidos como apapalutdpa: Sol, Lua, Kwamuty, Ayanamé ete. Assim, 0s espiritos so uma categoria de seres que atesta a perenidade da relagao entre o mundo mitico e ‘o mundo histirico. A questio de saber se um determinado apapalutdpa é um in viduo singular ou uma raga ou espécie de seres nao parece preocu- par os Yawalapiti. Alguns, como os Apasha, constituem verdadeiras sociedades, com homens, mulheres, criangas, aldeias etc. Todos os espiritos sio iguais no olfato sensivel, no gosto pelo tabaco, pelo cheiro de akukiti (a semente usada nos colares dos xamis), ena atra- ‘920 mesclada de temor pela cor negra. Duas figuras da sociedade humana mantém uma relagio espe- cial com 0s apapalutdpa: os xamas ¢ 05 feiticeitos. Todo espirito & por definigio um iacamé, xama, Alguns sio xamis especificos de certas ordens animais, mas ‘espirit e ‘xama’ so em cesta medida sindnimos. Os éatamd humanos so conhecidos, dentro da comuni- fo dade dos xamis do Alto Xingu, pelo nome de seu espirito tutelar. ‘Nuiatamad, literalmente ‘meu xama’, & como 0 iatamd humano refe- re-se a seu espirito familiar, o que sugere que 0 exercicio da capaci- dade xamanistica se radica na presenga ativa do espitito. Mas os es- Piritos sio também feiticeiros (skkiu wokoti, “dono de feitico”), pois possuem flechas invisiveis que langam no corpo dos doentes, como seus congéneres humanos. Sendo feiticeiros e xamis a um s6 tempo, 0s espiritos provocam e curam as doengas. (0s apapalutépa relacionam-se com a sociedade yawalapiti em bases predominantemente individuais. Afora Apapdlu, espirito das flautas sagradas proibidas as mulheres, que talvez.se constitua em ‘um culto da comunidade masculina — ¢ 0 espirito feminino das Amu- rikumélu, para a comunidade feminina ~, no parece existir qual- ‘quer relagio fixa entre espiritos determinados e papéis ou segmentos sociais definidos. Os espiritos se manifestam para a sociedade atra- vvés de uma relacio com um individuo, euja forma bisica é a doenga. ‘A doenga nao é um mal absoluto, ou ndo é apenas isto. Grande parte do sistema ritual xinguano depende das idéias ligadas & doen- 62, € 0 circuito de reciprocidade ativado pelas ceriménias constitui- se no mecanismo mais geral de integracio da comunidade alded, além de estabelecer os lineamentos de um sistema politico, visto seu papel na coordenagio do trabalho coletivo (Dole 1966). Sobretudo, pela doenga definem-se as relagbes entre o individuo (¢ seu grupo de substincia) e a comunidade, incorporando uma erise individual na dindmica coletiva. Dessa forma, o sistema cerimonial ativado pe- la doenga preenche o lugar dos grupos cerimoniais ou de parentes- co que fariam a mediagio entre ‘individuo’¢ ‘sociedade’, inexisten- tes na constituigdo social xinguana, A parte 0s males causados por feiticeitos, os quais podem, de resto, prevalecer-se da ajuda de espfritos, todas as doengas decor- rem de um contato com 0 mundo sobrenatural. O doente é alguém que foi “morto” (kukd inukakina, o que se dit igualmente do xama em transe) por um apapalutdpa. Tal estado se deve a penetragao de dardos invisiveis no corpo, que 0 xami extrai e exibe na sessio cu- rativa, Ele também pode ser causado por um roubo da alma (ipaié- 1 pelo espirito, que a leva para a aldeia dos apapalutdpa. Este rou- bo é experimentado pelo doente como uma viagem onirica especialmente intensa (todo sonho ou delirio febril é uma viagem da alma); ela termina quando o xama repde a alma com 0 au io de uma boneca spirit catcher (yakulétsha; ver yakulé, ‘sombra’, ‘alma dos mortos’) concebida como imagem do doente. Uma vez curado, © individuo passa a dever algo ao espirito que viu. Ele deve patroci- nar uma ceriménia em que se representa o espitito por meio de can- tos, dangas e adornos/pinturas corporais.® Essa ceriménia é 0 mo- ‘mento em que 0 grupo de substancia do doente (que tende a ser uma uunidade de produgio cotidiana) distribui comida a toda a aldeia. O ‘espirito é encarnado-representado pela comunidade, e ambos, espi- Fito e comunidade, sao alimentados pelo grupo que, idealmente, je- juou durante a doenga: a comida distribuida é dita “X (nome do es- Pirito) india”, a comida de X. O doente torna-se patrono (wikoti) da ceriménia, e dela ndo participa como ator. ‘Noa sobre a nosdo de “dono”. Nenho usando a tradugho, fia pelos | préprios Vawalapui da palavea wats por “dono”, A tadugo€ | _problemitice, pois oerme ingena €usado em contexts que nio Slo cobertos pelos conects ocidentas subjacent 20 uso mai o- | mum de‘don'n sentido eprops Os conespondentes de | wéixem ourslingasdo Alo Xing foram dacs pelt nografa (como Basso 1969, para oo kalapal, ou Gregor 1977, para owelehemehindk). Trata-se, com ect, de uma nog fre 60. © doente pode, alernativamente, entzegar o patrocinio a alguém que tenha ‘condigdes econdmieas para tl (o que permite a aeumulas sim de preseigio, nas mios dos poderosos). de patrocinios, eas- 61. Seo doente torna-se wit’ da ceriménia em honra do esprito que Ihe causou. adoenga, 0 spirit, po seu lado, é dito sero wiki da densa & damental da cultura xinguana. Apenas humanos ¢espititos, ou ani- mais espiitualizados, podem ser wiki de algo. Em alguns casos, 0 oka’ & un ‘patrono! (como nas ceriménias em que tum individuo € 0 responsivel pela distribuigio de alimentos); em outros, é um ‘mestre” (caso de especialistas rituais e mestres cantores); ou um “Senhor’ (os espiritos wait! de espécies animais ou vegetais); em ‘outros ainda, é um ‘representante’ (os chefe de aldeta ou putdka wo- deri, exja Fungo principal érepresentar 0 grupo em cerimnias in- teraldeias). Pode significar também ‘proprietério’, no sentido co- ‘mum, Em todos 08 €as0s, 0 conecito define um ‘sujeito” através de sua relagdo com um determinado ‘recurso’. Assim, nem sempre se pode usar a expresso x + wikdti como substituto da forma (posses- sivo) + x, Ou seja, nfo é porque certas coisas sio minhas que eu sou dono delas. © conceito de wait’ parece definir mais propriamente uma re- lagio entre sujito e objeto que pode ser concebida em duas dire- Ges: uma relagio de substancia, uma relagio de representagio. © vvinculo de paternidade foi-me apresentado repetidas vezes como ‘uma espécie de modelo concreto da nogio de wokit?. Como tradu= fo abstrata, eu sugeriria a idéia de ‘mediador’. O wokeui é aquele fhumano ou espirito que faz @ conexio entre 0 objeto © 0 grupo, fa- cultando o acesso (material on ideal) do coletivo ao recurso de que 6 0 dono. Neste sentido, o wékiei € um representante, mas que se define pelo que representa; se ele objetiva o recurso para a comu- nidade, é, por seu turno, subjetivado por ele. Boa parte da estrutu- +a social xinguana se apéia em uma classificagio de quem é 0 wé- seri de que. Essa categoria, que tem conhecidos paralelos em varias ‘otras linguas indigenas (pense-se no -jara dos povos Tupi, ou no dandee kate dos Suyé e Timbira), sugere uma anilise semelhante 3 realizada por Benveniste para certos conceitos indo-europeus, n0- tadamente o de */poti/ (Benveniste 1969: cap. 7),em que as idéias de mestee, representante e dono se confundem. % © doente também é identificado 20 apapalutdpa. momento de cu- +a estabelece uma ‘participagio mistica’ entre xami, doente e espiri= to, expressa no conceito de metamorfose (yakaa pa). O xami em transe, o doente em delirio, os humanos que, nos mitos, transforma- rram-se em apapalutdpa, todos evidenciam processos de metamorfo- se. A cura xamanistica implica esta metamorfose; yakdtshi é 0 nome do xami especializado em descobri feitigos no mato e em conver- sar com os espiritos. A doenga é uma metamosfose, assim como 0 xamanismo: a voeagio xamdnica é uma doenga em que um espitito se manifesta, dé tabaco ao novigo, e Ihe ensina cantos e remédios. ‘A metamorfose é indicada por um comportamento desordenado, cujo paradigma é “correr no mato”, ago tipica dos xamas em transe profundo. Os processos de metamorfose estio freqiiente- mente associados a0 uso (ativo ou passivo) do tabaco. Se definir- mos a metamorfose como processo de passagem entre cultura e sobrenatureza, poderiamos contrapé-la aos processos de tipo con- cepcional que articulam a natureza a cultura, associados ao sémen € A nogio de fabricagio (umaa pa) (Os Yawalapiti ndo me pareceram entreteraidéia de que o espirito se apossa, entra no corpo do doente ou do xama em transe; antes, & | aalma do paciente que sai, ou as flechas invisiveis que entram. Mas isso no & completamente claro; hi situagSes em que o xama fica violento e sai correndo pela aldeia, quebrando tudo, ferindo

Vous aimerez peut-être aussi