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DIÁRIO DE LEITURA
Os abismos da cidade
Se a produção artística carrega as marcas do tempo e do espaço onde foi produzida, as obras surgidas
nesta década no Recife terão em comum, fatalmente, o desconforto com os rumos que ocupação
urbana vem tomando em minha cidade natal.
Ademir se envolve com o movimento sem um objetivo muito claro e sem qualquer ideologia; talvez
numa tentativa de encontrar um rumo qualquer. Pobre, negro e com dono de uma relação atribulada
com pais e irmãs – uma delas, trans -, ele sabe que não existe um lugar na cidade para quem tem sua
origem e seus desejos. Em torno de Ademir circulam outros personagens igualmente escanteados
pela cidade, como o porteiro da pensão e Zê, a sua irmã trans.
São várias as formas que Wellington de Melo utiliza para materializar o não-lugar por onde transitam
esses personagens. Na praça de alimentação de um shopping, a cor da pele de Ademir causa mais
desconforto do que o grupo de jovens brancos tramando placidamente um suicídio coletivo. Mas
ainda quanto ao não-lugar, o meu trecho preferido é um diálogo curto e absolutamente corriqueiro,
que acontece quando Zê vai a uma loja de roupas:
“Débito ou crédito?”
“Dinheiro, querida”.
Felicidade aponta na direção de que o embate do movimento Ocupe Estelita é, de certa forma de casa
grande econômica contra casa grande intelectual, uma briga na qual gente como Ademir é mais
instrumento do que participante. É também como instrumento que ele se sente diante de Ignácio, o
escritor para quem ele faz suas confidências. Na relação entre eles, é permanente a descrença de
Ademir quanto à serventia da literatura e o uso que o escritor faz das histórias de pessoas reais em
suas criações.
O livro inteiro é como uma longa carta de Ademir para Ignácio, num intrincado jogo de
metalinguagem e talvez de autocrítica – uma certa angústia diante da eterna pergunta: pra que serve
a literatura, afinal? Qual o seu poder efetivo de influir sobre a realidade? É um questionamento nada
desprezível vindo de quem vem: além de escritor, Wellington de Melo é editor e coordenador da
Mariposa Cartonera (h p://www.mariposacartonera.com.br), editora artesanal que, inclusive,
apoiou o Ocupe Estelita com edições especiais, cuja renda foi revertida para a causa.
No fim das contas, Felicidade é sobre o Hellcife, mas é principalmente sobre os abismos particulares
que se concentram no abismo da cidade; ela própria um buraco invertido, em que as bordas estão nas
coberturas dos arranha-céus, enquanto para a maioria resta apenas o chão.
* Nesta década, uma conhecida construtora da cidade arrematou um terreno público em local estratégico do
Recife em um leilão posteriormente questionado por suspeita de fraude; pretendia construir um empreendimento
com torres de alto padrão à beira da Bacia do Pina, região que liga o bairro de Boa Viagem (a praia) ao centro
histórico. Se executado, o projeto alteraria definitivamente uma paisagem icônica da cidade e pela qual seus
habitantes têm o maior carinho. Surgiu então o movimento Ocupe Estelita, que ganhou certa projeção nacional
quando a construtora tentou demolir os armazéns do terreno na calada da noite, o que causou a imediata
mobilização pelas redes sociais, resultando na ocupação do espaço por algumas semanas, até a demolição ser
barrada na Justiça. Durante a ocupação, foram realizadas várias atividades culturais voluntárias – inclusive
shows – até que a reintegração de posse foi ordenada pela justiça. O movimento continua ativo e a pendenga se
arrasta até hoje.
PS: a foto em destaque, do Cais José Estelita, é do grupo Direitos Urbanos. O projeto para construção
de torres no local inviabilizaria uma das paisagens mais bonitas do Recife: vindo de Boa Viagem para
o Centro, a bacia do Pina se abrindo em azul profundo, as igrejas das torres de Santo Antônio
despontado por trás dos antigos armazéns. Esse seria o resultado:
Publicado por
Renata Beltrão
Recifense, jornalista de formação, mora em São Paulo e trabalha com comunicação institucional e
governamental. Ver todos posts por Renata Beltrão
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