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HISTÓRIAS, NARRATIVAS

E RELIGIÕES
Anais do Iº Encontro Nacional do Centro de Estudos em
História Cultural das Religiões (CEHIR)

HISTÓRIAS, NARRAT IVAS


E RELIGIÕES

Organização:
Centro de Estudos em História Cultural das Religiões (CEHIR)

Apoio:
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Programa de Pós-Graduação em História – IFCH/UNICAMP
Laboratório de Estudos da História das Religiões (LEHR) – Universidade
de Pernambuco (UPE)

18 a 20 de abril de 2017
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Histórias, narrativas e religiões
1ª Edição - Copyright© 2017 Editora Prismas
Todos os Direitos Reservados.

Editor Chefe: Vanderlei Cruz


editorchefe@editoraprismas.com.br
Agente Editorial: Clara Daibert
Diagramação, Capa e Projeto Gráfico: Conrado Dittrich

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Elaborado por: Isabel Schiavon Kinasz
Bibliotecária CRB 9-626

Histórias, narrativas e religiões / organização do


H673 Centro de Estudos em História Cultural das Religiões (CEHIR) - 1.ed. - Curitiba: Editora
Prismas, 2017.
808p.; 23cm
Vários colaboradores
ISBN: 978-85-5507-933-7
1. Religião – História. 2. Religião – Cultura. I. Centro de Estudos em História Cultural das
Religiões (CEHIR). II. Anais do 1º Encontro Nacional do Centro de Estudos em História Cultural das
Religiões.

CDD 200.981(22.ed)
CDU 200(81)

Coleção Estudo das Religiões e Religiosidades


Diretora Científica:
Karina Kosicki Bellotti (UFPR)

Consultores editoriais:
Antonio Nery (UFPR) Nadia Guariza (UNICENTRO)
Artur Cesar Isaia (UFSC) Paulo Barreira (UMESP)
Clélia Peretti (PUCPR) Paulo Nogueira (UMESP)
Edin Sued Abumanssur (PUCSP) Rodrigo Coppe Caldeira (PUCMinas)
Lauri Wirth (UMESP) Rosangela Wosiack Zulian (UEPG)
Leonildo Campos (MacKenzie) Sandra Duarte (UMESP)
Lyndon de Araújo Santos (UFMA) Silas Guerrieiro (PUCSP)
Magali Cunha (Umesp) Sylvio Gil (UFPR)
Marcos Silveira (UFPR)

Editora Prismas Ltda.


Fone: (41) 3030-1962
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Centro de Estudos em História Cultural
das Religiões (CEHIR)

Diretoria – 2015/2018

Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP)


Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

Membros Efetivos

Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)


Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP)
Prof. Dr. Guilherme do Amaral Luz (UFU)
Prof. Dr. Gustavo de Souza Oliveira (UEMG)
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (Mackenzie)
Prof.ª Dr.ª Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)
Prof. Dr. Paulo Julião da Silva (UFPE)
Prof. Dr. Rui Luis Rodrigues (UNICAMP)
Prof. Dtrndo. Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)
Prof. Dtrndo. Sérgio William de Castro Oliveira Filho (UNICAMP/
Marinha do Brasil)
Prof. Dtrndo. Tiago Pires (UNICAMP)
Prof. Mtdo. Júlio César de Melo do Nascimento (UNICAMP)
Prof. Mtdo. Plínio Felipe Amaral Pires (UNICAMP)

Comissão Organizadora do Iº Encontro Nacional do CEHIR

Presidente: Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)


Coordenação: Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP)
Histórias, narrativas e religiões 5
Prof. Dr. Guilherme do Amaral Luz (UFU)
Prof.ª Dr.ª Karina Kosicki Bellotti (UFPR)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

Comitê Científico do Iº Encontro Nacional do CEHIR

Prof. Dr. Antônio Paulo Benatte (UEPG)


Prof. Dr. Artur Cesar Isaia (UFSC)
Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)
Prof. Dr. Drance Elias da Silva (UNICAP)
Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP)
Prof.ª Dr.ª Giselda Brito Silva (UFRPE)
Prof. Dr. Guilherme do Amaral Luz (UFU)
Prof. Dr. Gustavo de Souza Oliveira (UEMG)
Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi (UFMA)
Prof.ª Dr.ª Karina Kosicki Bellotti (UFPR)
Prof.ª Dr.ª Karla Martins (UFV)
Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos (Mackenzie)
Prof.ª Dr.ª Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)
Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos (UPE)
Prof. Dr. Paulo Julião da Silva (UFPE)
Prof.ª Dr.ª Sandra Duarte da Souza (UMESP)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

6 Histórias, narrativas e religiões


SUMÁRIO
Minicursos.......................................................................................... 19

Minicurso 1: História Cultural das Religiões..................................... 20


Prof.ª Dtrnda. Julia Rany Campos Uzun (UNICAMP)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

Minicurso 2: História Cultural do Cristianismo em África................ 22


Prof. Dtrando. Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

Minicurso 3: História Cultural das Festas e Religiosidades................ 25


Prof.ª Dr.ª Edianne dos Santos Nobre (UPE)
Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

Simpósios Temáticos.......................................................................... 29

Simpósio Temático 1 – Catolicismo e Política nos Séculos XIX e XX.... 30


Coordenação: Prof. Dr. Gustavo de Souza Oliveira (UEMG)

Comunicações – Simpósio Temático 1............................................... 31

Liberdade religiosa: uma análise da imprensa ultramontana brasileira


no século XIX..................................................................................... 32
Thais da Rocha Carvalho (PUCCAMP)

Os Movimentos de Jovens Leigos no Brasil após o Concílio Vaticano


II (Décadas de 1970 e 1980).............................................................. 33
Danila Barbosa de Castilho (Mestrado – UEPG)
Edson Armando Silva (UEPG)

Israel Antônio Soares e os islamitas no Rio de Janeiro do século XIX..... 50


José Roberto Pinto de Góes (UERJ)

Política e Religião: apontamentos sobre o caso ituano entre 1850 e 1918....64


Lais da Silva Lourenço (PUCCAMP)

Histórias, narrativas e religiões 7


A Inquisição e a Vida Política dos Fiéis no Século XXI: Um estudo da
Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé de 2002....... 65
Bruno Fernandes Mamede (Mestrado – USP)

Restauração Franciscana e Política. (Pernambuco, 1890-1920).......... 82


Dirceu Marroquim (Prefeitura da Cidade do Recife)

Em meio a Correspondências e Discursos: as reflexões do padre


Helder Pessoa Câmara no combate à influência do comunismo entre
os operários (1930-1937).................................................................... 83
Márcio André Martins de Moraes (Doutorado – USP)

Ultramontanismo e reforma clerical. Uma análise da crítica de


Cândido Mendes às relações entre Igreja e Estado no Brasil............ 101
Daniel Franco de Oliveira (PUCCAMP/ CNPq)

Pe. Diogo Antônio Feijó e a Igreja Nacional.................................... 102


Gustavo de Souza Oliveira (UEMG/Unidade Carangola)

A Congregação dos Pequenos Irmãos de Maria: Maristas e as Escolas


Católicas no Início do Brasil Republicano........................................ 118
Luciano de Oliveira (Doutorado – UNICAMP)

Pelo direito de civilizar os índios: a disputa entre a “catequese leiga” e a


catequese católica das ações missionárias no interior do Brasil (1910-1920)...131
Paulo Henrique Silva Pacheco (UERJ / CAPES)

A mais política de todas as questões: uma análise da crítica liberal de


Rui Barbosa ao ultramontanismo e ao Regalismo no Brasil, durante a
segunda metade do século XIX......................................................... 132
Diego Henrique Pires (PUCCAMP/ FAPIC/Reitoria – PUC)

Algumas justificativas filosóficas, teológicas e econômicas para a


manutenção da escravidão no Brasil do Século XIX......................... 133
Nadir Chagas Ribeiro dos Santos (MACKENZIE)

O bispo vermelho: D. David Picão e o convívio com os aparatos


repressivos......................................................................................... 134
Gines Salas Neto (UNISANTOS)

8 Histórias, narrativas e religiões


Santidade bandeirante: uma análise sobre as hagiografias do primeiro
santo brasileiro Frei Galvão.............................................................. 150
Dirceu Rodrigues da Silva (UNESP-Assis/CAPES)

Relações Estado-Igreja: um comparativo entre Brasil e Portugal..... 160


Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva (UFMG/CAPES)

Os “Porta-Vozes” do Regime: Os escritos de Gustavo Corção e Júlio


Fleichman na revista parisiense Itinéraires (1975-1979).................. 176
Glauco Costa de Souza (USP/CAPES)

Católicos, evangélicos e umbandistas: espaços e memórias em disputa


na configuração do campo religioso em Parintins (AM).................. 177
Adriano Magalhães Tenório (UEA)
Clarice Bianchezzi (UEA)
Diego Omar da Silveira (UEA)

Simpósio Temático 2 – História Cultural dos Protestantismos no Brasil..... 178


Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)
Prof. Dtrndo. Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

Comunicações – Simpósio Temático 2............................................. 179

Assembleia de Deus e a educação: aspectos históricos, sociais e teológicos... 180


Atanael Ferreira Bastos Filho (Mackenzie/CAPES)

A auto-hagiografia elaborada por um Santo: a exemplaridade da


fabricação de santidade na obra “o grande livramento” de Valdemiro
Santiago............................................................................................ 195
Thamires Chagas D’ Alcântara (Mestrado - UFRRJ)

A Sombria Providência e O Progresso: As Guerras Noticiadas pela


Imprensa Evangélica (1864-1870).................................................... 211
Jorge William Falcão Junior (UFJF/CAPES)

Emmanuel Norman Vanorden: um judeu na Igreja Presbiteriana do


Brasil nos séculos XIX e XX............................................................. 212
Wilson Flávio Jecov (UMESP/CAPES)

Histórias, narrativas e religiões 9


Noêmia Cessito: Uma história cultural das missões brasileiras em
Moçambique a partir de uma biografia............................................. 227
Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

A Imprensa Evangélica e a Inserção do Protestantismo no Brasil...... 228


Álvaro Ramon Ramos Oliveira (UFRRJ)

“Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda Criatura”: Uma análise
da participação dos Neopentecostais na Política Contemporânea do
Brasil................................................................................................ 242
Kaliane Santos Oliveira (UNESP)

Histórias emergentes: mulheres metodistas (1930-1970)................. 255


Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)

A Origem do Pentecostalismo no Brasil: do Pentecostalismo Clássico


ao Pós-Pentecostalismo.................................................................... 256
Saulo Inácio da Silva (PUCCAMP/CAPES)

Simpósio Temático 3 – Mídia e Religião.......................................... 270


Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Karina Kosicki Bellotti (UFPR)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

Comunicações – Simpósio Temático 3............................................. 271

A Bruxa: um diálogo entre o terror e a religião................................. 272


Flávia Santos Arielo (UNESP Bauru)
Renan Siqueira Rossini (UNESP Bauru)

Espaço, lugar e crença: possibilidades para pensar o cinema como


objeto de estudo da história das religiões.......................................... 273
Rafaela Arienti Barbieri (UEM/CAPES)

“O maior líder que já existiu” – as figuras de Jesus na mídia de


autoajuda (1980-2010)..................................................................... 286
Karina Kosicki Bellotti (UFPR)

10 Histórias, narrativas e religiões


“Entre a religião e a lavagem cerebral”: táticas e estratégias entre a
mídia e o movimento Hare Krishna (1973-1985)............................ 287
Leon Adan Gutierrez de Carvalho (UFRPE)

O fiel empreendedor iurdiano – uma ferramenta de marketing........ 288


Sarita dos Santos Carvalho (PUCCAMP/CAPES)

Estatal e religiosa: Programas cristãos na TV Brasil e questões de


laicidade............................................................................................ 297
Alexander Fajardo (Faculdade Nazarena do Brasil)

“Pela Coroa Real do Salvador”: mídia e carisma no Cisma Presbiteriano


de 1903............................................................................................. 298
Sergio Tuguio Ladeira Kitagawa (UERJ/ Seminário Presbiteriano Rev.
Ashbel Green Simonton )

Ministério Recrie Bola de Neve Church: um estudo sobre a


abordagem virtual direcionada a empreendedores cristãos e seus
diálogos com políticas neoliberais..................................................... 315
Maryana Marcondes (UEL/CAPES)

Congregação Cristã no Brasil e mídia: uma denominação na


contramão das Igrejas pentecostais................................................... 316
André Luiz de Castro Mariano (UNESP)

A Palavra Mata, o Corpo Vivifica: O paradigma ecológico da


comunicação na Umbanda................................................................ 333
Jorge Miklos (UNIP)
Tatiana Penna (Mestrado – UNIP)

Cinema Evangélico no Brasil: A sétima arte a serviço da fé............. 349


Gerson Leite de Moraes (Mackenzie)

Apontamentos sobre a atuação da imprensa durante o processo de


legitimação da umbanda como religião (1940-1950)........................ 366
Daniele Chaves Amado de Oliveira (Doutorado – UNIRIO)

Histórias, narrativas e religiões 11


O Medo enquanto Objeto da História: Um estudo a partir do Planeta
dos Macacos (1968)............................................................................ 382
Carlos Alberto Plath Junior (UEM)

Predileções do diabo: feminino, possessão e exorcismo nos filmes de


terror................................................................................................. 396
Fernando Antônio da Silva (UFPE)

As Testemunhas de Jeová frente à adoção da mídia no serviço


missionário....................................................................................... 397
Bruna Hanime Brito Soares (UFGD/CAPES)

Uma emissora de inspiração católica na internet: a experiência da


Rádio Brasil Campinas..................................................................... 398
Lindolfo Alexandre de Souza (PUCCAMP)

Cristianismo, Imprensa e Islã nos Estados Unidos durante a Revolução


Iraniana (1979): Questões Teóricas.................................................. 399
Sara Cristina de Souza (UNICAMP/CNPq/CAPES)

Mobilidade e Pluralidade no Documentário Santo Forte (1999) de


Eduardo Coutinho........................................................................... 400
Gabriella Bertrami Vieira (UEM)

Simpósio Temático 4 – História das Religiões e Literatura.............. 417


Coordenação:
Prof. Dtrndo. Sérgio Willian de Castro Oliveira Filho (UNICAMP/
Marinha do Brasil)

Comunicações – Simpósio Temático 4............................................. 418

O Teatro de uma Fuga: Giacomo Casanova e a querela contra a


Inquisição Veneziana (1755-1760)................................................... 419
Luis Eduardo Bove de Azevedo (UNESP)

Literatura de viagem e pesquisa histórica: um estudo do fenômeno


religioso a partir dos relatos de Auguste de Saint-Hilaire................. 430
Aparecido Barbosa (PUCCAMP)

12 Histórias, narrativas e religiões


As formas de vida dos mestres sufis andaluzes segundo Ibn ‘Arabi de
Múrcia. A santidade como modelo................................................... 447
Mateus Melo Barcelos (Mestrado – UNESP)

Repressão e resistência escrava na Salvador do século XIX: as relações


entre o Candomblé e a culinária no jornal O Alabama da Bahia...... 468
João Pedro Basso (Universidade do Sagrado Coração)
Vinicius Sales Barbosa (Universidade do Sagrado Coração)

Ao “Devoto Leitor”: a literatura religiosa de Fr. Nicolau Dias.......... 482


André Rocha Cordeiro (UEM/CAPES)

À margem de um projeto em construção: Infiéis, gentis e naturais no


Rio da Prata colonial........................................................................ 483
Éverton Dalcin (PUCRS / CNPq)

O livro de Alborayque: uma sátira contra os conversos (Castela, 1465).....484


Kellen Jacobsen Follador (UFES)

Religião e Modernização no Japão Meiji (1868-1912) nas Obras de


Percival Lowell e Lafcadio Hearn.................................................... 485
Edelson Geraldo Gonçalves (Doutorado – UFES)

O jornal Imprensa Evangélica e o início do sistema literário


protestante no Brasil dos Oitocentos................................................ 496
João Leonel (Mackenzie/CNPq)

O Monastério de San Lorenzo el Real del Escorial como local de


apresentação da defesa da fé pela monarquia espanhola nas obras de José de
Siguenza (1544 – 1606) e Luis Cabrera de Córdoba (1559 – 1623)..........497
Camila Cristina Souza Lima (Doutorado – USP)

O Romance Missionário Protestante: de Maldito a Abençoado (Séc.


XIX-XX).......................................................................................... 514
Sergio William de Castro Oliveira Filho (Doutorado – UNICAMP/
Marinha do Brasil)

Histórias, narrativas e religiões 13


As Brumas de Avalon: Aproximações entre história e literatura....... 531
Ana Carolina Lamosa Paes (UEM)

Os gnósticos cristãos, caminho de inserção do cristianismo na cultura


clássica no século II d.C.................................................................... 546
Leonardo Henrique Piacente (PUCRio)

As “operações poéticas” do judaizante Luis de Carvajal: inventividades


em relação à ortodoxia católica do século XVI.................................. 547
Plínio Felipe Amaral Pires (Mestrado – UNICAMP)

Representações da violência católica na literatura sobre a perseguição


religiosa no México: entre a ficção e as modernas hagiografias dos
mártires mexicanos (1926-1990)...................................................... 561
Caio Pedrosa da Silva (UVJM)

Castigo, transcendência e redenção em Guimarães Rosa.................. 562


Luisa Fernandes Vital (Mestrado – UNESP/CNPq)

Simpósio Temático 5 – Educação e Religião: construindo identidades


e subjetividades................................................................................. 563
Coordenação:
Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)

Comunicações – Simpósio Temático 5............................................. 564


A Diversidade Religiosa na Escola Católica: Desafios e Perspectivas da
Educação Formal.............................................................................. 565
Gilson Carreira Junior (Colégio Notre Dame Recreio)

A voz jesuítica no interior paulista.................................................... 576


Andrea Colsato (USP)

O discurso do catolicismo na educação de surdos no Brasil (1950-


1960)................................................................................................ 577
Bianca Silva Lopes Costa (UFBA)

14 Histórias, narrativas e religiões


A experiência de ensino religioso em uma escola confessional no
interior de Minas Gerais: dimensões interdisciplinares, éticas e
pedagógicas....................................................................................... 578
Maria Augusta B. Gentilini (Mestrado – PUCCAMP)

Identidades em Questão: a experiência formativa nas narrativas


de ex-seminaristas e ex-diretores do Seminário Santa Maria dos
Capuchinhos (1953-1973)................................................................ 588
Edson Claiton Guedes (Mestrado – UEPG)

Os projetos educacionais dos jesuítas portugueses e as suas


contribuições para a recatolização no Brasil (1910 – 1936).............. 605
Carlos André Silva de Moura (UPE)

Ōuchi Seiran e a institucionalização do budismo japonês no período


Meiji (1868-1912)............................................................................ 615
Júlio César de Melo do Nascimento (Mestrado – UNICAMP)

“Cara professora, Irmã Maura” – cultura escolar e identidades religiosas


(Vargem do Cedro, 1933 – 1943)...................................................... 624
Carolina Cechella Philippi (Doutorado – UNICAMP)

O problema do sagrado: identidade, religião e intolerância.............. 637


Sandra Regina Marcelina Pinto (Doutorado – PUCSP/CAPES)

Formação da identidade do aluno no contexto escolar: o samba como


instrumento de reafirmação da cultura afro-brasileira
Diego Ribeiro (UFOP/UFJF).......................................................... 638

Da formação imaginária do Ensino Religioso em Minas Gerais...... 655


Amauri Carlos Ferreira (PUCMinas)
Regina Esteves Santos (Secretaria de Estado de
Educação de Minas Gerais)

Os projetos educacionais dos grupos religiosos e seus impactos na


formação educacional....................................................................... 656
Amanda Cristine Cézar Segura (SMEEL-RJ/UFF)

Histórias, narrativas e religiões 15


Educação e gênero em terras salesianas: a Inspetoria Santa Catarina de
Sena no alvorecer da República brasileira (1892 - 1930).................. 657
Júlia Rany Campos Uzun (Doutorado – UNICAMP)

Religião e Educação: estratégias e táticas na formação de identidade


para a disciplina de Ensino Religioso............................................... 665
Evandro Francisco Marques Vargas (Doutorado – UENF/FAPERJ)

Simpósio Temático 6 – Gênero e Religião: a História Cultural e a


construção das identidades religiosas femininas............................... 677
Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP)

Comunicações – Simpósio Temático 6............................................. 678

Isis e Maria: Representações da mulher no imaginário do gnosticismo


contemporâneo................................................................................. 679
Marcelo Leandro de Campos (FAV)

As Sexualidades femininas no âmbito jurídico luso-brasileiro:


representações sobre a honra da mulher colonial (1708-1768)......... 680
Vanessa Cruz (UEL/CAPES)

Candomblés segundo Édison Carneiro: a mulher no rito nagô (1930


a 1940).......................................................................................... 681
Elaine Cristina Ventura Ferreira (Doutorado – UFRRJ)

Os campos precisam florir: sementes do espiritismo em Marialva-PR


(1972-2016)...................................................................................... 698
Carolina Cleópatra da Silva Imediato (Mestrado – UEM)

A filha de Ali: Sayyida Zaynab e a reinterpretação do papel das


mulheres na sociedade através dos rituais da Ashura ....................... 711
Flávia Abud Luz (Mackenzie)

O empoderamento da mulher negra nas religiões de matriz africanas... 712


Mônica Abud Perez de Cerqueira Luz (Doutorado – UNINOVE)

16 Histórias, narrativas e religiões


Tia Neiva e o Vale do amanhecer: (des)continuidades ritualísticas... 720
Daniel Lucas Noronha de Sena (PUCSP)

Entre Missão e Pregação: a História Cultural das Religiões e a


História da Igreja.............................................................................. 721
Eliane Moura da Silva (UNICAMP)

Simpósio Temático 7 – Festeiros e Devotos: histórias singulares com


significados plurais............................................................................ 722
Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Edianne dos Santos Nobre (UPE)
Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

Comunicações – Simpósio Temático 7............................................. 724

Axé e resistência na terra do Padre Cícero: uma análise acerca da


caminhada contra a intolerância religiosa e os povos de terreiro em
Juazeiro do Norte, CE...................................................................... 725
Marcela Melo de Carvalho (UNILEÃO)

Seguindo as coisas: estandartes de Folias de Reis em Campestre (MG)....726


Mariana de Carvalho Ilhéo (UNICAMP)

Patrimônio é festa: os bens culturais mineiros sob nova perspectiva....748


Adalberto Andrade Mateus (IEPHA/MG)
Guilherme Eugênio Moreira (UFMG)

A Procissão de Cinzas como componente das práticas religiosas da


Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto............... 749
Milena Frigi Nunes (UFV)

Negra Devoção - Leitura da cosmologia Bantu “escrita com a luz” nas


festas de N. Sra. do Rosário e de São Bendito.................................. 763
Marco Antônio Fontes de Sá (PUCSP)

A festa da Cabocla: Uma análise sobre a celebração da festa da cabocla


Dona Jandira no templo de Candomblé Ilé Asé Iyá Ogunté no Pará.... 764
Yasmin Estrela Sampaio (UNAMA)

Histórias, narrativas e religiões 17


A Jurema Sagrada e suas interfaces com a brincadeira dos Ursos no
Carnaval do Recife (1980-2001)...................................................... 777
Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

‘Dar de comer ao santo’: Festa e devoção afro-brasileiras sob o olhar de


Nina Rodrigues................................................................................ 778
Vanda Fortuna Serafim (DHI/PPH/UEM)

A Lavação das Escadarias da Igreja do Rosário em Curitiba:


hibridismo religioso e estratégias de criação e manutenção da
identidade Negra em Curitiba no século XXI (2009-2015)............. 779
Andresa Pereira Serpejante (Mestrado – UEPG)

Pesquisa de Campo: Algumas considerações sobre metodologia no


Hallel de Maringá-PR...................................................................... 780
Mariane Rosa Emerenciano da Silva (UEM)

As festas religiosas e o lugar das identidades em Espírito Santo do


Pinhal/SP: apropriação, reinvenção e espetacularização ................... 795
Tamaso, Renata Maria (IFSP – São João da Boa Vista)

18 Histórias, narrativas e religiões


Minicursos

Histórias, narrativas e religiões 19


Minicurso 1
História Cultural das Religiões

Prof.ª Dtrnda. Julia Rany Campos Uzun (UNICAMP)


Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

A virada cultural ocorrida na década de 1970 permitiu a cria-


ção de novas abordagens e de novos objetos para o estudo da História. A
partir de suas reflexões teórico-metodológicas, a História das Religiões
ganhou uma nova análise cultural, reformulada a partir de novas temáti-
cas e novas perspectivas. Essas desempenham um importante papel para
a construção de identidades, alteridades, e para o delineamento das rela-
ções sociais de gênero, de classes e entre as etnias, estabelecendo novos
parâmetros a partir das apropriações culturais e históricas em diferentes
estratégias e práticas cotidianas, nas representações, nas posições hierár-
quicas e nos diferentes espaços sociais.
A proposta desse minicurso é apresentar os principais pressupos-
tos teóricos que permeiam os estudos de História Cultural das Religiões.
Conhecendo os debates entre a Fenomenologia, a Escola Italiana e a
História Cultural, pretende-se analisar a importância de suas propostas, a
maneira como ela contribui para os estudos históricos, e nos ajuda, enquan-
to historiadores, a escrever novas narrativas sobre o mundo e suas crenças.

Programa do curso

18 de abril de 2017 - Aula 1


- O olhar da Fenomenologia para o estudo das religiões;
- A Escola Italiana das Religiões.

20 Histórias, narrativas e religiões


19 de abril de 2017- Aula 2
- A História Cultural das Religiões - Ginzburg, De Certeau e Chartier;
- Novas propostas para a História Cultural das Religiões.

Bibliografia
AGNOLIN, Adone.  História das religiões:  perspectiva histórico-comparativa. São Paulo:
Paulinas, 2014.

BRELICH, A. Prolegómenos a una historia de las religiones. In Historia de las Religiones -


Volume 1: Las Religiones Antiguas 1, Siglo XXI, Madrid, 1977

CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietudes. Porto Ale-
gre: Ed. Universidade/UFRGS, 2005.

________. A História Cultural entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Editora Ber-


trand, 1990. 

DE CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 

GASBARRO, Nicola. Missões: a civilização cristã em ação. In MONTERO, Paula. Deus na


Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. SP: Globo, 2006, PP. 67 -110.

__________. Nós e o Islã: uma compatibilidade possível? In. Novos Estudos Cebrap nº67. São
Paulo: Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, 2003. Pp. 90-108.

GINZBURG, Carlo. “’Os pombos abriram os olhos’: conspiração popular na Itália do século
XVII”. In. A Micro-História e outros ensaios. Coleção Memória e Sociedade. Lisboa: Rio de
Janeiro, RJ: DIFEL: Editora Bertrand, 1989.

HALL, Stuart.  Da Diáspora:  Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG; Brasília: UNESCO, 2003

KING, Ursula and BEATTIE, Tina (Eds). Gender, Religion and Diversity: Cross-Cultural


Perspectives. London: Continuum International Publishing Group, 2005.

MASSENZIO, Marcello.  A História das Religiões na cultura moderna.  São Paulo, HE-
DRA,2005.

SILVA, Eliane Moura; BELLOTTI, Karina K; CAMPOS, Leonildo S. Religião e Sociedade


na América Latina. S. B. do Campo: UMESP, 2010.

SILVA, Eliane Moura. “Entre religião, cultura e história: a escola italiana das religiões” In. Re-
vista de Ciências Humanas. Vol. 11, nº 02. Viçosa: UFV, 2011. Pp.225-234.

TAYLOR, M. C. Critical Terms for Religious Studies. Chicago and London: The University
of Chicago Press, 1998.

Histórias, narrativas e religiões 21


Minicurso 2
História Cultural do Cristianismo
em África

Prof. Dtrando. Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

A história do Cristianismo em África não é uma consequência


das colonizações modernas. Suas raízes remontam ao primeiro século
e, neste minicurso, serão realizados apontamentos bibliográficos des-
ses dois mil anos de presença cristã no continente africano, destacando
diferentes experiências em diversas temporalidades e espacialidades
desenvolvidas dentro desse vasto território. Considerando, no entanto,
que a maior parte das igrejas africanas foi criada no período colonial,
serão enfatizadas as experiências ocorridas no final do século XIX e ao
longo do XX, quando a expansão do cristianismo, em detrimento de
uma relativa redução das religiões tradicionais africanas, se fez sentir
com maior notoriedade. 
Pode-se afirmar que nossa proposta problematiza-se por uma
questão central: até que ponto o Cristianismo colaborou com a invasão
europeia da África e o colonialismo cultural que lhe foi inerente? Uma
vez constatada essa afirmação, quais seriam seus limites e suas possibi-
lidades? E com a independência dos países africanos? Seria o momento
oportuno para que essa religião fosse expulsa do continente? Quais as
razões para que isso não tenha ocorrido na era pós-colonial? Ao final
do minicurso, essas questões serão investigadas à luz de um estudo de
caso protagonizado pela experiência transnacional da trajetória de uma
específica missão protestante na África Austral. Orientados pela abor-
dagem de uma História Cultural das Religiões, espera-se desenvolver
atividades expositivas, auxiliadas por conteúdos e recursos audiovisuais. 

22 Histórias, narrativas e religiões


Programa do curso

18 de abril de 2017 – Aula 1


- Apresentação da proposta.
- A antiguidade cristã na metade setentrional da África (62-1500);
- O Cristianismo nos antigos reinos africanos (1500-1800);
- O Cristianismo moderno (1800-2000).

19 de abril de 2017 – Aula 2


- As missões protestantes na África Austral;
- As missões batistas no colonialismo tardio e pós-colonialismo: um
estudo de caso.

Bibliografia
BAUR, John. 2000 anos de cristianismo em África: Uma História da Igreja Aficana. Maputo:
Paulinas, 2014. 

BENATTE, Antônio Paulo. A História Cultural das Religiões: Contribuição a um debate his-
toriográfico In Missão e Pregação. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014.

GASBARRO, Nicola. Missões: A Civilização Cristã em Ação. In MONTERO, Paula. Deus


na Aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. 

HILL, Jonathan. História do Cristianismo. São Paulo: Rosari, 2009.

KALU, Ogbu U. African Christianity: from the world wars to decolonization In The Cam-
bridge History of Christianity. Vol. 9 World Christianities c. 1914- c.2000. Cambridge: Hugh
McLeod, 2006.

MARTINEZ, Francisco Lerma. Religiões Africanas Hoje: Introdução ao estudo das religiões


tradicionais em Moçambique. Maputo: Paulinas, 2009.

MASSENZIO, Marcelo. A História das Religiões na Cultura Moderna. São Paulo: Hedra,


2005.

M’BOKOLO. Elikia. África Negra. História e civilizações tomo I (até o século XVIII). Salva-


dor e São Paulo: EDUFBA e Casa das Áfricas, 2009.

______. África Negra. História e civilizações: do século IXI aos nossos dias tomo II. São Paulo/
Salvador: EDUFBA/Casa das Áfricas, 2011. 

SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Histórias, narrativas e religiões 23


SANNEH, Lamin. West African Christianity: The Religious Impact. New York,Maryknoll:
Orbis Books, 1983.

TSHIBANGU, T.; AJAYI, A. A. & SANNEH, L. Religião e Evolução Social In MAZRUI, A.


A. & WONDJI, C. (Ed.). A África desde 1935. 2ª. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010

24 Histórias, narrativas e religiões


Minicurso 3
História Cultural das Festas e
Religiosidades

Prof.ª Dr.ª Edianne dos Santos Nobre (UPE)


Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

As celebrações e expressões culturais populares no Brasil, com


ênfase no Carnaval e nas práticas devocionais cristãs e das religiões de
matriz africana, serão o fio condutor desse minicurso. Considerado um
tema de importância significativa na produção historiográfica das duas
últimas décadas, o estudo das festas e religiosidades contribui para re-
pensar os métodos de pesquisa e ensino da História, de modo que am-
plia as possibilidades de construção de novos saberes. Na ocasião, emba-
sados por discussões teórico-metodológicas da História Cultural e por
intermédio de uma documentação variada produzida entre o final do
século XIX e primeira metade do século XX (manuscritos da adminis-
tração pública e eclesiástica, legislação policial, periódicos, fotografias,
documentários e relatos de memória), voltaremos nossa atenção para
as experiências coletivas de diversão e fé dos populares, para os códigos
de identificação construídos e os novos espaços de sociabilidades, para
as posturas de repressão e punição do Estado e da Igreja, para as táticas
de drible dos populares, entre outras práticas impregnadas de múltiplos
significados que nos impossibilitam atribuir um único sentido aos estu-
dos das festas e religiosidades. 

Programa do curso

18 de abril de 2017 – Aula 1


- Apresentação da turma / ementa do curso
Histórias, narrativas e religiões 25
- Aspectos gerais da Historiografia religiosa no Brasil 
- História das festas no Brasil 

19 de abril de 2017 – Aula 2


- Experiências de pesquisa: interfaces entre Carnaval, Igreja e Religiões
Afro-Brasileiras
- Exibição do documentário Irôco seguido de debate
- Encerramento

Bibliografia

ABREU, M. C. “Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumasquestões para


a pesquisa e ensino de História” in BICALHO, Maria Fernanda; Gouveia,Maria de Fátima;
SOIHET, Rachel. (Org.). Culturas Políticas: Ensaios de História Cultural, História Política e
Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad/Faperj, 2005, v., p. 409-432.

ABREU, M. C. & MATTOS, Hebe. “O mapa do Jongo no século XIX e a presença dopassado:
patrimônio Imaterial e a memória da África no antigo sudoeste cafeeiro” in REIS, Daniel Aarão
(et al). Tradições e Modernidades. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2010.

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. “Fragmentos do discurso cultural: por uma aná-
lise crítica das categorias e conceitos que embasam o discurso da cultura no Brasil” in MAR-
CHIORI, Gisele (org). Teorias e políticas da cultura: visões multidisciplinares. Salvador: EDU-
FBA, 2007.pp. 13-24.

_________________________________. “Festas para que te quero: por uma historiografia do


festejar”. Patrimônio e Memória. UNESP - FCLAs - CEDAP, v.7, n.1, p. 134-150, jun. 2011.

ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Festas: Máscaras do Tempo_ entrudo, mascarada e frevo
no carnaval do Recife. Recife: Fundação de Cultura da cidade do Recife, 1996.

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasilia: EDUNB, 1993.

BURKE, Peter.  A Cultura Popular na Idade Moderna.  São Paulo: Companhia das Letras,
2010.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, José Reginaldo S.(Or-


gs.). As festas e os dias: ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

CERTEAU, Michel. JULIA, D.; REVEL, J. “A beleza do morto.” in CERTEAU, Michel de. A
cultura no plural. Campinas, Papirus, 2003.

CERTEAU, Michel de. La fable mystique. Paris: Gallimard, 1982.

26 Histórias, narrativas e religiões


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CUNHA, M. C. P. Carnavais e outras festas. Campinas: EDUNICAMP, CECULT, 2002.

________________. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920.


São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasi-


leiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

DOEBE, Michele Barcelos. “Do ideário do branqueamento ao reconhecimento da negritude:


biopolítica, educação e a questão racial no Brasil.” in VALENTIM, Silvani dos Santos; PINHO,
Vilma Aparecida; GOMES, Nilma Lino (org). Relações étnico-raciais, educação e produção
de conhecimento: 10 anos do GT 21 da Anped. Belo Horizonte: Nindyala, 2012.

DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes,
2003.

DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará;


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.

FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais: o surgimento do carnaval no século XIX e outras


questões carnavalescas. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2005.

FLORES, M. B. R. Oktoberfest: turismo, festa e cultura. Florianópolis: Letras Contemporâ-


neas, 1997.

_______________.  A Farra do Boi:  palavras, sentidos, ficções. 2 ed. Florianópolis: Ed.da


UFSC, 1998.

GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Tradições & Traduções: a cultura imaterial em Pernam-


buco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2008. 

___________________________. “Rainhas Coroadas: história e ritual nos maracatus-nação do


Recife” in GUILLEN, Isabel & LIMA, Ivaldo Marciano de França. Cultura Afro Descenden-
te no Recife: maracatus, valentes e catinbós. Recife: Bagaço, 2007.

LIMA, Ivaldo Marciano de França. Identidade negra no Recife: Maracatus e Afoxés.Recife:


Bagaço, 2009.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no Pedaço. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 2003.

MORAES FILHO, Mello. Festas e Tradições Populares no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,


1999.

PASSOS, Mauro (org.). A festa na vida. Significado e imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. A ordem carnavalesca. Tempo Social. São Paulo:


Revista de Sociologia da USP, v. 6, n. 1-2.

_______________________________.  O carnaval brasileiro, o vivido e o mito.  São Paulo,


Brasiliense, 1992. 

PRIORE, Mary. L. Festas e Utopias No Brasil Colonial. 1. ed. São Paulo: Brasiliense,1994.

Histórias, narrativas e religiões 27


ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro - Umbanda e Sociedade Brasileira. São
Paulo: Brasiliense, 1999.

SALLES, Sandro Guimarães; SANDRONI, Carlos. Patrimônio Cultural em discussão: no-


vos desafios teórico-metodológicos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013.

SANTOS, Mário Ribeiro dos. Trombones, tambores, repiques e ganzás: a festa das agremia-
ções carnavalescas nas ruas do Recife (1930-1945). Recife: SESC, 2010.

SILVA, Augusto Neves.  Quem gosta de samba, bom pernambucano não é?. Dissertação
(Mestrado em História). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2011.

SOIHET, R. A subversão pelo riso. Estudos sobre o Carnaval Carioca. Da Belle Époque ao
Tempo de Vargas. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

28 Histórias, narrativas e religiões


Simpósios Temáticos

Histórias, narrativas e religiões 29


Simpósio Temático 1 – Catolicismo e
Política nos Séculos XIX e XX

Coordenação:
Prof. Dr. Gustavo de Souza Oliveira (UEMG)

Este simpósio temático reunirá pesquisadores que trabalhem


com temas referentes à atuação de eclesiásticos no cenário político e cul-
tural. Nosso desejo é agrupar análises que apresentem as lutas e conflitos
que envolveram católicos e autoridades políticas no Brasil e no exterior
ao longo do século XIX e XX. A partir da concepção de que o objeto da
pesquisa histórica deve ser estudado em função de uma cultura, acredi-
tamos que a religião não pode ser desconsiderada, mesmo no momento
em que já existe a separação entre poder civil e eclesiástico. A cultura re-
ligiosa contribui para a elaboração de novos projetos políticos. Contudo,
a investigação sobre o catolicismo não pode ser interpretada como algo
homogêneo e singular, pois existe um ambiente político-cultural que al-
tera os sentidos nos diferentes locais de conflito. Em síntese, propomos
um simpósio que privilegiará os trabalhos que compreendam o sentido
plural da religião e apresentem seus embates junto ao poder temporal.

30 Histórias, narrativas e religiões


Comunicações – Simpósio Temático 1

Histórias, narrativas e religiões 31


Liberdade religiosa: uma análise da
imprensa ultramontana brasileira no
século XIX

Thais da Rocha Carvalho (PUCCAMP)

Resumo: O século XIX consagrou a entrada do Brasil na chamada mo-


dernidade política, quando houve uma nova configuração do ordena-
mento político, composta pelo moderno Estado Nacional e a democra-
cia política. Uma das dimensões desse fenômeno foi a chamada seculari-
zação, na qual a questão da liberdade religiosa foi um dos seus mais sig-
nificativos pilares. No Brasil, o debate acerca da liberdade religiosa se fez
presente durante todo século XIX. Mas foi somente com a Constituição
Republicana, de 1891, é que foram criadas prerrogativas para a forma-
ção de um Estado laico, eliminando o direito do padroado, o estatuto da
igreja Católica como religião oficial do Estado e, separando, no âmbito
institucional, a Igreja do Estado. O clero católico político brasileiro en-
volveu-se profundamente neste debate, articulando religião e política
na modelagem dos novos projetos de tipo nacional, atuando em vias
institucionais e não institucionais, em destaque a imprensa periódica,
que foi um veículo de formação de uma opinião pública, configuran-
do assim um campo de disputas simbólicas. Nesse contexto, a presente
comunicação analisa o fenômeno religioso no período, buscando suas
manifestações em nível institucional e das práticas discursivas veiculadas
na imprensa periódica pelo clero ultramontano, à luz das publicações de
Luiz Gonçalves dos Santos e Guilherme Paulo Tilbury, entre as décadas
de 1830 e 1840, em resposta a vinda dos primeiros missionários protes-
tantes ao Brasil e, do periódico católico, O Apóstolo, fundado na década
de 1860 posteriormente à chegada de novos missionários protestantes
ao Brasil e à publicação do jornal protestante A Imprensa Evangélica.

32 Histórias, narrativas e religiões


Os Movimentos de Jovens Leigos no
Brasil após o Concílio Vaticano II
(Décadas de 1970 e 1980)

Danila Barbosa de Castilho (Mestrado – UEPG)


Edson Armando Silva (UEPG)

Resumo: O Concílio Vaticano II (1962-1965) buscou atender as mu-


danças sociopolíticas e solucionar novos problemas, especialmente com
relação à participação dos leigos na Igreja Católica. Este texto é parte de
uma pesquisa de Mestrado em História sobre a Juventude Franciscana
do Brasil ( JUFRA). As análises bibliográficas, de fontes orais e do de-
creto “Apostolicam Actuositatem” constituem a metodologia. Embora, an-
tes da realização do Concílio, já existissem movimentos no Brasil com
tendências políticas e teológicas distintas, foi após o Vaticano II que
surgiram novos grupos e movimentos, leigos e religiosos, com novas
propostas. Neste contexto, se inserem os movimentos de jovens leigos
propondo formas de vivenciar a fé com dinâmicas próprias da juventude.

Palavras-chave: Concílio Vaticano II, leigos, movimentos jovens.

Introdução

Este texto é parte da pesquisa de mestrado em História sobre


a Identidade Franciscana da Juventude Franciscana do Brasil ( JUFRA)
nas décadas de 1970 a 1980. Este movimento teve sua organização e
expansão neste período.
Trata-se de uma reflexão histórica acerca do contexto político
e religioso das décadas de 1970 e 1980. A partir de elementos que as

Histórias, narrativas e religiões 33


entrevistas realizadas para esta pesquisa de mestrado trouxeram sobre
o contexto sócio-político de estruturação e expansão da JUFRA e da
análise do decreto Apostolicam Actuositatem, que trata da participação e
organização dos leigos após o Concílio Vaticano II, visamos compreen-
der a participação dos jovens na Igreja neste período.
Para analisar a Igreja Católica e sua história, é necessário con-
siderar diferentes tendências teológicas e políticas presentes entre re-
ligiosos e leigos. Dentro da Igreja Católica, existe uma pluralidade de
movimentos com perspectivas teológicas distintas, muitos movimentos
já existiam antes do Concílio Vaticano II, mas foi após a realização deste
que novos movimentos ganharam destaque.

Os Leigos antes do Concílio Vaticano II

Antes de apontar as mudanças que o Concílio Vaticano II


(1962-1965) propôs, é preciso compreender o contexto religioso e social
anterior ao Concílio e que influenciaram a realização do mesmo. É ne-
cessário também entender como os documentos do Vaticano II foram
recebidos e incorporados no cotidiano das comunidades católicas brasi-
leiras a partir de suas realidades.
No intuito de entender a complexidade das ações da Igreja
Católica ao longo de sua história, “[...] não basta a leitura dos docu-
mentos oficiais; necessita-se compreender que o sentido institucional é
também produzido nas relações dos agentes eclesiásticos com as comu-
nidades nas quais se inserem” (SILVA, 2000, p. 25-26). Concordamos
com o autor citado, por isso analisamos produções acadêmicas sobre
como a Igreja Católica antes do Vaticano II se inseria na vida social.
Diante da vasta produção sobre este tema, foi necessário fazer
uma seleção de textos. Foram escolhidos os textos que tratam da par-
ticipação dos leigos nos movimentos católicos e também como os do-
cumentos produzidos no Concílio foram recebidos na igreja brasileira.

34 Histórias, narrativas e religiões


Após a Revolução Francesa, houve na Igreja Católica a tentativa
de reconquistar seu espaço na sociedade moderna. Com o processo de
modernização, a Igreja deixou de ser tanto o centro e de ter tanto o con-
trole da sociedade quanto tinha no período medieval (MANOEL, 1999).
A fim de reconquistar o espaço central que tinha, tornou-se dominante,
entre o clero, a utilização de estratégias de recristianização da sociedade.
No Concílio Vaticano I (1869-1870), foi decididaa centraliza-
ção das decisões políticas e doutrinárias da Igreja Católica em Roma e
afirmou-se a infabilidade papal. Em meio às mudanças provocadas pela
modernidade, a Igreja reafirmou dogmas e doutrinas na tentativa de não
perder privilégios políticos e econômicos.
Ocorria na Igreja Católica um fechamento para as mudanças
sociais, de pensamento e científicas do período moderno, mostrando
uma face totalitária e medieval da instituição (SANTOS, 2007).O ca-
pitalismo se estabelece como sistema econômico e político, a burguesia
ascende como classe social dominante e a Igreja Católica estava ainda
atrelada na modernidade ao sistema feudal.
A Igreja se considerava uma “instituição perfeita”, fora do
mundo. Os leigos eram concebidos pela Santa Sé como sujeitos igno-
rantes, construídos nas contradições do mundo (PASSOS, 2013). Não
eram reconhecidos como membros e agentes efetivos, somente o clero,
entretanto, com a modernidade, surge a ideia de que os sujeitos devem
ser protagonistas da sua própria história, pensar por si próprios, decidi-
ros rumos de suas vidas e arcar com as consequências de suas decisões.
A Igreja Católica estava marcada pelo ideal tridentino, onde o
leigo não tinha muito espaço de atuação. As missas eram celebradas em
latim com o padre de costas para o povo. No ideal tridentino, a Igreja
precisava “iluminar” os ignorantes leigos que possuíam manifestações
religiosas e culturais múltiplas que, frequentemente, divergiam da “cor-
reta” doutrina católica.
Nesse período, iniciou-se um processo de formação conser-
vadora do clero e, a partir deste, procurou fazer uma recristianização
partindo do “[...] indivíduo, desse para a família, dela para a sociedade
e da sociedade para o Estado” (MANOEL, 1999, p. 209). Para que esse

Histórias, narrativas e religiões 35


processo fosse possível, muitas congregações se dedicaram ao ensino,
buscando convencer as pessoas dos perigos do pensamento moderno.
Durante o século XX, alguns papas e cardeais se dedicaram
a redação de encíclicas e cartas pastorais que pretendiam combater o
mundo moderno. A Ação Católica surge para recristianizar a socieda-
de, contemplando os sujeitos leigos em diferentes etapas de sua vida
(MANOEL, 1999).
A Ação Católica foi criada pelo papa Pio XI num momento
onde a Igreja buscava conter o avanço das ideias liberais, comunistas e
totalitárias de direita (CARVALHEIRA, 1983). Trata-se de um con-
junto de movimentos com o objetivo de organizar o apostolado leigo
para evitar estas ideias entre católicos. No Brasil, a Ação Católica teve
seu início com influência da Ação Católica italiana.
A Ação Católica foi pensada para a recristiniazação que a Igreja
pretendia fazer em cada etapa da vida dos fieis. A Igreja percebeu que
para que essa recristianização fosse possível era necessária a participação
do laicato (Manoel, 1999).As crianças, após terminarem o período de
catequese, ingressavam na Cruzada Eucarística, esta era a iniciação dos
leigos na Ação Católica.
Com os partidos políticos cada vez mais organizados e atuan-
tes, muitos com tendências esquerdistas, a Igreja percebeu ser necessário
também organizar os leigos para se oporem à esses partidos. Com isso,
foi criada a Liga Eleitoral Católica (LEC) em 1934 sob a liderança de
Alceu de Amoroso Lima. A LEC não era um partido político, mas re-
comendava candidatos aos fieis.
Nos grupos católicos, há tensões internas pautadas em con-
cepções políticas e teológicas diferentes. Alguns grupos e movimentos,
compostos por religiosos e leigos da Igreja Católica, desenvolveram
ações influenciadas por políticas de governo e movimentos sociais.
Na década de 1930, a Igreja Católica no Brasil, apoiava o
movimento integralista conservador. Neste período, conforme escreve
Souza (2004), surge no Brasil, a Ação Católica Geral. A Ação Católica
Geral contemplava movimentos destinados aos adultos, homens e mu-
lheres.Inicialmente, inspirada na Ação Católica italiana, o movimento

36 Histórias, narrativas e religiões


no Brasil recebeu maior influência das correntes francesa, belga e cana-
dense, evoluindo para uma Ação Católica especializada, com atuação
dos jovens leigos em setores da sociedade.
Dentre esses movimentos, alguns ramos pertencentes à Ação
Católica Geral, destacam-se a presença da Juventude Agrária Católica
( JAC), Juventude Estudantil Católica ( JEC), Juventude Independente
Católica ( JIC), Juventude Operária Católica ( JOC) e Juventude
Universitária Católica ( JUC). Estes movimentos jovens faziam parte da
chamada Ação Católica especializada.
A JUC, como explica Souza (2004), na década de 1960 atuou
na política universitária e na educação popular.

JAC: Juventude Agrícola Católica - destinada a jovens trabalhadores


rurais, com uma finalidade, de muita relevância, de fixar esse jovem à
zona rural, dificultando a migração para a cidade.
JEC: Juventude Estudantina Católica – destinada a estudantes se-
cundaristas.
JIC: Juventude Independente Católica - destinada a jovens profis-
sionais liberais ou filhos de classe média ou burguesa, não estudantes.
JOC: Juventude Operária Católica - destinada a jovens trabalhado-
res urbanos, especialmente os jovens operários das indústrias, com a
máxima finalidade de se contrapor ao crescente movimento operário
de inspiração anarquista ou marxista.
JUC: Juventude Universitária Católica - destinada aos estu-
dantes das escolas superiores (MANOEL, 1999, p. 213).

Alguns ramos da Ação Católica especializada foram marcados


pela influencia de alguns pensadores. A JOC seguia a concepção de José
Cardijn de que os leigos deveriam exercer seu apostolado no meio social
ao qual pertence. A metodologia utilizada na JOC era conhecida como
“Ver, Julgar e Agir” trabalha com a noção de revisão de vida.Já a JUC re-
cebeu influencia da concepção de Jacques Maritain de que a ação dos cris-
tãos deveria ser na “esfera do profano”, ou seja, o engajamento correto na
vida concreta dentro de um contexto histórico (CARVALHEIRA, 1983).
Entre as décadas de 1950 e 1960, alguns grupos da Igreja
Católica no Brasil atuaram na sindicalização rural, educação popular e

Histórias, narrativas e religiões 37


no projeto deconstrução nacional proposta pelos governos de Getúlio
Vargas e Juscelino Kubitscheck. Nessa época, a Igreja brasileira esta-
va em processo de hierarquização, centrada no clero, com a criação da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A ampliação das funções leigas na Igreja Católica buscava re-
afirmar valores que julgava estar perdendo, devido ao processo de mo-
dernização, e visava à manutenção do poder eclesiástico na sociedade. A
Igreja percebeu a importância da participação dos leigos para concreti-
zar esse projeto de recristianização e recuperar seu poder.

Concílio Vaticano II: O Espaço dos Jovens Leigos


na Igreja Católica

A Igreja Católica é uma instituição religiosa produtora de iden-


tidades, constantemente reconstruída em contextos sociais, históricos e
culturais permeados por tensões que a influenciam. Diante disso, não
podemos analisar os diversos movimentos presentes na Igreja Católica
descolados de seu contexto. É preciso considerar que “nela se cruzam
diferentes tendências que têm a ver com a diversidade social, política,
cultural e claro está, espiritual da sociedade mais ampla onde ela se in-
sere” (SOUZA, 2004, p. 77).
Na Igreja Católica, muitos movimentos e congregações pro-
põem diferentes formas de vivenciar a fé, os valores cristãos e sugerem
novas concepções teológicas. Alguns desses movimentos incentivam a
busca do bem comum, trabalhando principalmente com os excluídos.
A Igreja “[...] é uma instituição inserida na vida social e sujeita
às pressões de interesses contraditórios” (SOUZA, 2004, p. 81). Ocorreu
um intenso envolvimento dos movimentos e leigos católicos na realida-
de sócio-política em uma época de polarização proveniente do contexto
da guerra fria.
A Igreja “[...] vem passando por transformações em vários as-
pectos, dentre outros: litúrgico, concepção eclesiológica ou de igreja, e
38 Histórias, narrativas e religiões
participação do laicato” (SANTOS, 2007, p. 1). Essas mudanças religio-
sas são marcadas pelas mudanças sociais, econômicas, políticas e cul-
turais. Embora a Igreja tenha procurado se abrir ao diálogo, a doutrina
tradicional católica não foi abandonada.
No Brasil, após o Vaticano II, grupos defensores de propos-
tas para amenizar os efeitos das desigualdades sociais se organizaram.
Também grupos conservadores se organizaram, como o movimento
Tradição, Família e Propriedade.
As transformações sociais afetam a Igreja Católica. No período
do golpe de 1964 e de instauração de um governo autoritário no Brasil,
a Igreja Católica ficou dividida, pois alguns grupos apoiavam o golpe,
enquanto outros atuaram em movimentos de resistência e denúncia a
repressão e a tortura.
Na década de 1960, surgiram a Comissão da Pastoral da Terra
(CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), se organizou a pas-
toral operária, as pastorais da juventude e as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBs). Esses movimentos eram constituídos por leigos que se reu-
niam para momentos de oração e reflexão sobre os problemas cotidianos.
Desta forma, a fé e a vida cotidiana estavam ligadas (SOUZA, 2004).
Após o Vaticano II, os leigos, como parte importante da Igreja,
passam a ser denominados de “Povo de Deus”, tornam-se sujeitos ativos,
participantes da Igreja. A doutrina da Igreja deveria ser explicada em lin-
guagem mais clara e simples para que todos pudessem compreendê-la.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) buscou uma abertu-
ra da Igreja Católica frente às mudanças sociais e seus novos proble-
mas. Embora, antes da realização deste concílio, já houvesse na Igreja
movimentos com tendências políticas e teológicas distintas, foi após o
Vaticano II que surgiram inúmeros grupos e movimentos, leigos e re-
ligiosos, com novas propostas e modelos de Igreja e vida comunitária.
Entre os documentos do Vaticano II, o Decreto Apostolicam
Actuositatem referente à atuação dos leigos na Igreja Católica, verifica a
existência da multiplicidade de carismas, movimentos, todaviaressalta
que todos estão submetidos a doutrina católica.

Histórias, narrativas e religiões 39


De acordo com o Decreto Apostolicam Actuositatem, cada lei-
go/a tem liberdade para escolher seu modo de vida (casamento, celibato,
atividade profissional) e de vivenciar a fé em seu cotidiano, inseridos
na sociedade. “Existe na Igreja diversidade de serviços, mas unidade
de missão. [...] Já que é realmente característico do estado leigo viver
em meio ao mundo e aos negócios seculares...” (Decreto Apostolicam
Actuositatem, p. 531).
Sobre a atuação dos jovens, o Decreto Apostolicam Actuositatem
explica que são importantes sujeitos políticos e sociais, “[...] realizando o
apostolado no meio deles e através deles, levando em conta o ambiente
social em que vivem” (p. 545).
Segundo o documento, os adultos devem buscar o diálogo com os
jovens, ambos devem superar as diferenças e aprender com o outro. Cabe
aos adultos estimular a juventude a viver seu apostolado leigo na sociedade.
O Concílio Vaticano II foi o primeiro concílio realizado pela
Igreja com a representação de todos os continentes. Houve grande par-
ticipação do clero brasileiro. O Brasil já contava com existência de mo-
vimentos leigos católicos (Ação Católica e seus ramos juvenis) e com
uma estrutura que permitia a articulação do episcopado (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil) e dos religiosos (Conferência dos
Religiosos do Brasil), facilitando a recepção das decisões conciliares.
Além disso, os bispos brasileiros reunidos em Roma, durante a reali-
zação do Concílio, realizaram debates simultâneos que culminaram na
elaboração do Plano de Pastoral Conjunto (BEOZZO, 2001).
O Vaticano II chama atenção aos sujeitos que vivem inseridos
na história. A Igreja permitiu ao clero analisar a realidade e seu papel
para buscar a melhor maneira de contribuir para defesa dos direitos hu-
manos, principalmente dos sujeitos marginalizados.

A história passa a ser o palco no qual aconteceria a libertação cristã,


associada à salvação, como também o espaço de libertação social e
política, articulando as libertações históricas em relação às estruturas
opressivas com o objetivo de se estabelecer uma ordem não opressiva
e uma libertação salvadora em Cristo. Dessa maneira, divino e terreno
fariam parte de uma história total, global. (ANDRADE, 2008, p. 265)

40 Histórias, narrativas e religiões


Mas essa concepção não foi aceita por todos os setores da
Igreja. Os setores mais conservadores, compostos principalmente pelo
clero que não aceitou as decisões conciliares, da Igreja tinham apenas
um discurso de condenação e repúdio às injustiças, mas não pretendiam
intervir para alterar a ordem social dominante. Os setores mais progres-
sistas, além de possuir um discurso de crítica, incentivavam as ações e o
engajamento nos movimentos sociais a fim de gerar mudanças.
O decreto Apostolicam Actuositatem explica que os leigos tem
liberdade para exercer sua função, com carismas diferentes. Todavia, sem
deixar de se submeter a hierarquia católica, pois cabe ao clero “[...] julgar
sobre a autenticidade e o uso dos carismas dentro da ordem, não por
certo para extinguirem o Espírito, mas para provarem tudo e reterem o
que é bom” (p.533).
Para Santos (2007), o Concilio Vaticano II pode ser considerado
um marco que provocou mudanças e melhorias na Igreja Católica, pois
os leigos, que antes “[...] ficavam à margem de sua estrutura e atividades
eclesiais” (p. 1), passam a ser incluídos como integrantes da instituição.
A Igreja Católica passou a entender os leigos como “Povo de
Deus”. Embora tenha havido uma renovação na Igreja Católica, o autor
argumenta que não ocorreram mudanças revolucionárias já que, entre
outras permanências, o celibato permaneceu sendo obrigatório e as mu-
lheres excluídas da hierarquia eclesiástica.
Com o Vaticano II, após o novo entendimento da Igreja como
povo de Deus, Santos (2007) argumenta que foi possível o surgimento
de novos modelos de Igreja, permeados por tensões e conflitos, pautados
em concepções teológicas e políticas diferentes (umas mais progressis-
tas, outras mais conservadoras). Esses conflitos e tensões são resultantes

[...] das mudanças na sociedade e política brasileira, como também


da Igreja Internacional, isto é, a cúpula da Igreja no Vaticano. Assim,
tanto o golpe militar de 1964 quanto as nomeações episcopais in-
fluenciadas pelo Vaticano são fatores que corroboraram as metamor-
foses na Igreja brasileira (SANTOS, 2007, p. 2).

Histórias, narrativas e religiões 41


Há uma crise na Igreja Católica nesse período, conforme a ex-
plicação de Bonato (2012), devido “[...] de um lado, procurar aplicar as
disposições e orientações conciliares e, de outro, dar respostas às urgentes
e crescentes contestações presentes no mundo católico” (p. 4). Existiam
grupos favoráveis e contrários às decisões do Concílio Vaticano II.
De acordo com Berger (1985), a religião é produtora do senti-
do de ser e estar no mundo. O catolicismo, como as demais religiões, é
produtor de identidades. A Igreja Católica, nas décadas de 1960 e 1970,
se percebe como agente histórico e tem a intenção de construir uma
identidade para o católico.
Diante da heterogeneidade da cultura brasileira os teólogos
buscaram compreender a cultura religiosa brasileira, constituída por
práticas religiosas que diferiam das práticas consideradas oficiais pela
igreja. Na tentativa de construir uma identidade religiosa católica brasi-
leira (Andrade, 2008).
É possível considerar uma abertura da Igreja após o concílio,
pois “[…] procurou se adequar e até participar do mundo contemporâ-
neo.” (ANDRADE, 2008, p. 253). A partir dessa afirmação, podemos
pensar no surgimento dos grupos de jovens dentro das universidades,
buscando inserir a Igreja nestes espaços.
O Vaticano II buscou reformular os dogmas católicos numa
linguagem nova que pudesse ser compreendida pelos leigos, estabelecer
diálogo com o mundo moderno, conhecer e compreender os novos de-
safios. A partir da década de 1960, a Igreja percebe sua pouca inserção
na vida cotidiana e começa a se dedicar às questões sociais. Acerca desta
época escreve Andrade (2008, p. 257): “cristo aparece nesse contexto,
como o referencial básico de uma nova proposta de vida e prática evan-
gélica, que se articula ao nível da sociedade em defesa do povo conside-
rado oprimido e marginalizado”.
Após as Conferências Episcopais de Medellín (1968) e Puebla
(1979) o termo Povo de Deus torna-se sinônimo de comunidades em-
pobrecidas e oprimidas para os setores progressistas com influência da
Teologia da Libertação. Os documentos resultantes de ambas as confe-
rências são parecidos com os do Concílio, mas com metodologias dife-

42 Histórias, narrativas e religiões


rentes. Esses documentos adaptaram as decisões conciliares à diversida-
de cultural e social da América Latina (Beozzo, 2001).
Na década de 1980, Souza (2004, p. 83) explica que, na Igreja
Católica brasileira, ocorreu “[...] um deslocamento do poder político
para as necessidades da sociedade”. Em consequência do clima de inse-
gurança, presente na sociedade brasileira (o Brasil vivia um período de
redemocratização após o fim da ditadura), os movimentos carismáticos,
pautados na subjetividade e no emocional, ganharam força. Mas isso
não indica o fim de movimentos ligados à renovação da Igreja Católica
e da sociedade.
Diante da perda de sua hegemonia, com avanço de outras con-
cepções religiosas como espiritismo e protestantismo, escassez de sacer-
dotes e o temor comunista, a Igrejapercebeu que era necessária maior
inserção na vida cotidiana. Assim, a Igreja passou a buscar novas formas
de tornar-se presente e começou a investir na formação de lideranças
(Alves, 2013). Alguns movimentos se dedicaram a formar lideranças jo-
vens, como o Treinamento de Liderança Cristã (TLC), o Movimento de
Cursilhos de Cristandade (MCC) e a Juventude Franciscana ( JUFRA).

Nessa nova proposta da Igreja, eram as lideranças das comunidades


as responsáveispela motivação, animação e trabalhos dos grupos. Por
isso, uma das prioridades da Igreja, nos anos 1970 era a formação de
lideranças, principalmente no aspecto político, através de cursos, de
palestras, de encontros, de subsídios, de trocas de experiências coti-
dianas, etc. (ALVES, 2013, p. 196).

O TLC é um movimento jovem que teve seu início em 1967


na cidade de Campinas/SP. Seu objetivo consiste em treinar líderes e
missionários para atuar no anúncio do Evangelho e transformação da
sociedade1.
O MCC surgiu na Espanha na década de 1940, mas chegou ao
Brasil apenas em 1962. O movimento pretende formar lideranças ca-
tólicas para atuar na sociedade, buscando uma renovação da vida cristã
com uma metodologia própria (GOMES, 2009).

1  Informações obtidas na página do movimento. Disponível em: http://tlccampinas.com.br/


site/. Acesso em: 16/05/2017.
Histórias, narrativas e religiões 43
A JUFRA é um movimento jovem de carisma franciscano que
teve sua formação e expansão entre as décadas de 1970 e 1980. Foi
organizado por Eurico de Mello, frei capuchinho, na cidade de Ponta
Grossa-PR e depois se espalhou pelo Brasil. Frei Eurico utilizou a
Teoria da Organização Humana de Antônio Rubbo Müller para estru-
turar a formação da Jufra.
Após a realização do Concílio Vaticano II, podemosnotar um
crescimento no número de movimentos jovens católicos. Esses movi-
mentos não são homogêneos nem mesmo seguem as mesmas correntes
teológicas e propostas de vivencias da fé católica.
Notícias de perseguições, torturas e mortes de sacerdotes, re-
ligiosos e leigos que denunciavam as práticas de repressão da ditadura
civil-militar (1964-1985) podem ter levado Frei Eurico e os demais freis
que o auxiliavam a não fazer debates políticos nos encontros da JUFRA.

As mortes de pessoas ligadas à Igreja, pelos militares, instituiu (ou


reinstituiu) um símbolo na Igreja: os mártires. A nova linguagem
utilizada, de denúncias e de cobranças aos poderes constituídos e de
apelos e apoio a lutas populares e as práticas de trabalhos conjuntos,
de reivindicações, de resistência e de mobilização popular adotada
pela Igreja católica passaram a atrair pessoas que se sentiam excluí-
das do processo (ALVES, 2013, p. 193).

Apesar do tenso momento político da ditadura marcado pela


repressão, perda de direitos, os membros da JUFRA não realizavam re-
flexões sobre esse momento politico, nem se falava dos religiosos e leigos
perseguidos, torturados e mortos. Mesmo assim, a JUFRA chegou a ser
investigada pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de
São Paulo (DEOPS), por ser um movimento que reunia muitos jovens.
O documento explica que não foi encontrado nada de subversivo, mas
que as atividades deveriam ser acompanhadas,

[…] pois dada a sua estrutura e poder de envolvimento religioso do


jovem, pode tornar-se perigoso instrumento de atividades subversi-
vas no futuro, como ocorreu com várias organizações, entre as quais
a AP, que inicialmente tinham finalidades salutares, mas que depois
tornaram-se facções de cunho esquerdista. (DEOPS,1974, p.3)

44 Histórias, narrativas e religiões


Entre os anexos do processo de investigação da JUFRA no
DEOPS, estava inserida a primeira cartilha elaborada por Frei Eurico
em 1973, com os objetivos, a metodologia de aplicação dos treinamen-
tos e formação de novos grupos da JUFRA. Maria de Lourdes de Paula,
que foi a secretária nacional da JUFRA de 1972-1977, relata sua vivên-
cia neste contexto:

[...] na verdade, a gente era alienado do ponto de vista político, sabe?!


A gente não tinha percepção do contexto político. Nós soubemos
depois né, que o congresso de Salvador tinha olheiro do DEOPS.
A gente soube! E depois do congresso de Salvador, eu e o Bira
fomos entrevistados pelo DEOPS de Curitiba. Né? Eu e o Bira!
Recebemos a convocação: “hum, nossa! Que isso, como vamos?” Aí
a gente foi pra Curitiba, eu e ele, mas foi uma coisa assim... A gente
nem entendia muito bem porque estava lá e o pessoal deve ter no-
tado que a gente não tinha nenhuma percepção política. Eu me dei
conta, eu digo hoje pra vocês, ‘alienados’, porque, depois eu entendi
quando eu fiquei em Salvador, eu vi perseguição, eu vi povo correndo
na rua, eu fui pra faculdade em Salvador e daí eu entendi a questão
política, mas enquanto estava na JUFRA, não! Embora alguns freis
entendessem, mas a gente, não! Eu lembro que, um frei do Ceará,
meio que conversou com a gente alguma coisa, mas na época eu não
entendi a profundidade do que o frei estava dizendo, posteriormente,
quando eu me (in)formei melhor, eu disse, ahhh, então o frei estava
mais engajado e não quis ser muito claro com a gente; e nessa entre-
vista no DEOPS, a gente chegou, alguém da recepção nos chamou,
‘ó, é naquela sala, entra’, a gente entrou e sentou, tinha uma mesa,
duas cadeiras, uma pessoa, sala muito... Praticamente nada, a estante
e duas cadeiras, a estante não, a escrivaninha, aí ele falou assim: ‘olha,
como é o teu nome? Onde vocês moram? Há quanto tempo traba-
lham no JUFRA?’ Quer dizer, foi um questionáriozinho básico! ‘É,
vocês aguardam um minuto que alguém já vem atender vocês’, e saiu!
Quando ele saiu, chegou uma pessoa na janela, e limpava a janela, e
limpava a janela. O Bira me cutucou, quer escutar o que a gente fala!
Daí ele riu, o Bira era muito brincalhão, a gente começou falar de
bobagem, de música, da viagem, do pinheiro do Paraná que o Bira
adorava o pinheiro do Paraná [...] então a gente começou a falar dis-
so e tal, conversou, conversou... A pessoa terminou de lavar a janela e
saiu, deu mais uns minutos, a pessoa que tinha nos atendido, chegou:
Histórias, narrativas e religiões 45
‘olha, tá tudo certo com vocês, podem ir embora’, o Bira olhou: ‘só
isso?’, ‘só isso!’ A gente precisa assinar alguma coisa? ‘Não, só esses
dados, até logo, tchau!’ A gente foi embora, e nunca mais!(Maria de
Lourdes de Paula).

Apesar da JUFRA não ter se posicionado oficialmente a favor


nem contra a ditadura, é possível pensar que havia membros contrários
ou a favor do regime.
O passado é uma leitura a partir do presente. Ao serem ques-
tionados sobre o contexto sócio-político do período que vivenciaram
suas experiências na JUFRA, os sujeitos entrevistados, ex-membros da
Jufra, comentaram que apenas hoje compreendem o que acontecia.
Frei Frigo afirma acreditar na possibilidade de ter agentes do
governo infiltrados na JUFRA. Ele conta que Frei Eurico e os demais
seminaristas que trabalham com a JUFRA comentavam internamente
sobre as perseguições à padres, religiosos e leigos, mas que não repassa-
vam essas informações para os jovens.

Esse assunto não se mencionava. Não se mencionava, mas todo


mundo sabia né. Aí ficavam falando, ficava falando mais nós inter-
namente aqui dentro, porque nós fomos estudantes de filosofia e
teologia, nós tínhamos uma base de conscientização, certo? Tem que
criar o espirito crítico [...] não podemos ser pessoas alienadas... (Frei
Luiz Antônio Frigo)

Ele afirma ainda que sabia que as homilias dos padres, durante
as missas, eram gravadas por agentes de monitoramento da ditadura. É
possível que os freis temessem sofrer represálias do governo e, por isso,
não conversassem sobre política com os jovens.

Na verdade, na época da ditadura, a igreja era muito vigiada pelo sis-


tema né. A vigilância da ditadura, eles faziam de maneira silenciosa,
nunca de maneira aberta. Claro, por que... Como se trata de um mo-
nitoramento de pessoas que, às vezes, tinham um pensamento um
pouco diferente, não se sabia como eles monitoravam e quem eles
monitoravam né. O que sabia... Eu estava aqui [Ponta Grossa] na
época, sabia que os sacerdotes, muitos deles, eram gravados. Você ia

46 Histórias, narrativas e religiões


rezar uma missa e, de repente, tinha uma pessoa lá dentro gravando e
monitorando e conforme o que a pessoa falava depois era notificada
e assim por diante. A gente sabia que, aliás, muita gente na igreja,
eles foram perseguidos, Frei Beto, [...] nós da JUFRA também está-
vamos por dentro, acompanhávamos passo a passo, sabíamos de tudo
isso. Mas, dentro disso, a gente não deixava de comentar entende?
(Frei Luiz Antônio Frigo).

Frei Luiz Antônio Frigo explica que a espiritualidade francis-


cana, que incentiva a conscientização e libertação com opinião critica,
foi adaptada por Frei Eurico utilizando metodologia e linguagem jo-
vem, de acordo com o contexto social vivido por eles.

Como se tratava de movimento de conscientização, porque tudo


aquilo que cria consciência nova, o que cria consciência de integra-
ção social era perseguido. Porque, justamente, quando se trata de um
sistema ditatorial, eles querem colocar fumaça, certo? Para intoxicar
as pessoas e deixar as pessoas cegas, porque o processo ditatorial é
um processo alienatório. [...] A JUFRA, com certeza, é um processo
de conscientização, de abertura, de reflexão. Eles [militares favorá-
veis ao regime] correram atrás (Frei Luiz Antônio Frigo).

O Vaticano II percebeu que era necessária a inserção da Igreja


na vida cotidiana, a doutrina católica e os carismasdas ordens religiosas
se adaptassem às novas realidades e às novas gerações. A igreja precisava
dos jovens para manutenção da importância da instituição na sociedade.

Considerações Finais

A partir do momento que a Igreja se percebe como agente his-


tórico capaz de produzir sentido e identidades e que precisa atuar na
sociedade por meio do trabalho dos leigos, percebemos que muitos mo-
vimentos jovens ganharam destaque.

Histórias, narrativas e religiões 47


Embora antes do Concílio Vaticano II já existissem movimen-
tos leigos que percebiam a necessidade dessa inserção na vida cotidiana,
foi após o Concílio que tiveram maior atuação, quando a Igreja adotou
a nova concepção de Povo de Deus.
Os movimentos jovens tem em comum o objetivo de formar
lideranças jovens para atuar na sociedade a fim de renová-la. Alguns
movimentos estiveram ligados e Teologia da Libertação e pretendiam
desenvolver um trabalho de combate às desigualdades, enquanto outros
pretendiam reafirmar valores morais.

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Histórias, narrativas e religiões 49


Israel Antônio Soares e os islamitas no
Rio de Janeiro do século XIX

José Roberto Pinto de Góes (UERJ)

Resumo: O artigo aborda a vida de um ex-escravo brasileiro e caracte-


rísticas da comunidade islâmica existente no Rio de Janeiro da segunda
metade do século XIX.

Palavras-chave: Escravidão, Religião, Islamismo, Catolicismo.

Introdução

Existiu no Brasil, no século XIX, uma comunidade muçulmana


formada por libertos e escravos africanos. Haviam sido trazidos pelo
tráfico transatlântico, embarcados no vasto litoral da África Ocidental e
eram conhecidos por aqui como Minas. Nem todo indivíduo associado
à designação Mina era islamita. A maior parte não era. Mas os fiéis a
Alá formavam um grupo muito especial e deixaram registros históri-
cos preciosos, a maior parte relacionada à chamada Revolta dos Malês,
ocorrida em Salvador, em 1835.2
Os desafios colocados à sobrevivência da religião islâmica no
Brasil daquela época mostraram-se invencíveis. Amplamente minoritá-
rios entre os escravos, vistos com suspeição pela população livre quase
toda ela católica, os seguidores do Profeta Maomé foram paulatinamen-
te perdendo a lembrança da religião professada por seus pais, processo

2  Cf. Reis, João José. Rebelião Escrava no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 2003; Rodrigues,
Nina. Os Africanos no Brasil. Rio de Janeiro, CEN, 1935; Silva, Alberto Costa e. Um Rio
Chamado Atlântico. São Paulo, Nova Fronteira, 2005.
50 Histórias, narrativas e religiões
esse que deve ter-se acelerado bastante após a interrupção do tráfico
transatlântico de escravos, em 1850.
Israel Antônio Soares, nascido escravo na década de 1840, no
Rio de Janeiro, foi uma pessoa invulgar. Aprendeu a ler sozinho, acom-
panhou os debates sobre a Lei do Ventre Livre, comprou a própria car-
ta de alforria, tornou-se uma liderança respeitável na campanha aboli-
cionista e dirigiu por muitos anos a Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Era um católico convicto.
Filho de uma escrava muçulmana, ele entrou em conflito com a comuni-
dade islâmica carioca quando a mãe morreu, pois fez questão sepultá-la
segundo os rituais da Igreja Católica.
O presente artigo aborda o que é até agora conhecido da his-
tória de Israel e outras informações sobre a comunidade muçulmana
existente, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Na vida
do escravo, depois liberto, se pode ler o ocaso do islã de origem subsaa-
riana no Brasil.

Israel

Israel, nascido em 1843, na cidade do Rio de Janeiro, foi uma


pessoa tão importante em sua época que acabou registrado num dicio-
nário sobre a escravidão brasileira. Veio ao mundo escravo, tornou-se
liberto na idade adulta (comprou carta de alforria) e virou cidadão bra-
sileiro em 1888, com a vitória da campanha abolicionista, para a qual
muito contribuiu. No Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, do his-
toriador Clovis Moura, ele aparece no verbete dedicado à Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. Criada
em 1779, a associação tinha entre seus compromissos amparar e obter
cartas de liberdade para os escravos, para o que angariava fundos e reali-
zava sorteios entre seus membros. No ocaso da escravidão, clandestina-
mente, a Irmandade fazia muito mais: subvencionava a imprensa aboli-
cionista, ajudava José do Patrocínio a forçar o fim do trabalho escravo,
Histórias, narrativas e religiões 51
amparava cativos fugidos e alguns até embarcava escondidos para o nor-
te do país. Israel, àquela altura, era “a verdadeira alma da Irmandade”.3
Muito provavelmente, a fonte de Clovis Moura foi o relato de Evaristo
de Moraes sobre a campanha abolicionista, reunido em livro e publica-
do pela primeira vez em 1924. Moraes o conheceu e com ele conversou
muitas vezes sobre sua vida e os anos de luta. Descreveu-o como “orador
espontâneo”, que “facilmente despertava a piedade dos ouvintes, falando na
própria desventura de ter conhecido tão intimamente a Escravidão”.4
Outra fonte sobre Israel, muito mais eloqüente, é uma crônica
do jornalista Ernesto Sena, intitulada Israel Soares.5 Um encontro ca-
sual, no ano de 1900, na Rua do Ouvidor, deu ensejo à crônica. Ernesto
Sena lhe pediu para que relatasse sua vida em detalhes, de tamanha
importância nos eventos que levaram à Abolição. Naquela época, Israel
era um “negro magro, esguio, ossudo, com a carapinha embranquecida pela
neve dos anos, com aquela curta barba branca, com aquele buço sempre bem
escanhoado, formando todo o seu físico a compostura de um homem sério, ho-
nesto e digno”. Após relutar bastante, ele concordou em esboçar uma bre-
ve biografia. Sena prometeu ao leitor “relatar fielmente as suas palavras
tais como foram pronunciadas” e abriu aspas que só seriam fechadas seis
páginas depois. Entre ambas, um relato que parece escrito pelo próprio
biografado. Começa assim: “Não posso deixar de obedecer ao seu pedido, não
porque se trate da minha mesquinha pessoa, mas sim porque se trata de um
livro que tem de lembrar aos vindouros os feitos gloriosos daqueles que, como o
senhor, tanto concorreram para a redenção da raça oprimida”. As passagens
da crônica referidas a seguir, portanto, aparecem no texto como se fos-
sem palavras do próprio Israel.
Ele resumiu a sua vida. Nascera em 19 de agosto de 1843, em
uma casa da antiga Rua de São Pedro, localizada próxima da atual Praça da

3  O Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (EdUSP, 2004), de Clovis Moura, pode


ser consultado no link <http://books.google.com.br/books/about/Dicion%C3%A1rio_da_
escravid%C3%A3o_negra_no_Bras.html?id=6Zcz0fIj91cC>.
4  Moraes, Evaristo de. A Campanha Abolicionista (1879-1888). Brasília, Editora Universidade
de Brasília, 1986. p. 236. É de Evaristo de Moraes a expressão “verdadeira alma da Irmandade”.
5  A crônica é curta. Todas as citações a ela referentes encontram-se entre as páginas 139
e 145 do livro Rascunhos e Perfis (Editora UnB, 1983).
52 Histórias, narrativas e religiões
República, no centro da cidade.6 Seus pais eram africanos: Luiza era Mina
e Rufino um monjolo – todos escravos de Joaquim José da Cruz Seco.
Contava 3 anos de idade quando a mãe conseguiu comprar uma carta
de liberdade, tornando-se mais uma integrante do considerável grupo de
Minas libertas quitandeiras que dava duro nas ruas do Rio de Janeiro (por
volta de 1870, tinha uma barraca no Largo da Sé). Nos detalhes que en-
volveram a compra da alforria aparece um cativo chamado Antônio. Ele,
também um Mina, foi o comprador da carta. Segundo Israel, era “oficial de
obra grande, pois só trabalhava em casacas e sobrecasacas”, estava empregado
em uma “casa de grande nomeada naquela época: era a casa Blanchom” e “vi-
via como livre por caprichos de um de seus senhores moços”.
Antônio viera para o Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul,
após a morte de seu dono. A história que, presume-se, corria entre a
comunidade Mina era que o senhor o estimava muito, mas não tivera
tempo de registrar a alforria em cartório, surpreendido pela morte num
naufrágio, num rio de Pelotas, onde ia em seus negócios de charquea-
dor. Houvera tempo, no entanto, para fazer saber a seu filho e herdeiro
do seu desejo, que já devia ser sobejamente conhecido por muita gente.
Mas o senhor moço, que nutria grande ciúme do escravo, não lhe deu
carta de liberdade alguma. Comunicou que não precisava mais dos seus
serviços, obrigou-o a mudar-se para a Corte e não cumpriu a vontade do
pai. Antônio chegou ao Rio nem escravo, nem livre, nem liberto. Pelas
lembranças de Israel, era respeitado na cidade e, pelo que dá a entender,
bem remunerado por seu talento e indústria. “Condoendo-se da sorte” de
Luiza, Antônio Mina comprou-lhe carta de Alforria, em 1846. Israel
afirma que o Antônio do seu nome foi uma homenagem ao benfeitor.
Em 1856, Luiza juntara 1 conto de réis, quantia suficiente para
libertar um filho, e fez a escolha de Sofia mais sensata: libertou a filha,
uma jovem mulata, e não Israel, então com 13 anos. “Houve divergência
entre minha mãe e meu padrasto, pois este era de opinião que fosse eu primeiro

6  A propósito das imediações onde nasceu Israel, escreveu Brasil Gerson: “Quando da
‘Revolução Urbanística’ de Pereira Passos ainda existiam nos seus quarteirões finais, vizinhos do
Campo de Sant’Ana, bem como nos da de S. Pedro e da Alfândega, várias das casas de venda de
ervas medicinais dos pretos Minas, muitos deles mandingueiros, e que tão numerosos e famosos
haviam sido no Rio Antigo.” Cf. GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro:
Editora Lacerda, 2000, p. 60 (5a edição).
Histórias, narrativas e religiões 53
libertado, com certeza por eu ser preto como ele”. Israel não dava razão ao
padrasto e agradecia a Deus pela sábia decisão que os salvou de “não ter-
mos dezenas de membros da nossa família na escravidão”. Se àquela altura
possuía um padrasto é porque Luiza já não vivia com Rufino. A irmã
mulata indica que havia um terceiro homem na vida de Luiza (ou quar-
to, se incluímos o Antônio), provavelmente moreno claro ou branco.
Em 1900, ela (a irmã) ainda vivia, “cheia de filhos e netos”. Como veremos
adiante, a família dele, no alvorecer do século XX, além de grande, era
multicolorida e hierarquizada segundo valores relacionados à idade e à
sabedoria de seus membros.
Aos 14 anos, Israel mudou para São Cristóvão, onde se tornou
adulto e se deu conta do que era ser escravo: “aí comecei a ser homem e a
compreender que era muito esquerda a posição de escravo”. Disse isso tudo e
mais não disse sobre a labuta do dia a dia. Mas ele não era de fazer cor-
po mole à dificuldade: “Felizmente já sabia alguma coisa, atirei-me a tudo
que me podia ser útil, provoquei simpatias”. Mais adiante, ele dirá: “Não
obstante ser eu escravo, tinha boa vontade para o trabalho”. Israel foi outro
cativo, que, a exemplo de Antônio Mina, viveu um bocado senhor de si.
Ao ponto de, ainda cativo, fundar e dar aulas num curso noturno dirigi-
do a escravos e ex-escravos, criar uma sociedade de dança, a Bela Amante,
ser eleito presidente da Caixa Libertadora José do Patrocínio, dirigir
a Irmandade Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens
Pretos e juntar algum patrimônio.
Dentre as simpatias que despertou estava a do farmacêutico
Marcelino Inácio de Alvarenga Rosa. “A esse cidadão devo o pouco co-
nhecimento que tenho da vida. Foi com ele que acompanhei toda a questão
do Ventre Livre e era com sofreguidão que lia os discursos de João Mendes,
Pinto de Campos, Pereira Franco, Junqueira e do sublime Rio Branco”. Israel
não conta quando aprendeu a ler, diz apenas que foi no canto de uma
cozinha, em jornais velhos. Mas aos 26, 27 anos, estava lendo o sublime
Rio Branco e acompanhando a luta política pela Abolição. Pelo que se
depreende do relato, o farmacêutico repassava ao escravo artigos e dis-
cursos pró e contra a Abolição e com ele compartilhava a satisfação de
abraçar a causa abolicionista. A amizade de Israel e Marcelino mostra

54 Histórias, narrativas e religiões


mais uma vez o quanto era porosa a fronteira entre livres e escravos no
Brasil. A amizade do farmacêutico permitiu-lhe relacionar-se com o
mundo dos homens livres quase como um igual – mais um leitor e mili-
tante da causa abolicionista. Na década de 1880, em eventos e meetings,
falou como orador convidado. A se crer nas palavras de Ernesto Senna,
a poucos ouvintes e observadores deve ter escapado “a compostura de um
homem sério, honesto e digno” que o caracterizava.
Em 1874, aos 31 anos, ainda escravo, Israel teve que ajudar a
mãe, que andava “atrasada com seu negócio” no Largo da Sé. Como tivesse
“boa vontade para o trabalho”, isto é, trabalhasse muito, conseguiu alugar
uma casa em São Cristóvão, onde Luiza podia continuar a se virar como
quitandeira. A lembrança que Israel cultivava, em 1900, desse tempo,
dizia respeito ao drama da mãe diante da cruel escolha a que fora for-
çada. “Lembro-me que às vezes pegava-me na cabeça e me estreitava no colo,
dizendo estas palavras que nunca mais poderei esquecer: pobre filho, eu não
te posso libertar!” Ele a confortava dizendo que não se torturasse, pois
“tinha fé no meu trabalho e no futuro”. Em 1880, Luiza faleceu. Mas não
lhe faltou nada, pois “tinha médico à cabeceira” (Dr. José Peixoto, que nada
cobrava) e o farmacêutico providenciava os remédios. Outro amigo, José
Boyd, “meu anjo tutelar”, pagou o enterro.
Após a morte da mãe, Israel abriu um curso noturno na casa
alugada, àquela altura bancada pelo amigo Boyd. Entre escravos e ex-
-escravos, ex-alunos, cita quinze pessoas, quinze destinos sobre os quais
nada mais saberemos. Ou quase: em 1900, há o testemunho do próprio
Israel: “Entre estes alguns há que aprenderam depois mais alguma coisa e hoje
governam sua vida muito bem”.
Além do curso noturno, Israel criou uma escola de dança, inti-
tulada Bela Amante, freqüentada exclusivamente por escravos. A escola
dava duas “partidas” (apresentações) por ano: nas vésperas do Natal e do
São João. Comportava-se tão bem que foi a única a fazer jus ao respeito
do Chefe de Polícia. “Era tal a maneira que nos portávamos que sendo Chefe
de Polícia da Corte o Desembargador Tito de Matos que mandou cassar todas
as licenças de bailes populares e particulares, foi a nossa a única considerada
pela autoridade do lugar apta a funcionar”. Israel talvez fosse uma pessoa

Histórias, narrativas e religiões 55


de idéias conservadoras no plano dos costumes. Talvez compreendesse e
concordasse com as razões do chefe da polícia.
Era católico. Quando a mãe faleceu, entrou em conflito com
a pequena comunidade muçulmana, da qual Luiza fazia parte, e fez
questão de que os últimos sacramentos e o sepultamento seguissem o
ritual da Igreja Católica. “Minha mãe era maometana, porém morreu na
lei Católica Apostólica Romana. Confessou-se e sacramentou-se. Algumas
Minas ficaram zangadas com este motivo, porém eu não me importei com
isto e até tive bastante prazer, porque sou daqueles que pensam que a nossa
religião está acima de tudo.” Ele era católico, mas sua mãe era uma Mina
maometana, membro da comunidade muçulmana no Rio de Janeiro,
como suas amigas e o benfeitor Antônio. A trajetória de Israel é tão rica
que nela se pode entrever até o virtual desaparecimento da comunidade
muçulmana de origem subsaariana no Brasil.

O Islã no Rio de Janeiro

Luiza deve ter desembarcado na Bahia na década de 1820, ou


de 1830. Isso porque era muito pequeno, quase irrisório, o tráfico de
escravos entre o Rio de Janeiro e a África Ocidental naquela época.7
É possível que tenha chegado à Corte na leva dos Minas reexporta-
dos após os eventos traumáticos de 1835, como muitos outros. Aliás,
considerando que após a Revolta dos Malês a Bahia exportou escravos,
sobretudo, para o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, é possível que
Luiza e Antônio (o ex-escravo Mina vindo do Rio Grande que pagou
sua carta de alforria) se conhecessem desde os tempos em que viviam
como escravos, estrangeiros e muçulmanos na Bahia.

7  A análise de uma expressiva amostragem de inventários post-mortem abertos no Rio de Janeiro,


entre 1789 e 1835, indica que os escravos advindos de portos da África Ocidental representavam
apenas 4% da população cativa das áreas rurais da província e não mais do que 7% da cidade
do Rio de Janeiro. Os demais eram bantofones, exportados da costa congo-angolana ou de
Moçambique, esses em menor número. Cf. Florentino, M.G. e Góes, J.R.P. A Paz nas Senzalas.
Rio de Janeiro, Record, 1997.
56 Histórias, narrativas e religiões
A Revolta dos Malês deixou uma rica documentação sobre a
comunidade muçulmana de africanos no Brasil. Outra fonte também
muito importante é o relato de viagem de Abdurrahman Bin ‘Abdulla
al-Baghdádi, um imã de Constantinopla que passou alguns meses no
Brasil na década de 1860.8
Em meados de 1866, tormentas desviaram para o Atlântico Sul
uma corveta militar otomana enviada de Istambul a Basra, no Iraque.
O navio, no qual viajava o imã, terminou atracando no porto do Rio de
Janeiro. No dia seguinte à arribada, ele desceu à cidade. A certa altura
do passeio, um negro aproximou-se e disse: “as salámu ‘alayukum”. Al-
Baghdádi olhou aquele negro metido em trajes como os “de um europeu”
e concluiu que estava a ser objeto de alguma zombaria, devido ao traje e
turbante que usava. De volta ao navio, já a noite, encontrou alguns negros
entre os cariocas que visitavam o navio, ciceroneados pelo capitão. E ouviu
deles, sem entender, pois não falava português: “eu, muçulmano”. O imã
tentou comunicar-se em inglês e francês, mas em vão. No dia seguinte, um
grupo de “respeitáveis negros” voltou ao navio. A comunicação permane-
ceu impossível até o final da tarde, quando os visitantes acompanharam
o imã na ablução e orações. Foi então que Albdurrahman al-Baghdádi
compreendeu que estava diante de muçulmanos.
O Imã disse que pregou para mais de 500 pessoas, numa pla-
nície afastada da cidade, cujo acesso se dava por algum porto na Baía da
Guanabara. Luiza, a mãe de Israel, talvez estivesse presente. Nem pre-
cisava largar a labuta da quitanda no centro da cidade, pois a assistência
comparecia mesmo em massa apenas ao fim do dia, depois do trabalho.
Antônio, seu benfeitor, se vivo ainda fosse, certamente estava lá. Aliás,
ele era pessoa de tantos cabedais que não nos espantaria saber que inte-
grava o grupo dos que foram ao navio conversar com o imã.
As cartas de alforria registradas nos cartórios do Rio de Janeiro,
no século XIX, indicam que os escravos Minas tinham muito mais faci-
lidade em obter a liberdade do que Benguelas, Cabindas, Moçambiques
e demais falantes de línguas bantos. Na época em que al-Baghdádi es-

8  Abdurrahman Bin ‘Abdulla al-Baghdádi, O Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é


Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali (Rio de Janeiro / Argel:
Fundação Biblioteca Nacional / Bibliothèque Nationale d’Algérie, 2007).
Histórias, narrativas e religiões 57
teve no Rio, metade das cartas de liberdade compradas pelo próprios es-
cravos eram de Minas.9 Entre os cativos, eles eram os de maior cabedal.
A prosperidade dos Minas permitiu a muitos deles ir além
de compra da própria carta de alforria. Israel Soares, ao relatar que fez
questão de sepultar a mãe segundo o ritual católico, disse que algumas
Minas, amigas dela, ficaram “zangadas”. E acrescentou: “É verdade que
respeito muito as Minas, por serem da nação de minha boa mãe, porém, não
posso deixar de conhecer que elas foram grandes verdugos da nossa raça. Logo
que apanhavam algum dinheiro, a primeira coisa que faziam era comprar es-
cravos e, deixe que lhe diga, eram muito rigorosas”. A indiferença moral dos
africanos muçulmanos em relação à escravidão certamente não ajudou
na disseminação da fé islâmica entre os escravos. Ao menos no caso de
Israel, levou a um justo ressentimento. Enquanto isso, a Igreja Católica
(que havia mais de três séculos abençoava a escravidão e possuía escra-
vos) fez que não via Israel transformar a irmandade de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos num instrumento polí-
tico de combate à escravidão.
Os islamitas do Rio de Janeiro não se misturavam com qual-
quer um. Não permitiam, por exemplo, que suas filhas casassem com
pagãos. Desprezavam os outros Minas que cultuavam os orixás e outras
divindades afrobrasileiras. Mas tudo isso não evitou que seus filhos e
netos viessem a se encontrar um dia ou com Cristo ou com os orixás.
Ou com todos de uma vez, na forma de uma fé católica sincrética. No
início do século XX ainda foi possível a João do Rio registrar os ecos
dessa mais que secular desavença entre os Minas: “Os alufás não gostam
da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo despreza os
bichos (sic) que não comem porco, tratando-os de malês”.10
O fim do tráfico transatlântico, em 1850, certamente contou
para que já em meados dos anos 1860os muçulmanos do Rio de Janeiro
(e do Brasil) se encontrassem já muito esquecidos dos rituais e das ver-

9  Góes, José Roberto. “Padrões de alforrias no Rio de Janeiro – 1840-1871”. Nas Rotas do
Império. Eixos mercantis, tráfico e relações sociais no mundo português. Eds. João Fragoso, Manolo
Florentino, Antônio Carlos Jucá e Adriana Campos. Vitória: Editora da Universidade Federal
do Espírito Santo, EDUFES, 2014.
10  Rio, João do. As religiões no Rio. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. P. 27.
58 Histórias, narrativas e religiões
dades do Islã. Al-Baghdádi pregou, ensinou, corrigiu, deu o exemplo,
encomendou a um livreiro vários exemplares do Corão para serem ven-
didos aos fiéis, mas a tarefa era realmente hercúlea. Quando veio o mês
do Ramadã ele observou que os homens não engoliam a saliva, não se
olhavam no espelho, não mantinham relações sexuais, só falavam com
as mulheres após o por do sol, quebravam o jejum e, no final, “se propõem
a passar fome por três dias e não ingerem nada além de alguns copos de ervas
medicinais”.11 E no resto do ano não achavam nada demais incorporar o
álcool à dieta do dia a dia.
Os líderes da comunidade viviam num litígio perpétuo: “Cada
clã de muçulmanos tem um líder que cuida de suas questões e ao qual se refe-
rem como ´alfa´ e, entre alguns, ´imam´. Eles se ocupam do amor pela liderança
e pelo mundo. Entre eles acontecem algumas coisas cuja menção prolongaria
a questão, e no íntimo não gostam uns dos outros. Cada um deles deseja que o
outro seja de seu partido”. E como se não bastasse pastores tão afeitos às
coisas mundanas e à luta por poder, eram, também eles, dados a paga-
nismos e feitiçarias: “Eles possuem uma inclinação plena para a geomancia
e a magia e decoram algumas palavras em siríaco e um palavrório incompre-
ensível”. Não escapou a al-Baghdádi que os que fingiam entender suas
recomendações e emendas o faziam só para o agradar e, possivelmente,
disputar o prestígio do imã de Constantinopla. Al-Baghdádi reconhe-
ceu a derrota: “Esse modo de ser não é possível extirpar”.12
Outro grande obstáculo à disseminação da fé islâmica entre a
população escrava e liberta parece ter sido representado pela má vontade
demonstrada pelas mulheres em relação ao Islã. Assim se pronunciou o
imã a respeito delas: “As mulheres deles não possuem desejo de jejuar. Elas fa-
zem o que querem, assim como as mulheres dos preguiçosos estrangeiros. Quando
vão ao mercado, não se cobrem e praticam alguns atos repreensivos. Uma mu-
lher herda de seu marido a metade [de seus bens] quando ele morre, e a segunda
metade é dividida igualmente entre os filhos e as filhas. E não é possível elimi-
nar esse problema”. De fato, a comunidade muçulmana nada podia fazer
contra as leis brasileiras que regulavam a sucessão de bens. O imã explicou

11  Al bagdadi P. 85
12  Ibdem. P. 87.
Histórias, narrativas e religiões 59
o que era a vontade de Deus nessa matéria, mas esse era um assunto tão
delicado e sensível às mulheres que o al-Baghdádi aconselhou os fiéis a
contemporizar. Afirmou: “Disse: ´Quem estiver satisfeito com essa determi-
nação, está bem. Mas aquele que não concordar, só a ele cabe esse assunto e faz o
que quiser ao imitar a religião estrangeira. Não briguem com eles e mantenham
suas questões em segredo´. E [disse] isso quando vi a rejeição das mulheres àquela
partilha muçulmana e o total e inerente repúdio delas”.13
O imã escreveu que o batismo cristão já desviara muitas nações
do mundo, mas as famílias muçulmanas no Brasil se viam obrigadas a
batizar os filhos no ritual católico. Se as crianças não fossem registradas
no livro da paróquia, depois não era possível provar que haviam nascido
livres ou sido libertadas na pia batismal. Quando morriam, se não eram
encomendados pelos padres e registrados nos livros de óbito, não po-
diam ser sepultados. O imã recomendou que esperassem a ausência do
sacerdote católico para despir e lavar o cadáver como convinha, mas não
encontrou solução para o problema de sepulturas voltadas para Meca.
Não havia como.
Para piorar a situação dos maometanos do Rio, eles viviam no
temor de serem descobertos, estigmatizados e retaliados. Logo dissu-
adiram o imã de vestir o traje habitual, do qual gostava: “Se você usar
seus trajes, nós não poderemos [mais] ir a sua casa, e sua utilidade se esvai,
pois, se os cristãos souberem que você é muçulmano, hão de imaginar o mes-
mo de nós”.14 A rebelião dos malês havia deixado fundas cicatrizes na
história do Brasil, que ainda ardiam nas gerações de africanos e bra-
sileiros que habitavam a Corte, àquela altura do século XIX. Disse o
imã: “Contaram-me que acontecera uma guerra entre eles e os cristãos e que
os negros pretendiam tomar conta da região, mas o triunfo fora dos cristãos.
Compreendeu-se com clareza que na origem dessa rebelião estava um grupo
de muçulmanos das comunidades de negros”. E acrescentou, com grande
exagero e à margem da verdade: “se os cristãos identificam que alguém é
muçulmano, pode ser que o matem, que o exilem ou que o enviem à prisão
perpétua”.15 Isso não era verdade, mas se o imã foi assim informado, sig-

13  Ibdem. P. 85.


14  Ibdem. P.89.
15  Ibdem. P.90
60 Histórias, narrativas e religiões
nifica que fazia parte da história tal como era contada pelos adeptos do
Islã no Rio de Janeiro. Nessa versão, os verdadeiros crentes haviam sido
derrotados militarmente pelos infiéis e, após tantos anos, ainda eram por
eles perseguidos e assassinados.

Conclusão

A história de Israel resume um destino da comunidade muçul-


mana no Rio de Janeiro. A mãe era maometana e o filho tornou-se um
católico convicto: “sou daqueles que pensam que a nossa religião está acima
de tudo”. Muitos descendentes da geração de Luiza devem ter trilhado
o mesmo caminho de Israel e o catolicismo os acolheu. Talvez a maior
parte, pois essa religião ainda hoje é a praticada pela maioria dos bra-
sileiros. Os muçulmanos da geração de Luiza eram poucos numa terra
estrangeira. Não faziam maiores reservas morais à escravidão e, como a
maior parte dos senhores de escravos, “deixe que lhe diga”, eram muito
rigorosos. A relação do Islã com a população escrava pagã não era de
criar facilidades à conversão: ora os islamitas apareciam como senhores
rigorosos, ora como pessoas impacientes com as crenças alheias. A co-
munidade vivia dividida pelas disputas entre seus líderes. Eram olhados
com desconfiança pelos brasileiros, sentiam-se acuados. E as mulheres
rejeitavam seus costumes. No início do século XX, João do Rio encon-
trou o que restava da comunidade entre os cariocas mais pobres: nada
além de magias e feitiçarias.
Israel Antônio Soares foi uma pessoa singularmente talentosa.
Mas na sua trajetória de vida - as escolhas que fez, as iniciativas que
tomou, o patrimônio material e imaterial que construiu – talvez seja
possível entrever o percurso de uma geração inteira de escravos brasi-
leiros e africanos que viveu a segunda metade do século XIX no Rio de
Janeiro. Trabalharam muito, cuidaram dos seus, acreditaram em si, tor-
naram-se católicos, engajaram-se na luta pela abolição e, na velhice, ha-
viam se transformado em patriarcas, ou matriarcas, de famílias grandes,
Histórias, narrativas e religiões 61
acolhedoras e multicoloridas. Após dizer que, para felicidade de toda a
família, a mãe havia decido alforriar a irmã, o que tinha livrado dezenas
de familiares da escravidão, ele acrescentou: “Tenho sobrinhas, e sobrinhas
tão brancas que sabem que são mulatas por que têm tio preto. Tenho uma so-
brinha casada com um mulatinho nas mesmas condições, mas nesse ponto sou
feliz, nunca vi neles o menor vislumbre de preconceito, pelo contrário, todos
me respeitam e me dão o lugar de chefe supremo da família”.
E que outro lugar era devido a Israel?

Fontes e Bibliografia

Al-Baghdádi, Abdurrahman Bin ‘Abdulla. O Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espan-


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Histórias, narrativas e religiões 63


Política e Religião: apontamentos sobre
o caso ituano entre 1850 e 1918

Lais da Silva Lourenço (PUCCAMP)

Resumo: A presente comunicação analisa as estratégias de fixação dos


jesuítas instalados em Itú durante a segunda metade do século XIX e
início do século XX. Antes um dos principais redutos da formação re-
galista de clérigos – como a de Diogo Antônio Feijó -, o local se tor-
nou um dos pontos de fixação dos Jesuítas no momento do retorno da
Ordem ao Brasil, contemplando uma singular experiência clerical em
seu território. Tal conjuntura demonstra uma transição em relação aos
rumos da Igreja católica no Brasil e no mundo, cuja orientação passou a
ser denominada “romanização”. Também a relação desses clérigos com
a sociedade transformara-se. Se antes da expulsão da Companhia de
Jesus, em 1759, possuíam legitimidade social, na segunda metade do sé-
culo XIX intencionavam recuperá-la, utilizando-se, para tanto, de dife-
rentes estratégias de relacionamento com a sociedade local. A primeira
delas, já tradicional, baseou-se na fundação de um colégio para meninos:
o Colégio São Luís. A segunda, na criação de uma associação de leigos,
o “Apostolado da Oração”, que divulgara a crença no Sagrado Coração
de Jesus no Brasil. A terceira, na criação do periódico “Mensageiro do
Coração de Jesus”, que circula nacionalmente até os dias de hoje. Assim,
partindo das novas possibilidades instituídas pela História das Religiões
– inspiradas em boa medida pela atual visibilidade do fenômeno reli-
gioso nas sociedades ocidentais e sua marcada influência política - a
presente comunicação buscará compreender como as estratégias utili-
zadas pelos jesuítas instalados em Itú, no período em foco, desvendam
profundas e complexas articulações entre a sociedade, cultura e política
locais e os novos rumos então tomados pela Igreja católica.

64 Histórias, narrativas e religiões


A Inquisição e a Vida Política dos
Fiéis no Século XXI: Um estudo da
Nota Doutrinal da Congregação para a
Doutrina da Fé de 2002

Bruno Fernandes Mamede (Mestrado – USP)

Resumo: No dia 24 de novembro de 2002 o então Cardeal Joseph


Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (nome atual
da antiga Inquisição), assinou a “Nota Doutrinal sobre algumas questões
relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política”
com a confirmação do Papa João Paulo II. O documento pretendia “re-
lembrar alguns princípios próprios da consciência cristã, que inspiram o
empenho social e político dos católicos nas sociedades democráticas”; a
democracia foi só lentamente apropriada pelo pensamento social cató-
lico na segunda metade do século XX, após as experiências traumáticas
com os regimes totalitários. Esta nova dimensão política exigiu uma re-
flexão profunda por parte do Magistério da Igreja e esta Nota Doutrinal
pretendeu sintetizá-la no início do século XXI. Neste artigo faremos
uma breve análise deste documento, do contexto do seu surgimento e de
suas motivações.

Palavras-chave: Igreja, Catolicismo, Política, Doutrina, Ratzinger.

Introdução

“As declarações da Hierarquia são uma das formas mais notáveis


de intervenção da Igreja na vida da cidade” (COUTROT, 2003, 340); esta

Histórias, narrativas e religiões 65


observação da historiadora Aline Coutrot nos chamou a atenção para a
referida Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé16. Para
analisá-la de forma criteriosa precisaremos considerar vários elementos,
dentre eles a figura do Papa João Paulo II (1978-2005), que apesar de
fisicamente debilitada ainda representava uma força inquestionável17;
Paul Johnson chegou a considerar que ele “em muitos aspectos, foi a mais
impressionante demonstração de poder político papal desde a época de
Inocêncio III, em princípios do século XIII” ( JOHNSON, 2008, 249).
A centralidade da figura de João Paulo II para a Igreja Católica
no final do século XX fica evidente se considerarmos a crise pela qual a
instituição passara após a conclusão do Concílio Vaticano II (1962-1965);
Eric Hobsbawm analisou esta “grande crise sem precedente histórico”,
representada por uma “desobediência tácita, como no caso da maciça ado-
ção do controle da natalidade pelas mulheres italianas a partir dos anos
1970”, o colapso das vocações, o número de membros das instituições
religiosas que “nos Estados Unidos (...) [despencou] de 215 mil em 1965
para 75 mil em 2010” (HOBSBAWM, 2013, 241) e, destacou na Era dos
Extremos, que “no curso da década de 1960, o comparecimento à missa
no Quebec caiu de 80% para 20%”, concluindo que “a autoridade moral e
material da Igreja sobre os fiéis desapareceu no buraco negro que se abriu
entre suas regras de vida e moralidade e a realidade do comportamen-
to de fins do século XX” (HOBSBAWM, 2010, 330-331). Não era um
diagnóstico promissor; ao lermos estes dados em nenhuma hipótese po-
deríamos considerar que uma instituição em franco estado de decadência
procuraria intervir de alguma forma na vida política dos seus membros
cada vez mais escassos, menos ainda de maneira tão direta quanto a uti-
lizada na referida Nota Doutrinal. O que podemos compreender deste
fato é que tal intervenção não seria possível sem a força moral que João
Paulo II representava para o mundo, católico e não-católico. Mas se um
papa despertara tanto respeito em pleno século XXI, será o catolicismo
verdadeiramente uma religião decadente?

16  Faremos referência a ela com a sigla CDF.


17  Em 2002, João Paulo II participou de sua última Jornada Mundial da Juventude em Toronto,
na qual compareceram cerca de meio milhão de pessoas. O evento foi criado por ele em 1985
com a finalidade de reunir a juventude católica mundial.
66 Histórias, narrativas e religiões
Paul Johnson, na sua História do Cristianismo, questionou: “a
expressão ‘declínio’ é apropriada? Se as proposições do cristianismo fo-
rem verdadeiras, o número dos que as reconhecem publicamente é de
pequena importância. (...) Em religião, os julgamentos quantitativos não
se aplicam” ( JOHNSON, 2001, 625); acostumamo-nos a entender a
religião como um fenômeno secundário na sociedade atual, a imaginar
as igrejas escassamente preenchidas de senhoras idosas, e que, portanto,
não há papel efetivo das crenças na vida política e econômica, mas inter-
romper este raciocínio em “impressões” pode ser um erro. Mario Curtis
Giordani observou que, “embora possa parecer, em uma visão rápida e
superficial, que a religião seja a grande ausência nos eventos mais im-
portantes, o sentimento religioso encontra-se muito vivo, apesar de não
aparecer sempre como tal” (GIORDANI, 2012, 939); seguiremos estas
considerações ao longo deste artigo procurando encontrar as motivações
da CDF, seus ecos e principais significados para melhor compreender as
relações entre catolicismo e política no começo do século XXI.

Análise da “Nota Doutrinal sobre algumas


questões relativas à participação e comportamento
dos católicos na vida política”

Na primeira parte do texto abordaremos exclusivamente o


conteúdo da Nota; atualmente podemos encontrá-la no site oficial do
Vaticano traduzida para nove idiomas, entre eles o português, e dividida
em quatro partes mais a conclusão. Das trinta e uma citações feitas ao
longo da Nota, quinze foram retiradas de textos do Concílio Vaticano
II e dez de documentos do Papa João Paulo II, como tentativa de de-
monstrar a atualidade das ideias transmitidas por ela, evitando citações
de encíclicas ou documentos eclesiásticos muito antigos.
A primeira parte da Nota, chamada “um ensinamento cons-
tante”, tinha o objetivo de justificar sua emissão e quais eram as preocu-

Histórias, narrativas e religiões 67


pações da Santa Sé com a temática. Após citar um trecho do processo
de canonização de São Tomás Morus, padroeiro dos políticos, que dizia
não ser possível “separar Deus do Homem, assim como a política e a
moral”, a CDF explicou:

Nestes últimos tempos, não raras vezes sob a pressão dos aconteci-
mentos, aparecem orientações ambíguas e posições discutíveis, que
tornam oportuna a clarificação de aspectos e dimensões importantes
da temática em questão. (CDF, 2002, I)

Talvez a dita “pressão dos acontecimentos” se refira àquele co-


meço de época cheio de incertezas e desafios que já se anunciavam após o
ataque às torres gêmeas no ano anterior. Mas vamos concentrar atenções
no que a Nota classificou de “orientações ambíguas” que preocupavam
a CDF, especificamente o chamado “relativismo cultural”. Na segunda
parte da Nota, chamada “alguns pontos fulcrais no atual debate cultural
e político”, a mais densa do documento, contrapõe-se a “lei moral na-
tural”, a qual seria uma condição indispensável para a democracia, ao
“pluralismo ético” gerado por um espírito relativista falso e prejudicial.
Segundo a CDF, a vida democrática tem “necessidade de bases verda-
deiras e sólidas”, sem as quais entraria, como está, em decadência. Para
tanto, era necessário o empenho dos católicos na política, não apenas
com o voto, mas compondo os quadros eleitorais, e estes tinham o dever
de cumprir “exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis”, a saber:
1. Defesa do embrião.
2. Promoção da família monogâmica formada “por pessoas de sexo di-
ferente”.
3. Proibição do reconhecimento legal de “outras formas de convivência”.
4. Liberdade de educação dos pais.
5. Combate a formas de escravidão como o uso de drogas e a “prostituição”.
6. Liberdade religiosa18.

18  O conceito de “liberdade religiosa” foi reformulado pelo Vaticano II da seguinte maneira:
“Todos os homens devem estar livres de coação, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos
sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja
forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em
privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além
68 Histórias, narrativas e religiões
7. Economia voltada para a pessoa e o bem comum.
8. Manutenção da paz.
Todas estas disposições, vale ressaltar, não são vistas pela CDF
como pura intervenção política, segundo a Nota a Igreja não poderia
“formular soluções concretas para questões temporais, mas deve pro-
nunciar juízos morais sobre realidades temporais” (CDF, 2002, II), ou
seja, tais orientações não seriam posturas políticas, mas condições para
que qualquer modelo político funcionasse adequadamente. A história
conturbada do século XX e o avanço da ciência corroborariam esta ne-
cessidade da ética e a falsidade do relativismo na qual a sociedade mo-
derna estaria imersa. A política, por possuir “valores absolutos próprios”,
não poderia, dessa forma, caminhar sozinha, necessitava de valores ex-
trapolíticos que viriam da religião.
Na terceira parte da Nota, “princípios da doutrina católica so-
bre laicidade e pluralismo”, o conceito de “laicidade” é abordado de acor-
do com a doutrina católica, que o definia como “autonomia da esfera
civil e política da religiosa e eclesiástica – mas não da moral (...), signi-
fica a atitude de quem respeita as verdades resultantes do conhecimento
natural que se tem do homem que vive em sociedade” (CDF, 2002, III),
e adiciona que isto “prescinde do ensinamento da Igreja”. Segundo a
Nota, os elementos que deveriam ser defendidos pelos políticos, citados
acima, não eram simplesmente questão de opinião religiosa ou apenas
doutrina católica, mas leis naturais que pautam e estão implícitas em
todos os homens, independentes, portanto, da Igreja. Nesse sentido, po-
demos compreender porque a Igreja não considerava estar exercendo
um poder político, tratava-se exclusivamente de um dever moral, campo
que a Igreja, inclusive, se auto-intitulara infalível19. Caso a religião con-
tinuasse sendo marginalizada, os “fundamentos espirituais e culturais da
civilização” seguiriam ameaçados.

disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa hu-
mana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer. Este direito da pessoa
humana à liberdade religiosa na ordem jurídica da sociedade deve ser de tal modo reconhecido
que se torne um direito civil”. Dignitatis Humanae, 2.
19  Capítulo IV da Constituição Dogmática Pastor Aeternus (1870): “Com a aprovação do
Sagrado Concílio [Vaticano I], ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que
o Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, (...) goza daquela infalibilidade com a qual Cristo
quis munir a sua Igreja quando define alguma doutrina sobre a fé e a moral”.
Histórias, narrativas e religiões 69
Na quarta e última parte da Nota, “considerações sobre aspec-
tos particulares”, a CDF censurou as associações e canais de comuni-
cação católicos que não assumiam claramente a moral e os princípios
éticos políticos defendidos pela Igreja. Destacou a necessidade urgente
de “apresentar em termos culturais modernos o fruto da herança espi-
ritual, intelectual e moral do catolicismo” o que, supostamente, evitaria
uma “diáspora cultural dos católicos” (CDF, 2002, IV). Nesta parte per-
cebemos também uma crítica à esquerda política, pois orienta a “recusar
as posições políticas e os comportamentos que se inspiram numa visão
utópica”; preocupado com a violência estatal muito presente ao longo
do século XX, Ratzinger certamente fez questão de condenar qualquer
impulso autoritário e desencorajar os católicos a apoiar possíveis inicia-
tivas desta natureza20. Com a palavra “utópico”, Ratzinger identificava
qualquer corrente ligada ao marxismo, portanto se tratava de uma crítica
quase direta aos partidos de inspiração comuno-socialista. Na conclusão
da Nota a CDF reforça a necessária coerência entre “fé e vida”, consi-
derando que a verdade e a liberdade se interdependem, caso contrário a
sociedade cairia no “libertinismo e individualismo”.
Podemos perceber várias concepções que a Igreja possui da so-
ciedade atual. A primeira, que salta às vistas, é a desconfiança da solidez
das democracias contemporâneas21, as quais não conseguiriam se manter
por si mesmas, precisando de um referencial externo para prosseguirem
sadias. A segunda são as proibições tácitas aos católicos de tomarem de-
terminadas posturas, como a defesa do aborto ou do casamento homoa-
fetivo. A terceira, aparentemente contraditória, de que apesar da religião
ser uma esfera distinta e obrigatoriamente separada da política, ambas
precisam estar relacionadas. Foi, de fato, uma “notável intervenção”, para
retomar a expressão utilizada por Coutrot, que consigo levanta algumas
questões: por que um documento desta natureza veio da CDF, que teo-
ricamente fiscaliza apenas controvérsias teológicas, e não do Pontifício
Conselho para os Leigos, órgão responsável por esse tipo de tema, mas

20  Falaremos especificamente do pensamento de Ratzinger na próxima parte do artigo.


21  É importante salientar que a Igreja demorou algumas décadas para aceitar a democracia
como sistema legítimo. A aprovação só se deu no pontificado de Pio XII. Conf.: SOFFIATTI,
Elza Cardoso. Igreja Católica, Política e Pio XII. Jundiaí: Paco Editorial, 2012. p. 124-128.
70 Histórias, narrativas e religiões
do qual foi apenas “ouvido o parecer”? Outra dúvida, mais simples, recai
sobre a data, por que o ano de 2002? Quais fatos fizeram com que Roma
reagisse através desta Nota? E um último problema, provavelmente de
caráter central, como a Igreja se atribui o dever moral sobre a política
sem, contudo, atribuir-se um papel político efetivo? Levantaremos al-
gumas hipóteses a seguir para esclarecer ou ao menos sugerir caminhos
que nos auxiliem nestas questões.

Aspectos do Pensamento Político de Joseph


Ratzinger na base da Nota Doutrinal

Na Introdução deste artigo falamos sobre a importância da fi-


gura de João Paulo II para a Igreja Católica em uma época difícil para
a instituição e como sua força moral pôde mantê-la apesar dos reveses.
Mas gostaríamos, neste momento, de falar de uma segunda figura cen-
tral para a Igreja que acompanhou João Paulo II ao longo de quase todo
o seu pontificado, Joseph Ratzinger. Conhecido pelo seu próprio pon-
tificado como Bento XVI, Ratzinger trabalhou durante vinte e quatro
anos (1981-2005) ao lado de Wojtyla. Se João Paulo II foi o coração da
Igreja nesse período, Ratzinger fora seu cérebro. Com dez doutorados
honoris causa entre 1984 e 2015 e cerca de seiscentos títulos publicados
em dezenas de idiomas, Ratzinger discutiu com grandes figuras, como
Habermas, deu uma série de entrevistas e ficou conhecido por sua argu-
mentação clara e serena. Era muito próximo de Wojtyla, tanto que ficou
conhecido como “Cardeal Blindado”, lembrando os tanques alemães da
Segunda Guerra, por um lado, mas também sua intangibilidade susten-
tada pelo Papa, por outro. Seu pensamento, certamente, moldou parte
das ações da Igreja ao longo de trinta e dois anos, vinte e quatro como
Cardeal Prefeito e oito como Papa, por isso acreditamos ser válida uma
breve análise sobre suas ideias quanto à relação entre Igreja e política22.

22  Faremos uma análise mais profunda sobre esse tema em um trabalho posterior.
Histórias, narrativas e religiões 71
O historiador e cientista político boliviano, Jorge Velarde
Rosso, analisou o texto de uma conferência concedida por Ratzinger
em 1984 durante um congresso realizado em Munique23. O artigo de
Velarde, Apuntes en torno al pensamiento político de Joseph Ratzinger, de-
monstrou que as análises de Ratzinger sobre a democracia tinham a
função de justificá-la enquanto sistema legítimo, ou seja, impedir que
os governantes ficassem livres da vontade popular; entretanto, procura-
vam também tratar dos seus limites, concentrados, sobretudo, no ethos
político baseado nas estruturas e não no indivíduo. Velarde apontou que
Ratzinger considerava como tarefa do Estado “mantener la convivencia
humana en orden, ‘es decir, crear un equilibrio entre libertad y bien que
permita a cada hombre llevar una vida humana digna’” (VELARDE,
2012, 206). A função do Estado, ou podemos dizer, o papel da política
seria tão somente manter a ordem, tudo o que ultrapassasse esse limite já
não era função do Estado e não estava mais sob a dinâmica da política,
mas dependeria de outras instâncias. Portanto, Ratzinger se colocava
contra qualquer manifestação de autoritarismo/totalitarismo político,
elementos que atingiram pessoalmente tanto a ele, em sua juventude,
quanto ao Papa Wojtyla atrás da cortina de ferro. Mas a democracia,
embora tivesse esse papel determinante de evitar os excessos de um go-
verno forte, possuía limites, e estes estão contidos no direito natural.
As democracias atuais possuem, como bem sabemos, muitas
falhas que nos causam repulsa. A quantidade vergonhosa de casos de
corrupção, a lentidão na tomada de decisões, a imensa burocracia e ine-
ficiência para solucionar problemas urgentes, etc. Tais problemas, se-
gundo Ratzinger, poderiam dar vazão ao ressurgimento de tendências
autoritárias ou a milenarismos24 prometendo soluções mais rápidas, sem,
contudo, comunicar o preço que cobrarão após ditas resoluções. Esse
perigo estava contido na crença de que as estruturas estatais precisavam
ser perfeitas, e que se haviam problemas, bastava aperfeiçoar as estru-

23  O título original da conferência pronunciada por Ratzinger é: Christliche Orientierung in


der pluralistische Demokratie? Ueber die Unverzichtbarkeit des Christenstums in der modernen Welt.
Tradução livre: “Orientação cristã na democracia pluralista? Quanto à indispensabilidade do
cristianismo no mundo moderno”.
24  Consideramos que seja uma referência à teologia da libertação latino-americana.
72 Histórias, narrativas e religiões
turas e, aos poucos, a sociedade conseguiria progredir. Mas, segundo
Ratzinger, “solo reconociendo que el Estado es imperfecto y que precisa
otras fuerzas que puedan complementarlo y proporcionarle las energías
morales necesarias que él no puede darse a sí mismo, es posible evitar la
degeneración de la democracia” (VELARDE, 2012, 210). Outra crítica
feita pelo cardeal era sobre o princípio democrático da maioria:

Por lo tanto, solo la mayoría puede ser instancia de legitimación, de


justicia, de verdad, ya que –supuestamente– cada libertad individual
autónoma decidiría qué es lo que ella considera correcto, bueno y
verdadero. (...) Pero todos sabemos que la mayoría puede equivo-
carse. La historia muestra claramente cómo también la democracia
necesita límites. (VELARDE, 2012, 209).

Por um lado, a Igreja seria a responsável por dar às democracias


ditas “energias morais necessárias” para que estas não percam seu senti-
do e se degenerem; por outro, fica claro que a Igreja, defensora do jusna-
turalismo, preocupa-se com os direitos do indivíduo perante eventuais
injustiças cometidas pela maioria democrática. Podemos acentuar que
Jesus Cristo foi condenado à crucifixão em um jogo de manipulação de
massas, em uma apelação democrática conduzida pelas autoridades ro-
manas e manipuladas pelo Sinédrio; não é sem razão que a Igreja tenha
tais ressalvas quanto ao funcionamento do regime democrático, bem
porque tal regime seria inaplicável na estrutura rigidamente hierárquica
e baseada na obediência da Igreja.
Essa dupla análise que Ratzinger faz das estruturas democráti-
cas em 1984 pode ser observada na Nota Doutrinal em 2002, portanto
foi sua forma de pensar, não uma demanda do Papa25 ou de outros órgãos
da Santa Sé, que estão na base da Nota. O interesse de Ratzinger pelo
tema também explica, em partes, porque foi a CDF e não o Pontifício
Conselho para os Leigos que emitiu um documento desta natureza.
Além da reflexão que ele já possuía sobre como deveria se estruturar
uma democracia, a questão política não foi considerada pela CDF como

25  João Paulo II já estava com a saúde muito debilitada em 2002, por isso acreditamos que não
tenha sido uma preocupação direta do Papa, mas do próprio Cardeal Ratzinger.
Histórias, narrativas e religiões 73
sendo assunto prático relativo aos leigos, mas sim uma postura moral
cristã, da qual a CDF, por encargo próprio, deveria se ocupar. Não pode-
mos deixar de citar que em 2002 o Pontifício Conselho para os Leigos
estava exclusivamente preocupado com a imensa carga de trabalho que
a Jornada Mundial da Juventude de Toronto demandava, a CDF tomou
a frente por todas essas razões.
Antes de prosseguirmos para a terceira parte deste artigo é
importante determinar os termos “utopia” e “milenarismo”, preocupa-
ções de Ratzinger expostas na Nota Doutrinal. O historiador e soci-
ólogo chileno, Fernando Mires, em seu artigo intitulado Cristianismo
y Marxismo según Joseph Ratzinger, abordou o tema, e dele podemos
destacar duas passagens fundamentais. A primeira, sobre a questão do
milenarismo diagnosticado no marxismo, próximo ao de Joaquim de
Fiore ou do zelotismo dos tempos neotestamentários, e que teriam re-
sultado na Teologia da Libertação:

La secularización de la idea del reino de Dios sobre la tierra es la


base de todas las utopías terrenales. Pero como este mundo no ofrece
demasiadas posibilidades para el pronto cumplimiento de esa utopía,
la deducción es simple: Este mundo debe ser radicalmente cambia-
do. La tarea del presente es modificar al mundo, es el mensaje de la
profecía zelota, del milenarismo de di Fiore, del marxismo, y de esa
pálida representación ecléctica de todo eso junto, que fue la teología
de la liberación. (MIRES, 2007, p. 9)

Na base deste pensamento se encontra aquela crítica à demo-


cracia sobre a crença da necessária perfeição das estruturas políticas, as
quais precisavam ceder lugar à aceitação de que tais organizações são e
sempre serão imperfeitas. Era uma crítica ao pensamento revolucioná-
rio. Em segundo lugar, a associação da esquerda política com o conceito
de utopia. Sabe-se que Marx e Engels negavam que o comuno-socia-
lismo fosse utópico, portanto os teólogos da libertação possuíam, teori-
camente, um referencial científico para basear sua teologia, mas Mires
demonstrou como Ratzinger ignorava esta postura:

El marxismo era lo que había llegado a ser y no lo que pudo haber


sido. Los proyectos de algunos teólogos de la liberación para “con-

74 Histórias, narrativas e religiões


vertir” al marxismo e integrarlo al interior de una perspectiva cris-
tiana, fueron en su mayoría de una muy precaria calidad intelectual,
y no sólo desde el punto de vista teológico, sino que del marxista
también. (MIRES, 2007, p. 5-6)

O marxismo foi condenado, pessoalmente, por Ratzinger em


seus escritos, e o fora novamente em 2002, em quaisquer denominações
políticas da atualidade. Tratava-se de utopismo, e a democracia não po-
deria subsistir a tal concepção.

Igreja Católica e Política: contexto histórico da


Nota Doutrinal e aparentes contradições

Para dar continuidade às questões levantadas na introdução,


procuramos responder quais foram as motivações para a publicação
da Nota em 2002. Por que neste e não em qualquer outro período?
Vimos que seu conteúdo está intimamente ligado ao pensamento de
Ratzinger, o qual desde a década de 1980 aborda tais temas de forma
muito semelhante da apresentada na Nota. É importante destacar que
essa influência direta de Ratzinger está vinculada não apenas à sua visão
política, mas também ao seu “projeto” de Igreja, que se manteve parcial-
mente coerente desde a década de 196026. Mas qual foi a preocupação
de Ratzinger em 2002?
1. Contexto Político: Certamente não poderemos dar respos-
tas definitivas, mas o contexto político da Europa em 2002 era muito
claro. Naquele ano entrou em vigor, em doze países da União Europeia,
o euro, um passo importante que demorou dez anos para ser dado, desde

26  Sobre o projeto ratzingeriano de Igreja falamos detalhadamente em um trabalho anterior,


onde expusemos outro documento da CDF, a Declaração Dominus Iesus (2000), também citada
no final da Nota Doutrinal. Conf.: MAMEDE, Bruno Fernandes. A Declaração Dominus
Iesus e a Visão de Joseph Ratzinger sobre a Crise da Igreja: Reação ou Afirmação?. Disponível
em: http://encontro2016.mg.anpuh.org/resources/anais/44/1467298765_ARQUIVO_
ADeclaracaoDominusIesuseaVisaodeJosephRatzingersobreaCrisedaIgreja.pdf.
Histórias, narrativas e religiões 75
a assinatura do Tratado de Maastricht (1992). O Vaticano, mesmo sem
ser membro da UE, também adotou a nova moeda devido a um con-
vênio assinado com o governo italiano em 2000. Com a adoção ficou
mais próximo um acontecimento importante para todos os europeus,
a aprovação do Tratado Constitucional da União Europeia ou apenas
Constituição Europeia, que seria assinada pelo Conselho Europeu em
2004. Para a Igreja Católica, a principal preocupação quanto a isto era:
as raízes cristãs da Europa serão citadas no preâmbulo da Constituição?
Para o Vaticano isto era fundamental, pois do contrário a Igreja não es-
taria presente como elemento indiscutível da cultura europeia. Cremos
que os trechos da Nota que se referem à necessidade de coerência entre
o “evangelho e a cultura” e que explicam a “condenação que a doutrina
católica faz do indiferentismo e do relativismo religioso”, deixando claro
que se existe alguma “igualdade” há entre indivíduos, não entre religiões,
fazem referência direta a este assunto. Também não podemos ignorar o
motivo de ser tão importante “apresentar em termos culturais modernos
o fruto da herança espiritual, intelectual e moral do catolicismo” de ma-
neira “extremamente urgente e inadiável” (CDF, 2002, IV), se era uma
incumbência tão imediata, podemos supor que não se tratava de uma
questão abstrata ou geral, mas específica e que se daria em um curto
espaço de tempo.
Após alguns meses de sua eleição papal, um ano depois da pri-
meira aprovação da Constituição Europeia e da confirmada ausência no
texto das suas “raízes cristãs”, Bento XVI discursou aos bispos reunidos
em Sínodo:

A tolerância que, por assim dizer, admite Deus como opinião parti-
cular, mas que lhe rejeita o domínio público, a realidade do mundo e
da nossa vida, não é tolerância, mas hipocrisia. (...) Tanto no Antigo
como no Novo Testamento, o Senhor anuncia o juízo à vinha infiel.
O juízo que Isaías previa realizou-se nas grandes guerras e exílios,
por obra dos Assírios e dos Babilônicos. O juízo anunciado pelo
Senhor Jesus refere-se sobretudo à destruição de Jerusalém no ano
70. Mas a ameaça de juízo diz respeito também a nós, à Igreja na
Europa, à Europa e ao Ocidente em geral. Com este Evangelho,
o Senhor brada também aos nossos ouvidos as palavras que, no

76 Histórias, narrativas e religiões


Apocalipse, dirigiu à Igreja de Éfeso: “Se não te arrependeres, virei
ter contigo e retirarei o teu candelabro da sua posição” (2, 5).27

São palavras fortes, que destoam da costumeira serenidade


de Ratzinger, mas que marcam exatamente a indignação sentida pela
Igreja. Não foi um recado discreto, mas direto, associando o desprezo
pela religião à possível destruição, a exemplo de Jerusalém no ano 70, da
Europa e de sua posição de liderança no mundo. Não se compreende o
teor da Nota Doutrinal sem considerar a importância que, em primeiro
lugar, a Europa tem para a Igreja, mesmo sem possuir a maioria dos
seus fiéis, atualmente concentrados na América Latina (embora não se
deva desprezar o crescimento do catolicismo nos Estados Unidos) e em
expansão na África e Ásia28.
Mas não só a Europa representava um problema para a Igreja
nesta época, as grandes nações católicas fora da Europa também pas-
savam por eleições presidenciais que sinalizavam a vitória de partidos
de esquerda. No Chile a vitória do Partido Socialista do Chile (PS)
em 2000, no Brasil a do Partido dos Trabalhadores (PT) em 2002, no
Equador a do Partido Sociedad Patriótica “21 de enero” (PSP) em 2002,
na Argentina a do Partido Justicialista (PJ) em 2003, no Paraguai a vitó-
ria de Óscar Nicanor Duarte Frutos, primeiro presidente paraguaio que
não professava a fé católica, em 2003, etc. Com algumas exceções, a es-
querda política latino-americana ganhou amplo espaço na região. O fe-
nômeno certamente chamou a atenção do Magistério da Igreja que não
tardou em responder como de costume. Ávida combatente da Teologia
da Libertação na década de 1980, a CDF de Ratzinger não descuidaria
de condenar, mesmo secundariamente, as “posições políticas inspiradas
em uma visão utópica”.
2. Apoliticidade da Igreja: o teórico do Direito e filóso-
fo Miguel Reale, em um texto publicado na Revista Estudos de Porto

27  Homilia do Papa Bento XVI na concelebração eucarística de abertura da XI Assembleia


Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos de 2 de outubro de 2005.
Disponível em: http://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/homilies/2005/documents/hf_
ben xvi_hom_20051002_opening-synod-bishops.html.
28  Conf.: JENKINS, Philip. A Próxima Cristandade: A chegada do cristianismo global. Trad.:
Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 2004. p. 115-148.
Histórias, narrativas e religiões 77
Alegre, classificou o cristianismo de “religião eminentemente apolítica”,
e que o “cristianismo veio ‘distinguir’ a religião da política” (REALE,
1945, 34). Segundo ele, a nova religião teria tirado o caráter divino do
Estado e centralizado a dinâmica social na Família, dando mais valor
ao Homem como indivíduo do que como membro da comunidade po-
lítica. A análise de Miguel Reale vai de encontro com o pensamento do
Magistério da Igreja29, que não se considera uma instituição de caráter
político ou capaz de exercer tal poder nas nações onde se encontra. Tal
conceito nos soa estranho, estamos acostumados a entender todas as
relações sociais como “políticas”, e a Igreja Católica, sendo um Estado
independente e tendo apoiado partidos políticos específicos ao redor do
Mundo, estabelecido o “padroado” com os países ibéricos, etc., parece
dissimular seu verdadeiro aspecto político por detrás do religioso; nossos
olhos estão treinados para ver assim, e é importante manter esta visão.
Contudo, não podemos deixar de considerar como a Igreja enxerga a si
mesma neste ponto, pois do contrário consideraríamos apenas a hipóte-
se de má-fé da instituição e não sua autocompreensão.
Cremos que o problema principal se encontra no conceito de
política considerado pela Igreja. A primeira distinção que precisamos
notar é quanto aos “juízos normativos” e os “juízos de fato”; a Igreja
costuma se atribuir o primeiro e não o segundo. O chileno José Miguel
Ibañez Langlois, membro da Academia de Ciências Sociais, Políticas e
Morais do Chile, explicou a diferença da seguinte maneira:

A Igreja não se engana quando estabelece as normas obrigatórias


do dever-ser – juízos normativos – num campo específico dos as-
suntos temporais. Mas pode errar na formulação de apreciações de
fato sobre uma situação concreta, por exemplo, se e até onde se vio-
lam num país os direitos humanos, (...) se este ou aquele aspecto da
política econômica de um governo é efetivamente assim ou assado.
(IBAÑEZ, 1987, 35)

A mesma ideia se encontra na Quadragesimo Anno de Pio XI,


onde lê-se que a Igreja poderia intervir nas coisas temporais, mas “não

29  Analisado na primeira parte do artigo onde tratamos da Nota Doutrinal.


78 Histórias, narrativas e religiões
nas coisas técnicas, para as quais não dispõe dos meios proporcionados
nem tem missão alguma, mas em tudo quanto afeta a moral” (PIO XI,
1931, n° 14). A “política”, para a Igreja, é o aspecto técnico, faz parte dos
“juízos de fato”, relaciona-se a tudo aquilo que é prático na sociedade,
enquanto a validade moral destas técnicas, a interpretação dos “fatos” e
a teoria que preenche de conteúdo as atividades práticas, seriam o cam-
po de atuação da Igreja. A “política” seria parte das estruturas sociais,
enquanto a Igreja teria como preocupação o indivíduo e a Família. Ou
seja, quando a Igreja emite “juízos sobre assuntos políticos [é] porque o
destino do homem se realiza também através da política”, mas isso não
significa que ela julgue “tais matérias com critérios políticos, mas em
nome da lei de Deus” (IBAÑEZ, 1987, 24).
O dualismo César/Deus inserido por Jesus30 criou uma dis-
tensão fundamental entre religião e política na mentalidade cristã.
Podemos analisá-la em períodos diversos da História, desde os evan-
gelhos e da “Cidade de Deus” de Agostinho, até os nossos dias em do-
cumentos como a referida Nota Doutrinal. O que é mais importante
depreender desta exposição é que a Igreja não observa seus próprios
atos como “políticos”, pois não pretende mudar as estruturas e sim as
pessoas, convertê-las para que estas, assumindo um novo estilo de vida,
aperfeiçoem as estruturas sociais segundo o modelo cristão. A atividade
política não se relacionaria, portanto, com as ações da Igreja hierárquica,
mas apenas com os leigos, únicos responsáveis pela ação política direta
inspirada na moral cristã. Compreende-se, ao menos parcialmente, por-
que a CDF, guardiã da Fé cristã, pôde naturalmente indicar aos cristãos
(leigos) como deveriam atuar na política; não era uma influência direta
na dinâmica política, mas uma tentativa de afirmar a postura cristã assu-
mida por determinados políticos ditos cristãos, e estimular os cidadãos
católicos que participam de eleições democráticas a cumprirem seus pa-
péis de leigos cristãos, papel que a Hierarquia não poderia cumprir.

30  “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22: 21).
Histórias, narrativas e religiões 79
Conclusões

Gostaríamos de concluir esta reflexão procurando responder à


última questão levantada na Introdução: podemos falar, sem margem de
dúvidas, de um declínio da Igreja Católica na transição deste século? A
Igreja considera estar em “decadência”?
Poderíamos, ao invés disso, falar com mais propriedade de uma
“crise”, que não conduziu a instituição ao declínio, mas sim a uma trans-
formação, cuja análise demandaria outro trabalho. É verdade que a di-
minuição da frequência à missa, bem como aos outros sacramentos, a re-
lativização da moral sexual, a queda do número das vocações religiosas,
a prática do divórcio, etc., fazem crer uma decadência do catolicismo;
e podemos afirmar que se trata do “declínio” de um tipo de catolicis-
mo sustentado até meados do século XIX, mas deixado aos poucos ao
longo destas décadas. Entretanto, os elementos acima não impediram
que Vargas Llosa, após analisar os escândalos protagonizados por padres
pedófilos no começo do século XXI, considerasse que “as dificuldades
aguçaram a energia e a militância dos católicos, que nunca estiveram tão
ativos em suas campanhas sociais” e que “o poder político e social, exer-
cido na maior parte dos países latino-americanos pela Igreja Católica,
continua incólume” (VARGAS, 2012, 146). Isto nos faz perceber que a
ausência dos sacramentos e a violação parcial da moral católica não im-
pedem que parte considerável dos que se sentem vinculados, de alguma
maneira, à religião, militem a seu favor em determinados casos, como a
instituição do ensino religioso, campanhas contra o aborto ou partici-
pando de eventos como as jornadas mundiais da juventude.
A Nota Doutrinal da CDF, documento de conteúdo impalatá-
vel a muitos de nós, em suas entrelinhas e contextos, mostrou-nos bem
mais do que suas poucas páginas e suas ideias aparentemente estreitas
tencionavam. Acreditamos que uma análise sistemática das alocuções
do Magistério, trabalho escassamente realizado, poderia revelar aspectos
interessantes e hipóteses mais sólidas sobre as relações entre Igreja e
política na história recente.

80 Histórias, narrativas e religiões


Referências Bibliográficas

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tões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política. Disponível em:

http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_
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Porto Alegre, n° 3-4, p. 28-55. Ano V, julho-dezembro, 1945.

VARGAS Llosa, Mario. A Civilização do Espetáculo. Trad.: Ivone Benedetti. Rio de Janeiro:
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VELARDE Rosso, J. E. (2012). Apuntes en torno al pensamiento político de Joseph Ratzinger.


Prudentia Iuris, 73. Disponível em: http://bibliotecadigital.uca.edu.ar/repositorio/revistas/
apuntes-torno-pensamiento-politico.pdf. Acesso: março/2017.

Histórias, narrativas e religiões 81


Restauração Franciscana e Política.
(Pernambuco, 1890-1920)

Dirceu Marroquim (Prefeitura da Cidade do Recife)

Resumo: No final do século XIX a ordem franciscana no Brasil, como


diversas outras, passava por um momento de declínio. Em Pernambuco,
este período foi traduzido no diminuto quantitativo frades que habi-
tam os conventos, os quais, por sua vez, estavam em estado de ruina
(BALHMAN, 1992). Nesse cenário, a Província da Saxônia do Norte
foi designada para enviar frades e noviços para povoar a Província de
Santo Antônio do Brasil, que abrangia os estados do Nordeste, exceto
o Maranhão e o Piauí. Este texto tem como objetivo discutir a inserção
desses sacerdotes no universo político pernambucano, buscando com-
preender dentro de uma perspectiva da história cultural das religiões, as
relações entre religião e política, percebendo os relatos dentro dos seus
espaços discursivos. Como fontes serão utilizadas correspondências dos
frades existentes no arquivo da Província, assim como uma análise do
Livro de Crônicas do Convento de Santo Antônio do Recife.

82 Histórias, narrativas e religiões


Em meio a Correspondências e
Discursos: as reflexões do padre Helder
Pessoa Câmara no combate à influência
do comunismo entre os operários
(1930-1937)

Márcio André Martins de Moraes (Doutorado – USP)

Resumo: Para essa comunicação, propomos discutir a atuação e a pro-


dução intelectual do padre Helder Pessoa Câmara em relação à forma-
ção intelectual e arregimentação de leigos e religiosos para o enfrenta-
mento da influência do pensamento comunista sobre os sindicatos de
trabalhadores brasileiros, entre as décadas de 1930 e 1937. Desse modo,
abordaremos com essa temática os artigos escritos pelo referido sacer-
dote e suas correspondências com alguns amigos, principalmente, os in-
telectuais católicos Alceu Amoroso Lima e Tenente Severino Sombra.
Ao mesmo tempo em que buscaremos discutir como essas cartas e tex-
tos do padre Helder dialogavam com o cenário político brasileiro e com
as ideias defendidas pela Igreja Católica a partir das Encíclicas papais
Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931).

Palavras-chave: Helder Câmara, Intelectual, Católico, sindicatos, tra-


balhadores.

1. Introdução

No decorrer deste texto discutiremos a escrita pessoal e a pro-


dução intelectual do então padre Hélder Pessoa Câmara no decorrer da

Histórias, narrativas e religiões 83


década de 1930, principalmente no que concerne a temática do antico-
munismo e de sua concepção do lugar que a Igreja Católica Apostólica
Romana (ICAR) deveria ocupar entre os trabalhadores brasileiros.
Nesse processo, abordaremos a atividade deste religioso em um fenô-
meno singular, que foi a articulação de organizações políticas distintas
– que apresentaremos no decorrer do artigo – em torno de uma proposta
de sindicalização a partir de um viés católico.
No entanto, como já alertou Pierre Bourdieu (2006), ao tratar
de uma história de vida, devemos ter cuidado com a “ilusão biográfica”,
que muitas vezes o uso do nome próprio do sujeito pesquisado, as re-
lações pessoais e profissionais que manteve durante a vida, podem dar
uma falsa impressão de continuidade e linearidade a narrativa biográfica
ou autobiográfica de uma determinada personagem. Desse modo, bus-
caremos discutir a produção da escrita pessoal, intelectual e a atuação
político-doutrinária do padre Helder Câmara a partir de um esforço
metodológico de compreender o momento de sua produção, os espaços
de circulações, os meios de divulgação e a recepção de seus interlocuto-
res e opositores.
O processo de reflexão e discussão sobre a referida proposta
se deu na análise de periódicos que receberam contribuições do padre
Hélder Câmara ou que relataram suas atividades junto à classe trabalha-
dora. No caso, selecionamos: A Razão e o Legionario, que circulavam no
Ceará; o Diário de Pernambuco e os periódicos cariocas A Ordem, A Cruz e
A Offensiva, que era o jornal oficial da Ação Integralista Brasileira (AIB).31
Essa produção em periódicos será confrontada a correspon-
dência pessoal do padre Helder Câmara com o leigo Católico Alceu
Amoroso Lima, conhecido também como Tristão de Athaide. Essas
cartas, que correspondem aos anos de 1929 a 1980, pelo menos são essas
que estão à disposição no acervo do Centro Alceu Amoroso Lima pela
Liberdade (CAALL).32 No momento, as cartas recebidas por Helder

31  Destacamos que escolhemos atualizar a escrita das fontes documentais apresentadas no
decorrer do texto, mas sem alterar o conteúdo e forma dos textos.
32  O site Alceu Amoroso Lima pela Liberdade (CAALL) disponibiliza online as
correspondências passivas e ativas do referido intelectual, estando entre elas às cartas trocadas
com Helder Pessoa Câmara entre os anos de 1929 a 1980. (Cf.: http://www.alceuamorosolima.
com.br/ ). Estas mesmas cartas foram publicadas pela Editora Reflexão sob a organização de
Maria de Fátima Moraes Agon e colaboração de outros estudiosos do tema. (Cf.: AGON, 2016)
84 Histórias, narrativas e religiões
encontram-se no processo de catalogação e por esse motivo inacessível
no Centro de Documentação Helder Câmara do Instituto Dom Helder
Câmara (CEDOHC IDHeC).
Dessa forma, partindo da análise das fontes citadas ante-
riormente, juntamente com documentos oficiais da ICAR, como as
Encíclicas papais Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931),
buscaremos discutir os sentidos, mecanismos e condições em que o pa-
dre Hélder Câmara procurou agir no combate as supostas ameaças co-
munistas sobre os trabalhadores brasileiros.

2. Os amigos, a ordenação, as primeiras


responsabilidades e os conflitos

Em 16 de agosto de 1930, ainda aos 22 anos de idade, por meio


da Vita et Moribus, a permissão especial do Vaticano por não ter ainda a
idade mínima para ser ordenado, o cearense Hélder Pessoa Câmara tor-
nava-se sacerdote da ICAR (Cf.: PILETTE, 2008, 85-86). Sob a coor-
denação da Arquidiocese de Fortaleza, administrada pelo Dom Manoel,
o jovem padre foi escolhido em meio a sua turma de recém-ordenados
a ficar na capital do Estado e desenvolver um trabalho de ação social
e político sem as obrigações e demandas que a administração de uma
paróquia exigia.
Por intermédio do Ten. Sombra, no decorrer de 1929, Hélder
Câmara começou uma troca de correspondências com um dos princi-
pais nomes entre os intelectuais católicos brasileiros33 na época, no caso,
o líder leigo do Centro Dom Vital e da revista A Ordem, Alceu Amoroso
Lima, – sucessor de Jackson Figueiredo nos órgãos citados anterior-

33  Consideramos intelectuais católicos os homens que dedicaram parte de suas vidas a reflexão
e defesa dos preceitos católicos. No caso específico deste momento histórico a qual analisamos,
parte considerável desses intelectuais católicos acabaram defendendo preceitos mais conservadores
e, muitas vezes em nome da defesa da fé, alinharam-se a grupos de extra-direita, como no caso da
Ação Integralista Brasileira. Sobre os intelectuais católicos ver: MOURA, 2015
Histórias, narrativas e religiões 85
mente e um dos homens de confiança do Cardeal Dom Sebastião Leme
– era também conhecido pelo uso do pseudônimo de Tristão de Ataíde.
Ainda como seminarista, em uma das primeiras cartas enviadas ao seu
famoso correspondente comentou:

L[ouvado] J[esus] C[risto]


3ª carta
1929
Meu prezado e ilustre amigo
Senhor. Tristão de Athayde
Apresso-me em escrever-lhe para vencer um mau pensamento, ou
antes um mau desejo em relação ao senhor. Não pense que eu estou
com pedantismo senhor Tristão – pensei em esconder-me, em fugir
do senhor, ao ver o último número de A Ordem.
Vi tanta erudição no seu artigo e nos seus companheiros, que estou
acanhando de mim mesmo, do meu atraso, de minha falta de cultura.
Devia ir estudar três vezes mais para depois aparecer. Foi um mau
pensamento. E para vencê-lo, venho atirar-me em seus braços com o
abandono duma criança. Eu não sei nada, senhor Tristão?
Em relação ao tomismo, que eu julgava ser o meu forte, vejo que
apenas tenho uma basezinha do próprio Stº. Thomaz. Não sei nada
de todas estas escolas neokantista a que aludiram o senhor e o se-
nhor Padre Leonel (É verdade que isto não é tomismo – mas é um
movimento importante que se aproxima de nós). Ouvi falar pela pri-
meira vez agora no livro di senhor [Inbyra]. Nem sabia da existência
de (não sei mais do nome – entreguei a revista ao Sombra [inelegí-
vel], não é?)
– E mesmo sem chegar até ao senhor e ao senhor Padre Leonel,
que erudição a dos Senhores. L. Delgado e Nelson Romero!... Mas
não quero, <não quero>34 fugir dos senhores porque sou atrasado.
E peço que vocês não me desprezem também. Vou redobrar de es-
forços. Estudar duas vezes mais. É verdade que eu não conto com
o inglês e o alemão. Mas enfim... Tenho pena do senhor não me
dar uma palavrinha de direção. Também avalio as suas ocupações!
Mas veja, por bondade! Veja, se sem possuir o movimento moderno,
posso continuar com a minha luta, com o meu sonho em filosofia –

34  Seguimos a estratégia do livro organizado por Argon (2016), em que: “As entrelinhas e as
notas marginais foram inseridas no texto em seu devido lugar, entre barras oblíquas opostas
<...>.” (ARGON, 2016, 22)
86 Histórias, narrativas e religiões
<com> o meu “Dr. Farias Brito a Maritain”. Creio que tenho uma
qualidade talvez aproveitável. Acostumei-me, repassando a filosofia
e o dogma com companheiros mais fracos, acostumei-me a baixar, a
traduzir os assuntos difíceis. De outra parte, como o senhor sabe, há
muito venho estudando F. Brito. E estou convencido de que será um
bom meio de introduzir a escolástica a partir do nosso Farias. (Carta
de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1929. Apud ARGON,
2016, 63-65)

Além da admiração aos nomes daqueles que contribuíam com


a revista A Ordem, o jovem seminarista já indicava uma tendência para
os estudos e uma necessidade de reconhecimento por parte do interlo-
cutor leigo, que no decorrer dos anos 1930 foi cada vez mais assumindo,
na escrita do padre Hélder, o papel de um diretor espiritual e um líder
político. Infelizmente, por não ter acesso às respostas por meio das car-
tas escritas por Alceu Amoroso, não temos como analisar a sua recep-
ção a tais referências. Mas supomos que pela recorrência no decorrer da
década de 1930, que o mesmo não repreendia o sacerdote em questão
por apresentar o nome do leigo carioca como chefe dos movimentos
políticos no Ceará.
Os tenentes Severino Sombra e o Jeová Mota assumiam
um papel importante nesse momento junto aos trabalhos do Helder
Câmara, que chegou a narrar a presença de ambos na sua primeira mis-
sa da seguinte forma em carta a Alceu: “Sou padre, querido amigo! que
felicidade! Como o homem não se aniquila recebendo o sacerdócio!
Quantas sensações fortíssimas para o coração sensível do seu amigui-
nho, que chora como uma criança de emoção” (Carta de Helder Câmara
a Alceu Amoroso Lima, 1931. Apud ARGON, 2016, 90). Comentando
no decorrer das páginas

E a minha 1ª missa ajudada pelo Sombra e o Jehovah (2 tenetes do


nosso exercito!). Tinha oferecido ao Bom Deus o sacrifício de orde-
nar-se longe dos meus tenentes. Espalharam-se tanto! O Sombra
para o Passo Fundo... Revolução... Balburdia... Rio... Bahia...
Ultimamente Piauí... e Jesus, carinhosamente, os juntou nas vésperas
do dia 15, contentando-se com a oferta do senhor. Isaac. Ah! nossa
comoção ao alternar com eles o salmo [ilegível].
Histórias, narrativas e religiões 87
O meu 1º Gloria in excelsis! Minha consagração! E o beija-mão
soleníssimo, no qual desfaleci, precisando que os meus tenentes sus-
tentassem os meus braços, numa posição que eu queria ter fotogra-
fado para mandar para o Senhor!
E o gosto de celebrar todos os dias! Muita comoção (quantas vezes
já falei em comoção?) ao fazer meu 1º batismo! E hoje meu 1º casa-
mento, muitas primeiras Confissões!...
Perdoe-me, Dr. Tristão, tantos pormenores. Acostumei-me a der-
ramar no seu coração e no do Sombra todos os grandes sentidos
de muita alma. Seu movimento é vitalista de verdade. Nele quem é
chefe, pesa realmente na vida de todos os membros de modo que
não se concebe a menor alegria ou tristeza em qualquer deles, sem
repercussão imediata na inteligência e no coração de Deus, sem uma
santa comunhão dos santos entre todos os do D. Vital.
Receba em 1º lugar e acima de todos os extravasamentos das pie-
dosas comoções do meu sacerdócio. E em seguida por saudade,
transmita aos nossos companheiros meu reconhecimento e muitas
emoções. (Ibid, 91-93)

Nessa citação, encontramos a importância dos laços de amizade


nas atividades políticas e religiosas, como tratou a historiadora Giselda
Brito Silva no texto O Recife entre a amizade e a política, quando mapeou
como as relações entre famílias e pessoas contribuíram na divulgação e
defesa de pensamento conservador no início do século XX, tratando espe-
cificamente do caso de Pernambuco. Além da importância dos dois leigos
que estavam como acólitos em sua missa – estavam no altar, pois o próprio
sacerdote diz que eles tiveram que ajudar o novo ordenado na ora do seu
primeiro Gloria in excelsis – observa-se o reconhecimento do Ten. Sombra
como uma liderança política que ele estava disposto a seguir.
Como sacerdote e ativista político, o referido sacerdote ocu-
pou lugar de liderança junto a Legião Cearense do Trabalho (LCT),
movimento criado e coordenado pelos ten. Severino Sombra e, poste-
riormente, pelo ten. Jeová Mota, amigos próximo a ele. Nesse mesmo
cenário político e religioso, tornou-se também o chefe da Juventude
Operária Católica ( JOC), mestre de campo da Ação Integralista
Brasileira (AIB) e chefe da Liga Eleitoral Católica (LEC), como ve-
remos a partir deste momento.
88 Histórias, narrativas e religiões
3. Sindicalismo aos moldes Católicos: LCT, JOC,
AIB e LEC no combate a ameaça comunista ao
trabalhador brasileiro

O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são


inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os
ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obs-
tinado. Isto é uma aberração tal, que é necessário colocar a verda-
de numa doutrina contrariamente oposta, porque, assim como no
corpo humano os membros, apesar da sua diversidade, se adaptam
maravilhosamente uns aos outros, de modo que formam um todo
exatamente proporcionado e que se poderá chamar simétrico, assim
também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela nature-
za a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mutuamente
em perfeito equilíbrio. Elas têm imperiosa necessidade uma da ou-
tra: não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.
(LEÃO XIII, 1891, 8)

As encíclicas da Rerum Novarum (1891) de Leão XIII e a


Quadragesimo Anno (1931) de Pio XI, foram nesse momento textos de
grande importância para Igreja Católica no final do século XIX e início
XX, dando um norte aos religiosos e leigos frente a como atuar junto aos
trabalhadores, que estariam influenciados por grupos de tendências de
esquerda, com forte influência do socialismo, ou sob o estabelecimento
de um liberalismo econômico no mundo ocidental. Esses documentos
da ICAR ocuparam da mesma forma forte influência sobre os escritos e
discursos do então padre Helder Câmara, que os utilizaram como base
legitimadora de seus argumentos na construção discursiva de um cená-
rio político e social marcado por uma suposta ameaça de forças exóticas
e perniciosas, no caso, o comunismo e pensamentos congêneres.
Nas atividades sacerdotais e nas reuniões sindicais, em vá-
rias cidades do Ceará, quando atuava como representante eclesiástico,
Helder Câmara acompanhava e participava do processo de criação do
que seria a Legião Cearense do Trabalho, como se percebe no trecho de
sua carta a Alceu Amoroso Lima:
Histórias, narrativas e religiões 89
Meu querido Dr. Tristão
Graças a Deus, o Sombra, ontem, não teve tempo de lhe mandar, por
avião, os jornais da terra e eu posso dar-lhe, em primeira, mais notí-
cias sobre o nosso querido amigo. Avalie quantas conferências ele fez
em 36 horas?... 5! Nem mais nem menos... Cinco conferencias. O
senhor verá pelos jornais. Ele falou, sábado à noite, pelo rádio, para
a Praça da Ferreira, que se encheu para o ouvir (Agora todos os sá-
bado temos o microfone da terra à nossa disposição). Falava sobre a
Constituinte e a Realidade Brasileira como o senhor haveria de falar.
Firmeza, espírito católico, visão clara e muito ardor. Palavras sadias
necessárias ao povo que só estava ouvindo chocarrices de Leonardo
Motta e declamadores assim. Foi a primeira falação. Domingo, du-
rante o dia, fez 3 conferência em associações de classes, propondo
abertamente o maior dos nossos sonhos de agora: a Legião Cearense
do Trabalho, para uso interno, os terríveis “Blusas mesclas”.
[...]
Recebemos suas cartinhas – incentivos para nós! Em toda parte,
todos ficam sabendo que o senhor é nosso chefe. Arranjamos um
jeitinho de falar no Jackson e no “Tristão de Athayde.” (Carta de
Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931. Apud ARGON,
2016, 78-80)

Em outra correspondência, agora um telegrafo também de


1931, Helder noticiou ao seu famoso interlocutor:35

Em plena atividade, Dr. Tristão chefe do chefe jocista, considere


para todos os efeitos CHEFE da J.O.C do Ceará!
Um grande abraço
de seu irmão em N.S.
Pe. Helder (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931)

Nessas duas citações encontramos alguns pontos que precisam


ser retomados em nossa análise. No primeiro documento, observa-se a
admiração pelo trabalho do Ten. Severino Sombra, que despontava como
um líder do que já foi apresentado antecipadamente como a Legião

35  Esse telégrafo não compõe o livro: Catálogo da Correspondência: entre Alceu Amoroso Lima
e Dom Hélder Câmara (1929-1980). (Cf. ARGON, 2016). No entanto, a mesma pode ser
encontrada no site da CAALL. Cf.: HTTP://www.alceuamorosolima.com.br/
90 Histórias, narrativas e religiões
Cearense do Trabalho (LCT). Além disso, liderança do Ten. Sombra
foi discutida por Hélder em outras cartas e em artigos de periódicos
cearenses dentre de um cenário de incertezas de uma nova Constituinte
e de qual seria o lugar da Igreja Católica dentro dessa nova realidade
política do Brasil, isso depois do golpe de 1930 que colocou Getúlio
Vargas na presidência do país.36 Na biografia Dom Hélder Câmara, o pro-
feta da paz, escrita por Nelson Piletti e Walter Praxedes, comenta que já
em sua criação, a LCT conseguiu 9 mil adeptos e esse número cresceu
em alguns meses para 15 membros. Isso em uma cidade como Fortaleza
com aproximadamente, em 1930, com 117.452 habitantes. (PILETTI,
2008, 87-88)
Somando-se a isso, observam-se tanto no trecho da carta an-
terior, como na mensagem enviada pelos telégrafos, ambas para Alceu
Amoroso Lima, que este intelectual carioca é correntemente apresentado
pelo padre Helder como o chefe dessas mobilizações. Essa estratégia do
referido sacerdote e de seus correligionários, poderia tanto ter um lado de
reconhecimento do trabalho e importância do líder do Centro Dom Vital
e da revista A Ordem, como também o desejo de se criar um efeito de
legitimidade e amplitude de que a LCT e da JOC iriam além do Estado
do Ceará nas empreitadas político-religiosas. No entanto, lembramos ao
leitor, que por não termos acesso as respostas de Alceu Amoroso Lima ao
então padre Hélder, não sabemos como ele recebia essas informações de
esta sendo apresentado como líder dessas empreitadas.
A LCT e a JOC, principalmente por causa da interferência de
Helder Câmara, confundiam-se em suas atividades e postulados doutri-
nários. Como se ver no trecho do seguinte artigo de jornal:

Merece uma palavra especial, neste registro, essa obra gigantesca


que é o jocismo. Fruto da inteligência e combatividade incomuns
do padre Helder Camara (Missionário do Trabalho) e da dedicação
de um grupo de estudantes, o Jocismo vem realizando nesta cida-
de um trabalho que só o futuro poderá atestar a sua grandiosidade.
Atualmente, congrega nas suas escolas e núcleos de diversão espa-

36  Mesmo não sendo o objetivo principal, em nossa dissertação indicamos os impactos do
golpe de 1930 no Nordeste. Cf.: MORAES, 2012.
Histórias, narrativas e religiões 91
lhados pelas areias de Fortaleza, alguns milhares de crianças pobres,
preparando-as para as vanguardas legionárias. (LEGIONÁRIO,
01.05.1933, 7-8)

As atividades na organização de escolas, no total de nove em


1933, as reuniões e as palestras, transformaram o padre Helder em uma
referência política no Estado do Ceará e constante tema de notícias dos
periódicos locais. Como no caso do texto abaixo:

O Dia do Trabalho e as comemorações da Legião

[...]
Ao Evangelho, falou o revmo. Padre num grandioso sermão
cívico dirigido aos legionários que o ouviram comovidos e de
certo cheios de fé e entusiasmo. O padre Helder Câmara, mis-
sionário do Trabalho, em palavras arrebatadoras, mostrou aos
legionários o significado daquele dia, a grandeza da Legião
e a sua força e coesão, juntamente como o valor do operário
cearense que, honesto e disciplinado, dentro da Legião, na luta
pelos seus direitos contra o capitalismo e contra o comunismo
estava apto para forma a grandeza da Pátria pela vitoria dos
seus ideais!
Disse da satisfação de ser missionário do Trabalho, isto é, pa-
dre do operariado, batina sacerdotal no estudo das questões
sociais, influindo nos meios operários, orientando o operaria-
do no caminho do bem e da verdade, lutando pela Pátria e por
Deus!
As palavras sinceras e fervorosas do jovem sacerdote, missio-
nário do Trabalho, encheram de entusiasmo e alegria os cora-
ções dos legionários que aliaram ao fervor religioso o senti-
mento de civismo. Por Deus e pela Pátria! (LEGIONARIO,
06.05.1933, 2)

Em outro momento, falando sobre as atividades do referido pa-


dre, que começa a ser chamado nos periódicos locais como o Missionário
do Trabalho, o jornal Legionario comentou:

O Ideal Legionário despertando a mulher operaria – O padre Helder


Câmara à frente do grande movimento de sindicalização

92 Histórias, narrativas e religiões


Iniciou-se em Fortaleza um movimento amplicissimo de sindicali-
zação feminina, que se estenderá a todas as classes de operarias de
nossa terra.
De inicio serão sindicalizadas as lavadeiras e engomadeiras, as do-
mesticas, (copeiras, amas e cozinheiras) e renderias.
Tem havido nos vários bairros da capital reuniões necessárias de or-
ganização de núcleos e sub-núcleos destes sindicatos.
Em todas essas reuniões, se tem feito ouvir a palavra entusiástica do
revdmo. Padre Helder Camara, concitando às nossa dignas com-
panheiras a se organizarem, afim de melhor e mais eficientemente
defendem os seus direitos.
O movimento é católico e legionário, como é o jocismo, e por isso
mesmo está fadado a empolgar, em breves dias, às operarias em ge-
ral, que à semelhança dos operários, irão ter os seus sindicatos onde
serão ventilados os assuntos do seu interesse. (LEGIONARIO,
13.05.1933, 5)

A partir da concepção de enfrentamento ao comunismo e de


uma aplicação de uma conciliação entre trabalhadores e patrões, segun-
do uma interpretação das encíclicas papais já citadas neste texto, o Pe.
Helder articulou a criação da Sindicalização Operária Católica Feminina,
que abarcava mulheres que trabalhavam como lavadeiras, engomadei-
ras, domésticas (copeiras, amas e cozinheiras) e rendeiras. Mesmo sendo
um sindicato voltado a representar mulheres trabalhadoras, era o padre
Helder o presidente e aquele que coordenava as atividades e reivindica-
ções da organização.
Os patrões não receberam bem essa organização e acusaram o
padre Helder exibicionismo de articular uma cisão entre trabalhadores
e patrões. O sacerdote ainda tentou organizar um evento de conciliação,
em que pretendia dizer que estava organizando um sindicado a partir de
uma orientação católica de conciliação, como ensina as encíclicas papais
de Leão XIII e Pio XI. No entanto, a elite da cidade não compareceu ao
encontro, frustrando assim a tentativa de explicação do sacerdote. (Cf.:
PILETTE, 2008, 89-90)
As expectativas em torno da LCT eram grandes, principal-
mente por causa de sua articulação com a JOC, como já citamos. Porém,
o exílio do Ten. Severino Sombra em 1932 para Portugal – considerado
Histórias, narrativas e religiões 93
subversivo pelo governo Vargas que começava a enfrentar a Revolução
Constitucionalista em São Paulo – o padre Helder juntamente com
Ubirajara Índio do Ceará e o então capitão Jeová Mota, assumiram um
triunvirato para coordenar a Legião. Nesse período, o Helder Câmara
e outros legionários, como o Mota, entraram na Ação Integralista
Brasileira (AIB) e procuraram também fundir os dois movimentos em
uma mesma perspectiva, como se ver no trecho a seguir:

Entre os que nos lêem, hoje, está a figura respeitável do chefe supre-
mo da nossa cruzada: - Plínio Salgado!
No Ceará, o Integralismo está organizado e representado pela
Legião Cearense do Trabalho!
Os operários desta província são soldados fieis e disciplinados da
Legião Integralista!
Não vos esqueçais jamais desta verdade!
Velai contra as maquinações que se organizam contra a Legião, por-
que os que a combatem ao Integralismo dão guerra! Aproveitai em
favor do movimento que dirigis, esta força que aqui está aquartelada!
Vede-a como talvez o maior núcleo Integralista do país!
E, saudando-vos, em vossa visita à nossa terra, o fazemos em nome
dessas duas forças irmãs:
Legião e Integralismo. (LEGIONÁRIO, 12.08.1933, 1)

Importante ressaltar que o integralismo foi criado e liderado


pelo intelectual paulista Plínio Salgado. Com o lançamento do Manifesto
de Outubro de 1932, no teatro Municipal de São Paulo, Salgado iniciou
as atividades da organização política que se tornaria a primeiro partido
político de amplitude nacional no Brasil. A AIB defensor de um forte
nacionalismo, ao estilo de movimentos europeus como o salazarismo
português e fascismo italiano, e do pensamento cristão, principalmente
de matriz católica. Os camisas-verdes – como eram chamados por causa
da farda verde oliva dos militantes integralistas – resumiam sua doutrina
no lema: Deus, Pátria e Família. (Cf.: MORAES, 2012)
A participação no integralismo levou o padre Helder inicial-
mente a um reconhecimento em outros estados do Nordeste e poste-
riormente como um dos principais nomes do quadro dos camisas-ver-

94 Histórias, narrativas e religiões


des. Como o grande comício formado em Pernambuco para recebê-lo
em 1934 (DIARIO DE PERNAMBUCO, 1934). Ao mesmo tempo,
em que as forças políticas se uniam no Ceará sob a influência do referido
religioso, no caso, a JOC, LCT e agora a AIB, o tenente Sombra colo-
cava-se como opositor e não reconhecia a liderança de Plínio Salgado
como um chefe nacional incontestável, como estabelecia a doutrina in-
tegralista. As diferenças políticas levaram Hélder Câmara e Severino
Sombra a romperem relações e tornarem-se inimigos com trocas de
acusações que levaram a expulsão do tenente da LCT.
Em 1932, o cardeal Dom Sebastião Leme, arcebispo do Rio
de Janeiro, articulação da Liga Eleitoral Católico (LEC). Esse órgão,
coordenado nacionalmente por Alceu Amoroso Lima, tinha como es-
copo indicar aos eleitores católicos os candidatos que estavam dispostos
a defender os preceitos e interesses da Igreja Católica, como a inclusão
do ensino de religião como obrigatório, assistência religiosa nas forças
armadas e oposição a ideia de divórcio. No Ceará, Helder Câmara assu-
miu a liderança da LEC e em carta a Alceu Amoroso, escreveu:

Carta, 18.02.1933
[...]
Graças a N[osso] S[enhor] continuo numa atividade enorme, ago-
ra ainda aumentada pela LEC que é um fato no Ceará. Falo que
só o Sucupira. Está uma beleza! Fala-se em assassinatos por parte
dos comunistas. Há felicidade demais para desgraçados como nós!
Vamos iniciar uma campanha imensa: a OIC – Obra de infiltração
Católica – pela sindicalização católica das pequeninas operárias das
[ininteligível]: lavadeiras engomadeiras, domesticas... Ação anti-co-
munista. (Carta de Helder Câmara a Alceu Amoroso Lima, 1931.
Apud ARGON, 2016, 107)

Nesse momento, a pedido do arcebispo de Fortaleza, Dom


Manoel, o padre percorreu o Estado fazendo campanha com uma lis-
ta de candidatos escolhidos, que foram quase que em maioria eleitos
em 1935. No final das eleições, o padre Hélder Câmara foi convidado
pelo governador Francisco Menezes Pimentel, eleito com a ajuda da
LEC, para assumir o cargo de diretor do Departamento de Educação

Histórias, narrativas e religiões 95


do Ceará. Mas, posteriormente, desentendimentos com o governador
Meneses Pimentel por causa de conflitos da policia cearense com mili-
tantes integralistas e também por assuntos no campo da educação, levou
o padre Helder a entregar o cargo público e contribuiu com a mudança
do Ceará para o Rio de Janeiro.

4. Entre o serviço público, sacerdotal e político: a


vida do padre Hélder Câmara no Rio de Janeiro
(1936-1937)

A personagem aqui estudada chega ao Rio de Janeiro no ano


de 1936, como padre e posteriormente chega a ser Bispo-Auxiliar da re-
ferida cidade, deixando-a apenas em 1964 para assumir a Arquidiocese
de Olinda e Recife. Considerando o escopo desse texto, dedicaremos
nossa análise para os dois primeiros anos, pois marcam ainda uma forte
participação e defesa de ideais ligados a extrema-direita política do país.
Além dos conflitos políticos no Ceará, que tornaram sua pre-
sença em um fator problemático nas relações políticas do arcebispo
Dom Manoel, o convite do Francisco Campos, que tinha acabado de
tomar posse da Secretaria de Educação do Distrito Federal, para que o
sacerdote cearense assumisse um cargo como assistente técnico, tendo
a oportunidade de trabalhar junto com o seu amigo Alceu Amoroso
Lima. Ao mesmo tempo, esse convite era bastante conveniente para os
interesses políticos e educacionais da Igreja católica da época, o que fez
com que o Cardeal Dom Leme aceitasse e incentivasse a vinda do padre
Helder para a então capital do país.
Voltando-nos para o cerne de nossa proposta, a produção in-
telectual do padre Helder Câmara, nós percebemos que diferente do
que aparece em alguns trabalhos que afirmam que ao chegar ao Rio
de Janeiro em 1936 o Cardeal Dom Leme teria exigido a saída dele da
AIB. O que percebemos nas edições do jornal cearense A Razão e de

96 Histórias, narrativas e religiões


periódicos cariocas dos anos de 1936 e 1937 é uma forte atividade do
padre Helder defendendo o integralismo, participando de programas de
rádios, jantares e eventos do partido acompanhando figuras de relevo
dos camisas-verdes, como se observa a seguir:

A FAMÍLIA E O COMUNISMO – notável conferência do P.


Helder Camara na Liga de Defesa Nacional

Sob os auspícios da Liga de Defesa Nacional, realizou-se ontem,


na Academia Brasileira de letras a anunciada conferencia do padre
Helder Câmara, intitulada “A Família e o Comunismo”.
A sessão foi presidida pelo general Pantaleão Pessoa.Sentaram-se a
mesa o cônego Olympio de Mello, prefeito municipal; companheiro
dr. Gustavo Barroso, além dos demais diretores da Liga de Defesa
Nacional.
O conferencista prendeu a atenção do auditório por mais de duas
horas, discorrendo sobre o momentoso assunto. Mostrou as raízes fi-
losóficas da sociedade atéia de nossos dias, que afastando-se de Deus
da Pátria e da Família, nos vai conduzindo ao abismo comunista.
Verberou a atitude do burguês, que mais cuida de suas maquinas, do
que das condições econômicas de seus proletários. A sua demonstra-
ção foi candente ao apontar os erros da sociedade contemporânea,
que matou o sentido cristão da família, levando o homem a devassi-
dão em que hoje vive.
Apontou como obra de destruição social, as práticas anti-concepcio-
nistas, que além de anti-naturais, produzem a perda do amor cristão,
criando um ambiente propício para penetração da onda revolucio-
nária que vem das estepes.
Mostrou as relações da família com a Pátria. Protestou nesse mo-
mento conta a recepção oficial que se pretende fazer a Emil Ludwig,
um dos pregoeiros da morte das Pátrias.
Falou também no combate que se vem fazendo contra a Ação
Integralista Brasileira, uma das lidimas defensoras da família. A as-
sistência nesse instante vibrou de entusiasmo.
Terminou conectando aos presentes a apoiarem a família, como uma
das grandes necessidades da Patria, principalmente agora com as
ameaças comunistas.
A assistência cantou o Hino Nacional, aplaudindo em seguida o ora-
dor. (A OFFENSIVA, 21.09.1936, 12-13)

Histórias, narrativas e religiões 97


Além de uma temática coerente com uma das principais ban-
deiras da AIB e da Igreja Católica, o evento tinha em sua mesa mem-
bros de destaque do partido político de extrema-direita supracitado. Em
outro momento, um mês antes da palestra citada anteriormente, o jornal
A Razão, publicam o artigo “Um integralista... Integral” (A RAZÃO,
15.08.1936, 3-4), em que o periódico procurou apresentar o padre cea-
rense transitando em meio à elite política, militar e intelectual carioca.
Nesse texto, o sacerdote aproveita para apresentar-se como integralista
e defensor das ideias da AIB. No entanto, progressivamente suas ati-
vidades políticas dentro do integralismo começaram a dar espaço ao
trabalho dentro do ministério, em 1937, mesmo sem a sua permissão,
segundo o próprio Hélder, a cúpula integralista colocou o nome do refe-
rido padre como um dos membros do conselho dos 40 da AIB.
No entanto, o ano de 1937 foi marcado por um golpe político
de âmbito nacional, que recebeu o nome de Estado Novo e que deu
início a uma nova fase da política, com maior poder concentrado no
executivo, liderado pelo então presidente Getúlio Vargas. Com a criação
do Estado Novo, em dezembro de 1937, todos os partidos e agremiações
políticas tiveram suas atividades encerradas, incluindo o integralismo.
Nesse novo cenário, o padre Helder Câmara voltou-se para as ativi-
dades nas pastorais, na Secretaria de Educação e nas aulas de Estudos
Teológicos, junto com outros intelectuais ligados a revista A Ordem, no
Instituto Católico de Estudos Superiores, que posteriormente tornou-
-se a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

5. Considerações finais

Ao final desse texto, compreendendo a complexidade de um


trabalho de história que dialogue com a prática biográfica ou com his-
tórias pessoais de vida, lembramo-nos de Philippe Levillain (2003),
quando destacou que a retomada de interesse dos historiadores por esse
gênero literário não se encontra mais naquelas obras que buscavam uma
98 Histórias, narrativas e religiões
mitificação personalista de determinados indivíduos. Nesse momento
o escopo encontra-se na possibilidade de se construir investigações que
problematizem a questão da individualidade e escolhas de vida dentro
de contextos sociais, políticos e culturais específicos.
Desse modo, ao confrontar o percurso religioso e político do
então padre Helder Câmara com as atividades, doutrina e crescimento
de movimentos como a LCT, JOC, LEC e AIB, possibilitou-nos ob-
servar essa movimentação das escolhas pessoais dentro de um cenário
político e social que ultrapassa as vontades da personagem estudada.
Nesse processo, buscamos observar como essas escolhas pessoais do pa-
dre Helder contribuiu para um fenômeno único no país, em que orga-
nizações de cunho políticos tiveram suas doutrinas e agendas unificadas
a partir de uma proposta de ação pautada nas Encíclicas papais Rerum
Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931).

Referências

Fontes
A FAMÍLIA E O COMUNISMO – notável conferência do P. Helder Camara na Liga de
Defesa Nacional. A Offensiva, Rio de Janeiro, p.12-13, 21. Set. 1936

Integralismo e Legião. Legionario, Ceará, p.1, 12. Ago. 1933.

O COMÍCIO INTEGRALISTA DE ONTEM – elementos estranhos procuram perturbar


os oradores inscritos, estabelecendo-se túlmultos. Diário de Pernambuco, p. 3, 09. Set. 1934.

O Dia do Trabalho e as comemorações da Legião. Legionario, Ceará, p.02, 06. Mai. 1933

O Ideal Legionário despertando a mulher operaria – O padre Helder Câmara à frente do gran-
de movimento de sindicalização. Legionario, Ceará, p.5, 15. Mai. 1933.

Tópicos da vida legionária de 1º de Maio de 1932 a 1º de Maio de 1933. Legionario, Ceará,


p.07-08, 01. Mai. 1933

Um integralista... Integral. A Razão, Ceará, p.03-04, 15. Ago.1936

Histórias, narrativas e religiões 99


Livros
ARGON, Amoroso Lima. Catálogo da correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Dom
Helder Câmara (1929-1980). Petrópolis: Editora Reflexão, 2016.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Ja-
naína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 183-191, 2006.

LEVILLAIN, Philippe. Os protagonistas: da biografia. In: RÉMOND, Réne. Por uma história
política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 141- 184, 2003.

MORAES, Márcio André Martins. GARANHUNS SOB O SÍMBOLO DO SIGMA: o


cotidiano dos integralistas entre comunistas e o Estado Novo (1935-1942). 2012, 215f. Disser-
tação (Mestrado em História), Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2012.

MOURA, Carlos André Silva de. História Cruzadas: debates intelectuais no Brasil e em Por-
tugal durante o movimento de Restauração Católica (1910-1942). 2015, 443 p. Tese (Dou-
torado em História), Universidade Estadual de Campinas / Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Campinas, 2015.

PILETTI, Nelson & PRAXEDES. Walter. Dom Hélder Câmara, o profeta da paz. 2. ed. São
Paulo: Editora Contexto, 2008.

SILVA, Giselda Brito. O Recife entre a amizade e a política: a geração tradicionalista de 1930
no perfil parlamentar pernambucano. In.: _________. (org.) História do Recife: entre narra-
tivas do passado e interpretações do presente. Rio de Janeiro: Ed. Luminária, 226-254, 2011

100 Histórias, narrativas e religiões


Ultramontanismo e reforma clerical.
Uma análise da crítica de Cândido
Mendes às relações entre Igreja e Estado
no Brasil

Daniel Franco de Oliveira (PUCCAMP/ CNPq)

Resumo: O presente artigo visa aprofundar a compreensão das rela-


ções reversivas entre religião e política, no Brasil oitocentista. Para tanto,
analisa a vertente específica da secularização sob a qual se deu o processo
de institucionalização e delimitação dos Direitos da Igreja católica no
Brasil, na segunda metade do século XIX: o modelo “intransigente ro-
mano”, aqui analisado a partir do binômio ultramontanismo-reforma.
Especificamente partindo da problematização acerca dos elementos que
moldaram a configuração institucional da Igreja católica no Brasil, nos
marcos de 1844 e 1891 – quando se deu o fim do padroado – anali-
sa o texto introdutório do jurista ultramontano Cândido Mendes de
Almeida à obra Direito Civil Eclesiástico Brasileiro (1866-1873), vi-
sando averiguar o teor de sua crítica ultramontana às relações históricas
entre Estado e Igreja no Brasil, bem como a influência de sua concepção
teológico-filosófica de mundo nas prescrições jurídicas que informaram
a delimitação dos Direitos da Igreja no Brasil.

Histórias, narrativas e religiões 101


Pe. Diogo Antônio Feijó e
a Igreja Nacional

Gustavo de Souza Oliveira (UEMG/Unidade Carangola)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar o projeto religioso de-
fendido pelo padre Diogo Antônio Feijó enquanto deputado imperial.
Suas atitudes políticas estavam na contramão dos interesses da Santa
Sé, pois sugeria a organização de uma Igreja Nacional que valorizasse
a liberdade do individuo e colocasse fim ao celibato clerical. Para este
sacerdote, a Igreja necessitava de uma reorganização eclesiástica que
encerrasse com os escândalos gerados por padres amasiados. Em seus
pronunciamentos posicionou-se contrário à centralidade papal, a qual
considerava autoritária. Nossa proposta apresenta as semelhanças exis-
tente entre a Igreja Nacional, proposta por Pe. Feijó, e o Anglicanismo.

Palavras-chave: Liberalismo; Ultramontanismo; Celibato clerical.

Introdução

Entre os sacerdotes católicos que compunham o parlamento


brasileiro, um merece maior destaque, pois foi um político proeminente
do período regencial. Trata-se do Padre Diogo Antônio Feijó (1784 –
1843). Antes de ingressar na política, atuou como professor de primeiras
letras e filosofia moral em São Carlos, SP. Sua vida eclesiástica teve
início em Itu, local onde integrou o grupo conhecido como Padres do
Patrocínio. Esses sacerdotes eram seguidores do Pe. Jesuíno e ficaram
conhecidos por suas mortificações, votos de silêncio e supostas curas e
outros milagres (RICCI, 2001, p. 214-242).

102 Histórias, narrativas e religiões


Foi, entretanto, através da política que Pe. Feijó ganhou no-
toriedade no contexto imperial brasileiro. Sua carreira foi extensa e
começou com a eleição para compor as Cortes de Lisboa em 1821.
Posteriormente, atuou como deputado (1826-1831), ministro da Justiça
(1831-1832) e exerceu o cargo de Regente (1835-1837). Além destas
funções, foi nomeado senador (1833), posição que ocupou até sua morte
no ano 184337. Sua vida pública possibilitou o convívio com diferentes
figuras e inúmeras formas de pensamento, mantendo afinidade com o
liberalismo (RICCI, 2001, p. 265-276).
Suas propostas políticas estavam na contramão dos interes-
ses da Santa Sé e sugeriam a formação de uma Igreja Nacional com o
predomínio da liberdade individual. Entre os seus posicionamentos na
Assembleia, destacamos a luta pelo fim do celibato clerical. Ao justificar
sua atitude, alegou que o elevado número de padres amasiados demons-
trava a necessidade de uma nova organização eclesiástica (SOUSA,
1942, p. 70-74). Seu desejo era executar uma reforma dos costumes do
clero, mas não no sentido ultramontano; vislumbrava uma Igreja alicer-
çada no regalismo e no liberalismo (WERNET, 1987, p. 46-47).

Pe. Feijó e a Reforma Clerical

Augustin Wernet ponderou que o debate sobre a reforma cle-


rical se iniciou no ano 1827, sendo um confronto marcado por disputas
entre ultramontanos e liberais. Os principais integrantes do primei-
ro grupo foram Pe. Luís Gonçalves dos Santos, cognominado “Padre
Perereca”; D. Marcos Antônio de Sousa, Bispo do Maranhão; e D.

37  Além de ser eleito para diversos cargos políticos, Pe. Diogo Antônio Feijó foi indicado para
ocupar o Bispado de Mariana, Minas Gerais, no ano 1838. Todavia, o religioso liberal declinou do
convite. Não sabemos ao certo os motivos que o levaram a responder negativamente à nomeação,
mas supomos que ele tinha a consciência de que a Santa Sé teria resistência em confirmá-lo
como epíscopo, pois sua atuação política foi marcada por ataques públicos à ortodoxia católica
e ao poder papal. Cf. SOUSA, Octavio Tarquinio. Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Rio de
Janeiro: José Olympio, 1942. p. 262-271.
Histórias, narrativas e religiões 103
Romualdo Antônio Seixas, Arcebispo da Bahia. No segundo grupo, o
nome mais conhecido é do Pe. Diogo Antônio Feijó. A discussão teve
início com a apresentação do projeto liberal que defendia o casamento
clerical e o fim dos frades e freiras no Brasil. A proposta foi submetida
à Comissão de Negócios Eclesiásticos que publicou parecer contrário,
apesar da opinião favorável do Pe. Feijó. Contrariado, este parlamentar
leu seu voto de forma pública e publicou um folhetim (1827) defenden-
do o fim do celibato (WERNET, 1987, p. 81-82).
Embora Feijó seja o nome mais conhecido entre os padres
liberais, cabe ressaltar que ele não agiu sozinho. Outros deputados
sacerdotes concordavam com sua opinião, a saber: José Bento Leite
Ferreira de Melo, José Custódio Dias e Antônio Maria de Moura.
Nem todos acreditavam que o projeto de abolição do celibato era a
melhor opção, mas a maioria admitia que a Igreja se prejudicava ao
manter aquilo que consideravam uma disciplina eclesiástica. Assim,
seria melhor liberar o casamento para evitar os relacionamentos inde-
vidos (SOUZA, 2010, p. 380-388).
A luta em prol do matrimônio sacerdotal era justificada, por Pe.
Feijó, como o caminho para a regeneração da conduta. No jornal Diário
Fluminense, esse padre afirmou que o celibato era uma medida discipli-
nar que necessitava de alteração para ser condizente com o momento
em que viviam. Em sua concepção, os bispos e o papa não permitiam
mudanças na ortodoxia, pois eram afeitos ao poder absoluto (SOUSA,
1942, p. 86-90).

[...] Eu sou católico romano, mas não sou ultramontano, nem pa-
pista. Creio no dogma e na moral cristã, mas muitos artigos de sua
disciplina necessitam de alteração e reforma [...] ultramontanos e
papistas que obedecem ao Bispo de Roma como a seu senhor [...]
se os papas não se julgassem com direito de impor silêncio por meio
de seus terríveis anátemas [...] se uma espionagem vergonhosa não
fosse um dever de todo o católico romano [...] se não foram estes
obstáculos não se teria perpetuado na Igreja a lei do celibato clerical,
que tantos males tem causadado [...]38.

38  Carta de Diogo Antônio Feijó publicada no jornal Diário Fluminense Apud SOUSA,
Octavio Tarquino. Op. Cit., p. 86.
104 Histórias, narrativas e religiões
Ao se declarar católico e não ultramontano/papista, Pe. Feijó
demonstrou não acreditar em uma única maneira de ser católico, ou me-
lhor, em uma ortodoxia universal. Para ele, o papado nada mais era que
uma tentativa de perpetuar tradições construídas de forma autoritária.
O Pe. Luís Gonçalves dos Santos, “Pe. Perereca”, respondeu à
publicação de Feijó através do folheto Réplica Católica, escrito em 3 de
dezembro de 1827. Afirmou que a Constituição do Império conferiu
poderes políticos à Assembleia Geral e não havia nenhum artigo que
autorizava os deputados modificarem as leis e as disciplinas da Igreja
Católica “e muito menos a abolir aquellas, que não agradarem a qual-
quer Ecclesiastico, a quem ellas sejão incommodas, pezadas [...]”39. Luís
Gonçalves dos Santos insinuou que a participação de eclesiásticos na
luta pelo fim do celibato clerical era fruto da vontade pessoal de religio-
sos que desejavam contrair matrimônio.
O “Pe. Perereca” demonstrou seu descontentamento com a ma-
neira que Feijó se referia ao papa e aos padres que resistiam às ideias
pregadas pelos liberais.

[...] V. S. persiste, e requinta com a sua resposta na temerária


idea de casar o Clero Brasileiro, e estigmatiza com epithetos de
Ultramontanos, e de Papistas, que obedecem ao Bispo de Roma como a
seu Senhor, os Ecclesiasticos , que regeitão invenções Lutheranas, e
Anglicanas. Quem he tão bom Cidadão, e melhor Christão não deve
usar contra os seus [Concidadãos], e Irmãos no Sacerdocio dos in-
juriosos [] nomes, que os Hereges dão aos Catholicos Romanos [...]
V.S., como Sacerdote Catholico, não deve tratar o Pontífice Romano
com símplice, e irônico titulo de Bispo de Roma; porque bem sabe, e
conhece, que o Bispo de Roma, como Bispo de Roma não tem juris-
dicção espiritual alguma sobre toda a Igreja, porém sim como Papa,
Successor de S. Pedro, e Vigario de J. C. sobre a terra, e como tal
nenhum Catholico deixa de ser seu Subdito no Espiritual [...] V. S.
prometteo, e todos nos, que nos ordenamos Sacerdotes, obediência,
e reverência aos nossos Bispos Diocesanos, esta mesma obediência, e

39  Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro; Localização: v-378, 4, 2, n. 3. SANTOS, P. Luiz


Gonçalves dos Santos. Replica Catholica. A resposta que o reverendo senhor deputado padre
Diogo Antonio Feijó deu ao P. Luiz Gonsalves dos Santos. Rio de Janeiro: Typografia de Torres,
1827. p. 2.
Histórias, narrativas e religiões 105
reverencia os Senhores Bispos a jurarão ao Papa nas suas sagrações;
seremos nós, e serão elles Papistas e Escravos?[...]40.

Na concepção deste eclesiástico, os termos ultramontano e


papista eram pejorativos e foram criados para ofender os cristãos que
combatiam qualquer influência que não fosse oriunda de Roma. Desta
maneira, o discurso de Pe. Feijó foi descrito como ofensivo aos cole-
gas eclesiásticos e ao Soberano Católico, ao denominá-lo apenas como
Bispo de Roma, pois os religiosos sabiam que a autoridade sobre as ju-
risdições eclesiásticas não advinham desse cargo, mas do posto de Papa,
a quem os bispos juravam obediência em suas sagrações. Com esta con-
duta, Feijó demonstrava não acreditar na autoridade suprema do líder
da Igreja Católica.
As discórdias entre os padres Luís Gonçalves dos Santos e
Diogo Feijó ilustram um conflito que almejava definir o espaço de atua-
ção do Papado e do Estado. Nesta luta, Pe. Feijó não obteve vitória, pois
o projeto de lei que autorizava o casamento clerical e extinguia os fra-
des e freiras no Brasil, de autoria do deputado baiano Antônio Ferreira
França, não foi aprovado na câmara. Inconformado com o resultado,
Feijó realizou um discurso em outubro de 1827, no qual expôs os mo-
tivos que o levaram a votar favoravelmente à matéria. Iniciou o pro-
nunciamento defendendo que o Estado detinha o poder de regular os
casamentos, pois equivaliam a um contrato entre os cidadãos (SOUZA,
2010, 389); (NEVES, 2011, p. 405)41.

[...] O matrimonio é um contrato legítimo entre o homem e a mu-


lher que Deus tem estabelecido para multiplicação do gênero huma-
no [...]. Sendo para tanto um contrato natural de Instituição Divina,
seria absurdo no estado social negar ao poder temporal ou autori-
dade de estabelecer condições, e regular a forma de uma convenção,

40  Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro; Localização: v-378, 4, 2, n. 3. SANTOS, P. Luiz


Gonçalves dos Santos. Replica Catholica. A resposta que o reverendo senhor deputado padre
Diogo Antonio Feijó deu ao P. Luiz Gonsalves dos Santos. Rio de Janeiro: Typografia de Torres,
1827. p. 3-4.
41  Ver também: BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 03 de setembro de 1827.
Brasília: Câmara dos Deputados. p. 11. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21
ago. 2014.
106 Histórias, narrativas e religiões
que mais que nenhuma outra influi na felicidade dos indivíduos, na
tranquilidade das famílias, na boa ordem, conservação e progresso
da sociedade. [...]42.

Para ele, o governo temporal não poderia ser impedido de atuar


em favor das necessidades da população. Cabia à Igreja apenas a for-
ma sacramental do ritual, pois o permitir ou impedir o matrimônio era
competência das organizações civis. Argumentou ainda que o celibato
não era algo natural, mas uma imposição estipulada ao longo da história:

[...] A escritura não oferece uma só passagem ainda equivoca pela


qual se entenda prescrito o celibato dos clérigos, pelo contrario o
exemplo dos Apóstolos, e S. Paulo lembrando as qualidades necessá-
rias para o sacerdócio, parece preferir o estado de casado [...].
Quando Gregório VII sobre a Cadeira Pontifícia, parecia estar em
perfeito desuso em muitas Dioceses a lei do Celibato. Estava porém
reservado a este Pontífice o generalizar no Ocidente uma pratica
que seguida ao principio por conselho, não era própria para todos,
segundo o mesmo Evangelho, mas já nesse tempo estava [consti-
tuída] a Monarquia absoluta da Igreja dando leis a seu arbítrio aos
Católicos, fazia os mesmos Monarcas dobrarem-se ao seus jugo. É
este Papa austero em sua vida, severo em suas máximas, inflexível em
suas [pretensões], que proíbe aos Padres continuarem a viver com
suas mulheres, e decreta perpetua nulidade aos matrimônios pelos
mesmos contraídos [...]43.

Desta maneira, o impedimento do matrimônio seria uma me-


dida autoritária derivada de uma monarquia católica liderada por um
papa severo, inflexível e austero. De acordo com Guilherme Pereira das
Neves, Pe. Feijó baseou seus argumentos na obra do teólogo Franz Xaver
Gmeiner (1752-1824), autor da obra Instituições de Direito Eclesiástico, que
possuía argumentos contrários ao celibato clerical. Este intelectual defen-

42  Arquivo Secreto do Vaticano (ASV), Cidade do Vaticano, fundo do Arquivo da Nunciatura
no Brasil (ANB), fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de Diogo Antônio Feijó, outubro
de 1827.
43  ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
Histórias, narrativas e religiões 107
deu que a proibição ao matrimônio era fruto da imposição de Gregório
VII (NEVES, 2011, p. 405-406). Opinião compartilhada por Feijó.

[...] Canção-se os Concilios em formar regulamentos e estabelecer


penas, para embaraçar o Concubinato dos Clerigos; mas nota-se por
toda a parte q a força dos homens não pode vencer a força da natu-
reza [...]. Enfim, a historia conserva o triste quadro dos escandalo,
deboxes, adulterios, e mil outros crimes, q deshonrão a Santidade do
Ministerio Ecclesiastico [...]; e tem sido tão publicos e tão frequen-
tes os escandalos dos Padres nesta parte, q os Protestantes malicio-
zamente tem affirmado, q o Papa mais quer ver o seu Clero concu-
binado, do q cazado.
[...] não deve estabelecer Lei alguma sem manifesta utilidade pu-
blica, principio sancionado pela Constituição do Imperio: sendo a
Lei do Celibato inexequivel em sua generalidade [...], sendo emfim
a abolição da lei do Celibato a opinião geral dos homens de saber, e
piedade, e dos soberanos Catolicos [...] hé justa necessária e indis-
pensavel, a derrogação de semilhante Lei pela Assemblea Geral do
Brazil [...]44.

Na interpretação liberal, a união entre um homem e uma mu-


lher era algo natural e as leis não poderiam se posicionar em desacordo
com a natureza. Caberia ao Governo temporal abolir as normas que não
continham utilidade pública.
Pe. Feijó concluiu que o Império do Brasil deveria solicitar à
Santa Sé a permissão para revogar o celibato dos clérigos brasileiros.
Caso não conseguissem resposta positiva, a Assembleia Geral deveria
abolir a lei do celibato e suspender o beneplácito a todas as leis ecle-
siásticas que estivessem em desacordo com o governo45. O posiciona-
mento de Feijó permitiu que o clero conservador emitisse sua opinião
contrária. O Pe Luiz Gonçalves dos Santos o acusou de defender ideias
calvinistas e sugeriu que o deputado abandonasse os escritos ímpios e
estudasse o verdadeiro catolicismo (SOUZA, 2010, p. 393-394). Talvez

44  ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
45  ASV, Cidade do Vaticano, fundo do ANB, fasc. 10, doc. 4, páginas 9-17, voto aberto de
Diogo Antônio Feijó, outubro de 1827.
108 Histórias, narrativas e religiões
o “Padre Perereca” não estivesse correto em afirmar que as ideias de Feijó
eram calvinistas, mas é possível percebermos uma aproximação com
princípios anglicanos que fizeram com que o rei inglês Henrique VIII
também lutasse pelo fim do celibato.
A postura de Feijó demonstrou que ele não reconhecia no papa
a autoridade suprema sobre todas as questões eclesiásticas. Sua visão
evidenciava que a vontade do povo era soberana e o parlamento era a
expressão deste poder. Assim, a Assembleia Geral poderia extinguir as
ditas disciplinas que não eram condizentes com a realidade da nação.
Ao contestar o Pe. Feijó, Pe. Luís Gonçalves dos Santos ar-
gumentou que o celibato não tratava apenas de uma disciplina cristã,
de maneira que era uma herança deixada pelos apóstolos e confirmada
pelos Concílios. “Padre Perereca” acreditava que o celibato era originário
dos ensinamentos dos apóstolos, e os discípulos de Cristo, ao seguirem o
seu ministério, eram viúvos, solteiros ou abandonaram suas esposas. Para
reforçar seus argumentos, citou a obra de São Jerônimo, que afirmava ser
o celibato uma doutrina essencial aos clérigos46.
Em 8 de dezembro de 1827, cinco dias após a réplica de Luís
Gonçalves dos Santos, o Bispo do Maranhão e deputado, D. Marcos
Antônio de Sousa, lançou uma carta pastoral aos fiéis e sacerdotes de
sua diocese. Nesse documentou, deixou clara sua postura contrária ao
casamento dos padres.

[...] Em vão possuirá o ministro da palavra os thesouros da sciencia,


todos os ornatos da eloquência, se estas qualidades não forem real-
çadas por huma conducta, que a malignidade não possa denegrir.
O exemplo he a mais persuasiva eloquência. Hum pastor, que exa-
tamente observa as máximas sagradas do Evangelho, que religiosa-
mente cumpre os cânones veneráveis dos Concílios, monumentos
preciosos da sabedoria dos mais zelosos pastores da Igreja, o que
respeita as regras disciplinares sancionadas pelas autoridades legiti-
mas, o que obedece ás disposições dos que são chamados para reger

46  Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro; Localização: v-378, 4, 2, n. 3. SANTOS, P. Luiz


Gonçalves dos Santos. Replica Catholica. A resposta que o reverendo senhor deputado padre
Diogo Antônio Feijó deu ao P. Luiz Gonsalves dos Santos. Rio de Janeiro: Typografia de Torres,
1827. p. 5, 7-8.
Histórias, narrativas e religiões 109
a Igreja de Deos, arrebata as attenções dos que lanção suas vistas
sobre todos os passos de seos guias, e conductores em os caminhos
da salvação [...]47.

Para este governante episcopal, nenhum conhecimento é útil


aos padres se estes não mantiverem uma conduta alicerçada nos evan-
gelhos e concílios e em obediência às regras disciplinares definidas pelas
autoridades da Igreja. Na pastoral, percebemos a defesa às normas mo-
rais impostas pela Igreja. O não efetuar esta conduta seria o caminho
para a ruina do catolicismo.
Mesmo com a manifestação pública de Feijó, o parlamento não
modificou em nada a votação que vetou o casamento clerical. De acordo
com Françoise Jean de Oliveira Souza, uma possível interpretação para
esse fato encontra-se no receio dos deputados em estabelecer uma briga
direta com a Santa Sé (SOUZA, 2010, p. 394). O Brasil era uma nação
nova e necessitava do auxílio da religião para conservar a ordem e a
tranquilidade político-social. Para nós, a derrota de Feijó demonstrou
que nem todo o congresso compactuava com a criação de uma Igreja
Nacional. Questionar a autoridade suprema do Papa era algo aceitável
para muitos, mas alterar os dogmas e comportamentos dos eclesiásticos
era algo inconcebível naquele momento. Neste sentindo, nosso contexto
social e político estavam distantes daquele em que viveu o monarca bri-
tânico Henrique VIII.
É preciso destacar que Pe. Feijó, apesar da posição política, não
abandonou sua fé (RICCI, 2001, p. 203). Ele continuou a acreditar que
a religião garantia a tranquilidade do Estado, entretanto julgava que os
eclesiásticos não possuíam boas condições para serem fontes da moral
pública, sendo necessário reformar a Igreja com a intervenção do Estado
(SOUZA, 2010, p. 378).
Por meio da Comissão de Negócios Eclesiásticos da Câmara,
Pe. Feijó tentou legitimar a ação estatal em uma reforma eclesiástica.
Em 1826, foi elaborado um parecer assinado por ele e pelos demais

47  Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro; localização: v-256, 2, 6 N. 2; Carta Pastoral de D.


Marcos Antônio de Souza, Bispo do Maranhão, do Conselho de S. M. I, em 8 de dezembro de
1827.
110 Histórias, narrativas e religiões
integrantes daquele grupo, isto é, os parlamentares Miguel Reinaut,
Antônio da Rocha Franco e José Bento Leite Ferreira de Melo. O do-
cumento estipulou as competências do poder temporal e os limites das
bulas papais. Quatro pontos foram apresentados: 1) Cabia ao Imperador
prover os benefícios eclesiásticos; 2) Os cabidos criados nas bulas eram
desnecessários aos interesses da Igreja; 3) O papa poderia recomendar o
número de sacerdotes e não exigir quantidades, pois esta dependia das
condições da Nação; 4) O papa não poderia determinar a criação dos
seminários, mas sugerir de acordo com as normas do Concílio de Trento
(SOUSA, 1942, p. 76-78).

Supremacia Estatal sobre a Religião

O posicionamento da Comissão de Negócios Eclesiásticos da


Câmara dos Deputados demonstrou seu caráter regalista, visto que ques-
tões relacionadas à criação de seminário, eleição de cabidos e número de
sacerdotes nas paróquias deveriam ser resolvidas pelo poder temporal.
Essa decisão estava em concordância com a Constituição Imperial de
1824, já que o artigo 12 determinava que todos os poderes do Império
fossem delegados pela nação e o artigo 102, inciso II, estipulava que
cabia ao Imperador nomear bispos e prover benefícios eclesiásticos48.
Percebemos que a interferência do poder civil nas questões que envol-
viam o clero secular visava transformá-los em órgão do Estado. Desta
maneira, eram interpretados como vigários que precisavam de ajustes,
mas que exerciam papel importante dentro do Império.
Já o clero regular foi enxergado como elemento sem utili-
dade para o governo. A partir dessa conclusão, o deputado Feliciano
Nunes Pereira sugeriu, no ano 1827, a proibição da admissão de fra-
des estrangeiros nos conventos brasileiros e recomendou fixar a idade
mínima de 50 anos para que os nacionais pudessem aderir às causas

48 Constituição Imperial de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/


constituicao/constituicao24.htm>. Acesso em: 22 set. 2014.
Histórias, narrativas e religiões 111
religiosas (SOUZA, 2010, p. 342-343). O projeto de lei contava com
quatro artigos:

A assembléa geral legislativa do império decreta:


Art. 1º Fica prohibida a admissão de frades ou congregados estran-
geiros em todo o império, qualquer que seja a denominação, habito
ou instituto delles.
Art. 2º Fica também prohibida a admissão de noviços estrangeiros
nos conventos, mosteiros, ou congregações ora existentes.
Art. 3º Nos mesmos conventos, mosteiros, ou congregações não
serão admittidos brazileiros de um ou outro sexo, tendo menos de
cincoenta annos de idade.
Art. 4º Ficão sem vigor quaisquer leis, ou disposições em contraria49.

Esta proposta foi lida na sessão da Assembleia Geral do dia 24


de outubro de 1827. Seu principal objetivo era dificultar ou desanimar
os candidatos ao sacerdócio regular. A lei foi aprovada e representou um
passo importante dos liberais na tentativa de limitar e enfraquecer as
ordens regulares no Brasil.
Nas sessões da Assembleia Geral, em 1828, os deputados de-
bateram acerca da presença das congregações religiosas. Em 17 de maio
desse mesmo ano, discutiram a questão da proibição dos frades estran-
geiros. O parlamentar José Custódio Dias propôs a ideia de desesti-
mular a filiação dos homens em casas religiosas. O Pe. Feijó, por sua
vez, argumentou que a existência das ordens era desnecessária em um
Estado constitucional, pois elas seriam instituições que defendiam o ab-
solutismo (SOUSA, 1942. p. 89-93).
O Projeto de Lei que visava proibir as casas religiosas estrangei-
ras no Brasil teve sua redação corrigida pelo deputado Paula e Souza50.
Notamos que não somente os frades, mas qualquer congregação, deno-
minação ou instituto religioso estrangeiro deveria ser impedido de atuar
no Império. Diante dessa proposta, o deputado D. Marcos Antônio de
Sousa pronunciou-se de forma contrária:
49  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 24 de outubro de 1827. Brasília: Câmara
dos Deputados. p. 144. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
50  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 17 de maio de 1828. Brasília: Câmara dos
Deputados. p. 95. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
112 Histórias, narrativas e religiões
Não posso admitir semelhante proposição; pois o Brazil ha de ad-
mittir no seu seio homens de todas as seitas e podem todos os es-
trangeiros vir residir aqui, e só serão excluídos aquelles que professão
os conselhos evangélicos?[...]
Esta proposição sóa muito mal aos meus ouvidos. Que o illustre de-
putado pretenda que se não instituão novas corporações estrangeiras
religiosas sem o consenso do governo, isso entendo eu, mas que sejão
excluídos todos os estrangeiros, só porque seguem conselhos evan-
gélicos, não entendo, nem posso admittir51.

Para o Bispo do Maranhão, a emenda parecia um despropósito,


pois a constituição brasileira consentia com o culto doméstico de não
católicos, mas o Projeto de Lei visava impedir os padres regulares de
viverem e trabalharem aqui. Pe. Feijó contestou a postura de D. Marcos.

A emenda não prohibe a ninguém seguir os princípios evangélicos, o


que se quer somente é coarctar um abuso, e o Sr bispo do Maranhão
sabe muito bem que os estatutos dos mesmos frades determinão que
não haja frade disperso fora de seu convento.
A emenda que portanto que não haja a admissão de um só frade
estrangeiro, pois que segundo os mesmos estatutos é reputado apos-
tata, e deve ser remetido para o seu convento; tanto mais que isto são
particularidades de que todas as nações são escrupulosas52.

O argumento de Feijó foi imediatamente contestado por D.


Marcos, o qual alegou não existir apostasia, já que os clérigos possuíam
autorização para se estabelecerem longe de suas casas centrais53.
Apesar dos argumentos de D. Marcos e D. Romualdo, a maioria
dos congressistas não via a necessidade da presença dos clérigos regula-
res estrangeiros no Brasil. Assim, a Comissão de Negócios Eclesiásticos
definiu, em 11 de junho de 1828, que seriam expulsos do país, clérigos
que obedecessem às autoridades do exterior (SOUSA, 1942, p. 89-93).

51  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 17 de maio de 1828. Brasília: Câmara dos
Deputados. p. 95. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
52  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 17 de maio de 1828. Brasília: Câmara dos
Deputados. p. 96. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
53  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 17 de maio de 1828. Brasília: Câmara dos
Deputados. p. 96. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
Histórias, narrativas e religiões 113
No debate parlamentar, foram acrescentados ao projeto que proibia os
frades estrangeiros no Império os seguintes artigos:

Art. 4º Os frades ou congregados que obedecerem a superiores resi-


dentes fora do império serão expulsos para fora delles.
Art. 6º O magistrado do lugar para onde entrar ou onde for residir
frade ou congregado estrangeiro, immediatamente procederá contra
os mesmos, fazendo-os prender e remetter ao governo para serem
reenvia-los para os seus conventos54.

Esses dois artigos definiam que os religiosos estrangeiros se-


quer poderiam permanecer no Brasil. O acréscimo desses dois tópi-
cos foi assinado pelos padres que integravam a Comissão Eclesiástica:
Diogo Feijó, Miguel Reinaut e José Bento Leite Ferreira de Melo. Em
maio de 1829, o debate envolveu os bens dos regulares, os liberais sus-
tentavam que as congregações que possuíam votos de pobreza não po-
deriam ter patrimônio. Nesta sessão, foi proposta a venda do patrimônio
dos religiosos que seriam revertidos para pagamento da dívida do Banco
do Brasil (SOUSA, 1942, p. 89-93).
O impedimento de religiosos subordinados às autoridades es-
trangeiras consolidou-se com a promulgação do Código Criminal do
Império em 16 de dezembro de 1830, em seus artigos 79, 80 e 81:

Art. 79. Reconhecer o que for cidadão brazileiro, superior fóra do


Imperio, prestando-lhe effectiva obediencia.
Penas – de prisão por quatro a dezaseis mezes.
Art. 80. Se este crime fôr commettido por Corporação, será esta
dissolvida; e, se os seus membros se tornarem a reunir debaixo da
mesma, ou diversa denominação com a mesma, ou diversas regras.
Penas – aos chefes, de prisão por dous a oito annos; aos outros mem-
bros, de prisão por oito mezes a tres annos.
Art. 81. Recorrer á Autoridade Estrangeira, residente dentro, ou fóra
do Imperio, sem legitima licença, para impetração de graças espiri-
tuaes, distincções ou previlegios na Jerarchia Ecclesiastica, ou para

54  BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 11 de junho de 1828. Brasília: Câmara dos
Deputados. p. 89. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 21 ago. 2014.
114 Histórias, narrativas e religiões
autorização de qualquer acto religioso.
Penas – de prisão por tres a nove mezes55.

Notamos que tanto o religioso quanto a corporação que se sub-


metessem às lideranças fora do Império do Brasil poderiam ser punidos
com a prisão. Qualquer vinculação com clérigos estrangeiros necessita-
vam de aprovação prévia do governo imperial para não ser considerada
ação criminosa.
A relação conflituosa entre o Império e o Clero Regular pode
ser compreendida se levarmos em consideração os privilégios alcança-
dos pelas ordens durante os anos de colônia. Naquele período, as con-
gregações e a oligarquia foram detentoras de benefícios e de grandes
porções de terras que atraíram a cobiça do Estado, uma vez que a orga-
nização administrativa imperial possuía problemas financeiros. Medidas
foram tomadas para viabilizar a apropriação do patrimônio dos regula-
res, sendo a principal delas a proibição do ingresso de noviços ou frades
estrangeiros (ROMANO, 1979, p. 92). Esta providência conduzia os
conventos à decadência e favorecia a intervenção estatal.
De acordo com Martha Abreu, no contexto da América
Hispânica, a subordinação da Igreja colonial à realidade das novas na-
ções somente seria completa se ocorresse numa política iluminista que
aniquilasse as ordens religiosas, secularizassem os bens do clero e insti-
tuíssem uma educação leiga. Contudo, a elites dirigentes reivindicaram
para si o direito de padroado, como herança dos reinos ibéricos, criando
especificidades nos projetos liberais americanos. A dificuldade concen-
trava-se em conciliar os princípios do denominado “liberalismo clássi-
co” com a existência de uma religião católica oficial repleta de privilé-
gios coloniais, como: grandes propriedades, renda e tribunais especiais.
Estava em jogo o papel que a Igreja ocuparia dentro de uma realidade
de independência política de influência liberal (ABREU, 1996, p. 354).
Na América Portuguesa, a situação ocorreu de maneira seme-
lhante. A religião católica entrou em pauta ao longo das transformações
políticas do século XIX. Grupos considerados progressistas se voltaram

55  Código Criminal do Império. 16 de dezembro de 1830. Disponível em: <http://www.


planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em: 21 ago. 2014.
Histórias, narrativas e religiões 115
contra os benefícios coloniais da Igreja. Após a elaboração da consti-
tuição, o controle governamental sobre o catolicismo tendeu a cercear a
influência da Santa Sé ao considerar os eclesiásticos como funcionários
públicos. Desta forma, seria função do poder civil nomear párocos, limi-
tar funções episcopais, permitir recurso aos tribunais seculares, proibir
noviços em ordens religiosas e transformar a paróquia em reduto políti-
co, civil e religioso (ABREU, 1996, p. 363-365).
Percebemos que, ao longo do Primeiro Império e do Período
Regencial, os deputados liberais se empenharam em medidas que visa-
vam diminuir a influência da Igreja na sociedade. Buscou-se enfraquecer
as ordens regulares que, na visão desses políticos, representavam a su-
bordinação às lideranças estrangeiras.

Conclusão

As contribuições do Pe. Feijó na tentativa de limitar a entrada


de religiosos regulares estrangeiros no Brasil se contradiz com o convite
realizado por esse sacerdote, enquanto regente do império em 1836, aos
irmãos morávios. Feijó tinha o interesse de repassar a esse grupo pro-
testante a responsabilidade pela catequese dos indígenas. Ao apresentar
essa proposta ele demonstrou a descrença em sacerdotes católicos e de-
safiou a hegemonia romana. (NOMURA, 2011, p. 91).
A defesa do casamento sacerdotal, juntamente com uma críti-
ca aos regulares católicos e a valorização de grupos protestantes como
os morávios, demonstram que o projeto religioso defendido por Pe.
Feijó era mais do que alterações pontuais no catolicismo. Para nós, se
assemelha a elaboração de uma Igreja Nacional com similaridades ao
Anglicanismo, pois esse sacerdote não defendeu a separação entre os
poderes civis e religiosos, mas uma Igreja que contribua com esse Estado
e não se mantivesse subordinada a uma liderança estrangeira distante,
como o papa.

116 Histórias, narrativas e religiões


Referências

ABREU, Martha Campos. O Império do Divino: Festas religiosas e cultura popular no Rio
de Janeiro (1830-1900). 1996. Tese (Doutorado) – IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, 1996.

NEVES, Guilherme Pereira das. A religião do império e a Igreja. In: GRINBERG, Keila; SAL-
LES, Ricardo. O Brasil imperial 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. v. 1.

NOMURA, Miriam do Prado Giacchetto Maia. Os relatos de Daniel Kidder e a polêmica


religiosa brasileira na primeira metade do século XIX. 2011. Dissertação (Mestrado) – Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2011.

RICCI, Magda. Assombrações de um padre regente. Campinas, SP: Editora da Unicamp,


2001.

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado (crítica ao populismo católico). São Paulo:
Kairós, 1979. p. 92.

SOUSA, Octavio Tarquino. Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Rio de Janeiro: José Olympio,
1942.

SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Do altar à tribuna. Os padres políticos na formação do


Estado Nacional brasileiro (1823-1841). 2010. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ci-
ências Humanas, UERJ, Rio de Janeiro, 2010.

WERNET, Augustin. A Igreja paulista no século XIX. A reforma de D. Antônio Joaquim de


Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987. p. 46-47.

Histórias, narrativas e religiões 117


A Congregação dos Pequenos Irmãos de
Maria: Maristas e as Escolas Católicas
no Início do Brasil Republicano

Luciano de Oliveira (Doutorado – UNICAMP)

Resumo: O texto objetiva discutir a inserção da Congregação dos


Pequenos Irmãos de Maria, ou Irmãos Maristas durante os anos finais
do século XIX e início do século XX no Brasil. Pretende-se debater a im-
plementação da educação católica através de suas instituições escolares e
sua relação com o Estado brasileiro e com a Igreja (Azzi,1996), (Romano,
1991), problematizando a circulação desse grupo católico no campo reli-
gioso e educacional. As fontes utilizadas foram documentos da instituição
Marista: Síntese Histórica da Província Marista de São Paulo, Vinte anos
de Brasil (1897-1917) e Circulares dos Provinciais. No intuito de vislum-
brar os modos de posicionamentos que esses católicos marcaram no cená-
rio do Brasil Republicano. Procurou-se debater sobre os conflitos, parce-
rias e estratégias adotadas pelo grupo na perspectiva de galgarem espaço
de legitimidade no campo educacional (Bourdieu, 1989). O texto debate
sobre a fundação das primeiras escolas maristas e relaciona esse aspecto ao
cenário educacional público (Vieira e Farias, 2007). O artigo quer contri-
buir com os debates já realizados, suscitando novas reflexões sobre a pre-
sença marista no Brasil. Verifica-se após estas discussões que houve uma
reorganização administrativa da Congregação a partir da implantação de
novas Províncias. Os irmãos adaptaram-se as situações políticas, econô-
micas e culturais do país, o que exigiu negociações com grupos religiosos,
elites e com Estado. Houve ampliação dos seus empreendimentos com
consequente aumento do número de membros e a participação de leigos
como colaboradores em seus projetos.

Palavras-chave: Brasil republicano; congregações católicas; colégios


confessionais.
118 Histórias, narrativas e religiões
Introdução

A Congregação dos Pequenos irmãos de Maria, pertencen-


te aos irmãos maristas ou FMS56 foi fundada pelo sacerdote francês
José Marcelino Bento Champagnat, popularmente conhecido como
Marcelino Champagnat, que nasceu na França em 1789.
Após a decisão de Marcelino Champagnat entrar no seminário
e tornar-se sacerdote, vislumbrou com outros colegas seminaristas, fun-
dar uma instituição a fim de cuidar principalmente da questão educacio-
nal das crianças e jovens da época, afetados com a Revolução Francesa.
Desta forma, nos idos dos anos de 1817 juntamente com mais dois jo-
vens deu início ao projeto de fundação da congregação.
Após uma longa trajetória, a instituição conseguiu aprovação
junto ao governo francês, no ano de 1851. Com essa legalização, os ir-
mãos puderam trabalhar como professores nas escolas francesas, funda-
das por Champagnat.
A partir de então, a Congregação vai crescendo após a entrada
de novos membros e espalhando-se pelo mundo todo, inclusive chegan-
do ao Brasil no final do século XIX.
Para compreensão dos aspectos da chegada ao Brasil e circu-
lação dos seus membros, faz-se necessário compreender a instituição
num contexto de grande fluxo de congregações estrangeiras, masculinas
e femininas, chegando ao país no final do século XIX. Maria Alzira
Colombo destaca que:

Historiquement l´evolution du processos politique-religieux en


France et l´influence de la culture francese allaient provoquer la ve-
nue de religieux et de religieuses et contribuier à la fondation de
collèges confessionnels au Brèsil. Les príncipes libéraux orientant
la politique et les societés des pays développés europées ont donc
ouvert les yeux de l´elite patriarcale brésilienne; il était impossible
de maintenir les femmes ignorant, sachant à peine s´occuper de la
Maison et des enfants; il fallait qu´elles sachent au moins lire, écrire

56  Fratres Maristae a Scholis. 


Histórias, narrativas e religiões 119
et qu´elles soient au courant de ce qui se passait en dehors du foyer
domestique pour au moins discuter avec leurs enfants57.

Cumpre destacar que o Brasil naquele momento, vivia os pri-


meiros passos da sanção do documento que iria apregoar o Estado laico
por meio da primeira constituição republicana de 1891.
Momentos antes da promulgação da lei que imprimia um ca-
ráter laico ao Estado, o bispado brasileiro, logo tomou como medida o
chamamento de congregações religiosas, com a finalidade de garantir a
defesa do projeto católico. No caso dos maristas, alguns bispos enviaram
cartas ou foram pessoalmente, principalmente à Europa, para estabele-
cer contato com o superior, na perspectiva de solicitar religiosos para o
trabalho de evangelização e educação no Brasil.
Um dos clérigos que empreendeu viagem à Europa foi Dom
Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, bispo da Diocese de São Pedro
do Rio Grande do Sul, que solicitou pessoalmente ao Superior Geral
dos maristas, Théophane Durand, a vinda deles ao país. Dom Silvério,
bispo de Mariana, também faz o mesmo pedido. Outros relatos também
indicam a ida de bispos pessoalmente à França com a mesma finalidade.
Sebastião Ferrarini afirma que:

A primeira data que consta das crônicas maristas, referentes ao


Brasil, é de 1893. Lembra a visita de Dom Eduardo e Silva a Saint-
Genis- Laval. Ele estava em tratamento de saúde em Lyon, e a con-
selho de Frei Pedro, que o acompanhava, foi solicitar irmãos para
sua diocese. Como vemos, ele não foi de imediato atendido. Dom
Arcoverde quando pediu irmãos, em 1894. Ele se encontrava em
Paris, quando o irmão Teofânio escreveu-lhe, em 1º de setembro,
afirmando ‘ser-me-ia muito agradável prometer-vos irmãos. Não
posso fazer no momento, devido às necessidades das escolas já exis-
tentes, e sobretudo por causa do serviço militar, que prende por três
anos os jovens irmãos’.58

57  COLOMBO, Maria Alzira. Chrétiens et Sociétes XVI e XX siècle. In: Bulletin de l´equipe
RESEA (Religions, sociétes et Acculturation) UMR 5190 LARHRA. nº 13, 2006. p.123
58  FERRARINI, Irmão Sebastião. Síntese Histórica. In: Instituição Marista. Província
Marista de São Paulo. 1984, p.20.
120 Histórias, narrativas e religiões
Após inúmeras solicitações, o Superior Geral da Congregação
em circular, do ano de 1897 relata a ida dos irmãos ao Brasil, conforme
solicitação de Dom Silvério, bispo de Mariana. O superior geral destaca
na circular: “Tenho a satisfação de vos informar que seis irmãos embar-
cam, em Marselha, dia 25 deste mês, (...) para colocar-se à sua disposi-
ção (...). Espero que eles terão da V. Excia a mais paternal acolhida.”59
Em 1897 chegaram ao Brasil os primeiros maristas, em
Congonhas do Campo (MG), onde assumiram a direção de um
Internato. Logo em seguida, desembarcaram no Rio Grande do Sul
mais irmãos maristas. Paulatinamente, estabeleceram relações amistosas
com a elite local e intelectuais. Ao mesmo tempo em que foram am-
pliando a interlocução com outros membros da Igreja, diversificando
seus empreendimentos também para outros estados do Brasil.
A partir do teor básico, herdado do fundador, a congregação
continua com seu pilar no campo educativo. Depois, empreendem em
outras áreas como hospitais, centros sociais e editoras.
Deste modo, o texto questiona quais foram os estabelecimentos
educativos e em quais estados brasileiros os maristas assumiram ações
educativas e apostólicas. Buscando verificar os modos, pelos quais esses
religiosos mantiveram interlocução com intelectuais e com o Estado,
com vistas a garantir credibilidade em seus investimentos educacionais.
Como fontes de investigação, foram analisados os seguintes
documentos: Síntese Histórica, Vinte anos de Brasil, e as circulares do
superior geral.
O primeiro descreve a constituição da Província Marista, ante-
cedendo a atual organização administrativa da congregação.
Vinte anos de Brasil, apresenta os primeiros anos da presença
dos irmãos maristas em território brasileiro, suas dificuldades, seus pro-
jetos e suas conquistas, nos anos de 1897 até 1917. Num tom de crônicas
informais o documento, de autoria do irmão Adorátor, traz informações
significativas da presença dos irmãos maristas no Brasil. Para o presente
texto utilizaremos a versão traduzida da obra, publicada em 2005.

59  INSTITUIÇÃO MARISTA. Circulaires des Supérieurs Généraux de l´ Institute des


Frères de Marie. Vol. IX, 1897, p. 674.
Histórias, narrativas e religiões 121
As circulares são documentos emitidos pelo superior geral da
congregação com objetivo de oferecer orientações gerais, expedir comu-
nicados, relatar dificuldades enfrentadas, saudar irmãos e fundações em
aniversário, comunicar falecimentos, emissão de votos dos novos mem-
bros maristas, destacar empreendimentos entre outros.

Os Primeiros Passos dos Maristas no Brasil

Ao chegarem ao Brasil em 1897, os maristas visualizaram um


cenário precário com relação a educação. Com a constituição de 1891
houve o processo de descentralização do ensino. Onde a União ficou
responsável pela educação superior e a secundária, e os estados, com a
educação elementar e a profissional. Porém, essa reorganização não sig-
nificou a qualidade da educação, continuando elitizada.
Com a chegada de congregações católicas dedicadas ao ensino,
como por exemplo, os lassalistas, as irmãs de São José de Chambéry, os
maristas e outras, houve ampliação da oferta de ensino aos filhos das
elites. As escolas católicas naquele cenário republicano reafirmaram a
importância do catolicismo, através da catequização e fortalecimento do
catolicismo.
Apesar de algumas congregações terem um caráter educativo,
as ações de cada uma divergiam entre si. No caso dos lazaristas, os quais
chegaram antes dos maristas, suas ações desenvolveram-se em três se-
tores específicos: reforma do clero, missões populares e educação da ju-
ventude, sempre na perspectiva da consolidação do modelo Tridentino60.
Com uma tradição pedagógica herdada da França, as primeiras
escolas maristas no Brasil, tiveram suas aulas ministradas pelos próprios
irmãos. Organizavam seu tempo entre as atividades da vida religiosa, o
ofício da docência e a direção das instituições.

60  AZZI, Riolando. História da educação católica no Brasil: contribuição dos Irmãos
Maristas. Vol.1. São Paulo: Simar, 1996.
122 Histórias, narrativas e religiões
Os primeiros seis irmãos maristas que iniciaram suas ati-
vidades no Brasil foram: Andrônico, Aloísio, Basílio, Luís Anastácio,
Afonso Estevão e João Alexandre. Suas primeiras impressões, a respeito
do Brasil, podem ser percebidas no trecho da carta do irmão Andrônico,
descrito abaixo:

Enfim, no dia 15 de outubro chegávamos à entrada da baía do Rio


de Janeiro. Mas tivemos que percorrer mais 110 quilômetros para
o sul até Ilha Grande, para o desembarque de alguns passageiros
atacados de varíola. De regresso ao Rio, pelas 18 horas, vimos o nos-
so navio invadido por parentes e amigos dos passageiros, trazidos
em lanchas a vapor. Após alguns minutos consagrados a inspeção
das bagagens na alfândega, tratamos de desembarcar. Um sacerdote
brasileiro, mandado por D. Silvério, bispo de Mariana, tinha freta-
do uma lancha para nós e, chegando perto do navio, perguntou em
alta voz: Onde estão os irmãos maristas? Encontram-se neste navio?
Estamos, respondemos com entusiasmo. Num instante, chapéus,
mantos, malas tudo estava pronto. Dez minutos depois, nos acháva-
mos no cais do porto. Um bonde nos transportou ao convento dos
capuchinhos, onde devíamos passar a noite61.

Verifica-se que o próprio bispo providenciou a recepção aos


maristas e sua hospedagem. Nota-se também, a expressão de satisfação
dos irmãos em atender prontamente a solicitação do bispo.
Após assumirem o Colégio de Congonhas do Campo, todavia,
as primeiras dificuldades surgiram, como por exemplo, no aprendizado da
língua portuguesa, acrescido ao fato da pedagogia ser à la mode française.
Os maristas assumiram de imediato o colégio em regime de inter-
nato e externato. Posteriormente, foi estabelecida a possibilidade de ter um
juvenato62 anexo ao colégio. Tal possibilidade vinha ao encontro da amplia-
ção do número de sacerdotes para a Igreja e também de irmãos maristas.
Os maristas eram mantidos economicamente, com os valores
que eram arrecadados a partir da renda do Santuário do Bom Jesus.
Decorrente de dificuldades administrativas, a permanência dos irmãos

61  INSTITUIÇÃO MARISTA. Tomo IX, p. 232. Op.cit.


62  Refere-se ao seminário de formação dos futuros irmão maristas.
Histórias, narrativas e religiões 123
tornou-se incerta e precária, levando-os, conforme Riolando Azzi, a
deixar o colégio após três anos de atividades63.
De acordo com Sebastião Ferrarini:

Os irmãos não tinham em Congonhas independência suficiente para


o desenvolvimento normal do apostolado, nem para uma manuten-
ção decente. Parte dos proventos para o educandário era proveniente
das romarias. Os alunos também pagavam mensalidades. 64

Mesmo deixando a direção do colégio, a pedido do bispo al-


guns irmãos permaneceram em Congonhas do Campo. Estabelecendo
relações com o bispado do Rio de Janeiro, adquiriram uma fazenda em
Mendes (RJ). Conforme o irmão Adorátor:

Tão logo tiveram contato com a fazenda sentiram vontade de pos-


suir a propriedade. Para tal, o primeiro passo foi uma visita ao ar-
cebispo no dia 4 de abril de 1903. O Arcebispo intercedeu junto a
Comissão Tridetina e esta autorizou a venda da propriedade65.

Os primeiros anos de atuação dos irmãos maristas no Brasil fo-


ram alicerçados em quatro estados da federação, a saber: Minas Gerais,
Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul66. A princípio seus tra-
balhos vincularam-se ao campo religioso e educacional.
Os prelados que acolherem os maristas nos primeiros anos
da Instituição no Brasil, foram Dom Eduardo Duarte e Silva, bispo
de Minas Gerais, Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque, bispo de
São Paulo, em 1894 e Dom Silvério Gomes Pimenta, bispo auxiliar de
Mariana, Minas Gerais, em 189567.

63  AZZI, 1997.Op.cit.


64  FERRARINI,1984, p.37. Op.cit.
65  INSTITUIÇÃO MARISTA. Vinte anos de Brasil. Tradução de Virgílio Josué Balestro.
Curitiba: Edição do autor, 2005. p.161.
66  RODRIGUES, Nadir Bonini. Ação inovadora dos Irmãos Maristas no Sul do Brasil:
1990-2000. Porto Alegre: Maristas, 2000.
67  OLIVEIRA, Luciano de; OLIVEIRA, Mariani Bandeira Cruz. Instituição Marista e a
Editora FTD no Brasil: uma discussão sobre trajetória no período de 1902 a 1917. In. Santana
em Revista, Ponta Grossa, 2008.
124 Histórias, narrativas e religiões
Além dos bispos mencionados, os maristas também tiveram
apoio de outras congregações religiosas – femininas e masculinas - na
execução de seus projetos. Nos relatos do Irmão Adorátor encontramos
alguns trechos que evidenciam tal assertiva, quando da primeira visita
realizada, em 24 de junho de 1906 à Franca (SP), como pode-se obser-
var no excerto abaixo:

Às dez horas e meia estávamos em Franca. O Pe. Luís Conrado,


capelão das irmãs, esperava-nos na estação. Abraça-nos, toma um
veículo e nos conduz à casa das irmãs para a missa que assistirí-
amos. Experimentamos agradável impressão, ao ingressar na casa
das boas irmãs de São José de Chambèry. Encontramos linda cape-
la dedicada a Nossa Senhora de Lourdes. A arquitetura, as decora-
ções, as estátuas, o altar, tudo exibe muito bom gosto. A notícia da
nossa próxima instalação foi para as irmãs causa de grande alegria.
Fomos bem recebidos68.

Apesar do enfrentamento de diversas dificuldades, os maristas


foram ao encontro dos projetos da Igreja que seguiam uma lógica de
defesa da fé Católica69. Sebastião Ferrarini afirma que:

No ano de 1903, eram abertas as casas de Mendes e Uberaba, no


Brasil Central, pela Província de Lacabane, enquanto Aubenas fun-
dava escolas no norte e a Província do Norte; França, abria casas no
sul do Brasil. Neste ano partiram para as missões 573 irmãos. No
Brasil Central havia 40 irmãos franceses trabalhando em 7 casas.70

Com poucos anos de presença dos maristas no Brasil, houve


um aumento significativo de novas obras, desencadeado pela formação
de novos religiosos e doações. Em 1902, o Dr. Ismael Dias ofereceu uma
construção no bairro Cambuci, na cidade de São Paulo, a fim de formar
uma nova residência marista e externato71. Desse modo, o Externato

68  INSTITUIÇÃO MARISTA, 2005. Op. cit.


69  ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado (crítica ao populismo católico) São
Paulo: Kairós, 1991.
70  FERRARINI, Irmão Sebastião. Síntese Histórica. In: INSTITUIÇÃO MARISTA.
Província Marista de São Paulo. 1984, p.44.
71  AZZI, Riolando. História da educação católica no Brasil: contribuição dos Irmãos
Histórias, narrativas e religiões 125
Nossa Senhora da Glória constituiu-se o primeiro colégio de proprieda-
de marista em São Paulo.
Com a abertura dos colégios, era necessário não apenas contar
com a credibilidade e o aval da Igreja na oferta do ensino, mas também
ter a chancela do Estado. Nesta perspectiva, verifica-se que uma das es-
tratégias foi a equiparação dos colégios maristas, com o Colégio Pedro II.
O reconhecimento oficial fora conquistado a custas de empre-
endimento de diversos capitais72, alguns já acumulados pelos maristas,
com vistas a permanecer e consolidar-se no campo educacional, am-
pliando-se também em outros campos de atuação.
A partir de uma abordagem de Bourdieu, o detentor de maior
grau de capital em um determinado espaço social, recebe uma alta conces-
são de capital simbólico (reconhecido como legítimo) e esses detentores
de capital simbólico exercem o domínio por meio da autoridade legiti-
mada. Esses espaços construídos são chamados de campo por Bourdieu,
precisamente, para se referir a certos espaços de posições sociais nos quais
determinado tipo de bem é produzido, consumido e classificado73.
Verifica-se que até meados de 1918 houve um crescimento ver-
tiginoso da congregação, concretizado por meio da abertura de institui-
ções educacionais e realizado a partir de investimentos em capitais já
acumulados. Ou ainda, adquiridos pelas negociações, parcerias e circula-
ção no campo religioso e educacional. Desse modo, inauguraram novas
obras em diversos Estados brasileiro, conforme mostra o quadro abaixo:

OBRAS MARISTAS NO BRASIL: INÍCIO DO SÉCULO XX

ANO LOCAL OBRA


1899 São Paulo (SP) Ginásio do Carmo
1900 Bom Princípio (RS) Escola Paroquial, Pública, complementar e Normal

Maristas. Vol.1. São Paulo: Simar, 1996. p. 125.


72  BOURDIEU, Pierre. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU,
Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 59-73.
73  NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Claudio Marques Martins. Bourdieu e a
educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.31.
126 Histórias, narrativas e religiões
ANO LOCAL OBRA
1902 Uberaba (MG) Colégio Marista Diocesano
1902 São Leopoldo (RS) Escola São Luís
Escola São José e comunidade auxiliar do Colégio
1902 Porto Alegre (RS)
Anchieta
1902 São Paulo (SP) Colégio Nossa Senhora da Glória
1902 Franca (SP) Colégio Champagnat
1902 Rio de Janeiro (RJ) Colégio Diocesano São José da Tijuca.
1903 Santa Cruz do Sul (RS) Escola São Luís e Escola do Comércio
1903 Taquara (RS) Escola São Luís
1904 Santos (SP) Colégio Marista de Santos
Escola Menino Deus; Escola da Catedral e Escola
1904 Porto Alegre
Nossa Senhora do Rosário
1904 Santa Maria (RS) Escola São Luís
Colégio Santa Antônio e Escola Pública; Escola de
1904 Garibaldi (RS)
Comércio
1904 Cruz Alta (RS) Colégio São José
1904 Uruguaiana (RS) Colégio Santana
1905 Santa Maria (RS) Colégio Santa Maria
1905 Alegrete (RS) Escola Imaculado Coração de Maria
1905 São Gabriel (RS) Escola São Gabriel
1905 Passo Fundo (RS) Escola São Pedro
1908 São Paulo (SP) Colégio Arquidiocesano
1914 Belém (PA) Instituto Nossa Senhora de Nazaré
1918 Varginha (MG) Colégio Marista de Varginha

FONTES: AZZI, Riolando. História da educação católica no Brasil: contribuição


dos Irmãos Maristas. Vol.1. São Paulo: Simar, 1996; RODRIGUES, Nadir Bonini.
Ação inovadora dos Irmãos Maristas no Sul do Brasil: 1990-2000. Porto Alegre:
Maristas, 2000.

Apesar desse quadro marcado pelo grande número de escolas


maristas em diversas regiões do Brasil, a educação pública permaneceu
Histórias, narrativas e religiões 127
precária, com índices de analfabetismo acima dos 80%. Mesmo com a
implementação de diversas reformas educacionais no cenário do Brasil
republicano desde 1890, mais de dez anos depois, os anseios de mudan-
ça a partir das reformas foi amplo, porém na prática nem tanto74.
Portanto, verifica-se que a congregação marista, pautada nos
preceitos da Igreja e do seu fundador Marcelinho Champagnat, conse-
guiu implementar uma marca indelével na educação do Brasil, ampliou
sua abrangência de atuação a outros campos como o editorial75 e contri-
buiu significativamente com os projetos da Igreja no país.

Considerações Finais

Observou-se através deste artigo, que houve no Brasil um


grande crescimento da Congregação dos Pequenos Irmãos de Maria.
Verificou-se também a abertura de novos colégios e construções de re-
sidências. Ao mesmo tempo em que estes colégios ofereciam ensino
equiparado as exigências da legislação educacional da época, formava
novos quadros de religiosos para a Igreja.
Ao equiparar seus estabelecimentos educacionais, especial-
mente ao Colégio Pedro II, modelo da época, propiciava aos maristas
ampliar sua atuação e credibilizar sua permanência no campo religioso
e educacional.
As fontes utilizadas permitiram a constatação dos conflitos e
dificuldades enfrentados pelos maristas, seja com relação à língua ou sua
pedagogia, com viés francês. Notou-se também a presença do Estado,
aprovando a equiparação dos estabelecimentos maristas e não intervin-
do na oferta do ensino religioso, mesmo estando sob a égide de uma
constituição que prescrevia sobre um país laico.

74  VIEIRA, Sofia Lerche; FARIAS, Maria Sabino Isabel. Política Educacional no Brasil:
introdução histórica. Brasília: Liber livro Editora, 2007.
75  BITTENCOURT, Agueda Bernadete. O livro e o selo: editoras católicas no Brasil. In:
Pro- Posições. v. 25, n. 1 (73). p. 117-137. Jan./abr. 2014.
128 Histórias, narrativas e religiões
Algumas elites da época apoiaram os projetos maristas, doando
propriedades e intervindo em questões de ordem política para defesa
dos interesses católicos.
Com a ampliação da Instituição e de suas redes de contatos,
verificada pela fundação de escolas, houve a independência administra-
tiva dessa, que a princípio não gozava de gestão financeira e religiosa.
Formou-se assim, várias províncias ou unidades administrativas no ter-
ritório nacional com investimentos em diversos empreendimentos.

Referências

AZZI, R. História da educação católica no Brasil: contribuição dos Irmãos Maristas. Vol.1.
São Paulo: Simar, 1996.

BITTENCOURT, Agueda Bernadete. O livro e o selo: editoras católicas no Brasil. In: Pro-
Posições. v. 25, n. 1 (73). P. 117-137. Jan./abr. 2014.

BOURDIEU, P. A gênese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU, Pierre. O


poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 59-73.

COLOMBO, Maria Alzira. Chrétiens et Sociétes XVI e XX siècle. Bulletin de l´equipe RE-
SEA (Religions, sociétes et Acculturation) UMR 5190 LARHRA. nº 13. p.123. 2006.

NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Claudio Marques Martins. Bourdieu e a educação.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009, p.31

OLIVEIRA, Luciano; OLIVEIRA, Mariani Bandeira Cruz. Instituição Marista e a Editora


FTD no Brasil: uma discussão sobre trajetória no período de 1902 a 1917. In. Santana em
Revista, Ponta Grossa, 2008.

RODRIGUES, Nadir Bonini. Ação inovadora dos Irmãos Maristas no Sul do Brasil: 1990-
2000. Porto Alegre: Maristas, 2000.

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado (crítica ao populismo católico) São Paulo:
Kairós, 1991.

VIEIRA, Sofia Lerche; FARIAS, Isabel Maria Sabino de. Política Educacional no Brasil:
introdução histórica. Brasília: Liber livro Editora, 2007

Histórias, narrativas e religiões 129


Fontes utilizadas

FERRARINI, Irmão Sebastião. Síntese Histórica. In: INSTITUIÇÃO MARISTA. Província


Marista de São Paulo. 1984,

INSTITUIÇÃO MARISTA. Circulaires des Supérieurs Généraux de l´ Institute des Frères


de Marie. Volume IX, 1897.

INSTITUIÇÃO MARISTA. Vinte anos de Brasil. Tradução de Virgílio Josué Balestro. Curi-
tiba: Edição do autor, 2005.

130 Histórias, narrativas e religiões


Pelo direito de civilizar os índios: a
disputa entre a “catequese leiga” e a
catequese católica das ações missionárias
no interior do Brasil (1910-1920)

Paulo Henrique Silva Pacheco (UERJ / CAPES)

Resumo: A separação entre os poderes da Igreja e do Estado não


impediram que o governo republicano, na primeira década do século
XX, reconhecesse nas ordens religiosas regulares uma personalidade
social e jurídica, que, por meio de ações missionárias, pudessem civili-
zar os índios e promover os ideais de progresso idealizados para o país.
Utilizando-se dessa possibilidade como uma estratégia para restabele-
cerem as relações com o poder político, algumas instituições religiosas
promoveram trabalhos de conversão, evangelização e ensino de ofícios
agrícolas e do idioma nacional com o objetivo de aumentar a soberania
do território brasileiro, nacionalizar da população e desenvolver as re-
giões localizadas nos limites do país. Entretanto, o serviço de assistên-
cia aos indígenas, assim como o trabalho de prevenção e manutenção
de suas terras, foi reclamado pelo poder secular através do Serviço
de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
(SPILTN), criado pelo então Ministro da Agricultura Rodolpho
Miranda, a partir do Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910. As
ações que contemplavam essa resolução passaram a ser noticiadas por
alguns periódicos do Rio de Janeiro, até 1920, como “catequese leiga”.
A partir da antinomia do termo, ilumino os conflitos entre as ordens
regulares e alguns líderes republicanos. Neste trabalho, seleciono a ma-
terialidade do embate (pronunciamentos, discursos e falas) produzido
pelo Bispo D. Gerardo van Caloen, monge beneditino idealizador da
missão Rio Branco, e do diretor do (SPI), Horta Barbosa, para proble-
matizar a disputa pelo direito de civilizar os índios.

Histórias, narrativas e religiões 131


A mais política de todas as questões:
uma análise da crítica liberal de Rui
Barbosa ao ultramontanismo e ao
Regalismo no Brasil, durante a segunda
metade do século XIX

Diego Henrique Pires (PUCCAMP/ FAPIC/Reitoria – PUC)

Resumo: Partindo da problematização dos elementos que moldaram


a configuração institucional da Igreja católica no Brasil, nos marcos de
1844 a 1891, período em que os representantes do ultramontanismo
ganharam legitimidade política junto ao Estado imperial, a presente
pesquisa foca na polêmica que então polarizou representantes do ca-
tolicismo ultramontano e os pensadores liberais, pautados na defesa da
liberdade religiosa e da neutralidade do Estado laico. No que concerne
ao tema, propõe-se analisar a introdução de Rui Barbosa ao livro “O
Papa e o Concílio”, do teólogo e historiador alemão Döllinger, de 1877,
no qual Rui expõe as diversas críticas à tradição regalista – hegemônica
durante a primeira metade do século XIX - e ao modelo ultramontano
de reforma clerical, cuja ascensão se deu no Brasil durante a segunda
metade do XIX. Ambos, em sua visão, prejudiciais ao desenvolvimento
de uma liberdade religiosa, que seriam necessários para o progresso e
modernidade para o Brasil. A presente pesquisa foca na crítica liberal
ao Ultramontanismo e ao regalismo, no que concerne a suas questões
políticas, como a oposição ao casamento exclusivamente religioso, aos
seminários e a educação realizada por clérigos.

132 Histórias, narrativas e religiões


Algumas justificativas filosóficas,
teológicas e econômicas para a
manutenção da escravidão no Brasil do
Século XIX

Nadir Chagas Ribeiro dos Santos (MACKENZIE)

Resumo: Como explicar, no século XXI, a escravidão perpetrada, até


o século XIX, por países majoritariamente cristãos, como EUA e no
Brasil? A legislação atual tutela a dignidade da pessoa humana e crimi-
naliza a prática da escravidão, mas no tempo das grandes descobertas e
nos séculos que as sucederam não era assim. Esse trabalho tem como
objetivo levantar alguns dos argumentos filosóficos, teológicos e eco-
nômicos que justificaram, especialmente entre os cristãos do Brasil do
século XIX, a manutenção do elemento servil e o tráfico negreiro. Para
isso utilizará como fonte de informação a influencia dos argumentos
aristotélicos e dos discursos dos líderes cristãos e políticos de então. É
um projeto que está em andamento e deverá compor a tese de Mestrado
da participante.

Histórias, narrativas e religiões 133


O bispo vermelho: D. David Picão e o
convívio com os aparatos repressivos

Gines Salas Neto (UNISANTOS)

Resumo: Essa pesquisa teve como objeto de estudo a relação do bispo


de Santos, D. David Picão, com os acontecimentos da política brasileira
entre anos de 1966 e 1971, utilizando como principal referência a aná-
lise de parte do acervo do DEOPS/SP, disponibilizado pelo Arquivo
Público do Estado de São Paulo (AESP). O recorte histórico engloba a
posse de D. David Picão como bispo diocesano em dezembro de 1966,
sucedendo D. Idílio José Soares, até as tensões ocorridas após a promul-
gação AI-5.

Palavras-chave: D. David Picão. Igreja Católica. Santos. DEOPS/SP.


Ditadura Militar.

Introdução

O novo modelo de catolicismo brasileiro que se desenvolveu na


segunda metade do século XX despertou cedo o interesse e a simpatia
da academia, antes mesmo do fim do regime. Outrora agente político
conservador e apoiador das marchas de março de 1964, converteu-se
com o passar dos anos em uma das Igrejas Católicas mais progressistas e
importantes do mundo, defendendo justiça social, os direitos humanos
e a democracia.
Com a facilidade com que foram suprimidas as guerrilhas e as
limitações submetidas ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
“a Igreja tornou-se o mais conspícuo opositor do estado autoritário

134 Histórias, narrativas e religiões


brasileiro” (SKIDMORE, 1988, p.273). Diferentes bispos, tais como
D. Hélder Câmara, D. Paulo Evaristo Arns, D. Pedro Casaldáliga, D.
Cândido Padin, D. Waldyr Calheiros, etc, são reconhecidos como prota-
gonistas no combate as arbitrariedades perpetradas pelos militares, sen-
do vítimas de intimidações, principalmente em virtude do sofisticado
sistema de vigilância criado. Entretanto, um prelado influente dentro da
CNBB foi bastante hostilizado, mas pouco lembrado como um perse-
guido: D. David Picão, bispo titular de Santos em anos nevrálgicos para
a Igreja brasileira. É sobre o convívio deste religioso com os aparatos
repressivos que trataremos.
Para tanto, recorremos a análise documental de parte do con-
teúdo disponibilizado na “Série Dossiês” do acervo do DEOPS/SP, ob-
jetivando entender como o mais longevo dos bispos de Santos agia e
de que modo era visto pelos aparelhos de informação, reconhecendo
que o acervo não se restringe a documentação “produzida” pelo DOPS/
SP, mas que contém uma ampla quantidade de jornais e periódicos da
época, sendo esse material fundamental para conhecer as atividades da
instituição no período. Além disso, seu vasto material não se limita aos
documentos produzidos pelo DOPS/SP, mas possui também a intensa
troca de correspondências e informações realizadas pelos órgãos de vi-
gilância que compunham o Sistema Nacional de Informações (SISNI),
tanto os da esfera local, quanto da estadual e federal.
Fora o já citado momento político, as diversas transformações
ocorridas no interior da instituição durante o período tornam a atuação
deste bispo conciliar, como gostava de ser conhecido aliás, um excelente
objeto para a compreensão desse complexo e multifacetado período da
Igreja no Brasil.

1. Um Discurso Contundente

Após breve passagem pela recém-criada Diocese de São João da


Boa Vista, D. David Picão assumiu o cargo de bispo coadjutor no litoral
Histórias, narrativas e religiões 135
em 22 de junho de 1963, com direito a suceder D. Idílio José Soares.
Nascido em 18 de agosto de 1923, na cidade de Ribeirão Preto, primo-
gênito de uma família simples de sete irmãos, ordenou-se em Roma no
ano de 1948, onde concluiu os estudos e cursou Direito Canônico. Doze
anos mais tarde era nomeado bispo pelo papa João XXIII, assumindo a
diocese do interior paulista.
Considerado inimigo direto da revolução, em um informe de
novembro de 1971, ele foi descrito como astucioso, envolvente e ele-
mento de esquerda.76 Em novembro de 1966, foi apontado que ele
preparava um manifesto em favor de D. Helder Câmara, arcebispo
de Olinda e Recife. Os conteúdos mais hostis a seu respeito, repletos
de boatos que nunca se consolidaram são curiosamente aqueles que
precedem a sua posse:

D. David Picão, bispo coadjutor de Santos, elemento da ala comu-


nista da Igreja Católica, está trabalhando ativamente para conse-
guir o afastamento do atual bispo Dom Idílio José Soares, a fim de
assumir o governo da Diocese. Dom Idílio recentemente solicitou
ao Papa sua renúncia, alegando idade avançada. Em consequência,
Dom David deverá assumir a Diocese e poderá pôr em execução o
seu plano do afastamento dos pontos-chaves da hierarquia eclesiás-
tica dos sacerdotes anticomunistas.77

Reforçando a fama de subversivo, suas aparições em público,


seja em homilias, conferências ou palestras eram as causas de maior es-
cândalo. Geralmente com um tom de apelo por justiça social, ainda que
não fosse habitual um ataque explícito ao governo, seu discurso era sem-
pre contundente. Em julho de 1967, em um curto espaço de tempo, ele
recebeu dois pedidos que muito revelam a seu respeito. O primeiro, um
curioso convite para compor o diretório municipal do MDB na cidade,
após proposta expressa feita por Gastone Righi, que chegou a declarar
na imprensa que as ideias do bispo coincidiam com as do partido. “O

76  Atividade de D. David Picão em Santos. 29 nov. II Exército. 1971. Inf. 677/71. Pront. 1421.
– D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
77  D. David Picão, Histórico. 07 out 1966. RPI 2. BC. Folha n. 1. Pront. 1421. – D. David
Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
136 Histórias, narrativas e religiões
que eu quero é provar que a Igreja não compactua com a estrutura ca-
pitalista e as melhores vozes do cristianismo estão dizendo o mesmo”.78
Apesar da recusa, a proposta permaneceu uma preocupante
provocação, causando inclusive a indignação dos vereadores arenistas
na Câmara Municipal. Naquele mesmo mês, falecia Mal. Humberto
Castelo Branco, primeiro presidente do Regime, o que fez com que o
capelão do exército, Pe. Edmundo Cortez, procurasse o bispo para a re-
alização de uma missa de sétimo dia na catedral da cidade. A solicitação
foi negada e a comunidade católica conservadora, que já se encontrava
ressabiada, ficou furiosa.79
Na comemoração do “Dia do Papa”, realizada no dia 02 de
julho, em evento sediado no auditório do Colégio São José, entre uma
apresentação do coral dos alunos e outra, o bispo falou em defesa de
Paulo VI para um público de seiscentas pessoas, na época, coincidente-
mente, também acusado de subversivo. Em março daquele ano, o pon-
tífice publicou em Roma a “Populorum Progressio”, a mais importante
encíclica social de seu pontificado, uma das mais influentes da história
da Igreja e entre as mais polêmicas também, preocupada com os povos
em desenvolvimento e com a distância entre países ricos e pobres:

Quem achar que os pronunciamentos do Papa são subversivos, não


diga que é batizado, nem que é cristão, pois não podemos admitir
que alguém levante contra a voz do papa, da cátedra de Pedro, como
tem acontecido nestes últimos tempos e últimos dias [...]. O mundo
não vai bem. E o que digo não é para dramatizar, se falo é porque
não vai mesmo. Hoje, dois terços da humanidade passam fome. Dois
terços da população brasileira, vivem na miséria. E na miséria, nem
sequer ser cristão podemos. É necessário que a juventude, com con-
cepções novas e revolucionárias, se prepare para lançá-las no meio da
sociedade, para curá-la das distorções que existem, numa verdadeira
revolução social em termos cristãos.80

Prosseguindo sua fala, o bispo lembrou ainda dos mártires

78  D. David rejeita convite do MDB. Cidade de Santos. Santos, 14 jul. 1967. p.4.
79  D. David Picão, Histórico. 26 jul. 1967. Infe. n. 12. Departamento de Polícia Federal,
Subdelegacia Regional de Santos. Folha n. 3. Pront. 1421 – D. David Picão. DEOPS/SP.
80  No dia do Papa, bispo pede revolução social. Cidade de Santos. Santos, 03 jun. 1967. p.5.
Histórias, narrativas e religiões 137
cristãos, perseguidos e sacrificados pelos métodos mais diversos, o que
também foi uma alusão ao assédio anticomunista existente: “Será que
conosco não acontecerá a mesma coisa? É provável que sim, pois já tive-
mos algumas amostras mesmo no Brasil. Só que hoje os deuses pagãos
que existiam antigamente estão mudados, como também as feras”.81
Consta ainda em relatório que D. David a defendeu contun-
dentemente em palestra no Salão Nobre da Faculdade Católica de
Direito, no dia 28 de outubro de 1967, para um público aproximado de
duzentas pessoas, que contava com a presença do vice-prefeito, deputa-
dos, vereadores e lideranças estudantis. “Não estamos conclamando os
pobres a lutar contra os ricos, conclamamos os pobres para que procu-
rem sua própria promoção”,82 exprimiu-se. Na ocasião, leu também o
“Manifesto dos Bispos do Terceiro Mundo”, capitaneado pelo arcebispo
de Olinda e Recife e inspirado pela mesma encíclica papal, assinado por
dezessete bispos de diversos países, incluindo o próprio D. David.
Na missa em ação de graças ao aniversário do município, re-
alizada na Catedral pela manhã do dia 26 de janeiro de 1968, uma
assembleia repleta de autoridades civis e militares viu o bispo fazer
cobranças duras, lembrando o episódio da explosão do gasômetro
ocorrida no ano anterior, em que cinco reservatórios com capacidade
de 1.658m³ cada foram simplesmente desintegrados em plena ma-
drugada, criando um caos urbano e social na cidade, aumentando o
número de pedintes e gerando repercussão internacional: “A caridade
não tolera ruas e abrigos carregados de mendigos. A liberdade não to-
lera a escravização do homem pela miséria social”.83 Ouviam o sermão
o comandante da praça, deputados, prefeitos e outras autoridades civis
e militares. Mesmo com todos os sinais intimidantes, D. David não
hesitava na postura e no discurso.

81  Idem.
82  Relatório Reservado 301. 30 out.1967. Folha. n. 2. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP.
Fundo, DEOPS.
83  Relatório Reservado 041. 26 jan.1968. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP.
Fundo, DEOPS.
138 Histórias, narrativas e religiões
2. O Ano que Não Terminou

O ano de 1968 entrou para a história como um dos mais inten-


sos do século XX, graças a multiplicação de protestos antiautoritários,
a maioria liderado por estudantes e trabalhadores. O Brasil teria o seu
1968 com as manifestações estudantis que se espalharam pelas capi-
tais e grandes cidades. O clima de instabilidade seria o pretexto para o
endurecimento da repressão, alcançando a sua fase mais brutal com a
promulgação do AI-5 naquele fatídico ano.
Em 05 de julho de 1968, Santos se inseriu enfim no ano das
grandes manifestações, realizando uma passeata no centro da cidade,
articulada por organizações estudantis e pelo diretório do MDB na ci-
dade, contra a violência da ditadura. A marcha, que foi incentivada tam-
bém por alguns religiosos e reuniu cerca de duzentas pessoas, se iniciou
às 18 horas, com concentração na Rua XV de Novembro, terminando
na Praça Mauá, sob forte vigilância. A esperança das lideranças era que
essa fosse à primeira de várias outras manifestações a serem realizadas
na cidade. Não contavam com o decreto da proibição de atos iguais a
esse em todo o Brasil, promulgado um dia depois.84
Conforme as mobilizações se desenvolviam pelo país, a repres-
são dava sinais claros de acirramento. Naquela mesma semana, boatos
de que seria decretado Estado de Sítio foram veiculados pela imprensa.
Foi quando o sumiço por 72 horas do advogado e professor universitário
Sérgio Sérvulo da Cunha dias após a passeata atemorizou ainda mais a
região. A suspeita de sequestro ou prisão fez com que o bispo lançasse
um manifesto corajoso e expressivo de repúdio, distribuído e vinculado
na imprensa com a assinatura de vinte e sete padres no dia 10 daquele
mês,85 um dia antes do seu reaparecimento. Tal atitude acentuou o mal-
-estar já existente, entre o prelado e a repressão.
Se a passeata representou um marco da contestação ao regi-
me na região, a Igreja Católica protagonizaria outro momento nesse

84  Baixado Ato contra passeata. Cidade de Santos. Santos, 06 jul. 1968. 2. Cad. p.2.
85  PICÃO, D. David. Manifesto de D. David. Cidade de Santos. Santos, 10/jul. 1968. 1. Cad. p.3.
Histórias, narrativas e religiões 139
mesmo aspecto. Naquele mesmo ano, a diocese aderiu conforme orien-
tação do “Pacto do Rio de Janeiro”, firmado durante a IX Assembleia
Geral da CNBB em 19 de julho de 1968 ao movimento “Pressão Moral
Libertadora”, assinado por 41 bispos e encabeçado por D. Hélder
Câmara, em razão dos vinte anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Tendo o nome alterado para “Ação, Justiça e Paz”, o objetivo
do movimento era o combate a injustiça por meio da não-violência,
servindo como uma alternativa que contrapunha a opção pela luta ar-
mada. A reunião inaugural foi realizada na noite do dia 03 de outubro
no Colégio São José,86 para um público aproximado de mil pessoas, em
sua maioria jovens oriundos de diversas agremiações estudantis.
Os eventos de 1968, no entanto, deixaram a ditadura acuada,
e, com isso, ela acabou mostrando sua face mais nefasta, com a imple-
mentação do Ato Institucional nº5 em 13 de dezembro daquele ano.
No dia seguinte ao decreto, o muro do palácio episcopal amanheceu
pichado com os dizeres “David = Subversão” e “D. David comuna”. As
Igrejas do Embaré, dos Passos no Boqueirão e da Pompéia também fo-
ram vandalizadas. “Comunas cuidado, chegamos” e “David + Sérvulo =
Comunismo” eram algumas das frases. Lideranças políticas da cidade
foram detidas e arrancadas abruptamente de suas casas em plena ma-
drugada, entre elas três padres operários franceses, que atuavam na Zona
Noroeste. Conduzidos ao 2º BC de São Vicente, permaneceram encar-
cerados preventivamente, sendo interrogados um a um.
A repressão também bateu na porta do Palácio Episcopal du-
rante aquela madrugada, sob a ordem de levar o prelado a força. As
prisões e as pichações foram noticiadas na imprensa, mas a ordem de
detenção do bispo diocesano não. Por intervenção do então comandan-
te da Praça, Gen. Belfort Bethlem, católico devoto e participante do
chamado Cursilhos da Cristandade, D. David não foi levado. Segundo
informação recebida da base aérea, no dia 18 daquele mês, Mons. Ary
Aguiar, vigário geral na época, convocou uma reunião com o clero, reali-
zada no Colégio São José, para falar da situação política no país e sobre

86  Relatório Reservado n. 377. 03 out.1968. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão.
AESP, Fundo, DEOPS.
140 Histórias, narrativas e religiões
os acontecimentos na madrugada do AI-5. Nela, também foi redigido
um ofício destinado ao Comandante da Praça, em agradecimento.87
Em 1969, a cidade seria enquadrada na Lei de Segurança
Nacional, ganhando um prefeito interventor. No âmbito eclesiástico, o
recrudescimento do regime geraria uma postura mais cautelosa do pre-
lado, que seria adotada daquele momento em diante pela maior parte
dos bispos brasileiros. O prelado buscaria manter relações diplomáticas
com os militares, orientando até mesmo, conforme informe de 1971,88
que todas as missas e solenidades envolvendo militares fossem tratadas
por ele pessoalmente. Não esperou talvez que seu passado tornava tal
tentativa pouco viável.

3. A Origem da Perseguição

A perseguição a D. David é anterior a Santos, e se iniciou ainda


na Diocese de São João da Vista, quando o bispo ganhou a antipatia dos
donos de terras. Sobre às acusações que sofrera da parte de fazendeiros
nesse período, D. David falou durante o coquetel em comemoração ao
jubileu de prata de sua ordenação sacerdotal em outubro de 1973:

Em São João da Boa Vista, realizou-se um levantamento sócio reli-


gioso da diocese. Chegou à conclusão de que mais da metade desta
era constituída de zona rural. Resolveu então transformar a atuação
pastoral, para atender o homem do campo, formando a Instituição
Diocesana de Ação Rural. Por essa iniciativa, passei a ser chama-
do de comunista por muitos fazendeiros, porque visitava as fazen-
das e, auxiliado pelas irmãs de um convento beneditino, ensinava o
Evangelho e dava noções de economia doméstica aos trabalhado-
res.89

87  D. David Picão: Histórico Político. 27 dez.1968. DOPS/Santos. Folha. n. 3. Pront. n. 1421.
- D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
88  D. David Picão: Histórico. 02 dez.1971. DOPS/Santos. Folha. n. 7. Pront. n. 1421. - D.
David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
89  Hoje, o bispo comemora 25 anos de ordenação. A Tribuna. Santos. 10 out 1973, Pront. n.
Histórias, narrativas e religiões 141
A fama de subversivo atravessou as jurisdições eclesiásticas, o
tempo e repercutiu pelo país. É justo nesse momento que os militares as-
cendem ao poder, ao mesmo tempo que o progressismo católico, que flo-
rescia aos poucos na década de 1950, despertava a preocupação das elites.
Cabe frisar que a imagem construída a seu respeito não foi
sempre reconhecida. O bispo nunca se intimidou em dar demonstra-
ções de conservadorismo com relação a temas referentes à moral, por
exemplo. Em 1973, tornou pública sua satisfação com a suspensão de
sessenta dias imposta pela censura ao programa de Flavio Cavalcanti,
da emissora TV Tupi. No telegrama enviado por ele e divulgado pela
CNBB, não só aplaudiu o ato, como solicitou que igual rigor fosse im-
posto à imprensa, ao cinema e ao teatro.90 Para o público atual, que en-
xerga na censura uma prática antidemocrática, tal postura soa estranha,
assim como causa certo estranhamento ao pensarmos que David não foi
exceção, pois alguns dos padres e bispos mais abertos se alinharam junto
aos conservadores, como na ocasião em que juntos se opuseram a Lei nº
6.515/77, responsável por instituir o divórcio no Brasil.
Beneficiado pelo tempo, já que sua obra é a mais recente, Paulo
César Gomes (2014) tece uma crítica oportuna a historiografia que
trata sobre os bispos progressistas no período da Ditadura. Para ele, a
simpatia de autores marxistas pela “Igreja Popular” deturpou algumas
concepções, impedindo, por exemplo, que autores citassem o conser-
vadorismo de tais prelados quanto a questões comportamentais (2014,
p.73). Conservador em determinados aspectos ou não, a imagem a ele
atribuída repercutiu negativamente em uma parcela do clero santista.
Ao menos para a espionagem, tratava-se de um grupo pequeno, porém
influente. Os ditos opositores ativos ao bispo diocesano, ganhavam ad-
jetivos elogiosos:

Os elementos de direita, com quem se pode realmente contar


são: Monsenhor Manoel Pestana, Monsenhor Geraldo Caiuby
Crescenti, Padre Heládio e Padre José Cardoso, estes têm participa-

1421. - D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.


90  Aplausos de D. David a suspensão de Flavio. Cidade de Santos. Santos, 21 mar. 1973.
0Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
142 Histórias, narrativas e religiões
ção ativa contra o bispo, fazendo inclusive esclarecimentos a leigos
que podem, menos avisados, se deixar envolver.91

É necessário, no entanto, nos atentarmos aos exageros comu-


mente contidos no material produzido pela espionagem, que atribui a
tudo somente os aspectos ideológicos, ignorando outros elementos pos-
sivelmente envolvidos. O grupo opositor era símbolo do ideal sacerdotal
de D. Idílio José Soares. Com exceção do Pe. José Cardoso, todos os ou-
tros se formaram em Roma na década de 1950. Em certa medida, Picão
representou a ruptura deste ideal. D. Idílio era exemplo do episcopado
brasileiro da década de 1930, adepto da estratégia da neocristandade,
que visava expandir a influência eclesiástica na sociedade, um modelo
de Igreja tridentino, avesso a modernidade. Na contramão, D. David
buscou ser a própria expressão do Concílio.
Dos citados, o mais proeminente padre anticomunista de
Santos, era Mons. Manoel Pestana Filho, o mesmo referido como um
dos heróis da Marcha da Família com Deus pela Liberdade no litoral
paulista, que reuniu vinte mil participantes pelas ruas do centro da cida-
de, no dia 25 de março de 1964. Sempre de batina preta surrada mesmo
em dias de sol, a descrição da espionagem é reveladora e dispensa maio-
res apresentações: “Elemento de maior gabarito intelectual, moral e es-
piritual do clero santista”.92 Nascido em 1928, era filho de um operário
da Cia das Docas e neto de um estivador. Ocupando diferentes funções
na diocese, foi como diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
(FAFI), a partir de 1960, que obteve maior projeção.
A reverência com que Pestana é tratado não se dá por aca-
so, e diz muito da sua relação com os dispositivos então vigentes. Em
julho de 1961, conforme aponta Rodrigues Matias (1964), ele esteve
junto de D. Idílio em uma reunião com o Gen. Amaagá Liberato de
Castro, na sede do comando militar, sob a presença do Cel. Pisa, che-
fe do Serviço Secreto do Exército. Em pauta, estava a instalação das

91  D. David Picão. Inf. 667. Serviço de Informações: DOPS/SP. Folha. n. 13. Pront. n. 1421.
- D. David Picão. DEOPS/SP.
92  Ficha de personalidade Pe. Américo Soares: Ficha de Personalidade do Clero. 03 nov.1971.
PB n. 657/71-D. II Ex. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP, Fundo DEOPS.
Histórias, narrativas e religiões 143
Ligas Camponesas na cidade de Juquiá, jurisdição da Diocese de Santos
naquela época, supostamente propícia para a organização de eventuais
guerrilhas. Com o auxílio do Frei Henrique Maria de Pirassununga,
orientador do Círculo Operário no Embaré, foi posto em prática a tá-
tica de neutralizar as organizações de trabalhadores, criando vertentes
católicas semelhantes. A contribuição de Pestana no campo e no meio
universitário como diretor da FAFI, fizeram dele um aliado do Regime.
Por essas razões, a repressão acusava D. David de persegui-lo antes mes-
mo de tomar posse:

Os fatos demonstraram que D. David Picão ao assumir o citado car-


go, já tinha conhecimento sobre as atuações do Monsenhor Manoel
Pestana junto ao Serviço de Informações do Exército no tocante à
luta contra o comunismo nesta região. Monsenhor Pestana, além de
estar à frente desta luta desde 1961 por ordem de D. Idílio, é ele-
mento imprescindível ao clero católico e ao meio social e intelectual
em que vive com destacado conceito.93

O trecho transcrito acima confirma a versão de Matias, assim


como deixa evidente o vínculo de Pestana com o chamado Serviço de
Informações. Em junho de 1967, o pedido de busca era bastante claro
e revela mais uma vez que o mesmo mantinha estreito contato com os
órgãos de vigilância:

Atualmente, o nominado está empenhado no afastamento do Diretor


da Faculdade de Filosofia, Monsenhor Manoel Pestana, principal lí-
der católico anti-comunista. Afastado Monsenhor Pestana, o nomi-
nado marcará um grande tento em favor da comunização da Igreja e
da sociedade universitária da Baixada Santista, já que além de senti-
nela democrata, ministra aulas nos chamados cursinhos, orientando
a mocidade no combate ao comunismo e trabalha em estreito conta-
to com os nossos órgãos de informação94.

93  D. David Picão: Histórico. 11 out.1966. Infe. 029. 2.BC. Folha n. 1. Pront. 1421. - D. David
Picão. AESP. Fundo, DEOPS.
94  D. David Picão: Histórico. 26 jun.1967. Pedido de Busca 260. Departamento de Polícia
Federal, Subdelegacia Regional de Santos. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP.
Fundo, DEOPS.
144 Histórias, narrativas e religiões
A saída de Pestana da diretoria da FAFI, alertada desde antes
da posse do quarto bispo diocesano ocorre finalmente em 1971, de ma-
neira conturbada. O jornal “Casa Amarela”, editado por alunos do curso
de Direito em seu primeiro número publicado no mês de junho daquele
ano, dedicou uma edição extra inteiramente ao episódio, carregando na
capa a chamada: “Prêmio por excelente trabalho: demissão”. Insatisfeito
com os rumos do bispado santista e hostilizado como traidor pelos co-
legas do clero,95 sua permanência na cidade tornou-se cada dia mais in-
sustentável. Pestana se transfere para Petrópolis/RJ, atuando novamente
no meio universitário a pedido de D. Manoel da Cunha Cintra em fe-
vereiro de 1972. Coincidentemente, é perceptível a redução de conteúdo
produzido sobre o então bispo de Santos logo após a sua saída.
Anos depois, uma inesperada notícia chegou a Santos: Mons.
Manoel Pestana era nomeado bispo, o único santista a vestir o solidéu
até os dias atuais. Seu destino foi a Diocese de Anápolis/GO. Sua orde-
nação se deu na manhã do dia 18 de fevereiro de 1979, na Catedral do
Rosário em Santos, pelas mãos do núncio apostólico, com D. David e o
bispo de Petrópolis como consagrantes.
Referência brasileira de conservadorismo para os católicos
amantes da reta tradição, e de fundamentalismo para os seus oposito-
res, sabe-se que nomeações episcopais possuem vínculo direto com as
preferências políticas de cada núncio apostólico. Em 1979, o núncio era
D. Carmine Rocco, enquanto o prefeito da Congregação dos Bispos
em Roma era D. Sebastiano Baggio, responsável por aprovar os nomes
listados pela nunciatura. Juntos, ao lado do brasileiro D. Lucas Moreira
Neves, enfraqueceram a Igreja progressista América Latina por meio da
nomeação de bispos conservadores, uma marca do pontificado de João
Paulo II, polonês e anticomunista (LÖWY, 2000, p.154). Quis a ironia
que D. Manoel Pestana falecesse em Santos, cidade de onde saiu hostili-
zado ainda padre, dormindo em um simples quarto, hospedado junto às
irmãs da Fraternidade Toca de Assis em 08 de fevereiro de 2011.

95  Mons. Manoel Pestana Filho: Ficha de Personalidade do Clero [Confidencial]. 03 nov.1971.
PB n. 657/71-D. II Ex. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS/SP.
Histórias, narrativas e religiões 145
Considerações Finais

Durante a década de 1970, o bispo de Santos abrandou o seu


discurso e voltou maior atenção para questões internas, como a adequa-
ção aos decretos do Concílio Vaticano II e a promoção de movimentos
pós-conciliares, bem como os moralmente conservadores Cursilhos da
Cristandade e Renovação Carismática Católica.96 Essas são algumas das
razões atribuíveis para a imagem de opositor do regime ser timidamente
reconhecida nos dias atuais.
No que se refere a acusação que recai sobre D. David de ten-
tar manter boas relações com os militares, não é demais lembrar que o
próprio D. Hélder Câmara acreditava na possibilidade de diálogo com
os militares e era bem relacionado com o “moderado” Castelo Branco
(ALVES, 1979, p.201). Fora isso, existiu também a Comissão Bipartite,
um canal de reuniões secretas que também foi frequentado por progres-
sistas, reunindo uns poucos bispos e militares em pleno governo Médici,
o mais violento dos presidentes.
Chegou-se a um consenso historiográfico que o conflito entre
Estado e Igreja se acentua a partir de 1974, quando o Gen. Ernesto
Geisel nega-se a dialogar com os bispos, somado aos escândalos de mor-
te e tortura, especialmente a do jornalista Vladimir Herzog, em 1975.
Em Santos, esse mesmo processo se repetiu. D. David retomou o dis-
curso forte a partir da segunda metade da década, tecendo críticas ao
capitalismo e a violência do Estado em missas da semana de Páscoa e da
padroeira da cidade, sendo voz importante em favor da anistia dos exi-
lados e pela autonomia política santista, recuperada somente em 1983.
Controverso ou não, a maior das curiosidades ao se escrever so-
bre D. David se dá pelo quase esquecimento da perseguição por ele so-
frida. Entre as referências lidas, seu nome é citado somente por Gomes
(2014), que trabalhou diretamente com o material produzido pela es-
pionagem. Ao lembrar que sua posição na CNBB não era das mais dis-

96  GRECCO, Pe. Francisco. D. David Picão: Uma história de amor para com a Igreja. Santos.
Presença Diocesana, Santos, Junho/2009, p.9.
146 Histórias, narrativas e religiões
cretas, tendo sido presidente do Regional Sul 1,97 essa informação se
torna elencável.
A ordem de prisão dada a ele, fato raro contra um bispo, no
entanto, é passível de ser elencado ao lado do sequestro cometido contra
o bispo de Nova Iguaçu D. Adriano Hipólito, em 1976, e a prisão de D.
Aloísio Lorscheider na sede do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
(IBRADES), no Rio de Janeiro, durante ação do DOPS em 1970. A
voz de prisão dada a um bispo em plena madrugada do AI-5 trata-se
de um dos grandes abusos cometidos contra o episcopado brasileiro.
Assim como os documentos disponíveis no DEOPS/SP são capazes de
tirar do ostracismo a relação conflituosa deste religioso com os apara-
tos repressivos, com toda a certeza também o são para propiciar novas
produções, possibilitando até mesmo redirecionamentos interpretativos
sobre os conturbados anos de Ditadura Militar.

Bibliografia

ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.

FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia
política. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001.

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

____________. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a Ditadura Militar Brasileira: a visão da espio-
nagem. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2014. 198p.

LÖWY, Michael. A Guerra dos Deuses: Religião e política na América Latina. Petrópolis:
Vozes, 2001.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1989.

MATIAS, Rodrigues. Marcha da Família com Deus pela Liberdade. São Paulo: s/ ed, 1964.

SERBIN, Kenneth P. Padres, celibato e conflito social. Uma história da Igreja no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo (2a. ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

97  Na divisão administrativa da CNBB, o Regional Sul equivale ao Estado de São Paulo.
Histórias, narrativas e religiões 147
Documentos

Aplausos de D. David a suspensão de Flavio. Cidade de Santos. Santos, 21 mar. 1973. Pront. n.
1421. - D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

Atividade de D. David Picão em Santos. 29 nov. II Exército. 1971. Inf. 677/71. Pront. 1421. – D.
David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

Baixado Ato contra passeata. Cidade de Santos. Santos, 06 jul. 1968. 2. Cad. p.2.

D. David Picão. Inf. 667. Serviço de Informações: DOPS/SP. Folha. n. 13. Pront. n. 1421. - D.
David Picão. DEOPS/SP.

D. David Picão: Histórico. 11 out.1966. Infe. 029. 2.BC. Folha n. 1. Pront. 1421. - D. David
Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

D. David Picão: Histórico. 26 jun.1967. Pedido de Busca 260. Departamento de Polícia Federal,
Subdelegacia Regional de Santos. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP. Fundo,
DEOPS.

D. David Picão, Histórico. 07 out 1966. RPI 2. BC. Folha n. 1. Pront. 1421. – D. David Picão.
AESP. Fundo, DEOPS.

D. David Picão, Histórico. 26 jul. 1967. Infe. n. 12. Departamento de Polícia Federal, Subdele-
gacia Regional de Santos. Folha n. 3. Pront. 1421 – D. David Picão. DEOPS/SP.

D. David Picão: Histórico Político. 27 dez.1968. DOPS/Santos. Folha. n. 3. Pront. n. 1421. - D.


David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

D. David Picão: Histórico. 02 dez.1971. DOPS/Santos. Folha. n. 7. Pront. n. 1421. - D. David


Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

D. David rejeita convite do MDB. Cidade de Santos. Santos, 14 jul. 1967. p.4.

Ficha de personalidade Pe. Américo Soares: Ficha de Personalidade do Clero. 03 nov.1971. PB


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GRECCO, Pe. Francisco. D. David Picão: Uma história de amor para com a Igreja. Santos.
Presença Diocesana, Santos, Junho/2009, p.9.

Hoje, o bispo comemora 25 anos de ordenação. A Tribuna. Santos. 10 out 1973, Pront. n. 1421.
- D. David Picão. AESP. Fundo, DEOPS.

Mons. Manoel Pestana Filho: Ficha de Personalidade do Clero [Confidencial]. 03 nov.1971. PB


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No dia do Papa, bispo pede revolução social. Cidade de Santos. Santos, 03 jun. 1967. p.5.

PICÃO, D. David. Manifesto de D. David. Cidade de Santos. Santos, 10/jul. 1968. 1. Cad. p.3.

Relatório Reservado 041. 26 jan.1968. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP.
Fundo, DEOPS.

148 Histórias, narrativas e religiões


Relatório Reservado 301. 30 out.1967. Folha. n. 2. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP.
Fundo, DEOPS.

Relatório Reservado n. 377. 03 out.1968. Folha. n. 1. Pront. n. 1421. - D. David Picão. AESP,
Fundo, DEOPS.

Histórias, narrativas e religiões 149


Santidade bandeirante: uma análise
sobre as hagiografias do primeiro santo
brasileiro Frei Galvão

Dirceu Rodrigues da Silva (UNESP-Assis/CAPES)

Resumo: O presente trabalho busca discutir a representação de santi-


dade nas hagiografias sobre Frei Galvão, primeiro santo brasileiro, nos
primeiros anos da década de 1950. O trabalho apresentado é parte da
pesquisa que realizei enquanto mestrando, onde pude analisar as hagio-
grafias sobre o Frade paulista produzidas entre 1922 e 1954. Partindo de
uma apresentação acerca das fontes hagiográficas e levantando questio-
namentos sobre a utilização destas enquanto fontes para o historiador,
pretendemos analisar uma das hagiografias sobre Frei Galvão produzida
no ano de 1954, buscando apresentar como essa fonte literária, influen-
ciada pelos pensamentos em voga em seu lugar de produção, construiu
um arquétipo de santidade que buscou representar a identidade dos
paulistas. O ano e a autoria desta fonte são oportunos para a hipótese,
1954 a cidade de São Paulo comemorava seu IV Centenário de aniver-
sário e o ufanismo paulista efervesceu na crescente capital do Estado.
A autora que assina com o pseudônimo de Maristela era a responsável
pelo mosteiro em São Paulo fundado pelo santo e já no título da obra
“Bandeirante de Cristo” deixa evidente sua intenção de apresentar um
santo que fosse herói do Estado. O trabalho é importante por explorar
um tipo de análise pouco realizada no Brasil e, sobretudo, por analisar o
passado da devoção ao primeiro santo do país.

Palavras-chave: Frei Galvão; Hagiografia; Santidade; Bandeirantes;


São Paulo.

150 Histórias, narrativas e religiões


1. O cenário político da hagiografia

O pacto entre Estado e Igreja, em curso nos anos 50, teve como
objetivo auxiliar no fortalecimento do novo modelo de governo adotado
que se predispunha a tornar os projetos de industrialização e a ideia de
modernização como o caminho mais sensato a ser tomado. Seguindo o
sistema político anterior, a Igreja continuou participando dos eventos
de celebração política, marcando presença nos encontros públicos para
exibir a continuidade de sua influência e fortalecer as forças mais con-
servadoras durante a redemocratização em 1945.
Se durante o início do século XX o objetivo precípuo da Igreja
no Brasil fundava-se em restaurar a sua influência, em meados do século
tornou-se motivar os cristãos a lutarem contra os “erros da modernidade”.

Numa palavra, se a Igreja começa a mudar nos anos 50, é porque as


grandes massas de católicos, ao serem mobilizados pelo rápido pro-
cesso de penetração e expansão do capitalismo industrial, começam a
passar, visivelmente, da mera passividade política a uma certa ativida-
de reivindicativa e passam a ser disputadas por concorrentes ideológi-
cos decididos, não apenas por cunho profano mas também de caráter
religioso (PIERUCCI; SOUZA; CAMARGO, 1984, p. 355).

Segundo Pierucci e coautores, as mudanças de posicionamen-


to da Igreja alteraram-se em conformidade com as próprias mudanças
sociais do mundo, inclusive em solo brasileiro. Embora pareça óbvio,
devemos salientar que essas mudanças foram significativas. A Igreja vi-
vera um momento de organização no início do século que podemos
considerar concreta por meio de sua aliança com Vargas e a retomada
de privilégios, sobretudo na educação, privilégios estes que, em alguma
medida, haviam sido negados na Primeira República, que se pretendeu
laica. Com a abertura política, a Igreja precisou tomar um posiciona-
mento diante das transformações ideológicas que ganhavam força no
país e, em um primeiro momento, era na rejeição ao socialismo que a
Igreja fazia sua autoafirmação (PIERUCCI; SOUZA; CAMARGO,
1984, p. 353). Não podemos deixar de notar, entretanto, que o discurso
Histórias, narrativas e religiões 151
da Igreja brasileira, ainda que com algumas abordagens diferentes, man-
tinha a postura conservadora, com a defesa da tradição católica como
solução para os problemas brasileiros. Sabemos que esta situação se acir-
rou, principalmente devido às questões internas do país, como o golpe
militar deflagrado em 1964. Todavia, acreditamos ser suficientes as in-
formações arroladas acerca dos interesses católicos nos anos próximos a
publicação das hagiografias (1954).
Diante das próprias informações das fontes, podemos conside-
rar o evento cívico na cidade de São Paulo em 1954 como um das mais
expressivas motivações para a publicação das duas hagiografias. Trata-se
do IV Centenário de Cidade de São Paulo, entre os diversos heróis da
cidade rememorados na data, inclusive Frei Galvão, com o intuito de
exaltar as tradições da cidade. A hagiografia que discutiremos traz, em
seu início, passagens eloquentes quanto ao centenário, reportando-se a
importância do santo para a cidade de São Paulo.
Outro fator presente na hagiografia diz respeito ao Centenário
Mariano , embora mencionado sucintamente, acreditamos que em di-
98

versos momentos da narrativa da vida do Frade ambos os centenários


recebem destaque. Como vimos, Frei Galvão foi um defensor da de-
voção à Maria, chegando a assinar com o próprio sangue uma carta de
servidão à Nossa Senhora, passagens que ganham relevo nas hagiogra-
fias de 1954, estabelecendo uma ponte que ligasse à vida do santo ao
Centenário Mariano.
Em 1954, ocorriam em São Paulo as efemérides dos seus qua-
trocentos anos, evento planejado por uma parte da elite política e inte-
lectual, momento em que o público e o privado uniram-se na evocação
de um passado glorioso para o Estado. Buscava-se conciliar, as publica-
ções e propagandas exaltavam o passado regional, enquanto imprimia na
mente dos cidadãos a imagem da capital paulista industrial com o ideal
de progresso e de modernismo. O historiador Silvio Luiz Lofego afirma

98  O Centenário Mariano, do qual as hagiografias fazem referência, foi a comemoração de


cem anos da Carta Apostólica Ineffabilis Deus, de dezembro de 1854. O documento, assinado
pelo Papa Pio IX, é um marco católico para a devoção Mariana, por conceber sem mácula do
pecado original.
152 Histórias, narrativas e religiões
o resultado bem-sucedido que o evento teve na unificação da população
em torno de um passado heroico paulista, um passado bandeirante:

O IV Centenário foi, sem dúvida, o momento ideal para se produzir


um sentimento unificador, através da mobilização de um aparato gi-
gantesco e minucioso. A comemoração conseguiu despertar de for-
ma espantosa uma espécie de “patriotismo paulista” [...] O mito do
bandeirantismo transformou-se num ícone capaz de agregar os mais
variados corações que aqui se encontravam e produziu, a partir dessa
junção, um imenso coração paulistano (LOFEGO, 2004, p. 15).

Estas considerações são importantes na medida em que a ha-


giografia de 1954 dedica-se a tornar Frei Galvão um dos heróis da for-
mação de São Paulo. A história da cidade é desenhada pelo viés católico,
com a inauguração da Catedral da Sé e as loas aos personagens ilustres
como José de Anchieta e Manoel da Nóbrega. As obras fazem parte do
empreendimento intelectual católico de construir um passado honrado
resgatado no IV Centenário, existe a necessidade desse grupo de parti-
cipar ativamente da construção ufanista da memória de São Paulo.
Dessa forma, a hagiografia foi agente da construção e também
passivas desta. O santo que busca ser construído desloca-se para a figura
do bandeirante, herói e construtor da nação na visão dos paulistas de
1954. O ideal de vida santa atrela-se ao mito bandeirante, buscando em
um mesmo personagem legitimar o passado paulista como a própria fi-
gura do santo, afinal, o “passado paulista” poderia ser lido como “passado
bandeirante”, e já no título a hagiografia representam Frei Galvão como
um bandeirante: “Frei Galvão Bandeirante de Cristo”. O mito ban-
deirante trabalhado no IV Centenário, e atribuído à santidade de Frei
Galvão, já tinha sido construído anteriormente, segundo Love (1982),
durante o período republicano, o desbravador e formador da nação havia
sido providencial para a defesa de São Paulo como o estado guia do país,
como a “locomotiva” da federação brasileira.
Este bandeirante, em 1954, não representaria mais os grandes
cafeicultores, como na Primeira República, encontrando-se, portanto, a
serviço dos setores industriais, que se firmavam no Brasil após a Segunda
Guerra. Essas indústrias veiculavam em suas propagandas imagens as-
Histórias, narrativas e religiões 153
sociadas à pretensa superioridade paulista, traziam com mais força para
grande parte da sociedade uma identidade cunhada durante todo o sé-
culo XX. Como explicado por Lofego (2006), tratava-se de uma prática
bastante comum nos anos próximos ao IV Centenário:

A intenção de uma fusão, entre o discurso que legítima uma situação


política – no caso das classes dirigentes paulistas – como daqueles
que vendem um produto de cunho particular é bastante clara [nos
anúncios paulistas de 1954] (LOFEGO, 2006, p. 35).

Segundo Katia Abud (1985), uma das críticas que feitas a estes
trabalhos, que tinham as bandeiras como tema e que vigoraram prin-
cipalmente na primeira metade do século XX, corresponde à falta de
criticidade quanto às ações dos bandeirantes. Outrossim, os cronistas
do século XVIII, como Pedro Taques e Frei Gaspar, participaram de
uma construção da identidade bandeirante em contraponto às imagens
depreciativas apresentada pelos jesuítas. As imperfeições das ações ban-
deirantes não eram questões em evidências nas obras, estava fora do
interesse da intelectualidade paulistana que condutas inadequadas pai-
rassem sobre os símbolos de modernidade.
Segundo Love (1982), propagou-se o sentimento coletivo de he-
rança bandeirante entre os paulistas, esta herança explicaria a pretensa su-
perioridade do estado e legitimaria a postura de liderança de seus nativos:

Por meio século, poucos paulistas educados tinham qualquer dúvida


de que sua psicologia coletiva fora herdada dos bandeirantes [...]
Cabia a seus descendentes modernos aceitar o destino de liderarem
o país (LOVE, 1982, p.107).

2. Maristela e o Bandeirante da religião

A hagiografia da qual fazemos menção foi escrita nas efemé-


rides do IV Centenário da cidade de São Paulo, escrita por Maristela,

154 Histórias, narrativas e religiões


pseudônimo da irmã Beatriz do Espírito Santo (CADORIN, 1993, p.
330). De acordo com as hagiografias subsequentes, o sucesso da obra
teria justificado sua reedição em 1978, de iniciativa do Mosteiro, sendo
uma das poucas obras sobre Frei Galvão produzidas durante a ditadu-
ra no Brasil. Todavia, sua primeira versão, de 1954, havia sido de res-
ponsabilidade da Editora Vozes, instituição ligada aos franciscanos e
empenhada na publicação de trabalhos que tratem temas relacionados
à religião católica. São poucos os trabalhos que fazem referência a esta
primeira edição, a versão de 1978 é mais comum entre as bibliografias
sobre o Santo.
Interessante o apontamento de Antônio de Souza Araújo em re-
ferência à obra, o autor a define como uma biografia, entendendo esse gê-
nero como um texto entre as preocupações históricas e a narrativa religiosa:

Parece construí a primeira biografia com atenção histórica, domi-


nando todos os contributos históricos anteriores. Não se destinando
a historiadores, não tem preocupações críticas, mas tenta uma rela-
ção dos passos necessários à beatificação e canonização (ARAÚJO,
2011, p. 245).

A frase do autor parece-nos um pouco contraditória, contudo,


Araújo entende as obras biográficas como um limiar entre as hagiogra-
fias, “apologéticas e acríticas”, e os trabalhos historiográficos com ri-
gor científico. Não compreendemos a natureza da fonte hagiográfica da
mesma forma que as biografias e os trabalhos históricos, ainda que obras
destinadas a interpretar um passado, seus intuitos e metodologias são
diferentes, questão que deixaremos para discutir em outra oportunidade.
Todavia, a diferenciação destas fontes, ainda que desemboque
em uma tarefa de maior complexidade, pode ser realizada se pensarmos
o gênero dessas. É evidente que o gênero está menos propício a narrativa
maravilhosa, como a de um milagre, visto que uma biografia, por sua vez,
é menos voltada ao fantástico que a hagiografia. Porém, esses limites são
confusos e difíceis de serem delimitados. As hagiografias de Frei Galvão,
por exemplo, não podem ser pensadas e investigadas da mesma forma
que uma hagiografia do século XIII. Ainda que sejam hagiografias, as

Histórias, narrativas e religiões 155


preocupações nas formas de interpretação destas fontes devem ser di-
ferentes, pois que produzidas por grupos em diferentes tempo e espaço,
com preocupações e objetivos outros, ou seja, em lugares99 distintos.
No ano de 1954 o processo de canonização encontrava-se sob a
responsabilidade de Frei Dagoberto Romag, nomeado, em 1949, após a
saída de Ortmann da função de postulador. No entanto, o único documen-
to com as pesquisas efetuadas por Romag está desaparecido (ARAÚJO,
2011, p. 262). O processo de beatificação de Frei Galvão somente ganha-
ria forças na década de 80 com o empenho do então Arcebispo de São
Paulo: D. Paulo Evaristo Arns (ARAÚJO, 2011, p. 259).
Desta forma, a beatificação de Frei Galvão era para Maristela
somente uma esperança, fundamentada em sua certeza da santidade e
na importância do frade para a cidade história da cidade. Por isso, no
final da hagiografia a autora exorta para que os relatos de milagres se-
jam encaminhados ao conhecimento do Mosteiro da Luz, onde seriam
guardados e inseridos no pedido de beatificação ainda em processo.
As comemorações de 1954 chegaram a ser incluídas na ha-
giografia de Maristela. Observando as transformações da cidade, que
apresentamos como significativas para a visão da hagiógrafa sobre san-
tidade, a autora enfatiza as festas como espaço de exibição das tradições
paulistas para as famílias recém-chegadas à cidade:

[...] as festas do centenário foram um grande despertar para a cidade


de São Paulo a respeito de Frei Galvão. Verdade é que nas famílias
brasileiras nunca fora o Servo de Deus esquecido. Há uns quaren-
ta anos, todavia, São Paulo vinha se tornando uma cidade cosmo-
polita, e das antigas famílias paulistas, havia as que, descendentes
de outra nacionalidade, quase nada sabiam das tradições paulistas
(MARISTELA, 1954, p. 196).

Percebemos Maristela também como porta-voz coesão da po-


pulação paulista em torno das tradições nas efemérides do IV Centenário.

99  Quando tratamos a ideia de “lugar” de produção estamos nos referindo ao conceito explicado
por Michel de Certeau: um lugar de produção que se articula com problemas políticos, culturais
e socioeconômicos. Que está submetido a imposições, ligado a privilégio. Cf. CERTEAU,
Michel de. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.
156 Histórias, narrativas e religiões
Desde a década de 20, existiam esforços para unir a população de uma
cidade cada vez mais cosmopolizada empreendidos por parte da classe
dirigente e dos intelectuais paulistas. Para esses fins resgataram-se sím-
bolos que buscavam construir uma memória paulista que dessem conta
de organizar a efervescência de uma cidade em acelerada expansão, ten-
tava-se conciliar os símbolos da tradição paulista (bandeirante, jesuíta,
índio, sertanista) com os novos símbolos da capital em crescimento (in-
dústria, imigrantes, artes).

O triênio 1953/1954/1955 presenciou, portanto, a sincronia tem-


poral de monumentos bastante diversos, representativos de mo-
mentos igualmente diferenciados na afirmação de uma identidade
paulista, seja de alcance regional ou nacional. Os antigos vetores de
coesão e diferenciação internos e externos aos paulistas em torno
da mitificação do paulista/bandeirante e do bandeirante/ paulista
diluíam-se na visão generalizante promovida pelo progresso, que
empanava os anseios de distinção calcados no passado e na heran-
ça da gens. Ser paulista se definiria, pois, e ainda uma vez, sob o
impacto da acolhida tensa do novo, como já o fora desde a chegada
dos portugueses, espanhóis filipinos, dos reinóis setecentistas, dos
africanos, dos imigrantes e migrantes ao planalto de Piratininga
(MARINS, 1999, p. 33).

3. Conclusão

A busca pelo tradicional não era entendida como desprezo ao


progresso, pelo contrário, era uma forma de firmar-se superior à cultura
estrangeira que adentrava o estado, os símbolos serviam para criar novos
elos e forjar vínculos para os moradores da São Paulo dos novos tempos
(SEVCENKO, 1992, p. 237). Tanto a devoção quanto o conhecimento
sobre Frei Galvão, parecem-nos os vínculos resgatados em 1954 para
fornecer uma conexão entre a tradição paulista e as transformações que
a cidade vivenciava na modernidade. O santo representava um passado
Histórias, narrativas e religiões 157
católico que se esperava manter, ao mesmo tempo em que, sua história
heroica, associada a dos bandeirantes, servia como modelo de progresso
e avanço para a nova sociedade industrial.
É certo que a construção hagiográfica de Frei Galvão apresen-
tada neste trabalho foram de grande importância para as bases simbólicas
da santidade atribuída ao Frade pelas hagiografias posteriores. Essa busca
hagiográfica por construir um santo que possuísse, além das peculiarida-
des religiosas que sirvam como exemplo para os católicos, características
paulistas. Frei Galvão estava jungido a uma elite paulistana tradicional,
justificando suas virtudes utilizando-se de questões eugênicas.
Sendo as vidas dos santos sempre representadas pelas concep-
ções de vida exemplar dos hagiógrafos, podemos afirmar que o modelo
adotado pelos hagiógrafos de Frei Galvão, na primeira metade do século
XX, foi de um santo que buscava coesão nacional e representava as qua-
lidades esperadas de um bandeirante, ou melhor, de um paulista.

Referências

ABUD, Katia Maria. O sangue itimorato e as nobilíssimas tradições (A construção de um


símbolo paulista: O Bandeirante). 1985. Tese. (Doutorado em História) - FFLCH- Universi-
dade de São Paulo, São Paulo, 1985.

ARAÚJO, Antônio de Sousa. Santo Antónia de Sant’Ana Galvão, OFM (1739-1822): primei-
ro Santo natural do Brasil. Revista Lusitania Sacra, n. 23, p. 243-262, jan.-jun. 2011.

CADORIN, Ir. Célia B. Frei Antônio de Sant’Anna Galvão: biografia documentada. São Pau-
lo: Mosteiro das Irmãs Concepcionistas (Recolhimento de N. Senhora da Luz), 1993.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2011.

LOFEGO, Silvio Luiz. A construção da memória na publicidade do IV Centenário da cidade


de São Paulo. Revista Patrimônio e Memória, v.2, n.2, p. 25-43, 2006.

LOFEGO, Silvio Luiz. IV Centenário da Cidade de São Paulo: uma cidade entre o passado
e o futuro. São Paulo: Annablume, 2004.

LOVE, Joseph L. A Locomotiva. São Paulo na Federação Brasileira. 1889-1937. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1982.

158 Histórias, narrativas e religiões


MARINS, Paulo César Garcez. O Parque do Ibirapuera e a construção da identidade paulista.
Anais do Museu Paulista, v. 6-7, n. 1, p. 9-36, 1999.

MARISTELA (Beatriz do Espírito Santo). Frei Galvão, Bandeirante de Cristo. Petrópolis:


Vozes, 1954.

PIERUCCI, A. F. O.; SOUZA, B. M.; CAMARGO, C. P. F. Igreja Católica: 1945-1970. In:


FAUSTO, Boris. O Brasil Republicano. Tomo III. São Paulo: Difel, 1984.

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo. Sociedade e cultura nos fre-
mentes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

Histórias, narrativas e religiões 159


Relações Estado-Igreja: um comparativo
entre Brasil e Portugal

Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva (UFMG/CAPES)

Resumo: O trabalho se propõe a analisar a relação entre Estado e Igreja


no Brasil a partir da Proclamação da República (1889), estabelecendo
um comparativo com Portugal. A Constituição Brasileira de 1891 es-
tabelece a separação entre Estado e Igreja. Além disso, o catolicismo
deixa de ser a religião oficial, são criados cartórios para que os registros
de nascimento, casamento e óbito não sejam uma atribuição eclesiásti-
ca, os cemitérios se tornam públicos e o ensino passa a ser uma obri-
gação do Estado. Esse processo de separação, contudo, não acontece
de forma linear. Em 1934, o ensino religioso é novamente incluído na
Constituição, assim como a validade do casamento religioso, mostrando
que ocorreram movimentos de aproximação e distanciamento entre a
esfera política e as religiões (sobretudo as cristãs). Interessando-nos por
esses acordos, arranjos e concessões que interferem diretamente na lai-
cidade do Estado, a comparação com o que acontece em Portugal parece
adequada uma vez que, de modo semelhante ao que ocorre aqui, essa re-
lação é marcada por proximidades e afastamentos. O objetivo da comu-
nicação, portanto, é compreender melhor as especificidades do processo
de secularização no Brasil observando as semelhanças e diferenças com
o caso português.

Introdução

Recentemente, a PEC 171/1993, proposta pelo ex-deputado


Benedito Domingos (PP-DF), que versa sobre a redução da maioridade

160 Histórias, narrativas e religiões


penal, se tornou alvo de intensa discussão. Em meio ao debate, chamou
atenção o fato do texto utilizar a Bíblia Sagrada como principal fonte
para defender a emenda constitucional100. Esse é apenas um dos exem-
plos que revelam a interferência do pensamento religioso no terreno po-
lítico atual brasileiro. Outros tantos temas controversos, como o Ensino
Religioso nas escolas, a legalização do aborto e a união civil entre casais
homoafetivos, são muitas vezes discutidos pela população e pelos repre-
sentantes políticos a partir de argumentos amparados pela religião. A
laicidade do Estado brasileira, garantida pela Constituição de 1988101,
aparece como contraponto para os argumentos religiosos. Na prática,
contudo, percebemos que existem diferentes arranjos e embates que ca-
racterizam a relação entre o religioso e o político em nossa sociedade.
Exemplos como os que mencionamos acima nos levam a ques-
tionar a validade do conceito de secularização na realidade atual, prin-
cipalmente quando observamos o caso brasileiro. Afinal, a promessa
moderna de uma progressiva substituição do pensamento mítico pela
racionalidade parece não ter se cumprido. No entanto, é preciso colocar
em perspectiva o sentido mais comum do termo secularização a fim de
compreendê-lo em sua multiplicidade semântica. Algumas perguntas
norteiam a presente comunicação: Como se deu (e ainda se dá) o processo
de secularização em nosso país? Quais são as especificidades desse processo em
relação a outros contextos sócio-históricos? Como o conceito de secularização
pode nos ajudar a compreender a realidade atual brasileira?
A fim de respondermos ou pelo menos clarearmos um pouco
essas questões, propomos um comparativo das relações entre Estado e
Igreja em Portugal e no Brasil. Nossa premissa é de que, com a compa-
ração, poderemos compreender melhor o processo de secularização em
nosso país, bem como verificar os possíveis motivos que levam a essa
influência do religioso sobre as decisões políticas. Para tanto, recorremos
aos estudos realizados sobre secularização e Estado laico no Brasil e em

100  Cf. Revista Fórum. Bíblia é a principal fonte que embasa a PEC da Redução da Maioridade
Penal. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/04/biblia-e-a-principal-
fonte-que-embasa-a-pec-da-reducao-da-maioridade-penal/ (acesso em 29-11-2015).
101  O artigo 5, inciso VI da Constituição garante a liberdade de culto, a liberdade de crença e
a liberdade de organização religiosa. Já no artigo 19, inciso I, fica expressa a não participação do
Estado em qualquer forma de culto ou organização religiosa (VIANNA, 2014, p. 8).
Histórias, narrativas e religiões 161
Portugal. Além disso, analisaremos as legislações de ambos os países nos
pontos em que versam sobre a relação entre governo e religiões.

Sobre o conceito de secularização

A secularização pode ser caracterizada, em termos gerais, pela


redução progressiva da influência do pensamento religioso na sociedade.
Segundo Peter Berger:

Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da socie-


dade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e sím-
bolos religiosos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna,
a secularização se manifesta na retirada das Igrejas cristãs de áreas que
antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do
Estado, expropriação de terras da Igreja, ou emancipação da educação
do poder eclesiástico, por exemplo (BERGER, 2003, p. 119).

Partindo dessa observação, podemos notar que o conceito abar-


ca múltiplos sentidos, quase sempre remetendo à ideia de Modernidade.
Marx Weber foi um dos grandes responsáveis por essa associação. Em
A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (2004), o autor analisa
a racionalidade formal que perpassa o capitalismo, observando que a
moral protestante, ao preconizar a doutrina da predestinação, favorece
a consolidação do sistema capitalista. Para os protestantes, os homens
nascem predestinados ou não para ocupar o reino dos céus – ou pelo
menos assim o era na origem calvinista. Assim, as ações positivas no
decorrer da vida não interfeririam diretamente na salvação. Isso possi-
bilita, no entendimento de Weber, o avanço capitalista, muito mais que
uma possível noção de “progresso” ou “espírito de trabalho” contida nas
bases do protestantismo (p. 38). No decorrer de sua análise, ele utiliza a
expressão desencantamento do mundo para tratar desse processo. Não
se trata, contudo, de algo amplo, relacionado à secularização das mais
diversas esferas da sociedade, mas sim de um ponto específico da moral

162 Histórias, narrativas e religiões


protestante, que rompe com os meios mágicos de obtenção da salvação.
Essa análise proposta por Weber servirá de apoio para um de-
bate amplo, principalmente na Sociologia, acerca da secularização. Em
síntese, as chamadas teorias da secularização mostraram a relação do
processo de secularização com uma ideia de modernidade, enfatizando a
influência da religião-judaico cristã, a racionalidade capitalista e a urba-
nização como catalizadoras da mudança nos modos de entender o mun-
do e a vida. Para Giacomo Marramao (1997), o conceito de secularização
passou por diversas mudanças no decorrer do tempo. Em sua origem, o
termo se referia especificamente ao campo político jurídico, tratando da
passagem de terras religiosas para mãos seculares. Nessa base, de acordo
com o autor, já existe a oposição entre regular e secular, que ganhará
mais destaque quando o secularismo se torna uma metáfora da própria
modernidade. Gradualmente, a palavra secularização ascende ao “status
de categoria genealógica capaz de sintetizar ou expressar unitariamente
o desenvolvimento histórico da sociedade ocidental moderna, a partir
de suas raízes (judaico-) cristãs” (p. 15).
A socióloga Danièle Hervieu-Léger (1985) aponta para os vá-
rios sentidos do termo secularização. Segundo ela, o sentido original da
palavra em francês já possui vários significados. Inicialmente, designa o
processo jurídico-administrativo que transfere as posses da igreja para
um civil. De uma forma mais ampla, a palavra também pode significar a
perda de qualquer bem ou mesmo de pessoas que estivessem antes sob
a guarda de alguma instituição eclesiástica. A partir desses sentidos, a
secularização adquire outro, ainda mais abrangente e diretamente ligado
à evolução histórica da razão. Trata-se, portanto, da perda de influência
da religião em toda a sociedade, ou seja, de uma substituição do pensa-
mento mágico por um modo de pensar racional e científico.
O conceito de laicidade também ganha força no pensamento
moderno. Sua definição é bastante próxima da secularização, nem sempre
havendo consenso sobre o que diferencia os dois conceitos. Para Catroga
(2006), toda laicidade é uma secularização, mas nem toda secularização é
ou foi uma laicidade. O cerne da diferenciação estaria na existência de um
“sujeito ativo” para a implementação da laicidade. Ela é entendida como

Histórias, narrativas e religiões 163


um fenômeno político muito mais que um problema da ordem das reli-
giões. De forma mais geral, o conceito pode ser definido como “exclusão
ou ausência da religião na esfera pública”. Ela implicaria numa certa “neu-
tralidade do Estado em matéria religiosa”, sendo que esta neutralidade
se apresenta de duas formas: a imparcialidade do Estado em relação às
religiões, obrigando-o a tratar com igualdade todos os credos; e a retirada
do poder religioso do Estado (RANQUETAT JR., 2008, P.5-6). Já para
Carlos Eduardo Sell (2015), a laicidade teria um viés muito mais políti-
co, tratando, majoritariamente, da separação entre o Estado e as diversas
manifestações religiosas. A secularização teria um campo de interferência
mais longo, incluindo as disputas que não se dão apenas no terreno políti-
co. Assim, a tensão existente entre o universo religioso e a sociedade, a cul-
tura, a economia e outras esferas definiria melhor o que é a secularização.
A distinção entre secularização e laicidade é bem tênue e varia conforme
o posicionamento de cada autor. Por isso, optamos por trabalhar com os
dois conceitos de forma mais aproximada, ainda que saibamos que eles
não são exatamente sinônimos.
Retomando a relação da secularização com o ideário moderno,
José Legorreta Zepeda enfatiza a proximidade entre eles. Segundo au-
tor, a modernidade pode ser definida como:

processo sócio-histórico complexo e multidimensional – original da


Europa Central –, caracterizado fundamentalmente por uma visão
de mundo descentrada, profana e pluralista, por uma reflexão que
ao incorporar-se de forma sistemática e permanente na vida so-
cial, desestabiliza a experiência, as instituições e os conhecimentos,
e consequentemente gera uma realidade profundamente dinâmica,
contraditória, ambígua e precária (ZEPEDA, 2010, p. 130).

Além dessas características, na visão de Zepeda, a modernidade


também seria marcada pela primazia da razão instrumental, pelo indivi-
dualismo e por uma compreensão otimista da história com base na noção
de progresso. Com a conformação desses elementos, o papel desempe-
nhado pela religião como algo que legitima e integra as sociedades se
perderia gradualmente. A modernidade estaria profundamente ligada à
ideia de secularização, entendida como esse processo de perda de espaço
164 Histórias, narrativas e religiões
do discurso religioso no âmbito social. O autor afirma a existência de duas
tendências principais para a secularização: a primeira seria a “tese dura
da secularização”, segundo a qual a secularização levaria inexoravelmente
a abolição das religiões; a outra seria a “tese suave da secularização”, que
define o processo de mudanças profundas no universo religioso, sem que
ele desapareça. Nas teorias suaves, a religião e a modernidade são vistas de
modo imbricado, pois o discurso religioso se entremeia na própria cultura,
ao mesmo tempo em que a política incorpora a moral judaico-cristã –
como foi observado por Weber. Já na tese dura, percebe-se o surgimento
de um programa político que almeja, num futuro não muito distante, uma
vida sem religião (ZEPEDA, 2010, p. 131).
O que ocorre, porém, é que a secularização, assim como a pró-
pria ideia de modernidade, é posta em xeque nas últimas décadas do
século XX. Vários autores notam que as religiões, ao invés de desapa-
recerem, ganharam força e se multiplicaram (PIERUCCI, 1998, p. 45).
Esse fenômeno, chamado por Stefano Martelli (1995) de “eclipse da se-
cularização” se relacionaria diretamente com a retomada do pensamen-
to religioso, observada empiricamente, como forma de atribuir sentido
ao mundo conforme os pilares da modernidade declinam. Expressões
como “ressurgimento religioso”, “ressacralização” e “reencantamento” se
tornam comuns nas investigações sociológicas. Contudo, as teses que
enfatizam o ressurgimento da esfera religiosa encaram essa tendência
como algo diferente do que foi a religião pré-moderna (ZEPEDA,
2010, p. 133). Por isso, Martelli fala de uma dessecularização, como for-
ma de questionar a linearidade racionalista da secularização e, ao mesmo
tempo, a própria ideia de uma ressacralização como simples retomada
do religioso na crise da modernidade. De acordo com o autor:

a Religião, na sociedade “pós-moderna” apresenta um andamento


complexo, que, numa primeira aproximação, denominamos “flutu-
ação” entre secularização e dessecularização. A Religião não é, de
fato, a parte residual da sociedade, mecanicamente conexa com os
vínculos da comunidade, a ponto de retrair-se diante do avanço do
processo de racionalização. Pelo contrário, ela “flutua” nas correntes
socais que vão redesenhando a sociedade contemporânea, sem que se
possa prever seu futuro (MARTELLI, 1995, p. 411).
Histórias, narrativas e religiões 165
Para além dessas diversas teorias, é muito importante enfati-
zar que o processo de secularização não é único em todos os lugares e
tempos. Em diferentes países, essa perda de influência religiosa (e suas
possíveis retomadas) foi percebida de um modo específico.

Relações entre Estado e Igreja lá e cá

Ao propormos uma comparação entre o tipo de relação que se


estabelece entre Estado e Igreja em Portugal e no Brasil, objetivamos
compreender as especificidades do contexto brasileiro no que diz respei-
to à secularização. Para tanto, partimos de duas ideias usadas para análise
do caso português: sociedade catolaica, usada por José Eduardo Franco
(2011) para caracterizar o tipo de laicidade existente em Portugal; e a
quase laicidade termo usado por Fernando Catroga (2006) para trabalhar
com países fortemente marcados pela presença do catolicismo, como
Portugal, Espanha e Itália. Ambas as ideias, como se pode notar, reve-
lam que o Estado laico em terras lusitanas não abandonou, pelo menos
a princípio, a proximidade com a Igreja católica. Será que poderíamos
dizer que o mesmo acontece no Brasil?

A laicidade à portuguesa

A sociedade catolaica define, segundo José Eduardo Franco, o


modo como se deu a organização de interesses conflitantes com a sepa-
ração do Estado e da Igreja em Portugal. Para o autor,

A Igreja aprendeu a conviver com a Democracia e, de algum modo,


a evoluir paulatinamente no sentido de pensar-se democraticamen-
te, assumindo um rosto mais progressivo e uma consciência crítica
livre de compromissos políticos e ideológicos. O Estado aprendeu
a tolerar, a integrar e a olhar a Igreja como uma força viva capaz
de laborar com ele na edificação de uma sociedade mais humana e

166 Histórias, narrativas e religiões


ouvindo-a por vezes como uma consciência crítica importante. Daí
que o paradoxo convivial de uma sociedade catolaica seja necessaria-
mente ambíguo, mas de uma ambiguidade necessária em nome de
uma harmonia realista em favor da pacificação social fundamental
em vista da consolidação de um regime democrático (FRANCO,
2011, p. 34).

Dessa maneira, Franco defende que para a constituição do


Estado democrático português foi necessário que tanto o governo quan-
to a Igreja católica cedessem. É interessante observar aqui que a sepa-
ração dessas esferas ocorreu de forma bastante conflituosa em Portugal.
Durante um longe período, a Igreja romana teve um grande poder de
decisão sobre a Monarquia portuguesa. Somente em meados do século
XVIII, com a ascensão de D. José I e seu principal ministro, o Marquês
de Pombal, o regalismo102 ganhou força, ficando então a Igreja mais su-
jeita ao monarca. No começo do século XIX, durante o reinado de D.
Maria I, vários privilégios católicos são revistos, mas a Revolução Liberal
dos Portos, em 1820, põe fim ao chamado Antigo Regime e altera as
bases políticas e ideológicas do Estado lusitano. Sob forte influência do
pensamento Liberal, a Monarquia Constitucional se pautará pelo indi-
vidualismo e pela liberdade, em oposição à cultura política do Antigo
Regime. Em 1834, o ministro liberal Joaquim António Aguiar publica
a lei que extingue, mais uma vez, com as ordens religiosas em Portugal.
Muitas das propriedades da Igreja são passadas para as mãos do Estado,
assim como o controle de documentos e bibliotecas. Na segunda metade
do XIX, com os conflitos pós-revolução mais apaziguados, certo clima
de tolerância passa a vigorar e as ordens religiosas aos poucos vão se re-
estabelecendo no país, mesmo com a permanência da legislação anterior.
A desvinculação legislativa entre Estado e Igreja católica em
Portugal só ocorreu após a Proclamação da República, com o Decreto
de Separação deferido em 22 de abril de 1911. Essa lei trazia contigo
um forte viés regalista, pois dava poderes ao governo para intervir dire-

102  O regalismo pode ser definido como corrente ideológica bastante próxima à ideia de
secularização, uma vez que defende a submissão da Igreja ao Estado. De acordo com Cândido
dos Santos, trata-se um “sistema jurídico religioso que preconiza a intervenção do Rei ou do
Estado na vida da Igreja” (SANTOS, 1982, p. 171).
Histórias, narrativas e religiões 167
tamente na Igreja e mantinha o Beneplácito régio – com ele, toda deter-
minação papal deveria ser previamente aprovada pelo Estado português.
De acordo com Jorge Miranda, a Constituição Portuguesa de 1911:

Por um lado garantiu formalmente a liberdade de consciência e de


crença e a igualdade política e civil de todos os cultos (art. 3º, n.os
4 e 5); por outro lado, adotou medidas restritivas da atividade da
confissões religiosas, dirigidas especialmente contra a Igreja Católica
(MIRANDA, 2011, p. 10).

A primeira Constituição Republicana também garantia a não


perseguição por motivo religioso; a prática de qualquer tipo de culto
nos cemitérios públicos; neutralidade em matéria religiosa nas escolas
públicas e particulares. A lei ainda mantinha a extinção da Companhia
de Jesus em Portugal.
Como se pode notar, havia um forte esforço legal em se restrin-
gir o poder do catolicismo no interior da República. Contudo, novos ar-
ranjos na relação Estado-Igreja foram negociados em todo o século XX.
A partir de 1926, com o regime autoritário instituído por Salazar, mais
liberdade foi concedida ao catolicismo a fim de se angariar apoio entre
os fiéis. A Constituição de 1933, que vigorou até 1974, traz em seu art.
45º o princípio da separação entre Igrejas e Estado, mas isso serviu mais
para reduzir o poder de interferência do governo em assuntos religiosos.
Jorge Miranda (2014) divide o Estado Novo em três fases: a primeira,
que vai de 1933 a 1951, um pouco mais brando em termos de aproxima-
ção entre Estado e Igreja; o segundo entre 1951, quando a Constituição
é alterada e a religião católica se torna, novamente, a religião oficial, até
1971; a terceira de 1971 em diante, com a inclusão da liberdade religiosa
na Constituição e o catolicismo deixa ser denominado religião oficial e
passa a “religião tradicional”.
Fernando Catroga (2006) tem uma visão mais negativa do pe-
ríodo ditatorial. Segundo ele:

A Ditadura estadonovista definir-se-á como República autoritária e


corporativa e governará sob o lema Deus, Pátria e Família. Com os
olhos no exemplo italiano e na doutrina social da Igreja, lançar-se-á

168 Histórias, narrativas e religiões


imediatamente na recatolização das consciências e da educação (os
crucifixos regressaram à escolas em 1932). Esse foi o objetivo do
novo projecto de “educação nacional” lançado logo nos inícios da
década de 1930 e, depois, corroborado pela Concordata de 1940,
tratado que, entre outras coisas, impediu o divórcio dos casamentos
católicos, isentou a Igreja de muitas obrigações fiscais, confirmou o
ensino religioso e a exibição de símbolos católicos nas escolas. Tal
como em Itália e em Espanha, a laicidade foi sendo domesticada e
denegada, passando as demais confissões ao estatuto de toleradas. No
entanto, manter-se-ão alguns institutos regalistas e a Constituição
(1933) não assumiu, explicitamente a confecionalidade. Antes legiti-
mou uma versão, mais moderada que a espanhola, de uma “nacional-
-catolicismo” à portuguesa (CATROGA, 2006, p. 366-367).

Após o fim do Estado Novo, a separação efetiva entre Estado


e Igreja não foi tratada como prioridade. A princípio, a Concordata de
1940 foi mantida, eliminando-se apenas alguns dos pontos mais polêmi-
cos, como a proibição do divórcio para católicos e a isenção de impostos
para a Igreja. A Lei da Liberdade Religiosa (nº16/2001) só foi aprovada
em 2001. Nela, um ponto ambíguo da Constituição de 1976, que ainda é
vigente, foi atenuado: é afirmado de forma clara que o Estado não segue
qualquer tipo de religião, algo que não estava explícito até então. Ainda
hoje, O Estado mantém vários resquícios da confecionalidade pregres-
sa, quase sempre motivados pela força da tradição da religião católica,
como a presença de símbolos religiosos em escolas, feriados baseados no
catolicismo e, como na Concordata de 1940, a Universidade Católica
e tida como uma instituição pública. Essas características fazem com
que Catroga qualifica o caso português como de “quase laicidade” em
comparação com a França e mesmo com Portugal da I República (antes
do salazarismo).

Brasil: um Estado quase laico?

Para traçarmos um comparativo com o que vimos sobre


Portugal, é necessário conhecer um pouco mais do processo de sepa-

Histórias, narrativas e religiões 169


ração entre Estado e Igreja no Brasil. O monopólio católico sobre o
Estado prevaleceu até 1891, quando a primeira constituição republica-
na é outorgada. Segundo o prefácio da Constituição, escrito por Pedro
Calmon, o art. 72 da Declaração de Direitos foi concebido diretamente
por Rui Barbosa. Nele, fica bem explícito o desejo liberal de separação
efetiva entre Igreja e Estado:

§3º Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer públi-


ca e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo
bens, observadas as disposições do direito comum.

§4º A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será


gratuita.

§5º Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela


autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prá-
tica dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não
ofendam a moral pública e as leis.

§6º Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos

§7º Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá


relações de dependência, ou aliança com o Governo da União, ou o
dos Estados (BRASIL, 1891).

É curioso observar aqui que essa legislação, profundamente


marcada pelo moderno Estado liberal, é uma das precursoras em termos
de secularização e laicidade – ela é anterior à Constituição da I República
Portuguesa, que da data de 1911, e também da Constituição Francesa
que separa Estado e Igreja, promulgada 1905. Além disso, os artigos
ressaltados acima revelam que muitos dos pontos que geram polêmico
até os dias de hoje, como o ensino religioso nas escolas, são claramente
definidos em favor do Estado laico. Em comparação com o que vimos
sobre a Constituição Portuguesa de 1911, é importante notar também
que a tradição regalista não parece influenciar o processo de separação
entre Estado e Igreja no Brasil. O texto da Constituição de 1891 garan-
te a liberdade religiosa e afasta o poder governamental sobre as igrejas.
170 Histórias, narrativas e religiões
Outro detalhe relevante é o crescimento de religiões cristãs e não-cristãs
após o fim do monopólio católico. Segundo Gamaliel Carreiro (2015),
em 1903 o país já contava com 153 igrejas presbiterianas e batistas e a
expansão dessas novas religiões se manteve em todo o século XX.
A Constituição de 1934 prevê alguns dos avanços da laicidade
previstos na lei de 1891. No art. 146, o casamento religioso passa a ter a
mesma validade do casamento civil: “O casamento perante ministro de
qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou
os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento
civil” (BRASIL, 1934). Além disso, o ensino religioso nas escolas é rein-
cluído de forma confessional, ou seja, conforme a crença do aluno (mas
tem frequência facultativa). Após a Constituição de 1934, poucas mudan-
ças são observadas nas constituições seguintes com relação à separação
entre Estado e Igreja – em 1946 é estipulada a imunidade tributária, que
já era aplicada na prática por causa de legislações específicas. Mesmo nas
Constituições de 1937 e 1967, que definem governos autoritários, não há
alteração significativa na questão da liberdade religiosa ou na não vincula-
ção entre o governo e alguma forma de religião. Nesse ponto, observamos
outra diferença com relação a Portugal, pois lá, como vimos, o salazarismo
cooptou a Igreja católica a fim de angariar defensores.
A Constituição de 1988, conhecida como Constituição Cidadã
por garantir novamente os direitos dos cidadãos frente ao longo período
de ditadura, não afirma de forma categórica a laicidade do Estado, ainda
que, na composição geral da lei, fique explícita a separação com toda e
qualquer religião. A carta também garante a liberdade religiosa, assim
como as legislações anteriores, impedindo que o Estado interfira dire-
tamente sobre as instituições religiosas. Um ponto que vale comentar é
a menção a Deus que aparece no preâmbulo da Constituição Cidadã.
Joana Zylbersztajn (2012) afirma que, na visão de muitos juristas, o fato
do preambulo não ter força normativa reduz a importância dessa men-
ção. No entanto, ela destaca o valor simbólico da citação:

Muito embora o preâmbulo não possua força normativa, e para mui-


tos acadêmicos essa discussão seja irrelevante juridicamente, consi-
dero a força simbólica essencial para entrar no debate aqui proposto.

Histórias, narrativas e religiões 171


Se a laicidade é construída historicamente, como todos os direitos
fundamentais, as declarações simbólicas são os primeiros passos para
sua concretização (p. 33).

Em certa medida, podemos compreender que esse simbolismo


expressa bem as relações entre Estado e religiões em nosso país. Ainda
que a legislação mantenha as duas esferas separadas, há uma inclinação
para a proximidade com um Deus cristão, representado por religiões que
ocupam legitimamente um importante papel na sociedade brasileira.
Interessa-nos aqui ressaltar a não linearidade do processo de
laicização vivido pelo Brasil. Num primeiro momento, é possível imagi-
nar uma espécie de progresso, como se o Estado fosse ficando cada vez
mais distante das igrejas e religiões. Porém, quando observamos tanto o
caso português quanto o brasileiro, notamos que essa relação é marcada
por aproximações e afastamentos que dependem de interesses políti-
cos, conflitos ideológicos e situações específicas de diferentes momentos
históricos. Nesse sentido, concordamos com Emerson Giumbeli (2000)
quando o mesmo afirma em sua tese que as relações entre Estado e
Igreja no Brasil são caracterizadas por “vínculos, compromissos, conta-
tos, cumplicidades entre autoridades e aparatos estatais e representantes
e instituições católicas” (p.155). O autor utiliza o termo “colaboração”
para falar do tipo de relação existente entre o governo e algumas re-
ligiões, sobretudo as cristãs (e o espiritismo), lembrando que diversos
tipos de culto tiveram e ainda têm dificuldades para serem considerados
legalmente como religiões.

Considerações finais

Ao compararmos o caso português com o brasileiro, obser-


vamos que existem vários pontos os diferenciam. Primeiramente, em
Portugal o conflito entre forças anticlericais e representantes religiosos
é bem mais acentuado em todo o período analisado. Aqui, a maior parte

172 Histórias, narrativas e religiões


das Constituições manteve o foco na liberdade religiosa, assegurando
o direito de culto e a não-intervenção do Estado em matéria religiosa.
Como pano de fundo, contudo, o cenário brasileiro é marcado por um
regime de colaboração, assim como no caso lusitano, com forte predo-
mínio das religiões cristãs.
Com relação à “sociedade catolaica” e à “quase laicidade”, acre-
ditamos que a primeira ideia vale para uma parte do século XX, mas
dificilmente seria capaz de explicar o contexto atual, no qual as religi-
ões protestantes têm grande importância. Por outro lado, o conceito de
“quase laicidade” tem maior potencial para descrever o que ocorre em
nosso país, ainda que, em nossa perspectiva, as especificidades da laici-
dade brasileira sejam mais relevantes que uma comparação com a noção
de “laicidade plena”.
Tanto Portugal quanto Brasil apresentam processos de secu-
larização que não podem ser definidos por uma simples perda de in-
fluência das religiões. Aqui no Brasil, defendemos a hipótese de que
a combinação de dois fatores pode colaborar para a compreensão das
interferências religiosas no contexto político atual. Por um lado, a traje-
tória legislativa sempre favoreceu a liberdade religiosa, sobretudo para as
igrejas cristãs, ampliando o campo de atuação das mesmas. Ao mesmo
tempo, o surgimento de novas igrejas e religiões dentro do contexto de
secularização possibilitou uma institucionalização política das mesmas.
Para Pierucci, quando notamos uma forte mobilização política
por parte de setores religiosos – como é o caso da bancada evangélica
brasileira, que age conforme uma agenda religiosa na aprovação ou re-
provação de políticas públicas –, esse não é um sintoma do “retorno do
sagrado” ou de invalidade da secularização. Sob outro viés, é importante
perceber que essa pressão religiosa se dá em consonância com o siste-
ma político, admitindo sua legitimidade e lógica própria (SELL, 2015).
Assim, se pensarmos nos séculos anteriores, quando a religião tinha um
papel central como organizadora da sociedade, não seria necessária a
sujeição dos homens de fé a um cargo político institucionalizado, como
deputado ou vereador, para que a moral religiosa fosse adotada nas de-
cisões coletivas. Nessa perspectiva, Pierucci lembra que a secularização

Histórias, narrativas e religiões 173


não é um processo linear ou regular. Para ele “A secularização consistiria
em momentos em que os limites do campo religioso (muitas vezes arbi-
trários, posto que sempre cambiantes) alternadamente se contraem e se
expandem” (PIERUCCI, 1997, p. 111). Por isso, acreditamos que a se-
cularização é sim uma categoria válida para a análise do caso brasileiro,
desde que partamos das experiências específicas do nosso país e não de
um conceito moderno rígido que pouco vale até mesmo para os países
do centro da Europa.

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Histórias, narrativas e religiões 175


Os “Porta-Vozes” do Regime: Os
escritos de Gustavo Corção e Júlio
Fleichman na revista parisiense
Itinéraires (1975-1979)

Glauco Costa de Souza (USP/CAPES)

Resumo: Gustavo Corção (1888-1978) e Júlio Fleichman (1928-2005)


foram os principais católicos integristas que atuaram na imprensa bra-
sileira durante a década de 1970 no Brasil. Amigos de luta contra os
males da modernidade, em dezembro de 1968, no Rio de Janeiro, os
intelectuais fundam o grupo e a revista Permanência. Formado por in-
telectuais, magistrados, professores e eclesiásticos da elite carioca, de-
fendiam o tradicionalismo católico em repulsa as “aberrações” modernas
que se “proliferavam” na sociedade brasileira, como o comunismo e o
movimento progressista. Porém, em 1975, Corção e Fleichman escre-
vem regularmente na revista homônima do grupo francês Itinéraires,
até 1979. Esse contato entre o integrismo brasileiro e francês também
se desenvolveu por meio de viagens ao grupo parisiense, conversas en-
tre os intelectuais brasileiros e membros do clero tradicionalista fran-
cês, além da participação de uma comissão brasileira de Permanência
que participavam do L’Office International, congresso do integrismo
internacional, na Suíça. Eis que surge a pergunta? Qual o motivo desse
contato? Os intelectuais brasileiros ocuparam algum tipo de papel em
esfera internacional? Essas são algumas dúvidas que se pretende resolver
nesse trabalho, qual imagem que os intelectuais cariocas representaram
do Brasil em anos ditatoriais? Busca-se comparar seus escritos jornalís-
ticos nas revistas Permanência e Itinéraires para comprovar que ambos
foram ideólogos do regime civil-militar brasileiro, pois militavam contra
o clero progressista brasileiro no exterior.

176 Histórias, narrativas e religiões


Católicos, evangélicos e umbandistas:
espaços e memórias em disputa na
configuração do campo religioso em
Parintins (AM)

Adriano Magalhães Tenório (UEA)


Clarice Bianchezzi (UEA)
Diego Omar da Silveira (UEA)

Resumo: As últimas décadas têm sido marcadas no Brasil pela intensi-


ficação da diversificação do campo religioso. Esse processo não ocorre,
no entanto, de forma homogênea, havendo ritmos diferenciados nas ca-
pitais e interiores e disparidades regionais que merecem ser observadas
com mais cuidado. Para além do que apontam os dados demográficos ou
os números provenientes de levantamentos estatísticos, o crescimento
(neo)pentecostal e a afirmação identitária dos afrorreligiosos impõem,
na maioria dos casos, uma reconfiguração dos espaços e das memórias
aos quais diferentes sujeitos e grupos recorrem para compor suas tra-
jetórias individuais e coletivas. Este trabalho apresenta os resultados
parciais de uma pesquisa ainda em andamento, que busca averiguar as
disputas existentes no campo religioso da cidade de Parintins (localiza-
da na região do médio-baixo Amazonas). Promovendo uma cartografia
dos templos, grupos e movimentos religiosos locais e entrevistando fieis
e lideranças, buscamos elucidar como esse território de origem marca-
damente católica vêm correlacionando, nos últimos anos, a diversifica-
ção religiosa e a alteração das suas marcas identitárias baseadas na forte
presença pública do Igreja.

Histórias, narrativas e religiões 177


Simpósio Temático 2 – História Cultural
dos Protestantismos no Brasil

Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)
Prof. Dtrndo. Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

O tema deste simpósio temático pretende contemplar as dis-


cussões acerca dos estudos dos protestantismos no Brasil na perspecti-
va da História Cultural das Religiões. Esta abordagem é devedora das
consequências da chamada “virada cultural” notadas, sobretudo, a partir
da década de 1970, quando grupos de historiadores/as questionavam
esquemas teóricos mais herméticos e generalizantes, tentando abordar
fenômenos culturais mais específicos em seus recortes temporais e es-
paciais, enfocando as distinções de natureza cultural em detrimento de
explicações sociais, políticas e econômicas mais gerais.
Pensar os protestantismos no Brasil a partir das práticas e es-
tratégias contidas no escopo da História Cultural permite ressignificar a
religião como parte integrante de culturas específicas, desenvolvidas em
tempos e espaços determinados, o que torna seu estudo especialmente
relevante na medida em que atua na desconstrução de generalizações
que podem incidir sobre os protestantismos no país. Serão acolhidas
propostas de comunicação com variados recortes temporais e espaciais.

178 Histórias, narrativas e religiões


Comunicações – Simpósio Temático 2

Histórias, narrativas e religiões 179


Assembleia de Deus e a educação:
aspectos históricos, sociais e teológicos.

Atanael Ferreira Bastos Filho (Mackenzie/CAPES)

Resumo: A Assembleia de Deus se constitui como maior denominação


evangélica brasileira. No entanto, é possível notar determinada carência
na área de trabalhos acadêmicos a respeito de sua história e desenvol-
vimento, isso, diante da dimensão institucional e tempo histórico de
inserção em terras brasileiras. Com isso, o membro da AD, em linhas
gerais, é visto comumente como um cidadão pobre culturalmente e
marginalizado, como é de costume categorizar os grupos pentecostais.
Tal relação está ligada à aversão aos processos educacionais, sejam eles
teológicos ou formais, presente nos desdobramentos de seu desenvolvi-
mento nas primeiras décadas de inserção no Brasil.
As igrejas históricas protestantes, a saber, metodistas, presbite-
rianas e batistas, tiveram papel relevante para diminuição do analfabetis-
mo presente no Brasil em suas inserções, priorizando a educação como
fator essencial para o evangelismo eficaz. Por outro lado, a Assembleia
de Deus não teve o mesmo envolvimento com a educação formal, antes,
buscou evangelizar a nação brasileira a partir de uma visão escatológica
metafísica, a qual, não motivou seus membros a pensarem na realidade
social como oportunidade de atuação da igreja como gesto de cidadania
e serviço a pátria para o bem viver, assim, apresentou uma proposta de
evangelho que fez com que seus líderes e membros priorizassem mais a
ideia do bem morrer, com ênfase na experiência religiosa. Atualmente,
a relação entre AD e a educação demonstra uma mudança de habitus, o
que por sua vez nos instigou a buscar compreender como se deu a tran-
sição de tal mentalidade, a saber, observando esse envolvimento a partir
de aspectos históricos, sociais e teológicos.

Palavras-chave: Assembleia de Deus – Educação – Pentecostalismo

180 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

O presente trabalho pretende descrever de forma objetiva o


processo de inserção da Assembleia de Deus no Brasil e seu não envol-
vimento com a educação. Descrever possíveis razões teológicas, sociais
e históricas para o desenvolvimento da pesquisa. Questionar as razões
para o anti-intelectualismo presente na Assembleia de Deus ao longo
de sua expansão. Apresentar dados sobre a relação entre à Assembleia
de Deus e a Educação hoje. Fazer uma abordagem com a situação atual
da maior igreja evangélica brasileira (AD) e seu envolvimento com a
educação. Desta forma, demonstrar possíveis razões históricas, sociais
e teológicas da não participação das Assembleias de Deus nas questões
educacionais brasileiras e apontar novas perspectivas para esta atuação a
partir do contexto atual.
A metodologia aplicada foi de natureza qualitativa, sendo os
métodos principais a leitura e revisão de obras escritas sobre o tema
proposto. O material literário foi selecionado de maneira aberta, haja
vista, o tema ser ainda pouco explorado na academia. Fazendo parte
deste material recolhido: livros, artigos, dissertações, teses disponíveis
em plataformas online. Pretendeu-se utilizar de entrevistas entre leigos
e figuras expressivas da denominação.

1. Panorama da inserção da Assembleia de Deus


no Brasil

1.1. A chegada dos missionários Daniel Berg e Gunnar


Vingren e os primeiros anos da Assembleia de Deus no Brasil:

A Assembleia de Deus, hoje a maior denominação evangélica


do Brasil e uma das maiores do mundo, surgiu quando dois suecos de
origem batista: Gunnar Vingren e Daniel Berg conheceram-se e uni-
Histórias, narrativas e religiões 181
ram-se por um ideal missionário. Segundo Araujo (2014, p. 20), Gunnar
Vingren foi a uma reunião, em um sábado à noite, e um irmão chamado
Adolfo Uldin, foi arrebatado em espírito103, e este profetizou que deveria
ir para um lugar chamado Pará. Belém do Pará estava com aproxima-
damente 200.000 habitantes nesse período. Berg e Vingren não vieram
com vínculos institucionais. Eram batistas, mas não foram enviados ofi-
cialmente, com isso, não tiveram recepção, o que implicou numa grande
dificuldade para se estabelecerem na cidade de Belém do Pará nos pri-
meiros dias na nova pátria. A principal dificuldade para isso era não falar
a língua portuguesa.
Visando uma melhor comunicação, os jovens suecos procuram
protestantes na cidade que pudessem recebê-los, bem como ajudá-los no
professo de adaptação. O primeiro contato protestante foi com o pastor
metodista americano Justus Nelson, o qual os apresentou ao pastor da
Igreja Batista de Belém, Jerônimo Teixeira de Souza, também fluente na
língua inglesa. Foi na casa do Pastor Batista Jerônimo Teixeira de Souza
que os missionários Berg e Vingren tiveram a primeira moradia fixa no
Brasil, isso, num singelo porão.
Para aprenderem falar o português, os missionários contaram
com a ajuda de um membro da Igreja Presbiteriana de Belém, por nome
Adriano Nobre, o qual também falava inglês e se dispôs a ajudá-los
na questão idiomática, chamando-os sempre para seu convívio fami-
liar. Com isso, nesse primeiro momento de estadia no Brasil, como não
tinham condições financeiras para pagar pelas aulas, Daniel Berg foi
trabalhar numa fundição, enquanto Gunnar Vingren estudava o idioma
brasileiro. Os missionários em princípio não demonstraram num pri-
meiro momento a intensão de abrir uma nova igreja, pois, frequentavam
a Igreja Batista de Belém com entusiasmo dos congregados.

Vingren e Berg vieram para o Brasil sem sustento garantido e sem


apoio denominacional. O dinheiro para viagem foi doado por uma
igreja sueca de Chicago. No Brasil, Berg trabalhou por um tempo
numa fundição, venderam Bíblias e, ao que tudo indica, receberam

103  Arrebatado pelo espírito é uma expressão que no meio pentecostal está relacionado a um
momento em que o indivíduo tem uma visão por deslocamento sem sair do lugar.
182 Histórias, narrativas e religiões
doações esporádicas de amigos no exterior. Após sete meses em
Belém, congregando na Igreja Batista, ocorreu um cisma a respeito
da sua mensagem pentecostal. Dezenove pessoas foram excluídas da
Igreja Batista e formaram uma nova igreja, a qual adotou o nome de
“Missão de Fé Apostólica”. (FRESTON, 1994, P.81)

Havendo já no Brasil um protestantismo instaurado pelas


missões históricas, porém, com um público de maioria elite, os missio-
nários suecos priorizaram a evangelização de pessoas mais simples, a
saber, buscaram alcançar um público muito semelhante ao da cidade de
Chicago que, era de maioria de trabalhadores imigrantes, sendo que em
Belém do Pará, havia migrantes de várias regiões do país:

Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus,


em 1911, atingem ex-escravos e seus descendentes, nordestinos e
seringueiros desempregados, que retornam a seus municípios de ori-
gem levando a mensagem e, em menos de 20 anos, atinge todo país.
(...). A liderança é formada e forjada não em instituições de ensino
(de uma teologia importada), mas na própria prática eclesial de mui-
ta pobreza e perseguição. Um projeto de igreja brasileira que sempre,
até hoje, tem uma forte liderança nacional nordestina. Por ser um
grupo sem pretensões de atingir a elite ou apenas um determinado
grupo étnico, poderia, então, em sua proposta popular ter operado
uma grande influência cultural na base do país? Poderia, se não fos-
se o seu escatologismo. (DAYTON, 1987; HOLLENWEGER, 1976
apud CAMPOS, 2005)

Vale ressaltar que a peculiaridade do movimento pentecostal


brasileiro se dá pelo fato de ainda ser, de certa forma, um movimento
ainda imaturo, quando comparado a tradições históricas, as quais a aber-
tura de novos trabalhos estava muito associada a agências missionárias
ou mesmo denominações mantenedoras, além da realidade de, a partir
do pensamento escatológico, não haver um planejamento em longo pra-
zo para as denominações pentecostais. Segundo Freston:

O pentecostalismo estava apenas na sua infância, quando chegou ao


Brasil um fator importante para sua autoctonia. Sem grandes recur-
sos ou denominações estabelecidas, e mais interessado numa última
Histórias, narrativas e religiões 183
arrancada evangelística antes do fim do que na criação de uma insti-
tuição, o movimento não estabeleceu as relações de dependência que
caracterizavam as missões históricas. (1994, Pg. 75)

O nome “Assembleia de Deus” só veio a ser utilizado após


alguns anos de andamento do trabalho pentecostal iniciado por Berg
e Vingren, sabendo que anteriormente, Missão de Fé Apostólica te-
ria sido o primeiro nome da denominação. A razão para mudança do
nome não é muito clara. Porém, como salienta Alencar (2010, p. 64),
essa mudança só foi oficializada em 1918, através do então jornal oficial
da igreja, intitulado como “voz da verdade”, porém, esse nome já era
utilizado por igrejas pentecostais americanas. Esse fator por sua vez nos
chama atenção à questão, teria a AD brasileira ligação com os EUA? A
Assembleia de Deus americana era formada por brancos, sendo parte
de um movimento pentecostal mais “elitizado” para o contexto, tendo
em vista que o pentecostalismo teve maior notoriedade entre os negros
e pobres, assim como os missionários suecos que desembarcaram no
Brasil. A AD americana teve origem a partir da federação de igrejas
que haviam sido “pentecostalizadas”, porém, não queriam ligações com
movimentos negros. Os suecos eram oriundos de classe social margina-
lizada, a saber, sua identificação inicial com a Missão de Fé Apostólica,
o qual como explanado anteriormente teve origem às margens da socie-
dade estadunidense do início do século XX.

2. Razões para o pouco envolvimento social:

2.1. Anti-intelectualismo e AD: razões históricas

O anti-intelectualismo encontrado na (AD) possui raízes histó-


ricas. A formação do movimento está atrelada ao seu contexto de partida.
Podemos elencar dois fatores determinantes para isso, primeiro, o des-
contentamento presente no século XIX entre as igrejas norte-americanas,

184 Histórias, narrativas e religiões


segundo, o fato de AD ter sido constituída a partir de um público mais
simples, sendo abrigados no movimento negros, mulheres e estrangeiros.
Sendo assim, o AD surge, ainda que sem intenção de ser, como uma pro-
posta singular de protestantismo, não só pela ênfase na experiência espiri-
tual, mas, também como alternativa para aqueles que não se enquadravam
nos padrões propostos pelas elites. Seguindo essa perspectiva, podemos
perceber que o pentecostalismo exercido pela AD é também uma propos-
ta de apropriação da cultura brasileira em suas carências.
Para compreendermos melhor a questão do anti-intelectualis-
mo presente no pentecostalismo brasileiro, faz-se necessário citar alguns
fenômenos influentes ocorridos nos EUA, no chamado “pré-pentecosta-
lismo”, a saber, as chamadas ondas avivalistas, ocorridas entre os séculos
XVIII e XIX. Na primeira, chamada de o “Grande Despertar”, metade
do século XVIII, ocorreu à revitalização religiosa nos EUA. No movi-
mento reavivalista, os leigos tiveram poder de discurso nas ações, sendo
esses substitutos diretos dos cleros ineficientes, isso devido à ideia de
que a “intelectualização” ocorridas nas igrejas, fez com que o público
mais simples de fiéis se afastasse.

A marca peculiar do reavivalismo foi o protagonismo exercido pelos


leigos, que em razão da segregação e ineficiência do clero, assumiram o
papel principal das ações e dinâmicas religiosas. (GOMES, 2013, p. 47)

Com isso, muitos dos pregadores leigos, os quais passaram ter


o acesso à atenção do povo, começaram a dizer que não carecia de ins-
trução para pregação do evangelho, tendo em vista que, na concepção
deles, o Espírito Santo revela o que fosse necessário no ato. Sendo assim,
a tensão entre razão e emoção passou a perturbar o cenário religioso
estadunidense na virada do século XVIII para o XIX.

2.2.Frida Vingren: um paradigma para a questão da educação


na Assembleia de Deus

A docência na virada entre o final do século XIX e o XX, estava


associada ao papel feminino. O machismo presente na sociedade bra-

Histórias, narrativas e religiões 185


sileira desde os tempos mais remotos pode ter sido um meio para que
não somente a questão educacional viesse a avançar, mas também outras
áreas profissionais, anteriormente não permitidas para as mulheres. É
sabido que o ministério feminino sempre teve contestação ao longo da
história da igreja. A presença da mulher em lugares de destaque em
instituições sempre foi, aparentemente, algo raro. Com isso, a presença
do coronelismo nordestino no início da Assembleia de Deus, foi um
fator relevante para o machismo estabelecido na denominação ao longo
de seu desenvolvimento, impedindo que mulheres ocupassem papéis de
liderança e ensino.
O exemplo mais nítido a ser percebido, pertence a Frida
Vingren, esposa de Gunnar Vingren, um dos fundadores da Missão
de Fé Apostólica, que posteriormente veio a se chamar Assembleia de
Deus. Frida foi um braço forte para o desenvolvimento da Assembleia
de Deus nos primeiros anos, sendo sua maior área de atuação, a educa-
ção teológica, além de contribuir de outras maneiras para denominação
recém-iniciada. Frida foi tão aguda em suas incisões ministeriais que,
precisou ser contida pela resistência masculina ao desenvolvimento de
um potencial a brilhante ministério.

(...) e Frida fez tanto barulho que precisou ser silenciada. Mas, no
seu caso, trata-se do silêncio da história oficial, não dos hinos, arti-
gos, poesias e jornais que compôs e escreveu. (...). Também exerceu,
na prática, atividades eclesiásticas, as quais, se ainda hoje não bem
aceitas, convenhamos que, na década de 1920, seriam menos ainda.
(ALENCAR, 2013, p. 119)

Tendo em vista que Frida Vingren, com a posição que goza-


va, sofreu retaliações para ser exercer seu ministério, podemos perceber
que, uma participação mais efetiva das mulheres, talvez, fosse um fator
de grande valia para o desenvolvimento educacional na Assembleia de
Deus ao longo de sua história. Segundo Freston (1993), Frida teve de
enfrentar o modo de agir machista tanto nordestino, quanto sueco, sen-
do ela, muito independente para sua época. Frida era chamada de bibelk-
vianna, para que no sueco significa “mulher bíblia”. Frida se destacava

186 Histórias, narrativas e religiões


no conhecimento bíblico, porém, a resistência machista fez seu minis-
tério de ensino sucumbir. Consoante Alencar (2013), Frida até os dias
atuais, foi a única comentarista mulher de revistas para escola dominical
da história da Assembleia de Deus. Com isso, podemos perceber que a
ausência mais efetiva de mulheres, como Frida Vingren, pode ter sido
um desperdício para questão educacional no desenvolvimento histórico
da Assembleia de Deus, haja vista, a notória habilidade com a educação
visível entre as mulheres.

3. Envolvimentos educacionais:

3.1. Um sinal de ruptura: a fundação do Instituto Bíblico das


Assembleias de Deus (1959)

No ano de 1951, chegava ao Brasil, o casal de missionário, João


Kolenda Lemos e Ruth Dóris Lemos, vindos dos EUA. Kolenda e Dóris
moraram primeiramente no estado do Rio de Janeiro, porém, o casal já em-
preendia o desejo de fundar um seminário teológico, mas, cedo encontra-
ram resistência por parte da liderança vigente na AD. Com isso, Kolenda
e Dóris passaram a trabalhar na Casa Publicadora das Assembleias de
Deus (CPAD). Kolenda atuava como tesoureiro, bem como, trabalhou
com sua esposa na produção de revistas infantis para Escola Dominical,
além de dedicar-se a revisar o hinário oficial da AD, a Harpa Cristã, e
também, cooperaram na revisão do jornal da AD, o Mensageiro da Paz,
presente até hoje na denominação como jornal oficial.
Em 1959, na cidade de Pindamonhangaba, São Paulo, Kolenda e
Dóris, realizaram o desejo de fundar Instituto Bíblico das Assembleias de
Deus (IBAD), primeiro instituto bíblico pentecostal brasileiro. O IBAD
passou a funcionar oferecendo aulas presenciais, e com regime internato
para os alunos, o que por sua vez, passou a ser frequentado por jovens as-
sembleianos de todo país, sendo seu primeiro endereço, o número 476 da
Rua São João Bosco, com o espaço de duas casas apenas. No ano seguin-
Histórias, narrativas e religiões 187
te, 1960, os missionários conseguiram transferir o IBAD para um lugar
maior, após encontrarem um antigo prédio a venda no número 1.114 da
mesma rua, local esse em que o IBAD funciona até hoje.
Não sendo uma prioridade padrão a formação teológica na
AD, a maioria dos pastores resistiu à formação do seminário, pois, acre-
ditavam que o fim estava próximo. Por isso, já não havia necessidade
estudar, bem como, acreditavam que cabia somente ao Espírito Santo
dar o conhecimento ao obreiro, afirmando que os apóstolos de Cristo
eram pobres e leigos, com isso, os assembleianos assim deveriam estar
distantes dos livros, consoante Araujo (2011, p. 400).
Para os líderes assembleianos das primeiras décadas da AD, o
teólogo ao contrário do fiel pentecostal, é visto com figura infrutífera,
como podemos observar, segundo Gomes (2013, p. 88), um pequeno
trecho de um artigo publicado em 1937, no jornal oficial da AD:

Os teólogos são, espiritualmente, secos. (...) Enquanto esses teoristas


escavam e encontram papéis, o crente simples, nas suas escavações (de
joelhos dobrados) encontra água viva, com abundância. Um acha a
palavra que mata, o outro o Espírito que vivifica. (...) Aquele (o te-
ólogo) emprega o seu tempo em agrupar opiniões, medir tempos,
escarafunchando esta ou aquela escritura, e este (o simples crente) se
congrega, constantemente para anunciar aos pecadores que Jesus o
salvou e o tem guardado da lama deste mundo perverso (Mensageiro
da Paz, 15/08/1937).

Sendo assim, podemos afirmar que, a inserção da formação te-


ológica na AD, em seu percurso histórico, foi uma questão também de
militância. Kolenda e Dóris tiveram dificuldades para manter o IBAD
no início, haja vista, a pouca quantidade de alunos para custear todas
as despesas. Com isso, os missionários tiveram que exercer atividades
alternativas para arrecadar recursos. Kolenda passou a fazer traduções,
já Dóris, trabalhou na Universidade de Taubaté, gerenciando o depar-
tamento de inglês da mesma. Consoante Araújo (2011, p. 400), as aulas
eram no período noturno, sendo das 19 às 23 horas, de segunda a sexta-
-feira. Com isso, desde a sua criação, o IBAD foi uma contraproposta as
escolas bíblicas rápidas que acontecia até então na AD.
188 Histórias, narrativas e religiões
3.2. Um passo tardio: a criação da comissão de Educação e
Cultura Religiosa em 1971

A criação da comissão de Educação e Cultura Religiosa ocor-


reu em 1971, depois foi convertida no Conselho de Educação e Cultura,
isto, através da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
(CGADB). O órgão possui autoridade para credenciar ou não uma es-
cola teológica diante da CGADB, além de trabalhar com metas, esta-
tísticas, possuindo burocracia e arcabouço organizacional para os afins
ligados aos interesses da instituição.
O Conselho de Educação e Cultura, além das questões jurídicas,
fica encarregado de promover congressos, seminários, dentre outros en-
contros, afim de incentivar as igrejas pertencentes a denominação a abri-
rem espaços de aprendizagem teológica, música e de instrumentos, pois
algumas igrejas da Assembleia de Deus possuem orquestras. Porém, é
possível perceber que a organização da Comissão de Educação e Cultura, é
tardia, de modo que, a ênfase somente na experiência com o passar dos
anos foi se enfraquecendo.
Hoje, como salienta Alencar (2013), a questão da educação
passou a ser uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento da
igreja, pois, o discurso carismático já não vem conseguindo suprir os
anseios de uma membresia moderna, pluralizada, distante da resistên-
cia a educação formal, enfrentada pelos primeiros assembleianos. Outro
avanço notório na questão educacional, está associado a produção lite-
rária da Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD), que por
sua vez, passou a produzir materiais mais acadêmicos, elevando assim
a qualidade do material usualmente chegado as mãos das pessoas que
compõe a instituição.

3.3. Aspectos sociais da relação entre AD e a educação:

Para compreendermos melhor as razões sociais para o não en-


volvimento da AD na alfabetização tupiniquim, faz-se necessário uma
breve explanação do contexto educacional brasileiro, nos primeiros anos
Histórias, narrativas e religiões 189
da AD. O Brasil na virada do século XIX para XX sofria de uma pre-
cariedade exorbitante nas questões básica para o desenvolvimento hu-
mano. Focando a questão educacional brasileira no início do século XX,
Ghiraldeli Jr (2001, p.21), aponta que a população analfabeta do Brasil
chegava aproximadamente a 75 %, tendo em vista que, a influência cató-
lica foi determinante para precariedade educacional da sociedade brasi-
leira, a saber, a realidade de cursos de nível superior estar restritos apenas
as pessoas de melhores condições financeiras.
As igrejas protestantes históricas, a saber, Metodista,
Presbiteriana, Batista, as quais tiveram um papel significativo no pro-
cesso de alfabetização brasileira. Podemos observar que a expansão da
Assembleia de Deus teve algumas dificuldades, além da falta de diá-
logo com a cultura, no sentido de diálogo mais politizado. Consoante
Campos Jr:

Os pentecostais adotam posturas que tendem a reduzir tudo ao nível


espiritual, “tudo depende da ação de Deus”. Dessa forma prioriza
um discurso mágico-religioso em uma sociedade cuja racionalidade
técnico-científica cresce a cada momento. (1995, apud Fernandes,
2006, p. 36),

O Brasil naquela época, ainda carregava consigo um forte peso


da Igreja Católica, o processo de conversão às vezes era travado pelo que
a “barriga” determinava. Os missionários suecos eram oriundos de um
país onde os mesmos, juntamente com os demais imigrantes, estavam às
margens da sociedade, num lugar homogêneo cultural, social e religio-
samente, com isso, adotaram uma postura contracultura, além do fato de
pertencerem a uma minoria religiosa em seu contexto de origem.

Desprezavam a igreja estatal, com seu alto status social e político e


seu clero culto teologicamente liberal. (...). Havia experimentado um
Estado unitário no qual uma cultura cosmopolita homogênea não
permitia à dissidência religiosa a construção de uma base cultural
capaz de resistir à influência metropolitana. Por isso, eram porta-
dores de uma religião leiga e contracultural, resistentes à erudição
teológica e modesta nas aspirações sociais. (FRESTON, 1994, P. 78)

190 Histórias, narrativas e religiões


Os missionários suecos trouxeram na formação da Assembleia
de Deus, além das influências religiosas norte-americanas, uma posi-
ção pessimista quanto à ascensão social, adotando assim a postura de
mártires, sofredores e marginalizados culturalmente, isso, diferente dos
enviados das missões tradicionais, os quais traziam consigo uma visão
desbravadora em suas conquistas, principalmente, no que tange a fun-
dação de instituições de ensino, a exemplo, as missões presbiterianas,
batistas e metodistas. Com isso, o crescimento da Assembleia de Deus
nas primeiras décadas esteve ligado as camadas mais simples da socie-
dade brasileira.

A expansão inicial da AD foi moderada. Nos primeiros 15 anos


limitaram-se praticamente ao Norte e Nordeste, onde a oposição
católica e a dependência. [...]. A AD se espalhou, não só com ação
planejada dos líderes, mas também pela mão dos leigos, geralmente
pessoas simples. (FRESTON, 1994, P.82)

Um fator relevante a ser destacado como causa para o não envol-


vimento da Assembleia nas questões que tangem a sociedade, é a presente
influência platônica em sua cosmovisão cristã, isto é, a percepção de deslo-
camento dimensional futuro, a saber, presente no pensamento assembleia-
no, bem como visto em muitos ramos ao longo da história do cristianismo.

Uma influência platônica tem estado presente ao longo da história


do cristianismo, separando corpo e alma, matéria e metafísca. Em
nossos tempos essa influência tem uma face visível naqueles cris-
tãos apenas e apenas preocupados com “a alma”, “a vida espiritual”
(contestada com a vida material), o “outro mundo”, a vida após a
morte, de tendência ascética, separatista e alienada. [...]. O mundo
não tem futuro, nada nos resta fazer por ele, e não devemos nos me-
ter em questões políticas, sociais e econômicas. (CAVALCANTI,
1993, P.43)

Os ensinamentos de Scolfield tem grande relevância para com-


preensão do pensamento escatológico assembleiano, isto é, o fato da
Assembleia de Deus ter herdado muito da sua base doutrinária, e con-
sequentemente escatológica, da Igreja Batista. A desesperança para com
Histórias, narrativas e religiões 191
o mundo é um marco notório na escatologia pré-milenista e tribulacio-
nista. Segundo Baptista:

“O pentecostalismo clássico, tipo Assembleia de Deus, oferece um


modelo de messianismo- milenarismo transcendente e futuro, no
qual o messias Jesus Cristo implantará um governo milenial, regido
por ele, próximo do final dos tempos. Sua fonte inspiradora principal
é o dispensacionalismo, disseminado pelo advogado Cyrus Ingersol
Scofield”. (2007, p. 105)

Essa desesperança para com a realidade faz do cristão um ser


apolítico a certa medida, pois, o pensar político, no que tange ao bem
comum, é fundamental para o desenvolvimento sadio da sociedade, com
isso, essa aversão ao diálogo com as necessidades do mundo, pode ser
vista também como uma omissão diante das responsabilidades de se
viver em um mundo politizado:

A excessiva ênfase na escatologia também pode funcionar como


uma válvula de escape para os que estão procurando fugir de suas
responsabilidades de agentes do bem aqui, agora, neste mundo.
(CAVALCANTI, 1993, P.46-47)

O posicionamento escatológico imediatista pode não só ter


afetado a relação entre a Assembleia de Deus e a sociedade, mas tam-
bém deficiências em longo prazo, por exemplo, a expansão exorbitan-
te com pouco planejamento de suas estruturas institucionais, que por
sua vez, abrange o todo da denominação, envolvendo desde questões do
episcopado, bem como questões relacionadas aos membros, a saber, a
aversão aos estudos em grande período de sua expansão.

Conclusão

Durante o desenvolvimento de nosso trabalho, pretendeu-


-se analisar de forma sucinta aspectos históricos, sociais e teológicos
192 Histórias, narrativas e religiões
como influências na relação entre Assembleia de Deus e sua relação
com a educação. A busca por conhecimento secular por parte de muitos
obreiros assembleianos nos dias atuais é uma resposta à necessidade de
diálogo com a chamada era da informação, pois, nas últimas décadas,
houve grande crescimento na capacitação profissional e educacional de
membros da Assembleia de Deus, o que consequentemente, exige uma
formação cultural maior por parte da liderança. Consoante ao exposto
se faz necessárias abordagens coerentes com eixo acadêmico para maior
disponibilidade de informações sobre a denominação e seu desenvolvi-
mento na história do Brasil, sendo os templos, os quais são inutilizados
a maior parte do tempo, canais possíveis de contribuição à cidadania
através da educação.

Referências bibliográficas

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194 Histórias, narrativas e religiões


A auto-hagiografia elaborada por um
Santo: a exemplaridade da fabricação de
santidade na obra “o grande livramento”
de Valdemiro Santiago

Thamires Chagas D’ Alcântara (Mestrado - UFRRJ)

Resumo: O objeto que permeia a problemática, neste trabalho, é o uso


do discurso hagiográfico na obra O Grande Livramento do “Apóstolo”
Valdemiro Santiago de Oliveira, relatado a partir das experiências reli-
giosas vivenciadas por ele, no ano de 1996, em Maputo, Moçambique.
Para tal análise utilizo como enquadramento teórico o que pesquisa-
dores norte-americanos denominam de Medievalism ou colonização da
Idade Média, concatenando, portanto, a utilização do gênero hagiográ-
fico com interesse num projeto de autossantificação.

Palavras-chave: Novo Medievalism. Uso da Idade Média. Apropriação.

Introdução

A historiografia medievalista brasileira, assim como em ou-


tras tradições acadêmicas internacionais nesta área, vem passando por
uma reformulação identitária. André Bertoli e Maria de Lurdes Rosa
vêm na historiografia brasileira um campo bastante fértil para o de-
senvolvimento da pesquisa histórica no que tange à área dedicada aos
estudos medievais. Segundo estes intelectuais, o medievalismo brasileiro
comunga de um dinamismo institucional independente, mas que se em-
basa também, em numerosas reflexões, nos últimos anos, sobre a prática,

Histórias, narrativas e religiões 195


a teoria, o método e sobre as configurações disciplinares no contexto
internacional, que não escondem os problemas e as lacunas a preencher
(ROSA, Maria; BERTOLI, André, 2012, p.248). É nesta perspectiva
que a historiografia brasileira avança, quebrando paradigmas de uma
relação de natureza “colonial” com a historiografia européia, surgindo,
deste modo, um esforço teórico para definir modernas concepções no
campo científico da disciplina medieval, assim como em outros campos
da história em geral.
Esse avanço nas reflexões e quebras de paradigmas que a dis-
ciplina histórica vem galgando está ligado diretamente com os estudos
pós-coloniais e pós-modernistas, que proporcionaram aos historiadores,
a partir da década de 1980, uma nova reflexão no modo de conceber,
interpretar e escrever a história - sobretudo medieval -, especialmente
a historiografia norte-americana, que tem se transformado num campo
fértil para que os cientistas sociais busquem renovar seus métodos de
pesquisa. Neste novo contexto, historiadores, historiadores da arte, fi-
lólogos, críticos literários reduzem cada vez mais o abismo que existem
entre si e suas respectivas disciplinas, aumentando suas ferramentas de
pesquisas, que consequentemente ampliaram os debates em torno de
novos métodos, novas teorias, conceitos, temas e discussões acerca da
prática do historiador.
Mediante a adoção de novos pressupostos modernistas no la-
bor científico, alguns dos mais importantes medievalistas de prestígio,
sobretudo oriundos das academias norte-americanas, vêm alargando
consideravelmente o diálogo interdisciplinar, introduzindo novas refle-
xões acerca dos estudos medievais e dos usos da Idade Média. Trabalhos,
revistas, jornais, artigos, publicações diversas, como The new medivalism,
the past and future of medieval, Medievalism and modernist temper, the ye-
ar’s work in medievalism, medievalism in the modern world, surgem como
propostas destas novas concepções de pesquisa sobre a apropriação do
mundo medieval.
É nesta perspectiva, que se constroem os problemas acerca do
objeto analisado, já que, o modus operandi para a projeção da liderança
do “apóstolo” Valdemiro Santiago, em território brasileiro, fogem aos
padrões do protestantismo, mesmo com sua diversidade.

196 Histórias, narrativas e religiões


Destarte, esse artigo, tem por finalidade apresentar o novo me-
dievalism, enfatizando como um modelo discursivo apropriado do pas-
sado histórico pode suscitar um patamar de legitimação.

O Medievalism como método de pesquisa da


história

Os historiadores Paul Freedman e Gabrielle Speigel (1998,


p.677-704), no final da década de 1990, apontaram para a emergência de
um novo medievalismo, que estava introduzindo novos postulados em
oposição com o “velho medievalismo”, mais aferrado à tradição. Mais
tarde, Stephan G. Nichols (2005, p. 422-441) assinalava que o “novo” e
o “velho” medievalismo não se contrastavam ou que havia tido uma rup-
tura entre eles, o que houve é que o novo medievalismo engendrou uma
análise da Idade Média, partindo de novos temas e perspectivas, criando,
deste modo, um novo campo epistemológico.
Mediante estas novas reflexões, concepções teóricas e meto-
dológicas, a questão do uso da idade média por agentes históricos, na
modernidade ou no contexto contemporâneo, tornou-se tema central
das análises de medievalistas, como Leslie Workman, reconhecidamen-
te como o precursor do conceito analítico.
Leslie Workman conceituou e fundamentou o Medievalism
como uma disciplina acadêmica e categoria interpretativa, significando
o estudo da (re) criação da Idade média como construção imaginativa da
sociedade ocidental desde o seu término tradicional, ou ainda, “o estu-
do da aplicação de modelos medievais às necessidades contemporâneas
e a inspiração do medievo em todas as formas de arte e pensamento”
(WORKMAN, 1987, p.1).
É deste modo, que o Medievalism se ocupa da investigação de
como a Idade Média foi usada, escrita, inventada, construída, interpreta-
da e descrita por agentes históricos após o tradicional período medieval.

Histórias, narrativas e religiões 197


É neste contexto, que Workman produz um periódico104 inteiramente
para análise destas imagens e percepções da idade média no pós-medie-
val e o Medievalism como conceito utilizado na abordagem metodológi-
ca que representa a aplicação das idéias da época medieval nas situações
e fatos contemporâneos (WORKMAN, 1979, p.82).
Esta forma de análise não apenas incorpora novas fontes, mas
também as formas como tais fontes foram e são usados por indivíduos
ou grupos com o objetivo de auto-definição ou auto-legitimação. Este
novo tratamento com o passado histórico permite, portanto, uma análise
dos discursos e de modelos de vida apropriados do passado e incorpora-
dos por sujeitos históricos pós-medievais que se assenhorearam de um
determinado modelo do passado para afirmarem-se no presente.
Para Alain Corbellari (2015, p. 438), o fascínio pelo medievo
“não é inocente e levanta problemas extremamente graves” e coloca em
causa, segundo Corbellari (2015, p.438), “nada menos do que a própria
definição de nossa civilização, a nossa relação com a cultura e, acima de
tudo, o que queremos fazer nela”, ou seja, se o tratamento da história
não é inocente, o período medieval é forjado por uma visão singular
de mundo, que pode redefinir nossa própria civilização e nossa relação
com a cultura.
Tomada como “fenômeno social” (CORBELLARI, 2015, p.
439), a Idade Média deve ser entendida dentro de um contexto político
e social específico, “sendo uma categoria móvel aplicada a qualquer tem-
po ou sociedade” (DAVIS, 2008, p. 7), evidenciando, portanto, outros
espaços – como Índia, América Latina e África -, deslocando o foco da
Europa, permitindo uma maior ampliação de estudos relacionados com
a ideia de “Idade média”.
Deste modo, trabalhos em Medievalism fora da Europa vêm
crescendo sensivelmente entre os medievalistas e os pós-colonialistas,
como o Creole medivalism de Michele Warren, publicado em 2011, cuja
pesquisa analisou como Joseph Bédier (1864-1893) demonstrou como
seu relacionamento multicultural e economicamente periférico do lugar

104  The Year’s Work in Medievalism foi criado, em 1979, para a publicação de ensaios
relacionados aos Studies in medievalism, organizado por Leslie Workmam até o ano de 1999,
quando Richard Utz assumiu e editoração do jornal.
198 Histórias, narrativas e religiões
onde nasceu, em Réunion, uma ilha no oceano índico, motivou seu na-
cionalismo de forma complexa.
Em Medievalism and The Contemporaneity of the medieval in
Post colonial Brazil, Nadia Altschul (2015, p. 139-140) analisa sobre
a questão da persistência do “medieval” no Brasil pós-independência,
de um lado pela corrente do Medievalism, e por outro, pela crítica li-
terária, utilizando o texto Os Sertões de Euclides da Cunha, que se-
gundo a autora é um dos textos que se remete a fundação da nação
brasileira. Deste modo, Altschul aponta para um desenvolvimento do
Medievalism brasileiro em zonas mais amplas. No entanto, apesar do
prestigioso trabalho de Nadia Altschul sobre o Medievalism brasileiro e
sua contribuição teórica para seu desenvolvimento no campo de estudos
medievais no Brasil, pesquisas em língua portuguesa, praticamente são
inexploradas e, quando são ilustram-se ao abrigo da crítica literária sob
o tema das reminiscências medievais em poemas, canções e livro sem
as reivindicações teóricas do Medievalism. Isto posto, observo o longo
caminho que medievalistas e pós-colonialistas ou modernistas precisam
percorrer para um crescente desenvolvimento teórico e metodológico do
Medievalism no Brasil em molde da crítica historiográfica, sem excluir, é
claro, a interdisciplinaridade que o Medievalism comunga.

A religião como tema marginalizado no


Mediavalism

Apesar da grande produtividade destes temas, principalmente,


relacionados à análise literária e mais recentemente na área cinemato-
gráfica, Richard Utz, aponta que, embora, o Studies in Medievalism e a
The Year’ s work in medievalism componham uma vasta lista de artigos
interdisciplinares, tendo “ensaios sobre arquitetura, artes, cinema, iden-
tidade corporativa, filmes, questões de gênero, gibis, ficção histórica, ro-
mance modernista, séries televisivas e jogos de vídeo” (UTZ, 2013, p.2)
relacionados à recepção medieval em épocas posteriores, estas revistas
Histórias, narrativas e religiões 199
acadêmicas deixam a desejar por não manterem uma tradição de aná-
lises do papel específico da religião. Para Utz, “a religião nos Studies in
Medievalism é presente, no entanto, é escamoteada ou velada como um
subconjunto subserviente de outras categorias acadêmicas preferenciais
e prevalentes” (UTZ, 2013, p.2-3). A questão religiosa é tratada com um
pano de fundo. Isso se deve, por um lado, pelas múltiplas denominações
e vertentes teológicas constituídas na modernidade e contemporanei-
dade, que podem ser consideradas religiões modernas sem resquícios
do medievo105, ainda mais em antigas colônias que a partir da década
de 1970 vivenciaram uma onda de reformulações teológicas cristãs que
possivelmente escamotearam as reminiscências medievais ou discursos
de apropriação medieval debaixo do rompimento protestante e da cria-
ção “moderna” da concepção de religião. Por outro lado, as temáticas
mais visíveis como literatura, arquitetura e mídia são bem mais notabili-
zadas e aparentes do que outras questões que necessitam de um exercício
de busca mais profundos, nem sempre vistos a “olho nu”, que pode ser o
caso da religião. É desta maneira, seguindo as profundas transformações
epistemológicas dos estudos medievais, que busco evidenciar a análise
da apropriação de valores cristãos medievais por meio da reelaboração
teológica por parte da Igreja Mundial do Poder de Deus, personificada
pelo “Apóstolo” Valdemiro Santiago de Oliveira, no Brasil, e fundamen-
tada sobre sua obra O Grande Livramento, autobiografia do autor, aqui,
entendida como uma obra personificada sobre um paradigma hagiográ-
fico, seguindo uma elaboração continua de patamares de afirmação da
sua identidade “santificada”.
Por tanto, faz-se necessário iniciar um processo de evidencia-
mento da religião como objeto de estudos do Medievalism. E, segundo
Richard Utz, “é claramente importante que nós, pesquisadores de estu-
dos em Medievalism, façamos da religião, pelo menos em suas manifes-
tações temporais, parte integrante (e não apenas um sistema integrado)

105  Não defendo uma continuação dos ideais cristãos medievais da Igreja Católica com os
ideais do protestantismo, criando, portanto, um anacronismo. Chamo a atenção para o fato
de que se ater somente na ideia da fratura causa, portanto, uma impossibilidade de análise das
apropriações de discursos medievais por parte de líderes religiosos tanto dentro do catolicismo
contemporâneo, como dentro das denominações diversas saídas da reforma.
200 Histórias, narrativas e religiões
de nossas investigações” (2013, p. 6). Assim como Richard Utz destaca
a religião como objeto de estudo integrante do Medievalism numa pro-
jeção internacional, me atrevo a corroborar com o autor pelo esforço de
tornar não somente o Medievalism um campo de estudos conhecido
no Brasil, como também desenvolver pesquisas na área de fenômenos
religiosos e suas recepções do medievo, destacando o papel da religião e
de elementos religiosos de inspiração medieval, sob a tutela da categoria
interpretativa do Medievalism.

O Homem

Valdemiro Santiago nasceu no interior de Minas Gerais, em


Cisneiros, Distrito de Palma. Sua pequena biografia redigida no site
de sua Igreja apresenta sua infância pobre e sofrida. Segundo o site da
Igreja Mundial do poder de Deus, Valdemiro encontrou salvação na
mensagem anunciada do evangelho de Jesus Cristo, aos dezesseis anos
após passar por uma adolescência conturbada106.
Sua função ministerial inicia-se na Igreja Universal do reino de
Deus liderada pelo Bispo Edir Macedo. Valdemiro Santiago era um dos
pastores que faziam parte da cúpula da Igreja Universal e esteve sob esta
liderança por dezoito anos de sua vida como pastor e missionário. Após
uma dissidência com o Bispo Edir Macedo, em 1998, surge a Igreja
Mundial do Poder de Deus, na cidade de Sorocaba, pouco menos de
dois anos de sua “experiência”, em Moçambique.
Apesar da projeção que Valdemiro Santiago alcançou durante
os últimos dezoito anos em torno de sua imagem carismática através
de seu programa televisivo, sua principal construção como um pastor
está fundamentalmente erguida na sua “experiência” divina com Deus
quando ainda era um pastor e missionário da igreja Universal do Reino

106  As informações sobre a vida e as obras do líder religioso podem ser acessadas através do
site da IMPD, disponível em: www.impd.org.br/institucional
Histórias, narrativas e religiões 201
de Deus, em Moçambique. É na “África imaginada”107 que Santiago
constrói sua imagem legitimadora que o impulsionou para uma inde-
pendência religiosa, fazendo-o criar a sua própria denominação. Forma-
se, portanto, um questionamento: por que só após a sua estadia, em
Moçambique, Santiago encontra fôlego suficiente para fazer frente ao
seu ex-líder religioso e outras denominações?
É na sua “experiência” religiosa, em Moçambique, ou melhor,
na construção do relato da experiência, que reside o principal fator para
sua chegada ao poder eclesiástico. É em Moçambique que Santiago
construíra uma base bastante sólida para sua legitimação a fim de sacra-
lizar-se como líder religioso legítimo, no Brasil.

A construção da Santidade

Pensar no tema da santidade não é apenas remeter-se ao mun-


do medieval. Apesar do vasto “panteão” de santos criados no período
medieval, a questão da santidade, ou melhor, da sacralização de um in-
divíduo ou objeto não é um fenômeno ímpar circunscrito ao catolicis-
mo do Ocidente medieval. Sequer, a santidade seguiu um único modelo
desde os primeiros indícios de sua produção.
Há uma vasta historiografia sobre a questão da sacralidade108
que por mais importante que sejam estas discussões, não cabe, neste

107  Utilizo o termo “África imaginada” para que o leitor tenha consciência de que a África que
Valdemiro Santiago acredita conhecer é uma África que não conhece Deus, o continente das
trevas, da pobreza generalizada, da ignorância e que soma um elemento fortemente aterrorizador,
o “muçulmano inimigo e infiel”.
108  Para mais informações sobre a discussão em torno da santidade ver: Cf. VAUCHEZ,
André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental (séculos VIII a XIII). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1995; VAUCHEZ, André. Cristianismo: dicionário dos tempos, dos lugares e das
figuras. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense, 2013; VAUCHEZ, André. O Santo.
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Santidade. In LE GOFF, J; TRUONG, N. Uma História do Corpo na Idade Média. Trad. M. F.
Peres. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2006.
202 Histórias, narrativas e religiões
trabalho, aprofundá-las. No entanto, é de suma importância assinalar
que a hagiografia, o instrumento mais significante da legitimação de um
santo não atende apenas a um padrão de escrita ou modelo de santidade.
A hagiografia apesar de delimitar sua função, seus elementos
constitutivos, que indicam uma estrutura própria e seu paradigma de
escrita, ela não se encontra enquadrada em um único e imutável mo-
delo. O problema de se pensar em uma continuidade e em padrões de
modelos nas narrativas de vida de santos, mesmo dentro de um período
histórico, está relacionado à utilização de uma mesma linguagem reli-
giosa em contextos, realidades e temporalidades diferentes, que causam
um falso sentido de continuidade no que tange aos fenômenos religiosos
(VAUCHEZ, 1989, p.211). Para André Vauchez, é necessária a des-
construção da ideia de continuidade, principalmente, “no domínio da
religião, sobretudo quando se trata do catolicismo, que tende a realçar
a constância das crenças fundamentais e do seu quadro institucional
ao longo dos séculos”. É na concepção de que os conceitos religiosos
mudam de sentido, tanto quanto, os conceitos históricos, que se pode
observar a historicidade dos conceitos dentro da comunidade religiosa
nas diferentes temporalidades. Dessa forma, tornar-se santo correspon-
de ao contexto e às demandas de interesse no social e no político, sen-
do possível a apropriação desse fenômeno por outros tempos históricos
pós-medieval.
É através de O grande livramento, entendido, neste trabalho,
como um paradigma hagiográfico, constituído por uma estrutura con-
tínua de afirmação de uma identidade santificada, que sustento que o
fenômeno da santidade estende-se para além da Igreja Católica.
O grande livramento é apresentado como uma obra pessoal, de-
monstrando a ação de Deus através de livramentos. Além disso, explica
o porquê deles. O livro relata as inúmeras vezes que a vida do apóstolo
foi salva pela ação da providência divina. A obra corrobora a tese segun-
do a qual Deus interveio na vida de Valdemiro Santiago para que ele
pudesse testemunhar o seu poder.
Ele começa a narrativa, daquilo que denominou de O grande
livramento, aludindo, por meio de uma epígrafe o livro de Isaías. Trata-

Histórias, narrativas e religiões 203


se de uma citação direta de Is 43.1-3 que serve de preâmbulo das prova-
ções que ele sofrerá. Esse será o texto base no qual Valdemiro Santiago
irá fundamentar o seu martírio.

Mas agora, assim diz o Senhor, que te criou, ó Jacó, e que te formou,
ó Israel: não temas, porque eu te remi; chamei-lhe pelo teu nome,
tu és meu. Quando passares pelas águas, eu serei contigo; quando,
pelos rios, eles não te submergirão; quando passares pelo fogo, não
te queimarás, nem a chama arderá em ti. Porque eu sou o Senhor,
teu Deus, o Santo de Israel, o teu salvador... Is 43.1-3 (OLIVEIRA,
2009, p. 17)

Após a epígrafe mencionada, a África surge como um lugar


onde Deus queria que Valdemiro estivesse para cumprir o ministério,
portanto, como uma predestinação.

Certa vez ao pregar, ainda no começo do meu ministério, vi uma re-


portagem sobre a África onde as crianças viviam se arrastando para
conseguir alimento, mendigando pelo pão [...] Aquilo me doeu o
coração. Então falei com Deus:
- Senhor, dê-me a oportunidade de um dia estar naquele lugar fa-
lando de Deus, mostrando Teu poder e pregando a Tua Palavra ! [...]
Dez anos mais tarde eu estava recebendo a ordem de Deus para ir
à África.

Já em Moçambique, Valdemiro narra seus relacionamentos


com os nativos. O primeiro tipo de contato foi baseado na ideia de
caridade. Os nativos pobres exercem, na narrativa do Apóstolo, uma
relação de dependência, na qual Valdemiro Santiago é seu agente ca-
ridoso, e eles são os receptores da bondade voluntária do religioso.
O segundo é concernente, principalmente, aos muçulmanos os quais,
segundo Valdemiro, são de uma seita muito radical e que eles “não têm
conhecimento acerca do Deus vivo; tampouco, tem o amor dEle no
coração” (OLIVEIRA, 2009, p. 19). Para Valdemiro, os muçulmanos
são os inimigos da missão da Igreja.
Após Valdemiro fazer menção do que os muçulmanos “sem
Deus e sem amor” são capazes de fazer, dando exemplo do que fizeram
204 Histórias, narrativas e religiões
aos Estados Unidos e do que fazem até hoje contra Israel, ele simples-
mente diz que não passava na mente dele que eles (muçulmanos) pudes-
sem sabotar a sua embarcação. Ao escrever essa última frase, Valdemiro
inscreve, na narrativa, a sua virtude mais destacada, a misericórdia e o
amor que fazem dele uma pessoa tão digna de honra, que seria um pe-
cado mortal ele ser perseguido por tais virtudes. Mas, é exatamente por
sua virtuosidade, como os mártires cristãos, que será perseguido pelo
inimigo da Igreja, desde os tempos das cruzadas medievais.
Movido por uma compaixão pelos pobres, Valdemiro decide-
-se por fazer uma pescaria que alimentaria a população faminta Porém,
‘sabotado por líderes muçulmanos’, o barco de Valdemiro começa a
naufragar no oceano índico. Iniciando-se, a partir desse fato, segundo
Valdemiro, o maior dos livramentos vivido por ele.
Em seguida, narra que os três homens agarraram-se ao bote
com o barco já quase submerso, ao passo que Valdemiro lançou-se ao
mar. “Eu comecei a nadar sem rumo, pedindo orientação a Deus e me
deixando guiar pelo Espírito dEle” (OLIVEIRA, 2009, p. 21). Ao mes-
mo tempo, dois dos náufragos pediram para ir com ele (Valdemiro). Ele
relata que consentiu porque a fé é individual e que se tratava de pessoas
maiores de idade. Ao mesmo tempo, diz que havia pensado que, como
pesava 153 Kg e, os dois, se comparados ao seu porte físico, pareciam até
mesmo atletas, não via problemas em que eles o acompanhassem. No
entanto, Valdemiro, mesmo esperando por eles, notou que se distanciou
dos mesmos. Após nadar por uma hora, notou que seria muito difícil
chegar à praia, pois não sabia se nadava para o lado correto e ainda a
correnteza estava demasiadamente forte.
Ao notar que o tempo passava rapidamente, quando se deu con-
ta, já estava a nadar por duas horas. Passou a temer que a noite caísse, e
que fosse arrastado por ondas gigantes, sendo devorado por tubarões tam-
bém gigantes. Nesse momento, deparou-se com um a nadar ao seu redor.
A sua atitude foi a de clamar a Deus, em lágrimas e com muita confiança,
para conseguir um livramento. Mas o seu clamor não era apenas para si
próprio, clamava a Deus também por todos aqueles que tinham ficado
em terra e que tinham sido abençoados pele seu ministério (OLIVEIRA,

Histórias, narrativas e religiões 205


2009, p. 24), demonstrando sua virtude caridosa, mesmo passando pelo
pior pesadelo, dividir o mesmo espaço com tubarões e barracudas.
Clamar em lágrimas nas hagiografias medievais atestava uma
relação íntima. “As lágrimas constituíam um meio de comprovar que
uma determinada pessoa teve ou tinha com frequência uma experiên-
cia religiosa intensa à semelhança de alguns casos citados na Bíblia”
(ADNES apud AMARAL, 2008, p. 220). O clamor em lágrimas, ro-
gando ao Senhor por sua alma e por aqueles que haviam ficado em
terra fazia-o entrar em uma dimensão de contato com a “corte celeste”.
Deste modo, uma condição não humana era conferida aquele que orava,
auxiliando-o a suportar os momentos de sofrimento, como fome, maus
tratos, agressões físicas e morais (AMARAL, 2008, p. 203).
Tal como o texto de Isaías 43, o Salmo 8 tem a função de cor-
roborar a narrativa e, ao mesmo tempo, conferir um caráter sagrado ao
texto através da memória das sagradas escrituras. Além disso, os santos
têm uma relação privilegiada com o sobrenatural. As mudanças climáti-
cas, muitas vezes, tiveram a função, em outras hagiografias, de servir de
sinais providenciais que antecederam grandes obras em nome da Igreja.
A noção de domínio da natureza atesta a identidade santificada da per-
sonagem cujo principal modelo baseia-se na vida de grandes persona-
gens bíblicos que pela intervenção divina conseguiram dominar as leis
da natureza, manipulando-a em seu favor.
As menções em relação ao seu ex-líder ou ao tempo que per-
tencia à Universal são sempre apontadas como “o outro ministério” e
são sempre acompanhadas de um discurso de oposição, colocando as
experiências que teve em um domínio espiritual bem maior do que seus
18 anos de Universal. Escamoteando, portanto, seu tempo como mem-
bro da Igreja Universal, Valdemiro prova na sua narrativa uma origem
monolítica entorno de si e das suas experiências pessoais. Assim como,
em muitas hagiografias medievais, a narrativa de Valdemiro deixa cla-
ramente sua intenção reformadora e a construção da legitimidade de
sua imagem, aclamando-se uma das pedras fundamentais em que Deus

206 Histórias, narrativas e religiões


quis levantar um edifício espiritual neste reino e, no caso em questão, de
uma nova denominação religiosa que veio para desmentir os equívocos
da Igreja Universal, como, por exemplo, a questão da ação dos anjos,
presente na sua narrativa.
O livramento de Valdemiro através da ação de anjos
(OLIVEIRA, 2009, p.33-34) faz alusão à passagem de Mateus 4.1-11,
na qual Jesus passa por provações e, depois de ter passado com êxito
em todas é servido pelos próprios anjos. Essa comparação a Jesus dá a
Valdemiro um grande valor de aprovação, corroborando para sua ima-
gem santificada. Essa narrativa está associada a outro lugar comum da
santidade segundo a qual o herói não se vê como merecedor das benes-
ses divinas. Isso tem sua função de demonstrar a humildade do santo e
o reconhecimento por parte de Deus, que apesar de suas imperfeições
para apresentar uma vida santa, no sentido daquele que segue os precei-
tos da Igreja, foram reconhecidos por Deus.
Segundo François Dosse (2009, p. 139), “o santo é santo graças
ao olhar dos outros, daqueles que fabricam sua lenda douradora e, em
seguida dos leitores que ali vão buscar uma possível identificação”. Para
Valdemiro a santidade lhe é atribuída quando essa hagiografia funciona
como sustentáculo importante da propaganda e memória da sua ima-
gem como tal, servindo para reafirmar sua legitimidade. E é para esta
função que sua hagiografia foi elaborada.
Ao voltar para o Brasil, após dois anos aproximadamente do
“grande livramento”, no Oceano Índico, Valdemiro Santiago, institucio-
naliza sua própria igreja, ascendendo social, econômica e politicamente,
equiparando-se a outras lideranças religiosas renomadas. Tal construção
de memória destinava-se à, de um lado, a exaltar a sua santidade e, do
outro, a incentivar que os cristãos o seguissem, utilizando em sua obra
discursos, modelos de santidade e espiritualidades que construíram de
forma sólida, via apropriação de um modelo de um passado histórico,
um projeto de afirmação de uma identidade santificada para a constru-
ção da sua própria igreja.

Histórias, narrativas e religiões 207


Conclusão

Ao se deparar como um passado que pode ser (re) apropriado


nos discursos de legitimação do presente, observo a urgente emergência
de uma reflexão teórica para fenômenos de apropriação de um tempo
histórico, aqui, no Brasil.
Apesar da vasta bibliografia norte-americana, a questão da co-
lonização do passado histórico para aplicação de projetos tangenciados
por fenômenos religiosos são escassos. O déficit da reflexão teórica e os
debates sobre os paradigmas interpretativos estão relacionados à questão
da falta de um passado medieval no Brasil; ou pior, estão sendo negli-
genciados propositalmente, já que os debates sobre uma nova reflexão
teórico-metodológica da pesquisa histórica do “presentismo” medieval
estão em aberto há mais de trinta anos. Somente quando historiadores
brasileiros mudarem suas posturas, paradigmas e métodos alcançarão
novas análises e conclusões sobre o olhar que se têm sobre o passado e o
presente, e como as personagens os vêm, os constroem, os reinterpretam
e os apropriam para fins particulares.
A deferência do Apóstolo Valdemiro Santiago como líder foi
apenas reconhecida alguns anos após a sua cisão com a Igreja Universal
do Reino de Deus, através da memória e propaganda de uma identidade
santificada que a sua “hagiografia” lhe proporcionou. Como já assina-
lado, Valdemiro Santiago viveu às sombras do seu ex-líder. Como não
seria possível se desvencilhar da Igreja Universal e construir uma Igreja
que as pessoas o vissem como um líder legítimo, Valdemiro Santiago,
apropriou-se de um discurso do passado medieval para criar em torno
de si uma santidade que fosse capaz de ser reconhecida por uma comu-
nidade de crentes e que lhe conferisse uma imagem santificada.
É deste modo, com a sua experiência religiosa em Moçambique
e em outros lugares capazes de corroborar com as suas características de
santo que Valdemiro Santiago alcança um relato legitimador. É tendo
a África como cenário “inferiorizado” que Valdemiro Santiago conso-
lidará as bases para sua legitimação e constituirá um capital simbólico
entorno da religiosidade.
208 Histórias, narrativas e religiões
Assim, este trabalho demonstrou como um modelo discursivo
do passado histórico pode fomentar certo grau de legitimação de uma
identidade santificada sob uma hagiografia que transita entre o passado
e o presente.

Fonte

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210 Histórias, narrativas e religiões


A Sombria Providência e O Progresso:
As Guerras Noticiadas pela Imprensa
Evangélica (1864-1870).

Jorge William Falcão Junior (UFJF/CAPES)

Resumo: As guerras foram vistas pelos presbiterianos como par-


te da providência divina. Investigaremos de que maneira a Guerra de
Secessão, a Guerra do Paraguai e o Risorgimento Italiano foram apresen-
tados no periódico Imprensa Evangelica, comparando a leitura da histó-
ria providencialista presbiteriana aos outros prognósticos brasileiros que
também fizeram leituras destas guerras. Consideraremos as intercessões
entre a antropologia teológica presbiteriana e o conceito de humani-
dade, verificando os papéis atribuídos a Deus e ao homem na senda do
progresso, a partir das seguintes relações: homem-trabalho na Guerra de
Secessão; homem-nação na Guerra do Paraguai; e homem-religião no
Risorgimento Italiano. Quais seriam as implicações históricas da crença
na unicidade da espécie humana sobre as condições de trabalho escravo?
A Guerra de Secessão foi vista enquanto providencia divina a fim de
expandir o “Reino de Deus” sobre a terra, ao ponto de reverter o der-
ramamento de sangue dos combatentes na libertação de mais de três
milhões de escravos. As guerras ajudaram na definição da identidade
nacional e na delimitação territorial, reconhecendo a superioridade de
um povo em relação ao seu inimigo. Identificamos uma tensão entre a
afirmação de unidade humana e a marcação das identidades a partir de
limites nacionais. Percebemos lugar do homem religioso no caminho do
progresso no conflito estado-igreja verificado no Risorgimento Italiano,
onde o uso de conceitos antitéticos apresentou o protestante enquanto
amigo da modernidade e o católico enquanto inimigo da civilização.

Histórias, narrativas e religiões 211


Emmanuel Norman Vanorden: um judeu
na Igreja Presbiteriana do Brasil nos
séculos XIX e XX

Wilson Flávio Jecov (UMESP/CAPES)

Resumo: A comunicação que pretendemos expor trata-se da presença


de elementos da comunidade judaica dentro das fronteiras do protes-
tantismo de imigração/ missões apresentando a biografia de um judeu
pouco conhecido no meio evangélico pentecostal e histórico tradicional
– Emmanuel Norman Vanorden judeu holandês que viveu no Brasil
a partir do último quartel do século XIX, envolvendo-se não somente
no trabalho missionário presbiteriano na região sudeste do Brasil, mas
participando ativamente da luta abolicionista no Rio Grande do Sul,
durante o II Império Brasileiro, graças as suas convicções pessoais.
Emanuel Norman Van Nordeen ou Emanuel Norman
Vanorden nasceu na Holanda em 14/11/1839, teve filhos nascidos no
Brasil, sendo enterrado no atual cemitério dos protestantes no bairro da
Consolação em São Paulo. Trata-se de um dos heróis do protestantismo
calvinista desconhecido e/ou esquecido por muitos.
A nossa apresentação é a forma de tributarmos a ele, a sua luta
religiosa e social, a dupla honra e um LEMBRADO PARA SEMPRE
– ZL em hebraico.

Palavras-chave: Protestantismo, Igreja Presbiteriana do Brasil,


Emmanuel N. Vanorden, abolicionista,

Introdução

212 Histórias, narrativas e religiões


O pluralismo religioso em nossa sociedade é um elemento que
nos obriga a fazer análises e reflexões sobre as diversas denominações
protestantes que há anos ou há décadas e séculos encontram-se presen-
tes no Brasil. Logo, não temos um protestantismo, mas vários protestan-
tismos, devido a existência de diversos grupos humanos, religiosos que
reivindicam para si a identidade evangélica ou protestante nos centros
urbanos nacionais.
Algumas delas são portadores de memórias, de raízes históri-
cas, de tradições culturais, etc a partir de um acontecimento ou fato fun-
dante, o qual é considerado como evento único. Característica comum
dos grupos pertencentes ao protestantismo histórico, o qual sempre se
caracterizou por ter fronteiras religiosas definidas e uma memória.
Outros grupos religiosos não são portadores destas, adotando
duas propostas – a primeira, em escolher para si um fato histórico re-
ligioso importante da história cristã para alinhar-se com tal fé, ou seja,
há o processo de recriação ou de reinvenção artificial desta memória ou
tradição dentro de um determinado grupo humano. A segunda, admitir
que o acontecimento/fato considerado importante não é um fato único,
podendo ser reproduzido ao longo do tempo em diversas oportunidades
sociais, impedindo assim que ele se converta na memória religiosa de
uma denominação, adotando também o fenômeno das chamadas fron-
teiras borradas.
Estes fatos mencionados são característica de diversos grupos
religiosos contemporâneos alinhados com o protestantismo.
A diversidade de protestantismos nos incita a visitar o pas-
sado para conhecer o protestantismo histórico em nosso país, cujas
raízes encontram-se a partir do século XIX, dentre eles, o calvinismo
de origem norte-americana responsável pela fundação da IPB – Igreja
Presbiteriana do Brasil, e de duas dissidências a primeira no século XIX:
a IEB – Igreja Evangélica Brasileira e a segunda no século XX: a IPI –
Igreja Presbiteriana Independente.
A nossa pesquisa toma a IPB como referência na relação desta
com a alteridade, a partir dos diversos fenômenos religiosos e sociais de
integração interna deste outro. Escolhemos como recorte a relação entre

Histórias, narrativas e religiões 213


a IPB e um personagem importante deste seu passado de fixação e ex-
pansão missionária na região sudeste e sul de nosso país, o hebreu-cris-
tão Emmanuel Norman Vanorden, o qual se encontra enterrado junto
com sua família, no cemitério dos protestantes situado na Rua Sergipe,
portanto, vizinho ao cemitério da Consolação.
O protestantismo não eleva os seus heróis do passado à catego-
ria social religiosa de santos, como faz o catolicismo através do processo
burocrático da canonização, mas valoriza a memória, a história institu-
cional e com ela, aqueles diversos personagens que tiveram em ação, em
destaque em determinado período.
Dentro desta lógica, retomar a biografia de Vanorden é acom-
panhar os seus passos como ser humano alinhado ao protestantismo
em sua versão calvinista desde a sua chegada ao Brasil, atuando em di-
versos papéis, tais como: abolicionista, impressor/livreiro, missionário,
pastor, etc, Sem esquecer as suas origens étnicas, européias que estarão
o acompanhando neste período e citada de forma positiva por diversos
biógrafos da instituição religiosa centenária.
Este artigo encontra-se divido em três partes: os conceitos
básicos e contextos a serem desenvolvidos na biografia, a biografia de
Emanuel N. Vanorden na Europa e EUA relacionando-os aconteci-
mentos desta com a teoria da socialização de G. Simmel, e os seus atos
relacionados a IPB no Brasil durante o II Império e República Velha..

Conceitos e Contextos

Conceitos e contextos é a primeira divisão do artigo que pro-


cura expor os conceitos que serão abordados e os contextos históricos
relacionados à biografia de Emanuel N. Vanorden.
Toda biografia assim como todo grupo religioso são realidades
construídas a partir de relações com a sociedade na qual elas encontram-
-se inseridas. Em conformidade com este pensamento de orientação mar-
xista, a vida e a carreira religiosa de Emmanuel Norman Vanorden nos di-
214 Histórias, narrativas e religiões
versos espaços geográficos – Holanda, Inglaterra, Estados Unidos e Brasil
revelam como as sociedades destes países no século XIX contribuirão para
que a vida do personagem pesquisado absorva as diversas influências que
serão refletidas em suas diversas práticas religiosas e sociais.
O primeiro destes contextos que podemos citar é o judaico-ho-
landês. E. N. Vanorden nascido em Haia, cidade do sul da Holanda em
1839. Trata-se de um judeu azquenazi, nascido na Diáspora Primária,
num país de tradição religiosa cristã, protestante calvinista, onde a co-
munidade judaica local desfruta de diversas liberdades, dentre elas, a
de credo religioso e de inserção social na sociedade maior, sem as an-
tigas restrições econômicas, bem como da necessidade da conversão ao
cristianismo como pré-requisito religioso ao exercício de determinadas
profissões na sociedade européia. A história de vida de Emmanuel N.
Vanorden na Holanda estende-se de 1839 até 1863 quando o mesmo,
com vinte e quatro anos, imigra para a cidade de Londres, Inglaterra.
O segundo contexto é cultural, a modernidade na Europa
Ocidental onde em alguns países ocorre o processo de separação entre
o Estado e a Religião, bem como a desvinculação entre a nacionalidade
e a religião. Este último fato significa que todo judeu é um cidadão,
um indivíduo que tem garantido a sua adjetivação geográfica: uma /
nacionalidade européia, independente da fé religiosa que ele é adepto no
século XIX: Cristianismo, Judaísmo, ou até optar pelo Ateísmo.
Ela torna E. N. Vanorden num judeu adjetivado com uma na-
cionalidade europeia-ocidental, no caso, a holandesa. Num indivíduo
que agi, pensa e Vico como um holandês e por isto dominava diversos
idiomas europeus, tais como:, .o alemão, o francês, o holandês, o inglês,
além do hebraico – que não era uma língua nacional laica, mas a língua
sagrada de sua etnia até o último quartel do século XIX. Este domínio
lingüístico dele favorecerá a sua imigração da Holanda para a Inglaterra,
depois para os Estados Unidos, e o seu casamento com uma protestante
francesa da região da Alsácia-Lorena em 1872.
O terceiro contexto é a Guerra de Secessão nos EUA (1861-1865)
Este fato da história política dos EUA influenciou a posição
política e social dos missionários presbiterianos norte-americanos que

Histórias, narrativas e religiões 215


se estabeleceram no Brasil, oriundos dos estados do norte e do sul sobre
a presença da escravidão africana no II Império Brasileiro. Este fato
contribuirá para um debate interno e posicionamento da IPB sobre esta,
sendo estes dois fatos comentado por Silva (SILVA, 2011, p. 10, 20).
No caso do nosso personagem ele é portador de um posicionamento
pró-abolicionista, por ter atuado em hospital durante o conflito civil nos
EUA, desenvolvido um discurso e uma prática abolicionistas próprios
enfrentando a repressão anti-abolicionista na província do Rio Grande
do Sul, antes da assinatura da Lei Áurea.
O quarto Contexto trata do protestantismo de imigração/missão.
O II Império Brasileiro devido aos diversos acordos inter-
nacionais assinados desde a abertura dos portos e depois no texto da
Constituição Imperial de 1824 reconhecia a liberdade de crença religiosa
dos grupos caucasianos não católicos, em sua maioria, imigrantes esta-
belecidos no país devido aos tratados com outras nações não católicas.
Trata-se do reconhecimento formal, parcial, pois vigorava no texto consti-
tucional o regime do beneplácito. Segundo o quinto artigo constitucional:

A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do


império, Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto
doméstico ou particular, em casas para isto destinadas sem forma
alguma exterior de templo, (SOUZA,1988, p.167)

Este direito concedia a fé católica romana o controle dos cemi-


térios templos, capelas, oratórios existentes no país, portanto, uma ter-
ritorialidade religiosa visível Já os demais grupos religiosos imigratórios
cristãos e não cristãos oriundos da América do Norte e/ou da Europa
estavam confinados a uma territorialidade religiosa inivisível dentro da
sociedade imperial do século XIX Logo, o protestantismo de missão
presbiteriano ao encontrar-se em solo brasileiro a partir da presença
do reverendo norte-americano, Abel G. Simonton (1.859), convive com
este mecanismo político religioso e com uma cultura religiosa social ca-
tólica romana tradicional em processo de revitalização que influencia a
realidade do país (SILVA, 2011, p. 4).

216 Histórias, narrativas e religiões


Um dos conceitos aplicados nos estudos da biografia de Vanorden
é a alteridade, A palavra alter segundo a sua origem latina significa: o ou-
tro com os seguintes sentidos – contraste, diferença, distinção Ela pode ser
definida como: a capacidade humana ou institucional de ser o outro, cons-
truindo a partir do contato, do diálogo, da interação, uma dependência ou
afirmação/negação da identidade a partir de um alter, seja ele, um grupo
social, seja ele, um indivíduo ou instituição sem haver a necessidade em
destruir a cultura, a religião ou as tradições deste outro na sociedade local.
Segundo Silva Jr, (SILVA Jr, 2013), a alteridade pode ser iden-
tificada em dois aspectos distintos: de afirmação ou reconhecimento,
e de conflito ou subordinação. A diferença entre elas é que o segundo
modelo ou sentido degrada o “diferente”, Nos nossos estudos pode-
mos distinguir as duas formas de alteridade, a primeira de afirmação/
reconhecimento presente no interior do grupo calvinista em relação a
etnia de Vanorden: missionário ou reverendo judeu holandês de Haia
(LESSA, 2010, p.93)
Em nenhum relato deste biógrafo presbiteriano há alguma re-
ferencia degradante, negativa, as origens étnicas, minoritárias deste re-
verendo no meio presbiteriano brasileiro que pudessem ser consideradas
como práticas de antissemitismo no interior do grupo. As informações
de Lessa nos permitem entender que o termo judeu ou judeu holandês
referido em alguns momentos da história da IPB à ele, é a afirmação
da identidade nacional moderna dele, desvinculando a nacionalidade da
religião, do que uma expressão relacionada a questão étnica-religiiosa
do mesmo.
Pois o mesmo tratamento é dispensado aos pastores presbiteria-
nos de outras origens nacionais (LESSA, 2010, p.21), Além do olhar via
modernidade, há a questão da adesão ao presbiterianismo (conversão) e
a mentalidade religiosa social do reformismo calvinista sobre os judeus.
No caso de E. N. Vanorden temos no começo do século XX
o posicionamento deste no interior da IPB em relação a presença dos
missionários estrangeiros dos EUA no país, O seu posicionamento a
favor dos mesmos revela a sua afinidade e identidade com tal grupo
de especialistas religiosos, devido a sua história de vida religiosa como

Histórias, narrativas e religiões 217


missionário estrangeiro. Revelando a alteridade afirmativa do reverendo
judeu holandês frente ao outro, o grupo missionário estrangeiro ().
A segunda forma de alteridade citada é a de conflito/subordi-
nação. Em relação a E. Vanorden ela inexiste porque não há no grupo
protestante atos relacionados ao antissemitismo. Mas ela existe na socie-
dade maior ao debaterem a questão abolicionista dentro do meio calvinis-
ta entre 1.870 e 1.888, olhando para o outro, o africano degradado de sua
humanidade devido a condição propiciada pela escravidão (SILVA 2011,
p. 10). Os missionários presbiterianos norte-americanos enviados pela
PCUSA eram anti-escravagistas e dentre estes podemos citar: o reveren-
do A. G. Simonton a partir do seu diário (SILVA, 2011, p. 10, 11), bem
como o posicionamento do reverendo Vanorden na reunião do presbitério
no Rio de Janeiro em 1866 (SILVA, 2011, p. 3, 4) e o seu discurso abo-
licionista na cidade de Rio Grande/RS em 1886 (MATOS, 2004, p.79).
O segundo conceito a ser estudado é de contemplar a reli-
gião como um agente de experiências ou mecanismos de socialização.
Construímos esta teoria na leitura da biografia de Vanordem a partir
dos seguintes teóricos da sociologia da religião de ascendência judai-
ca – David Émille Durkheim e Geog Simmel . O primeiro define a
religião como um produto da cultura coletiva humana, valortizando nas
suas análises a presença das crenças (idéias), dos costumes, dos rituais
litúrgicos, etc como elementos que valorizam o primado do coletivo, do
social sobre a individualidade.
Isto fica evidente ao se mencionar a apresentação para batismo
do filho primogênito do casal Vanorden na IPB em São Paulo em 1873
(LESSA, 2010, p. 95), ou ordenamento dele como co-pastor e membro
do presbitério de São Paulo nos anos oitenta do século XIX ou ain-
da o aparentamento dos Vanorden com a família Shaw do Mackenzie,
através de casamento (LESSA, 2010, 481). Bem como a construção
dos laços de coesão, de pertencimento comum, através de regras mo-
rais contemplando a religião como um sistema de forças e de idéias
(HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2.009, SANCHIS, 2.003). Esse
fato fica claro nas duas oportunidades onde o reverendo judeu holandês
foi disciplinado pelo presbitério, bem como a sua readmissão (LESSA,

218 Histórias, narrativas e religiões


2010, p.232, 334).
O segundo define a religião como uma forma de socialização
humana dtinâmica graças aos seus diversos conteúdos – dentre eles po-
demos citar: a produção intelectual, o sentimento religioso, o amor etc
(HERVEU-LÉGER;WILLAIME, 2.009, p.131). Dentre estes conte-
údos citados em Simmel, aquele que mais se destacou na vida do reve-
rendo Vanorden no Brasil foi a produção intelectual. Ora exercendo a
atividade profissional de tipógrafo, como missão/vocação de um lado,
em conformidade com a análise weberiana sobre o exercício profissional
como vocação (HERVIEU-LÉGER; WILLAIME, 2.009, p. 116), edi-
tando diversos livros. E do outro lado, como pastor ao valorizar o culto
racionalizado através dos comentários dos escritos sagrados, os sermões
pregados e publicados por ele e diversos pastores calvinistas na imprensa
evangélica do período: O Púlpito Evangélico em 1874 (LESSA, 2010,
p. 93, 113). Deste modo, E. N. Vanorden colabora com estas duas mani-
festações de produção intelectual no meio protestante calvinista.

A Biografia de Vanorden

A vida de Emmanuel Vanorden pode ser dividida em duas eta-


pas, a sua vida no hemisfério norte – Holanda, Inglaterra e EUA, e a sua
vida no hemisfério sul, o Brasil. Estas etapas encontram-se marcadas
pelos diversos processos de socialização religiosa que ele vivenciou nes-
tes espaços geográficos.
Em nossas pesquisas sobre a vida deste personagem encontra-
mos uma série de lacunas abertas que favorecem a diversas especulações
sobre a vida deste nos países do hemisfério norte: Holanda, Inglaterra,
EUA e França. Isto ocorre porque não há uma autobiografia de Emanuel
Vanorden em português. Por meio de pesquisa junto a Internet consta
a existência de uma autobiografia dele escrita no ano de 1903. Ela não
é citada em nenhuma bibliografia sobre as relações de Vanorden com a
IPB no Brasil, por nenhum dos historiadores presbiterianos que fazem
Histórias, narrativas e religiões 219
comentário de sua ação no Brasil. Provavelmente ela foi escrita fora do
Brasil, quando este missionário judeu holandês encontrava-se jubila-
do do presbitério brasileiro e filiado ao presbitério de Neosho, Estados
Unidos, portanto antes da sua morte em 1917 no Brasil. A tal obra não
tivemos acesso para fins de pesquisa.

Hemisfério Norte:

Sobre a vida de Emmanuel Norman Vanorden na Holanda,


na Inglaterra há lacunas em aberto, pois os historiadores do presbite-
rianismo brasileiro não mencionam nenhum dado sobre estes eventos
da vida dele. Não há menção da atividade econômica da família deste
em Haia, ou da corrente judaica que ele e sua família praticavam na
Europa, ou das causas que o levaram a imigrar para a Inglaterra e a bus-
car para si uma esposa na região da Alsácia-Lorena, região que pertencia
à França, antes da guerra franco-prussiana que resultou na unificação da
Alemanha na Europa, e a posse desta região pelos alemães até 1.914.
Os únicos dados da família dele que conseguimos em nossas
pesquisas foi junto ao cemitério dos protestantes em São Paulo, o nome
do pai – Henrique Vanorden, que é o nome dado por ele a um de seus
filhos nascidos no Brasil. E junto a uma biografia na internet a informa-
ção de que os pais do mesmo eram judeus, portanto este não era filho de
casamento misto, reforçando assim o status dele dentro da comunidade
judaica segundo o Judaísmo. (genealogy. com).
Apesar de não haver nenhuma citação explícita nas biografias
cristãs de Vanorden no Brasil, apenas citando a sua origem judia euro-
peia, Todos que conhecem esta comunidade étnica nacional sabem que
há neste grupo humano determinadas cerimônias e liturgias religiosas
responsáveis em construir mecanismos de coesão/solidariedade e de
identidade entre o indivídujo e a coletividade, tais como as cerimônias
masculinas do Brith Milá – pacto da circuncisão e o Bar-Mitsvá. O fato
dos dois pais serem judeus reforçam a possibilidade da ocorrência social
destas cerimônias na infância e adolescência dele na Holanda que são
mecanismos de socialização religiosa.
220 Histórias, narrativas e religiões
Os dados sobre a adesão dele ao cristianismo mencionam o
país: Inglaterra, a cidade, a capital deste país, Londres, o ano da ocor-
rência, 1863, demais dados tais como, a congregação que pertenceu no
período que viveu em Londres, ou como o cristianismo em sua versão
protestante, calvinista atendeu as necessidades espirituais de Emmanuel
Vanorden, não existem. Seria esta aproximação do calvinismo con-
seqüência de uma convivência de longo prazo dele com o grupo na
Holanda? Para os grupos religiosos calvinistas, a lacuna citada pode ser
preenchida pela teologia do chamado irresistível de Deus.
A ausência de dados de seu passado não cristão na Holanda,
e de sua conversão em Londres, não nos permite construir as etapas
do antes e do depois, comum nos atuais testemunhos de conversão ao
protestantismo. Como também não há nos relatos dos historiadores
presbiterianos citação de alguma represália familiar ou comunitária que
ele tenha sido vítima na Europa após aderir ao protestantismo calvinis-
ta, como relatam a biografia de outros correligionários dele nos séculos
XIX e XX.
Apesar dos autores brasileiros não mencionarem a existência
de judeus no interior do protestantismo europeu do século XIX, já exis-
tia alguns, que ocupavam a posição de destaque como pastores em algu-
mas denominações, dentre elas, o presbiterianismo inglês.
Assim descartamos como causas da conversão: a necessidade
de inserção social dos judeus europeu na sociedade maior, E a conversão
como fruto da ação do Movimento Sionista Cristão, criado em Londres,
Inglaterra, em 1.866.
O que é a conversão para o protestantismo?
Segundo Alves (ALVES, 1979) “A conversão é a porta de en-
trada deste mundo” em pertencer a categoria de povo de Deus como um
ato da vontade humana. Sem ela, quem não é cristão/protestante está
excluído da categoria de pertencer ao povo de Deus. Este raciocínio
de Alves encontra eco nas formas de socialização e vida religiosa de
Simmel, quando ele afirma sobre a relação de oposição entre a Igreja e
as seitas religiosas comparando estas últimas como sociedades secretas
(HERVEU-LEGER; WILLAIME, 2009, p. 145).

Histórias, narrativas e religiões 221


Logo, a passagem de uma fé para outra implica em deixar de
ser o diferente para ser transformado num igual, como também transpor
as fronteiras culturais e /religiosos de grupos distintos. A transformação
do diferente em igual é importante para entendermos o modo de como
os presbiterianos estrangeiros e nacionais construíram a alteridade afir-
mativa dele junto ao grupo. Pois sendo considerado um calvinista, ele
continuava a ser visto como um judeu ou judeu europeu em diversos
momentos quando ele era referido dentro deste,
A nossa convivência com o protestantismo calvinista da IPB
nos possibilitou identificar cerimônias que Vanorden vivenciou como
adulto que não são mencionadas por seus biógrafos cristãos – o batismo
de aspersão acompanhado da profissão de fé após a catequese.
Como também não há informações sobre as causas que leva-
ram Vanorden a imigrar para os Estados Unidos dentro do período da
Guerra de Secessão, bem como sobre a sua chamada vocação pastoral
nos EUA.
Pois caso ela ocorresse em Londres, o mesmo teria a sua expe-
riência de socialização religiosa do chamado ingressando em institui-
ções de formação religiosa calvinistas na Grã-Bretanha, logo não haven-
do este registro, podemos concluir que ela verificou-se na América do
Norte, possivelmente durante a guerra civil.
As suas experiências de socialização religiosa nos Estados
Unidos foram: o ingresso dele no Grinnel Faculdade, em Ilowa, e no
Seminário Teológico McCornick na cidade de Chicago, Estado de
Illinois, de tradição presbiteriana, e a respectiva ordenação pastoral em
Chicago (1872), nos revelam que este mecanismo de socialização refor-
ça o valor do intelectualismo racional dentro do mundo religioso pres-
biteriano tornando esta na religião da doutrina e do livro (a bíblia) e de
uma memória permanente.
A ordenação de Vanorden é um dos mecanismos de socializa-
ção religiosa que reforçam as teorias desenvolvidas por Bourdieu e por
Weber sobre o campo religioso e sobre os tipos de liderança religiosa.
Em relação às teorias do trabalho e do campo religioso, desen-
volvidas por Bourdieu (OLIVEIRA, 2003, p.182-185). Ao ser ordenado

222 Histórias, narrativas e religiões


ao ministério pastoral, E. Vanorden deixa de ser um protestante leigo,
um presbiteriano consumidor de bens e de serviços religiosos, para ser
um especialista religioso detentor dos conhecimentos e rituais, social-
mente habilitado e mandatado a gerir, produzir, reproduzir e distribuir
bens religiosos, estando a serviço de uma fé erudita, como o presbiteria-
nismo. E isto fica bem claro na sua biografia anos antes de sua ordena-
ção, quando de sua primeira ação pastoral no cenário norte-americano:
a fundação de uma comunidade cristã presbiteriana para imigrantes es-
candinavos e holandeses na cidade de Chicago em sua fase de adaptação
aos EUA, esta pequena igreja presbiteriana holandesa, na cidade serviu
de importante referencia de culto religioso e de rede de solidariedade
para diversos grupos imigratórios europeus na cidade
Em relação aos tipos de liderança religiosa,Vanordem valoriza o mo-
delo sacerdotal tanto na teoria bourdiana, como na weberiana (HERVIEU–
LEGER; WILLAIME, 2009, p. 89, OLIVEIRA, 2003, p.186 )
Pois dentro do calvinismo, o pastor ou reverendo ou o presbí-
tero docente é uma autoridade religiosa de função institucional dentro
da chamada religião estabelecida. Portanto ser um pastor protestante,
reformado, calvinista dentro da sociologia da religião, é ser um espe-
cialista que tem a sua autoridade e o seu poder legitimados tanto pela
doutrina – teologia construída racionalmente, como pela instituição via
cerimônia socializante da ordenação.
O casamento dele com Bertha Doebely descendente de uma
família de pastores protestantes na Alsácia-Lorena, França, reforça a
sua inserção dentro do grupo religioso, e o novo status social do mesmo
dentro do grupo ao qual pertence.

Hemisfério Sul:

No Brasil, estas socializações religiosas são marcadas por diver-


sas frentes de atuação dele no meio presbiteriano: pertencer ao presbitério
de São Paulo e depois do Rio de Janeiro como co-pastor (LESSA, 2010,
p. 133, 281). Cooperador de diversos trabalhos de plantação de igrejas no
Estado de São Paulo, dentre elas a de Sorocaba, Embaú (LESSA, 2010, p.
Histórias, narrativas e religiões 223
38, 109, 286), Em Rio Grande, na província do Rio Grande do Sul, além
de exercer o seu papel de tipógrafo, e como empresário deste ramo de
atividade na cidade de São Paulo, a partir da Casa Vanorden.
É no Brasil que Emmanuel Vanorden vai expressar de forma
mais contundente a sua expressão intelectual como mecanismo de so-
cialização em Simmel, seja através da produção de jornais evangélicos
para comunidades de imigrantes protestantes, da publicação de maté-
rias, dentre eles diversos sermões, livros etc. os quais valorizam a cultura
religiosa racionalista dos calvinistas. No Brasil, ele vai colocar em prática
o seu ministério pastoral, ora como fundador de trabalhos evangelísticos
em duas oportunidades: na cidade do Rio de Janeiro e na cidade de Rio
Grande, em revelar o seu sentimento de alteridade para com o outro,
especialmente em seus diversos atos relacionados a campanha abolicio-
nista no Brasil.

Conclusão

A biografia de Emmanuel Norman Vanorden (1839-1917) nos


permite contemplar a inserção de um judeu calvinista no processo de
disseminação d presbiterianismo de missão em nosso país, onde a fé re-
ligiosa cristã protestante revela através de seus diversos mecanismos de
socialização: sermões, publicações intelectuais, cerimônias, etc.
Reconhecemos que a ausência da autobiografia do personagem
pesquisado em língua portuguesa nos proporcionou lacunas para anali-
sarmos os mecanismos de socialização em sua vida na Holanda, relacio-
nados ao judaísmo, e na Inglaterra, relacionadas ao protestantismo cal-
vinista. Tanto a sua vocação pastoral e respectiva ordenação nos EUA,
como seu casamento com uma protestante francesa, na Alsácia-Lorena,
são vistos por nós como meios de ratificar a identidade com este grupo
religioso, e no último caso, a valorização do outro por ele – a alteridade
de reconhecimento.

224 Histórias, narrativas e religiões


Todos os seus atos religiosos sociais praticados no meio presbite-
riano brasileiro nos séculos XIX e XX, como os cargos que ele ocupou nos
presbitérios do Rio de Janeiro e de São Paulo, como os atos de disciplina
que ele vivenciou e suas respectivas, reabilitações, são bem documentados
por Lessa, Silva etc, reafirmando a identidade e a lealdade dele para com
a estrutura de poder da Igreja Presbiteriana em crescimento no país e para
com a fé protestante no Brasil Império e República Velha.
Tomando Lessa como historiador presbiteriano base de nossas
pesquisas, há o registro saudável da prática da alteridade afirmativa ou
de reconhecimento em relação à ele e família, valorizando os laços co-
munitários de unidade cristã. E a sua alteridade em relação ao outro, aos
africanos transformados em escravos, e aos missionários estrangeiros.
Vivendo no exercício do seu ministério momentos de conflito e de hos-
tilização, como de reconhecimento por seus diversos serviços.

Bibliografia

Obras
ALVES, Rubem. Protestantismo e Repressão. São Paulo: Ática. 1979.

HERVIEU-LÈGER, Daniela; WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia da Religião: Abordagem


Clássica. trad. Ivo Stornilo, Idéias e Letras, Aparecida do Norte, 2009, p. 17-26, 98, 99 125,
131, 170-174.

LESSA, Vicente T. A Vida de Emanuel Vanorden, in: ANAIS DA PRIMEIRA IGREJA


PRESBITERIANA DE SÃO PAULO [1863-1903] – Subsídios para a história do presbite-
rianismo brasileiro, São Paulo, Ed. Cultura Cristã, 2010.

MATOS, Alderi S. O Discurso de E. Vanordem contra a Escravidão no Rio Grande do Sul in:
Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil, 1859-1900, São Paulo: ECC, 2004, p. 79.

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. A Teoria do Trabalho religioso em Pierre Bourdieu, in: Tei-
xeira Faustino (org). Sociologia da Religião: Enfoques Teóricos, Ed. Vozes, Petrópolis, 2003,
p.176-194

SANCHIS, Pierre. A Contribuição de Emille Durkheim, in: Teixeira Faustino (org). Sociolo-
gia da Religião: Enfoques Teóricos, Ed. Vozes, Petrópolis, 2003, p.36-66.

Histórias, narrativas e religiões 225


SILVA, Hélio de Oliveira – Emanuel Vanorden in: “A IPB E A ESCRAVIDÃO: Breve análise
documental,” Revista FIDES REFORMATA XV, Nº 2 (2010): 43-66.

SILVA JUNIOR, Aroldo da – “Um olhar sobre as diversas formas de alteridade” in: Antropo-
logia: aproximando-se do “outro” em meio a tensões da subjetividade e cientificidade, Revista
Interletras, volume 3, Edição número 18, Abril-Setembro/2013,

SOUSA, Octávio Tarquínio de. A Constituição Imperial brasileira in: Tres Golpes de Estado:
História dos fundadores do Império do Brasil, vol. 128, Itatiáia/Edusp, Belo Horizonte-São
Paulo, 1.988, p. 167.

Sites da Internet

Biografias de Emmanuel N. Vanorden:


www.genealogy.com/ftm/r/o/l/Shannon-R-Roller-Vancouver/WEBSITE-0001/UHP-0830.html

226 Histórias, narrativas e religiões


Noêmia Cessito: Uma história cultural
das missões brasileiras em Moçambique
a partir de uma biografia.

Harley Abrantes Moreira (UPE/UNICAMP)

Resumo: Nos últimos anos de descolonização da África lusófona e a


partir da década de 1980 do período pós-colonial, a presença de mis-
sionários batistas brasileiros se intensificava em colônias portuguesas
como Moçambique. A proposta dessa comunicação consiste em in-
vestigar a trajetória de um indivíduo, a missionária Noêmia Gabriel
da Silva Cessito que, chegando em 1983, vem exercendo sua ativida-
de na ex-colônia desde então. Nosso objetivo é investigar suas múl-
tiplas relações com as igrejas brasileiras, com os africanos, com seus
familiares, com os/as outros/as missionários/as e, dessa forma, seguir
seu curso, considerando tratar-se de um pequeno fragmento históri-
co e cultural privilegiado para a análise das práticas e representações
dos sujeitos históricos envolvidos nesse contexto. A metodologia será
aplicada a partir das considerações teórico-metodológicas da História
Oral, através das quais será analisado o depoimento cedido pela mis-
sionária. Pretende-se, através da análise das práticas e representações
de Noêmia Cessito, questionar a perspectiva dos colonialismos cultu-
rais para o estudo das missões em África que, em nossa argumentação,
devem ser compreendidas não apenas como um reflexo dos projetos
colonialistas e pós-colonialistas, mas como um campo de possibili-
dades aberto dentro de uma zona de contato onde o próprio africano
assume sua condição de sujeito histórico construído em um espaço de
relações vivenciado junto às missões brasileiras.

Histórias, narrativas e religiões 227


A Imprensa Evangélica e a Inserção do
Protestantismo no Brasil

Álvaro Ramon Ramos Oliveira (UFRRJ)

Resumo: O fenômeno religioso da implantação do protestantismo de


missão no Brasil se deu a partir da segunda metade do século XIX quan-
do as juntas missionárias filiadas às maiores denominações evangélicas
dos Estados Unidos, como os batistas, presbiterianos, metodistas e con-
gregacionais passaram a enviar seus ministros para o império brasileiro.
Nesse período adentraram no Brasil nomes muito conhecidos nas igre-
jas brasileiras como James Colley Fletcher, o médico Robert R. Kalley,
Ashbel G. Simonton, George W. Chamberlain, Francis J. Schneider,
entre vários outros que tinham por interesse expandir a fé reformada na
América Latina. Um dos principais instrumentos para a evangelização
brasileira foi a Imprensa Evangélica cujo a principal intenção era oferecer
à elite imperial presente na região Centro-Sul do Brasil, um conjunto de
doutrinas protestantes associadas a um ideal de progresso a partir dos
estudos bíblicos, instruções para os cultos domésticos, confissões de fé
e a interpretação sobre determinados acontecimentos contemporâneos.
Desse modo, o objetivo desse trabalho consiste em elaborar uma análise
crítica sobre o papel da Imprensa Evangélica- o maior meio de comuni-
cação oficial da denominação no século XIX- na inserção da denomina-
ção Presbiteriana no Brasil.

Palavras-chave: Protestantismo Brasileiro; Igreja Presbiteriana;


Imprensa Evangélica.

228 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

A Imprensa Evangélica foi fundada no ano de 1864 atra-


vés dos esforços missionários do reverendo Ashbel Green Simonton.
Impressionado com o volume de artigos religiosos publicados nos meios
de comunicação na Corte, o missionário passou a ver com bons olhos a
possibilidade de inserir seu grupo religioso nesses espaços de discussão.
Como o protestantismo de missão ainda dava seus primeiros passos na
evangelização da nação brasileira, o surgimento da Imprensa Evangélica
resume-se como o resultado de diversas buscas de possibilidades para a
propagação da fé reformada e o encontro de um meio de comunicação
que atingisse o objetivo de levar a mensagem às pessoas que não se-
riam alcançadas pelo evangelismo pessoal. Visto isto e olhando para o
crescimento da imprensa na segunda metade do século XIX no Brasil,
os primeiros missionários protestantes passaram a apostar nesse veículo
como um valioso instrumento para a propagação de suas mensagens. O
trecho abaixo retirado do diário de Simonton expressa muito bem essa
expectativa presente entre os líderes da Igreja Presbiteriana:

[...] outro meio de pregar o evangelho é a disseminação da Bíblia e


de livros e folhetos religiosos. Deste modo, pode-se dar notícias de
Jesus a muitos que não querem assistir ao culto público. Nesta época
a Imprensa é a arma poderosa para o bem, ou para o mal. Devemos
trabalhar para que se faça e se propague em toda a parte uma literatura
religiosa em que se possa beber a pura verdade ensinada na Bíblia109.

Além da intenção de apresentar para ao público imperial a


nova religião que segundo Simonton impulsionaria a nação ao progres-
so, outros dois fatores que influenciaram a escolha de criar um órgão de
comunicação da Igreja foi a aproximação de um considerável número de
estadistas envolvidos na questão religiosa e a conversão de dois jornalis-
tas talentosos: o ex-padre Manuel da Conceição e o liberal Antônio dos
Santos Neves. Os últimos dois fatores são sustentados pelo historiador

109  SIMONTON, Ashbel Green. O Diário de Simonton. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
2002. p. 181.
Histórias, narrativas e religiões 229
David Gueiros que chegou a essa conclusão ao fazer uma minuciosa
pesquisa as correspondências trocadas entre os missionários Simonton e
Alexander Lattimer Blakford110.
No dia 5 de novembro de 1864 saiu o primeiro volume do
periódico que sem grandes surpresas, gerou fortes repercussões entre
o Império Brasileiro e a Igreja Católica, até o então a igreja oficial do
estado. Levando em consideração que nesse momento não existia a li-
berdade de culto no Brasil, assim que o periódico surgiu a ordem ultra-
montana reagiu com denúncias e acusações contra esses protestantes em
seus jornais como, por exemplo, o Cruzeiro.
O Cruzeiro do Brasil no dia 06 de novembro de 1864 denunciou
o surgimento de um jornal protestante na Corte111. Uma vez pedindo
para o Vigário Capitular do Rio de Janeiro investigar o caso e a tomada
de providências como Chefe dos Bispados, os ultraconservadores cató-
licos perceberam que o governo não impediu a publicação da Imprensa
Evangélica. Desse modo, os ultramontanos saíram com um editorial
muito conciso sobre a eventualidade, registrando assim nas páginas do
Cruzeiro no volume do 13 de novembro daquele mesmo ano que o jor-
nal evangélico estava inoculando a população com o “veneno mais cor-
rupto”, por meio de suas reuniões e pelas distribuições de “bíblias falsas”
e que agora se encontravam com um jornal, “o mais poderoso meio para
espalhar seu crime”112.
Se por um lado a Imprensa conviveu com uma forte oposi-
ção dos jornais ultramontanos como o Apóstolo e o Cruzeiro, por outro
o Diário do Rio de Janeiro e o Jornal do Commercio saudaram com
simpatia o novo periódico. Outra questão importante é que o jornal
evangélico foi bem recebido entre os círculos liberais e também era lido
por diversos padres católicos que o assinavam. Entre os seus assinantes,
Gueiros registra que existiam um número considerável de pessoas de

110  VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.


Brasília: Editora UnB, 1980. p. 148.
111  O Cruzeiro do Brasil, Rio, 6 de novembro de 1864
112  O Cruzeiro do Brasil, Rio, 13 de novembro de 1864
230 Histórias, narrativas e religiões
alta posição social, como por exemplo Antônio Francisco de Paula e
Souza, Ministro da Agricultura e também familiares do líder maçônico
e jornalista, Saldanha Marinho113.
A primeira edição do periódico foi publicada pela Typographia
Universal Laemmert que pertencia aos protestantes Eduard e Heinrich
Laemmert. A empresa ocupava um importante espaço no mercado,
sendo a segunda maior da Corte, porém com receio de sofrer possíveis
represálias da oposição, a tipografia publicou somente o primeiro nú-
mero da Imprensa Evangélica. Após desistir do trabalho, as publica-
ções do jornal ficaram sob o encargo da Typographia Perseverança que
tinha como gerente e administrador, Antônio dos Santos Cardoso até
o então um dos proprietários do correio mercantil (1866-1867) e um
dos redatores do Almanak Laemmert. Para a doutora Edwiges Rosa dos
Santos, os motivos que permitiram que uma modesta tipografia viesse a
assumir a impressão do jornal evangélico devem ser questionados me-
diante a falta de atrativos para essa parceria. A tiragem era pequena e
quinzenal, logo Tipografia não poderia criar uma expectativa de lucro
nessas publicações. Fora esse fator, é preciso levar em consideração a
constante pressão da Igreja Católica e a sensação de perigo no que se
refere aos possíveis ataques pessoais e aos seus patrimónios dos agentes
que eram contrários a causa protestante. Olhando para estes aspectos, a
doutora diz que a aceitação do trabalho por conta da Tipografia resul-
ta do fato dela estar ligada a maçonaria. Para embasar seu argumento,
Edwiges dos Santos diz que em 1872 a maçonaria possuía duas tipo-
grafias (Typographia do Grande Oriente do Brazil e Typographia do Grande
Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil), mas as lojas maçônicas im-
primiam suas obras nas Typographias Leuzienger, Perseverança e E. Alves
de Souza114.
Dedicado escrever sermões e estudos que viabilizassem a apli-
cação dos cultos familiares, o periódico também apresentava uma sessão

113  VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.


Brasília: Editora UnB, 1980. p. 149.
114  SANTOS, Edwiges Rosa dos. O Jornal Imprensa Evangélica: diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1994). São Paulo: Editora Mackenzie, 2009. p. 43.
Histórias, narrativas e religiões 231
de assuntos não religiosos comentando – pelo menos em um primeiro
momento - assuntos políticos como liberdade de culto, os direitos civis
dos acatólicos e a imigração dos protestantes115.
A intenção dos seus fundadores no pontapé inicial da Imprensa
Evangélica era que o periódico fosse publicado semanalmente, no entan-
to, logo esses atores perceberam a impossibilidade de tal tarefa e passaram
a publicá-lo quinzenalmente, sempre aos sábados. Conforme as diferentes
fases que o periódico possuiu no seu período de circulação, suas pautas
fugiram do exclusivismo religioso, permeando assim também temas como
sentenças intelectuais importantes na Europa, notícias sobre a Guerra do
Paraguai, comentários e preocupações sobre os pronunciamentos do Papa
Pio IX, Guerra de Secessão nos EUA entre outros.
Segundo o historiador Pedro Barbosa de Souza Feitoza, jornal
possuía uma clara intensão de oferecer ao mundo letrado do centro-sul
brasileiro o ideário protestante, porém essa intenção foi superada devido
as funções que o periódico exerceu116.
Tendo como referencial o primeiro Censo sobre a população
brasileira publicado no ano de 1872 - oito anos depois da fundação do
jornal evangélico – é possível observar que mais de 80% da população era
analfabeta117. Ao olhar para este dado, o historiador ressalta que mesmo
que tais missionários estrangeiros não tivessem acesso a esta informação,
a alta taxa de analfabetismo não seria difícil de observar na corte. O his-
toriador oficial da Igreja Presbiteriana no Brasil, Alderi Matos, afirma
que a imprensa foi um veículo de propaganda protestante que visava,
sobretudo, as camadas mais cultas da população118. Talvez por este fato
que como já disse anteriormente, o jornal teve uma boa aceitação entre
115  FEITOZA, Pedro Barbosa de Souza. A “Imprensa Evangélica” como estratégia para
inserção do protestantismo no Brasil Imperial. In: Encontro Regional da ANPUH-Rio:
Memória e Patrimônio, 14, 2010, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: ANPUH,
2010. Disponível em:<http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276743612_
ARQUIVO_AImpren saEvangelica-ANPUH.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2016. p. 4.
116  Ibidem, p. 4.
117  Recenseamento do Brazil em 1872.
Disponível em < http://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=225477>
Acesso em 25/03/2017.
118  FEITOZA, Pedro Barbosa de Souza. A “Imprensa Evangélica” como estratégia para
inserção do protestantismo no Brasil Imperial. In: Encontro Regional da ANPUH-Rio:
Memória e Patrimônio, 14, 2010, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: ANPUH,
2010. Disponível em: <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276743612_
ARQUIVO_AImpren saEvangelica-ANPUH.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2016. p. 4.
232 Histórias, narrativas e religiões
grupos como liberais, maçons e membros do clero. Presumo então, que
o jornal foi escrito tendo em vista a elite política e intelectual brasileira.
Ao analisar o perfil do periódico durante o seu período de circu-
lação, é possível observar diferentes fases no seu projeto editorial. Como
a legislação do Império ainda não obrigava os periódicos a citar o nome
de todos os colaboradores, editores e redatores, a Imprensa Evangélica
na maior parte do tempo omitiu o nome dos autores dos artigos que fo-
ram publicados em sua época. No entanto, a partir das informações que
historiadores outrora levantaram, facilmente posso dividir esses agentes
em dois grandes grupos: colaboradores estrangeiros e brasileiros.
A atuação dos missionários norte-americanos se estende da
sua fundação até o ano de 1900. A lista de nomes garimpados é ex-
tensa. Como editores, contamos com o fundador reverendo Ashbel
Green Simonton, Alexander Latimer Blackford e George Whitehill
Chamberlain. Como redatores John Beatty Howell e James Theodore
Houston (outubro de 1881- julho de 1890). Entre os colaboradores en-
contramos Francis Christopher Schneider, Robert Lenington (1881-
1884), John Mirrou Kyle, Donald Campbell McLaren e como diretor:
Wiliam Alfred Waddell119.
Por outro lado, temos como colaboradores autóctones Modesto
Perestrello Barros Carvalhosa, Antônio Bandeira Trajano, Miguel
Gonçalves Torres, Antônio Pedro Cerqueira Leite, Carlos Eduardo
Pereira, João Ribeiro de Carvalho Braga, José Francisco Primênio da
Silva, Herculano Ernesto Gouvea, além do fundador e também colabo-
rador José Manoel da Conceição120.

Ashbel Green Simonton: trajetória e gestão (1864-1867)

O reverendo Ashbel Green Simonton chegou ao Brasil em


1859. Aos 26 anos e já formado no grandioso seminário teológico de

119  SANTOS, Edwiges Rosa dos. O Jornal Imprensa Evangélica: diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1994). São Paulo: Editora Mackenzie, 2009. p. 50.
120  Ibidem, p. 51.
Histórias, narrativas e religiões 233
Princeton, assim que desembarcou no Brasil trouxe consigo cartas de
apresentação fornecidas pelo reverendo James Cooley Fletcher. Tais
cartas deveriam ser entregues as pessoas das mais altas classes do impé-
rio. Em um primeiro momento da sua presença no Brasil, Simonton se
dedicou a aprender a língua portuguesa, servindo assim como capelão
voluntário para mecânicos escoceses, ingleses e irlandeses na corte121.
O missionário também se disponibilizou a prestar serviços pas-
torais visando os imigrantes americanos que moravam no Rio de Janeiro.
Para que viesse a desenvolver essas atividades, Robert Wright da firma
Maxwell, Wright & Co, empresários do café, o apresentou para o Consul
estadunidense. A partir deste momento, Robert S. Scott o convidou para
ministrar um culto dentro do consulado americano. Interessante per-
ceber que neste segundo grupo pastoreado por Simonton era formado
por engenheiros e empreiteiros de obras fixados no Rio para concluir as
construções da estrada de ferro ordenada por Dom Pedro II122.
Observando a movimentação de Simonton, podemos ver que
os trabalhos eclesiásticos desenvolvidos pelo ministro lançavam-no di-
retamente entre os agentes sociais no qual a elite política e empresarial
cultivava a expectativa da promoção de um impulso do país para um
determinado nível técnico que traria a modernização para o Brasil.
Mesmo com as articulações políticas e a proteção dos seus con-
tatos pessoais da diplomacia norte americana que o protegia de possíveis
retaliações, David Gueiros mostra que o missionário ainda apresentava
um certo medo das possíveis oposições dos setores mais conservadores
da sociedade. Como possuía bastante contato com o reverendo meto-
dista Robert Reid Kalley, provavelmente Simonton temia o surgimento
de um ataque ultramontano similar ao que aconteceu com o metodista
na Ilha da Madeira.
Na sua leitura sobre a sociedade brasileira, Simonton sempre
se colocou contrário a escravidão no império, levantando uma influente
voz pró-imigração protestante na década de 1850. Em suas cartas, o re-

121  VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.


Brasília: Editora UnB, 1980. p. 136.
122  VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.
Brasília: Editora UnB, 1980. p. 137.
234 Histórias, narrativas e religiões
verendo mostra certo otimismo, quando enxerga o que segundo ele seria
esforços positivos do Governo para incentivar a imigração e a luta para
defender os direitos e a liberdade religiosa desses estrangeiros. Porém,
vale ressaltar Simonton não se deixava levar pelas múltiplas faces do
liberalismo brasileiro, muito menos pela suposta fragilidade do cato-
licismo nacional. Em sua opinião, a solidariedade liberal feita para os
protestantes era apenas uma estratégia para a obtenção de um novo tipo
de mão de obra. Além desse fator, a indiferença com a religião oficial
também foi um caminho para o estreitamento de laços123.
No entanto, a grande maioria dos seus discursos de enfrenta-
mento consistiu na crítica aos abusos da igreja católica. Uma vez ciente
que qualquer movimento brusco poderia o levar de volta para sua terra
natal, Simonton buscou o equilíbrio neste momento da história para
não sofrer uma oposição tenaz. Tal comportamento pode ser observado
na Imprensa Evangélica, durante o período que a chefiou (1964-1867).
Durante toda a da gestão de Simonton, o jornal foi publicado a
cada primeiro e terceiro sábado de cada mês. Seus valores iniciais foram
6$ a assinatura anual, 3$ semestral, 1$500 trimestral e 320 réis o número
avulso. Esse valor só passou por uma leve alteração no ano de 1866 onde
a assinatura anual diminuiu para 4$000 e semestral para 2$000. Desde a
primeira edição da Imprensa Evangélica, o corpo do jornal conteve oito
páginas nas dimensões de 32x22. No cabeçalho do periódico era possí-
vel visualizar três informações: na primeira linha o título centralizado e
letra em forma minúscula, na segunda periodicidade e na terceira, o dia
da semana o mês e o ano da publicação.
Observando o conteúdo das publicações do jornal no perí-
odo em que se encontrou sob a direção do reverendo Ashbel Green
Simonton, é possível observar que no período que se estende de 64-67,
encontra-se uma predominância de artigos relacionados a temas reli-
giosos. Em 1864 foram publicados textos sobre comentários bíblico, até
mesmo em um primeiro contato para apresentar para o leito a nova fé
evangélica, transmitir a moral cristã e apresentar as diferenças frente a

123  Ibidem, p. 136.


Histórias, narrativas e religiões 235
fé católica. Em 1865 as primeiras críticas ao catolicismo já podem ser
vistas nas páginas dos jornais124.
Se por um lado no período de 64-66 Simonton manteve a pre-
dominância de temas religiosos, a partir de 67 com a maior liberdade de
imprensa surgiram discussões embrionárias sobre instituições políticas e
polêmicas com os jornais ultramontanos se acaloraram. Edwiges Santos
Rosa faz a seguinte síntese do período gerido por Simonton:

Nessa fase, destacou-se como tema dominante a propaganda do


protestantismo presbiteriano por intermédio da estratégia de di-
vulgar o que denominavam “as verdades” do Evangelho. Os artigos
sobre catolicismo foram escritos de modo a questionar os dogmas e
ressaltar as falhas da igreja dominante e de seus representantes, ao
mesmo tempo apontavam para os “benefícios” do protestantismo.
Procuravam direcionar leitores para uma comparação entre o “Brasil
católico” e países que adotavam o protestantismo ou que admitiam a
liberdade de prática religiosa125.

Pelo Progresso da Nação

O protestantismo foi aceito na sociedade brasileira com po-


sicionamentos plurais e adversos. Se por um lado a nova fé foi bem
recebida pelos indivíduos progressistas, por outro foi duramente recha-
çada pela elite eclesiástica e pelos setores mais conservadores da classe
comum e política. Com as crises sociais ocorridas nas últimas décadas
do século XIX, pilares bases da hierarquia da nação foram debilitados,
como o escravismo, a grande propriedade, a exportação do açúcar e o
regime do padroado. Paralelamente ao enfraquecimento desta oligar-
quia, o cenário político e econômico do Império passou a conviver com

124  SANTOS, Edwiges Rosa dos. O Jornal Imprensa Evangélica: diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1994). São Paulo: Editora Mackenzie, 2009. p. 70.
125  SANTOS, Edwiges Rosa dos. O Jornal Imprensa Evangélica: diferentes fases no contexto
brasileiro (1864-1994). São Paulo: Editora Mackenzie, 2009. p. 77.
236 Histórias, narrativas e religiões
a ascensão de um novo agente social: a classe de agricultores paulista do
café, portadores de uma mentalidade empresarial e capitalista.
Dentro deste contexto floresceu na década de 1870, a propa-
ganda republicana que aos poucos começou a ganhar mais e mais es-
paço devido a formulação do manifesto republicano que acima de tudo
aglutinou ao seu redor intelectuais, juristas, políticos, militares, maçons
e profissionais liberais ao seu favor. Naturalmente o resultado desses
movimentos políticos foi o aumento da pressão das ideias liberais, posi-
tivistas e anticlericais e anti-escravocratas no jogo imperial.
Olhando para o cenário da sociedade, os missionários busca-
ram uma maneira peculiar de inserir a nova religião no país. Utilizando-
se da ideia de progresso paulatinamente o protestantismo passou a ser
visto como uma religião de pessoas esclarecidas e cultas entre alguns
liberais, enquanto o catolicismo cada vez mais se tornava o “culpado” do
atraso econômico, social e político do país na retórica anticlerical.
O imaginário popular que estava para se formar na mentali-
dade dos simpatizantes a causa protestante foi forjado também pelos
próprios missionários estrangeiros que se esforçavam para reforçar esta
autoimagem nos seus discursos e textos publicados. Como articulavam
um diálogo entre pensamentos liberais previamente difundidos na sua
sociedade de origem com a leitura bíblica, esses homens denunciaram
comportamentos e instituições sociais como a não laicidade do estado, a
ausência dos casamentos civis, as precariedades do sistema educacional
e escravidão no país126.
A consequência direta dessa absorção de valores progressistas
no pensamento missionário presbiteriano foi a reflexão metodológica
das ações missionárias. Assim, nesta recém-conhecida estrutura social,
esses estrangeiros tiveram que investir em práticas que possibilitassem a
fixação da religião protestante e que reforçassem o discurso propagado.
Buscando aproveitar então as lacunas deixadas com o término
do exclusivismo apostólico romano, não só os presbiterianos, como tam-
bém os batistas, metodistas e congregacionais buscaram acentuar suas

126  SANTOS, Lyndon de Araújo. O Protestantismo no Advento da República no Brasil. Revista


Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 8, Set, 2010 – ISSN 1983-2850. p. 108.
Histórias, narrativas e religiões 237
ações evangelizadoras junto à população. Tendo em vista a precariedade
de algumas instituições nacionais, os evangélicos ampliaram suas orga-
nizações confessionais como escolas, hospitais, seminários, sociedades
bíblicas, editoras e publicações.

Numa sociedade marcada pela desigualdade social, pelo racismo,


tradicionalismo católico romano, pelo analfabetismo e pelo sincre-
tismo da religiosidade cotidiana. A crença evangélica era vista como
uma fé estrangeira, marginalizada e cultivada por uma minoria exó-
tica da população. Entretanto, os missionários protestantes se esfor-
çavam para criar uma imagem positiva, progressista e superior da
crença evangélica, demarcando as fronteiras que distinguiam o culto
protestante do católico127.

Este discurso estratégico adepto a causa do progresso, civiliza-


ção e modernidade não só esteve presente nas pregações como também
nos principais órgãos de comunicação religiosas criados com a finalida-
de de apresentar a “verdadeira religião” como a “tábua de salvação” para
o Brasil. Vale a pena ressaltar que nesse período da história o campo
missionário oscilava entre a desintegração e a consolidação de um esta-
do nacional128.
Ashbel Green Simonton, Alexander Latimer Blackford e
George Whitehill Chamberlain entre outros de fato foram os pioneiros
da igreja presbiteriana a iniciar o processo de implantação de igrejas em
território nacional. Entretanto, nenhum deles foi o primeiro presbite-
riano que tentou associar na mentalidade da elite intelectual brasileira
o protestantismo como a religião do progresso. Antes da ação desses
religiosos, James Cooley Flecther já havia pisado no Império como mis-
sionário com o objetivo de mapear o novo campo missionário.
No ano de 1851 Fletcher foi enviado ao Rio de Janeiro como
missionário da American and Foreign Christian Union e capelão da
American Seamen´s Friend Society em um desafio que perduraria até o

127  Ibidem, p. 109.


128  SEIXAS, Mariana Ellen Santos. Protestantismo, Política e Educação no Brasil: A propaganda
do progresso e da modernização. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III,
n.7, Mai, 2010 – ISSN 1983-2850.
238 Histórias, narrativas e religiões
ano de 1854. Entre as várias ações do reverendo em terras brasileiras,
posso destacar o suporte pastoral aos norte-americanos que residiam
na corte e os marinheiros estadunidenses que se passavam pelo porto
do Rio de Janeiro. Ao cumprir o trabalho que lhe foi confiado, Fletcher
foi muito além do que ele poderia imaginar. A maior contribuição do
religioso para a ação missionária no país foi estreitar laços com figuras
liberais no Império visando melhorar a movimentação de protestantes
no território nacional. Assim discursou contra a escravidão, em favor
da liberdade de culto preparando o caminho para futuros missionários
conquistando proteção de grupos maçons e liberais para os mesmos129.
O trecho abaixo foi extraído do seu relato de viagem e expõe
de uma maneira muito precisa o embrião propagandístico da causa do
progresso já presente no pensamento missiológico:

Quase todos os passos para o progresso do Brasil têm sido prepara-


dos por um avanço prévio e gradativo [...] A escravidão está conde-
nada no Brasil. Como já se sabe se disse, uma vez obtida a liberdade,
não há em geral entrave social, como nos Estados Unidos para man-
ter em baixa posição qualquer homem de mérito. Tais entraves, exis-
tem realmente nos Estados Unidos. Das regiões quentes do Texas
aos extremos frigidíssimos da Nova Inglaterra, os obstáculos à sua
ascensão social, que são de fato inseparáveis [...]130.

O anseio observado nas falas de Flecther em associar o espíri-


to do progresso a ética do protestantismo, também esteve associado na
mentalidade dos pais da igreja presbiteriana brasileira.
Em suma, apropriar na sua própria identidade o espírito do
progresso e a associação direta da religião com a modernidade foi uma
das maiores influências presentes no conteúdo da Imprensa Evangélica.
Ao lançar um primeiro olhar, é visível que pelo menos nos primeiros
anos da sua fundação as folhas da Imprensa estavam repletas de maté-
rias voltadas para a exposição bíblica, instruções para o culto doméstico

129  ROSI, Bruno Golçalves. James Cooley Fletcher, o missionário amigo do Brasil. Almanack.
Gurulhos, n.05, p.62-80, 1° semestre de 2013.p. 67.
130  KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasileiros, esboço histórico e descritivo. São
Paulo: Companhia Editora Nacional. 1941, p. 148.
Histórias, narrativas e religiões 239
e relatos de missionários ao redor do mundo. Todavia com o avançar do
tempo, a natureza do conteúdo começou a passar por algumas trans-
formações importantes. Visto isto, com o desenrolar do jogo político e
social e as alternâncias de chefes de Imprensa, textos sobre a liberdade
de culto, casamento civil, política externa e interna passam a compor
com cada vez mais força as páginas do periódico.

Conclusão

A Imprensa Evangélica foi o meio pelo qual os ministros evan-


gélicos apresentaram a fé reformada a sociedade brasileira do século XIX.
Com base nas reflexões levantadas no decorrer desse trabalho, posso
chegar à conclusão que o periódico obteve um papel central na implan-
tação do protestantismo no Brasil, uma vez que serviu como plataforma
para a delimitação de espaço na disputa religiosa e social oitocentista.
Para além disso, também cabe ressaltar que na medida em que apresen-
tava as instruções para os cultos domésticos, devocionais semanais e es-
tudos bíblicos, o comportamento social, a cosmovisão dos membros e as
suas liturgias de culto, passavam por um processo de formatação. Dessa
forma, a Imprensa Evangélica além de servir como uma estrutura para o
avanço missionário, obteve uma grande responsabilidade na formação
de uma identidade do leitor protestante.

Referências

FEITOZA, Pedro Barbosa de Souza. A “Imprensa Evangélica” como estratégia para inserção
do protestantismo no Brasil Imperial. In: Encontro Regional da ANPUH-Rio: Memória e
Patrimônio, 14, 2010, Rio de Janeiro. Anais eletrônicos. Rio de Janeiro: ANPUH, 2010. Dis-
ponível em: <http://www.encontro2010.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1276743612_ARQUI-
VO_AImpren saEvangelica-ANPUH.pdf>. Acesso em: 03 jun. 2016.

240 Histórias, narrativas e religiões


MATOS, Alderi S. Os Pioneiros presbiterianos do Brasil, 1859-1900. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004.

SANTOS, Lyndon de Araújo. O Protestantismo no Advento da República no Brasil. Revista


Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano III, n. 8, Set. 2010 - ISSN 1983-2850.

SANTOS, Edwiges Rosa dos. O jornal Imprensa Evangelica: diferentes fases no contexto bra-
sileiro (1864-1892). São Paulo: Editora Mackenzie, 2009.

SEIXAS, Mariana Ellen Santos. Protestantismo, Política e Educação no Brasil: A propagan-


da do progresso e da modernização. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH,
Ano III, n. 7, Mai. 2010 - ISSN 1983-2850.

SIMONTON, Ashbel Green. O Diário de Simonton. São Paulo: Editora Cultura Cristã.
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VIEIRA, David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil.


Brasília: Editora UnB, 1980.

KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasileiros, esboço histórico e descritivo.


São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1941.

Histórias, narrativas e religiões 241


“Ide por todo mundo e pregai o evangelho
a toda Criatura”131: Uma análise da
participação dos Neopentecostais na
Política Contemporânea do Brasil

Kaliane Santos Oliveira (UNESP)

Resumo: A eclosão do movimento pentecostal ocorreu nos Estados


Unidos com início no final do século XIX, por volta de 1890. O prelúdio
do pentecostalismo no Brasil veio a ocorrer cerca de vinte anos mais tarde
com a chegada das Igrejas Cristãs do Brasil (1910) e Assembleia de Deus
(1911); o historiador Paul Charles Freston dividiu o pentecostalismo em
três ondas distintas: a primeira, no começo dos anos 1900, como pen-
tecostalismo clássico, a segunda, por volta dos anos 1950-1960, que em
relação a teologia não se difere da primeira onda mas possui como um
diferencial o evangelismo de massa, se utilizando dos meios de comuni-
cação para difundir a mensagem da cura divina e a terceira onda (1970),
objeto deste estudo, posteriormente intitulada Neopentecostal, conside-
rada uma inovação do pentecostalismo clássico que além da cura divina
passa a participar ativamente da política com uma constante busca pela
prosperidade. Procura-se constatar como se deu o movimento de parti-
cipação política dos evangélicos, prática tradicionalmente rejeitada pelo
pentecostalismo clássico, caracterizando uma nova cultura política pente-
costal, e seus efeitos na criação de políticas no cenário do Brasil contem-
porâneo como, o posicionamento contrário aos projetos de lei que tratam
a respeito da descriminalização do aborto e união estável homoafetiva (Nº
612,2011),interferindo na ideologia cristã. Através de fontes primárias,
secundárias e análises bibliográficas, espera-se confirmar a hipótese de
que o movimento de participação política dos evangélicos no Brasil ocor-

131  Bíblia Sagrada Marcos 16:15


242 Histórias, narrativas e religiões
re de forma ambígua e ao passo que inclui as reivindicações eclesiásticas,
exclui demandas sociais em prol da fé.

Palavras-chave: Neopentecostais; Política; Brasil; Política Pentecostal.

Para além do mundo físico e explicações científicas, surgiram


novas formas de explicar o mundo e seus fenômenos. A religião não se
fundamenta somente em Religare132 o homem com o divino, mas tam-
bém tornar mais claras as explicações que anteriormente estavam na
obscuridade. Deuses, entidades e santos eram capazes de definir esta-
ções do ano, períodos de chuva ou sol e até mesmo traçar destinos. Com
o passar dos anos, o advento da modernidade e avanço da ciência, en-
contramos características semelhantes do papel da religião. A figura dos
reis nos traz exemplo concreto da função da religião na construção da
sociedade, a sua figura era associada com o poder divino, sendo o gover-
nante um representante de Deus na terra.
Teóricos da ciência política em suas formulações a respeito da
construção da sociedade também se apoiam em concepções religiosas.
Para Thomas Hobbes (1588-1679) o Estado é uma instituição funda-
mental para regular as ações humanas, o papel do soberano era repre-
sentar seus súditos e garantir a segurança dos mesmos. Contudo, para
o Estado ser eficaz é fundamental que seja cristão, pois o soberano na
figura de um fiel seguidor de Cristo não irá se desvirtuar das Sagradas
Escrituras. “E esta lei de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena
por consequência a obediência a todos os preceitos da Bíblia, a qual […]
é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o estabele-
ceu, e nos outros lugares é apenas conselho, que cada um, por sua conta
e risco, pode sem injustiça recusar obedecer (Hobbes,2014,199).Desse
modo tona-se claro que a criação do Estado moderno não rompe com a
religião, absorvendo demandas da igreja que teve que aceitar o Estado.
Com o passar dos séculos algumas religiões se sobrepuseram
a outras, o movimento da história é capaz de nos dar explicações plau-

132  Termo Latim: Religar, Atar Laços.


Histórias, narrativas e religiões 243
síveis sobre tais acontecimentos. O advento da colonização europeia,
principalmente nos continentes Americano e Africano, foram capazes
de minguar diversas formas de ritos e crenças, abrindo um imenso espa-
ço para o cristianismo.
O protestantismo é uma das mais consideráveis vertentes do
cristianismo, que teve seu marco com a Reforma Protestante na Europa
organizada por Martinho Lutero no século XVI. No Brasil o protestan-
tismo chegou em meados do século XVI, no ano de 1555 com a ajuda
do rei Henrique II, no qual, grupos de franceses refugiados, em virtude
da perseguição católica, chegaram ao Rio de Janeiro. Passados dois anos
novos grupos chegaram ao Brasil, contudo os desentendimentos fizeram
que a empreitada missionária não fosse bem-sucedida ocasionando a
manutenção da hegemonia católica. Em 1624, ocorreu a segunda tenta-
tiva em decorrência da chegada dos holandeses em Pernambuco, trazen-
do a chamada Igreja Reformada, mas com a expulsão dos Holandeses
em 1654 a segunda tentativa também falhou e a igreja católica manteve
seu predomínio intacto até meados do século XIX. As mudanças na or-
dem só começaram a ocorrer após a assinatura do Tratado de Comércio
(1810) entre Brasil e Inglaterra permitindo assim a construção de igrejas
e capelas protestantes. No entanto, somente após a Independência do
Brasil (1822) que o protestantismo ganhou força no país, com a chegada
de colônias alemãs no sul do Brasil. A vinda dos colonos criou condições
essenciais para a manutenção do protestantismo, facilitando posterior-
mente a vinda de missionários de outros países, principalmente esta-
dounidenses, que tinham como mote a ideologia do Destino Manifesto
– a crença que os Estados Unidos possuem um povo escolhido por Deus
para levar os princípios da democracia e espalhar a civilização no mundo.
A influência da filosofia liberal está fincada nas bases do protestantismo
estado-unidense e seu projeto missionário. Apesar da enorme influência
na construção da sociedade brasileira o protestantismo não conseguiu
alcançar o sucesso que o Pentecostalismo veio a atingir com o passar
dos anos. O pentecostalismo se fragmentou e com ele diversas correntes
dentro de sua linha teórica, neste artigo focalizamos o neopentecosta-
lismo sua história e práticas na política contemporânea do Brasil, qual

244 Histórias, narrativas e religiões


a sua influência em questões ligadas a implementação de determinadas
políticas públicas, que se mostram como um entrave em sua concepção
religiosa, se fazendo necessária uma intervenção direta dos homens de
Deus na política.

1. Mas vòs sois a geração eleita, o sacerdòcio real, a


nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis
as virtudes daquele que vos chamou das trevas para
a sua maravilhosa luz.133

O movimento pentecostal desde o seu surgimento nunca se


apresentou como um movimento uniforme e coeso. As primeiras igrejas
que chegaram ao Brasil entre os anos de 1910-1911, respectivamen-
te, Congregação Cristão do Brasil e Assembleia de Deus, sempre tive-
ram divergências teóricas e práticas. Ao longo dos anos foram instala-
das diversas outras vertentes do pentecostalismo no Brasil, a partir da
década de 1950 com a chegada do Evangelho Quadrangular ocorre a
fragmentação do pentecostalismo não só carregadas de nomenclaturas
diferentes, mas com pregações que não se interligavam. A Igreja Brasil
para Cristo (1956), Igreja Pentecostal Deus é Amor (1962), Igreja Nova
Vida (1960),são oriundas dessa fragmentação, mas possuem caracterís-
ticas clássicas do pentecostalismo.
Como dito anteriormente o pentecostalismo no Brasil nunca se
mostrou homogêneo, sendo assim se fez necessário distingui-los. Usaremos
neste texto a classificação realizada pelo historiador Paul Charles Freston,
que dividiu o pentecostalismo em três ondas dissemelhantes.

“O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a his-


tória de três ondas de implantação de igrejas. A primeira onda é a
década de 1910, com a chegada da Congregação Cristã (1910) e da

133  1 Pedro Cap1 versículo 10


Histórias, narrativas e religiões 245
Assembleia de Deus (1911). Estas duas igrejas tem o campo para si
durante 40 anos, pois suas rivais são inexpressivas. A Congregação,
após grande êxito inicial permanece mais acanhada, mas AD se ex-
pande geograficamente como a igreja protestante nacional por ex-
celência, firmando presença nos pontos de saída do futuro fluxo
migratório. A segunda onda pentecostal é dos anos 50 e início de
60, na qual , o campo pentecostal se fragmenta, a relação com a
sociedade se dinamiza e três grandes grupos ( em meio a dezenas de
maiores) surgem: a Quadrangular (1951), Brasil para Cristo (1955)
e Deus é Amor (1962). O contexto dessa pulverização é paulista. A
terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha força nos anos
80. Suas principais representantes são Igreja Universal do Reino
de Deus (1977) e Igreja Internacional da Graça de Deus (1980).
Novamente, essas igrejas trazem uma atualização inovadora da in-
serção social e do leque de possibilidades teológicas, litúrgicas, éticas
e estéticas do pentecostalismo. O contexto é fundamentalmente ca-
rioca”.( FRESTON,1993,66)

O pentecostalismo clássico, em linhas gerais, é caracterizado


por uma composição quase que majoritária de pessoas pobres com pou-
ca escolarização. Este movimento se caracteriza pelo rompimento com
os protestantes, enfatizando os dons de línguas, glossolalia e a possível
volta de cristo. O sectarismo e ascetismo também se mostram carac-
terísticas fundamentais nessa primeira onda pentecostal, a negação do
mundano e a preocupação somente com a vida celestial são os princi-
pais assuntos abordados por esse grupo. A igreja Cristã do Brasil ainda
se mostra, até os dias atuais, fiel as suas tradições, já a Assembleia de
Deus se expressa cada vez mais maleável em relação a modernização das
abordagens religiosas, se utilizando de rádios, tvs e mídias sócias para
propagar suas mensagens de fé.
A segunda onda é caracterizada pelo evangelismo de massas, ti-
picamente estado-unidense, as mensagens de amor, fé e cura divina são
transmitidas por meios de comunicação. As mensagens abordadas por
esse grupo não se centram na volta iminente de cristo e o desapego as coi-
sas mundanas, mas sim em grades milagres e novos métodos para a mu-
dança de vida. A chegada ao Brasil não trouxe de imediato vários adeptos.
246 Histórias, narrativas e religiões
Contudo, os investimentos em comunicação possibilitou uma maior visi-
bilidade, ocasionando a fragmentação do pentecostalismo brasileiro.
O sociólogo Ricardo Mariano, justifica essa divisão das primei-
ras ondas pentecostais com aspectos que fogem do campo doutrinário.

“Justifica-se, assim, a divisão das duas primeiras ondas pentecostais


pelo critério do corte histórico- institucional, mas não pela existência
de diferenças teológicas significativas entre ambas. Tendo em conta
que a segunda onda mantém o núcleo teológico do pentecostalismo
clássico, mas se estabelece quarenta anos depois e com distinções
evangelísticas e ênfases doutrinárias próprias, optamos por nomeá-la
de deuteropentecostalismo. O radical deutero (presente no título do
quinto livro do Pentateuco) significa segundo ou segunda vez sentido
que o torna muito apropriado para nomear a segunda vertente pen-
tecostal. Temos, assim, primeiro o pentecostalismo clássico, seguido
de deuteropentecostalismo”.( MARIANO,1999,32)

A terceira onda, no qual, daremos mais atenção nessa análise


começa em meados da década de 70 com um cenário de atuação cario-
ca. Derivada da pioneira Igreja Nova Vida (1960) a Igreja Universal do
Reino de Deus (1977) é o exemplo mais conhecido da atuação dos cha-
mados neopentecostais134 no Brasil. As diferenças entre a primeira e se-
gunda onda são mais explícitas, o apoliticismo que guiava as categorias
anteriores já não é mais encontrado nessa terceira onda. A IURD se mos-
tra como uma inovação no campo religioso, com demandas diferenciadas
das antigas igrejas pentecostais. Para além da caça ao diabo e as religiões
de matrizes africanas, adotam avançadas técnicas de propaganda e admi-
nistração empresarial no mercado religioso, agem e trabalham como uma
empresa, a liberalização de costumes também se mostra uma característica
fundamental, já que as igrejas da primeira e segunda onda se mostravam
mais “ortodoxas” quanto à mundanização do vestuário dos fiéis.
As línguas estranhas e a cura divina foram ofuscadas pela liber-
tação dos demônios com rituais de exorcismo contra os ritos de matrizes
africanas. Diferentemente das duas primeiras ondas que possuem como
diferenciação o corte histórico institucional o neopentecostalismo pos-

134  Termo adotado por diversos autores entre eles Pierruci &Brandi (1996)
Histórias, narrativas e religiões 247
sui especificações doutrinárias e comportamentais (Mariano, 1999,37).
Se nos atentarmos as pregações iniciais das igrejas como Assembleia
de Deus e Cristã do Brasil a condenação do enriquecimento pessoal e
a participação em assuntos considerados mundanos se mostravam bem
mais presentes. A riqueza é aceitável apenas no reino dos céus, a par-
ticipação política também se mostrava um assunto destinado aos não
crentes, que não estão a serviço da fé.
O neopentecostalismo modifica esses dogmas, o papel do cris-
tão não se destina somente a orar, jejuar e ler a bíblia, agora se faz ne-
cessário a participação dos homens de Deus em todas as esferas da vida
social, sobretudo da política.

[…] Los nuevos pentecostales brasilenos tienen por hábito classifi-


car a sus seguidores colocando después del sustantivo el adjetivo de
“Cristo”, obteniendo así una mejor visiblidad para su presencia en
el escenario social. De esta forma surgieron los “atletas de Cristo”,
“ hombres de negocios del evangelio completo” , los “ militares
evangélicos” , los “ artistas de Cristo” y por último, los “políticos de
Cristo” o, como son llamados por el liderazgo de la Iglesia Universal
del Reino de Dios (IURD), los “hombres de Dios en la política.”
(CAMPOS,2005,159)

A participação desses homens de fé na política resultou em


diversas mudanças no campo político, anteriormente era comum se ter
políticos evangélicos, contudo a mudança da configuração nos traz um
novo tipo, o político de cristo.

2.“Agrada-te do Senhor, e Ele satisfará aos desejos


do teu coração”135

A ideia de participação evangélica não surgiu de visões ce-


lestiais, a igreja como qualquer outra instituição também zela por seus
135  Salmos 37 verso 4
248 Histórias, narrativas e religiões
interesses e valores. Os evangélicos hoje se apresentam como a segun-
da maior religião do Brasil, segundo dados de Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística ( IBGE), realizado no ano de 2010, em 2000
cerca de 26,2 milhões se declaravam evangélicos em 2010 passaram a ser
42,3 milhões,ou seja 22,2% do total de brasileiros, segundo a mídia de
notícias G1136. Sendo esta imensa massa os evangélicos ganharam uma
nova voz na participação política no Brasil, que desde a constituinte de
1988 se mostrava de forma tímida, devido a questões doutrinárias.
A passagem para o fim do apoliticismo possui grande influ-
ência na linha teórica que guia a onda neopentecostal, a teologia da
prosperidade, em linhas gerais, substitui a teologia de que os verdadeiros
cristãos deveriam ser pobres em questões materiais, mas ricos do espíri-
to santo, sua base teórica que rege as igrejas neopentecostais no Brasil,
oriunda dos Estados Unidos da América teve como grande divulgador
o pastor Kenneth Hagin (1917-2013). Com grande adesão nas igrejas
brasileiras esta teoria prega a prosperidade por meio da fé, sendo seu
sucesso produzido único e exclusivamente pelo fiel e seu temor a Cristo,
o discurso utilizado pelos pastores que aderem a esta teoria é que Deus
tem um plano para vida de cada um de nós e a prosperidade é uma delas.
A influência da teologia da prosperidade na vida prática cotidia-
na é de suma importância, não somente os bens materiais farão parte da
vida deste novo cristão, mas também os rumos político e econômico do
país. O televangelismo é umas principais ferramentas para a propagação
de mensagens de fé que diversas vezes se mostram também com caráter
político é por meio de rádios, tv e canais nas novas mídias sociais que pas-
tores e bispos influenciam o modo de vida social e político dos seus fiéis.
Podemos aqui, utilizar um exemplo de apoio político realizado pelo pastor
da Assembleia de Deus Vitoria em Cristo, Silas Malafaia, nas últimas
eleições presidenciais no de ano de 2014, no qual, concedeu total apoio
ao candidato a presidência da república Pr.Everaldo Dias Pereira (Partido
Social Cristão) incentivando seus fiéis por meio do voto e da fé, eleger o
único líder capaz de atender aos interesses de uma multidão de fiéis com

136  http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-evangelicos-aumenta-61-em-
10-anos-aponta-ibge.html acesso> 30/04/2017
Histórias, narrativas e religiões 249
o grande anseio de prosperar. Com plano politico apresentado para con-
correr às eleições, Pr. Everaldo defendia questões como: a vida humana
já entendida no momento da sua concepção, economia livre a partir do
empreendedorismo individual, proteção da vida e da família e parcerias
entre o público e o privado a fim de favorecer a concorrência.
O Pr. Everaldo não venceu as eleições, mas foi visto por mi-
lhares de pessoas espalhas pelo Brasil que muitas vezes não sabiam nem
ao menos suas propostas no âmbito econômico, mas levava em mente
a titulação de pastor, de homem de fé, do homem de Deus na política.
Embora, por meio de uma análise superficial se mostre claro que o apoio
dos evangélicos se deu pela identificação religiosa, não podemos tratar
os fiéis como ingênuos ou menosprezar a sua capacidade de escolher um
candidato que atenda seus reais interesses.
No ano de 2009 o governo federal lançou o Terceiro Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído pelo decreto
nº7.037 com resoluções e propostas aprovadas em conferências temáti-
cas no ano de 2003. O PNDH-3, consiste em propostas em áreas como
segurança alimentar, educação, saúde, habitação, desigualdade racial, di-
reitos da mulher, juventude, crianças e adolescentes, pessoas com defici-
ência, idosos, meio ambiente etc,o PNDH-3 não possui força como lei,
tem caráter de sugestão.
O Eixo número III137, se mostrou uma verdadeira arma do dia-
bo contra a igreja, analisaremos o exemplo do pastor Silas Malafaia, a
respeito do PNDH-3, em um vídeo no canal do youtube138, o pastor
trata deste eixo como, desconstrução da heterossexualidade e privilégios
para homossexuais, em suas palavras para transformá-los em cidadãos
de primeira classe. Ao final deste vídeo o pastor alerta seus ouvintes
sobre a necessidade de escolher bem os políticos, principalmente depu-

137  O Eixo III, Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades, baseia-se na


necessidade de reconhecer as diversidades e diferenças para concretização do principio da
igualdade, visando à superação de barreiras estruturais para o acesso aos direitos humanos.
Envolve, portanto, iniciativas relacionadas com a redução da pobreza, a erradicação da fome e da
miséria, o combate à discriminação e a implementação de ações afirmativas voltadas para grupos
em situação de vulnerabilidade.
138  https://www.youtube.com/watch?v=AsSpI9StZU4
250 Histórias, narrativas e religiões
tados e senadores, pois esses projetos de leis podem sim prejudicar os
homens de Deus.
Mensagens como essas, propagadas cada vez mais rápidas e
com maior acesso, nos trazem preocupações de caráter social político,
esses representantes religiosos por meio da fé estabelecem o que é moral,
vida, morte, baseados em crenças pessoais. Mas como é possível manter
a participação política dos evangélicos e de outras correntes religiosas, e
abarcar concomitantemente as demandas sociais?
A resposta se mostra fácil quando pensamos que o Estado é lai-
co, contudo a laicidade não se mostra eficiente quando se tem exemplos
de cultos religiosos realizados dentro do Congresso Nacional como foi
descrito no trabalho etnográfico realizado por Tatiane Duarte (2011),
os evangélicos através dessas cerimônias se utilizando do espaço do le-
gislativo para que seus projetos pessoais sejam sustentados pelo Estado.
Outro tema de grande relevância que tira o sono dos políticos
de Cristo é questão da descriminalização do aborto, prática condenável,
pois a vida para os cristãos começam desde o momento de sua concep-
ção. As questões sociais que levam as mulheres a realizar o procedimento
não são de fato consideradas pelos religiosos que em diversas situações
se posicionaram contrários a descriminalização da prática, o tema foi
deveras abordado nas eleições de 2010, mas de forma rasa e enviesada,
de algum modo contribui para abordagem de um tema pouco presente
em discussões públicas.
O aborto foi utilizado como tática de campanha eleitoral, uti-
lizada principalmente pelos dois candidatos com maiores intenções de
votos, Dilma Roussef e José Serra. Ambos, antes do início da campanha
eleitoral se declaravam favoráveis a descriminalização da prática. Dilma,
quando ministra da Casa Civil em entrevista para a revista Marie
Claire139, demonstrou apoio contra a criminalização. José Serra, quan-
do ministro da saúde foi responsável pela norma do projeto, no qual,
o sistema único de saúde fosse responsável pela realização do aborto.
Contudo, no decorrer da campanha e com a ofensiva evangélica ambos
se declararam contrários a descriminalização do aborto, a mudança de

139  “ A Mulher do Presidente”, revista Marie Claire, edição 217 04/2009


Histórias, narrativas e religiões 251
opinião por parte dos candidatos nos mostra claramente o poder eleito-
ral que o povo evangélico possui, devido ao seu crescimento quantitativo
e comportamental se mostrando hoje com maior participação política.
As consequências da participação religiosa na política nos pa-
recem muita clara, a questão da união homoafetiva é uma demanda so-
cial de grupos com maior vulnerabilidade que necessitam do reconhe-
cimento do Estado para terem seus diretos civis resguardados. A des-
criminalização do aborto é um tema de saúde pública, pois a proibição
não impede que a prática seja realizada, mas excluí o direto de mulheres,
majoritariamente de camadas mais inferiores da sociedade de escolher
projetar ou não uma vida. Quais são os reais interesses desses grupos em
barrar a construção de políticas voltadas para as minorias?

Considerações Finais

O campo religioso é decerto um dos territórios mais interes-


santes para se explorar e entender suas práticas e motivações mostra-se
cada vez mais essencial para a compreensão das futuras projeções. Não
se trata de menosprezar ou culpabilizar os evangélicos por determinadas
decisões políticas, mas sim apreender quais são os verdadeiros fatores
que influenciam suas decisões e o uso do poder político aliado aos in-
teresses religiosos. A igreja possui em suas mãos uma extensa cadeia de
comunicação que consegue abarcar diferentes esferas da sociedade com
o uso de rádios, tvs e meios modernos de comunicação, quais são os
efeitos do comportamento desses políticos de Cristo? Quais prejuízos
podem trazem para a construção de questões ligadas a diversidade e in-
clusão das minorias? Até que ponto suas demandas, não se tornam pre-
conceituosas? Devemos lembrar que suas concepções não são formadas
pelo senso comum, mas sim de uma perspectiva religiosa, no qual, sua
preocupação não é ação sobre as coisas mais amplas, mas sua aceitação,
a fé nelas (Geertz, 2008,82).

252 Histórias, narrativas e religiões


Os prejuízos que a união igreja e Estado possui pode ser vivido
por muitos de nós, principalmente mulheres e LGBT’S. A religião com
seu poder sob o Estado decide se nós mulheres, podemos ou não ter a
decisão de gerar uma vida, decide se pessoas do mesmo sexo que se amam
podem ou não por meios legais se unirem, decidem a educação das crian-
ças e a manutenção de preconceitos que podem sim, com o ensino serem
evitados; a igreja com sua graça e misericórdia ajuda a reconstruir e des-
truir muitas vidas, cabe a nós como cidadãos preservar a separação dessas
esferas e garantir que a igreja assegure seus direitos eclesiásticos, mas não
interfira de forma pessoal em demandas da sociedade.
Estamos vivendo em uma nova era da política, no qual, a de-
cisão da crença se sobrepõe a questões sociais, os novos atores políticos
fazem dos direitos civis uma réplica bíblica e comandam nossas vidas
pelos interesses divinos. Faz-se necessário a separação prática entre igre-
ja e Estado, a fim de que tantos os interesses políticos quanto a liberdade
religiosa ocorra de forma democrática.

Referências

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CAMPOS,L. Silveira. De “Políticos Evangéliscos” A “ Políticos de Cristo”: La Trayectoria de


las Acciones Y Mentalidad Política de Los Evangélicos Brasileños em el passo del siglo XX al
siglo XXI, Porto Alegre,2005.

DUARTE, T. Santos. “ A casa dos Ímpios se desfará, mas a tenda dos retos florescerá”: A Par-
ticipação da Frente Parlamentar Evangélica no Legislativo Brasileiro, dissertação de mestrado
em antropologia social PPG- Unb, Brasília,2011.

DURKHEIM, Émilie. As formas Elementares da vida Religiosa: O sistema totêmico na Aus-


trália, São Paulo: Editora Paulinas,1991.

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Tese de doutorado em Sociologia, IFCH- Unicamp 1.ed. Campinas:1993.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. 1.ed. Rio de Janeiro: LTC,2008.

Histórias, narrativas e religiões 253


HOBBES, Thomas. Leviatã: Ou Matéria, Forma e poder de uma República Eclesiástica e
Civil.3.ed. São Paulo: Martins Fontes,2014.

PIERRUCI, Antônio Flavio & Prandi, Reginaldo. A realidade social das Religiões no Brasil:
Religião, sociedade e Política. São Paulo: Hucited,1996.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia


das Letras,2004.

254 Histórias, narrativas e religiões


Histórias emergentes:
mulheres metodistas (1930-1970)

Margarida Fátima Souza Ribeiro (UMESP)

Resumo: A historiografia tem se preocupado especialmente com a des-


coberta de histórias que contemplem a abordagem do cotidiano, o que
tem contribuído para a renovação e a recuperação de experiências de
outros setores da sociedade, em sua maioria setores emergentes. Esta
preocupação nos possibilita desvelar algumas histórias de mulheres me-
todistas, no período de 1930 a 1970 especialmente pela trajetória do
trabalho feminino. As mulheres enfrentavam o trabalho doméstico e
também domiciliar, o que proporcionava uma relativa autonomia. Neste
artigo destacamos o trabalho das costureiras, lavadeiras, parteiras, ze-
ladoras, cozinheiras, catadora de papel, atuações estas identificadas nas
Revistas Voz Missionária e Jornal Expositor Cristão, ambos pertencentes
à Igreja Metodista.

Histórias, narrativas e religiões 255


A Origem do Pentecostalismo no Brasil:
do Pentecostalismo Clássico ao Pós-
Pentecostalismo

Saulo Inácio da Silva (PUCCAMP/CAPES)

Resumo: Analisamos por meio de contextualização histórica o protes-


tantismo no Brasil, pela invasão de franceses e holandeses no país, de-
pois da chegada dos europeus; em seguida, o surgimento do pentecosta-
lismo no EUA graças ao “Avivamento da Rua Azusa”, em Los Angeles
(1906), por William Seymour. O pentecostalismo só chegou ao Brasil
na primeira década do século XX – hoje denominado “pentecostalismo
clássico” – caracterizado pela glossolalia (dom de orar em línguas estra-
nhas). Na década de 1950, surgiu o “deuteropentecostalismo” ou “pen-
tecostalismo neoclássico”, que é marcado por curas divinas Na década
de 1970, surge no Brasil o “neopentecostalismo” ou pós-pentecostais
(terminologia que preferimos e adotamos), marcado pela teologia da
prosperidade: um divisor de águas, ou um divisor do pentecostalismo,
pois, com ele, se dá a entrada do pentecostalismo no mundo secular
(profano). Há uma mudança clara: o distanciamento do mundo profano,
antes praticado pelos pentecostais clássicos; neste momento temos o
rompimento do espaço profano e, assim, características essenciais como
a teologia do domínio, a teologia da prosperidade e saúde, a confissão
positiva e a entrada direta na política e etc.

Palavras-chave: Pentecostalismo no Brasil; Pós-pentecostalismo;


História do pentecostalismo brasileiro.

256 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

A origem do pentecostalismo contemporâneo140 teve como


ápice os EUA, graças ao “Avivamento da Rua Azusa”, em Los Angeles
(1906), por força da obra do pregador William Seymour. O pentecos-
talismo só chegou ao Brasil na primeira década do século XX – hoje
denominado “pentecostalismo clássico” – caracterizado pela glossolalia
(dom de orar em línguas estranhas). Na década de 1950, surgiu o “deu-
teropentecostalismo” ou “pentecostalismo neoclássico”, que é marcado
por curas divinas – algumas dessas igrejas vão influenciar outras mais
novas por suas nítidas tentativas de aproximação com o mundo profano
e, em alguns casos bem-sucedidos, com a política. Na década de 1970,
surge no Brasil o “neopentecostalismo”, marcado pela teologia da pros-
peridade: um divisor de águas, ou um divisor do pentecostalismo, pois,
com ele, se dá a entrada do pentecostalismo no mundo secular (profa-
no). Há uma mudança clara: o distanciamento do mundo profano, antes
praticado pelos pentecostais clássicos, dá lugar a uma aproximação evi-
dente pelos pós-pentecostais (terminologia que preferimos e adotamos);
devemos considerar o rompimento do espaço profano, que cede lugar as
novas características essenciais como: a teologia do domínio, a teologia
da prosperidade e saúde, a confissão positiva e proliferação do espaço
religioso na política e entre outras.
Dentro de uma análise sociológica, tendo em vista o compor-
tamento, houve uma mudança escatológica de “pré-milenarismo” para
“pós-milenarismo”, ou seja, rompeu-se com a teologia originária do
pentecostalismo embasada na inauguração do Reino de Deus após a
volta de Cristo para uma construção do Reino de Deus, aqui e agora,

140  É importante frisar que movimentos carismáticos existiam desde o século II. Segundo
Leonildo Silveira Campos (2005), essa “recarismatização” já vinha sendo cogitada por um cristão
do século II, que tentava trazer de volta práticas religiosas do cristianismo primitivo: “Há quem
atribua a Montano, um cristão do segundo século, a luta pela recarismatização da cristandade.
Isso porque, segundo Montano, por volta do ano 150, os cristãos já haviam abandonado certos
carismas, por exemplo: “falar em línguas”, “receber revelações divinas” ou esperar pelo poder
da divindade, “sinais”, “curas” e “maravilhas”. Ora, as consequências da pregação de Montano
foram intensas e fortes, pois séculos depois ainda existiam comunidades cristãs com um perfil
semelhante ao de igrejas pentecostais modernas.” (CAMPOS, 2005, p. 103).
Histórias, narrativas e religiões 257
antes da volta de Cristo, mudança impulsionada também pela secula-
rização pela qual passaram as igrejas (na aproximação com a política,
meios de comunicação e bens materiais).
Segundo Ricardo Mariano (2005), o pentecostalismo, ao qual
chamaremos aqui de pentecostalismo contemporâneo teve sua expan-
são em 1906, pela ação do pregador Wiliam Seymour que intermediou
o batismo no Espírito Santo na Rua Azusa, em Los Angeles. O fenô-
meno ganhou notoriedade e foi nomeado como “Avivamento da Rua
Azusa”, fato que chamou a atenção da sociedade e imprensa estadu-
nidenses (CAMPOS, 2005). Naquele dia, foram batizados homens e
mulheres, que se uniam a Seymour para ouvir suas pregações; em clima
de paz, congregavam brancos e negros. Por um tempo viveram em clima
de democracia racial nos Estados Unidos.

O Pentecostalismo Brasileiro e suas “Ondas”

O movimento pentecostal disseminou-se na América Latina


após o famoso “Avivamento da Rua Azusa”: no Chile em, 1909, e no
Brasil, em 1910. Rolim (1987) acredita que seu crescimento exponen-
cial no Brasil se deva ao fato de os protestantes históricos (presbiteria-
nos, batistas, dentre outros) dirigirem-se às camadas médias do país,
enquanto que o pentecostalismo se dirigiu às camadas mais empobreci-
das. Enquanto o protestantismo de conversão ou missão preocupou-se
com a evangelização da camada média da população, o pentecostalismo,
como nos EUA, focou-se em converter as camadas mais empobrecidas
da sociedade brasileira. Para esse trabalho adjacente às camadas carentes
da população, eram vocacionados membros sem muita experiência ou
formação teológica, que agiam apenas diante de ação emotiva advinda
de uma revelação do Espírito Santo. Esses missionários se preocupa-
vam com a revelação de uma vida religiosa, mas não acreditavam que
necessitassem de uma formação integral teológica. Portanto, o pente-
costalismo era voltado às pessoas humildes e sem instrução, diferente do
258 Histórias, narrativas e religiões
protestantismo histórico, voltado à conversão das classes mais abastadas
que, em muitos casos, tomavam ciência dessa nova crença por meio de
escolas dirigidas por tais denominações religiosas. Assim, ex-católicos
que eram tiradores de novenas, rezadores, pagadores de promessas, pas-
saram a pregar a Bíblia a pessoas humildes. Contudo, esses ex-católicos
não eram frequentadores de missas, mas acreditavam em vários santos.
Rolim (1987) reforça que, nos primórdios do pentecostalismo brasileiro,
os migrantes nordestinos sentiam o clima de comunhão nas igrejas pen-
tecostais na região Sudeste do Brasil, ao contrário das igrejas católicas
urbanas que não tinham tanta proximidade com as minorias. Esse cli-
ma de amizade é comum nas igrejas pentecostais, portanto esses novos
crentes deixaram de lado suas antigas crenças, combatidas pelo pente-
costalismo. Passaram a acreditar que o Espírito Santo podia batizá-los
para que recebessem inúmeras graças como curas físicas, ruptura com
vícios, dentre outras questões pessoais.
O pentecostalismo que chegou ao Brasil focava-se em uma
conduta sectária e de distanciamento do mundo, de cunho escatológico
pré-milenarista, assim sendo, esperava uma iminente volta de Jesus, no
intuito de que Ele iria preparar o tal sonhado Reino na Terra. Assim, o
pentecostalismo que chegou a nossas terras é muito diferente daquele
que conhecemos hoje, envolvido na política e com acesso aos bens ma-
teriais de uma sociedade consumista. Fica claro que o neopentecostalis-
mo (que chamaremos de pós-pentecostalismo) rompeu com todas essas
estruturas de distanciamento do mundo. Igrejas surgidas nos anos 1970,
como a IURD, preferiram viver no mundo e usar apenas a ética pente-
costal para classificar alguns atos mundanos como pecado.
O movimento pentecostal no Brasil é originário do movimen-
to da Rua Azusa e suas características, tais como: o batismo no Espírito
Santo e o falar em línguas estranhas (esta última, com o passar das déca-
das, não mais seria a principal característica desse movimento no Brasil).
A fim de tentar compreender esse fenômeno religioso, pesquisadores
classificaram o pentecostalismo no Brasil em dois grupos: “pentecostalis-
mo clássico” e “pentecostalismo autônomo” (BITTENCOURT FILHO
apud MARIANO, 2005). “Clássico”: igrejas brasileiras originárias do

Histórias, narrativas e religiões 259


movimento pentecostal estadunidense – sendo elas a “Assembleia de
Deus” e a “Congregação Cristã no Brasil” –; “autônomo” – igrejas dissi-
dentes das “clássicas” ou formadas por lideranças extremamente fortes,
como “Casa da Benção”, “Deus é amor”, “Evangelho Quadrangular”,
“Nova Vida”, “O Brasil para Cristo” e “IURD”. Mariano (2005) alega
que há um grande equívoco, já que, nesse último caso, não seriam igrejas
dissidentes do pentecostalismo clássico brasileiro.
Ainda mediante os estudos de Mariano (2005), Antônio
Gouvêa Mendonça acredita que haveria o “pentecostalismo clássico”
(Congregação e Assembleia de Deus, com a inclusão do Evangelho
Quadrangular e O Brasil para Cristo) e “Agências de cura divina” (Deus
é Amor, IURD); seriam “Agências de cura divina” instituições de po-
pulação flutuante e descompromissada, que prestam serviços de cura
mediante troca por pagamentos dos fiéis. Seriam igrejas que não pos-
suem um corpo fixo de membros (MENDONÇA apud MARIANO,
2005). Contudo, Mariano (2005) discorda e alega que a Igreja “Deus
é Amor” possui corpo fixo de fiéis, sendo uma das igrejas mais severas
na fidelidade ao pagamento de dízimos, presença nos cultos, acesso aos
sacramentos do batismo nas águas e da santa ceia, costumes, vestuário
e hábitos ascéticos de santidade. Já Carlos Rodrigues Brandão, segundo
Mariano (2005), acredita em dois tipos de pentecostalismo no Brasil:
“Igrejas de mediação” e “Pequenas seitas e movimentos de cura divi-
na”. Para entender essas duas tipologias é importante ater-se ao fato de
que, segundo Brandão, haveria uma diferença entre as igrejas de ma-
triz protestante no Brasil, sobre as quais o pesquisador realizou uma
análise calçada nas relações de dominação. Ou seja, haveria dominan-
tes e dominados ou igrejas de elite (de público culto e letrado) e igre-
jas populares (de público popular e iletrado). Ou seja, religião erudita/
dominantes (protestantismo histórico) e religião popular/dominados
(pequenas seitas e as igrejas de mediação, no caso, ambas igrejas pente-
costais). Brandão classificava em “igrejas de Mediação” ou pentecostais
tradicionais de âmbito nacional as igrejas que oscilavam entre o erudito
e o popular, nesse caso a “Assembleia de Deus” e a “Congregação Cristã”.
As demais igrejas pentecostais seriam “Pequenas seitas e movimen-

260 Histórias, narrativas e religiões


tos de cura divina” (BRANDÃO apud MARIANO, 2005). Contudo,
Ricardo Mariano (2005) acredita que tal classificação não faz sentido,
pois é impossível classificar tantas igrejas em duas tipologias, já que a
“Congregação Cristã” não caminharia no sentido de adotar padrões eru-
ditos (dos protestantes históricos) e sim populares, não se encaixando
na classificação das “igrejas de mediação”. Já “pequenas seitas e movi-
mentos de cura divina” estariam classificadas em igrejas que seriam do-
minantes e de religião popular. Nesta especificação estaria localizada a
Igreja “Deus é amor”. Segundo Ricardo Mariano (2005), a igreja “Deus
é Amor” seria muito grande e muito bem estruturada para ser uma “pe-
quena seita”, devido ao seu raio de ação no Brasil e no exterior, e nem
seria “movimento de cura divina” que, segundo Brandão, estaria no li-
miar do pentecostalismo (seriam igrejas pouco estruturadas) por possuir
base estável de fiéis e código doutrinário extremo, além de ser muito
bem estruturada administrativamente e financeiramente. Não poderia
ser classificada também como de “mediação”, já que foca nos dominados
ou nas classes de desprivilegiados. E não incentiva o estudo teológico,
mas chega a proibi-lo. Por fim, seria impossível tal classificação, pois
nem todas as igrejas de “pequenas seitas”, dissidentes das pentecostais
tradicionais, retornariam ao popular.
Alencar (2010) acredita que, hoje, há um “protestantismo con-
temporâneo”, com ênfase no mercado gospel, que impulsiona a evan-
gelização. Dentro desse modelo, que Alencar alega usar de forma di-
dática para explicar a evolução do protestantismo no Brasil, uma vez
que não existe consenso entre os pesquisadores sobre uma nomenclatura
que possa explicar o pentecostalismo em plenitude, o pentecostalismo
é o ator principal e está numa fase de modernização dos instrumentos
de evangelização. Esse “protestantismo moderno” data de 1953, ano do
lançamento da Cruzada Nacional de Evangelização, que tinha como
foco as curas espirituais em tendas, nas quais havia instrumentos musi-
cais como guitarras e baterias. Mais tarde, esse movimento deu origem
à “Igreja do Evangelho Quadrangular”. O protestantismo, representa-
do por igrejas de matriz pentecostal, estaria completamente atrelado à
cultura “profana” ou “secular”. O pentecostalismo deixa seu isolamento

Histórias, narrativas e religiões 261


da cultura mundana para assimilar todos os elementos culturais da so-
ciedade moderna capitalista. “E das tendas na década de 40 chegou-se
ao gospel hoje. Tudo é gospel: música, grifes, camisetas, bonés, sites,
grupos de dança, rock, funk, pagode, há de tudo para todos os gostos”
(ALENCAR, 2010, p. 49-50).
Alguns pesquisadores discordam da classificação em três ondas
pentecostais, mesmo assim usamos tal conceito já corrente na academia
para entender o pentecostalismo no Brasil. Para tanto, precisamos com-
preender as mudanças e os novos contrastes sociais, econômicos e políti-
cos pelos quais passou o Brasil nessas últimas décadas, que culminaram
em mudanças teológicas de visão de mundo. A divisão em ondas, retira-
das da física, foi proposta por Freston (1994) e reelaborada por Mariano
(2005)141. Em face da dificuldade em classificar as ondas pentecostais
no Brasil, assim como em criar nomenclaturas para elas, utilizamos,
aqui, a teoria das três ondas pentecostais (FRESTON, 1994) embasa-
da numa pesquisa histórico-sociológica acerca das mudanças teológicas
das igrejas pentecostais ao longo do século XX. Também utilizamos as
nomenclaturas cunhadas por Ricardo Mariano (2005), com exceção na
mudança de “neopentecostalismo” para “pós-pentecostalismo”.
Siepierski (2003) condena o conceito neopentecostalismo, usa-
do por Ricardo Mariano (2005), por não explicar de forma coerente a
terceira onda pentecostal surgida na década de 1970, pois, para ele, não
se trata de uma continuidade e, sim, de uma ruptura:

Se Mariano foi feliz ao classificar a segunda onda de pentecostalis-


mo neoclássico, o mesmo não acontece em relação à terceira onda,
pois ele aceita de forma não crítica o termo neopentecostal. Mesmo
reconhecendo que o termo tem sido empregado com imprecisão [...].
A inadequação do termo fica evidente quando o próprio Mariano

141  Mariano (2005) nomeia as três ondas pentecostais mediante a história e o contexto
do pentecostalismo no Brasil: Pentecostalismo clássico (primórdios do século XX),
Deuteropentecostalismo ou segundo pentecostalismo (metade do século XX) e, por fim,
Neopentecostalismo (final do século XX); contudo, até hoje essa nomenclatura não é
unanimidade entre os pesquisadores. Destacamos ainda a classificação de Paulo Donizéti
Siepierski (1997) sobre o pós-pentecostalismo como a melhor nomenclatura a ser utilizada
sobre o que corresponde à terceira onda, levando em conta mudanças de ordem social, política
e escatológica.
262 Histórias, narrativas e religiões
reconhece que, “enquanto as duas primeiras ondas não apresentam
diferenças teológicas significativas entre si, verifica-se justamente o
oposto quando se compara o neopentecostalismo às vertentes pen-
tecostais que o precederam”. Ora, se o neoclássico é o neo porque
não difere significativamente do clássico, por que neopentecostalis-
mo se ele difere sobremaneira do pentecostalismo que o precedeu?
Ademais, tradicionalmente, o prefixo neo tem sido relacionado com
continuidade e não com ruptura É por isso que, em outros lugares,
neopentecostalismo é utilizado para indicar uma renovação caris-
mática ocorrida no seio das denominações protestantes, pois ela não
diferiu significativamente do pentecostalismo anterior. Essa renova-
ção carismática também aconteceu na Igreja Católica, mas ali, como
não havia um pentecostalismo anterior, foi designado simplesmente
renovação carismática (SIEPIERSKI, 2003, p. 77-78).

Segundo Ricardo Bitun, há uma dificuldade na academia acer-


ca de uma terminologia para explicar a terceira onda pentecostal; in-
fluenciado pelos estudos de Dario Paulo Barrera Rivera, ele alerta para
uma lista de nomes, por exemplo, “pentecostalismo autônomo”, “iso-
pentecostalismo”, “pentecostalismo neoclássico”, “pós-pentecostalismo”,
“pentecostalismo crioulo”, “pentecostalismo mestiço”, “protestantismo
sincrético”, “ultrapentecostalismo” etc. (RIVERA apud BITUN, 2007).
Siepierski (2003) concorda com a teoria das três ondas pentecostais,
mas em lugar de neopentecostalismo utiliza “pós-pentecostalismo”. Na
visão do autor, essa terceira onda, surgida após a década de 1970, é con-
siderada uma nova estruturação em relação ao pentecostalismo clássico,
criado no início do século XX. A estrutura antiga do pentecostalismo se
rompeu e deu origem a uma nova estrutura flexível no mundo moderno.
Por essa flexibilização, deu-se a entrada da teologia da prosperidade,
engajamentos políticos e a proliferação de conteúdos religiosos em dife-
rentes meios de comunicação.

Assim, o pós-pentecostalismo é um afastamento do pentecostalis-


mo tendo como cerne a teologia da prosperidade e o conceito de
guerra espiritual. Tal afastamento só foi possível mediante a gradual
substituição do pré-milenarismo pelo pós-milenarismo. Os traços
característicos incluem uma mistura deliberada de religiosidade po-

Histórias, narrativas e religiões 263


pular, a utilização autoconsciente de estilos e convenções anterio-
res, a construção de estruturas comerciais, o abandono dos sinais
externos de santidade e, frequentemente, a incorporação de imagens
relacionadas com o consumismo e a comunicação de massa da so-
ciedade pós-industrial do final do século XX. Seu objetivo declarado
é estabelecer uma nova cristandade por meio da atividade política
(SIEPIERSKI, 2003, p. 79).

Devo esclarecer que não temos como classificar em definitivo o


pentecostalismo brasileiro, pois há um número grande de nomenclatu-
ras e de combinações ou variações possíveis. A cada nova “temporada”,
surgem novos pesquisadores com novas nomenclaturas acerca das de-
nominações pentecostais; entre os pesquisadores já houve várias discus-
sões acadêmicas “quentes” sobre qual é a melhor forma de denominar o
protestantismo de linha pentecostal no Brasil ao longo dos séculos XX e
XXI. Devo garantir que não há consenso; ainda hoje existem discussões
acaloradas entre pesquisadores experientes e iniciantes. A nomenclatura
de Mariano (2005) ainda é a mais utilizada na academia, portanto, não
há necessidade de comprarmos uma “briga” a fim de discutir que o cer-
to é a terminologia “pós-pentecostalismo” ou neopentecostalismo (ou
qualquer outra). Compreendemos apenas que a nomenclatura “neopen-
tecostalismo” não explique totalmente o fenômeno religioso “entrada da
igreja no mundo secular”, mas não podemos excluir a noção de que ela
abre espaço para nosso estudo.
Compreendemos que a secularização corroborou para uma
mudança nas instituições religiosas, no caso do neopentecostalismo, ou
melhor, do pós-pentecostalismo. Houve uma mudança marcada pelo fim
de práticas de ascese, fim do retiro do mundo, para uma aproximação às
seduções mundanas, ou seja, uma espécie de diálogo aberto com o mun-
do profano e com os desejos de bens terrestres (BINGEMER, 2013). É
importante recorrermos ao sociólogo alemão Max Weber (2014) a fim
de explicarmos a racionalização nesse campo religioso. No caso, as insti-
tuições religiosas pós-pentecostais assumiram um processo de raciona-
lização que corroborou para o desenvolvimento de aparatos burocráticos
visando o controle dos fiéis, de forma a institucionalizar os produtos

264 Histórias, narrativas e religiões


mágicos, o que propiciou a criação de aparatos para o acesso ao mundo
secular. Assim surgiu a entrada nas grandes mídias (canais e espaços na
TV), produção de bens religiosos via setores de publicidade e marke-
ting, e até a entrada na política contornar a burocracia para a construção
de megatemplos e criação de projetos que visassem o eleitorado cristão.
Tal ação propiciou o grande aumento de membros nessas igrejas nas
últimas décadas; assim, a racionalização, com seus instrumentos como
o capitalismo, forçou às igrejas uma “aceitação” da secularização como a
única forma de manter o controle dos membros e de atrair novos. A fim
de continuarem a produzir bens simbólicos, muitas dessas igrejas acaba-
ram por adentrar a um espaço profano, no intuito de produzir discursos
que tragam esperanças a uma sociedade sem valores cristãos, ou seja, que
tragam fiéis para seus quadros.

Conclusão

Isso posto, utilizaremos o termo “pós-pentecostalismo” de


Paulo D. Siepierski (1997; 2003) por ser este capaz de explicar de forma
coerente as mudanças teológicas e, principalmente, escatológicas pela
qual as igrejas pentecostais passaram, como brevemente explicamos aci-
ma. Para Mariano (2005), a primeira onda pentecostal tinha por carac-
terística os dons espirituais, especialmente, a glossolalia. Ela destaca-
-se como a origem do movimento pentecostal no Brasil, no início do
século XX, sob o nome de “Pentecostalismo clássico”. Foram duas as
igrejas que impulsionaram o pentecostalismo no Brasil. Primeiramente
a Congregação Cristã no Brasil, fundada em 1910, pelo italiano Luigi
Francescon, no bairro italiano do Brás, na capital paulista.
A Assembleia de Deus foi fundada em 1918, pelos missionários
suecos Daniel Berger e Gunnar Vingren, vindos dos Estados Unidos.
A igreja nasceu de uma dissidência da Igreja Batista, espalhou-se pelo
Norte, sobretudo pelos estados do Amazonas, mas não demorou a che-
gar ao Nordeste.
Histórias, narrativas e religiões 265
Já a “A segunda onda, dos anos 50, começa quando a urbani-
zação e a formação de uma sociedade de massas possibilitam um cresci-
mento pentecostal que rompe com as limitações dos modelos existentes,
especialmente em São Paulo” (FRESTON, 1994, p. 72). Em 1950, no
início da urbanização do país, surgiu a segunda onda, particularmente
voltada para as curas divinas pelo poder do Espírito Santo. Surgiram
três grandes denominações que alavancaram os pentecostais e fizeram
inúmeras conversões. Seguiam o pentecostalismo clássico, mas com al-
gumas diferenças nítidas:
A “Igreja do Evangelho Quadrangular” (1951), surgida da
Cruzada Nacional de Evangelização, cujo nome remete aos quatro pila-
res de sua fé: Cristo Salvador, Cristo Batizador, Cristo Médico e Cristo
Rei (o Rei que voltará). Tendo sido fundada nos EUA pela evangelista
canadense Aimee Semple McPherson, foi organizada no Brasil na cida-
de de São João da Boa vista (SP). Para a Quadrangular vieram trabalhar
outros pastores que fundariam novas igrejas pentecostais, como Manoel
de Mello19 e Robert McAllister (ROLIM, 1987).
A “Igreja Evangélica Pentecostal O Brasil para Cristo” (1956)
foi criada no bairro da Lapa em São Paulo, por Manoel de Mello, que já
havia trabalhado na Igreja Assembleia de Deus e na Igreja Quadrangular.
Por fim, destacamos a “Igreja Pentecostal Deus é Amor”, que
foi criada por Davi Miranda (1936-2015), originário do Paraná e filho
de agricultores.
Segundo Paul Freston (1994) a terceira onda pentecostal co-
meça no Brasil entre o fim dos anos 70 e começo dos anos 80, precisa-
mente, após o fim da modernização autoritária do país, em um momen-
to em que o milagre econômico estava extinto. “A onda começa, se firma
no Rio de Janeiro economicamente decadente, com sua violência, máfias
de jogo e política populista” (FRESTON, 1994, p. 72).
De meados da década de 1970 até os dias atuais, formaram-se
novas denominações no pentecostalismo: surgiu, então, a onda de maior
atividade econômica, política e corporativa, o pós-pentecostalismo. A
célula-mãe dessas denominações foi a Igreja Nova Vida, fundada por
Walter Robert McAllister, que pertencia ao pentecostalismo clássico

266 Histórias, narrativas e religiões


na Assembleia Pentecostal do Canadá. McAllister chegou ao Brasil
como missionário a serviço das Igrejas Assembleia de Deus (Brasil) e
Quadrangular (Brasil). O canadense criou uma nova igreja em 1960,
direcionou sua teologia a um público-alvo de classe média e investiu
muito forte em evangelização pela mídia. Foi a primeira igreja pentecos-
tal a adotar o episcopado no Brasil, tornando-se Bispo o próprio Walter
Robert McAllister. A igreja tratou de oferecer produtos religiosos ao
campo religioso pentecostal brasileiro, como cura física e a libertação es-
piritual. A igreja germinou em solo brasileiro, sendo que alguns de seus
frutos são pastores e líderes como Edir Macedo, Romildo R. Soares,
Miguel Ângelo e, posteriormente, o Apóstolo Valdemiro Santiago.
O movimento pós-pentecostal é caracterizado pela expulsão de
demônios e pela mensagem de prosperidade aos fiéis. O enriquecimento
dos pastores e fundadores, que é raiz de muitas inquietações na socieda-
de, é justificado por eles mesmos como um direito à prosperidade, assim
como é concedido aos membros.

A teologia da prosperidade não teve origem dentro do pentecostalis-


mo, mas é um produto da relação dialética entre este e o movimento
conhecido como confissão positiva. Os grandes arautos dessa síntese
são Kenneth Hagin e W. Kenyon. Eles conjugaram o pressupos-
to de que se o fiel não duvidar em seus pedidos será atendido por
Deus com a noção de que a mente humana pode controlar a esfera
espiritual, que, por sua vez, determina a realidade material. A síntese
se completou com a injunção do conceito de redenção por meio de
Cristo. O produto final é que os benefícios da redenção (saúde e
prosperidade) podem ser reivindicados pelo fiel através do uso corre-
to da mente (confissão sem dúvida). A principal alteração teológica
consiste em aplicar a obra redentora de Cristo às maldições da lei
mosaica, principalmente a doença e a pobreza, e não à queda de
Adão. Concomitantemente, a redenção traz a bênção de Abraão, ou
seja, a prosperidade financeira. (SIEPIERSKI, 1997, p. 52-53)

Os pós-pentecostais acreditam que a prosperidade faz parte da


vida do cristão, ou seja, é um ato de fé acreditar numa, digamos, prospe-
ridade divina como uma concessão de bênção ao cristão virtuoso.
Histórias, narrativas e religiões 267
As igrejas pós-pentecostais bem sucedidas são a Igreja Universal
do Reino de Deus (IURD, fundada em 1977), “Igreja Sara Nossa Terra”
(1992), “Igreja Internacional da Graça de Deus” (1980), “Igreja Renascer
em Cristo” (1986), “Igreja Bola de Neve” (2000) e, mais recentemente, a
IMPD (1998) dentre outras – às vezes, dissidentes daquelas antigas ou
mesmo das mais recentes, como foi o caso da “Igreja Mundial Renovada”
(2010), que já não existe mais com este nome (passou primeiramente a
“Fé Renovada em Cristo” e, atualmente, a “Igreja Cristã Renovada”) e a
“Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus” (2006).
Portanto as igrejas pentecostais clássicas tinham um caráter
pré-milenarista, mas com a redemocratização do país no final da década
de 1980, tais igrejas aderiram a um novo discurso e a uma aproximação
do espaço profano (mundo da política). Portanto, tais religiosos, que
acreditavam estar em um espaço sagrado onde poderiam comunicar-se
com o transcendente sem interrupção, agora, acreditam que é necessária
a conquista do espaço profano (política), onde devem aprender a comu-
nicar-se com o sagrado.
Diante dessa problemática, discutismo a opção por uma nova
tipologia a fim de classificar de uma forma melhor, contudo não exata, os
neopentecostais como “pós-pentecostais”. Ou seja, algumas igrejas esta-
riam distantes da visão de afastamento da política e da mídia e, assim,
prestes a implantar o Reino de Deus antes da aguardada volta de Cristo
– antes caraterística marcante dos pentecostais clássicos. Surgindo um
novo tipo de pentecostalismo, como sugere Paulo Siepierski (1997).

Referências

ALENCAR, Gedeon F. Protestantismo tupiniquim: hipóteses sobre a (não) contribuição à cultura


brasileira. 3 ed. São Paulo: Arte Editorial, 2010.

BITUN, Ricardo. Igreja Mundial do Poder de Deus: rupturas e continuidades no campo re-
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Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_ac-
tion=&co_obra=83295. Acesso em: 15 ago. 2015.

268 Histórias, narrativas e religiões


BINGEMER, Maria Clara L. O mistério e o mundo: paixão por Deus em tempos de descrença. Rio
de Janeiro: Rocco, 2013.

CAMPOS, Leonildo Silveira. As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro: ob-


servações sobre uma relação ainda pouco avaliada. Revista USP, v. 67, p. 100-115, set-nov. 2005.

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MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2 ed. São


Paulo: Loyola, 2005.

ROLIM, Francisco Cartaxo. O que é pentecostalismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SIEPIERSKI, Paulo D. Contribuições para uma tipologia do pentecostalismo brasileiro. In:


GUERRIERO, Silas (Org.). O estudo das religiões: desafios contemporâneos. São Paulo: Pauli-
nas, 2003, p. 71-88.

__________. Pós-pentecostalismo e política no Brasil. Estudos Teológicos, v. 37, n. 1, p. 47-61, 1997.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (v. 1). 4 ed.
Brasília: Ed. UnB, 2014.

Histórias, narrativas e religiões 269


Simpósio Temático 3 – Mídia e Religião

Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Karina Kosicki Bellotti (UFPR)
Prof.ª Dtrnda. Sara Cristina de Souza (UNICAMP)

Este simpósio temático pretende discutir, na perspectiva da


História Cultural das Religiões, a relação entre mídia e religião na
construção de novos espaços e significados do religioso na contempo-
raneidade. Interessa-nos, em especial, os trabalhos que não considerem
a mídia - secular ou religiosa - simplesmente um “meio de transmissão”
de valores e interpretações elaborados em instituições e templos, mas
sim como um espaço próprio de produção de significados e vivências
religiosas. Nesse sentido, numa relação de mediação religiosa e cultural,
a mídia como objeto de estudo se insere na história como um espaço
privilegiado de produção de religiosidades, identidades e alteridades.
Assim, convidamos os historiadores que pesquisam mídias de diversas
naturezas (impressa, audiovisual, digital) a apresentarem seus trabalhos,
especialmente àqueles que discutem a relação entre religiões e mídia no
período contemporâneo (séculos XIX a XXI).

270 Histórias, narrativas e religiões


Comunicações – Simpósio Temático 3

Histórias, narrativas e religiões 271


A Bruxa:
um diálogo entre o terror e a religião

Flávia Santos Arielo (UNESP Bauru)


Renan Siqueira Rossini (UNESP Bauru)

Resumo: A Bruxa (2015, Robert Eggers) pode ser encarado como um


filme clássico de terror, tendo em conta seus mais ordinários componen-
tes: o susto, a ambientação, a trilha sonora pertinente, os personagens
fantásticos... O enredo gira em torno de uma família inglesa de puri-
tanos do século XVII que foi expulsa da comunidade em que habita-
vam na Nova Inglaterra. A partir do momento que passam a viver no
isolamento social e religioso daquele lugar, acontecimentos estranhos
assombram a família, formada pelo casal e seus cinco filhos. Os fato-
res de destaque do filme para a análise da história das religiões partirá,
fundamentalmente, da visão religiosa ali expressa, que se aproxima da
corrente gnóstica – uma linha do cristianismo primitivo, cuja base fun-
dante é a crença na maldade divina ou na natureza como algo maléfico.
Endossa essa visão o silêncio de Deus ao longo do filme: os personagens
estão em Sua constante busca, mas Ele não os responde em momento
algum. A preocupação documental apontada pelo diretor para compor
o enredo leva em conta a visão da época no que diz respeito às bruxas,
que era inclusive propagada pela religião dominante: velhas deformadas,
que dançam nuas e fazem pacto com o Diabo. Partindo desse ponto, o
cinema pode ser encarado de forma midiática, mas também de forma
histórica e filosófica, já que se trata de construção de narrativas e de
sentido para o Homem. Analisar um filme é também fazer uma análise
documental, sendo, portanto, pertinente fazer a aproximação religiosa
no referido filme.

272 Histórias, narrativas e religiões


Espaço, lugar e crença: possibilidades
para pensar o cinema como objeto de
estudo da história das religiões

Rafaela Arienti Barbieri (UEM/CAPES)

Resumo: Este trabalho tem por objetivo problematizar as noções de


“crença”, “espaço” e “lugar” em diálogo com a produção cinematográfi-
ca O bebê de Rosemary. O filme, do gênero de terror lançado em 1968
sob a direção de Roman Polanski, narra a vinda do filho de Satã pela
concepção da mortal Rosemary Woodhouse (Mia Farrow). O filme foi
produzido nos Estados Unidos da década de 1960, período marcado
por novas formas de crença que fogem ao controle institucional. Cabe
aqui questionar se, no contexto histórico de produção do filme, o cinema
seria um espaço ou um lugar de crença, não deixando de lado as distin-
ções entre o “público” e o “privado” amplamente articuladas no filme e
sempre em diálogo com o enredo de ações da seita da qual fazem parte
os personagens Minnie e Roman Castevet. Em prol de tais discussões
utiliza-se Carlo Prandi (1997), Danièle Hervieu-Lègèr (2008), Hans
Belting (2014), Michel de Certeau (1998, 2002), Mircea Eliade (1972,
1992, 2010), Nöel Carroll (1999), Pierre Mayol (2002) e Yi-fu Tuan
(1983, 2005).

Palavras-chave: cinema, espaço, crença

Introdução

A necessidade de uma discussão teórica que problematize os


conceitos de “espaço” e “lugar” vai ao encontro de uma perspectiva que

Histórias, narrativas e religiões 273


os percebe enquanto partes fundamentais na construção do sentido dos
indivíduos em uma dada realidade, a qual é historicamente construída.
São conceitos que são pensados de formas diferenciadas pelos
autores da obra de Michel de Certeau (1998, 2002) em A invenção do
cotidiano: morar, cozinhar, e por Yi-fu Tuan (1983, 2005), por exemplo,
dado suas áreas do conhecimento específicas e com metodologias dis-
tintas de aplicação. Certeau possui formação em filosofia, letas clássi-
cas, história e teologia, sendo que ingressou na Companhia de Jesus em
1950 e ordenado sacerdote em 1956 passando a viver como jesuíta.
Por sua vez, Tuan pertence a área da Geografia, propondo em
sua obra uma nova abordagem das percepções de “espaço” e “lugar” que
não limitam-se apenas a uma delimitação de espaço físico ou geográfico;
o autor os pensa partindo da perspectiva da experiência. Cabe aqui tam-
bém inserir a discussão efetuada por Marc Augé (2000) a respeito dos
“não lugares”. Augé é um etnólogo francês diretor de pesquisas da École
des Hautes Études en Sciences Sociales, o qual propõe pensar a passagem
dos lugares à não-lugares.
A fonte de problematização da qual parte a discussão aqui
proposta é a produção cinematográfica O bebê de Rosemary, adaptação
do romance de Ira Levin dirigido por Roman Polanski e lançado pela
Paramount em 1968. A partir de tal narrativa é possível perceber por-
ções de espaço físico que podem ser pensadas a partir dos conceitos de
“espaço” e “lugar”. Porém, as análises de tais autores conduzem a resulta-
dos diferentes, daí a necessidade de uma discussão que pode conduzir a
própria compreensão do cinema enquanto um “espaço” ou “lugar”.

Espaços e lugares a partir da narrativa de O bebê de


Rosemary

A análise presente na obra de Certeau efetuada também por


Pierre Mayol (2002) e Luce Giard (2002) parte para a distinção de “es-
paços privados”, “espaços públicos” e seu entremeio, o “bairro”, os quais
274 Histórias, narrativas e religiões
estão intimamente relacionados à uma discussão sobre o cotidiano, mar-
cado por códigos de conveniências e por uma busca de benefícios sim-
bólicos adquiridos com base nos diálogos de convivência. São espaços
que respeitam fronteiras e definem-se tanto por suas características fí-
sicas e espaciais quanto pelas crenças e ideais religiosos de uma de uma
determinada realidade.
Pensar “espaço” a partir de certeau é pensar também o cotidia-
no. Para o autor o cotidiano é

Aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos
pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do pre-
sente. Todo dia, pela manhã, aquilo que assumimos, ao despertar,
é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou outra
condição, com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo
que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história
a meio-caminho de nós mesmo, quase em retirada, às vezes velada.
(CERTEAU, 2002, p. 31)

Esse cotidiano é marcado por espaços públicos e privados, e


também pelo entremeio dessas duas instâncias onde pode-se localizar
o bairro, como já problematizou Mayol. Muitas das observações do au-
tor sobre o bairro podem ser visualizadas no Bramford (originalmente
Dakota, construído em 1984) local onde desenvolve-se a narrativa do
filme, um grande edifício residencial localizado em Nova York.
Cabe destacar aqui o quão grande é o edifício, bem como sua
quantidade de habitantes e apartamentos. Lembrando que a maior par-
te dos apartamentos de Nova York possui no máximo 2m de altura, os
65 apartamentos do Dakota (Bramford no filme) são todos diferentes
e o tamanho varia de 4 a 20 aposentos para cada um, sendo que os
tetos são todos 4,3m de altura142. O edifício conta com aquecimento
central, aposentos para os empregados, jardins, quadras de tênis, campo
de croquet privado e até mesmo uma pequena estação elétrica que gera
energia para todo o prédio143.

142  Disponível: http://artearquiteturany.com/uma-volta-no-tempo-dakota-building Acesso:


23/04/2015
143  Disponível: http://blogdaeternit.com.br/construcao-civil/predio-dakota-um-marco-para-
Histórias, narrativas e religiões 275
Apesar do Bramford do filme não mostrar esses tantos lugares
para “atender suas necessidades cotidianas”, como Mayol caracteriza o
bairro, a rede de relações que se desenvolve em seu interior também
“leva o usuário a se manter como que ‘na defesa’, no interior de códigos
sociais precisos, todos centrados em torno do fato do reconhecimento,
nesta espécie de coletividade indecisa [...] que é o bairro” (MAYOL,
2002, p. 46)
Cabe lembrar que Mayol aborda a possibilidade de se apreen-
der o bairro como uma porção do espaço público em geral em que se
insinua gradativamente um espaço privado particularizado pelo fato do
uso quase cotidiano desse espaço144, ele é a privatização progressiva do
espaço público145, o que pode levar a compreender que o espaço público
do Bramford pode tornar-se privado se o ponto de referência para sua
análise for modificado para algo mais abrangente. Dessa forma, esses
espaços, partindo do autor, são dinâmicos e não estáticos.
É necessário enfatizar que a percepção desses espaços na narra-
tiva em questão é condicionada, em boa parte, pela perspectiva da perso-
nagem Rosemary, uma vez que a câmera e a história partem da visão de
tal personagem. O filme é quase inteiro em primeira pessoa. O público
vê o que Rosemary vê e, se não, ele está vendo a própria Rosemary, a
mortal escolhida para dar à luz ao filho de Satã.
Dessa forma, é possível perceber dois espaços privados no início
da narrativa: o apartamento do casal Castevet e o apartamento do casal
Woodhouse, sendo que o segundo acabou de mudar-se para o edifí-
cio. O filme caracteriza de diversas formas a residência dos Woodhouse,
aquilo que os personagens procuram tornar privado no início da nar-
rativa. Conforme o casal se estabelece no apartamento, procura fazer
dele o lar de suas expectativas e de suas características mais íntimas, o
que pode ser notado ainda nos 8 minutos de filme, na cena na qual o
casal faz amor, depois de jantar, no chão de um dos cômodos ainda não
montados de seu apartamento, com caixas ao redor, e apenas sob a luz de
uma luminária alta e ao som do tráfego da cidade noturna de Nova York.

a-arquitetura-e-construcao/ Acesso: 23/04/2014


144  MAYOL, 2002, p. 40
145  MAYOL, 2002, p. 42
276 Histórias, narrativas e religiões
Imagem 01: Rosemary e Guy Woodhouse momentos antes de fazerem amor na
sala de estar ainda sem móveis. Disponível: https://loslibrosdedanae.blogspot.com.
br/2014/06/la-semilla-del-diablo-ira-levin.html Acesso: 18/05/2017

Sua residência é o local onde a personagem Rosemary tem a


liberdade de decorar da forma que quiser, da maneira com a qual se
identifica. Ela manda pintar as paredes de cores claras, coloca cortinas
de tons claros, e sofás na sala de estar, participando ativamente da mon-
tagem de seu lar com a liberdade de uma calça clara, uma larga camiseta
listrada e com um lenço azul escuro na cabeça impedindo que seu cabelo
atrapalhe. A música ao fundo sugere que a personagem está feliz por
fazer daquele o seu cotidiano.
É no espaço privado que

Os corpos se levantam, se embelezam, se perfumam, tem tempo para


viver e sonhar. Aqui as pessoas se estreitam, se abraçam e depois se
separam. Aqui o corpo doente encontra refúgio e cuidados, proviso-
riamente dispensado de suas obrigações de trabalho e de representa-
ção no cenário social. Aqui o costume permite passar o tempo “sem
fazer nada”, mesmo sabendo que “sempre há alguma coisa a fazer em
casa”. (CERTEAU; GIARD, 2002, p. 207)

Histórias, narrativas e religiões 277


O espaço privado dos Castevet na realidade é pouco mostrado
em suas características mais especificas, uma vez que a narrativa é cons-
truída com base na perspectiva de Rosemary. É possível afirmar que,
partindo da existência da seita, é no apartamento dos Castevet que são
realizadas alguns rituais, uma vez que Rosemary escuta pela divisória de
sua parede, cantorias em uma língua desconhecida. Talvez também se
possa afirmar que é na residência dos Castevet que o ritual com Satã e
Rosemary é efetuado, uma vez que algumas semelhanças entre o local
do “sonho” e a sala de estar do casal de idosos podem ser notadas.
Após os contatos entre os espaços públicos e privados na nar-
rativa, sua configuração acaba por modificar-se, e o que era privado para
Rosemary, passa a ser público para os integrantes da seita pois seu mari-
do passa a fazer parte dela. Ela já não se sente segura dentro da própria
residência. Nesse sentido,

[...] o espaço privado deve saber abrir-se a fluxos de pessoas que


entram e saem, ser o lugar de passagem de uma circulação contínua,
onde se cruza, objetos, pessoas, palavras e ideias. Pois a vida também
é mobilidade, impaciência por mudança, relação com um plural do
outro” (CERTEAU; GIARD, 2002, p. 207)

Por sua vez, Tuan não realiza uma divisão entre os espaços pú-
blicos e privados, mas sim entre “espaços” e “lugares”. O autor, ao re-
pensar tais conceitos sob a ótica da experiência, não trata tais definições
enquanto estáticas na medida em que são históricas, assim como depen-
dem do referencial cultural estudado.
A intenção do autor não é “escrever um manual sobre a influência
das culturas nas atitudes humanas em relação a espaço e lugar” (TUAN,
1983, p. 06), mas sim pensa-los a partir da experiência. Para Tuan

Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através


das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas manei-
ras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato,
paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira indireta de
simbolização. (TUAN, 1983, p. 09)

278 Histórias, narrativas e religiões


É a partir desse pensamento que o autor argumenta que a per-
cepção de um espaço está em diálogo com a experiência através dos
sentidos, não deixando de lado as emoções e sentimentos já que tais
também constituem a experiência. Na visão do autor “o próprio som
pode evocar impressões espaciais. Os estrondos do trovão são volumo-
sos; o estrídulo do giz no quadro negro é “comprimido” e fino” (TUAN,
1983, p. 17)
Ainda assim,

A dependência visual do homem para organizar o espaço não tem


igual. Os outros sentidos ampliam e enriquecem o espaço visual.
Assim, o som aumenta a nossa consciência incluindo áreas que estão
atrás de nossa cabeça e não podem ser vistas. (TUAN, 1983, p. 19)

É nesse caminho de análise que Tuan procura pensar o “espaço”


e o “lugar”, “termos familiares que indicam experiências em comum”
(TUAN, 1983, p. 03). Para Tuan

O lugar é segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao pri-


meiro e desejamos o outro. Não há lugar como o lar. O que é lar? E
a velha casa, o velho bairro, a velha cidade ou a pátria. Os geógrafos
estudam os lugares. Os planejadores gostam de evocar “um sentido
de lugar”. Estas são expressões comuns. Tempo e lugar são com-
ponentes básicos do mundo vivo, nós os admitimos como certos.
(TUAN, 1983, p. 03)

Da mesma forma que os espaços púbicos e privados são dinâ-


micos para o pensamento de Ceteau, os lugares e espaços também o são
na perspectiva de Tuan A partir da leitura do autor é possível compre-
ender que o “espaço” é algo mais abstrato do que um “lugar”, sendo que
a medida que tal espaço é conhecido de forma mais aprofundada e lhe
é atribuído valor, pode vir a transformar-se em um “lugar”. O lugar é
uma pausa no movimento, não esquecendo que tais ideias, de espaço e
lugar, não podem ser definidas uma sem a outra, “a partir da segurança
e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da
ameaça do espaço, e vice-versa”. (TUAN, 1983, p. 06)

Histórias, narrativas e religiões 279


O edifício bramford, nessa perspectiva, ainda é um espaço no
início do filme, e conforme Rosemary e Guy se estabelecem, criam uma
relação mais intima com o apartamento, ele passa a ser um lugar. O “lu-
gar é uma pausa no movimento. Os animais, incluindo seres humanos,
descansam em uma localidade porque ela atende a certas necessidades
biológicas. A pausa permite que uma localidade se torne um centro de
reconhecido valor” (TUAN, 1983, p. 153)
Pensando no que seriam os espaços privados e públicos nas
reflexões de Certeau, Mayol e Giard, os privados corresponderiam ao
“lugar” articulado por Tuan, pois tais estariam vinculados então à uma
relação mais íntima entre os indivíduos que ali residem. No caso do
apartamento dos Castevet é possível visualizar um “lugar”, na medida
em que a narrativa dá a entender que o casal vive ali há um tempo con-
siderável, e as relações que o permeiam já estão consolidadas e possuem
um sentido próprio.
Porém, partindo da perspectiva de Tuan, o apartamento do ca-
sal Woodhouse talvez não possa ser compreendido enquanto um lugar
pois o casal é recém chegado no edifício e naquele espaço até então
desconhecido. O processo de fixação e compreensão daquele espaço
enquanto uma casa, assim como o desenvolvimento de relações com o
mesmo que o transformem em um “lugar” pode ser algo demorado.
Na narrativa cinematográfica em questão, o casal Woodhouse,
quando aparenta ter criado uma relação mais intima com o espaço de
seu apartamento, é praticamente “invadido” pelas ações da seita. A per-
sonagem Rosemary não sabe da existência de tal grupo até a situação
complicar-se a tal ponto que ela já está nos últimos meses da gravidez
do anticristo. Dessa forma, a personagem nunca chega a sentir-se a von-
tade no próprio espaço que passou a chamar de lar.
Pensando que o filme em questão faz parte da denominada
“trilogia dos apartamentos” de Roman Polanski, que também conta com
Repulsa ao Sexo (1965) e O inquilino (1976), é possível realizar um diálogo
com a discussão feita por Tuan a respeito do Apinhamento. Os filmes des-
sa trilogia de Polanski são marcados fundamentalmente pelo enredo com
poucos personagens e pelo terror e isolamento dentro de grandes centros

280 Histórias, narrativas e religiões


urbanos, onde a trama desenvolve-se por meio de personagens que sen-
tem-se enclausurados, confinados, dentro de suas próprias residências.
De acordo com Tuan,

Apinhamento é saber-se observado. Numa cidade pequena, as pes-


soas se “espiam” mutuamente. “Espiar” tem tanto o bom sentido de
preocupação como o mau sentido de fútil – e talvez de malévola –
curiosidade. As casas têm olhos. Quando são construídas próximas
umas das outras, ouvem-se ruídos dos vizinhos e as suas preocupa-
ções. Quando são construídas distantes umas das outras, a privacida-
de é mais bem preservada – mas não garantida. (TUAN, 1983, p. 69)

O diálogo em questão é possível uma vez que se identificam,


ao longo da narrativa, momentos em que após o casal Woodhouse ins-
talou-se no apartamento, ele é, por vezes, “invadido” por outros persona-
gens, gerando uma sensação de insegurança. É possível lembrar aqui do
momento em que Tuan argumenta que

Um exemplo exagerado de como os outros podem afetar a escala de


nosso mundo. Imagine um homem tímido estudando piano no can-
to de um salão. Alguém entra para olhar. Imediatamente o pianista
sente restrição espacial. Mesmo uma só pessoa a mais pode parecer
uma multidão. Sob o olhar de outrem, o pianista deixa de ser o único
sujeito dominando o espaço, e passa a ser um objeto entre muitos no
quarto. (TUAN, 1983, p. 67)

Tal restrição é visualizada na narrativa no momento em que


Minnie Castevet, juntamente com sua amiga Laura-Louise, pratica-
mente “invadem” o apartamento de Rosemary no primeiro dia do seu
ciclo menstrual. Rosemary está visivelmente perturbada com a pre-
sença das duas personagens que, sem pedir permissão, sentam no seu
sofá, dão “pitacos” em relação aos móveis e inclusive em relação à vida
e situação de Rosemary, aparentando ser justamente uma “multidão”
que gera incômodo.

Histórias, narrativas e religiões 281


Imagem 02: apartamento do casal Woodhouse sendo “invadido” pelas personagens
Laura-Louise e Minnie Castevet. Disponível: ROSEMARY’S BABY (O Bebê
de Rosemary). Direção de Roman Polanski. Roteiro de Roman Polanski. USA.
Produzido por William Castle e Paramount Pictures. Dist. Paramount Pictures.
1968, 1 disco (2h 22 min.) DVD

Outro momento de restrição é percebido enquanto um pro-


cesso no qual Rosemary já não se sente segura dentro de sua própria
casa. O filme deixa margem para tal elemento ser interpretado inclusive
enquanto uma espécie de paranoia. A personagem se sente perseguida,
observada dentro do seu lugar privado, o que se faz verdadeiro quan-
do seus vizinhos têm acesso a uma entrada alternativa do apartamento
quando as demais portas estão trancadas.
Além dessa sensação de “invasão”, ainda é possível perceber,
assim como Tuan argumenta, que o apinhamento não necessariamente
garante a ausência de solidão. Rosemary, dentro de seu casamento e de
seu apartamento no centro da cidade, ainda aparenta inúmeras vezes
sentir-se solitária. Uma cena mostra a personagem dando um abraço
caloroso em seu marido que acabou de chegar do trabalho, porém não é
correspondida da mesma forma, apenas com tapinhas leves nas costas.
Cabe também lembrar a cena durante o jantar que Rosemary
oferece aos seus amigos em sua residência. A personagem, cercada por
282 Histórias, narrativas e religiões
inúmeros amigos, está abatida pela dor proveniente da gravidez, a qual
é basicamente ignorada por seu marido. Em meio à festa, Rosemary, na
cozinha, desfaz-se em lágrimas apoiada por algumas amigas, as quais
garantem que Guy não entre no recinto enquanto o grupo toma consci-
ência das dores contínuas de sua amiga.

Imagem 03: Rosemary sendo acolhida por seus convidados. Disponível em:
ROSEMARY’S BABY (O Bebê de Rosemary). Direção de Roman Polanski.
Roteiro de Roman Polanski. USA. Produzido por William Castle e Paramount
Pictures. Dist. Paramount Pictures. 1968, 1 disco (2h 22 min.) DVD

É possível perceber, portanto, que a percepção de Certeau e de


Tuan podem aproximar-se ou distanciar-se em alguns elementos espe-
cíficos. Porém, ao longo das leituras torna-se perceptível a dificuldade de
compreensão do cinema enquanto “espaço” ou “lugar”.
Tendo em mente essas noções de “espaço” e “lugar”, ainda é
possível problematizar o local do cinema. Porém, tais conceitos aparen-
tam não ser suficientes para pensa-lo, sendo que um mais adequando
seria o conceito de “não lugar”, articulado por Marc Augé (2000). Para o
autor “si un lugar puede definirse como lugar de identidad, relacional e

Histórias, narrativas e religiões 283


histórico, un espacio que no puede definirse ni como espacio de identi-
dad ni como relacional ni como histórico, definirá un no lugar” (AUGÉ,
2000, p. 83)
Na perspectiva do autor, a “sobremodernidad” é produtora de
não lugares, de espaços que não são nem “lugares antropológicos” e nem
integram os lugares antigos, catalogados, classificados e promovidos en-
quanto “lugares de memória”.

Un mundo donde se nace en la clínica y donde se muere en el hos-


pital, donde se multiplican, en modalidades lujosas o inhumanas, los
puntos de tránsito y las ocupaciones provisionales (las cadenas de
hoteles y las habitaciones ocupadas ilegalmente, los clubes de vaca-
ciones, los campos de refugiados, las barracas miserables destinadas
a desaparecer o a degradarse progresivamente), donde se desarrolla
una apretada red de medios de transporte que son también espacios
habitados, donde el habitué de los supermercados, de los distribui-
dores automáticos y de las tarjetas de crédito renueva con los gestos
del comercio “de oficio mudo”, un mundo así prometido a la indivi-
dualidad solitaria, a lo provisional y a lo efímero, al pasaje, propone al
antropólogo y también a los demás un objeto nuevo cuyas dimensio-
nes inéditas conviene medir antes de preguntarse desde qué punto
de vista se lo puede juzgar. (AUGÉ, 2000, p. 83-84)

A partir do autor, é possível compreender que o não-lugar exis-


te da mesma forma que um lugar, sendo que os dois não são extremos
opostos, porém é ali que os lugares se recompõem, que as relações se
reconstituem. Enquanto exemplos de não lugares o autor cita as vias aé-
reas, ferroviárias, meios de transporte, aeroportos e estações ferroviárias.
O cinema pode ser pensado enquanto um não lugar na medi-
da em que ele é um local de passagem de inúmeras pessoas, que criam
relação e proximidade com o filme exibido, assim como também podem
relacionar-se com as pessoas ao seu redor. O cinema aparenta ser um
lugar apenas durante a sessão de um filme, momento onde a proximida-
de com os indivíduos e com a produção cinematográfica é maior. Após
isso, ele volta a ser marcado pelo trânsito, retornando às características
de um não lugar.

284 Histórias, narrativas e religiões


O objetivo deste artigo, portanto, foi apresentar propostas para
a problematização dos conceitos de “espaço” e “lugar”, procurando pen-
sa-los não apenas enquanto porções de espaço físico, mas sim enquanto
construções fortemente vinculadas às experiências de determinados in-
divíduos, os quais interagem com tais espaços e lugares e lhes atribuem
diferentes sentidos.

Referências

AUGÉ, Marc. Los no lugares: espacios del anonimato, una antropología de la sobremoderni-
dad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2000

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2002

CERTEAU, Michel de. GIARD, Luce. Entremeio. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do
cotidiano 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 200

MAYOL, Pierre. Morar. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 2: morar, cozi-
nhar. Petrópolis: Vozes, 200

ROSEMARY’S BABY (O Bebê de Rosemary). Direção de Roman Polanski. Roteiro de Ro-


man Polanski. USA. Produzido por William Castle e Paramount Pictures. Dist. Paramount
Pictures. 1968, 1 disco (2h 22 min.) DVD.

TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. SP: DIFEL, 1983.

Histórias, narrativas e religiões 285


“O maior líder que já existiu” – as
figuras de Jesus na mídia de autoajuda
(1980-2010)

Karina Kosicki Bellotti (UFPR)

Resumo: O trabalho versa sobre os livros de liderança baseados na figu-


ra de Jesus Cristo, escritos por autores norte-americanos, com tradução
para o público brasileiro. Nossa abordagem segue a análise das relações
entre religião e mídia, utilizando uma perspectiva histórica do desen-
volvimento da literatura de liderança secular e religiosa ao longo do
século XX, junto com os recursos de mídia e de serviços que têm acom-
panhado esta literatura. A partir de uma revisão histórica e bibliográfica
sobre a literatura de liderança e suas relações com determinados valores
espirituais, morais e mitológicos da sociedade capitalista ocidental no
século XX, analisamos quais representações de Jesus Cristo são tomadas
neste tipo de produção. A literatura reforça uma narrativa advinda da
literatura secular de liderança, com objetivo de confortar seus leitores
com a possibilidade de exercer uma influência positiva sobre as pessoas
a partir de um modelo considerado inquestionável de bondade e retidão,
ao mesmo tempo em que prescreve conselhos para atingir a excelência
no mundo capitalista.

286 Histórias, narrativas e religiões


“Entre a religião e a lavagem cerebral”:
táticas e estratégias entre a mídia e o
movimento Hare Krishna (1973-1985)

Leon Adan Gutierrez de Carvalho (UFRPE)

Resumo: A Sociedade Internacional para Consciência de Krishna


(ISKCON) foi fundada em 1966, nos Estados Unidos, pelo guru india-
no Bhaktivedanta Swami Prabhupada. Tendo se expandido pelo mundo,
o movimento Hare Krishna (como ficou mais conhecida a ISKCON)
chegou ao Brasil em 1973, despertando a atenção da mídia para este e
outros novos movimentos religiosos que despontavam no campo reli-
gioso brasileiro. Diversas representações deslegitimadoras sobre o Hare
Krishna passaram a ser veiculadas pelos grandes veículos de comunica-
ção fazendo com que o movimento passasse a criar diferentes maneiras
de atuação para continuar com suas atividades diante desse cenário. No
presente trabalho, iremos analisar algumas dessas táticas utilizadas pelo
movimento Hare Krishna diante das representações veiculadas pela mí-
dia, entre 1973 e 1985. Para tanto, guiamo-nos pela análise teórica rea-
lizada por Michel de Certeau, em A invenção do Cotidiano. Pudemos
constatar que as maneiras de lidar do movimento com as questões des-
legitimadoras foram táticas já que boa parte da mídia nesse período
parecia desenvolver um tipo de estratégia para frear o crescimento dos
novos movimentos religiosos no país.

Histórias, narrativas e religiões 287


O fiel empreendedor iurdiano – uma
ferramenta de marketing

Sarita dos Santos Carvalho (PUCCAMP/CAPES)

Resumo: As igrejas pentecostais têm como parte integrante


de suas liturgias de culto a participação dos fiéis na forma de testemu-
nho. Igrejas neopentecostais televisivas e, mais especificamente, a Igreja
Universal do Reino de Deus, que é foco de nossa pesquisa, valorizam o
momento do testemunho que, dependendo da intensidade e conteúdo, é
especialmente produzido e reproduzido nos seus programas de TV, site
e redes sociais virtuais. Qual seria, então, o peso desses testemunhos de
fiéis para o público que os assiste, principalmente ao conclamarem seus
expectadores à participação e adesão à igreja? Com base nesta pergunta,
tomamos como objeto os testemunhos de fiéis iurdianos participantes
dos Congressos para o Sucesso (reuniões que acontecem regularmente,
todas as segundas-feiras, no Templo de Salomão, sede da Igreja em São
Paulo). Por meio da Análise do Discurso linguístico, analisamos os tes-
temunhos destes fiéis (disponíveis no canal Youtube e no site oficial da
Igreja), relacionando-os aos métodos da propaganda testemunhal, ferra-
menta muito utilizada no meio midiático atual. Propaganda institucio-
nal religiosa, produção televisiva, marketing religioso e desejo de ascen-
são econômica são elementos considerados na pesquisa que pretende re-
lacionar a religiosidade secularizada à busca da sociedade por segurança
financeira. Encontramos uma religiosidade que desobriga o participante
de um compromisso comunitário transformador social, mas que oferece
ao fiel empreendedor e sua família o produto da satisfação temporária
da ascensão social e do prazer no consumo de bens e serviços.

Palavras-chave: testemunho religioso; IURD; marketing religioso.

288 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

O testemunho é uma ferramenta de expressão. Muito antes de


expressar uma verdade sobre determinado fato, é um meio pelo qual um
indivíduo externa seus pensamentos construídos ao redor de uma his-
tória pessoal, delimitada por um fato ou fatos da realidade, situação na
qual o falante, a testemunha, faz-se ator da sua própria narração. Assim,
o testemunho de uma pessoa carrega a ideia da defesa de uma verdade,
porque é o próprio participante do fato quem relata o acontecimento,
mesmo que dentro de um jogo de palavras por ele estabelecido, que
pode ser modificado pela ênfase que é dada com o uso de determina-
dos orientadores argumentativos, oferecendo maior ou menor relevância
a determinados pontos do relato, dependendo da situação em que ele
ocorra e do público que o ouve.
Testemunhos são parte integrante da liturgia de igrejas pen-
tecostais, pois representam a autenticação atividade do Espírito Santo
na vida de um fiel, fato tão importante e valorizado no pentecosta-
lismo. E esta prática também se encontra nas igrejas neopentecos-
tais – do pentecostalismo de terceira onda, segundo a classificação de
Paul Freston (1993). Nesta comunicação, que é parte da Dissertação
produzida para o curso de Mestrado em Ciências da Religião, pela
Puc-Campinas, apresentamos algumas faces do dinamismo presente
na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Com a finalização da
pesquisa, pretendemos relacionar a importância do testemunho dos
fiéis desta igreja para a manutenção de seus programas. Assim, vamos
relacionar a poderosa máquina administrativa e de marketing que é a
IURD àquilo que ela produz, por meio de seus fiéis, como forma de
manutenção do quadro de membros e, ainda mais importante, de cres-
cimento e adesão de novos participantes.

Histórias, narrativas e religiões 289


Uma igreja de programa diversificado

A IURD é o modelo daquilo que Ricardo Mariano apresenta


como igreja neopentecostal.

O surgimento desta igreja é que justifica a criação de suas tipolo-


gias [neopentacostalismo]. O centro de suas atenções é a controversa
Universal, justamente a principal igreja neopentecostal e, não por
acaso, a maior novidade do pentecostalismo brasileiro. (MARIANO,
1999, p. 34)

A IURD age de forma dinâmica, pois tem a capacidade de


adequar suas atividades e programas com rapidez e estrategicamente.
Logo em sua fundação, em meados de 1977, seu fundador, Edir Macedo
já declarava que os meios de comunicação eram imprescindíveis para a
proclamação do evangelho e que deles faria uso sempre que possível.
No mesmo ano de fundação, Macedo já fazia programas de rádio con-
clamando pessoas a participar de seus cultos e tendo como colaboradores
fiéis que davam testemunhos de cura e libertação (TAVOLARO, 2007).
Quanto às igrejas neopentecostais, em geral, além da dinami-
cidade na elaboração de programações, reuniões e cultos, e amplo leque
no que se refere aos bens religiosos oferecidos, a mensagem missionária
neopentecostal é portadora de uma teologia simples e facilmente assi-
milável, na qual se observam traços históricos da Igreja cristã, elementos
do catolicismo popular e dos cultos afro-brasileiros. A ênfase da prática
religiosa neopentecostal está no plano de vida diária, na solução religiosa
dos problemas existenciais; práticas mais fervorosas são observadas no
dom de línguas e no batismo no Espírito. Mendonça (1997) observa que
a fidelidade dos fiéis às suas igrejas apoia-se na necessidade constante de
orientação e solução de problemas por parte da liderança, capazes de so-
lucionar problemas diversos e recorrentes, trazendo tanto a promessa de
cura total quanto a dependência pelo obreiro que opera na eliminação
dos problemas. Esta clientela, porém, não é uma membresia registra-
da, controlada e organizada, mas um avolumado de pessoas que podem

290 Histórias, narrativas e religiões


deslocar sua fidelidade a outra igreja, dependendo do oferecimento dos
bens religiosos a que sinta necessidade. É neste intuito – de manter a
membresia, a eternamente (in)satisfeita – que a igreja neopentecostal se
atualiza, buscando ofertar o elemento que supra a necessidade do fiel,
elaborando-o antes mesmo que a necessidade seja percebida.
Dentre os produtos oferecidos pela IURD está o encontro in-
titulado Congresso para o Sucesso, direcionado a mentes empreendedoras,
ou seja, pessoas que desejam ascensão profissional, social e financeira,
empregados que desejam ser patrões, pequenos empreendedores que de-
sejam grandes negócios e mesmo grandes empreendedores que desejam
ainda maior acúmulo de capital.

O Congresso para o Sucesso

A IURD mantém um tipo de reunião às segundas-feiras, em


seis horários diferentes, no Templo de Salomão e no templo da Av. João
Dias, em São Paulo, nas quais acontece o denominado Congresso para
o Sucesso. Nestas reuniões, o público é chamado a ouvir uma mensagem
de encorajamento, ofertar, lutar por um trabalho (de preferência de for-
ma autônoma, como empresário) e esperar em Deus o sucesso que virá
rapidamente como pagamento por sua fidelidade e obediência.
A base teológica dos encontros é a Teologia da Prosperidade,
ao ponto da reunião ser intitulada também de Reunião da Prosperidade,
conforme texto retirado do site IURD:

Reunião da Prosperidade
Todo mês tem sido uma luta para você conseguir pagar as contas?
As dívidas parecem não ter fim? Com isso o seu casamento foi pre-
judicado e você gostaria de poder fazer muito mais pela sua família,
mas não pode?
Os problemas financeiros fazem parte da vida da maioria da popula-
ção, e o mercado oferece muitas formas para tentar solucionar essas
dificuldades e prosperar. Porém, para se estabelecer financeiramente,

Histórias, narrativas e religiões 291


apenas uma é eficiente. E ela não é ensinada nos cursos de economia,
mas adquirida quando se usa a fé inteligente.
Para aprender qual é esse segredo, participe do Congresso Para o
Sucesso, que todas as segundas-feiras tem reunido mais de 10 mil
pessoas no  Templo de Salomão. Elas marcam presença com um
único objetivo: conquistar vitórias na vida financeira.146

Neste texto encontramos boas elaborações do texto de marke-


ting empresarial como, por exemplo, o despertamento do fiel sobre a
necessidade que não somente ele, mas boa parte da população brasilei-
ra tem (dificuldades financeiras, problemas no equilíbrio da economia
doméstica, desejo de oferecer mais à própria família). O terceiro pará-
grafo verifica-se a possibilidade de conhecer a forma eficiente, a única
forma inteligente de alcançar “um único objetivo: conquistar vitórias na
vida financeira”, que é participar do Congresso, assim como têm feito
mais de 10 mil pessoas todos os dias (um apelo à presença, porque leva
o leitor a pensar que, ao não aceitar o apelo, ele estará realmente fora
da onda do mercado).
Apesar da ideia de que pessoas aprendem, despertam seus talen-
tos e transformam conceitos nos encontros, as palestras dos Congressos
são calcadas basicamente em palavras de incentivo e autodeterminação,
com estabelecimento de pontos de memorização (do tipo palavras-cha-
ve, como recurso de memória), não especificamente de formas práticas
de enriquecimento e prosperidade empresarial, o que pudemos verificar
ao longo das muitas palestras assistidas via internet e nas visitas pesso-
ais aos Congressos. A pregação é motivacional (não duvide, não tenha
medo, faça planos, confie – são algumas palavras-chave).
Quanto ao que consideramos de maior peso nos congressos,
que são as testemunhas que produzem testemunhos:

A cada reunião é possível conhecer pessoas que chegaram ao


Congresso endividadas, com muitos problemas profissionais e hoje
venceram e têm uma vida de sucesso. 147

146  Site Universal <http://www.universal.org/reunioes/prosperidade> . Acesso em 15 fev.


2017.
147  Site Universal <http://www.universal.org/reunioes/prosperidade>. Acesso em 15 fev. 2017.
292 Histórias, narrativas e religiões
Há, de fato, um grande número de pessoas que vêm de várias
regiões do país para participar do Congresso. Aos que mais ofertam, é
oferecida a possibilidade de testemunhar em público ou fazer a grava-
ção de um vídeo. Assim, aqueles que desejam a prosperidade são tam-
bém impelidos a desejar testemunhar, uma forma de estabelecer um novo
produto, que lhe confere novo status, e selar na igreja o seu sucesso.
Dependendo do momento e da reunião, aqueles que doam acima de dez
mil reais já são convidados a testemunhar na mesma ocasião. Segundo
informações do site da IURD:

Um novo milionário a cada 27 minutos


Você sabia que a cada 27 minutos um brasileiro ingressa no clu-
be dos milionários? Não há duvidas de que qualquer um quer estar
dentro desse número. Mas não basta apenas querer, tem que fazer
por onde.
Muitas pessoas já tomaram a decisão para mudar a vida financeira,
alcançar o sucesso e, principalmente, ser feliz. Faça a sua parte e co-
mece a lutar a partir de hoje por esse objetivo também.148

O texto tem o intuito de provocar no leitor uma atitude, sen-


do a primeira delas frequentar o Congresso. O apelo feito pelos meios
midiáticos não é pela participação virtual, mas presencial, sem a qual o
indivíduo jamais terá acesso aos milagres financeiros. É necessário estar
presente, ofertar pessoalmente, dando o que se caracteriza como sacrifí-
cio (o dinheiro) para que os benefícios sejam alcançados. Para a IURD,
não basta querer, é necessário sacrificar.
Sobre este sacrificar, observamos que a IURD tem justifica-
do suas práticas baseada em práticas judaicas, autenticando-as com a
apresentação dos textos bíblicos do Antigo Testamento. Os Congressos
da IURD reforçam a ideia de que o fiel precisa fazer sacrifícios que
o justifiquem diante de Deus, bem como sacrifícios grandes que “cha-
mem a atenção de Deus” (segundo palavras do bispo Rogério Formigoni
no Congresso do dia 23.01.2017, reunião das 22horas) e remetem aos
sacrifícios judaicos dos tempos que precederam Jesus. Em seu blog, o

148  Site Universal <http://www.universal.org/reunioes/prosperidade>. Acesso em 15 fev. 2017.


Histórias, narrativas e religiões 293
bispo Júlio Freitas escreve (elencando 8 motivos para sacrificar) que sa-
crificar “É o caminho mais curto e seguro para a vitória (1Samuel 8-10).
O povo de Israel fazia sacrifícios antes de ir para a batalha para obter a
segurança de que a graça de Deus estaria sobre eles”.149
Segundo os bispos iurdianos, o cordeiro era a riqueza do povo
fiel no deserto e por isto ele era oferecido (o melhor cordeiro, o mais
valoroso, sem mácula), mas o dinheiro é a riqueza do fiel moderno (e a
melhor quantia é o melhor sacrifício).
Atualmente, os bispos Jadson e Rogério (supracitados) divi-
dem a direção dos Congressos no Templo de Salomão, alternando seus
horários de palestras. Criativos, persuasivos e determinados, como o são
os pastores e bispos da IURD, “Pressionam e constrangem os fiéis e
inculcam neles sentimentos de culpa e temor às formas e maldições sa-
tânicas” (MARIANO, 2003, p. 253). A situação que se forma é de certo
constrangimento ao fiel que não oferta ou oferta pouco.

A importância da testemunha

Cada fiel que atinge seu objetivo e pode sacrificar mais e me-
lhor é convidado a testemunhar publicamente ou através da produção
de um vídeo. Os testemunhos são transmitidos pelos canais de TV ou
pelo canal Univer, divulgados no canal Youtube e redes sociais. Assim,
ser uma testemunha do Congresso para o Sucesso é ter atingido um
patamar social sonhado por boa parte da população brasileira: 5 minutos
de fama, enquanto ator representando a própria ficção, a própria história
de transformação; e, mais ainda, pelo fiel iurdiano que se entende, agora,
em sociedade com o maior dos sócios: o próprio Deus.
Diante desse emaranhado de atividades, comprova-se que a
IURD é uma igreja de alto poder administrativo e grande em elaboração
de táticas e estratégias para continuar crescendo no mercado religioso.

149  Disponível em: <https://juliofreitas.com/blog/8-motivos-para-sacrificar/>. Acesso em: 15


fev. 2017.
294 Histórias, narrativas e religiões
Sua potência, sua criatividade, sua capacidade de inovar diante das crises
sociais ou religiosas nos leva à busca pela pesquisa das suas atividades e
de sua história.

Conclusão

O atravessamento da economia nas relações religiosas leva-


-nos a reflexões a respeito das consequências sociais desse fato. Para
uma sociedade trabalhadora que sofre dias de instabilidade econômica
e política, a promessa de suprimento de suas necessidades, atrelada à
possibilidade de altos ganhos e rendimentos, a liberdade de consumir
os bens duráveis, serviços e lazer são motivos suficientes para que se
engajem a um movimento de fé capitalista. A promessa de sucesso ofe-
recida nos Congressos iurdianos está em conformidade com os ideais
neoliberais dos nossos tempos, pelos quais o indivíduo pode consumir a
qualquer preço, desde que enriquecido pela lógica de mercado, na qual
quem tem consome, e quem não tem se sujeita. Pela teologia iurdiana,
os fiéis abençoados podem, então, consumir quaisquer itens porque seu
ganho, independentemente da história de seu esforço de trabalho ou
de qualquer explicação sobre o aumento de sua riqueza, é um ganho
sagrado, portanto, permitido. Tudo se sacraliza – a vida, o trabalho, a
família, o dinheiro, as viagens, os automóveis, os imóveis. Tudo se torna
sagrado a partir do momento em que o crente se dispõe a obedecer às
regras da igreja e ofertar fielmente suas contribuições. Assim, a ideia
de compartilhamento e comunidade, presentes nas primícias da igreja
cristã, desaparecem pela lógica mercantilista do fiel iurdiano: agora ele
é um sócio do Senhor e tem os mesmos direitos que o dono do mundo.
Muito há ainda que ser pesquisado referente às testemunhas
iurdianas, seu comportamento, o discurso que produzem e que é repro-
duzido por novos adeptos dos Congressos. Limitamo-nos, aqui, a expor
apenas estas informações, na intenção de despertar a atenção da so-
ciedade acadêmica para as particularidades do discurso dos Congressos
Histórias, narrativas e religiões 295
para o Sucesso, bem como da relação entre a instituição igreja e seus
adeptos. Para pesquisa em andamento, realizaremos a análise do discur-
so das testemunhas, procurando fatos de linguagem que identifiquem
seus discursos com propaganda testemunhal, talvez, uma inovação nos
estudos relacionados ao neopentecostalismo e suas artimanhas na cap-
tação de novos membros – fiéis empresários.

Referências

FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil da constituinte ao impeachment. 1993. Tese


(Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SO, 1993.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Loyola, 1999.

TAVOLARO, Douglas. O Bispo: A história revelada de Edir Macedo. São Paulo: Larousse,
2007.

296 Histórias, narrativas e religiões


Estatal e religiosa: Programas cristãos na
TV Brasil e questões de laicidade

Alexander Fajardo (Faculdade Nazarena do Brasil)

Resumo: Este trabalho analisa questões de laicidade aplicadas a TV


Brasil, controlada pela EBC – Empresa Brasil de Comunicações, uma
empresa pública federal, vinculada à Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República, por conta de três programas religiosos que
se mantiveram no ar por mais de 30 anos. Para isto, discutiremos os
conceitos entre televisão pública e estatal, suas finalidades, limites e atu-
ações. Levantaremos a questão do laicismo e laicidade e analisaremos o
perfil dos programas cristãos e como se mantiveram por tanto tempo no
ar sem terem problemas desta natureza. Por fim abordaremos o imbró-
glio que se arrastou juridicamente para retirada dos dois programas da
Igreja Católica e um programa evangélico do ar após audiência pública
e petição de senadores contrários a retirada da programação religiosa.
Perceberemos que a questão religiosa na sociedade brasileira ainda le-
vanta conflitos acalorados, trazendo tensões entre o diálogo e a intole-
rância para o debate público. Procuraremos entender qual é o papel do
Estado e quais caminhos tentar seguir em uma questão de conflito onde
a interpretação da Constituição e observada por grupos distintos e quais
interesses e forças sociais estão em jogo em debates desta natureza.

Histórias, narrativas e religiões 297


“Pela Coroa Real do Salvador”: mídia e
carisma no Cisma Presbiteriano de 1903

Sergio Tuguio Ladeira Kitagawa (UERJ/ Seminário


Presbiteriano Rev. Ashbel Green Simonton )

Resumo: O artigo tem por objetivo discutir a função da mídia impressa


na produção, circulação e recepção de representações coletivas da reli-
giosidade a partir da análise do periódico presbiteriano O Estandarte en-
tre os anos de 1898 e 1903, sendo analisado seu uso como instrumento
de orientação e manutenção do carisma junto aos fiéis, observando-se a
teatralização dos embates, a personificação de sentimentos, a oralidade
do texto, o uso dos símbolos do protestantismo e o evocar símbolos
externos que ilustravam o posicionamento teológico, discutindo-se a
construção de sentidos das mensagens dos produtos de mídia, sem ne-
gligenciar as condições de produção e difusão dessas mensagens.

Palavras-chave: Periódicos; O Estandarte; Carisma; Protestantismo;


Presbiterianismo.

Introdução

A história da inserção e consolidação do protestantismo no


Brasil está ligada à história da mídia impressa no século XIX. Em 1808,
com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, a proibição de ti-
pografias foi suspensa e surgiu o periódico A Gazeta do Rio, o primeiro
jornal a ser impresso.
Logo outros jornais começaram a circular e em 1862 existiam só
na Corte, 32 tipografias e três fundições de tipos. A disseminação da im-

298 Histórias, narrativas e religiões


prensa chamou a atenção dos missionários protestantes que perceberam o
valor da mídia impressa e fizeram dos jornais um instrumento de trabalho.

O uso da mídia impressa pelos protestantes

Robert Kalley, médico-missionário, fundador da Igreja


Evangélica Fluminense fez uso de diversos jornais para publicar seus ar-
tigos, às vezes usando um pseudônimo. Só no Correio Mercantil foram
35 artigos entre 1855 e 1866. (SANTOS, 2009, p.41). Os missionários
protestantes se mostraram entusiasmados quanto a esse instrumento de
veiculação religiosa. (REINAUX, 2007, p.338).
O pioneiro presbiteriano, Ashbel Green Simonton não deixou
de perceber essa oportunidade. Havia chegado ao Brasil em Agosto de
1859 e, já no ano de 1864, lançou A Imprensa Evangélica, o primeiro
jornal evangélico a ser publicado na América Latina. O periódico tinha
variados artigos escritos pelos missionários ou traduzidos, além de poe-
sias, traduções de livros e notícias diversas. Analisava questões políticas
de seu tempo e ainda se engajava em polêmicas com o jornal católico O
Apóstolo. (PEREIRA, 2011, p.5).
Lançar um jornal era estratégico sob diversas perspectivas: 1)
testava-se a legislação referente à liberdade religiosa; 2) divulgavam-se
as ideias protestantes; 3) fazia-se recurso catequético, muitas vezes o
único recurso disponível para que os novos convertidos fossem instruí-
dos nas doutrinas presbiterianas. Multiplicando-se os campos e poucos
obreiros, os periódicos viriam ajudar a suprir uma lacuna, doutrinando,
instruindo e unindo os presbiterianos brasileiros.
A consolidação do trabalho protestante presbiteriano e a se-
paração entre Igreja e Estado no regime republicano, a partir de 1889,
permitiram que a atenção se voltasse para o fortalecimento da estrutura
denominacional. A mídia impressa foi o principal meio da mobilização
em prol de uma igreja brasileira autônoma; e onde surgiu a discussão

Histórias, narrativas e religiões 299


teológica que foi utilizada como justificativa para a divisão dos presbi-
terianos, em 1903.

O Estandarte e seu idealizador

Na década de 1880, alguns fatores se tornaram determinantes


para que uma dissensão se instaurasse entre os presbiterianos: 1) o cres-
cimento do número de pastores nativos; 2) o movimento em defesa de
uma igreja presbiteriana brasileira autônoma em relação às Igrejas nor-
te-americanas; 3) a organização do Sínodo da Igreja Presbiteriana do
Brasil, um concílio que, administrativamente, fazia da Igreja brasileira
autônoma, ainda que, houvesse uma dependência quase que completa
dos recursos financeiros oriundos dos EUA.
É nesse contexto de autonomização dos presbiterianos brasilei-
ros, que foi ordenado pastor Eduardo Carlos Pereira de Magalhães. Não
era aristocrata, mas não de família pobre. Nascido em Caldas, no sul da
Província de Minas Gerais, em 1855, em uma tradicional família da re-
gião. Seu pai era farmacêutico e fazendeiro, sua mãe professora. Segundo
as informações de seus biógrafos, desde a adolescência pensou em seguir
a carreira jurídica. Ainda em sua cidade natal, estudo francês e latim.
Quando seu irmão mais velho Severo Augusto comprou uma farmácia
em Araraquara, no interior de São Paulo, Eduardo foi junto, passando a
estudar no Colégio Ipiranga entre 1870-1873. O Colégio foi transferido
para Campinas e Pereira o acompanhou, tornando-se professor.
Foi em Campinas que teve contato com o protestantismo pres-
biteriano, ouvindo os sermões do pastor George Nash Morton. Quando
o Colégio Ipiranga se transferiu novamente, dessa vez para a capital
da província, Morton, amigo do missionário George Chamberlain, re-
comendou-lhe Pereira. Chamberlain era pastor da Igreja Presbiteriana
de São Paulo e desde 1870 mantinha uma escola protestante, a Escola
Americana, embrião do futuro Mackenzie College, hoje Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
300 Histórias, narrativas e religiões
Pereira aderiu ao protestantismo em 1874 e tornou-se mem-
bro da Igreja de São Paulo em 1875. Pereira se matriculou no Curso
Preparatório da Academia de São Paulo, no Largo de São Francisco, fa-
mosa por ter formado juristas de renome nacional e passou a lecionar na
Escola Americana. Foi Chamberlain que o persuadiu a deixar os estudos
jurídicos para se tonar pastor.
Foi aceito como candidato ao ministério em 1875. Como
não havia ainda um seminário da denominação, os estudos teológicos
de Pereira aconteceram na Escola Americana, sob a tutela do próprio
Chamberlain. Nesse tempo, casou-se com uma colega professora, Louise
D’Allinges Lauper, que adotou o nome de Luíza Pereira de Magalhães.
Foi ordenado pastor em 1881.
Seu primeiro campo de trabalho foi baseado na cidade
Campanha, ao sul da província de Minas Gerais, abrangendo outras
regiões: São Gonçalo, Cana Verde, Lavras, etc. Teve seis anos de grande
dificuldade, dado às péssimas condições de trabalho. O campo era ge-
ograficamente extenso, requerendo longas viagens. O salário era baixo.
Menos da metade do que recebia o diretor do Mackenzie, o norte-ame-
ricano Horace Lane.
Não é de se admirar que tenha vindo da pena do pastor Eduardo
o “Plano de Missões Nacionais”, que tinha como objetivo incutir nas co-
munidades locais a responsabilidade com a evangelização pátria, sobre-
tudo por meio do sustento dos obreiros ordenados no Brasil. O Plano
foi proposto na reunião do Presbitério do Rio de Janeiro em 1886. O
objetivo ao promover “o sustento dos obreiros nacionais por meio de
compromissos, ofertas e coletas” (LESSA, 2010, p.242)
Os recursos angariados deveriam ser empregados primeira-
mente no sustento dos pastores, depois de evangelistas e em terceiro
lugar na preparação de novos obreiros pelo sustento de professores e dos
candidatos ao ministério ou ainda em outro trabalho de cunho evange-
lístico. Foi ainda em Campanha que Pereira fundou a Revista das Missões
Nacionais, o periódico que se destinou a publicar os balanços financeiros
da efetivação do Plano.

Histórias, narrativas e religiões 301


A situação pessoal do pastor Eduardo mudaria no ano de 1888,
o ano da organização do Sínodo. Apoiado por Chamberlain, ele concor-
reu ao pastorado da Igreja Presbiteriana de São Paulo. Foi eleito em 22
de Agosto.
Aquela comunidade lhe daria o lastro financeiro indispensável
a que desafiasse com veemência as peculiaridades estruturais do pres-
biterianismo brasileiro, opondo-se aos interesses das Juntas diretivas
das missões norte-americanas e posteriormente à instituição maçônica,
associada a pessoas de influência na sociedade e geralmente de pos-
se de recursos materiais. (RIBEIRO, 1987, p.70). O cargo deu ainda
mais projeção ao pastor Eduardo. E também ensejou desgastes relacio-
nais com toda espécie de gente com quem travou relacionamento: com
Horace Lane, diretor do Mackenzie, que, sendo americano, não se sub-
metia a autoridade pastoral do brasileiro; com Emanuel Vanorden, um
missionário, porque tinha iniciado cultos em um bairro de São Paulo;
com professores do Mackenzie que eram membros de sua Igreja; desa-
vença até com a Igreja nacional que havia decidido instalar o seminário
da denominação em Nova Friburgo-RJ.
Foi nesse contexto que foi lançado o “Plano de Ação”. A prin-
cipal razão para que se produzisse o documento foi o projeto do esta-
belecimento de um Instituto Teológico na cidade de São Paulo, concre-
tizado em 1893, em oposição ao seminário instalado em Friburgo. O
Plano foi publicado em 30/12/1892 na Revista das Missões Nacionais e
incluía uma solicitação financeira a Comissão de Missões do Sínodo e
a criação de um novo órgão de propaganda. Era o nascimento do peri-
ódico O Estandarte.
O jornal foi lançado no dia 07 de Janeiro de 1893. Sediado
em São Paulo, era produzido na Tipografia da Sociedade Brasileira de
Tratados Evangélicos, uma Sociedade criada por Pereira com o objetivo
de produzir folhetos, livros e jornais para propaganda religiosa. Com o
Cisma que ocorreria em 1903 entre os presbiterianos, tornou-se o órgão
oficial da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil e assim continua
sendo publicado até a presente data. Em seu início, seus primeiros cola-
boradores foram, em sua maioria, pastores nacionais, recém-ordenados.

302 Histórias, narrativas e religiões


Outros jornais presbiterianos também circulavam na épo-
ca como Púlpito Evangélico, O Presbiteriano, O Evangelista, a já citada
Revista de Missões Nacionais, um jornal – apesar do título – criado pelo
movimento das Missões Nacionais. No entanto, O Estandarte foi o pe-
riódico que mais se destacou nas controvérsias que se deram entre a
organização do Sínodo Presbiteriano em 1888 e o cisma que originou a
Igreja Presbiteriana Independente em 1903.

O discurso nacionalista presbiteriano e sua


liderança carismática

Desde seu início, o periódico apontou seu direcionamento na-


cionalista, contextual ao momento de exaltação patriótica do alvorecer
da República. Tornou-se o principal veiculador do ideário presbiteriano
de salvação sob esse enfoque, mostrando-se propagandista do grupo de
pastores nacionais. Os articulistas também se faziam valer dos símbolos
religiosos e as alegorias a partir dos textos sagrados,
O argumento patriótico, a identificação com os interesses pá-
trios e a defesa dos benefícios da evangelização à causa pátria de mo-
dernização, por meio da ordem e do progresso, se mostrou essencial ao
grupo ainda submetido à ingerência e controle burocrático estrangeiro.
A religião possui um poder simbólico. Houve no uso do patriotismo o
manuseio de símbolos, sentimentos, ideias em torno da responsabiliza-
ção dos nacionais pela emancipação. A denominação brasileira era in-
dependente em sua estrutura conciliar, mas não em sua estrutura finan-
ceira, determinante da política conciliar. O discurso patriótico teve por
objetivo construir uma realidade nova no presbiterianismo brasileiro: a
auto sustentação financeira.
O nacionalismo acabou se tornando uma demanda religiosa,
uma ideologia, uma causa, algo que fizesse os presbiterianos terem um
senso de unidade, em meio a tão vasto território. O patriotismo aplicado
ao esforço evangelístico visava mobilizar o povo presbiteriano a contri-
Histórias, narrativas e religiões 303
buir, em especial financeiramente, para que tão desejada autonomia da
estrutura denominacional brasileira fosse alcançada.
No argumento do patriotismo presbiteriano, a pátria precisava
ser salva e a Igreja precisava de homens dispostos a se sacrificar pela cau-
sa do Evangelho ainda que morressem pelo Brasil. A ideia defendida era
a de que os nacionais deveriam assumir a direção de seu próprio destino,
e para tanto buscaram uma liderança que fosse forte e que levasse a cabo
tal projeto.
Nesse processo, os desencontros entre os missionários e a li-
derança nacional se intensificaram e O Estandarte mostrou-se um dos
principais palcos dos conflitos que se concentravam em quatro pontos
essenciais: 1) a educação teológica; 2) a função das escolas dirigidas
pelos missionários; 3) a administração dos investimentos no trabalho
educacional e de evangelização; 4) o papel desempenhado pelos mis-
sionários (MATOS, 2008, p.145) que desdobraram em três fatores que
causaram uma grave crise na década de 1890 entre os presbiterianos,
assim descritos por Souza: 1) a tensão entre missionários e nacionais
pela direção da igreja; 2) o desenvolvimento de questões pessoais entre
Eduardo Carlos Pereira e os líderes do Mackenzie que levou a uma ra-
dicalizado das posições e tornou difícil o diálogo e o entendimento; 3) a
questão maçônica, que foi um debate surgido em 1898, no periódico O
Estandarte, em torno da compatibilidade ou não da filosofia maçônica
com a fé cristã, questão que teria precipitado o desfecho cismático.
Em todas essas disputas, Pereira teve amplo apoio. Rapidamente,
ele havia se despontado como líder de um crescente grupo de pastores
nacionais. E tinha ainda o apoio da quase totalidade dos membros da
igreja em que era pastor.
A atração que determinados líderes tem sobre seus liderados
foi explicada por Max Weber em termos de “dominação”. Ele descreve
a identificação de três formas do exercício do poder verificadas como
legítimas ou ordinariamente aceitas por aqueles que a elas se subme-
tem. Para Weber, “dominação” trata-se da “possibilidade de impor ao
comportamento de terceiros a vontade própria” (WEBER, 2004, p.188)
ou ainda “a probabilidade de encontra obediência a um determinado
mandato” (WEBER IN: COHN, 2003, p.128).

304 Histórias, narrativas e religiões


Na constante luta pelo domínio de determinada orientação,
de determinada forma de concepção do ordenamento do mundo so-
cial, presente também na religião (BERGUER, 1985, p.15) diferentes
agentes se posicionam em um constante jogo por posições privilegiadas
em que se disputa o domínio da produção de símbolos e interpretações
da realidade (BOURDIEU, 2004, p.18-20 passim). Nesse jogo reside a
necessidade de legitimação do domínio daquele agente, pessoa, grupo
ou instituição – e atrelado a essa sempre pessoas e grupos – que se impõe
sobre os demais projetos.
Weber identifica três tipos de dominação legítima: o poder le-
gal ou racional jurídico; o poder tradicional e o poder carismático. Ele
descreve a dominação carismática como consequente da afeição a pessoa
ou aos dons do que exerce esse encanto, entendidos como sobrenaturais
(PASSOS, 2006, p.61). Nesse caso, o carisma, análogo a vocação pesso-
al, está acima da qualificação profissional (WEBER IN: COHN, 2003,
p.134-135) e pode se confundir com as qualidades pessoais de alguém
ou mesmo uma atração hipnótica da personalidade de determinados
indivíduos que despertam profundos sentimentos e certa dominação das
mentes a ponto de atrair e reunir em torno de si determinado número de
pessoas (GEERTZ, 2001, p.182-183).
O que justifica essa devoção pessoal? O que é atraente nes-
se líder carismático? Weber pontua “as faculdades mágicas, revelações
ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória” (WEBER IN: COHN,
2003, p.134), traços recorrentes no campo religioso. A fonte do carisma
também pode ser a atribuição de transcendência a outros (GEERTZ,
2001, p.183-184), como se verifica na doutrina da vocação do calvinis-
mo ensinado pelos presbiterianos.
Quando se busca analisar o papel carismático de Eduardo
Carlos Pereira através da disseminação de ideias pelo periódico O
Estandarte, deve-se ter em mente que a identificação desses tipos de do-
minação envolve uma complexa rede de relações sociais, símbolos, ritos
e crenças. Cabe destacar que Weber apresenta tipologias “puras”, que
dado ao caráter móbil das interações sociais, encontram-se em constante
flutuação no campo religioso, ora em conflito, ora combinadas. Como

Histórias, narrativas e religiões 305


exemplo, temos a liderança do pastor que se candidata ou é lançado
candidato ao ofício após ser “provado”, “testado”, ou reconhecido nele
o chamado divino para o exercício da função pastoral. Envolve, obvia-
mente, uma série de demonstrações efetivas de suas qualidades entendi-
das como dons extraordinários. A doutrina calvinista da vocação é uma
racionalização da verificação carismática. A autoridade pastoral foi en-
tendida como algo divino e transmitida pelas gerações como aceitável e,
até certo ponto, inquestionável gerando nos receptores desse costume a
aceitação de uma autoridade por tradição. Tradição que foi burocratiza-
da, institucionalizada nos livros de ordem presbiterianos, ao conceder le-
galmente ao pastor determinada autoridade espiritual e jurídica sobre os
membros das Igrejas. Manifestações carismáticas tendem a vitalizar esse
ordenamento jurídico racionalizado, tornado frio e mecânico. Muitas
vezes, tem um aspecto de renovação dentro da instituição (PASSOS,
2006, p.56-57) o que não esconde o potencial de ruptura desse tipo
de manifestação. Uma Igreja dirigida sob os princípios da coletividade,
como a estrutura conciliar da Igreja Presbiteriana, teria dificuldades –
como teve e ainda hoje tem em diversos exemplos – de aceitar lideranças
personificadas como a de Eduardo Carlos Pereira.
Assim, o que justificaria qualidades carismáticas em Pereira,
para além de sua autoridade legal de ministro e do respeito à sua posi-
ção de pastor herdado por herança social? Pelo menos cinco elementos
que devem ser destacados: 1) a oratória; 2) erudição; 3) o discurso de-
finido ou a racionalização de seu discurso; 4) o apoio dado aos novos
ministros, especialmente através da 1ª Igreja de São Paulo; 5) projetos
que iam ao encontro com as aspirações do grupo de nacionais. Aqueles
que se colocaram ao lado do pastor Eduardo se identificaram em maior
ou menor grau com esses elementos de manifestação do seu carisma,
referenciados como qualidades extraordinárias, de alguém vocacionado
(WEBER, 2010, p.40). Além disso, o próprio pastor presbiteriano, de
doutrina calvinista, se entende ser um vocacionado por Deus (WEBER,
2010, p.21).
É importante frisar que o surgimento, desenvolvimento e ma-
nutenção dessa relação de conexão entre o carismático e seus admirado-

306 Histórias, narrativas e religiões


res estão fundamentados na nutrição da crença em suas qualidades por
meio da demonstração (WEBER, 2010, p.41). Assim, em uma relação
dissimulada de forças, dominador e dominado se percebem e interagem.
São essas demonstrações que seduzem o que se coloca sob o domínio
carismático, que fazem o “líder”, o “herói” (ALMEIDA, acesso em
12/08/2014), estando, pois, a legitimidade de sua dominação de forma
direta e íntima ligada ao carismático, ao seu “dom e capacidade de agre-
gar e líder o grupo de seguidores” (PASSOS, 2006, p.57).
Os autores que traçam a biografia de Pereira destacam suas
qualidades oratórias. Desenvolver o discurso faz parte do projeto de
uma carreira bem sucedida no ministério protestante. O púlpito é o lu-
gar comum do pastor presbiteriano. É ali que discursa para seus fiéis.
No entanto, o discurso não está limitado ao espaço do culto público,
mas de toda a vida do pregador. De forma especial, dois outros lugares
são notadamente importantes: o seminário e os concílios. No seminário,
preparam-se os novos ministros, muitas vezes formados à “imagem e se-
melhança” de seus tutores acadêmicos. O outro espaço fundamental do
discurso presbiteriano é o campo burocrático do poder, onde de forma
mais nítida são travadas as lutas políticas internas do protestantismo: os
concílios eclesiásticos. Em sua estrutura burocrática, com regras parla-
mentares bem definidas, oradores bem preparados são capazes de influir
em decisões cruciais para os destinos da denominação.
Uma segunda importante característica de Eduardo Carlos
Pereira que explica sua atração pelo novo grupo é sua erudição. Casimiro,
na obra Um Mestre da Língua Portuguesa, demonstra o caráter científico
das Gramáticas publicadas por Pereira: Gramática Expositiva – cur-
so superior (1907), Gramática Expositiva – curso elementar (1908) e
Gramática Histórica (1916). Além de pastor presbiteriano, o pastor
Eduardo exerceu as funções de professor, o primeiro a exercer o magis-
tério de Língua Portuguesa, no Ginásio da capital e indica a difusão de
seus trabalhos – as Gramáticas Expositivas chegaram a 96 e 153 edições,
respectivamente – como indicativo de sua relevância social. Era também
abolicionista, escreveu diversos artigos para o primeiro jornal evangélico
do Brasil, Imprensa Evangélica, depois reunidos como estudo intitulado

Histórias, narrativas e religiões 307


“A religião cristã em suas relações com a escravidão”. O pastor também
se associou ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
A crescente influência de Eduardo Carlos Pereira e sua nome-
ação para diversos postos na estrutura denominacional desde a organi-
zação do Sínodo em 1888 demonstram não somente uma consciência
pessoal e interesses individuais, mas a própria personificação de inte-
resses coletivos de um grupo nacional desejoso de assumir a liderança
e que depositava no pastor Eduardo as suas esperanças. Uma estratégia
política adequada à estrutura presbiteriana: eleger no grupo alguém que
represente suas esperanças e se mostre capaz de atender às expectativas.

Mídia e carisma no Cisma Presbiteriano de 1903

Até 1898, a tônica do periódico O Estandarte era que os pres-


biterianos brasileiros deveriam se mobilizar em torno da promoção da
denominação nacional. Foi quando surgiu a chamada Questão Maçônica,
um debate sobre a compatibilidade ou não de um cristão estar filiado à
Maçonaria. A questão era recente nos EUA e não havia sido levantada
ainda no Brasil.
O autor da série de artigos intitulado “O Cristão e a Maçonaria”
foi o médico Nicolau Soares do Couto Esher, usando o pseudônimo
Lauresto. Resumidamente, a série original “O Cristão e a Maçonaria”,
publicada a partir de 10/12/1898, expusera o seguinte: o primeiro artigo
apenas introduz o assunto, sem argumento incisivo quanto ao porque
não afiliar-se à maçonaria. Lauresto apenas expõe que entender estar
prestando um serviço aos irmãos na fé, obedecendo à sua própria cons-
ciência. No seguinte, Esher põe em xeque o juramento maçônico, decla-
rando-o incompatível com os ensinos de Cristo tanto pelo seu caráter
secreto, quanto por entrar em choque frontal com as diretivas de Jesus.
No terceiro artigo, continuando a dissertar sobre o juramento, denuncia
o “medo” por detrás da fidelidade ao juramento e no seguinte recapitula
seus argumentos acrescentando sua conclusão de que a abnegação do
308 Histórias, narrativas e religiões
sócio pela sociedade é prejudicial e anticristã. O quinto artigo apresenta
a busca da fundamentação bíblica para seus argumentos ditos empíricos.
No número seguinte, o articulista busca demonstrar a incompatibilidade
da história da maçonaria com o espírito do cristianismo. Nos artigos
sétimo ao nono, Lauresto apresenta a incompatibilidade do juramento
maçônico com a profissão de fé cristã. Os textos seguintes acabam por
se tornar uma defesa veemente e apaixonada das críticas recebidas por
interlocutores na imprensa, porém desprovidas de desenvolvimento de
nova argumentação ou mesmo de reforço elaborado da já exposta, com
exceção do último em que o autor elenca 12 argumentos melhor elabo-
rados, embora brandamente balizados.
Há intensidade retórica em seus argumentos. Não era um es-
pecialista, não pertencia ao grupo de sacerdotes sobre os quais se impõe
a tarefa exegética, mas embora não pertencente formalmente ao grupo
que detém o reconhecimento social da capacidade específica de pro-
duzir teologia, suscitou ou tema e demonstrou o caráter prático de sua
teologia não elaborada nos padrões eruditos da estrutura presbiteriana
(BOURDIEU, 2011, p.38-40).
Os artigos de Esher suscitaram outros a escreverem em apoio
ou em contradita a sua opinião, a ponto de O Estandarte publicar uma
separata para que todos os textos fossem publicados. Lauresto publicou
até 27/04/1899. Diversos articulistas, pastores e leigos, se alteraram até
que o jornal deu por encerrada aquela fase em 27/04/1899. A penetra-
ção do debate junto ao público fez com que este se dividisse e se pola-
rizasse. Enquanto uns aguardavam com apreensão, a ponto de solicita-
rem os números perdidos em que se publicaram artigos sobre o assunto,
outros se escandalizaram de forma a ser necessário o periódico reservar
suplemento para que o mesmo fosse descartado pelos desinteressados
na questão.
A essa altura, a questão já havia migrado das páginas do jornal
para as atas conciliares, com consultas, acusações e causando desavenças
nas comunidades locais. Em Outubro de 1899, membros da Igreja de
São Paulo organizaram uma segunda Igreja, dizendo-se constrangidos
na Igreja do pastor Pereira. No Sínodo de 1900, decidiu-se que havia

Histórias, narrativas e religiões 309


liberdade para o crente ser ou deixar de ser maçom. Era uma questão
individual de consciência. A mesma resolução disse que a propaganda
pró ou contra a Maçonaria era prejudicial a causa do Evangelho. Isso
não impediu que a discussão continuasse nas páginas de O Estandarte.
Percebemos diferentes fases da controvérsia no periódico: uma
primeira, do final de dezembro de 1898 até abril de 1899, a que pode-
mos denominar “surgimento”; a segunda, de abril de 1899 até julho, a
que podemos denominar “calmaria”; a terceira, de julho de 1899 até
julho de 1900, a que podemos chamar de “encubação”, por haver men-
ções esparsas, mas que nos permitem enxergar uma ruptura latente; a
quarta, de julho de 1900 a dezembro de 1900, a qual se pode chamar de
“preparação”, face à tradução e distribuição de folhetos antimaçônicos;
a quinta fase, que compreende todo o primeiro semestre de 1901, com
a publicação da série de artigos de Pereira, fase a qual denominamos
“teológica”; a sexta fase que chamamos “declínio” que vai de agosto de
1901 e percorre todo o ano de 1902; a sétima e última fase denominada
“repetição”, de janeiro a julho de 1903.
Cada fase apresenta um grau de destaque diferente dado à
“Questão Maçônica”. Na primeira fase, vê-se uma forte curiosidade e
um interesse sincero de que dúvidas fossem sanadas, bem como a ma-
nutenção da liberdade de opinião. Na segunda fase, não há qualquer
destaque, o assunto quase que desaparece das páginas do jornal, embora
já houvesse escandalizado os membros das igrejas locais. Na terceira
fase, percebe-se ainda que não haja destaque ao assunto, mas as poucas
referências apontam que a liderança já se preocupava com os possíveis
destinos dos debates. Na quarta e quinta fases, fica nitidamente exposto
que o tema maçonaria havia se tornado fonte de disputa, não somente
teológica, mas que caminharia rumo a pessoalidade. Nas duas últimas
fases o grau de destaque é elevadíssimo, com um martelar contínuo de
que a maçonaria se tratava de uma heresia.
Após a reunião do Sínodo, na edição de 02/08/1900, Pereira
fez publicar nove tópicos argumentativos que escreveu como voto de
protesto a decisão do Sínodo. Mas é finalmente em 28/02/1901 que
Eduardo Carlos Pereira começou a exposição de argumentos teológicos

310 Histórias, narrativas e religiões


em série. Os artigos foram reunidos posteriormente e publicados sob
a forma de livro. Pereira se tornou o grande campeão antimaçônico, o
personagem principal da disputa, embora apoiado por outros articulis-
tas e com contínuas manifestações de apoio à sua postura, publicadas
nas páginas de O Estandarte. É o pastor da 1ª Igreja Presbiteriana de
São Paulo o protagonista dessa fase e, por que não dizer, o único. A
“Questão Maçônica” acabou por se personalizar na imagem de Pereira.
Sua entrada na querela pode também ser interpretada como uma forma
de demonstrar a autonomia e até mesmo a superioridade intelectual do
clero nativo. Nessa disputa pelo poder decisório, trata-se de um impor-
tante artifício para promoção pessoal ou mesmo do grupo que pleiteia
a direção da igreja. O cenário político-religioso também é passível de
análise do ponto de vista cultural, sobretudo pelo conceito de represen-
tação, nos interessando aqui “as formas de exibição do ser social ou do
poder político tais como as revelam signos e performances simbólicas”
(GOMES, 2005). Pereira precisava de um novo fôlego, de um novo foco
de atenção. A Questão Maçônica surgiu como uma nova cruzada, uma
nova bandeira a ser desfraldada. E ele a explorou bem.
No ano de 1902, a “Plataforma” em cinco tópicos defendi-
dos por Pereira e seus apoiadores foram publicadas em O Estandarte.
Eram eles: 1) Independência absoluta, ou soberania espiritual da Igreja
Presbiteriana no Brasil; 2) Desligamento dos missionários dos presbi-
térios nacionais; 3) Declaração oficial da incompatibilidade da maçona-
ria com o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo; 4) Conversão das
Missões Nacionais em Missões Presbiteriais, ou autonomia dos presbi-
térios na evangelização de seus territórios; 5) Educação sistemática dos
filhos da Igreja pela Igreja e para a Igreja. Sob o lema “Pela Coroa Real
do Salvador”, Eduardo Carlos Pereira seguiu seu discurso de autonomia
do presbiterianismo nacional, agregando a causa uma cruzada teológica:
a questão maçônica.
É no ano de 1903, ao ano do Cismam, que Pereira lança uma
série de artigos sob o título “Solução Presbiteriana”. A primeira parte foi
publicada em 11/06/1903 e a última em 30/07/1903, no dia anterior ao
cisma. Há forte tom de solenidade. Trata-se de um texto em que a ora-

Histórias, narrativas e religiões 311


lidade é marcante. As frases concatenadas, as expressões de argumento
em um crescendo apoteótico. É a palavra de um orador, de um pregador,
de um líder carismático que busca de todas as formas reunir simpati-
zantes por sua causa. O texto tem como objetivo convencer o leitor por
meio da repetição de ideias, do reforço positivo de um ideal político que
se arvora de elementos religiosos, de um nacionalismo amalgamado a
questões pessoais polidamente tratadas, a um jogo de poder natural, ou
supostamente atrelado à tônica doutrinária e acusação de heresia. Cada
editorial tem como dístico uma citação bíblica, buscando apoio no livro
sagrado do cristianismo para os argumentos que se seguirão. Os textos
que compõem o discurso não são homogêneos em extensão e recursos
argumentativos, mas complementares.
A última série de artigos de Eduardo Carlos Pereira antes do
Cisma mostra, antes de tudo, uma representação profunda dos interes-
ses nacionais. “Solução Presbyteriana” compõe um discurso político de
conteúdo concêntrico, quase que monotônico, permeado de nuances e
digressões retóricas próprias ao objetivo que se quer alcançar: impactar
e conseguir adeptos. Pereira faz uso de personagens bíblicos, de figuras
históricas remotas ou personalidades do presbiterianismo, se arvora de
argumentos alheios, usa imagens comparativas para defender seu pon-
to de vista ou tecer acusações aos opositores. Faz referência ao termo
político contextualizado na exaltação do patriótico dos anos iniciais da
República. Sua linguagem é ácida, severa, grave, ousada e acusativa. Ele
demonstra cultura, erudição, mas, sobretudo, uso da retórica, em tom
agressivo, inflexível, irredutível.
O mérito não está no conteúdo político do discurso, mas na
forma do discurso, na sua abordagem, na teatralização dos embates, das
personificações dos sentimentos, na oralidade do texto impresso, no uso
dos símbolos do protestantismo e no evocar símbolos externos que ilus-
trem o posicionamento teológico tão sincero quanto. Trata-se da passa-
gem da palavra à construção da linguagem, passando necessariamente
pelo ator político e sua performance, num lance que ele busca não per-
der, mas causar um efeito: o convencimento de que sua causa é justa,
é certa e urgente, e que merece o apoio necessário para que conquiste
espaço na tomada das decisões.

312 Histórias, narrativas e religiões


O Cisma se concretizou em 31/07/1903, dando origem a Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil, formada apenas por elementos na-
cionais. Foi causado por uma disputa de poder eclesiástico. Estava em jogo
o controle da administração da Igreja brasileira por um projeto político-
-eclesiástico nacional, sem interferência estrangeira. Esse conflito dentro
do campo religioso teve início com a formação de um corpo de ministros
nacionais e assumiu contornos patrióticos e em sua apoteose viu-se vincu-
lado a uma justificativa teológica apoiada na acusação de heresia.
O uso da mídia impressa foi não somente o principal meio de
elaboração e veiculação de argumentação teológica na nascente Igreja
Presbiteriana do Brasil, bem como caixa ressonante de questões mais
complexas, de ordem político-administrativa, ideológica e inclusive de
ordem pessoal que penderam na balança da política eclesiástica. A mi-
gração da querela das páginas do jornal para as atas dos concílios enseja
questões essenciais ligadas ao surgimento, desenvolvimento, veicula-
ção, recepção, interpretação e ressignificação de ideias, demonstrando a
complexidade das relações eclesiásticas.
Nessas relações, o jornal O Estandarte teve papel essencial na
formação de opinião da liderança que se agregou a Eduardo Carlos
Pereira e também como veiculador de ideias que abriram um abismo
entre os grupos que acabaram por se antagonizar no Cisma de 1903.

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314 Histórias, narrativas e religiões


Ministério Recrie Bola de Neve Church:
um estudo sobre a abordagem virtual
direcionada a empreendedores cristãos e
seus diálogos com políticas neoliberais

Maryana Marcondes (UEL/CAPES)

Resumo: O presente trabalho trata-se do fragmento de uma de mes-


trado, sobre as concepções políticas da Bola de Neve Church, frente
ao cenário neoliberal que vivencia o Brasil contemporâneo. Portanto
através de observações de campo associadas a etnografia on line, bus-
cou-se acompanhar os objetivos, as abordagens e os valores transmitidos
pelo ministério Recrie da BNC/Londrina. Esse ministério desempenha
atividades voltadas para empresários religiosos e fiéis em situação de
desemprego, que visam inserir-se no mercado de trabalho. Esta pes-
quisa conta com as contribuições teóricas de estudos das sociologias
do trabalho e das religiões. Como resultado preliminar, é possível ob-
servar a elaboração de uma rede de contatos, serviços e empregos que
visam materializar a teologia da prosperidade, com a inserção do/da fiel
desempregado ao mercado de trabalho e na divulgação dos empreen-
dimentos de fiéis empresários à comunidade. É visualizado também a
ressignificação de discussões seculares acerca do empreendedorismo,
como a questão da liderança, que é aplicada em outras esferas da vida
social como nas atividades ministeriais e familiares. Já suas concepções
econômicas convergem a uma responsabilização do indivíduo sobre sua
empregabilidade, sendo seu pertencimento religioso um fator decisivo
para o sucesso na vida profissional.

Histórias, narrativas e religiões 315


Congregação Cristã no Brasil e mídia:
uma denominação na contramão das
Igrejas pentecostais

André Luiz de Castro Mariano (UNESP)

Resumo: A maioria das Igrejas pentecostais brasileiras vem ao longo


dos anos, não só utilizando e se promovendo através de mecanismos
midiáticos, mas também desenvolvendo seus próprios instrumentos e
métodos. Exemplos como a Igreja Universal do Reino de Deus e as
Assembleias de Deus reforçam essa tendência. O objetivo desta comu-
nicação é apresentar um caso distinto destes, como o da Congregação
Cristã no Brasil, que vem rejeitando ao longo de sua existência quais-
quer formas de mídias televisivas e de redes sociais eletrônicas, vistas
por seus adeptos ora como mundano, ora como demoníaco, e, às vezes,
oriundas de ambos. Neste caso, falar de movimentos religiosos que se
beneficiam da mídia é tão relevante quanto falar de movimentos que
os rejeitam taxativamente. É nesta linha de reflexão que se desenvolve
este trabalho.

Palavras-chave: Pentecostalismo clássico, Congregação Cristã, Mídias.

Introdução

Não é exagero pontuar o fenômeno religioso brasileiro como


um processo complexo e de constantes modificações. Muitas dessas mu-
danças são planejadas, enquanto outras são sistematicamente impedi-
das de serem empreendidas dentro do campo religioso, pelas lideranças
religiosas que atuam sobre o grupo. Um exemplo de ambos os casos

316 Histórias, narrativas e religiões


pode ser analisado através da mídia dentro do pentecostalismo clássico.
Enquanto a Assembleia de Deus vem utilizando os meios midiáticos,
sobretudo, nos últimos anos, aplicando e divulgando seu capital religio-
so, através da promoção e venda de seu capital religioso, por meio de sua
imagem como Igreja, a de seus pastores como figuras ligadas ao Sagrado
e usadas por Ele, e por que não dizer, praticando proselitismo pelas
mídias no sentido de aumentar o número de adeptos, a Congregação
Cristã no Brasil vem se mantendo dentro de uma postura completa-
mente avessa a essa. Isto só é possível porque esta última conseguiu
produzir uma estrutura blindada, que não lhe obriga a se enquadrar nas
mudanças que vêm acontecendo no meio pentecostal, ou seja, ela possui
especificidades que a distinguem das demais.
Como grupo sociorreligioso, eles se autoafirmam como uma
“irmandade” e um “povo escolhido”; não utilizam os métodos conven-
cionais para fins proselitistas ou promoção religiosa; repudiam a política
Institucionalizada, declarando-se “apolíticos” e mantendo uma relação
mínima com o Estado; não se envolvem com nenhum outro grupo, seja
ele religioso ou não; desconsideram os chamados dízimos como fonte
de arrecadação de capital e não remuneram as pessoas que trabalham
em suas Igrejas, nem mesmo seus líderes religiosos. Dessa forma, conse-
guem manter seu grupo distante de outros grupos sociais ou religiosos,
bem como uma estrutura interna coesa e em certa medida autossufi-
ciente. Portanto, estes são alguns exemplos que comprovam que essa
denominação consegue, em sua essência, eliminar tensões que poderiam
forçá-los a algum tipo de mudança ou de relações mais estreitas com
terceiros ou, ainda, a recorrerem a ferramentas como as mídias, que é o
nosso interesse maior nesta comunicação.
O objetivo deste trabalho é mostrar que este segmento religioso
vem adotando uma postura não convencional se comparado a quaisquer
outros grupos, sejam eles religiosos ou oriundos das esferas comuns.
Jamais houve uma imersão em processos de propagação de imagens de
especialização dos mecanismos, seja de pessoas físicas ou jurídicas, de
procura de novos clientes, de superação das concorrências – seguindo
sempre neste sentido – como agora, e a mídia é fundamental para o

Histórias, narrativas e religiões 317


conjunto da obra. Portanto, se “a propaganda é a alma do negócio”, a
Congregação Cristã no Brasil não está nem um pouco preocupada com
o fato. Mas, por que esta pressão do mundo moderno não consegue im-
pelir este grupo a uma mudança significativa?
Para fundamentar este trabalho, além de referenciais teóricos,
alguns apontamentos de sujeitos de pesquisa e percepções de campo são
necessários para a construção de uma reflexão sobre o assunto. Embora
esta postura de afastamento dos meios midiáticos seja uma adoção do
grupo em âmbito nacional (como uma “doutrina”), as abordagens se de-
ram a partir de sujeitos de pesquisa que moram nas cidades paranaenses
de Araucária e Fazenda Rio Grande, situadas na região metropolitana
de Curitiba, além do município de Porecatu, situado na divisa com São
Paulo. Sendo assim, a proposta de concentração sobre esta denominação
pretende mostrar que dentro do universo pentecostal, a Congregação
Cristã no Brasil possui especificidades relevantes que podem e devem
ser sinalizadas, mas sem abrir mão da proposta principal, que é a sua
determinação em não aderir aos mecanismos midiáticos para se fazer
conhecida.

Algumas referências da Congregação Cristã como


uma Igreja pentecostal

Uma maneira mais apropriada e oportuna para iniciar essa ex-


posição é dar destaque à visão principal do pentecostalismo, ou seja, o
Pentecostes, termo que remete a figura central, Espírito Santo. Segundo
Rolim (1987), para a Congregação Cristã no Brasil, o Espírito Santo é,
por excelência, o único e verdadeiro Mestre, enquanto a Bíblia é o refe-
rencial teórico a ser compreendido para o exercício das ações cotidianas.
Portanto, “a Congregação é a única Igreja pentecostal que não ensina
aos adeptos como ler a Bíblia. Professor só mesmo o Espírito Santo.
Cada um vá ler a Bíblia num canto sossegado, a escutar atento à inspi-
ração divina.” (ROLIM, 1987, p. 33). Emile Leonard (1953), um dos
318 Histórias, narrativas e religiões
pioneiros na pesquisa sobre a Congregação Cristã, já havia sinalizado
anteriormente a crença no Espírito Santo como legitimo professor, en-
quanto toda ação humana envolvendo conhecimento era desqualificada.
Conforme Nelson (1984), a referida denominação recusa a
existência de hierarquia, embora exista uma estrutura eclesiástica que
tem o ancião como ponto mais alto, seguido dos cooperadores e diáco-
nos. Não há centralização de poder, nem salários para qualquer pessoa;
aqueles que fazem parte do corpo de trabalhadores, como as zeladoras e
os que cuidam da manutenção, não são registrados formalmente, exer-
cendo trabalhos voluntários. Por isto, não se adota o dízimo ou pedido
de coleta de recursos de forma continuada como regra. Não se valem de
métodos convencionais de crescimento quantitativo, por esta razão não
se necessita de investimentos monetários relevantes. Para esse autor, as
razões acima pontuadas estão relacionadas ao tipo de governo, gerencia-
do a baixos custos, seja na construção ou na manutenção. Os templos es-
tão localizados geralmente em áreas de periferia, isto minimiza os custos
em relação à aquisição de terrenos. Os materiais são, em grande parte,
doações dos membros de várias localidades, a mão-de-obra é, em sua
maioria, voluntária. Os prosélitos são oriundos de redes sociais pessoais,
ou seja, familiares, amigos íntimos, amigos de trabalho, vizinhos, cujas
relações são estreitas, etc., o que não gera custos e ao mesmo tempo, for-
nece unidade coletiva. As tensões são pequenas, por se tratar de parentes
e amigos. Este modelo facilita não só para a construção e/ou manuten-
ção de templos, mas para unidade interna do grupo.
Quanto aos processos midiáticos, na contramão de sua con-
temporânea no “pentecostalismo clássico”, a Assembleia de Deus, ou
da “deuteropentencostal” Igreja do Evangelho Quadrangular, ou ainda
da “neopentecostal” Igreja Universal do Reino de Deus, a Congregação
Cristã jamais exerce o proselitismo público ou se utiliza dos meios mi-
diáticos de comunicação para tal. O proselitismo vigente nela sempre
foi o privado, seja no interior de suas casas, de seus templos ou de seus
locais de trabalho. Segundo Freston (1996), uma das razões fundamen-
tais para interpretação deste contexto é a doutrina da “predestinação”
muito difundida no calvinismo presente na Congregação Cristã no

Histórias, narrativas e religiões 319


Brasil. Graças a essa concepção, os membros não se sentem pressionados
a buscarem novos adeptos, pois Deus é quem se encarrega de escolher e
enviar os candidatos à salvação. Portanto,

...a doutrina da C[ongregação] C[ristã] age como um amortecedor,


permitindo que ela se contente com os velhos métodos. Isso dá à
igreja uma estabilidade em muitas áreas. Não existe a tentação de
experimentar com novos tipos de culto em nome da atratividade. A
predestinação responde por todos os sucessos e fracassos da igreja
(FRESTON, 1996, p. 104).

Nesta cosmovisão, o homem aparece como isento de quaisquer


responsabilidades, passivo incondicionalmente e supostamente condi-
cionado às vontades do sagrado, ou seja, sem liberdade de escolha, mas
ao mesmo tempo usados por Deus. É Ele quem sabe de antemão quem
são os escolhidos para salvação, bem como para condenação, e por isto,
não é preciso se preocupar em alcançar novos adeptos de forma estraté-
gica. Eles virão naturalmente, não obstante suas próprias vontades.
Ricardo Mariano (2008), também sinalizou que a Congregação
Cristã no Brasil não se sujeita às pressões em busca de crescimento,
investindo em metodologias de marketing. Seus “lideres preferem se
manter fiéis a princípios bíblicos e a tradições que norteiam sua missão”
(MARIANO, 2008, p. 75).
Embora exista um alinhamento da Congregação Cristã com a
maioria das denominações pentecostais no que se refere à interpretação
das últimas palavras de Jesus na Terra: “Ide por todo o mundo, pregai o
evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15), como um mandamento pro-
selitista, a forma adotada pelo grupo trata de um mundo restrito a eles,
ou seja, um mundo interno e seleto a ser alcançado – parentes e amigos
próximos. Outras denominações consideram esta espécie de mundo, mas
elas agregam a este um mundo externo, muitas vezes se relacionando
com desconhecidos nas ruas, que precisam supostamente de evangeliza-
ção pessoal ou através de uma gama cada vez maior de meios impessoais
como as mídias televisivas, mídias radiodifusoras, mídias escritas, mídias
de redes sociais eletrônicas, etc. Portanto, a CCB não se sente imbuída a

320 Histórias, narrativas e religiões


sair de sua área de atuação ou utilizar quaisquer meios midiáticos, com
destaque para a televisão, afinal, “ela é o ‘olho do dragão’ que tem o ob-
jetivo de destruir as famílias”150.

Reflexão a partir de interlocuções com a pedagoga


Maria Pressuto, membro da Congregação Cristã
no Brasil em Porecatu-Paraná

Em uma interlocução com Maria Pressuto, 48 anos, casada,


dois filhos, membro da Congregação Cristã no Brasil desde seu nasci-
mento, foi possível reforçar a ideia de Congregação Cristã X mídia, po-
rém com acréscimo de vários elementos para reflexão. Foi possível per-
ceber que a CCB vem abolindo não só a mídia mais comum oriunda das
programações de televisão, muito utilizada pelas grandes denominações
pentecostais como um instrumento de divulgação de seus mecanismos,
mas todos os meios possíveis, inclusive aqueles que estão disponíveis em
alguns sites. De acordo com Maria Pressuto, “todas as vezes que se veem
sites da CCB, imagens dentro de templos são posicionamentos indivi-
duais e sem a permissão da Congregação”. Se algum ancião ou liderança
religiosa responsável pela Igreja ficar sabendo que alguém fez alguma
filmagem e postou, ele pode responder por isto: “Já aconteceu com meu
esposo [que é responsável por várias igrejas na região de Porecatu e
Florestópolis] situações em que ele ficou sabendo que uma pessoa pos-
tou, e ele pedir para tirar...”. Portanto, o fato de estar disponibilizados
sites ou páginas na internet fazendo menção à CCB, não significa uma
forma de propagação de serviços oferecidos.
Outro ponto de reflexão a respeito da mídia a partir da inter-
locutora deixa claro que a Igreja, materializada no culto, é o único lugar
por excelência em que Deus pode falar. Uma mensagem assistida através

150  Frase muito comum entre os evangélicos mais ortodoxos


Histórias, narrativas e religiões 321
de um aparelho de televisão não possui legitimidade ou os elementos
necessários ou a atmosfera para uma ação divina:

Outra questão que aprendi desde muito pequena sobre a mí-


dia é assim: quando você vai a Igreja, você vai especificamente
para Deus falar com você. Fora de lá, mesmo que você escu-
te a mesma palavra não vai ser a mesma coisa. Você vai es-
tar em outro contexto, em outro lugar. Então a questão da
fundamentação daquele momento ali, já não é a mesma. Eu,
particularmente penso que não precisa da mídia, porque não
busco propagar a Igreja, e sim a doutrina, o Caminho (Maria
Pressuto, CCB de Porecatu. Data da entrevista: 03/04/2017).

Nesta forma de ver a ação Suprema sobre a pessoa ou o gru-


po, a Igreja aparece como um lugar por excelência da ação divina, se
comunicando aos seus, em tempo real e em contextos específicos. Uma
mensagem televisionada, mesmo que seja relevante, ela esvazia a ligação
entre o homem e o Sagrado, ao mesmo tempo em que é desnecessária,
pois a Igreja não precisa ser propagada àqueles que estão fora, mas a
doutrina sim, porque é direcionada especificamente ao grupo de fieis.
Existem momentos em que se necessita potencializar um ques-
tionamento e referenciais podem ser uma ferramenta para tal. Uma das
interlocuções com Joel, que é membro da CCB na cidade de Fazenda
Rio Grande, foi um ponto de partida para uma pergunta mais objetiva.
Segundo ele, entre as razões que fundamentava a não adoção de apare-
lhos de televisão em sua casa, era porque ele estaria ensinando seu filho
a se prostituir, a adulterar, sobretudo, através das novelas. A resposta de
Maria Pressuto ajuda a compreender que o posicionamento vai além das
regiões geográficas e das relações pessoais, ou seja, são praticadas entres
os membros da denominação, independente de espaço ou do conheci-
mento entre pessoas do mesmo grupo:

A respeito da televisão, nós não temos. Temos dois filhos. Eu nunca


tive televisão em casa. Meu esposo nasceu em uma família em que a
mãe é da Congregação, o Pai não segue nenhuma religião, então ele
sempre teve televisão em casa. Quando nós casamos, nunca tivemos,
porém uma das coisas que a gente sempre ouvíamos muito quando
322 Histórias, narrativas e religiões
meus filhos eram pequenos (eu tenho um que tem 27 anos e o outro
tem 24): “Ah, eles vão se prejudicar e tal”. Nós nunca tivemos tele-
visão, mas eles sempre tiveram acesso a boa literatura, tanto aquelas
que abordam princípios cristãos quanto as literaturas clássicas, isto
desde que eles eram pequenininhos. Eles sempre brincaram muitos,
nossos domingos não eram somente em casa, sem sair, eles tinham
um grupo de amigos grande e por incrível que pareça, cada um era
de uma religião, ou seja, não eram da Congregação. Eles são em cin-
co, são amigos até hoje (Maria Pressuto, CCB de Porecatu. Data da
entrevista: 03/04/2017).

Pressuto mostra que determinados valores podem transpor ge-


rações, quando diz que jamais existiram aparelhos em sua casa, e que
adotou o mesmo em sua família nuclear, mas mostra que pode haver um
redirecionamento específico na eliminação das práticas, não só pelo fato
do marido que cresceu com a presença de televisão dentro de casa, tam-
bém quanto aos filhos que mesmo interagindo com amigos de outros
segmentos religiosos – o que não é comum –, não se deixaram influen-
ciar por estes.
Sendo um sujeito de pesquisa e uma interlocutora diferenciada,
graças a sua formação intelectual – membro da Congregação Cristã des-
de sua infância, pedagoga formada e várias especializações em Educação
Especial – Maria Pressuto procurou fundamentar as razões de recusa da
TV, através da ciência e não da religião:

[Quanto a televisão] eu, particularmente achava que era um mal,


mas não um mal necessário, porque tem mal que se torna necessário,
e este é um mal que não é. Eu deveria continuar com aquilo que eu
aprendi, e o que ocorreu que me fez deixar a questão do achismo: eu
não me lembro a data certa, mas creio que foi em 2010, 2011, quando
participei de um curso de diversidade de gênero pela Universidade
Federal do Paraná com duração de uma semana. Uma das pales-
tras era sobre a televisão e a influência dela na Educação. Então, o
pesquisador disse que a televisão tem três vezes mais capacidade de
educar uma criança, através da mídia do que um livro. Então, aí deixa
de ser um achismo e passa ser comprovado. Pela doutrina, quando
Deus coloca algumas situações como a de se abster do mal, Ele já sa-
bia! Eu creio que o conhecimento científico em vez de me aproximar
Histórias, narrativas e religiões 323
da mídia, ele terminou me afastando mais (Maria Pressuto, CCB de
Porecatu. Data da entrevista: 03/04/2017).

O acréscimo desta interlocução vem por várias vias e, depen-


dendo da ótica, poderão ter importâncias variadas, a saber: ser membro
da CCB desde seu nascimento; ser mulher que se posiciona, dentro de
um segmento religioso em que os homens são prioridade; possuir uma
formação acadêmica diferenciada, mesmo fazendo parte de um universo
em que o conhecimento humano é visto como mundano; fazer uma
análise a partir de elementos científicos para se posicionar frente a um
conceito tipicamente religioso.
Quando questionada sobre o conhecimento acadêmico, cuja
perspectiva é que com o aumento do nível de conhecimento se diminui
as possibilidades de aceitação de determinados dogmas, justamente pela
capacidade de reflexão, Maria Pressuto respondeu que consegue lidar
bem com estes referenciais. Para ela,

isto foi sempre muito leve, porque eu sempre penso que eu faço as
coisas não porque eu sou da Congregação e sim pelos princípios
que aprendi. Eu digo para os meus filhos que independente deles
serem ou não da Congregação, tem princípios que são cristãos e você
tem que manter e é lógico que tem coisas que fazem parte de um
determinado grupo, só que se nós começarmos a refletir e ver aonde
isto nos leva e como eu sou da Educação, você começa ver muito
este prejuízo: a mídia começa a naturalizar as coisas que não devem
ser naturais e talvez isto me ajudou mais a não me aproximar desta
mídia tão aberta, vamos pensar assim. Eu preciso dela para estudar,
eu preciso dela para viver hoje? Mas eu não preciso abrir ela para
um domingo com o Faustão. [...]. Por exemplo: numa novela tem
sempre um esperto, um vilão. Quem é esta pessoa? Para se dar bem
na vida tem que ser assim? Ou então, é normal que eu tenha uma
casa com os filhos, mas que eu tenha um relacionamento a parte. É
natural isto aí? Será que as pessoas são preparadas para isto ou para
pegar nas entrelinhas o que tem em um programa? Por que eu tenho
que trazer para casa um programa que fala de todas as destruições
e mazelas da sociedade? Para isto é só ver: vai lá no Fórum! Pega
dados de verdade. Alguém está ganhando muito dinheiro com isto.
Para ele quanto mais ele falar, melhor é, mas vai ter um público que
324 Histórias, narrativas e religiões
assiste a ele? Então eu penso assim: não é só a questão de ligar ou
desligar, a questão é saber quais são os programas realmente didá-
ticos. Eu tenho observado que os programas que são didáticos eles
passam em horário que não é, não é [não é nobre] Aí você observa
que alguns programas como o TV Cultura, Globo Rural. Que horas
que passam? Na escola, não existe um preocupação em orientar os
alunos quanto a ser crítico da mídia. Se não tem na Escola e não tem
na Igreja, quem vai educar estas crianças? Qualquer mensagem serve
e eu não sei até quando! (Maria Pressuto, CCB de Porecatu. Data da
entrevista: 03/04/2017).

Ser da Congregação Cristã não é um problema e está em um


plano aparentemente secundário, pois os “princípios” recebidos e que
prevalecem, são os mesmos repassados para os filhos, entretanto, estes
foram construídos nela, dentro de uma família nuclear de adeptos da
própria denominação.
Diferente de Joel, o sujeito de pesquisa de referência, que foi
objetivo em dizer que as razões que fundamentavam suas escolhas, den-
tro das diretrizes da própria denominação, sendo estes o de não ensinar
ao filho prostituição e adultério, Maria Pressuto fundamenta melhor
suas escolhas e chama a atenção não só para o fato de se disseminar um
estilo de vida que prevalece: o se dar bem sobre o outro e, quando não,
somente no final é que os vilões recebem um tão sonhado “castigo”; mas
também o fato de não se ensinar as pessoas a analisarem criticamente o
que se assiste. Talvez o fato de ter uma formação intelectual distinta151
das encontradas nos sujeitos de pesquisa da CCB da Região metropoli-
tana de Curitiba, que em média não ultrapassava o primeiro grau com-
pleto, possa ter contribuído para construção de suas próprias reflexões
ou sua moral religiosa, sendo a grande responsável, mas jamais podemos

151  Maria Pressuto é pedagoga, com um curso interrompido em ciências sociais na UEL, para
se dedicar aos filhos, retomando seus estudos em Pedagogia e se especializando em Educação
Especial, Educação Infantil, Neuropedagogia, Psicopedagogia e ainda cursando a Especializa-
ção em Psicopedagogia com foco no trabalho das múltiplas inteligências e ainda, uma Pós-gra-
duação em dislexia. Seu marido é Graduado em Processamento de Dados com Especialização
em Estratégias Empresarial e Consultoria. Seus dois filhos também vem seguindo trajetórias
semelhantes, com o mais velho (27) formado em Direito pela PUC de Maringá e o mais novo
(24) concluindo a graduação em Medicina pela UEL.
Histórias, narrativas e religiões 325
desconsiderar a possibilidade proporcionada por um sujeito de pesquisa
com características peculiares como as dela.

Uma pequena etnografia, sobre a Congregação


Cristã no Brasil “nos mato”

Nestas próximas páginas, narro algumas experiências de cam-


po, pois entendo serem necessárias para transmitir um pouco dos cami-
nhos de uma pesquisa, até nos colocar dentro da casa de Israel, membro
da Congregação Cristã. Tentarei descrever o campo de pesquisa nos ter-
mos de Gilberto Velho: “quando um antropólogo faz uma etnografia,
uma de suas tarefas mais difíceis, como sabemos, ao narrar um evento,
é transmitir o clima, o tom do que está descrevendo”. (VELHO,1994,
p.13, grifo do autor).
Em maio de 2011, estrategicamente fui admitido na fabrica
da Brafer S/A, situada na cidade de Araucária, região metropolitana de
Curitiba no Paraná – uma grande empresa com mais de mil funcioná-
rios e na época com filiais no Rio de Janeiro e Juiz de Fora-MG. No
mês seguinte foi admitido o jovem Israel (30), casado há doze anos com
Janaina (26), sendo pais do pequeno Ismael (09).
Aproximadamente oito meses, fui convidado por Israel para
participar de um culto especial de “Coleta” em sua “Comum” com sua
“Irmandade”. Nosso encontro foi agendado para sábado, dia 03 de mar-
ço, no inicio da tarde em Araucária-PR rumo a um vilarejo que fica en-
tre às cidades da Lapa e São Mateus do Sul, aproximadamente 100 km
de nosso ponto de encontro. O evento estava marcado para 19h30min e
terminaria em torno de 21h30min. Logo aceitei o convite, mas nos dias
em que antecederam o encontro comecei a refletir e entendi que ficaria
cansativo retornar mesmo de carro na mesma noite. Então, conversei
com Israel e perguntei se seria possível passar a noite lá? Além disto,
minha esposa também estava querendo ir (o que é uma verdade). Ele
disse que sim.
326 Histórias, narrativas e religiões
O dia era sábado, 03 de março de 2012. Encontramo-nos
em uma rodovia movimentada em Araucária, região metropolitana de
Curitiba às 12h30min no acostamento da estrada em frente ao hiper-
mercado “Condor”. Quando cheguei, parei meu carro atrás do dele, que
logo saiu do seu, vindo em direção ao nosso, todo sorridente. Chegou
na janela para me cumprimentar e dizer que era para segui-lo, mas que
precisaria passar antes em um Posto para abastecer. Rapidamente, apre-
sentei minha esposa a ele. A viagem durou aproximadamente 90 mi-
nutos e fora esta parada no Posto teve outra escala no local em que es-
tavam construindo a igreja nova. Quando chegamos, encontramos sete
homens trabalhando voluntariamente na construção. Dentre eles, o pai
de Israel e o “Cooperador” Jonas, que é o responsável pela igreja. Este
último é uma espécie de pastor. Após apresentados aos “irmãos”, era
hora de sermos apresentados às irmãs, dentre as quais estava a mãe de
Israel. Quanto a minha esposa e a esposa de Israel, quando percebemos
já estavam conversando como se fossem velhas amigas.
Dentro da casa, estavam somente mulheres, portanto, as es-
posas dos que estavam trabalhando. Fomos apresentados, tomamos um
pouco de água e seguimos pra casa de Israel que ficava próxima à igreja.
No local foi possível entender porque se fala “os mato”. O sentido é li-
teral e não figurado. Sua casa, a de alguns outros poucos moradores e a
própria igreja se perdem em meio à floresta de araucária. Embora tenha
luz elétrica nas casas, à noite se não fossem a lua (crescente na época) e
as estrelas, não se enxergaria “um palmo na frente do rosto”.
Quando chegamos lá era ainda tarde. Ao entrar na casa percebi
que a sala tinha proporções maiores que outros cômodos152. Nela, dois
grandes sofás e alguns bancos de madeira. Não havia estantes ou tele-
visão, isto não porque estávamos em uma casa no campo, e sim porque
eles dizem ser necessário não se “contaminar com coisas mundanas”,
cuja televisão aparece em sua força máxima.
Assim que entramos colocamos nossas malas em cima da cama,
começamos conversar sobre vários assuntos: trabalho, igreja, família,

152  A dimensão da sala tem como um dos objetivos, receber pessoas próximas, geralmente,
depois dos cultos. Muitas vezes os membros se reúnem para contar suas experiências com o
sagrado, catarem hinos e tocar instrumentos.
Histórias, narrativas e religiões 327
comportamentos. Saímos para conhecer sua chácara, e ele me mostrou
as instalações de sua antiga produção de fumos (segundo ele o comercio
tinha fins medicinais). Conversamos aproximadamente duas horas. Era
já 17h00min, quando ele me chamou para irmos até a casa de seu pai,
que ficava 1 km da sua. Ao chegar lá fomos convidados para sentar na
varanda. Sua mãe pegou várias cadeiras, iniciando conosco outra série de
assuntos. Seu pai estava tomando banho, já se preparando para o “culto”,
mas seu irmão mais velho já estava pronto, dizendo empolgadamente
estar indo buscar o dono da venda para ir ao culto naquela noite. Assim
que seu pai acabou de se arrumar, uniu-se a nós, alimentando o circuito
de diálogos. Mais a frente ele me chamou para conhecer sua casa. Era
mais bem planejada e espaçosa que a de Israel, com uma cozinha sob
medida que havia sido instalada há pouco, mas segundo eles, “precisan-
do de alguns ajustes”. A sala, assim como a de Israel, possuía dimensões
bem maiores que os outros cômodos da casa, espaçosa, com vários locais
para se sentar e sem aparelho de televisão. Depois deste momento, vol-
tamos para a casa de Israel para tomar banho e nos arrumarmos para o
evento. Estávamos pronto para irmos ao “culto”...

Conclusão

A relação que a Congregação Cristã no Brasil mantém com


a mídia permanece fechada, e mesmo os casos de adeptos que abriram
seus lares para esta realidade comum aos brasileiros, não têm a aprova-
ção da liderança da denominação, e o fato não se dá abertamente, ou
seja, “a doutrina continua dizendo que não pode ter televisão”153.
Em 2011, Joel, um interlocutor membro da CCB, já havia as-
sinalado contundentemente que não tinha em sua casa, mas que sabia
que algumas pessoas, membros da Igreja já possuíam. Em 2012 em a
pesquisa de campo “nos mato” na casa de Israel, foi possível observar a

153  Esta frase é muito comum entre os adeptos da CCB


328 Histórias, narrativas e religiões
estrutura das salas preparadas para receberem grupos de pessoas, mas
sem a presença de aparelhos. Em 2015 em uma visita a Maycon, um
antigo interlocutor que na época da primeira pesquisa não era membro
da Congregação Cristã, porém havia assumido o processo de conversão
religiosa, junto com a esposa em 2013, continuava, mesmo após dois
anos, mantendo sua televisão na sala. Entretanto, em 2017, com Maria
Pressuto, foi possível não só fazer uma ponte entre o Norte do Paraná
e o Sul do Estado, no sentido de refletir a partir da concepção de adep-
tos da denominação em regiões geográficas distintas ou entre passado e
presente, mas obter referenciais que mostram que manter uma televisão
em casa deixa de ser percebido por alguns como uma heresia. Isto não
quer dizer que com o passar do tempo esta realidade vai mudar, assim
como aconteceu com a sua contemporânea de fundação, a Assembleia
de Deus e nem mesmo que passa a ser lícito. O tabu permanece atual.
Se no passado a Assembleia de Deus comungava dos mes-
mos valores, hoje, não mais, mesmo não sendo uma Igreja Universal do
Reino de Deus com sua Rede Record, mas aos poucos, vem procurando
ganhar seu espaço dentro das casas dos brasileiros. A Rede Boas Novas,
antiga Rede Brasil Norte – RBN, comprada pela Assembleia de Deus
da Região Norte do Brasil, tendo o pastor Samuel Câmara como uma
das figuras chave no processo de aquisição, em 1993 – é um exemplo
disto. A emissora não tem um alcance expressivo quanto a Record, po-
rém fornece transmissão para todos os Estados brasileiros e ainda pela
internet. Estes são valores impensáveis à CCB, mesmo que imbuídos de
suposta relevância quanto sua necessidade. Isto só é possível, através de
uma construção religiosa em que se estabeleceu, desde sua origem, um
abismo radical entre as esferas humana e celestial.
O doutor e Teólogo Key Yuasa, em sua tese de doutorado em
teologia pela Universidade de Genebra na Suiça, mostra que a Trindade
ocupa o espaço central na visão de mundo da Congregação Cristã. Yuasa
(2001), ao fazer uma análise dos materiais escritos pelo fundador da
Congregação Cristã no Brasil, Louis Francescon, permite compreender
que tanto para o fundador quanto para seus seguidores, os referenciais
de conhecimento humano e aqueles que são atribuídos a Deus são anta-

Histórias, narrativas e religiões 329


gônicos, e se forem interligados, abrem margem para uma suposta ação
do mal. Portanto, onde a Trindade não governa, é o diabo que se apro-
pria, se materializando em forma humana, com o objetivo de persuadir
o “Povo de Deus” ao erro, através do conhecimento humano.
Quanto a esta forma de conhecimento, Maria Pressuto acaba
fornecendo um contraponto com esta perspectiva, pois de um lado, se
apresenta como membro de berço da CCB que se envereda pela aca-
demia, e por outro, é capaz de produzir um discurso fundamentado em
uma postura religiosa, a partir de problematizações científicas. Quando
ela narra sua trajetória acadêmica percorrida em uma Universidade
Estadual conceituada (UEL), com várias especializações voltadas para
a Educação Especial, e apresenta um quadro em que a televisão apare-
ce como uma ferramenta altamente potente na promoção de conteú-
dos, através de imagens visuais, dentro de um curso oferecido por uma
Universidade Federal do Paraná, ela não só traz a ciência para legitimar
decisões religiosas, mas fundamenta suas próprias convicções.
Embora seja necessário filtrar ideologias religiosas, o fato de
saber articular as figuras apresentadas nas novelas dentro de uma con-
cepção em que os vilões se estabelecem, prejudicando pessoas de bem,
ao mesmo tempo em que deixa a imagem do mal que predomina a
maior parte do tempo e quando punidos, isso ocorre apenas nos últimos
episódios, ela chama a atenção para modelos que são propagados pelas
Redes de TV, cujos reflexos recaem sobre a sociedade como um todo.
Assim, ao mesmo tempo em que as informações audiovisuais ajudam
na informação, na construção de conhecimento, na eliminação de pre-
conceitos e marginalidades, para ela, acabam também desconstruindo
valores e corroendo princípios que contribuem para a formulação de sua
pergunta: “onde vamos chegar”?
Com certeza, a precocidade com que adolescentes e jovens vêm
iniciando seus namoros e ainda suas relações sexuais, não pode ser atri-
buída exclusivamente à mídia. A difusão de tais assuntos através dos
meios de comunicações ganha os lares brasileiros, encontrando um povo
despreparado para fazer – utilizando minha interlocutora – “análises
críticas e contundentes do que se assiste”.

330 Histórias, narrativas e religiões


Seja como for, mídia e CCB não fazem parte do mesmo univer-
so, ao contrário de outras denominações pentecostais, deuteropentecostais
ou neopentecostais. Isto a coloca em um lugar por excelência, diferencia-
do, justamente por estar na contramão de outras correntes religiosas. Se
isto vai durar para sempre, não se pode dizer, porém não se nega a efici-
ência das ações, não obstante, colocar os insurgentes em uma posição de
desvalorizada, ou seja, de desobediência a Deus. Estas regras são definidas
e revalidadas por um colegiado de anciões, que se reúnem anualmente
para deliberação de suas diretrizes e solução de suas mazelas.

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332 Histórias, narrativas e religiões


A Palavra Mata, o Corpo Vivifica: O
paradigma ecológico da comunicação na
Umbanda

Jorge Miklos (UNIP)


Tatiana Penna (Mestrado – UNIP)

Resumo: A Umbanda resulta de uma fusão, “fundamentada, alicerçada


[...] nos ensinamentos cristãos, temperada com tudo o que é de positivo
de outras filosofias e religiões”, (Pai Juruá apud Trindade, 2014, p. 23),
reunindo uma heterogeneidade cultural, expressa no universo simbólico
desenhado e associado à criatividade do imaginário popular brasileiro.
Boff (2014, s/p), sugere que a Umbanda sincretiza, de forma criativa,
elementos de várias tradições religiosas de nosso país, evidenciando-se
como uma religião profundamente ecológica, que devolve ao ser humano
o sentido de reverencia face às energias cósmicas. Neste sentido, o tema
deste estudo volta-se para compreensão dos fenômenos ecológicos da
comunicação na Umbanda, considerando que “la comunicación tiene uma
dimensión ecológica y ética” (ROMANO, 2004, p.145), servindo como
um mecanismo de representatividade e ligação natural entre os seres
humanos. Por sua premissa ecológica, a Umbanda se desenvolveu para
além de um texto cultural escrito (livro sagrado) pautando seus ritos,
cânticos, vestes, alimentos, saberes por meio da oralidade, da comunica-
ção pelo corpo, corroborando com Vicente Romano quando conceitua
a ecologia da comunicação, referenciando que a mesma expressa formas
duradouras e compatíveis de comunicação com o ser humano, com a
sociedade, com a cultura e o meio natural. Para investigar a questão, per-
correremos caminhos metodológicos que inicialmente consiste no em-
basamento teórico tendo a reflexão apoiada nos estudos de a respeito da
antropologia da religião: Sodré (2002); Klein (2007) estudos a respeito
da Umbanda: Ortiz (1999); Trindade (2014); e por fim para estudos
Histórias, narrativas e religiões 333
concernentes à Semiótica da Cultura, Nogueira (2012) e da Teoria da
Mídia Pross (1972) e Ecologia da Comunicação Romano (2004).

Palavras-chave: Religião; Ritual; Umbanda; Ecologia da Comunicação;

Introdução
“Mito é a religião do outro” – Joseph Campbell

Em 2014, no Rio de Janeiro, O Ministério Público Federal


requereu um pedido que obrigasse o Google a retirar 15 vídeos ofensivos
à umbanda e ao candomblé, postados no site youtube. Segundo essas
gravações, as religiões de origem africana estão ligadas ao “mal” e ao “de-
mônio”. Um dos vídeos afirma que “não se pode falar em bruxaria e magia
negra sem falar em africano” e outro associa o uso de drogas, a prática de
crimes e a existência de doenças como a AIDS a essas religiões. Embora
as opiniões sejam atribuídas a grupos evangélicos, não foi possível iden-
tificar quem publicou ou divulgou essas gravações na internet.
Para o Ministério Público Federal, esses vídeos disseminam o
preconceito, a intolerância e a discriminação a religiões de origem afri-
cana. Por isso, o órgão enviou recomendação ao Google no Brasil para
que retirasse as gravações da internet. Mas a empresa se negou a atender
o pedido, afirmando que o material divulgado “nada mais é do que a ma-
nifestação da liberdade religiosa do povo brasileiro” e que os vídeos discu-
tidos não violam as regras da empresa. Diante da postura do Google, o
MPF foi à Justiça para pedir a retirada dos vídeos.
O juiz federal Eugenio Rosa de Araújo, da 17.ª Vara Federal do
Rio, negou o pedido afirmando em uma sentença que “as manifestações
religiosas afro-brasileiras não se constituem em religiões” (grifo dos auto-
res). Referindo-se à Umbanda e ao Candomblé, o magistrado afirmou
que “não contêm os traços necessários de uma religião” por não terem um
texto-base (como a Bíblia ou o Corão), uma estrutura hierárquica nem “um

334 Histórias, narrativas e religiões


Deus a ser venerado” (grifo dos autores). “Os vídeos contidos no Google são
manifestações de livre expressão de opinião”, afirmou Araújo.
Da sentença do juiz federal podemos extrair dois sintomas: o
magistrado reproduz uma atitude típica de preconceito à cultura afro-
-brasileira e incorpora uma versão eurocêntrica e etnocêntrica de que só é
cultura aquilo se expressa pelo texto, pela palavra escrita, pelo livro. Dessa
forma, qualquer manifestação cultural (artística e/ou religiosa) que não
tivesse “escrita” não é cultura, ou melhor, não é digna do rol da civilização.

Comunicação e as Linguagens da Religião

Retomando a questão. Com todas as vênias caberia aqui inda-


gar o ilustre magistrado: as manifestações religiosas afro-brasileiras pelo
fato de não terem um texto-base não se constituem em religiões?
Segundo Ivan Bystrina (1995), é por meio da criação de tex-
tos simbólicos que os primeiros hominídeos começaram a desenvolver
a linguagem, as imagens, os jogos, os rituais fúnebres, e todas outras
manifestações proto-religiosas.
O mito, a linguagem da experiência humana diante do mistério
da vida, pode ser apenas expresso pelo uso dos símbolos. Os símbolos,
por sua vez, representam as vias de comunicação que se estabelecem por
meio de configurações que lhe proporcionam sentido. No caso das reli-
giões primitivas, os símbolos englobavam o universo das representações
da tribo, refletindo as inter-relações Homem/Natureza, humano/sobre-
natural de acordo com a capacidade de entendimento coletivo.

A vida de um organismo pluricelular sempre com a morte. O fato de


que a morte é mais forte que a vida constitui uma assimetria. Apenas
com a criação da 2ª realidade, ou seja, de que existe uma forma de
vida qualquer após a morte. Somente em alguns casos podemos di-
zer de sobrevivência na 1ª realidade: quando na biologia se afirma,
por exemplo, que não são os indivíduos, mas os genes que vencem a
morte (BYSTRINA, 1995, p. 15).

Histórias, narrativas e religiões 335


A eficácia simbólica das forças criativas do macrosistema co-
municativo faz da Cultura fator de autoconsciência, responsável pela
atuação do homem no mundo humano; e essa segurança de sobrevi-
vência em um território material, sob circunstâncias físico-biológicas,
foi chamada por Ivan Bystrina de primeira realidade. O conceito de
segunda realidade é usado para designar as criações imagéticas da cultu-
ra humana operadas por códigos simbólicos. Bystrina (1995) considera
que as raízes da cultura estão diagnosticadas em quatro momentos es-
pecíficos: no sonho, no jogo, nas variantes psicopatológicas e nos estados
alterados da consciência.
A segunda realidade, também pode ser tomada como a dimen-
são do imaginário, se expressa em uma gama diversa de textos verbais e
não verbais, códigos, suportes e linguagens (oralidades, gestos, danças,
sons, alimentos, etc.) numa gama variada. A comunicação não se reduz
à escrita, como pondera Miklos (2014, p. 74):

Comunicar não é apenas uma troca de mensagens simples, como


já sabemos, mas é um jeito de estar no mundo com outras pessoas,
de estabelecer relações com o meio ambiente e com os outros se-
res vivos (homens e animais). Do mesmo modo que a humanidade
não começa a se comunicar com a escrita, com o verbal, o indivíduo
também não começa a se comunicar apenas quando começa a falar.
Desde muito antes ele já envia sinais, estabelecendo uma espécie de
troca de significados e afetos.

As experiências religiosas midiáticas são algo tão antigo quanto


às próprias manifestações religiosas já que as cerimônias místicas arcai-
cas utilizavam centralmente o corpo em seus rituais.
Harry Pross e sua obra Medienforschung (1972), explica que
há três tipos de mídia: a primária, a secundária e a terciária. Segundo
a classificação de Pross, a mídia primária é o próprio corpo. Pross for-
mula sua frase lapidar: “Toda comunicação começa no corpo e nele termi-
na”. Isso significa que, para ele, o corpo é a mídia primordial. Segundo
ele, toda comunicação humana começa no corpo e termina no corpo.
Mesmo que tenhamos um enorme aparato tecnológico de redes que
interligam boa parte do mundo e que se possa comunicar por meios
336 Histórias, narrativas e religiões
de fluxos eletrônicos que circulam por toda parte, o corpo está pre-
sente nos pontos e nós da rede e essa presença marca a comunicação
de qualquer maneira em todos as suas dimensões: o emissor, as audi-
ências, as interações, os canais, as mensagens, as decodificações e as
resistências e apropriações diferenciadas.
A partir de Pross, Baitello (2015) descreve várias possibilidades
comunicativas da mídia primária: “O nosso corpo é de uma riqueza co-
municativa incalculável (...) sem sombra de dúvida, é esta a mídia mais
rica e complexa (...) a voz, o cheiro, o gesto (...)”.
Nossos ancestrais se comunicavam como outros animais: atra-
vés de expressões faciais, gestos, posturas, vocalizações. É de se imaginar
que, como mamíferos superiores, primatas inteligentes e bípedes arte-
sãos, eles tinham desenvolvido, ao longo de dezenas de milhões de anos
de evolução biológica e experiência social, um múltiplo arsenal de recur-
sos comunicativos não-verbais: sorrisos de simpatia, risadas de alegria,
gargalhadas de galhofa, palidez e rubor denunciando emoções fortes,
caretas de medo e de dor, testa franzida de preocupação e de aborre-
cimento, olhares de ternura ou de ferocidade, resmungos e rosnados,
gritos e de chamamento e de afugentamento, gestos de carinho e de
ameaça. A esse conjunto de meios, parte fixada instintivamente, parte
adquirida socialmente por imitação, se pode chamar de comunicação
corporal que o homem utiliza intensamente até hoje e sofistica ao má-
ximo como mostram as artes da mímica e da dança.
Sob esta ótica, nos atos primevos das manifestações religiosas,
a participação do sujeito, sua sensibilidade presencial é um dos elemen-
tos exigidos para se viver e conviver em comunidade. A religiosidade
sobrevive na força desta realidade construída socialmente, pois esta lhes
serve de referência. As experiências estéticas trazem sentido e dão sig-
nificados aos atos.

Ocorre que o homem, em sua inquietude e criativa operosidade,


procura aumentar sua capacidade comunicativa, criando aparatos
que amplifiquem o raio de alcance de sua “mídia primária”. Inventa
a máscara, que lhe acentue não apenas traços faciais, mas também
lhe amplifique a voz; as pinturas corporais, as roupas, os adereços e

Histórias, narrativas e religiões 337


depois os aparatos prolongadores e/ou substitutos do próprio corpo
inauguram um quadro de mediação mais complexo, o da “mídia se-
cundária”. Aí não podemos nos esquecer da escrita e todos os seus
desenvolvimentos, carta, imprensa, livro, jornal; tampouco podem-se
deixar de fora as técnicas de reprodução da imagem. A “mídia se-
cundária” requer um transportador extra-corpóreo para a mensagem,
vale dizer, precisa de um aparato que aumente o raio de ação tempo-
ral ou espacial do corpo que diz algo, que transmite uma mensagem
ou que deixa suas marcas para que outro corpo, em outro espaço ou
em outro tempo, receba os sinais. Já a “mídia terciária” requer não
apenas um aparato para quem emite, mas também um aparato para
quem recebe uma mensagem. Para que se possa alcançar alguém e
enviar uma mensagem é preciso que os dois lados possuam os res-
pectivos aparelhos: telefone, rádio, fax, disco, vídeo, televisão, correio
eletrônico são os exemplos evidentes. (BAITELLO JR, 1999, p. 43).

Porém, mesmo corroborando com a legitimidade dos apara-


tos comunicacionais, neste ensaio, ensejamos fazer um contraponto as
mídias secundária e terciária, que muitas vezes, intentam de certa for-
ma, gerar um apagamento dos indivíduos, nos processos de comuni-
cação, assim sendo, para fins deste estudo tomamos como referencia a
mídia primaria, pautada no conceito de “ecología de la comunicación”154 de
Vicente Romano, presente nos elementos ritualísticos religiosos, como
um possível suporte mantenedor das oralidades e das práticas nos ritos,
em especial, neste artigo, no cenário dos rituais Umbandista.

Umbanda is for all for us

Escrever sobre a Umbanda nos é deveras um desafio, dada a


amplitude do universo simbólico desenhado e associado à criatividade
do imaginário popular brasileiro que, quando se volta para essa filosofia
religiosa, ganha dimensões de magnitudes imensuráveis que dificultam

154  Abordaremos este conceito com mais profundidade ao final deste ensaio.
338 Histórias, narrativas e religiões
amarração teórica e conceitual sobre esta religião, que conduz em seu
seio uma mística crística, que perpassa por caminhos que se pautam
em saberes, crendices e valores populares que se confluem naturalmente
com a condição imaginaria e cultural brasileira.
A expressividade deste repertório cultural religioso é perceptí-
vel quando retomamos os textos que narram quanto ao surgimento da
Umbanda no Brasil, que ao longo deste, mais de um século da história
de sua fundação, espalha pelo país nuances diversos em seus ritos, práti-
cas e símbolos, que no decorrer deste período mantiveram-se vivos em
decorrência da transmissão oral, que irromperam estilos díspares quanto
as formas de Umbanda, a exemplo disso, encontramos habitualmente
nas literaturas uma vasta lista de nomenclaturas para esta religião como
Umbanda Branca, Umbanda Omolokô, Trançada ou Mista, Umbanda
Esotérica, Umbanda de Caboclo, Umbanda Eclética, entre tantas outras
variações, mas que indiscutivelmente abrigam em seu intimo a manifes-
tação do espírito para uma Umbanda: de humildade, amor e caridade.
Conquanto, para fins deste estudo tomaremos como parâmetro a
Umbanda Originária, cognome adotado pelos autores para referenciar
a então intitulada primeira tenda de Umbanda, a Tenda Espírita Nossa
Senhora da Piedade, na qual percebemos uma fidelidade aos ritos que
tradicionalmente foram oralizados, todavia, não nos cabe e ou interessa
fazer distinção entre certo ou errado dos demais ritos provenientes das
outras possibilidades da religião que indubitavelmente manifesta-se
“como um organismo vivo” (CUMINO, 2015, p.33).

Elementos Ritualísticos e Comunicativos da Umbanda

Cada ritual tem um modelo divino, um arquétipo... (ELIADE, 1992, p. 26)

A Umbanda apresenta como descreve Trindade um conjunto


de “cadinhos”, observadas intensamente nas literaturas que discorrem

Histórias, narrativas e religiões 339


sobre essa religião e nas observâncias, mesmo que advindas das poucas
experiências e vivências dos autores, quanto às práticas e ritos, contem-
plados em algumas casas, tendas, centros ou terreiros, bem como, estes
espaços, a partir das raízes da sua fundação, podem ser denominados por
esse Brasil afora.
Refletir quanto às bases epistemológicas concernentes aos ele-
mentos ritualísticos e comunicacionais das Umbandas nos é requerido
apreciar que “o estudo do fenômeno religioso necessita do trabalho em
colaboração de muitos saberes, devido à imensa complexidade, universa-
lidade e pluralidade de suas manifestações” (NOGUEIRA, 2012, p. 12),
enredo muito presente no universo místico da Umbanda.

O fenômeno religioso revela nas mais diversas culturas a necessidade


humana de dar uma forma específica ao sagrado, a fim de apreendê-
-lo através dos sentidos e não somente pela razão. Tanto em religi-
ões primevas quanto no próprio Cristianismo, notamos uma intensa
participação dos sentidos na experiência religiosa: inserimos nossos
deuses, sentimos sua presença através do perfume dos incensos, ou-
vimos suas vozes e, tomados pelo transe, falamos línguas estranhas.
(KLEIN, 2006, p. 29)

Desta forma, em posse dessa afirmativa, como delimitar as for-


mas dos rituais e expressões comunicativas da Umbanda, à medida que
ela se apresenta tão diversa em suas linguagens e composições? Para res-
posta a primeira indagação, encetaremos com o conceito de rituais como
bem descreve Wulf (2013, p. 89), que define estes enquanto, “(...) formas
mais efetivas de comunicação e interação humana. Podemos pensar os
rituais como as ações nas quais as encenações e performances do corpo
humano desempenham um papel central”.
Se temos nos rituais religiosos uma forma de comunicação que
tem por efeito estimular a biologia dos indivíduos e sincronizar os gru-
pos (CYRULNIK, 1995, p. 106, apud CONTRERA, 2005, p. 115), ao
adentrarmos o universo Umbandista, esta máxima ganha expressividade
quando nos voltamos aos ritos sacros desta religião que tem na natureza
seu principal ponto de força.
340 Histórias, narrativas e religiões
A organização dos rituais de Umbanda decorre desde a prepa-
ração do corpo: “Somos Templos Vivos” (Mestre Rubens Saraceni, s/ d),
e por essa premissa, o praticante umbandista ter o “dever de ser sagrado”,
ao espaço físico de Templo, que são “consagrados às Divindades e aos
rituais religiosos de Umbanda” (CUMINO, 2015, p. 19), que compre-
endem todo processo ritualístico e fundamental para a preparação do
ambiente destinado à realização dos trabalhos: o altar, as imagens, as
velas, flores, ervas, raízes, vestuários, instrumentos e disposição dos ata-
baques (para as casas que fazem uso); a defumação do espaço; e por fim
a “firmeza” para a corrente mediúnica. Isto posto, evidencia o sentido de
os rituais preconizarem começo, meio e fim (WULF, 2013).
De maneira geral, as sessões umbandistas de trabalhos são ma-
terializadas por dois formatos que se apresentam distintos em decorrên-
cia das suas particulares funções:

1.Sessão de Caridade: esta caracteriza por pela presença dos espí-


ritos que descem do Astral para atender aos pedidos das pessoas
(da assistência), desse modo estas podem estabelecer contato dire-
to com os espíritos por meio do passe ou da consulta.
2.Sessão de Desenvolvimento Mediúnico: destinada aos estudos da
doutrina umbandista, nessa sessão não há atendimento à assistência.

Ao observar etnograficamente as sessões umbandistas, corro-


boramos de que a comunicação, reforçada pela contribuição de Harry
Pross, 1972 “começa no corpo e nele termina”, talvez pelo sentido do
rito de umbanda enquanto, “(...) encantamento da Vida que se executa
no terreiro da Natureza, é a própria liturgia estabelecida pelo cerimonial
executado na Natureza em festa, refletindo docilmente no ritual que
todos os seres comungam” (Caboclo Mirim, por Benjamim Figueiredo,
s/d, p; 21).
Deste ponto em diante, para melhor elucidar quanto aos ele-
mentos ritualísticos da umbanda e estes como rudimentos convergentes
de comunicação humana, apresentaremos alguns momentos que fazem
parte do corpo do ritual da religião.

Histórias, narrativas e religiões 341


A. Abertura da Sessão

No ritual de abertura de uma sessão umbanda, tanto de cari-


dade como de desenvolvimento, existem elementos fundamentais para
realização sessão, por exemplo: preparação dos médiuns (banhos de
defesa, firmeza de força, vestes, etc.), organização quanto à posição no
recinto (ou no Congá), geralmente homens de um lado, mulheres de ou-
tro, inclusive na assistência, tendo ao centro o/a dirigente, bem como os
pontos cantados, rezas e defumação do espaço para purificar o ambiente
e assim dar inicio aos trabalhos.
Como um elemento ritualístico, é preparado com ervas como
alecrim, arruda, alfazema, etc., é feita na abertura da sessão acompanha-
da pelos pontos cantados.
A defumação segue um padrão espacial e hierárquico para de-
fumar o recinto e as pessoas, conforme a seguinte prescrição: o altar,
atabaques (caso a “casa”, faça uso), os quatro cantos, os anexos (espaços
destinados a guardar as indumentárias, os objetos usados durante as ses-
sões, o/a dirigente da casa, os/as médiuns e por fim a assistência).
É usada para purificar o ambiente, diluindo energias negativas,
à medida que intensifica a atmosfera mágica e sacral.

B. Pontos Cantados

Os pontos cantados são as musicas e cantos entoados, uti-


lizados como forma de saudação aos Orixás, Entidades ou Guias da
Umbanda, estes tem como força sua representatividade oratória no que
concerne agradecer, saudar ou realizar pedidos de proteção, bem como,
por caracterizar-se como um potente aparato de estímulo à concentra-
ção dos médiuns facilitando a incorporação, a medida que também cria
harmonia meditativa da assistência, potencializando o campo energéti-
co da corrente vibratória.
342 Histórias, narrativas e religiões
Muitos pontos cantados foram apresentados pelas entidades/
guias que se apresentam nas sessões.

C. Transe Mediúnico: incorporação

A religião umbandista fundamenta-se no culto dos espíritos e é pela


manifestação destes, no corpo do adepto, que ela funciona e faz viver
suas divindades; através do transe, realiza-se assim a passagem entre
o mundo (...) dos deuses e o mundo (...) dos homens. A possessão
é portanto o elemento central do culto (...) (ORTIZ, 1999, p. 69)

A vinda das entidades/guias da umbanda por meio dos mé-


diuns tem como propósito “ajudar” na condução das sessões, disponibili-
zando atendimento ou passes aos consulentes, por exemplo. No proces-
so de incorporação são manifestos aspetos, maneiras, vozes e linguagens
da entidade incorporada.

Neste estudo, como nota-se, optamos por selecionar quatro


momentos de uma sessão ou gira de Umbanda, apreendendo que:

Seres humanos se comunicam e interagem em praticas rituais e re-


presentações. Rituais são corpóreos, performativos, expressivos, sim-
bólicos, regulados, não instrumentais, eficientes; eles são repetitivos,
homogêneos, liminares, lúdicos, públicos e operacionais; rituais são
modelos institucionalizados nos quais praticas de ação e conheci-
mentos coletivamente compartilhados são encenados e executados e
a autoprojeção e autointerpretação de ordens culturais são reafirma-
das (WULF, 2002, 2005, apud WULF, 2013).

Por assim, sem a escolha destes fragmentos se fez, em decor-


rência do interesse em demonstrar metodologicamente nossa hipótese,
quanto à importância do corpo nos processos de rituais religiosos, tendo
em vista que no caso desta religião o corpo é o instrumento que media o
ritual, fazendo uso de elementos comunicativos primários como a orali-
Histórias, narrativas e religiões 343
dade, a dança, o canto, o uso de ervas e a representação mítica dos guias
espirituais, enquanto componentes do sagrado.

A Ecologia da Comunicação: sua interlocução com


a tradição espiritual da Umbanda.

Boff (2014, s/p), descreve que a umbanda sincretiza, de forma


criativa, elementos de várias tradições religiosas de nosso país, eviden-
ciando-se como uma religião profundamente ecológica, que devolve ao
ser humano o sentido de reverencia face às energias cósmicas.
Por esta perspectiva ecológica que traz sentido humano fren-
te as suas dimensões cósmicas, como forma de ligação com o sagrado,
é que este ensaio, pauta-se na “ecología de la comunicación” de Vicente
Romano, que é concebida como teoria/tese de pesquisa que estuda: o
impacto e efeito da comunicação técnica sobre a natureza da comunica-
ção humana, na sociedade.
Desse modo, a ecologia da comunicação, em seu intimo re-
presenta todas as “formas duradouras de comunicação compatíveis com
o ser humano, a sociedade, a cultura e o meio ambiente” (ROMANO,
2004, p. 152).
Na Ecologia da Comunicação, o autor incita de que ela tem
como principio o estabelecimento de uma ponte entre a teoria da co-
municação e a ecologia humana, que tece as relações dos sujeitos com
seu meio, e desta forma, quando voltamos estes elementos para o cam-
po religioso, observamos que o desenvolvimento da identidade, atrela-
-se ao desenvolvimento corporal e espiritual, e assim por consequên-
cia, com a nossa capacidade de aprender a dimensão de solidariedade.
(ROMANO, 2004, p. 161), tão necessária aos rituais religiosos por sua
possibilidade “... de evocar experiências emocionais que podem ser asso-
ciadas a conceitos sobrenaturais...” (SOSIS, 2005, p. 47)
Romano (2004, p. 145) nos remete a observar de que na so-
ciedade moderna está presente uma redução nos contatos pessoais, e
344 Histórias, narrativas e religiões
desta forma, sucessivamente, uma redução na comunicação primária,
acarretando numa fragilidade entre o universo de informações e a fun-
ção social da comunicação, culminando no que o autor vai descrever
como uma crescente disbiose comunicativa entre a comunicação pessoal
e técnica traz consequências sobre seres dialógicos como os humanos,
fazendo com que:

A solidão e perda de relacionamento são os efeitos mais óbvios.


Como afirmou, entre outros, o Sr. Klenk, homeostase espiritu-
al interna é desequilibrada. O resultado é o “perda de presença”, a
colonização crescente de Biotempo por monólogos permanentes
da técnica, deixando os seres humanos sem a presença da outro.
(ROMANO, 2004, p. 145)

Desta maneira, a religião por meio de seus rituais, como men-


cionado anteriormente é tida como uma experiência humana. E, no cená-
rio umbandista, observamos que os seus processos ritualísticos preservam
uma gama de manifestações religiosas comunicativas que estabelecem na
mesma medida em que fortalecem o vínculo entre os seres humanos.
Existe nos elementos ritualísticos um desejo pela preservação
de memórias ancestrais, simbolizadas na continuidade prática desses ri-
tos, que são transferidos, de geração para geração, manifestos nos prin-
cípios da oralidade, que se caracteriza por consistir em uma ação co-
municativa responsável por manter vivas crenças, valores e tradições de
cunho cultural ou religiosas, bem como, pelas comunicações pelo corpo,
tornando estes dois elementos forças motrizes na manutenção viva dos
fundamentos dos ritos preconizados pela filosofia religiosa em questão.
E assim, por sua premissa ecológica, a Umbanda se desen-
volveu para além de um texto cultural escrito (livro sagrado) pautando
seus ritos, cânticos, vestes, alimentos, saberes, no que comungamos com
Muniz Sodré (s/d), no primeiro livro sagrado: “A Natureza”.

Histórias, narrativas e religiões 345


Caminhos a percorrer

A maior parte das pesquisas no campo da comunicação sobre


o fenômeno religioso trata da midiatização, ou seja, da apropriação por
parte das igrejas/religiões dos dispositivos midiáticos e das implicações
que esse fenômeno apresenta e não raríssimas exceções ignoram as de
tradições africanas e por sua vez a essencialmente brasileira: a Umbanda.

A Umbanda difere radicalmente dos cultos afro-brasileiros ela tem


consciência de sua brasilidade, ela se quer brasileira. A Umbanda
aparece desta forma como uma religião nacional que se opõe às
religiões de importação: protestantismo, catolicismo e kardecismo.
(ORTIZ, 1999, p. 16)

Como uma alternativa aos estudos e pesquisas em comunica-


ção, este ensaio buscou enveredar suas reflexões, desprendendo-se da
visão eurocêntrica e etnocêntrica de que só é cultura aquilo que se ex-
pressa pelo texto, pela palavra escrita, pelo “livro sagrado”, e deste modo,
por consequência, com a concepção de que a comunicação se reduz a
mídia impressa ou eletrônica.
Por este prisma, consideramos que as Umbandas por meio dos
seus elementos ritualísticos, corporeamente comunicativos, apresentam-
-se transgressoras, à medida que rompem com as ideologias religiosas
cristocêntricas.
E desta forma, aventurando-se pela possibilidade conceitual,
teórica e ecológica da Ecologia da Comunicação, que arriscamos afirmar
ser esta, ainda, desconhecida dos estudos em comunicação no Brasil,
tomamos como referência de que “la comunicación tiene uma dimensión
ecológica y ética” (ROMANO, 2004, p.145), e portanto, sustentamos o
sentido social e cultural definido por Romano, quando coloca que o
valor de uso da ecologia da comunicação encontra-se em libertar-se do
jugo de meios simples de produção, de seu aspecto técnico e valioso, para
transformar-se em comunicação que produza e conserve as experiências

346 Histórias, narrativas e religiões


relacionais, a vista disso, servindo como um mecanismo de representati-
vidade e ligação natural entre os seres humanos.
Por sua premissa ecológica, a Umbanda se desenvolveu para
além de um texto cultural escrito (livro sagrado) pautando seus ritos,
cânticos, vestes, alimentos, saberes por meio da oralidade, da comunica-
ção pelo corpo, corroborando com Vicente Romano quando conceitua
a ecologia da comunicação, referenciando que a mesma expressa formas
duradouras e compatíveis de comunicação com o ser humano, com a
sociedade, com a cultura e o meio natural.
Neste sentido, tomando a religião por um fenômeno humano e
inscrita no texto da cultura, apreendemos esta como uma composição de di-
versas expressões e linguagens comunicativas (textos, imagens, sons, olfatos,
paladares), e por esta premissa, dar contornos fechados ao entendimento
acerca da religião é um risco limitador as suas várias linguagens que trans-
cendem “ao clerical, sacerdotal, e ao teológico” (NOGUEIRA, 2012, P. 15).
“Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica” (2 Coríntios, 3:6)

Referências

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Paulo: Editora Sextante, 2000.

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Semiótica da Cultura e da Mídia, PUC-SP, 1995. Disponível em http://cisc.org.br/html/. Aces-
so em 16.abr.2017.

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COS. n. 28. Porto Alegre: 2005.

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ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. Tradução José A. Ceschin. São Paulo: Mercuryo,
1992.

KLEIN, Alberto. Imagens de culto e imagens da mídia: interferências midiáticas no cenário


religioso. Porto Algre: Sulina, 2006.

MIKLOS, Jorge. Cultura e Desenvolvimento Local: Ética e Comunicação Comunitária. São


Paulo: Saraiva, 2014.

Histórias, narrativas e religiões 347


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tal umbandista. 5. ed. São Paulo: Madras, 2016.

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TRINDADE, Diamantino Fernandes. Historia da Umbanda no Brasil. Limeira/SP: Editora


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WULF, Christoph. Homo Pictor: imaginação, ritual e aprendizado mimético no mundo glo-
balizado. Tradução Vinicius Sprigio. São Paulo: Hedra, 2013

348 Histórias, narrativas e religiões


Cinema Evangélico no Brasil:
A sétima arte a serviço da fé

Gerson Leite de Moraes (Mackenzie)

Resumo: Desde o lançamento no Brasil do filme Nosso Lar, de cunho


espírita, houve uma resposta rápida dos evangélicos vinculados ao cam-
po pentecostal. Não tardou para que aparecessem filmes com temáticas
moralistas e conversionistas, geralmente gravados nos EUA, em regiões
onde sabidamente predomina o fundamentalismo teológico. A Graça
Filmes, braço do império midiático comandado pelo missionário RR
Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, divulga em seu
catálogo uma série de filmes que estão fazendo muito sucesso entre os
evangélicos brasileiros, tais como Deus não está Morto e Quarto de Guerra,
além de ter bancado financeiramente o filme Três histórias: um destino,
baseado numa obra do seu líder e fundador. O objetivo deste trabalho é
mapear e descrever este fenômeno recente do campo pentecostal brasi-
leiro. Pretende-se também compreender e analisar o cinema como uma
ferramenta poderosa de construção de identidades que quebram barrei-
ras denominacionais, aproximando no plano da arte cinematográfica,
pentecostais e protestantes históricos.

Palavras-chave: Cinema, Pentecostalismo, razão, emoção, filmes.

1) O nascimento do Cinema e a Sociedade de Massa

O século XX viu emergir aquilo que os especialistas denomi-


naram como sociedade de massa. Ao contrário do que muitos imaginam
a sociedade de massa não é definida pelo número excessivo de pessoas,

Histórias, narrativas e religiões 349


não significa, portanto, “sociedade grande”. Basta observar casos como o
da Índia para perceber que ali temos uma sociedade numerosa, mas não
necessariamente uma sociedade de massa. A sociedade de massa, desde
que começou a ser um objeto de análise - principalmente para os pes-
quisadores de comunicação de massa – foi definida de várias maneiras.
Eliot Freidson, por exemplo, dizia que:

A sociedade de massa tem quatro características distintivas. Primeiro,


ela é heterogênea em sua composição, seus membros advêm de to-
dos os grupos que compõem aquela sociedade. Segundo, ela é com-
posta por indivíduos que não conhecem um ao outro. Terceiro, os
membros da massa estão espacialmente separados um do outro, e
neste sentido, não podem interagir entre si ou trocar experiências.
Quarto, a massa, não tem liderança definida e tem uma organiza-
ção muito frouxa, isso se houver alguma. (FREIDSON, 1953, p.313.
Acesso em 04/02/2015. disponível em: http://www.jstor.org/sta-
ble/2087887?seq=5#page_scan_tab_contents)

Como se pode perceber, esta definição da década de 50 do sé-


culo XX, já não é suficiente para descrever a sociedade de massa dos
nossos dias, principalmente em relação ao isolamento e impossibilidade
de interação, tendo em vista as facilidades tecnológicas existentes hoje
na atualidade que são capazes de conectar vários indivíduos em tem-
po real, mesmo que separados espacialmente. Na tentativa de combinar
várias teorias sobre o assunto, pode-se resumir a sociedade de massa da
seguinte forma: “(1) os indivíduos são considerados numa situação de
isolamento psicológico uns dos outros; (2) diz-se predominar a impes-
soalidade em suas interações com outros”; (3) são considerados isentos
das exigências de obrigações sociais formais forçosas”. (DEFLEUR;
BALL-ROKEACH, 1993, pp. 177-178)
Independente das mudanças conceituais sobre sociedade de
massa, é inegável que seu advento ocorreu no contexto do século XX
e, neste contexto floresceu também um meio de comunicação que se
vincula intimamente àquela, este meio é o cinema.
A criação do cinema pode ser atribuída a várias inteligências,
não é obra de um único homem ou de um único povo, pois é a somató-

350 Histórias, narrativas e religiões


ria e a evolução de várias contribuições que foram sendo construídas ao
longo da história. No Oriente, há muitos séculos já se conhecia o espetá-
culo das sombras chinesas, mas no Ocidente, tradicionalmente se parte do
século XV, por volta de 1420, no ambiente da Itália Renascentista quan-
do pela primeira vez se faz menção de uma lanterna que projetava numa
parede um quadro pintado no seu cilindro de vidro e, o responsável por
tal façanha é G. Fontana. Também se diz que na mesma Itália, por volta
de 1500, Leonardo da Vinci fez a primeira descrição exata e em detalhes
da câmara escura. Já em 1640, um padre, que não se tem certeza, nem do
nome e nem da sua nacionalidade, teria sido o responsável pela criação
da Lanterna Mágica, que foi aperfeiçoada ao longo do século XVIII.

Cumpre assinalar que na Alemanha, em 1727, um professor de


medicina da Universidade de Halle, Johann Heindrich Schulze,
descobriu a sensibilidade dos sais de prata à luz, fato de suma im-
portância para a fotografia e, consequentemente, para o desenvol-
vimento daquilo que se convencionaria chamar cinematógrafo. A
lanterna mágica aperfeiçoada por Robertson foi crismada, dado o
fim a que se destinava, de fantascópio. Com ela, obtinham-se efeitos
de movimento mediante deslocamento das figuras (desenhadas) ou
mediante modificações da ‘óptica’ durante a exibição. Lord Henry
Brougham, em 1796, de sua parte, faz uma importante descoberta:
o princípio da chapa fotográfica, enquanto na Suíça Pierre-Louis
Guinand, se torna o precursor da fábrica de vidro fundido (lentes
fotográficas) de qualidades ópticas impecáveis. (PEREIRA, p.13)

Já no XIX, foi possível verificar a invenção de várias engenho-


cas que foram precursoras da cinematografia, como o finacisticópio, o
traumatópio, o zootrópio e o estroboscópio. Obras de belgas, ingleses, vie-
nenses, estas invenções colocam-se na esteira que desembocará na cine-
matografia dos irmãos Lumière.

O primeiro aparelho que realizou, por sinal, a síntese do movimento,


com auxílio de imagens fotográficas, foi o fonoscópio, construído pelo
fisiólogo Georges Demeny, em 1891. [...] Foi, entretanto, o cinetos-
cópio, de Thomaz Alva Edson, que permitiu, com mais perfeição, em
1892, fazer a síntese do movimento com o emprego de longas séries

Histórias, narrativas e religiões 351


de imagens fotográficas escalonadas ao longo de um ‘filme’ de celu-
loide, fechado sobre si mesmo, de modo a formar uma faixa sem fim,
filme esse produzido por George Eastman, de Rochester, sensível à
luz e com perfurações marginais. Observava-se o filme através de
uma lente. As imagens eram clareadas por transparência, por meio
de uma pequena lâmpada elétrica cuja luz era periodicamente cor-
tada por um disco giratório. Era, durante o tempo consumido em
cada eclipse, que se operava a substituição de cada fotografia pela
seguinte. (PEREIRA, pp.16-17)

Como consequência de todos os avanços mencionados, entre


1894/95, os irmãos Lumière construíram um aparelho manual, que ser-
via simultaneamente para registrar e reproduzir os movimentos.

‘Cinematógrafo’ foi o nome dado pelos irmãos Lumière ao aparelho


que inventaram. Com ele, começa a verdadeira história da cinemato-
grafia, que é o conjunto de métodos e processos postos em ação para
obter a fotografia e a reprodução do movimento. O vocábulo cinema-
tógrafo é originário do grego kinéma, isto é, ‘movimento’ e graphein,
‘registro’, quer dizer, portanto, ‘registro de movimento’. A linguagem
popular, entretanto, cedendo à tendência simplificadora, reduziu a
palavra para cinema ou, ainda, cine. (PEREIRA, pp.18-19)

Cumpre registrar que nos seus primórdios, o cinema foi alvo


de polêmicas, pois era visto como um entretenimento de pessoas com
pouca ou quase nenhuma “cultura”.

No início do século XX, o que é o cinematógrafo para os inteligentes,


para as pessoas cultivadas? ‘Uma máquina de embrutecimento e de
dissolução, um passatempo de iletrados, de criaturas miseráveis iludi-
das por sua ocupação’ (Georges Duhamel). Eles não se comprometem
com ‘esse espetáculo de ilotas’. As primeiras decisões da jurisprudência
mostram bem como o filme é recebido pelas classes dirigentes. O fil-
me é considerado como uma espécie de atração de feira, o direito não
lhe conhece mesmo o autor. (FERRO, 1976, p.201)

Até mesmo os historiadores, até então acostumados com o es-


crito, tomado como documento, cultivaram uma desconfiança para com

352 Histórias, narrativas e religiões


o cinema, pois como seria possível confiar num material que tem a pre-
tensão de representar a realidade, mas é a mais cabal reunião de imagens
selecionáveis, transformáveis e modificáveis? Como confiar naquilo que
é manipulável?

Ademais, o que é um filme senão um acontecimento, uma anedota,


uma ficção, informações censuradas, um filme de atualidade que co-
loca no mesmo nível a moda deste inverno e os mortos deste verão;
e que poderia fazer disso a nova história. Por um lado o filme parece
suscitar, ao nível da imagem, o factual; por outro, apresenta-se, em
todos os sentidos do termo, como uma manipulação. A direita tem
medo, a esquerda desconfia: a ideologia dominante não tem feito
do cinema uma ‘fábrica dos sonhos’? O próprio J.L. Godard não se
perguntou se ‘o cinema não tinha sido inventado a fim de mascarar o
real para as massas? Que suposta imagem da realidade oferece, a oes-
te, essa indústria gigantesca, a leste, esse Estado que tudo controla?
De que realidade o cinema é verdadeiramente imagem? (FERRO,
1976, p.202)

Com o passar do tempo, um novo espírito histórico nasceu e


fez surgir uma história também nova. A partir daí, pode-se afirmar que
o filme encontra-se à porta do laboratório histórico.

Considerar as imagens tais como são, com a possibilidade de apelar


para outros saberes para melhor compreendê-las. Assim, um método
que lembraria o de Febvre, de Francastel, de Goldman, desses his-
toriadores da Nova História, da qual se definiu sua vocação. Eles re-
conduziram a seu legítimo lugar as fontes de origem popular, escritas
de início, depois não escritas: folclore, artes e tradições populares etc.
Resta estudar o filme, imagem ou não da realidade, documento ou
ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História; o postulado?
Que aquilo que não se realizou, as crenças, as intenções, o imaginá-
rio do homem, é tanto História quanto a História. (FERRO, 1975,
p.203)

Se a História compreendeu que o cinema poderia ser um cam-


po muito fértil de pesquisas, a sociedade também deu o seu significado
para ele. Com a quebra do preconceito das primeiras décadas, desde

Histórias, narrativas e religiões 353


então, a sétima arte, como passou a ser chamado o cinema, tem sido
usada para entretenimento, para geração de emprego e muito lucro para
a indústria cinematográfica, mas também com finalidades ideológicas,
políticas e também religiosas, assunto este que nos interessa sobremodo.

[...] o cinema, assim como as várias formas de expressão artística exis-


tentes, é espaço de elaboração de afetos e interfere diretamente no
estado mental dos indivíduos, estimulando tanto sua sensibilidade
quanto o domínio teórico da razão. O cinema apresenta em sua estru-
tura ideias que não são somente expressas ou construídas por meio da
linguagem verbal. Ele trabalha com uma série de elementos e referên-
cias que o possibilitam ser palco para abordagem de grandes questões
e dilemas da vida humana. (PANISSON, BORTOLINI, p.17)

No campo religioso brasileiro, especialmente entre os pente-


costais, a forma como o cinema será tratado é algo muito interessante,
pois ele será visto nos primórdios do pentecostalismo no Brasil como
algo demoníaco e com o passar do tempo, será visto como um meio de
entretenimento e evangelização, além é claro, de uma grande fonte de
receita para os produtores e divulgadores de filmes considerados “edifi-
cantes” para os crentes.
Interessante é observar estes aspectos de mudanças na narrati-
va dos grupos religiosos, que mudam suas visões de mundo, sem entre-
tanto, dar demonstrações de que estão em constante mudança. Clifford
Geertz já havia observado isso:

A ideia de que as religiões mudam parece uma heresia em si mesma.


Pois o que é a fé senão uma atração pelo eterno, e o que é a devoção
senão uma celebração do permanente? Jamais houve uma religião,
da australiana à anglicana, que tenha tomado suas preocupações
como transitórias, suas verdades como perecíveis, suas exigências
como condicionais. [...] Para quem acredita, esse paradoxo apresenta
um repertório de problemas que não constituem a minha questão
enquanto tal. Mas para o estudioso da religião, ele também apre-
senta um problema: como uma instituição intrinsicamente dedicada
ao que é fixo na vida constitui tão notável exemplo de tudo o que
nela muda? Aparentemente nada se altera tanto como o inalterável.
(GEERTZ, 1971, p.57)

354 Histórias, narrativas e religiões


Tomando a definição de Geertz como referência, pode-se di-
zer que toda e qualquer forma de religião é um espelho que reflete uma
imagem de mundo e quando esta imagem é alterada, a religião é obri-
gada a mudar também, mas sempre com o discurso de manutenção dos
seus valores fundantes, que ela julga inalterados e ternos. “Aceitar que as
religiões mudam significa aceitar que sua lógica é essencialmente cultu-
ral e social” (SANTIAGO, 2017, p.244)
Isto equivale a dizer de forma bastante objetiva sobre o campo
pentecostal brasileiro o seguinte, se o pentecostalismo clássico via no
cinema um perigo para os seus membros, pois poderia apresentar-lhes
padrões de comportamento que feriam o padrão dogmático defendido
por seus líderes, o transpentecostalismo atual, profundamente imbuído
na construção de uma “cultura gospel”, vê o cinema como uma ferra-
menta de evangelização e consolidação de padrões estéticos, culturais e
comportamentais.
O cinema transformou-se numa nova frente midiática de ação
para os pentecostais e isto é um fenômeno recente. Entre os protestantes
históricos, a produção cinematográfica foi incentivada desde a década
de 50 no Brasil, e os filmes com uma temática moralizante e com a au-
sência de cenas de sexo e violência eram assistidos, incentivados e deba-
tidos nas reuniões dos jovens, mas entre os pentecostais o discurso era de
repúdio. Em menos de uma década, principalmente depois de estarem
consolidados em programas de televisão ou possuindo seus próprios ca-
nais de televisão, os líderes evangélicos mais expressivos, tais como Edir
Macedo e RR Soares, começaram cada um a seu modo, a investir em
filmes de temática bíblica, fomentando o mercado gospel da filmografia.
Por que tal mudança? As cifras e os números de espectadores
dos filmes talvez mostrem como este mercado tornou-se atrativo para as
maiores empresas midiáticas do segmento religioso pentecostal.
Abaixo algumas tabelas do poder econômico do cinema nacional.
O site, filme B, dedicado a acompanhar o cenário fílmico brasileiro mostra
através de algumas tabelas o processo de evolução deste segmento. Nesta
primeira tabela, apesar das datas de lançamento estarem equivocadas e,
consequentemente as distribuidoras também, pois a atualização foi feita

Histórias, narrativas e religiões 355


parcialmente, e isto é fácil de se provar, bastando uma comparação entre
a tabela do ranking nacional de 2000-2016 com a tabela de 2000-2014,
do mesmo site para verificar que houve uma atualização parcial. Contudo,
é possível verificar que o filme Os dez mandamentos, que é uma adapta-
ção cinematográfica baseada na narrativa bíblica da saída dos hebreus do
Egito, fato narrado no livro do Êxodo e que já havia sido explorado pela
Rede Record numa novela homônima que foi um dos maiores fenômenos
de audiência dos últimos tempos na TV brasileira.
Os números são impressionantes, pois pode-se perceber que
o filme Tropa de Elite 2, até então o maior sucesso do cinema nacional,
posto ostentado desde 2010, quando do seu lançamento, foi desbancado
por uma produção adaptada para o cinema e que já havia sido veicu-
lada na TV Aberta. No total, o filme Os dez mandamentos, renderam
nas bilheterias o valor de R$ 116. 418.000,00, atraindo um total de 11.
261.270 pessoas às mais variadas salas de cinema do país. Sem dúvida é
um fenômeno.

Ranking nacional 2000-2016 (público) Top 20

Disponível em: http://www.filmeb.com.br/estatisticas/evolucao-do-mercado.


Acesso em 16/04/2017.

356 Histórias, narrativas e religiões


Ranking nacional 2000-2014 (público) Top 20

Disponível em: http://www.filmeb.com.br/estatisticas/evolucao-do-mercado.


Acesso em 28/09/15

Nas tabelas abaixo, verifica-se a evolução geral do público fre-


quentador de cinema conjuntamente com a evolução de renda no Brasil.
A primeira tabela trata dos filmes nacionais e internacionais. O público
de cinema no Brasil saiu de 70 milhões de pessoas em 2001 para mais de
170 milhões de espectadores em 2015. Certamente isto se deve a pro-
gramas de incentivo à cultura e transferência de renda, que permitiram a
público pouco frequente às salas de cinema, desfrutarem de tal atividade,
e isto claramente acabou criando um espaço importante para o segmen-
to do cinema nacional. Muitos evangélicos, do segmento pentecostal
foram favorecidos por tais programas e tornaram-se consumidores da
sétima arte, neste momento, o discurso dos líderes religiosos muda de
direção, onde havia proibição e contestação, passa a existir um incentivo
e um investimento.

Histórias, narrativas e religiões 357


Evolução do público geral

Evolução da renda geral (em R$)

Disponível em: http://www.filmeb.com.br/estatisticas/evolucao-do-mercado.


Acesso em 16/04/2017.

Não sabemos como o Brasil, que está mergulhado numa crise


econômica e política sem precedentes no momento, irá se comportar
no segmento cultural, especificamente no que se refere à frequência nas
salas de cinema, mas sem dúvidas, pelos dados acima, pode-se afirmar
que o filão cinema foi um excelente produto no início do século XXI.

358 Histórias, narrativas e religiões


2) O cinema Evangélico no Brasil e a Logopatia a
serviço da Fé

Não cabe aqui um levantamento histórico das mais variadas de-


nominações e suas relações com o cinema ou com a cultura em geral.
Na modernidade foram vários os momentos em que os grupos religiosos
cristãos posicionaram-se de maneira contrária às manifestações artísticas,
ainda mais quando estas eram usadas nos sermões. De católicos a angli-
canos, as manifestações artísticas, fosse elas quais fossem, sempre foram
alvos de controle e de censura pelo discurso religioso. Somente a título de
exemplo, pode-se citar a posição dos calvinistas no século XVII.

O grande pregador puritano William Perkins afirmou que ‘não é


adequado, conveniente ou louvável que os homens promovam oca-
sião de risos nos sermões’. Uma condenação ainda mais cabal da
pregação popular foi a formulada pelo impressor Henri Estienne
II, convertido ao calvinismo. Estienne reprovava os pregadores que
faziam os ouvintes rir ou chorar, os pregadores que inseriam estórias
absurdas ou fabulosas em seus sermões, os pregadores que emprega-
vam pragas e expressões coloquiais ‘que podiam ser usadas num bor-
del’, e os pregadores que faziam comparações ridículas ou blasfemas,
como aquela entre o Paraíso e uma estalagem espanhola. (BURKE,
2010, p.285)

O que nos interessa aqui é mapear e analisar este fenômeno


novo, ou seja, uma investida pesada de algumas igrejas do pentecosta-
lismo brasileiro na área cinematográfica. Para tal, foi feito um recorte
e neste sentido houve um destaque para o braço midiático da Igreja
Internacional da Graça de Deus. Criada em março de 2010, a Graça
Filmes é atualmente a maior distribuidora de filmes do gênero gospel no
Brasil. Contando com sucessos como Três Histórias, um destino; Deus não
está morto e Questão de Escolha, a Graça Filmes segue na mesma linha de
todas as outras mídias pertencentes à Igreja Internacional da Graça de
Deus, comandada pelo Missionário RR Soares, pois se apresenta ao pú-
blico em geral e em particular aos evangélicos, como uma alternativa de

Histórias, narrativas e religiões 359


qualidade para a família brasileira, que constantemente, segundo Soares,
tem sido influenciada por programas e produtos midiáticos dominados
pelo “poder das Trevas”.

De acordo com o Censo 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil apresentou um novo re-
corde no número de divórcios, que ocorreram em aproximadamente
50% de casos registrados. Ao longo desses anos, a preocupação da
empresa permanece a mesma: transmitir mensagens que edifiquem
vidas. Os diversos testemunhos recebidos, no decorrer desse tem-
po, mostram os frutos de um trabalho que revolucionou o cinema
cristão nacional. http://www.gracafilmes.com.br/noticia/graca-fil-
mes-ha-cinco-anos-valorizando-a-familia/. Acesso em 28/09/2016

Sempre com um intuito conversionista ou de edificação mo-


ral do público, RR Soares iniciou mais um projeto midiático dentro
de sua corporação, o projeto do primeiro filme produzido pela Graça
Filmes, intitulado: Três Histórias, Um Destino, em parceria com a Uptone
Pictures. O filme foi lançado no Brasil em 51 salas de cinema. Na época
do lançamento em 2012, ocorreu uma campanha chamada de “1+2=150
mil vidas!” que estimulava cristãos a levar dois amigos não-crentes ao
cinema para assistirem ao filme.  Ao final do circuito nos cinemas, o
filme alcançou público de cerca de mais de 280 mil espectadores. Como
se pode perceber, o filme não foi um sucesso de bilheteria, mas marcou
teve o mérito de ser pioneiro no campo pentecostal, fato que produziu
um marco à indústria cinematográfica brasileira de filmes evangélicos.

Nas duas grandes abordagens que as ciências sociais utilizam na


análise do cinema em geral – tanto a que enfatiza os processos so-
cioculturais subjacentes aos eixos ideológicos da produção fílmica,
quanto a que considera o filme como construção artística carregada
de energia e significação –, a questão da criação fílmica é sempre
colocada de forma a ressaltar o caráter de construção e de criação
de significados do sujeito. O princípio do cinema reside na seleção
que é feita, em primeiro lugar, pela câmera e pela montagem, sobre
o que há para mostrar e, depois, na articulação dessas imagens sele-
cionadas, ao projetá-las na tela em branco. Francastel escreveu que ‘a

360 Histórias, narrativas e religiões


imagem fílmica tem uma existência essencialmente mental, embora
autônoma, sendo um ponto de referência cultural e não um ponto
de referência na realidade’, assim, conclui Francastel, ‘quando ana-
lisamos um fenômeno como o do cinema, realizamos uma análise
da função do imaginário, ainda muito mal conhecida, pois estamos
em presença não de um mecanismo, mas de uma forma de atividade
mental construída. (SALIBA, 1992, pp.18-19)

Provocados pela citação acima, que afirma que a função do ima-


ginário é ainda mal conhecida, resta-nos propor um conceito que poderá
ser útil neste processo analítico. Este conceito é a logopatia. Pode-se
dizer que a logopatia é uma corrente de pensamento que funciona muito
bem quando associada a esta nova forma de linguagem que é o cinema.
É absolutamente nítido que quando utilizamos a expressão nova forma
de linguagem, estamos fazendo referência ao nascimento do cinema no
início do século XX, comparando-o é claro, com outras formas de lin-
guagem muito mais antigas. A filosofia foi a grande responsável por
trazer à lume a discussão sobre os pensadores páticos e os apáticos.

[...] a tradição hermenêutica, sobretudo depois da ‘virada ontológica’


dada a esta tradição no século XX por Heidegger, o surgimento e
a extinção rápida do existencialismo de inspiração kierkegaardiana,
dos anos 1940 a 1960, e a maneira de fazer filosofia de Friedrich
Nietzsche, amplamente inspirada em Schopenhauer, no final do sé-
culo XIX. O que estas correntes de pensamento têm em comum?
Resposta possível: ter problematizado a racionalidade puramente ló-
gica (logos) com a qual o filósofo encarava habitualmente o mundo,
para fazer intervir também, no processo de compreensão da realida-
de, um elemento afetivo (ou pático). (CABRERA, 2006, pp.15-16)

Julio Cabrera chama estes pensadores páticos de “cinematográ-


ficos”, pois ao valorizarem o elemento afetivo, visto não somente como
algo a ser tematizado, mas incluído na própria racionalidade como um
elemento essencial de acesso ao mundo, eles abriram um campo enor-
me para se pensar outras formas de linguagem, além da escrita (que
por vezes precisa apelar para neologismos incontáveis, como no caso
da filosofia alemã, com Martin Heidegger). Usando uma expressão de

Histórias, narrativas e religiões 361


Wittgenstein, é necessário cessar de “bater a cabeça contra as paredes da
linguagem”, pois ao inefável está reservado o silêncio reverencial.
A racionalidade precisa ser logopática e não apenas lógica, pois
o emocional não desaloja o racional, apenas redefine-o. E neste sentido, o
cinema funciona como uma ferramenta capaz de oferecer uma maior am-
plitude para os problemas humanos, que muitas vezes não são expressados
em sua totalidade por meio da linguagem da escrita. O cinema funciona
então, como uma forma de captação do mundo, e nesta perspectiva, po-
dem-se considerar os filmes como formas de pensamento. A compreensão
logopática (racional e afetiva ao mesmo tempo) de um filme implica em
perceber que aquela forma de linguagem empregada, pretende ser uma
apresentação sensível e impactante com pretensões de verdade universal,
pois na lógica de uma sociedade de massa, na qual o cinema nasceu e com
a qual conviveu e ainda convive, não faz nenhum sentido valer-se de uma
linguagem cifrada, incompreensível para os espectadores.
Pode-se dizer que o cinema é a tentativa de construir conceitos-
-imagem, que tem a finalidade de comunicar uma mensagem, no singu-
lar ou mesmo, múltiplas mensagens, no plural. Um diretor de cinema, o
autor da história a ser narrada, o financiador do filme, todos, absoluta-
mente todos têm seus pressupostos e objetivos, explícitos ou implícitos.
As opções assumidas demonstram o posicionamento daqueles que estão
manipulando os conceitos-imagem, pois “a ciência da montagem é uma
ciência do posicionamento e a poética da montagem é uma poética do
posicionamento”. (LEONEL, 2015, p.406)
Fazer um bom filme que comunique seus pressupostos, signifi-
ca em última instância, por meio da técnica155, refuncionalizar156 a obra,
que possibilitará a transformação e consequente emancipação daquele
que está interagindo com a mesma, pois o objetivo é fazer do espectador
um leitor dos conceitos-imagem, “um sujeito capaz de decriptar, fazer

155  . “Designei com o conceito de técnica aquele conceito que torna os produtos literários
acessíveis a uma análise imediatamente social e, portanto, a uma análise materialista. Ao mesmo
tempo, o conceito de técnica representa o ponto de partida dialético para uma superação do
contraste infecundo entre forma e conteúdo”. (BENJAMIN, 1987, p.122)
156  . Este conceito é de Bertolt Brecht, que acreditava poder “caracterizar a transformação de
formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada
na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes”. (BENJAMIN, 1987, p.127)
362 Histórias, narrativas e religiões
do leitor um montador potencial e assim o leitor também se torna um
autor” (LEONEL, 2015, p.407).
Entendo os conceitos-imagem como “encaminhamento para a
compreensão”, sem a pretensão essencialista de defini-los de uma vez
por todas, pode-se dizer que eles seguem uma certa ordem e tudo co-
meça com a experiência vivida na relação entre o espectador e esta nova
forma de linguagem.

Mediante esta experiência instauradora e emocionalmente im-


pactante, os conceitos-imagem afirmam algo sobre o mundo com
pretensões de verdade e de universalidade. O cinema não elimi-
na a verdade nem a universalidade, mas as redefine dentro da ra-
zão logopática. A universalidade do cinema é de um tipo pecu-
liar, pertence à ordem da Possibilidade e não da Necessidade. O
cinema é universal não no sentido do ‘Acontece necessariamente
com todo mundo’, mas no de ‘Poderia acontecer com qualquer um’.
(CABRERA, 2006, p.23)

Quando se analisa as mensagens veiculadas pelos filmes de


cunho religioso, o que se verifica é exatamente a encenação da razão
logopática em pleno funcionamento. Os dramas vividos, por exemplo,
pelos personagens do filme Três Histórias e um Destino, podem aconte-
cer com qualquer um. Desde aquele pastor obcecado por poder e que
se frustra na caminhada correndo risco de perder sua família, passando
pela jovem superprotegida e criada na igreja, que se casa e experimenta
as frustrações de uma relação conjugal, até aquele sujeito desviado da
sua fé que comete pequenos delitos para sobreviver. No final, como num
belo conto de fadas, todos retornam para a igreja e voltam a experimen-
tar a plena felicidade. É claro que se poderia argumentar que isto ocorre
com outros gêneros de filmes também, mas no caso do cinema evangé-
lico é evidente a intenção conversionista e moralista voltada para uma
edificação que exalte os valores propagados pelo grupo religioso que vei-
cula o filme. Deve-se lembrar, também, de que no caso do filme em pau-
ta, o enredo é de inspiração de um livro homônimo do Missionário RR
Soares, que entende que todas as suas produções, sejam elas literárias,
musicais ou artísticas em geral, são inspiradas diretamente por Deus. É
Histórias, narrativas e religiões 363
muito comum ouvi-lo dizer que Deus deu algumas músicas para ele ou
mesmo deu histórias para serem escritas visando a edificação de pessoas.
Isto reveste de sacralidade toda obra artística do Missionário.

Os intérpretes profissionais que são os sacerdotes contribuem, com


uma parcela muito importante, para este trabalho incessante de
adaptação e assimilação que permite estabelecer a comunicação en-
tre a mensagem religiosa e os receptores cujos quadros são amiúde
renovados. (BOURDIEU, 2005, p.97)

É claro, que no processo de recepção, não há uma garantia de


que toda produção será recebida como diretamente vinda do céu. Neste
momento é preciso lembrar-se das palavras de Roger Chartier interpre-
tando Michel de Certeau.

A força dos modelos culturais dominantes não anula o espaço pró-


prio de sua recepção. Sempre existe uma brecha entre a norma e o
vivido, o dogma e a crença, as normas e as condutas. Nessa brecha se
insinuam as reformulações, os desvios, as apropriações e as resistên-
cias. (CHARTIER, 2009, pp.46-47)

O que precisa ficar claro é que os filmes de cunho evangélico


serão vistos pelo pelos produtores e pelos espectadores, principalmente
os evangélicos, como mais uma ferramenta para a evangelização e edi-
ficação das pessoas em geral. Por isso, pode-se afirmar que a sétima arte
está a serviço da fé no campo pentecostal brasileiro.

Referências

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BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.

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364 Histórias, narrativas e religiões


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Histórias, narrativas e religiões 365


Apontamentos sobre a atuação da
imprensa durante o processo de
legitimação da umbanda como religião
(1940-1950)

Daniele Chaves Amado de Oliveira (Doutorado – UNIRIO)

Resumo: Essa comunicação trata do papel da imprensa durante o pro-


cesso de legitimação da Umbanda como religião e diante das dispu-
tas existentes entre as Umbandas Pura e Omolocô, entre as décadas
de 1940 e 1950. Essa legitimação começa em 1939 com a fundação
da Federação Espírita de Umbanda, com o objetivo inicial de proteger
as tendas de Umbanda da repressão policial. O processo de legitima-
ção da Umbanda se solidifica com o Primeiro Congresso Brasileiro do
Espiritismo de Umbanda, realizado pela federação em 1941. Durante o
congresso as teses apresentadas pelas lideranças umbandistas buscavam
racionalizar e codificar as práticas religiosas e contextualizar o surgi-
mento da Umbanda através de um discurso que a afastasse das religiões
de matriz africana. Em 1952, é fundada, por Tancredo da Silva Pinto,
a Federação Espírita Umbandista, que defende a Umbanda de origem
africana. Nesse momento as divergências entre as Umbandas se acirram
e as disputas chegam às páginas dos jornais.

Palavras-chave: História Cultural das Religiões; Umbanda; Religiões


afro-brasileiras; Campo religioso; Imprensa.

Introdução

Pretendemos apresentar nosso projeto de Doutorado, aprovado


na seleção de 2016 da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
366 Histórias, narrativas e religiões
– UNIRIO. Por tratar-se de um trabalho ainda em construção optamos
por nomeá-lo como apontamentos. Estamos, portando, indicando as di-
reções que nesse momento nos norteiam para que seja possível atender
a três objetivos.
O primeiro deles é entender o papel da imprensa do Rio de
Janeiro no processo de legitimação da Umbanda como religião, durante
as décadas de 1940 e 1950. Já o segundo objetivo visa compreender
as disputas existentes entre as diferentes Umbandas durante o período
de legitimação da religião, especificamente a disputa entre a Umbanda
Pura, considerada a legítima e representada pelo corpo de especialistas
da Federação Espírita de Umbanda e a Umbanda Omolocô, considerada
profana e representada pela Federação Espírita Umbandista. Finalmente
o terceiro pretende perceber como os periódicos cariocas participaram
das divergências existentes entre os representantes da Umbanda Pura e
da Umbanda Omolocô.
Sendo assim, esse artigo trará as historiografias sobre a
Umbanda que utilizamos para a produção do projeto, em seguida abor-
daremos o conceito de campo religioso de Bourdieu e finalmente as
fontes selecionadas.

Caminhos Historiográficos percorridos

Para contextualizarmos nosso objeto propomos uma análise


de trabalhos que nos permitem entender a trajetória do Movimento
Umbandista em busca do reconhecimento da Umbanda como religião
e as disputas existentes nesse processo. Diana Brown é pioneira nos es-
tudos acadêmicos sobre Umbanda, analisa a fundação e o crescimento
da Umbanda no Rio de Janeiro entre 1925 e 1970, observando especial-
mente como a religião se adaptou ao processo político e dele participou.
Para a autora, a fundação da Umbanda ocorreu no Rio de
Janeiro por volta da década de 1920, quando um grupo de kardecistas,

Histórias, narrativas e religiões 367


de classe média, começou a aproximar-se das religiões afro-brasileiras.
Entende que os sincretismos afro-kardecistas existiam anteriormente, mas
especificamente, desde o final do século XIX em núcleos urbanos como
Salvador, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Porém destaca que a impor-
tância da Umbanda localiza-se no fato desses membros da classe média
utilizarem esse sincretismo para expressarem seus interesses, suas ideias
sociais, seus posicionamentos políticos e seus valores.
Localiza o mito de origem da Umbanda no episódio da mani-
festação mediúnica do Caboclo das Sete Encruzilhadas no jovem Zélio
Fernandino de Moraes em um centro espírita no bairro de São Gonçalo,
em Niterói. Nesse momento, segundo a literatura umbandista, o cabo-
clo revelara a missão do médium no sentido de fundar uma nova reli-
gião que se chamaria Umbanda. No entanto, a autora, afirma não ter
certeza de que Zélio de Moraes foi fundador da Umbanda, ou ainda
que houvesse apenas um fundador, apesar do centro comandado pelo
médium, e os fundados posteriormente por seus companheiros terem
sido os primeiros que encontrou que se identificavam como praticantes
da Umbanda. Diana Brown concluiu que a história de Zélio de Moraes
não era amplamente conhecida e também não era aceita pela comunida-
de umbandista como um todo, especialmente pelos líderes umbandistas
mais jovens.
Quanto à aproximação dos médiuns kardecistas das práticas
religiosas africanas, conhecida também como macumba, considera que
esses médiuns julgavam os espíritos e as divindades africanos e indíge-
nas mais eficazes que os evoluídos espíritos que se manifestavam nos
centros kardecistas na cura e no tratamento de doenças, por exemplo.
No entanto, consideram primitivos os rituais africanos de sacrifico de
animais, a participação nas atividades religiosas dos espíritos denomi-
nados Exús, considerados diabólicos pelos kardecistas, o uso de bebidas
alcoólicas nos rituais e em alguns casos, o hábito de cobrar do público
consultas e tratamentos.

Não é para se espantar, portanto, que a Umbanda viesse a expressar


as preferências e aversões dos seus fundadores. Elas estão claramente
refletidas na literatura que eles produziram, especialmente, nas Atas

368 Histórias, narrativas e religiões


do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda (que foram
publicadas), evento realizado no Rio em 1941. Dois temas centrais
destacavam-se nessas Atas: a preocupação com a criação de uma
Umbanda desafricanizada, cujas origens foram localizadas nas anti-
gas tradições religiosas do Extremo Oriente e do Oriente Próximo,
e cujas conexões com a África foram minimizadas ao máximo —, e
o esforço para “branquear” ou “purificar” a Umbanda, dissociando-se
da África “primitiva” e “bárbara”. (BROWN, 1985, p.11)

Ao passo em que buscavam essa desafricanização da Umbanda,


de forma bastante seletiva almejavam, como já dissemos, aproximar-se de
determinados elementos das religiões afro-brasileiras, como, por exem-
plo, o trabalho mediúnico com os espíritos de caboclos e pretos-velhos,
elementos centrais da Umbanda. A autora chama a atenção para o fato
de que os pretos-velhos, celebrados pelo discurso umbandista como a
parcela africana significativa na Umbanda são representados pela figura
dos escravos, subjulgados e aculturados à vida brasileira.
Analisando ainda a literatura Umbandista dos primeiros anos
após a sua fundação, a autora destaca o tom de moralidade nas formas
de caridade e na função da Umbanda de resgate das classes subalternas
das demais modalidades exploradoras e nocivas da feitiçaria existentes
no campo religioso da época. Formas essas claramente ligadas às reli-
giões de matriz africana as quais os umbandistas desejavam afastar-se
e diferenciar-se.
Considera, portanto, que essa postura moralista e as estratégias
de embranquecimento das religiões afro-brasileiras refletiam os valores,
o racismo e as preocupações sociais e políticas da classe média. Essa
Umbanda Pura, forma como os praticantes se referiam a sua religião e
que Diana Brown também adota, representava uma confluência cons-
ciente de diferentes religiões e setores sociais da população, na qual os karde-
cistas abandonaram as práticas associadas com sua posição de classe média
para criar uma religião que celebrava os componentes oprimidos da sociedade
brasileira (BROWN, 1985, p.12).
Ao compreender que essa articulação era consciente, a relacio-
na ao período de 1930 a 1945. De acordo com sua análise os primeiros
passos da Umbanda ocorreram no momento em que Getúlio Vargas
Histórias, narrativas e religiões 369
ascendeu ao poder em 1930. O interesse do presidente de ganhar o
apoio das massas urbanas em expansão e unificar os distintos interesses
regionais baseados num estado nacional, fortemente centralizado, fora
alcançado devido a uma série de medidas tomadas por seu governo. São
essas, segundo a autora, o desenvolvimento industrial, a valorização do
nacionalismo nos campos econômico e cultural, a promoção da burocra-
cia estatal, que forneceu emprego aos setores médios, e a ampliação dos
direitos e benefícios da assistência social dos trabalhadores.
Assim, a fundação da Umbanda estaria inserida nas relações de
classe urbanas em processo de mudança. Significa dizer que a escolha
dos espíritos de índios e velhos africano, não foi mero acaso, mas sim
uma decisão consciente e influenciada pelo nacionalismo pregado pelo
regime de Getúlio Vargas e pela tentativa de construir uma cultura na-
cional centrada na unificação das diferentes raças que compunham o
povo brasileiro.
A ditadura Varguista teve outro efeito sobre a Umbanda que
nos interessa, pois irá revelar as disputas no campo umbandista. Apesar
dos membros dos setores médios, grupo esse onde se inseriam os fun-
dadores e os primeiros líderes da Umbanda, apoiarem as políticas de
Vargas, os umbandistas sofreram com a repressão policial característica
do período do Estado Novo (1937-1945). Tal repressão era dirigida es-
pecialmente as organizações políticas, mas grupos sociais e religiosos,
como maçons, kardecistas, umbandistas e as religiões afro-brasileiras,
também foram perseguidos.
Em 1934 uma lei colocou esses grupos sociais e religiosos sob
a jurisdição do Departamento de Tóxicos e Mistificações da Polícia do
Rio de Janeiro, na seção de Costumes e Diversões, a mesma que trata-
va de problemas como álcool, drogas, jogos ilegais, prostituição, entre
outros. Ou seja, essa lei colocou as práticas desses grupos no mesmo
patamar das atividades que requeriam controles punitivos e não contro-
les reguladores. Os terreiros foram invadidos pela polícia que fechava
casas, confiscavas objetos utilizados nos rituais e prendia os presentes
nas sessões.

370 Histórias, narrativas e religiões


A repressão policial acabou estimulando a organização dos
umbandistas para se protegerem da perseguição e das extorsões. No
ano de 1939, auge do Estado Novo, foi fundada a primeira federação
de Umbanda, pela iniciativa do médium Zélio de Moraes apoiado pe-
los líderes dos principais centros umbandistas. A União Espírita da
Umbanda do Brasil tinha como objetivo principal oferecer proteção às
casas de Umbanda federadas contra as ações policiais. Apesar da sua efi-
cácia limitada quanto às perseguições policiais, a Federação desenvolveu
ações importantes visando organizar as atividades umbandistas.
Nesse contexto promoveram o primeiro Congresso de
Umbanda em 1941, onde diversas questões sobre desafricanização e
codificação da religião foram debatidas pelos principais líderes. Além
dos umbandistas, os líderes kardecistas e a imprensa acompanharam os
debates do Congresso. O Congresso auxiliou a legitimação da religião,
assim como a divulgação feita pela imprensa carioca. Diana Brown con-
sidera o ano de 1945 o início do período de expansão da Umbanda e sua
transformação de pequena seita carioca numa religião nacional.
À medida que a religião se expandia novas federações eram
fundadas e com elas ficavam evidentes e públicas as disputas dentro
do campo umbandistas. As federações que dispunham de mais recursos
defendiam a Umbanda Pura oriunda dos setores médios e buscavam
acima de tudo promover sua forma particular de ritual. Algumas fede-
rações chegavam a fazer visitas de surpresa aos centros para fiscalizar se
o tipo de cerimônia realizado estava de acordo com a Umbanda Pura.
Assim, as federações umbandistas representavam, portanto, as diferentes
e conflitantes interpretações tanto do ritual quanto dos setores sociais e
nessa diversidade que se localiza o dinamismo, a flexibilidade e o espíri-
to inovador característicos dessa religião.
Por volta dos anos 1950 as divergências se acirram e surgem as
primeiras federações que defendiam a Umbanda de origem africana. Os
líderes desse movimento eram, sobretudo, dos setores mais baixos e mui-
tos eram negros e mulatos. Ao contrário dos líderes da Umbanda Pura
que eram em sua maioria brancos. A Federação Espírita Umbandista,
fundada em 1952, por Tancredo da Silva Pinto foi a primeira dessas fe-

Histórias, narrativas e religiões 371


derações defensoras das tradições religiosas afro-brasileiras mais antigas
e estabelecidas nas classes mais baixas. Tancredo exerceu importante
papel de porta-voz dos praticantes da Umbanda de orientação africana
tendo uma coluna semanal no jornal O Dia, periódico diário de grande
circulação no Rio de Janeiro.
Assim como Diana Brown, o pesquisador José Henrique Motta
de Oliveira entende que a manifestação de espíritos de negros e índios já
ocorria nos rituais da macumba antes mesmo da fundação da Umbanda.
No entanto, a chamada macumba não era um culto organizado, mas um
conjunto de elementos da cabula banto, do Candomblé, das tradições
indígenas e ainda do Catolicismo desprovido de uma doutrina que unis-
se todos esses elementos. Na interpretação do autor a Umbanda nasceu
desse conjunto heterogêneo somado ao kardecismo. Sendo esse último
grupo responsável por se apropriar do ritual utilizado na macumba, im-
pondo-lhe uma nova estrutura e construindo um novo discurso capaz de
legitimar a nova religião.
Concorda também que não se pode ter certeza de que Zélio de
Moraes seja o fundador da Umbanda, mas discorda da afirmativa de que
sua fundação ocorreu em meados da década de 1920 através da iniciativa
de um grupo de kardecistas argumentando que no livro O Espiritismo, a
Magia e as Sete Linhas de Umbanda do jornalista Leal de Souza, publica-
do em 1933, o autor relata que o Caboclo das Sete Encruzilhadas já se
manifestava há 23 anos em uma casa nos arredores de Niterói. Ou seja,
pelo menos desde 1910.
Diante da preocupação com o episódio da anunciação da
Umbanda questiona a relevância de se identificar quem, quando ou de
que forma se iniciou o movimento umbandista. Entende que tal preo-
cupação esteja relacionada ao valor simbólico atribuído aos atuais um-
bandistas à manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas na pessoa
do médium, Zélio de Moraes.

Esse simbolismo pode ser avaliado pelo calendário litúrgico da reli-


gião, no qual o dia 15 de Novembro aparece ao lado das tradicionais
datas comemorativas dos Orixás, com direito a realização de sessão
festiva cuja finalidade é render homenagens tanto ao Caboclo das

372 Histórias, narrativas e religiões


Sete Encruzilhadas quanto ao médium, É possível encontrar em
alguns terreiros até a fotografia do Zélio ornamentando o congá.
Mesmo que seja um “mito de origem”, como propõe Diana Brown, a
manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas não pode ser rela-
tivizada, uma vez que para os umbandistas a data tem o mesmo valor
simbólico do Natal para os cristãos, do RoshHashaná para os judeus
e da Hégira para os muçulmanos. (OLIVEIRA, 2007, p.111-112)

O pesquisador questiona a ideia de que o mito fundador seja


uma construção tardia que se iniciou na ocasião do falecimento do mé-
dium Zélio de Moraes em 1975. Mesmo reconhecendo que o médium e
o Caboclo das Sete Encruzilhadas não aparecem, ou são citados de for-
ma discreta, na bibliografia etnográfica e nas obras e periódicos umban-
distas produzidos antes da década de 1970.157 Utilizando as teorias de
Pierre Bourdieu sobre o funcionamento do campo religioso propõe uma
teoria alternativa para o que chama de ostracismo de Zélio de Moraes.

Bourdieu nos ensina que “toda seita que alcança êxito tende a tor-
nar-se Igreja, depositária e guardiã de uma ortodoxia, identificada
com as suas hierarquias e seus dogmas” (...) A partir do modelo
“bourdiano”, comparo a Federação Espírita de Umbanda com a hie-
rarquia eclesiástica e Zélio de Moraes com a figura do profeta, isto
é, aquele que pelo exercício legítimo do poder religioso – que no
nosso caso é a manifestação de uma entidade espiritual que se apre-
senta como fundadora da Umbanda – teria condições de competir
no campo religioso com o monopólio doutrinário difundido pela
Umbanda institucionalizada, pondo em risco a legitimidade da nova
religião. (OLIVEIRA, 2007, p.114-115)

Conclui a questão da construção tardia afirmando que a cúpula


umbandista não tinha interesse em fazer grandes honrarias à Zélio de
Moraes uma vez que essas ações colocariam em risco à legitimidade da
instituição, pois a legitimidade religiosa poderia passar da Igreja insti-
tuída para o profeta.

157  Diana Brown, por exemplo, afirma que durante suas pesquisas constatou que a história do
médium e de seu guia espiritual não era amplamente conhecida entre os umbandistas.
Histórias, narrativas e religiões 373
José Henrique expressa que não pretende defender a ideia de
que as práticas umbandistas não existissem anteriormente ao que chama
de anunciação da Umbanda através do Caboclo das Sete Encruzilhadas.
Seu estudo considera que a manifestação do caboclo representa o rom-
pimento entre o que era conhecido por baixo-espiritismo ou macumba,
com o que se chamava de Espiritismo de Umbanda ou Umbanda Pura,
na obra dos intelectuais umbandistas. Para o autor a divisão é clara entre
uma seita resultante de um ritual heterogêneo, praticada pelos segmen-
tos subalternos da sociedade e a nova religião que se apropriou da filo-
sofia kardecista, sendo professada e comandada por elementos da classe
média em ascensão.
Finalmente, assim como Brown, entende que a partir de 1945,
com o fim do Estado Novo, a Umbanda ganhou maior visibilidade na
imprensa, intensificando o processo de legitimação da religião. Além
disso, nesse contexto identifica que, o Movimento Umbandista se po-
lariza. A Umbanda branca, urbana e intelectualizada concorre com a
Umbanda africanizada, localizada nas periferias da cidade.
A pesquisa de André de Oliveira Pinheiro publicado no ano de
2012 também aborda o mito fundador da Umbanda que tem as figuras
de Zélio Fernandino de Moraes e do Caboclo das Sete Encruzilhadas
como protagonistas, utilizando como fonte principal a Revista Espiritual
de Umbanda, de circulação nacional, publicada entre 2003 a 2008, pela
editora Escala em São Paulo. Analisa ainda as diferentes vertentes, pró-
prias do campo umbandista, que divergem quanto à forma de compre-
ender e praticar a religião.
Entre o estudo produzido por Diana Brown em 1985 e o es-
tudo de André de Oliveira passaram-se 27 anos. Podemos observar que
de alguma forma os três, Brown, Motta de Oliveira e Oliveira Pinheiro
analisam o discurso dos umbandistas que atribui à manifestação do
Caboclo das Sete Encruzilhadas, através do médium Zélio de Moraes,
o pioneirismo da Umbanda. No entanto, a análise de André nos aponta
que até os dias atuais o protagonismo de ambos na origem da religião um-
bandista em nenhum momento é questionado (PINHEIRO, 2012, p.241).
Tomando o conceito de tradição inventada de Eric Hobsbawm,

374 Histórias, narrativas e religiões


entende que um conjunto de práticas de natureza ritual ou simbólica
busca apresentar valores e normas de comportamento através da repeti-
ção, considera que esse protagonismo dos dois personagens nada mais é
que o resultado de um processo de repetição da tradição inventada.

Esse mito fundador passou a estabelecer, construir um passado por


meio da repetição, como também observa Hobsbawm. Basta lembrar
que, por volta dos anos 1960, essa passou a ser, em detrimento de ou-
tras, a narrativa predominante para explicar a origem da Umbanda.
Entre as outras versões para a origem da religião, destacamos aquela
defendida por Tancredo da Silva Pinto, para quem a Umbanda teria
surgido a partir do povo Lunda Quiôco, em Angola. (PINHEIRO,
2012, p.241)

Assim como nos trabalhos anteriores, Tancredo da Silva Pinto


aparece como uma figura divergente, relacionando a religião a sua ori-
gem africana e não brasileira. Em sua investigação feita na Revista
Espiritual de Umbanda, André de Oliveira Pinheiro constatou um silên-
cio sobre Tancredo. Para o pesquisador esse tratamento não condiz com
sua relevância no debate sobre as origens e a legitimação da Umbanda,
ocorrido na década de 1950, pois se trata de um líder religioso afro-bra-
sileiro e importante porta-voz dos praticantes da Umbanda de orienta-
ção africana. Devido a sua relação com o proprietário do jornal O Dia,
Chagas Freitas, utilizava uma coluna semanal no periódico para divulgar
a Umbanda Omolocô e atrair novos filiados para sua federação. Gozava
de grande popularidade nas favelas cariocas que abrigavam centros de
Umbanda que seguiam sua orientação e de sua federação.
Interessa-nos ainda, o levantamento feito pelo autor do que
chama de Umbandas, o que na sua interpretação seria o conjunto das
diferentes vertentes de Umbanda praticadas pelos umbandistas.

Acreditamos ser possível denominar como campo umbandista esse


espaço chamado umbanda, que traz em seu interior diferentes for-
mas de pensar ou praticar diferentes “umbandas”. [...] O campo um-
bandista seria, portanto o espaço onde conviveriam e entrariam em
luta diferentes representações da umbanda, cada uma procurando
maior legitimação e captação de capital simbólico entre os filhos de
Histórias, narrativas e religiões 375
fé umbandistas, em detrimento entre si para ver qual é mais “pura”, a
mais verdadeira, a mais autêntica ou até mesmo a que tem mais força
espiritual. (PINHEIRO, 2012, p.246)

Em seu trabalho o pesquisador apresentou as seguintes verten-


tes. Umbanda Branca, com traços mais fortes do espiritismo. Umbanda
Omolocô, Umbanda de pretos-velhos, Umbanda-canjerê, Almas e
Angola, todas essas com a presença maior de elementos das religiões
africanas. Umbanda de Caboclos, com rituais mais próximos aos da paje-
lança indígena. Umbanda esotérica, Umbanda iniciática, Umbanda mís-
tica, com influências do esoterismo e da teosofia. Finalmente, Umbanda
popular e Quimbanda, linha que pratica a magia negra.
A Umbanda denominada como Branca é a mesma que aqui
chamamos de Pura. De acordo com seu levantamento a Umbanda
Branca é distante das tradições africanas, evitando quaisquer cerimônias
que envolvam sacrifícios de animais e qualquer ritual que fosse chocante
ou contra a ordem instituída pela sociedade dos brancos, como iniciação
com banho de sangue e rituais de magia negra. O culto é semelhante ao
kardecista com uso de roupas e sapatos brancos. Trabalha basicamente
com a linha de caboclos e pretos-velhos. É uma religião pura, extrema-
mente organizada.
Já a Umbanda Omolocô preserva fortes traços das suas raízes
africanas, renegadas pela Umbanda Branca. Para defini-la utiliza o tre-
cho a seguir do livro intitulado, Umbanda Omolocô: liturgia, rito e conver-
gência (na visão de um adepto), de Caio de Omulu.

Intersecção clara entre o que vulgarmente se chama de candomblé


e a umbanda. Ressurgiu através de Tancredo da Silva Pinto, na con-
tramão da desafricanização da umbanda. É um amálgama no qual,
por um lado, se encontra uma proximidade muito forte com os ri-
tos do candomblé, em relação aos orixás e seus fundamentos; por
outro, com a umbanda, no que diz respeito ao seu trabalho com as
entidades espirituais (caboclos, pretos-velhos, crianças etc.). Daí se
terem usado também as expressões “candomblé de caboclo” e “um-
bandoblé” para identificá-lo. (OMULU, 2002 apud PINHEIRO,
2012, p.251)

376 Histórias, narrativas e religiões


Nesse sentido, a pesquisa de André nos é essencial, pois enu-
mera as diferentes Umbandas existentes no campo umbandista indicando
as interseções e as divergências entre elas, mesmo que nosso tema esteja
diretamente ligado a apenas duas dessas vertentes, a Umbanda Pura e a
Umbanda Omolocô. Seu estudo nos permite constatar que as duas ver-
tentes resistiram ao tempo e continuam atuando no campo umbandista.
No que diz respeito ao objeto aqui proposto, podemos verificar
que tanto o trabalho de Brown quanto o trabalho de Motta de Oliveira
citam o papel da imprensa no processo de legitimação da Umbanda,
mas nenhum deles se propôs a estudá-lo. Nesse sentido esse projeto
mostra-se autêntico e relevante à medida que se dispõe a buscar preen-
cher essa lacuna.
Além disso, a pesquisa de Brown, Motta de Oliveira e Oliveira
Pinheiro apontam as divergências existentes no campo umbandista, mas
nenhuma delas investe na investigação das disputas entre a Umbanda
Pura e a Umbanda Omolocô.

Bourdieu e o conceito de campo religioso

De modo a analisarmos o papel da imprensa no processo de


legitimação da Umbanda como religião, precisamos entender de que
forma se constitui um campo religioso. Nesse sentido, escolhemos utili-
zar como referência teórica o estudo de Pierre Bourdieu sobre a gênese
e estrutura do campo religioso.
Segundo o autor, a constituição do campo religioso relativa-
mente autônomo só é possível se paralelamente desenvolver-se a neces-
sidade de moralização e sistematização das crenças, práticas e represen-
tações religiosas. Além disso, a racionalização e a moralização da religião
são consideradas extremamente favoráveis ao desenvolvimento de um
grupo de especialistas religiosos.
O corpo de especialistas religiosos, de acordo com a teoria de
Bourdieu, é responsável por assegurar sua exclusividade na produção,
Histórias, narrativas e religiões 377
reprodução, conservação e difusão dos bens religiosos, significa dizer
que devem assegurar a monopolização completa da produção religio-
sa. Ele entende ainda que a religião possui um efeito de consagração,
ou melhor, de legitimação, que ocorre pelo simples fato da explicitação
da ética religiosa, ou seja, do conjunto sistematizado e racionalizado de
normas explícitas.
Partindo de seu modelo, podemos entender que a necessida-
de de racionalização e codificação das práticas religiosas umbandistas,
visando principalmente proteger os templos de Umbanda da repressão
policial, e que motivou a fundação da Federação Espírita de Umbanda
no ano de 1939, deu início ao processo de legitimação do campo reli-
gioso umbandista. Já em 1941, sabemos que a federação promoveu o
Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, onde a in-
telectualidade umbandista, ou seja, os especialistas religiosos apresenta-
ram publicamente suas teses, que podem ser tomadas como o conjunto
sistematizado e racionalizado de normas e diretrizes religiosas. Assim,
consideraremos a federação e seus representantes, como o corpo de es-
pecialistas religiosos da Umbanda.
Para embasar teoricamente a questão da atuação da imprensa
do Rio de Janeiro no processo de legitimação da Umbanda, utilizaremos
a interpretação de Bourdieu de que a legitimação da religião relaciona-se
a explicitação da ética religiosa. Desta forma, cientes de que a imprensa
carioca acompanhou e noticiou a preparação e o desenvolvimento do
Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, compreen-
deremos que tal difusão pode ocorrer através dos meios de comunicação,
nesse caso, especificamente através das páginas dos jornais. Bourdieu
afirma ainda que a constituição de um campo religioso acompanha

A oposição entre os detentores do monopólio da gestão do sagrado e


os leigos, objetivamente definidos como profanos, no duplo sentido
de ignorantes da religião e estranhos ao sagrado e ao corpo de ad-
ministradores do sagrado, constitui a base do princípio da oposição
entre o sagrado e o profano e, paralelamente, entre a manipulação
legitima (religião) e a manipulação profanadora (magia ou feitiçaria)
do sagrado. (BOURDIEU, 2004, p.43)

378 Histórias, narrativas e religiões


Significa dizer que a religião naturalmente promove uma práti-
ca de distinção, onde um conjunto de práticas e crenças está condenado
a surgir como uma religião menor ou primitiva. Compreendendo que
a formação de um campo religioso predispõe essa disputa entre sagra-
do e profano, poderemos analisar a disputa existente, durante o proces-
so de legitimação da Umbanda, entre a Umbanda Purae a Umbanda
Omolocô. Onde a primeira representa a religião legítima e racionali-
zada, promovida e amparada por um corpo de especialistas religiosos,
e a segunda representa a religião primitiva, africanizada, mais ligada a
práticas de feitiçaria, denominadas como baixo-espiritismo.

A imprensa

Uma vez que o tema proposto é a atuação da imprensa ca-


rioca como difusora da Umbanda como religião, apoiando assim sua
legitimação, nossas fontes principais não poderiam ser outras que não
os periódicos. Nosso recorte temporal, que está atrelado ao processo de
legitimação da Umbanda, refere-se ao período de 1940 a 1950.
Buscando verificar a viabilidade do estudo do nosso objeto, re-
alizamos um levantamento inicial. Selecionamos o conjunto de perió-
dicos que consideramos representantes da imprensa carioca durante o
período definido levando em consideração o mercado jornalístico dessas
duas décadas. Para isso utilizamos a pesquisa de Marialva Barbosa sobre
a História da Imprensa no Brasil no período de 1900 a 2000. Segundo
a autora, no início da década de 1950 circulavam no Rio de Janeiro 18
periódicos diários, desse número 13 são matutinos e 5 vespertinos.
No entanto, alguns jornais possuem um maior poder de difu-
são. Na caracterização desse mercado pelos próprios jornalistas há toda
uma gradação hierárquica de importância das publicações a partir do
lugar político que ocupam naquele momento.

Histórias, narrativas e religiões 379


Entre os que possuem maior poder de difusão, não apenas em fun-
ção das tiragens mas pela influência política que detêm, figuram os
matutinos, Correio da Manhã, O Jornal, o Diário de Notícias, O
Dia e a Luta Democrática e os vespertinos, O Globo, Última Hora,
a Tribuna da Imprensa e o Diário Carioca. (BARBOSA, 2007, 154)

Desse conjunto, quatro são jornais novos para o período. A


Última Hora (1951), a Tribuna da Imprensa (1949), a Luta Democrática
(1954) e O Dia (1951). Diante dessas informações, fizemos a seguinte
seleção para o nosso projeto. Escolhemos três periódicos influentes que
existiam nas duas décadas com grandes tiragens, são esses: Correio da
Manhã, Diário de Notícias e O Globo. Selecionamos ainda como fonte,
devido ao seu grande poder de difusão, a Tribuna da Imprensa, a Última
Hora e O Dia, todos fundados a partir do fim da década de 1940 e início
da década de 1950.
O jornal O Dia foi escolhido ainda porque deu visibilida-
de a Tancredo da Silva Pinto, representante da Federação Espírita
Umbandista, e da Umbanda Omolocô, através de uma coluna semanal
assinada por ele.
Já o Jornal de Umbanda, começou a ser editado em 1949 com
objetivo de ser o órgão noticioso e doutrinário da Federação Espírita
de Umbanda, representante da primeira federação de Umbanda e da
Umbanda denominada Pura. O jornal possuia uma coluna denominada
O que os outros dizem de nós. Mais critério e menos sensacionalismo, que foi
publicada em todas as edições até o ano de 1956.
O objetivo da coluna era apresentar um resumo das notícias
veiculadas pela grande imprensa sobre a religião e fazer críticas ou elo-
gios aos periódicos de acordo com a forma como a Umbanda fosse re-
tratada. Através de uma rápida leitura foi possível identificar as diver-
sas críticas dirigidas ao jornal O Dia, devido à publicação da coluna de
Tancredo da Silva Pinto. Com base na análise dos jornais buscaremos
identificar ainda se existiu algum diálogo entre eles.

380 Histórias, narrativas e religiões


Referências

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Mauad X, 2007.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004. 5ª edi-
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BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. Umbanda e Política. Cadernos do ISER.
Nº18 Rio de Janeiro: Editora Marco Zero, 1985.

FERREIRA, Marieta de Morais. Diário de Notícias. In: ABREU, Alzira Alves de (cord.)...
[et al.]. Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro pós-30. Rio de Janeiro: Editora FGV;
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LEAL, Carlos Eduardo e Montalvão, Sérgio. O Globo In: ABREU, Alzira Alves de (cord.)...
[et al.]. Dicionário histórico-bibliográfico brasileiro pós-30. Rio de Janeiro: Editora FGV;
CPDOC, 2001. p. 2540-2548.

OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma análise com-
parativa das estratégias de legitimação da Umbanda durante o Estado Novo. Rio de Janeiro,
2007. Dissertação (Mestrado em História Comparada). Universidade Federal do Rio de Janeiro.

OMULU, C. de. Umbanda Omolocô: liturgia, rito e convergência (na visão de um adepto). São
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PINHEIRO, André de Oliveira. Revista Espiritual de Umbanda:Representações, mito fundador


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gioso afro-brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007a, p. 9-27

SIQUEIRA, Carla Vieira. Sensacionalismo e retórica política em Última Hora, O Dia e Luta
Democrática no segundo governo Vargas (1951-1954) In: História e imprensa: representações
culturais e práticas de poder. NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco e FERREIRA,
Tânia Maria Bessone da C. (organizadores). Rio de Janeiro: DP&A:FAPERJ, 2006.

Histórias, narrativas e religiões 381


O Medo enquanto Objeto da História:
Um estudo a partir do Planeta dos
Macacos (1968)

Carlos Alberto Plath Junior (UEM)

Resumo: A comunicação objetiva apresentar o Projeto de Iniciação


Científica “O medo enquanto objeto da História: um estudo a partir
de O Planeta dos Macacos (1968)”. A proposta do mesmo consiste em
estudar o medo enquanto objeto da História a partir do filme O Planeta
dos Macacos (1968). Realizar uma discussão teórica sobre o medo en-
quanto objeto da História e mapear as representações do medo presen-
tes na narrativa fílmica já relatada. Esta que aborda dois aspectos que
tem se tornado temas de interesse da História: cinema e ficção científi-
ca. Entendidas, pela História Cultural como formas de “representações
coletivas”, permitindo identificar o modo como em diferentes lugares
e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada
e dada a ler. (CHARTIER, 1990) Logo, podemos indagar qual reali-
dade a trama cinematográfica pretende construir e qual “paisagem do
medo” (TUAN, 2005) é projeto no momento de produção do filme.
Articulados desta maneira, Cinema e Ficção Cientifica tornam-se fon-
tes históricas que nos permitem mapear as “representações” do medo e
torna-lo objeto da História.

Palavras-chave: História das crenças; Medo; Extermínio da Raça Humana.

382 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

A partir da História Cultural, percebemos grandes mudanças


nas abordagens, problemas, objetos e formas de interpretações nos estudos
históricos, inclusive na percepção de fontes históricas que tornam viáveis
a nossa proposta de estudo. Articulados desta maneira, Cinema e Ficção
Cientifica são fontes históricas que nos permitem mapear as “representa-
ções” (CHARTIER, 1990) do medo e torna-lo objeto da História.
Ao estudarmos manifestações do medo entendemos que há
mudanças na sua compreensão e representação conforme o cenário vi-
vido, ou seja, temos consciência da historicidade do nosso objeto e da
necessidade de pensá-lo desta maneira, considerando as especificidades
de sua produção. Logo, entendemos que existem diferentes maneiras de
assimilação de termos e fatos, que não estão isentas da “visão de mundo”
dos sujeitos históricos que as produzem. (CHARTIER, 1990, 2002).
Analisar o medo pressupõe considerar o âmbito das percep-
ções, cognições da realidade e dos próprios indivíduos, reconhecendo,
por vezes, sua associação a emoções que indicam o perigo, e são funda-
mentais para a sobrevivência da própria espécie humana (TUAN, 2005).
Para discorrer sobre o medo nesta comunicação usaremos
alguns autores que escreveram suas obras em momentos distintos da
história e em diferentes lugares. Sendo eles de diversas áreas do co-
nhecimento, filósofos, psicanalista, literário, historiadores e geógrafo.
Buscaremos as possibilidades de se pensar o medo apresentada pelos
seguintes: Edmund Burke em The Works of the Right Honourable (1792),
Sigmund Freud e O Inquietante (1919), Tzvetan Todorov em Introdução
à Literatura Fantástica (1970), Jean Delumeau e a História do Medo
no Ocidente 1300-1800 (1978), Yi-Fu Tuan Paisagens do medo (2005),
Zygmunt Bauman e Medo Liquido (2006) e, por fim, Carlo Ginzburg
Medo Reverência e Terror (2008). Elegendo alguns caminhos para anali-
sar o medo enquanto um objeto da História.
Feito isto apontaremos a metodologia, ou seja, como o his-
toriador trabalha com cinema e com obras ficcionais por meio dos
seguintes autores e suas produções: Marcos Napolitano em A História
Histórias, narrativas e religiões 383
depois do Papel (2008), Sandra Jatahy Pesavento em Narrativas, imagens
e práticas sociais: percursos em história cultural (2008) e Marcel Martin e
A linguagem cinematográfica (2005). Para então tentarmos mapear al-
guns medos presentes na obra cinematográfica em relevância. Por fim
apontaremos as conclusões atingidas pelo projeto de iniciação cienti-
fica “O medo enquanto objeto da História: um estudo a partir de O
Planeta dos Macacos (1968)”.

Discussão teórica sobre o Medo

Partindo de Edmund Burke (2005) que explicita que o medo


se dá do conhecido, daquilo que já foi vivenciado e observado, então, tra-
tado como uma não verdade por gerar infortúnios, havendo assim uma
necessidade de mudança por parte das pessoas, na qual o querer mais
acarreta outras infelicidades; essa premissa é, corroborada por Freud, em
O Inquietante, (2010) pois para ele o medo também se dá do conhecido,
este, todavia, foi recalcado no inconsciente. Ao ser revivido em uma si-
tuação, por vezes traumática, volta à tona, porém, sem que o indivíduo
o reconheça, apresentando-se como novidade. O fato de a pessoa ter es-
condido em seu inconsciente aquilo que lhe causava medo, faz com que
ele trate este mesmo causador de medo como algo desconhecido. Assim
o ser pode reviver em uma história de ficção o medo, se esta tiver em seu
conteúdo aquilo que causa o sentimento no indivíduo.
Para Freud (2010), uma história de terror só pode ser catego-
rizada como tal, se ela trouxer à tona o medo que está no inconsciente
da pessoa. Apesar do medo já existir, e ser anterior ao evento, a história
será vivenciada como inédita. Ao tratar dos gêneros literários, Todorov
(1981), explica que o leitor pode vacilar em suas leituras, ou seja, pode
encontrar o medo e senti-lo nas obras. Todorov expõe que para ocorrer
a vacilação é necessário que o indivíduo fique na expectativa de não sa-
ber se o fato que ocorre é natural ou não, haveria assim uma incitação
ao sobrenatural.
384 Histórias, narrativas e religiões
Tratando-se do gênero literário, a ficcionalidade do mesmo se
aproxima da narrativa cinematográfica, nosso documento de análise, e
permite pensar que “o estranho” é construído numa história em que o
sobrenatural é explicado de forma racional. Para exemplificar tal ideia,
no filme Planeta dos Macacos (1968) podemos observar um mundo
dominado por símios onde a humanidade é submissa a eles, algo que
foge totalmente da normalidade aceita, porém quando o final da obra se
aproxima, o discurso utilizado para justificar tal fato passa a ser aceito
tanto pelo personagem quanto pelo telespectador, que o entende como
possível devido o contexto vivenciado pelos mesmos.
A extinção da humanidade por uma hecatombe nuclear e os
animais mais próximos dos seres humanos assumindo um papel de do-
minação e intelectualidade são ideias plausíveis frente ao contexto da
Guerra Fria, das suas ameaças nucleares, um período onde a ciência tor-
na-se a grande ditadora da verdade e teorias de que o homem evoluiu de
um ancestral semelhante aos macacos e assim os animais mais próximos
dos homo sapiens são aqueles expostos pelo filme.
Todorov concorda com Freud, que o medo se dá do conhecido
recalcado no inconsciente, logo quando o sobrenatural é explicado de
maneira racional os indivíduos conseguem se identificar e assim sentir o
medo. O personagem sabia da guerra no desenrolar do filme, ele sempre
soube, mas apenas no final, cai de joelhos, com temor, quando o obvio se
materializa, não é outro planeta, é o nosso, nós fizemos isso.
Esta relação não é construída tão facilmente quando o sobre-
natural é aceito na obra, afinal há uma menor identificação das pessoas
com a história literária, pois vivemos em um mundo natural, que possui
explicativas racionais para certas condições. Vale ressaltar que para cada
contexto existe uma norma de realidade e verdade, ocorrendo mudanças
nas interpretações de conceitos e fatos históricos, e isto reflete na relação
leitor-vacilação-obra. Ou seja, o telespectador juntamente com e por meio
do personagem da obra fictícia é levado a acreditar que a história fílmica
se passa em outro planeta, e fica extremamente espantado com tal ideia.
Apesar de ser algo que pode se tornar possível no imaginário coletivo,
ainda não é uma realidade, e isto leva a perplexidade daqueles que vacilam

Histórias, narrativas e religiões 385


na obra cinematográfica, o personagem e o telespectador. Acreditam que é
algo realmente possível e normal, dentro da obra e devido a realidade que
os arrastam para um mundo natural, ocorre a vacilação. Tal ocorrência é
comum durante toda a viagem no mundo ficcional.
Atentando Delumeau (2009), o autor analisa o medo de uma
maneira que difere totalmente das já estabelecidas pelos outros autores,
em sua exterioridade. Nenhum indivíduo pretende viver tal sentimento
e faz de tudo para não ter de vivenciá-lo, mas isto é algo complicado,
afinal para Delumeau o medo se dá daquilo que é desconhecido, como
forasteiros, florestas, tempestades, doenças, e aquilo que determinado
contexto não consegue trazer respostas plausíveis ou possivelmente
aceitas pelos indivíduos que vivem em tal momento e local histórico.
Neste sentido Delumeau distância dos outros autores, em es-
pecial Freud, pois segundo este historiador a memória não se deixa es-
quecer o medo depois de vivenciá-lo, ou seja, as ideias propostas por
Freud de que o medo é recalcado no inconsciente, o reavivando em cer-
tas condições não podem se aproximar da proposta de Delumeau, onde
o sentimento estudado só existe em relação a aquilo que é desconhecido
e jamais esquecido.
Para Delumeau (2009) existem medos cíclicos, que retornam
a sua força conforme os contextos, como doenças e guerras. A presença
deles ressurge potencialmente dependendo dos contextos vivenciados
pelas populações. E isto ocorre conscientemente e ao renascimento ou
uma maior presença deles, reaparecem as sedições populares, causadoras
de mais infortúnios e medos. Tudo aquilo que não possui maneiras de se
controlar, entender e aceitar, são causas de medos e de sedições.
Chegando ao autor Yi-Fu Tuan (2005), por meio de sua dis-
cussão, podemos estabelecer uma comunicação entre todos os autores ao
longo do discurso de que o medo é estabelecido individualmente e cole-
tivamente dependendo do meio vivenciado pelas sociedades. Aquilo que
determinada comunidade presencia, convive e entende é projetada nos
seus medos, seja ela civilizada ou natural, encontramos aqui uma ideia
estabelecida por Burke, afinal as sociedades naturais tinham problemas
e medos, somando a tentativa de mudar e causar a artificialidade, tra-
zendo novos inconvenientes e medos estabelecendo as sociedades atuais.
386 Histórias, narrativas e religiões
Logo, seja natural ou não, as populações se depararão com o sentimento
em estudo, ressaltando que para Tuan, é o contexto que o influenciará.
Bauman (2006), assim como Delumeau (2009) aponta que o
medo se dá daquilo que é desconhecido e que não possui explicação, sendo
indistinto, mas sentido em todos os lugares, mesmo não estando presente.
Corrobora que existe o medo da desordem e do caos, também podemos
estabelecer uma ligação entre esses dois autores sobre a comodidade, am-
bos concordam que as pessoas preferem a comodidade de viverem na se-
gurança de suas casas do que enfrentar os medos, porém Bauman dá uma
explicação que transcende a de Delumeau. Bauman também consegue
estabelecer uma comunicação com Freud (2010). O medo derivado de
Bauman estaria relacionado as experiências adquiridas durante a vida e
resgatado frente uma realidade, mesmo esta não possuindo aspectos reais
do medo gerador, semelhante ao medo inquietante de Freud.
Chegamos ao último autor desta discussão teórica do medo,
seria ele o Ginzburg (2008), este que resgata a teoria de Hobbes sobre
o medo e assim o debate sobre o estado de natureza, mas diferente de
Burke (2005) onde a humanidade com medo de continuar vivendo suas
angustias, sempre busca melhores sistemas políticos e sociais incansa-
velmente, onde o correto seria continuar vivendo o primeiro sistema,
sem mudar, pois assim a humanidade seria mais feliz do que no contexto
do século XVIII. Para Ginzburg o medo se dá exclusivamente do estado
de natureza e dos problemas gerados por ele, e assim para se livrar des-
tes males, os indivíduos se sujeitam a uma ordem estabelecida por um
Estado, e assim consegue sobreviver aos medos, mas sempre haverá as
ameaças de se destruírem esta ordem, as leis e os sistemas que garantem
a estrutura do Estado civilizado, retornando ao caos amedrontador que
é o estado natural.

Metodologia

A fonte documental escolhida para esta pesquisa consiste no


filme Planeta dos Macacos (Franklin J. Schaffner, 1968). Com uma du-
Histórias, narrativas e religiões 387
ração de 112 minutos, foi produzido nos EUA pelas empresas 20th
Century Fox e APJAC Productions.
Partindo da categoria de ficção cientifica onde George Taylor
(Charlton Heston), um astronauta americano, viaja por séculos em esta-
do de hibernação. Ao acordar, ele e seus companheiros se veem em um
planeta dominado por macacos, no qual os humanos são tratados como
escravos e nem mesmo possuem o dom da fala. E assim, utilizando-se,
entre outras, da obra do Napolitano (2008) entendemos que o cinema é
compreendido enquanto uma fonte primaria para o historiador, afinal, a
sua maneira, apresenta aspectos da realidade, seja por meio de represen-
tações futurísticas ou de fatos históricos.
Entendendo as imagens enquanto linguagem, observamos que
elas criam universos paralelos que possuem sinais próprios e verdades
únicas que representam a realidade de nosso mundo. Sendo criadas por
indivíduos, elas apresentam a visão de mundo de seu criador, porém elas
geralmente possuem destinatários, logo este espectador tem uma im-
portância fundamental. Além da visão do autor existe assim a do leitor
que exerceu influencia na produção da imagem, enquanto uma espécie
de consumidor. (PESAVENTO, 2008)
Com a compreensão do fato que o cinema é construído sob
aspectos que relevam a visão do criador da obra, do comprador e da-
quele que lucra, ou seja o financiador, percebe-se uma problemática.
Apesar de ser uma representação da realidade os filmes precisam atingir
expectativas de outros indivíduos e públicos. Logo, para o historiador
estudar o filme é de grande importância, assim como compreender “as
adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas num filme.”
(NAPOLITANO, 2008. p.237) Logo, espera-se do historiador a capa-
cidade de separar essas “manipulações” na estrutura da obra.
Tão importante quanto perceber a intencionalidade da produ-
ção de um filme, para estuda-lo cientificamente, é compreender a “natu-
reza representacional.” (NAPOLITANO, 2008.p. 238). Ou seja, o que
está sendo representado, que evento ou fato histórico o filme contém em
sua elaboração ou no seu teor fílmico, aquilo que poderíamos dizer que
se mantém escondido na obra. (NAPOLITANO, 2008)

388 Histórias, narrativas e religiões


Porém, como expõe Napolitano (2008), o documento, que no
caso é a imagem, é dotado de significado próprio e o historiador ao es-
tudá-lo precisa entendê-lo enquanto representação de algum aspecto
de seu tempo, e estabelecer o contexto em que se deu tal documento,
para assim perceber os propósitos de sua produção diante da realidade
e de outros documentos contemporâneos ao estudado. E analisando as
interpretações já existentes, elaborar uma própria, conforme as possi-
bilidades do mesmo.

Mapeamento

Logo ao início do filme, o telespectador se depara com a ima-


gem de uma nave no espaço, viajando no desconhecido. O piloto da
nave, Taylor, interpretado pelo ator Charlton Heston, está gravando um
áudio, uma espécie de diário de bordo, explicitando o que ocorrerá, ou
seja, ele irá entrar em um estado de hibernação, junto com o resto da tri-
pulação, esta que já o está fazendo. Mas antes de fazer isso ele desabafa
seus anseios, questionando como o mundo deverá estar depois de viajar
centenas de anos numa velocidade próxima da luz.
Para a tripulação, foram-se somente alguns meses viajando no
espaço, mas na terra, passaram centenas de anos. Para eles, aquilo que
havia se estabelecido enquanto verdade em relação a teoria física do
espaço não é mais real, como se fosse ultrapassada, ele se sente inferio-
rizado frente a visão insignificante de si mesmo. E por fim, termina tal
diário questionando se a humanidade ainda guerreia com os irmãos e
deixando os vizinhos na miséria. Podemos perceber aqui a presença de
um medo que se estabelece do desconhecido, como Delumeau (2009)
já apresentou, o espaço é imenso e repleto de coisas novas, mostrando
quão inferior o conhecimento humano é. Taylor questiona-se sobre o
que aconteceu com o planeta Terra e assim também podemos estabe-
lecer uma ligação com Bauman (2006), afinal ele está adiantando um
problema que ele não sabe se aconteceu ou irá acontecer. Ele teme o fato
Histórias, narrativas e religiões 389
de ter de temer ao descobrir uma possível verdade, se ele retornar para
seu planeta de origem. Que é a angustia de saber que o mundo continua
da maneira que ele havia deixado ao sair, recordando ao que Ginzburg
(2008) apontou, ou seja, sente-se o medo de permanecer no caos, que ele
já conhecia e preferia ter o deixado em um passado remoto.
Depois de mais alguns meses em estado de hibernação a nave
cai numa espécie de lago no meio de um deserto, todos os 3 homens
barbados acordam e a única mulher da tripulação está morta devido a
uma ruptura a sua câmara de hibernação. A nave começa a encher-se de
água, como única saída, testam a qualidade do ar atmosférico, e desco-
brem que é possível viver neste planeta em que pousaram, e assim pre-
param a sua saída da nave que está afundado. Mas antes de sair, Taylor
checa o calendário, na terra havia se passado mais de 2000 anos.
Com a nave afundada, percebe-se então que não existe outra
alternativa senão continuar onde estão, num planeta desconhecido mi-
lhares de anos luz a frente ao seu tempo sem poder fazer nada, senão
sobreviver num mundo desconhecido. Sente-se então a impotência
frente aos problemas. Nesta parte do filme encontramos a presença do
medo da inutilidade, ou seja, não poder fazer nada frente algum pro-
blema ou até ao medo, mas não há alternativa senão lutar contra isso.
(DELUMEAU, 2009)
Depois de atravessar um deserto, onde nada cresce, onde ocor-
rem tempestades luminosas com nuvens estranhas e sem ocorrer chuva
alguma. Começam estabelecer um diálogo, no qual o personagem prin-
cipal, Taylor, demonstra a total falta de fé que ele tem na humanidade,
ele busca algo no universo que seja melhor que os seres humanos, ele
acredita e quer encontrar. Ou seja, teme-se o mundo humano conheci-
do, prefere-se descobrir algo novo que seja diferente daquilo concebido,
pois ele espera alcançar uma verdade mais aceita por ele, uma que atinja
as expectativas dele. Nesta sequência, o medo se dá do conhecido, então
se busca algo novo que supere o já experimentado e reconhecido pelo
personagem. (BURKE, 2005)
Conforme os personagens atravessam o deserto, seus supri-
mentos estando prestes a acabar, encontram um oásis, uma mata fe-

390 Histórias, narrativas e religiões


chada, com cachoeiras, e também seres humanos que se portam como
animais e nem possuem a capacidade de se comunicar por meio da fala.
Ainda sonhando com as possibilidades de dominarem aquele
planeta, os 3 astronautas são separados. Um ataque de símios falantes,
montados em cavalos, matam um companheiro de Taylor e outros hu-
manos, capturam muitos outros, inclusive Taylor e seu parceiro de via-
gem. Ferido na garganta sem poder falar e vestindo trapos ele é levado
para o laboratório de uma chipanzé. Neste planeta os macacos se por-
tam semelhante aos seres humanos do planeta Terra, já a humanidade se
porta como os macacos. Há aqui a inversão de papéis.
Após ser humilhado, ser tratado de maneira cruel, e mesmo
recuperando sua fala, é visto com maus olhos pelos símios. Estes que
possuem uma ordem hierárquica: gorilas são os militares; chipanzés se-
riam os trabalhadores e estudiosos; e por fim os orangotangos tomariam
a frente como líderes religiosos e políticos, exercendo os poderes legisla-
tivo, executivo e judiciário.
Somente dois chipanzés ajudam Taylor, Cornélius e Zira. E
com ajuda destes dois símios, o personagem foge. Afinal, naquela socie-
dade onde religião se mesclava na política, ciência e justiça. Um homem
falante fugia da ordem aceita pelos símios, que segundo a doutrina reli-
giosa, eram imagem e semelhança do deus símio, e qualquer anormali-
dade deveria ser eliminada. Logo Taylor deveria sofrer uma lobotomia.
Na fuga, Taylor se dirige a zona proibida, onde sua nave caiu,
e lugar de tabu para os símios. Queria descobrir a verdade sobre aquele
planeta. Lá ele se depara com os destroços da Estátua da liberdade. Ele
descobre que avançou no tempo e está na Terra. Descendo do cavalo, cai
no chão desesperado e diz: “Então nós finalmente o fizemos, os manía-
cos, vocês explodiram tudo...”. Finalizando, ele amaldiçoa a humanidade
e somente com o som das ondas e do mar começam os créditos.
Tudo o que ele temia foi revelado, Taylor foge para a zona proi-
bida, pois quer saciar suas dúvidas, adquirir a certeza de uma verdade
que ele havia construído desde que havia pisado na Terra, mas que não
queria aceitar. Ele havia recalcado em seu consciente o medo de que
estava no seu planeta natal, muito tempo além, em um futuro distante,

Histórias, narrativas e religiões 391


após a destruição dele. Freud (2010) expõe o medo desta maneira, o
conhecido recalcado no inconsciente, ou seja, o inquietante.
Durante a construção dos fatos na obra fílmica, vai se perce-
bendo uma vacilação do personagem. Não se tem a certeza de que aque-
le é o planeta Terra num futuro distante, mas assim como Taylor vai
vacilando aos poucos, quem assiste a obra também o vai. Acreditando
gradativamente que o planeta em que se encontravam era o mesmo que
haviam deixado. Para Todorov (1981) é assim que se constroem na lite-
ratura os medos. Ou seja, a não certeza de algo, aquilo que é inquietante
no inconsciente, a vacilação do personagem e do leitor da obra estabele-
ce uma construção de um medo que é cada vez mais palpável.
Em meio a tantos medos contidos na construção fílmica, po-
demos encontrar um que é estabelecido por Burke (2005). Depois de
descobrir toda a verdade, de sofrer nas mãos dos macacos, e de correr
riscos terríveis. Teria sido melhor Taylor continuar no seu tempo, no
planeta Terra que ele conhecia, pois assim não sofreria tanto. Mas como
antes ele estava desacreditado na humanidade e queria encontrar algo
melhor do que aquilo que ele já conhecia, viaja pelo espaço em busca
de melhorar sua condição. Porém, acaba encontrando algo pior do que
ele já conhecia, um futuro em que é torturado humilhado e que já havia
sido destruído por guerras em um passado, tornando a sua realidade
mais dolorosa.

Conclusões

Entendendo o medo enquanto algo que não é estático, que so-


fre alterações conforme suas “paisagens” (TUAN, 2005) conseguimos
mapear inúmeras representações de medos contidas na construção cine-
matográfica Planeta dos Macacos (1968).
Seja pelo fato do novo que não pode ser compreendido ime-
diatamente e daquilo em que o indivíduo não possui poder de ação,
tornando-o um incapaz frente ao problema. (DELUMEAU, 2009) Ou
392 Histórias, narrativas e religiões
ao medo de continuar vivendo no caos e buscar algum mecanismo para
muda-lo (GINZBURG, 2008) e mesmo mudando-o descobrir que aca-
bou piorando sua situação (BURKE, 2005). Ou ainda a incerteza do
futuro e do desconhecido. Ser um ignorante da ameaça e não saber o que
vai acontecer ou do que já aconteceu e mesmo assim sentir pavor disso.
(BAUMAN, 2006) O medo pode ter sido recalcado no inconsciente
gerando o inquietante, que seria o temer algo, porque o conhece, mas
sem perceber como isto se dá. (FREUD, 2010)
Independente da maneira que o medo tenha sido representado
no filme, podemos perceber que ele é constante e presente no imaginário
estadunidense da década de 1960, a ponto de ser reproduzido e ressig-
nificado frente aos grupos que elaboraram, consumiram e financiaram a
película. Tornando a obra em um clássico, que ao seu modo ainda possui
crédito e relevância na sociedade do século XXI, atingindo resultados se-
melhantes aos de seu lançamento. Afinal, os medos podem ser cíclicos
retornando frente determinada realidade ganhando maior credibilidade e
expandindo-se entre as sociedades que os sentem. (DELUMEAU, 2009)
Além de representar os medos, o Planeta dos Macacos (1968)
serviu como um denunciador de ideologias e condutas, que para aqueles
que se envolveram na produção acreditavam ser ingênuas e erradas.
Desde o primeiro contato dos humanos com os símios é pos-
sível perceber uma inversão da realidade e de papeis na construção fíl-
mica. Os macacos agem como humanos, pensam como humanos e esta-
belecem sua sociedade igualmente a dos homens e mulheres de quem a
herdaram. E isto na elaboração da obra se dá propositalmente.
Conforme a história avança, percebem-se claramente denún-
cias dos aspectos ideológicos, da civilização americana de 1960, embu-
tidos na trama. Como caçada de seres irracionais por diversão; o nar-
cisismo que engrandece certa sociedade e inferioriza outras; a religião
ditando a ciência e que propõe que quem possuem a racionalidade,
seja os macacos no filme ou os humanos que o assistem, são imagens
de Deus e assim semelhantes a ele; a incapacidade individual frente as
lideranças da sociedade que se veem auto-suficientes a ponto de prati-
carem injustiças se dizendo ser justos e o ocultamento da verdade para

Histórias, narrativas e religiões 393


prevenir que os interesses individuais de poderosos não sejam afeta-
dos. Revelam assim indícios de atitudes humanas condenáveis para os
produtores da película.
Durante o decorrer da obra o telespectador entende como são
ridículas as ideologias símias e seus costumes. Vê quão bárbaros são os
macacos de pendurarem cadáveres de humanos de uma caçada e tirarem
fotos pisando em montanhas de corpos de homens e mulheres. Sente
compaixão ao ver Taylor sofrendo por ser simplesmente um humano
que chegou num mundo de macacos. Mas quando começam a surgir
no filme, cada vez mais costumes humanos, religiões e organizações po-
líticas, científicas e religiosas hierarquizadas, o telespectador começa a
se identificar na sociedade símia e se entende enquanto denunciado e
também acusado dos erros descritos no filme.
Desta maneira, Latour (2002) explica que sociedades ociden-
tais possuem uma característica própria de desconstruir fetiches de ou-
tras culturas, de outros discursos. Entendendo fetiche enquanto algo
feito e carregado de significado, seja mítico, simbólico ou ideológico,
elaborado por determinado grupo, possui muita relevância para aquela
cultura. Afinal, é estabelecida uma corrente de crenças que permeiam
todo aspecto vivencial da comunidade. Sendo assim, a atitude de tentar
destruir fetiche é a maneira que indivíduos que não concordam com
uma realidade tentam mostrar para os adeptos desta, que suas crenças
são elaboradas sobre mentiras, ingênuas ou que são erradas.
Sendo assim, podemos estabelecer o filme enquanto uma ten-
tativa de desfetichizar uma ideologia, denunciando atitudes e crenças
que para os produtores são erradas, ingênuas e que precisam acabar. Mas
conforme o filme vai tentando desconstruir os fetiches que apresenta,
acaba criando um outro fetiche, ou seja a idealização de uma sociedade
sem os problemas contidos na produção fílmica.
Por fim, os anseios de se continuar vivendo no caos apresentado
na obra levou a elaboração de uma película que tem como papel, além
de apresentar as angústias e os medos agir como um anti-fetiche. E ao
fazer isso constrói um novo, que tem como meta a denunciação do que
já foi exposto e a idealização de uma nova sociedade. (LATOUR, 2002)

394 Histórias, narrativas e religiões


Referências

Documentais
PLANET OF THE APES (O Planeta dos Macacos). Direção de Franklin J. Schaffner. EUA.
Produzido por Arthur P. Jacobs; Mort Abrahams; 20th Century Fox; APJAC productions.
1968. 112 min.

Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Medo Liquido. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

BURKE, Edmund. The Works of the Right Hourable Edmund Burke. 2005.

CHARTIER, Roger. A Beira da Falésia. Brasil: Universidade Estadual do Rio Grande do Sul,
2002.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria Ma-
nuela Gallhardo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1990.

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Machado,
Maria Lucia. Edição de Bolso. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

FREUD, Sigmund. O Inquietante. In: Sigmund Freud: História de uma neurose infantil (“o
homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). Obras Comple-
tas vol. 14. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 247-283.

GINZBURG, Carlo. Medo, Reverência e Terror: quatro ensaios de iconografia política. São
Paulo: Editora Schwarcz S. A. 2008.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Lisboa, Portugal: Dinalivro, 2005.

NAPOLITANO, Marcos. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 235-289.

PESAVENTO, Sandra; SANTOS, Nádia Maria Weber; ROSSINI, Miriam de Souza (orgs.).


Narrativas, imagens e práticas sociais: percursos em história cultural. Porto Alegre: Asteris-
co, 2008. pp. 99-122.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Silvia Delpy. Editions du Seuil.


Moréia: Premia S.A. 1981.

TUAN, Yi-Fu. Paisagens do Medo. São Paulo: Editora da UNESP. 2005.

LATOUR, Bruno. Reflexão Sobre o Culto Moderno dos Deuses Fe(i)tiches. Bauru, SP:
Edusc. 2002.

Histórias, narrativas e religiões 395


Predileções do diabo:
feminino, possessão e exorcismo nos
filmes de terror

Fernando Antônio da Silva (UFPE)

Resumo: O texto faz uma análise da construção histórica do feminino


associado ao demoníaco a partir dos filmes de terror que abordam o
tema da possessão e exorcismo. Realizamos uma breve recuperação his-
tórica da relação mulher-demônio no contexto do Cristianismo. A par-
tir do enquadre teórico esboçado, realizamos uma catalogação de filmes
do gênero terror e procedemos a uma análise de um filme representativo,
com objetivo de identificar o modo como a filmografia trata o tema e
possíveis relações com os fenômenos de possessão e exorcismo verifica-
dos no campo de estudos das religiões. Constatamos na filmografia uma
predominância de mais de 85% de filmes que re/produzem a histórica
relação mulher-demônio, ratificando e reelaborando na contemporanei-
dade uma composição da identidade feminina que associa a mulher ao
mal absoluto representado pela figura do diabo.

396 Histórias, narrativas e religiões


As Testemunhas de Jeová frente à adoção
da mídia no serviço missionário

Bruna Hanime Brito Soares (UFGD/CAPES)

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade analisar algumas prá-


ticas e representações das Testemunhas de Jeová e a transmissão de suas
crenças por intermédio da mídia dentro do campo religioso. Esse grupo
é mundialmente reconhecido devido à participação dos fiéis nas práti-
cas missionárias no serviço domiciliar em diversos países. Dessa ma-
neira, serão analisados alguns exemplares da revista A Sentinela, que é
uma das publicações mais distribuídas pelos fiéis no serviço missionário
mundial e também o site “jw.org”, que é o endereço eletrônico oficial
dessa comunidade religiosa. Nesse ensejo, o trabalho buscou evidenciar
as estratégias editoriais usadas pelas Testemunhas de Jeová, bem como
o gradual investimento em novas tecnologias de informação e comuni-
cação que visam captar mais adeptos a religião e principalmente como
os discursos e as práticas religiosas desse grupo foram se alterando no
decorrer do tempo. Como instrumentalização teórica, utilizaremos a
noção de “campo religioso” formulado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, a
noção de “representação” desenvolvida pelo historiador Roger Chartier
e entre outros importantes estudos da História Cultural.

Histórias, narrativas e religiões 397


Uma emissora de inspiração católica na
internet: a experiência da Rádio Brasil
Campinas

Lindolfo Alexandre de Souza (PUCCAMP)

Resumo: Para o teólogo católico italiano Antonio Spadaro (2016), o


desafio que se coloca à Igreja Católica Apostólica Romana neste século
XXI, marcado pela presença das tecnologias de comunicação e informa-
ção na vida das pessoas e das instituições, não é tanto aprender a usar a
rede mundial de computadores para a divulgação de suas notícias ou de
sua doutrina, mas, principalmente, aprender a “viver” em tempos de in-
ternet. Nesse sentido, utilizando autores como George (2006), Herring
(2005) e Formenti (2000), que se dedicaram ao estudo da ciberteologia
como uma reflexão teológica sobre a religiosidade no mundo digital,
Spadaro se distancia de um pensamento um tanto utilitarista, o qual
considera o uso da internet para que as instituições religiosas alcancem
seus objetivos, e se aproxima de uma visão que aponta a necessidade de
compreensão da internet como um novo contexto – e não apenas um
meio de comunicação – no qual o fenômeno religioso se faz presente.
Assim, a partir das reflexões apontadas, pretende-se relatar a inserção da
Rádio Brasil Campinas na internet, uma emissora de rádio AM adqui-
rida em 2011 pela Arquidiocese de Campinas e que articula sua progra-
mação radiofônica a uma página na internet e em redes sociais digitais.
Desta forma, por meio de visitas e de entrevistas semi-estruturadas com
os diretores da emissora, esse trabalho analisa em que medida o pensa-
mento de Spadaro se materializa neste projeto de evangelização católica.

398 Histórias, narrativas e religiões


Cristianismo, Imprensa e Islã nos
Estados Unidos durante a Revolução
Iraniana (1979): Questões Teóricas

Sara Cristina de Souza (UNICAMP/CNPq/CAPES)

Resumo: A presente comunicação busca discutir a maneira como a im-


prensa cristã dos Estados Unidos construiu representações do islã du-
rante a Revolução Iraniana de 1979. As questões teóricas que permeiam
essa construção são fundamentais para se compreender a relação entre
imprensa e religião nesse momento histórico, a qual ultrapassa a ideia
dos meios de comunicação como meros transmissores de valores e ideias
religiosas. Baseando-se no conceito de mediadores culturais elaborado
por Carlo Ginzburg (1989), pretende-se pensar o papel da imprensa
religiosa dentro da cultura americana, seu impacto dentre os leitores e,
principalmente, o lugar de produção de valores, conhecimentos e reli-
giosidades que essas publicações ocupam. Como exemplos, escolhemos
as revistas cristãs de maior circulação nos Estados Unidos do período,
Christianity Today e The Christian Century, e alguns de seus artigos
publicados durante os primeiros momentos do governo islâmico no Irã.

Histórias, narrativas e religiões 399


Mobilidade e Pluralidade no
Documentário Santo Forte (1999) de
Eduardo Coutinho

Gabriella Bertrami Vieira (UEM)

Resumo: O presente artigo, vinculado ao projeto de Iniciação Científica


intitulado “Práticas híbridas religiosas no documentário Santo Forte (1999),
de Eduardo Coutinho”, objetiva realizar algumas reflexões acerca da obra
documentária Santo Forte (1999). A fonte é constituída, basicamente,
por relatos de moradores da comunidade Vila Parque da Cidade, no
Rio de Janeiro, em que estes narram suas diversas experiências religio-
sas. Uma vez que se trata de uma fonte audiovisual documental, me-
todologicamente elegemos trabalhar com as considerações de Marcos
Napolitano (2008). Como referencial teórico utilizaremos os aponta-
mentos conceituais de Danièle Hervieu-Léger (2008) acerca do caráter
de mobilidade e pluralidade das identidades religiosas modernas, e de
que maneira estes são apresentados no documentário; as considerações
de Maria Lucia Montes (2012) também se fazem interessantes, pensan-
do no contexto religioso brasileiro do fim do século XX.

Palavras-chave: Documentário; História das Religiões; Eduardo


Coutinho; Pluralidade;

Introdução

“Eu vejo os orixás da Igreja Católica”, Carla corrige: ”Os san-


tos da Igreja Católica: Nossa senhora, na Umbanda ela é Oxum.
São Jorge, na Umbanda ele é Ogum. Então quer dizer, acho que é

400 Histórias, narrativas e religiões


tudo um pouco né... É uma bola de neve... Umbanda, Candomblé,
Catolicismo, tudo é uma bola de neve... quanto mais você sabe, mais
você não sabe.” –Há uma pequena mudança de foco e Carla con-
tinua: “Eu não vou negar que eu não gosto de Umbanda, porque
eu gosto... Umbanda, Candomblé, eu me encanto com essas coisas,
cada vez que eu vou ver eu me encanto muito, porque é muito bo-
nito, não quero me envolver... mas por enquanto eu estou neutra:
nem Macumba, nem Igreja, nem nada”158 (SANTO FORTE, 1999,
31’11’’ – 31’56’’)

Assim como Eduardo Coutinho, diretor de Santo Forte, em


1999, opta por iniciar a obra de uma maneira, digamos não linear, aqui
também o tentamos – salvo às proporções que são, obviamente, incom-
paráveis. O fato é que, quando o documentário, fonte de análise deste
artigo, começa com a narrativa de um dos moradores, sem nenhuma
apresentação prévia, e, segue uma sequência de abertura que já indica
a proposta de Coutinho, há uma espécie de condensado do que está
por vir, causando por vezes estranhamento, por vezes curiosidade, por
vezes admiração. Enfim, causando. É essa reação estética que nos leva
a continuar vendo o documentário e é a mesma que procuramos, talvez
em menor escala e pretensão, ao começar o presente trabalho com a
transcrição da fala de uma das personagens da obra.
O recorte transcrito nos parece interessante uma vez que de-
lineia, de certa forma, nossos objetivos. A partir do relato, observamos
a percepção da moradora Carla em relação aos processos de hibridiza-
ção. Quando ela faz o diálogo compensativo entre as Religiões Afro-
brasileiras e o Catolicismo, e chega à conclusão de que “tudo é uma
bola de neve” (SANTO FORTE, 1999 31’32’’)159, é como se a mesma,
reconhecesse os contatos e as trocas culturais que se estabeleceram. E,
que, em decorrência destes, e possivelmente de outros fatores, não se
pudesse delimitar exatamente a situação das religiões na sociedade atual.
Porém, ainda que diante desse quadro de indefinição e de incer-
teza, tanto em relação à configuração religiosa, como também ao porvir,
característico das sociedades modernas; (HERVIEU-LÉGER, 2008), o

158  Transcrição da Autora.


159  Transcrição da Autora.
Histórias, narrativas e religiões 401
fato que pode ser constatado é que essa não-delimitação, anteriormente
colocada e controlada por uma instituição religiosa que, hoje perdeu, em
parte, essa capacidade, significa a inserção do indivíduo como sujeito
que escolhe e busca pela religiosidade que lhe convém.
Ou seja, é justamente pela inexatidão, ou pela não-delimitação
exata de uma religião e de outra, por esse caráter de diálogo entre elas, que
é percebido os traços mais marcantes das religiosidades de nossas socie-
dades: o da mobilidade, da individualização e dos processos de hibridiza-
ção. Dito isso, pretendemos, basicamente, perceber de que maneira esses
traços são apresentados ao longo da narrativa documentária, e, a partir
disso, operacionalizar algumas noções relacionadas aos referidos temas,
partindo do viés da História das Religiões e da História Cultural.
Para tanto, julgamos oportuno estabelecer a disposição do texto
da seguinte maneira: Primeiramente, apresentar aspectos gerais de Santo
Forte e a metodologia adotada, segundo, respectivamente, as considerações
de Lins (2004) e de Marcos Napolitano (2008). Num segundo momen-
to, faremos uma contextualização, recortada temporalmente pela década
de 1990, da situação da produção cinematográfica, mais especificamente
documental no Brasil, com base em Lins e Mesquita (2008); bem como,
situar o cenário brasileiro religioso do referido período, com base nas
considerações de Maria Lucia Montes (1998). Por último, realizaremos
a discussão teórica acerca dos apontamentos conceituais de Peter Burke
(2003), sobre os processos de hibridização e de Danièle Hervieu-Léger
(2008) quando a mesma trata, por meio de duas categorias principais, a
do peregrino e a do convertido, o quadro religioso Moderno, e seu aspecto
de fluidez e mobilidade. E então, a partir disso, temos a tentativa de ins-
trumentalizar tais noções em algumas narrativas da obra.

Santo Forte: apontamentos contextuais e


metodológicos

Quando falamos de documentário, seja por sua própria termi-


nologia, ou ainda pela ideia que perpassa geralmente essa categoria, de-
402 Histórias, narrativas e religiões
notamos – ou conotamos – algo que se relaciona com o real, com o do-
cumento, com o fato em si. Porém, em um trabalho historiográfico, por
nossa fonte se tratar de uma obra documentária, precisamos ter certo
cuidado quando definimos, se é que definimos tal noção e, mais ainda,
quando vamos instrumentalizar conceitos na mesma.
Nesse sentido, Marcos Napolitano (2008), parte do princí-
pio de que a ideia de obra documentária tende a conduzir o especta-
dor a um “efeito de realidade” (NAPOLITANO, 2008, p. 236) uma vez
que passa a impressão de abrangência verídica e total da realidade na
qual se insere. Porém, essa interpretação objetiva, desconsidera todo
o processo de construção da obra, a intencionalidade, os mecanismos
e códigos de funcionamento que lhe são próprios. Precisamos, então,
atentar à articulação entre todos esses elementos e a realidade histórica
representada. Sem nos esquecermos de que, as fontes audiovisuais são
sempre marcadas por uma “tensão entre subjetividade e objetividade,
impressão e testemunho, intervenção estética e registro documental”
(NAPOLITANO, 2008, p.237), e que, portanto, cabe ao historiador,
amparado por um conjunto de possibilidades metodológicas, levar em
conta tanto a linguagem técnico-estética, bem como as representações
histórico-sociais, contidas na obra analisada.
Visto isso, pretendemos aqui, abordar alguns elementos do
documentário, algumas características e escolhas do diretor, algumas
técnicas empregadas e, por fim, uma breve contextualização religiosa e
cinematográfica da década de 1990.
Santo Forte é considerado um dos documentários mais impor-
tantes da carreira de Eduardo Coutinho, principalmente por ser produ-
zido em um período visto por Lins (2004), no mínimo delicado para o
cineasta. A obra teve como locação única, uma comunidade do bairro
da Gávea, zona sul da cidade do Rio de Janeiro, chamada Vila Parque
da Cidade, que o diretor conheceu através do trabalho das antropólogas
Partrícia Birman e Patrícia Guimarães. As filmagens se deram entre
outubro e dezembro de 1997, e após um longo processo de edição e
montagem, o lançamento se deu em 1999.

Histórias, narrativas e religiões 403


A ideia do tema, segundo Lins (2004), surge quando Coutinho
coordena uma pesquisa para uma futura série de TV, que acabou não
dando certo, a qual seria justamente sobre identidade brasileira. Dessa
forma, a partir das entrevistas, feitas em vários estados, e do tema suge-
rido, Coutinho percebe a oportunidade de se criar um filme.
O documentário, adotado como fonte de análise do presente
artigo, trata das trajetórias religiosas de moradores da Vila Parque, que,
entrevistados pelo próprio diretor, e sem a presença de um roteiro pre-
viamente escrito, descrevem e, de certa forma, constroem, nas narrativas,
suas rotas de identificação sobre a vivência que irá ser relatada; bem
como explicitam a relação que a religiosidade exerce com a vida cotidia-
na. Esses itinerários de identidade são complexos, por vezes paradoxais,
uma vez que são plurais no sentido de sua variedade de crenças, de prá-
ticas híbridas e de situações que se apresentam ao longo do documen-
tário; mas ao mesmo tempo, e inclusive, devido a isso, tão singulares, ao
passo que todo o relato gira em torno da vivência, do íntimo de cada um.
Temos alguns elementos estéticos essenciais em Santo Forte,
os quais vemos a necessidade de apresentar aqui. São eles: “a fala dos
personagens, as imagens concretas dos espíritos e os espaços vazios”.
(LINS, 2004, p.105).
As falas são a estrutura básica da obra. O personagem é filma-
do, salvo raras exceções, por uma câmera fixa, com alterações mínimas
no enquadramento. Há nos discursos certa riqueza de detalhes, repeti-
ção de gestos e um tom prosaico. (LINS, 2004).
Ao contrário do que a tradição documentária da década de
1960 costumava fazer160 nenhuma das narrativas são usadas ou recor-
tadas pra contrapor outra, ou para comprovar alguma tese do diretor,
portanto, são feitas em sequencias longas, respeitando sua estrutura.
O que parece acontecer em Santo forte é que Coutinho

tenta abrir um “vazio” para que o entrevistado possa preencher. Mas


não é um “vazio total”, diz ele, porque a pessoa pode querer falar de

160  Nesse período, segundo Lins e Mesquita (2008) “As falas dos personagens ou entrevistados
são tomadas como exemplo ou ilustração de uma tese ou argumento, este, muitas vezes, elaborado
anteriormente à realização do filme, não raramente a partir de teorias sociais que forneciam
explicações tidas como universalmente aplicáveis” (LINS, MESQUITA, 2008. p.21)
404 Histórias, narrativas e religiões
alguma coisa que não interessa ao diretor, e ele tenta negociar o seu
desejo com o do entrevistado. Não se trata pois de “dar voz ao outro”,
nem “dar voz a quem não tem voz” (LINS, 2004, p.107)

Nesse sentido, apesar do diretor não ter uma concepção está-


tica do que é documentário – mas sim um pensamento complexo que
se modifica a cada vez que ele se depara com um novo universo a ser
filmado –, o considera “um território compartilhado”, de troca, em que
o que é dito é determinado e tem as intenções tanto de quem fala como
também de quem escuta. Nossa fala, segundo ele,

é penetrada pelas antecipações que fazemos do que achamos que


pensa e vai dizer nosso interlocutor. Seremos sempre diferentes e
diremos sempre coisa diversa da que já dissemos, dependendo da
pessoa com quem falamos e do contexto em que nos encontramos.
(COUTINHO apud LINS, 2004, p.109)

Dessa forma, Coutinho não é um interlocutor comum, no sen-


tido do que era feito habitualmente, uma vez que ele não estava ali para
debater ou duvidar do que as pessoas estão dizendo. Porém também não
nos enganemos com uma impressão de passividade e imparcialidade:
Sua escuta é ativa, “se há um lado passivo na interlocução, acabou”, diz o
diretor. (COUTINHO apud LINS, 2004, p.109)
Temos como outro elemento de Santo Forte, imagens de está-
tuas das entidades pertencentes às crenças afro-brasileiras, no momento
em que estas são citadas no decorrer de alguma narrativa. Na entrevista
de Carla, por exemplo, enquanto fala sobre sua pomba-gira, chamada
Maria Padilha, e alguns ocorridos com esta, em um determinado mo-
mento há um corte, e é apresentada, por cerca de cinco segundos, geral-
mente, somente a estátua de Maria Padilha, com o som da fala de Carla
ao fundo. Isso se dará em vários relatos no documentário, e está vincu-
lado ao estilo que Coutinho adota no mesmo. Tais imagens, segundo
Lins (2004), foram gravadas em um momento posterior às filmagens na
comunidade, e podem ser consideradas, de certa forma, como ilustrações
do que está sendo falado, apesar do diretor negar isso.
Histórias, narrativas e religiões 405
Quanto aos espaços vazios, são apresentados com a ausência de
áudio, fazem referência à lugares da habitação do entrevistado, no qual
este conta sua experiência, ou, com mais frequência, ao local em que a
hierofania161 acontece. Como, por exemplo, na fala de André, o primei-
ro participante que aparece na obra. André relata o momento em que
sua esposa recebe a entidade de sua mãe, ou seja, o momento em que o
sagrado se faz presente, e, em um determinado de sua narrativa, há um
corte, aparecendo, de maneira rápida também, a imagem do quarto do
casal, onde aconteceu o que está sendo relatado.
Portanto, explanadas algumas constatações sobre nossa fonte e
a proposta metodológica aqui utilizada, pincelaremos, agora, o contexto
da produção documental, a qual que se insere Santo Forte, bem como
algumas características do contexto sociorreligioso do referido período.
Lins e Mesquita, em Filmar o Real: sobre o documentário brasi-
leiro contemporâneo (2008), intencionam identificar novos traços e ten-
dências da produção de filmes e vídeos documentais no Brasil a partir
da década de 1990, fazendo alguns recuos no contexto de produção an-
terior para melhor entendermos os itinerários percorridos.
Segundo as autoras, esse período é de especial importância para
o documentário brasileiro, uma vez que este se encontra em marcante
crescimento. Isso se deve, primeiro, porque há a inserção dos equipa-
mentos digitais que, propiciam para além de vantagens técnicas e esté-
ticas, um barateamento na produção dos filmes. Outro fator que foi im-
prescindível para a situação de crescimento do cinema documental, foi o
estímulo que este teve, principalmente com uma legislação de incentivo,
por mecanismos de renúncia fiscal, que atraía patrocinadores para os
projetos, como por exemplo as Leis Rouanet e a Lei do Audiovisual.
(LINS, MESQUITA, 2008)
O campo documentário então começa a conquistar lugar em
meio ao público, nas telas de cinema e, dessa forma, no mercado. Porém,
não podemos considerar que isso foi totalmente consolidado. Há no-
vidades, mas, em relação à distribuição e comercialização da produ-

161  Partindo da concepção de Mircea Eliade (1992), em O Sagrado e o Profano, o termo refere-
se à manifestação do sagrado, ao momento em que o sagrado se faz presente de alguma forma.
406 Histórias, narrativas e religiões
ção documentária, por exemplo, havia muito ainda a ser feito. (LINS,
MESQUITA, 2008)
Paralelamente ao contexto cinematográfico, temos o sócio-re-
ligioso. Maria Lucia Montes (1998), quando escreve sobre as figuras do
sagrado no quarto volume da coleção História da Vida Privada no Brasil:
contrastes da intimidade contemporânea ressalta que se apresentava “um
rearranjo global do campo religioso no Brasil”. Rearranjo o qual, os efei-
tos oscilavam em incidência entre o mundo público e o mundo privado,
e, apontavam o que a autora chama de “ambivalências da modernidade”
(MONTES, 1998, p.69). Dito isso, Montes (1998), pontua alguns sinais
desse campo em transformação, como por exemplo, a ampliação e diver-
sificação do mercado dos bens de salvação, igrejas com uma conotação
empresarial, a fragilização das instituições religiosas, tanto do ponto de
vista organizacional, quanto doutrinário ou litúrgico; e, principalmen-
te, a participação dos meios de comunicação em massa à serviço da fé.
(MONTES, 1998)
A autora nos faz refletir e nos questionar de que maneira es-
sas transformações incidem sobre o indivíduo e as escolhas morais que
realiza, sobre sua vida doméstica, as práticas da intimidade, e como se
acomoda, nelas, a experiência interior do sagrado que toda religião pres-
supõe? Quais as consequências para a vida social, na redefinição de fron-
teiras entre o público e o privado? (MONTES, 1998, p.70)
É inserida em toda essa complexa configuração contextual, de
ressignificações, rupturas e pluralidade, que é gravado Santo Forte. “Isso
é um filme, lembra o diretor, foi rodado em um determinado dia, se fosse
feito em outras circunstancias o material seria diferente” (COUTINHO
apud LINS, 2004 p.105-106). A partir dessa afirmação, podemos ver a
importância do contexto para a produção da obra. Percebemos certa
preocupação, por parte do diretor, em tentar fazer uma conexão com o
contexto de 1997, por exemplo, no fato de várias pessoas estarem assis-
tindo a missa Campal, realizada pelo Papa João Paulo II, no Aterro do
Flamengo, na televisão; ou então quando o mesmo insere no documen-
tário as datas das filmagens.

Histórias, narrativas e religiões 407


Mobilidade e Pluralidade: características de um
panorama religioso Moderno

A socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, em sua obra O


peregrino e o convertido: a religião em movimento (2008), traça refle-
xões acerca da configuração do cenário religioso compreendido como
‘Moderno’, uma vez que, para a autora a Modernidade religiosa remete
ao período compreendido pelo século XX e início do XXI.
A autora aludida, afirma que “o que caracteriza a religiosida-
de das sociedades modernas é a dinâmica do movimento, mobilidade
e dispersão de crenças” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.10). Essa mo-
dernidade se constitui, principalmente pelo processo de “autonomia
do indivíduo-sujeito” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.32), no qual cada
um se coloca como produtor de seu próprio universo de sentido. Como
também, pela diferenciação das instituições, que está ligada à separação
entre a Igreja e o Estado.
Seguindo essa mesma lógica, Montes (1998) ressalta que

à medida que, numa sociedade cada vez mais complexa, a experi-


ência da vida social se torna múltipla e fragmentária, as instituições
que pretendiam formular sistemas de interpretação abrangente, ca-
pazes de enfeixar numa totalidade única a compreensão da realidade,
derivando daí os preceitos adequados à orientação da conduta nas
diversas dimensões da vida privada, vão perdendo gradativamente
sua força normativa. (MONTES, 1998, p.141)

Ou seja, perante esse quadro, temos como uma das consequ-


ências mais marcantes, a perda de regulamentação, por parte das insti-
tuições tradicionais produtoras de sentido, principalmente no âmbito
religioso. Visto que, é o indivíduo, dotado de liberdade, quem, agora,
traça, de acordo com seus interesses e recursos disponíveis, sua própria
trajetória religiosa, sendo ela ligada à uma doutrina específica ou não
(HERVIEU-LÉGER, 2008).

408 Histórias, narrativas e religiões


Outra consequência é a pluralidade e a mobilidade das identi-
dades religiosas, pois na mesma proporção em que as sociedades moder-
nas são cada vez mais sociedades regidas pelo “paradigma da imediatez”,
em que a inovação e as modificações constantes são tidas como regra
geral, estas são também, cada vez mais “sociedades amnésicas”, já que
infringiram o “elo da memória obrigatória da tradição” (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.62-63)
Posto isso, não podemos mais considerar que as identidades
religiosas são exclusivamente, herdadas, mas sim que

Os indivíduos constroem sua própria identidade sociorreligiosa a


partir dos diversos recursos simbólicos colocados à sua disposição e/
ou aos quais eles podem ter acesso em função das diferentes experi-
ências em que estão implicados. A identidade é analisada como re-
sultado, sempre precário e suscetível de ser questionado, de uma tra-
jetória de identificação que se realiza ao longo do tempo (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.64)

Diante disso, o que temos, segundo a autora, é uma tendência à


“bricolagem de crenças” (HERVIEU-LÉGER, p.41), bem como a uma
individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé.
Os indivíduos fazem valer de sua liberdade de escolha incor-
porando as práticas e crenças que lhe convém. Sendo que os significados
destas, para cada um, tende a ser diferente de sua “definição doutrinal”.
As crenças são “triadas, remanejadas e, geralmente livremente combi-
nadas a temas emprestados de outras religiões” (HERVIEU-LÉGER,
2008, p.43)
Nesse mesmo sentido, o historiador Peter Burke, em hibridis-
mo cultural (2003), respalda sua reflexão na afirmativa de que “todas as
tradições culturais hoje estão em contato mais ou menos direto com
tradições alternativas”. Sendo que essas tradições se apresentam como
“áreas de construção” que estão em constante processo de elaboração
e reelaboração, tanto de forma consciente, como também inconsciente
para os sujeitos. (BURKE, 2003, p.102)
O referido autor, ao tratar das práticas híbridas, considera que
estas podem ser encontradas em vários âmbitos da cultura, e, particu-
Histórias, narrativas e religiões 409
larmente na religião. Para o autor, os processos de hibridização nas reli-
giões relativamente novas são notoriamente identificados, uma vez que
por mais que as reações à esses processos sejam variadas, eles estão cada
vez mais presentes na sociedade atual, e, essa tendência, torna-se, de
certa forma, inevitável. Tais processos, são tidos para ele, como produtos
de encontros múltiplos entre culturas, e não de um único. Sendo que
estes, podem tanto adicionar novos elementos à mistura quanto reforçar
antigos (BURKE, 2003)
Porém, de que maneira, como historiadores, podemos identifi-
car esses processos de hibridização e suas consequências no contexto de
uma religiosidade moderna, em que a mudança, a diversidade e a mobi-
lidade são cada vez mais frequentes? Ou ainda, como fica a situação do
campo religioso e das identidades religiosas, em um cenário tão híbrido,
móvel e distinto?
Burke (2003) propõe uma abordagem amparada pela variedade
de conceitos, por vezes metafóricos, uma vez que essa se faz necessária
para tentar abarcar tanto “o agente humano quanto às modificações das
quais os agentes não tem consciência” (BURKE, 2003, p.41). Porém,
essa variedade de terminologias para fazer referência aos diversos tipos
de hibridização acaba criando problemas conceituais próprios, que estão
sendo considerados nesse trabalho, e expostos à medida de sua utilida-
de para as reflexões. Evidenciamos então, três conceitos definidos por
Burke (2003) que parecem ser interessantes para nossa proposta: apro-
priação, negociação e hibridismo.
Ao abordar o conceito de apropriação, o supracitado autor,
exemplifica Basil de Cesarea. Este último, ao tratar dos “usos da cultura
pagã que eram permitidos aos cristãos”, metaforiza a apropriação, pelo
comportamento das abelhas: “nem abordam igualmente todas as flo-
res, nem tentam carregar por inteiro aquelas que escolhem, mas pegam
apenas aquilo que é adequado a seu trabalho e deixam o resto intocado”
(BURKE, 2003, p.42)
A partir dessa metáfora, mais uma vez é possível observar os
processos nos quais os sujeitos, diante do que lhes é culturalmente ofe-

410 Histórias, narrativas e religiões


recido, no decorrer de seus itinerários, fazem uso dos elementos que lhes
são compatíveis.
Já o termo negociação, que se coloca como alternativo à acomo-
dação, ”[...] expressa consciência da multiplicidade e da fluidez da identi-
dade e o modo como ela pode ser modificada ou pelo menos apresentada
de diferentes modos em diferentes situações” (BURKE, 2003, p.48).
Quando discorre sobre hibridismo, Peter Burke o define como
um “termo escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e metafóri-
co, descritivo e explicativo” (BURKE, 2003, p.54). Tendo em vista tais
considerações, verificamos traços dos três conceitos, cada um de acordo
com sua particularidade, que podem ser articulados entre si, e elencados
na obra documentária.
O primeiro faz alusão à busca, ressaltada por Hervieu-Léger
(2008) do indivíduo, através de seu caminho religioso, por elementos
os quais auxiliem na construção de sua identidade religiosa. O segundo,
remete justamente ao caráter diverso e móvel dessas identidades religio-
sas, e o terceiro, por sua vez, demonstra o cuidado que devemos ter ao
tratar dessas construções ao mesmo tempo diversas e singulares.
As narrativas de Santo Forte, salvo suas especificidades, de
modo geral, transmitem essa natureza ambígua, “escorregadia”, fluida, e
móvel de que tratam tais noções.
Para Hervieu-Léger (2008), esse panorama religioso exposto, o
qual é construído a partir de experiências individuais diversas, tenciona
com a figura modelo tipicamente aderida de homem-religioso, que é a
do praticante. Sendo esta, caracterizada por sua estabilidade e identi-
dade religiosa bem definida e identificável, encontra-se em estado de
insuficiência quando queremos expressar a dinâmica do movimento e
da diversidade que marca a modernidade.
Dessa forma, a socióloga francesa conceitua duas novas figuras
que, podem cristalizar melhor a mobilidade percebida: o peregrino e o
convertido (HERVIEU-LÉGER, 2008)
A primeira delas é estruturada como “típica do religioso em mo-
vimento” em dois sentidos. Primeiramente, porque remete, de maneira
metafórica, à fluência dos percursos espirituais individuais, “[...] que po-

Histórias, narrativas e religiões 411


dem, em certas condições, organizar-se como trajetória de identificação
religiosa”. Bem como, pelo fato de se constituir como uma “forma de so-
ciabilidade religiosa”, que se encontra emergente, sendo marcada pela mo-
bilidade e pela associação temporária (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.89).
O convertido, por sua vez, revela-se como a segunda figura
apresentada por Hervieu-Léger (2008), à medida que auxilia no reco-
nhecimento dos “processos da formação das identidades religiosas nesse
contexto de mobilidade” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.107).
As conversões, para referida autora, estão associadas a dimen-
são de uma escolha individual, presente na modernidade, e se fazem
cada vez mais recorrentes. Diante disso, Hervieu-Léger (2008) caracte-
riza a figura do convertido a partir de três modalidades principais.
Essas três modalidades correspondem, respectivamente ao in-
divíduo que muda de religião, com a rejeição de uma identidade herda-
da, procurando outra que lhe é interessante; ao que adere à uma religião
por suas trajetórias e escolhas pessoais, sem que tivesse pertencido à
alguma tradição religiosa; e ainda, ao que “(re)descobre” sua religião de
origem (HERVIEU-LÉGER,2008, p.108).
Desse modo, os conceitos de “peregrino” e de “convertido” pare-
cem ser interessantes para a problemática da situação das identidades reli-
giosas modernas e para a análise de alguns discursos da fonte audiovisual.
O relato de Vera, moradora que auxilia e orienta o trabalho da
equipe de Santo Forte na comunidade, pode ser pensado, tanto nessas
figuras que ajudam a compreender a configuração moderna da religio-
sidade, como também nos traços dessa Modernidade apresentados por
Hervieu-Léger (2008), no contexto da década de 1990 discutido por
Montes (1998) e, ainda, por Peter Burke (2003).
Ao longo de sua narrativa, a moradora vai apresentando si-
tuações vividas, primeiramente, no espiritismo e, mais tarde no pro-
testantismo, principalmente na Igreja Universal do Reino de Deus. A
entrevistada conta que “herdou”, de sua tradição familiar, a identidade
religiosa espírita, porém, ela afirma que passou por conflitos com esta
religião, exemplificando o caso do rompimento de uma relação, que, se-
gundo ela, se deu devido à interferência de sua pomba-gira.

412 Histórias, narrativas e religiões


A partir do ocorrido, a personagem conta que começou a pro-
curar outras formas de religiosidade, até que “encontra” a Universal, e
passa a frequentá-la. Porém, nesta, também passa por alguns desenten-
dimentos, fazendo com que a moradora “saísse da religião”. Pensando
que essa “saída”, para Hervieu-Léger (2008) remete ao abandono da
identidade religiosa pelo indivíduo para, possivelmente, adotar outra
que lhe interessa. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.72),
Por fim, ao ser questionada por Coutinho sobre sua frequência
ou pertencimento à alguma Igreja, ela cita várias e diz: “eu faço visitas
pra congregar” (SANTO FORTE,1999, 15’32’’)162
Com a narrativa de Vera, vemos, primeiramente, quando ela
deixa o espiritismo e vai em busca de outra religião, uma das modali-
dades da figura do convertido. Essa modalidade, remete ao indivíduo
que “muda de religião” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p.111), rejeitando
alguma identidade religiosa herdada e assumida para adotar uma nova.
Outro aspecto que pode ser inserido é sobre a figura do peregri-
no. Ao passo que a moradora diz fazer visitas em várias Igrejas, ela cor-
responde à concepção de “religiosidade peregrina” (HERVIEU-LÉGER,
2008, p.89) no que diz respeito à fluidez e à mobilidade da mesma.
Podemos perceber ainda, em seu relato, que ao passar de uma
religião à outra, a personagem tece críticas à religiosidade deixada, que
de certa forma justificam sua saída, o que Hervieu-Léger chama de
“protesto sociorreligioso apresentado pelas conversões” (p.109)

A passagem de uma religião a outra chama a atenção, sobretudo,


porque dá lugar, ao mesmo tempo, à opção de uma nova adesão e
à expressão desenvolvida de um refuto (ou crítica) de uma expe-
riência anterior. Quando eles contam sua trajetória espiritual, os
indivíduos em questão, citam, de fato, muitas vezes, as condições
nas quais eles se afastaram de sua religião de origem, considerada
“decepcionante”, por ser alheia aos verdadeiros problemas do indi-
víduo de hoje, incapaz de oferecer resposta a suas angústias reais e
de lhe fornecer o apoio eficaz de uma comunidade (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p.109)

162  Transcrição da Autora.


Histórias, narrativas e religiões 413
Além de Vera, outra participante que escolhemos foi Carla. A
mesma, é dançarina em uma boate e, segundo Coutinho, no próprio
documentário, é famosa na comunidade por “contar histórias incríveis
de surras de santo” (SANTO FORTE, 1999, 26’31’’)163. Ela começa
sua fala com o relato de uma situação que viveu na Igreja Universal do
Reino de Deus: aos dez anos ela “era fanática dentro da Igreja” (SANTO
FORTE, 1999, 25’20’’)164, e começou a ficar perturbada.
Perante a isso, a moradora é proibida de frequentar a Universal,
por sua mãe e diz ter “voltado a frequentar os terreiros de Umbanda”
(SANTO FORTE, 1999, 25’48’’)165 onde, segundo ela ocorreram pro-
blemas com o pai-de-santo, que mantinha relações sexuais com as fi-
lhas-de-santo, e, devido a isso ela levava o que ela chama de “surra de
santo”. Por conta disso, ela deixa então a religião. Dessa forma, a entre-
vistada, continua traçando sua trajetória, dizendo que depois de partici-
par e de, de certa maneira, se frustrar nessas religiões ela, hoje se coloca
como “neutra”.
Giovana Scareli (2011)166 considera o relato de Carla

interessante, pois esta personagem faz o percurso contrário ao das


pessoas que foram entrevistadas para as pesquisas com as antropó-
logas. Ela é uma pessoa que saiu da IURD para a umbanda, isto
porque o fanatismo tomou conta dela e porque sentia medo e per-
turbação com as imagens que “via”. O mal que a IURD tanto deseja
expulsar deixou Carla neurótica. (SCARELI, 2011, p.45)

A partir disso, podemos analisar o relato de Carla como de


alguém que também se insere nas categorias de Hervieu-Léger (2008)
uma vez que, assim como Vera, temos a noção de “saída da religião”. Ou
seja, é delineada novamente, no documentário, essa questão do trânsito
religioso, da mobilidade e da pluralidade das religiosidades modernas.

163  Transcrição da Autora.


164  Transcrição da Autora.
165  Transcrição da Autora.
166  Transcrição da Autora.
414 Histórias, narrativas e religiões
Considerações Finais

No presente artigo buscamos realizar algumas reflexões acerca


do documentário Santo Forte (1999), de Eduardo Coutinho, principal-
mente sobre as questões de mobilidade e pluralidade religiosa presente
na obra. Nossos objetivos estavam traçados, basicamente, em perceber, a
partir de algumas narrativas, de que maneira se dá a inserção das práticas
de hibridismo na obra documentária, e como as identidades religiosas
modernas apresentam caráter de mobilidade e pluralidade, por meio das
categorias apresentadas por Hervieu-Léger (2008) e por Peter Burke
(2003), configurando-as também nos relatos da fonte.
Além disso, as proposições teóricas de Maria Lucia Montes
(1998) acerca do cenário religioso brasileiro em transformação na déca-
da de 1990 e de Lins (2004) sobre a produção documentária e a obra de
Coutinho, foram essenciais.
Dessa forma, vemos diante de todas as considerações e da aná-
lise da obra documentária, um cenário religioso do final do século XX
marcado pela crise das instituições tradicionais, “pela difusão do crer
individualista, pela disjunção das crenças e pertenças confessionais e
pela diversificação das trajetórias percorridas por ‘crentes passeadores’”
(HERVIEU-LÉGER, 2008, p.25).
À luz do exposto, é necessário ressaltar, que este trabalho é uma
possível visão sobre Santo Forte, que não intenciona condensar a tota-
lidade da obra, nem saturá-la de reflexão. Mas sim, pensar alguns con-
ceitos, que remetem à História Cultural e à História das Religiões, suas
problemáticas e o modo que estes podem ser observados na obra.

Referências

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. RS: UNISINOS, 2003

COUTINHO, Eduardo. A Cultura do Transe. Entrevista a Inácio Araújo e José Geraldo Cou-
to. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 28 de novembro de 1999.

Histórias, narrativas e religiões 415


ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandez. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petró-


polis, RJ: Vozes, 2008.

LINS, Consuelo. O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2004

LINS, Consuelo; MESQUITA, Cláudia. Filmar o Real: sobre o documentário brasileiro con-
temporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

NAPOLITANO, M. Fontes audiovisuais: a história depois do papel. In: Carla Bassanezi Pinsky.
(Org.). Fontes Históricas. 1 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2008, v. 1, p. 235-290.

SANTO forte. Direção: Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: CECIP; RioFilme, 1999. 84min.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=CsoHSrxtjvo. Acesso em: 09 de setembro
de 2016.

SCARELI, G. Cinema e Religião em Santo Forte, de Eduardo Coutinho. Revista da FAEE-


BA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v.20, n.35, p. 41-53, jan./jun. 2011

416 Histórias, narrativas e religiões


Simpósio Temático 4 – História das
Religiões e Literatura

Coordenação:
Prof. Dtrndo. Sérgio Willian de Castro Oliveira Filho (UNICAMP/
Marinha do Brasil)

Este simpósio temático tem por finalidade aglutinar a discus-


são de pesquisadores interessados em abordar os usos da literatura como
objeto ou fonte documental para a História das Religiões. Busca-se fo-
mentar o debate sobre a História Cultural das Religiões com aspectos
relacionados à produção, circulação e consumo dos múltiplos gêneros li-
terários. O ST pretende receber comunicações sobre os seguintes temas: 

1. Questões teóricas e metodológicas sobre os usos da literatura


nos estudos sobre história das religiões;
2. Gêneros literários e abordagens historiográficas das religiões e
religiosidades; 
3. Diálogos religiosos em obras literárias; 
4. Missões e aparatos discursivos literários; 
5. Produção, circulação e consumo da literatura relacionada às re-
ligiões e práticas religiosas. 

A discussão das múltiplas abordagens da literatura no estudo


da História Cultural das Religiões insere-se na perspectiva de conflu-
ência de vários saberes (história, antropologia, crítica literária, filologia,
filosofia, etc.), de modo a ser percebido como um jogo de aparatos inter-
disciplinares. A proposta deste simpósio temático justifica-se pelo inte-
resse em enfatizar a relevância das pesquisas sobre literatura e história
das religiões, de modo a perceber a literatura como uma manifestação
cultural cuja historicização se faz necessária, sendo indispensável aos
historiadores das religiões que fazem uso da literatura como fonte ou
que a abordam como objeto, a discussão de seus métodos e perspectivas
na pesquisa histórica.
Histórias, narrativas e religiões 417
Comunicações – Simpósio Temático 4

418 Histórias, narrativas e religiões


O Teatro de uma Fuga: Giacomo
Casanova e a querela contra a Inquisição
Veneziana (1755-1760)

Luis Eduardo Bove de Azevedo (UNESP)

Resumo: O presente artigo busca analisar, através da vida e das obras de


Giacomo Casanova (1725-1798), as críticas ao procedimento e à própria
Inquisição Veneziana, além de colocar em discussão a problemática moral
que levou à sua prisão em 1755 e, doravante, sua fuga no ano seguinte.
Nesse sentido, será realizada uma análise de sua captura, vida na Prisão
dos Chumbos e fuga, eventos estes que se apresentam enquanto possí-
veis fatores de contestação aos moldes inquisitoriais venezianos. Sendo
assim, será possível identificar as estruturas sociais nas quais Giacomo
Casanova esteve inserido, homem que circulou pelas grandes Cortes
europeias desses tempos, e destacar as críticas presentes em seu relato
acerca da Inquisição Veneziana setecentista. Os relatos autobiográficos
de Casanova serão confrontados com a peça processual da Inquisição e
com as notícias de sua fuga, ambas existentes no Arquivo de Estado, em
Veneza. Por fim, serão analisadas tanto a ação do Santo Ofício em Veneza,
sobretudo no que concerne aos chamados delitos morais/sexuais, quanto
a própria produção de um discurso crítico, já bastante consolidado acerca
da Inquisição, do qual Casanova procurou se apropriar.

Palavras-chave: Inquisição Veneziana; Giacomo Casanova; Crítica;


Prisão dos Chumbos; Século XVIII.

Introdução

O trabalho que ora se apresenta procura compreender e ana-


lisar as críticas contra a Inquisição Veneziana produzidas por Giacomo

Histórias, narrativas e religiões 419


Casanova (1725-1798), logo após a sua fuga da prisão dos Chumbos,
em Veneza, no ano de 1756. Casanova foi uma das personalidades mais
controvertidas da época Moderna. Nascido em 1725, na República de
Veneza, foi observado de perto pelos espias dos inquisidores venezianos,
sobretudo por conta de seu comportamento “imoral” (como queriam seus
algozes) e pelas ligações com o círculo cultural e mercantil de Andrea
Memmo (membro de uma família importantíssima que almejava figurar
novamente entre os grandes da República), além da leitura de livros proi-
bidos, como as obras sobre a cabala – um de seus temas favoritos.
O Santo Ofício em Veneza guardava certas particularidades.
Fundado em 1547, sob o apoio do doge, a Inquisição Veneziana es-
teve constantemente sob a intervenção das autoridades da República
(CALIMANI, 2002, p. 64), sobretudo a partir do século XVII, com a defesa
de uma autonomia promovida por Paolo Sarpi (DEL COL, 2006, p. 705).
Portanto, amiúde, o Tribunal servia aos interesses políticos e
ao disciplinamento dos indivíduos – sem nunca deixar de observar o
aspecto religioso de extirpação das heresias. Entretanto, em fins do sé-
culo XVIII, uma série de ideias “libertinas” eram combatidas em toda a
Europa, estando presentes, inclusive, em Veneza. Diante disso, Casanova
apresenta-se como um agente que defendia a liberdade de pensamen-
to apregoada pelos seus contemporâneos iluministas, apesar de possuir
certas incompatibilidades de ideias, por exemplo, no que diz respeito a
aspectos do pensamento de Voltaire, com quem teve algumas desaven-
ças (CASANOVA, 1957).
Giacomo Casanova era, de acordo com o relato de Ian Kelly
(2009), um de seus biógrafos, um

Intelectual de saber enciclopédico [...], trabalhou como violinista,


soldado, alquimista, curador espiritual e até bibliotecário, tendo sido
educado originalmente para o sacerdócio. [...] escreveu 42 livros,
além de peças, tratados filosóficos e matemáticos, libretos de óperas
e obras sobre calendários, leis canônicas e geometria cúbica (p. 13).

Casanova não era um iluminista, mas quando escreveu as suas


duas séries de memórias, além do relato pormenorizado de sua fuga –

420 Histórias, narrativas e religiões


História da minha fuga das prisões de Veneza, publicado originalmente
em Leipzig, em 1788 –, engrossou o coro das críticas de Voltaire (com
Cândido) e também de Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas) contra as
punições e os procedimentos das Inquisições.

1. Objetivo

Analisar a crítica produzida por Casanova contra a Inquisição


veneziana e compará-la com o tratamento das demais críticas de autores
coevos sobre o movimento. Além disso, perceber e discutir as formas
pelas quais agia a Inquisição Veneziana, no século XVIII, através de
seus espiões, apresentando os motivos pelos quais a vida de Giacomo
Casanova cruzou com a ação do Tribunal e o levou à prisão, em 1755.
Neste sentido, será realizada uma análise das narrativas feitas
por Casanova acerca das acusações contra ele, comparando os seus re-
latos em três de suas principais obras: Memórias de Giacomo Casanova,
História da Minha Vida e História da Minha Fuga das Prisões de Veneza.

2. O Pensamento Libertino

Na segunda metade do século XVIII, o pensamento e a escri-


ta “libertários” – e devemos dizer, também, “libertinos” – de Giacomo
Casanova foram, contudo, contestados pela Igreja Católica, uma vez
que Casanova contrariava frequentemente muitos dos dogmas e a moral
cristã. O Santo Ofício tinha motivos de sobra para o inquirir. Devasso,
como o próprio autor chegou a lembrar em suas Memórias, “o ato sexual
é o sacramento máximo” quando se imiscui práticas sexuais heterodoxas,
com várias mulheres, e a crença cabalista.

Histórias, narrativas e religiões 421


O seu envolvimento com as jogatinas e as bebedeiras, além
da facilidade para ascender socialmente, interrompendo, dessa forma,
as ordens sociais até então vigentes faziam dele alguém marcado pela
imoralidade. Mas, certamente, a leitura e o conhecimento de livros so-
bre ciências ocultas foram fatores que pesaram em seu processo (ASVe,
Inquisitori di Stato, Ex. 197, Tome I-III. Annotazioni - B. 534. fl. 55).

2.1. Críticas ao Santo Ofício de Veneza

Observamos em Casanova, destarte, uma tendência à crítica


em seus escritos, à medida que ele elucida uma série de pontos negativos
acerca da Inquisição de Veneza, desde questões relacionadas às formas
de punição, perpassando a arbitrariedade de seus inquisidores e a forma
pela qual são efetivadas as acusações por parte do Santo Ofício.
Apesar de Casanova apresentar-se enquanto cristão (algo que
foi muito questionado pela Inquisição de Veneza, anteriormente à sua
acusação e consequente prisão), em alguns relatos presentes na História
da Minha Vida (CASANOVA, 2013) ele mesmo se questiona acerca
de suas atitudes, uma vez que elas não seguem o que lhe foi ensinado
durante os anos em que se dedicou à vida clerical.
No Prefácio escrito às suas Memórias, entretanto, Casanova faz
importantes afirmações com relação à sua crença em Deus, mostran-
do-se contrário ao que os inquisidores tomavam como fato. De acordo
com ele:

Eu não sou apenas monoteísta, mas cristão fortalecido pela filosofia,


que jamais corrompeu alguém. Eu creio na existência de um Deus
imaterial, autor e senhor de todas as formas; e o que me prova nunca
haver dele duvidado é que sempre contei com a sua providência,
recorrendo a ele pela prece nas horas de aflição e vendo-me sempre
atendido. (CASANOVA, 1957, p. 129-130).

Através das investigações realizadas pelo tribunal da Inquisição


de Veneza, seja por meio da ajuda de espiões inseridos próximos à
Casanova ou por denúncias contra ele, sua prisão aconteceu em 1755,
422 Histórias, narrativas e religiões
sendo que, tal como nos elucida Ian Kelly ao exemplificar um relato
feito contra Casanova, anos depois de sua formação no sacerdócio, ele
“[...] não tem respeito pela religião.” (2009, p. 100).
O que se observa, entretanto, é que não havia, como Casanova
deixa evidente nas suas Memórias e na História da Minha Fuga das Prisões de
Veneza, um real motivo para a sua prisão ter sido realizada pela Inquisição.
Ian Kelly aponta, como possíveis motivos que levaram
Casanova aos Chumbos, os seus relacionamentos com pessoas de maior
nível social do que o dele, a teoria de que ele vendia o corpo (ou seja,
era um prostituto) e, enfim, o seu envolvimento com a cabala, como já
mencionado anteriormente.
Sendo assim, a Inquisição Veneziana pode ser identificada, dito
de outra forma, mais enquanto um órgão de censura e punição do go-
verno, com o intuito de manter certa ordem social (sem as “idas e vindas”
de Casanova pelas diferentes camadas sociais de Veneza) e de evitar que
se denegrissem as imagens construídas pela Igreja, do que uma institui-
ção que visava única e exclusivamente à punição religiosa (CALIMANI,
2002, p. 124).
Ademais, buscamos abordar tal episódio e seus meandros en-
focando, de forma secundária, no aspecto sexual presente na vida de
Casanova, algo que foi contestado pelo Santo Ofício em decorrência do
cunho libertino de suas ações. Como ele aponta sobre a sua vida sexual:

Cultivar o prazer dos sentidos foi sempre minha principal preocu-


pação; nunca encontrei outra coisa mais importante. Sentindo-me
nascido para o belo sexo, sempre o amei e por ele me fiz amar tanto
quanto pude. Apreciei também os bons manjares com transporte, e
sempre me apaixonaram todos os objetos capazes de me excitar a
curiosidade. (CASANOVA, 1957, p. 139).

2.2. O Interessante Casanova

Outra questão aqui discutida e explícita em seus relatos diz res-


peito à forma pela qual a Inquisição Veneziana esteve interessada, primor-
dialmente, na vida pessoal e social de Casanova, levando-o à prisão do
Histórias, narrativas e religiões 423
Palácio dos Chumbos de Veneza, em 1755, e como a sua fuga, em 1756,
pode representar um exemplo do desgaste do modelo inquisitorial até
então vigente não apenas na região da atual Itália, mas em outros países
que também utilizaram o referido modelo inquisitorial ligado ao Estado.
As questões levantadas a este respeito são de extrema impor-
tância, dado que, a partir do relato de Giacomo Casanova referente às
acusações pela qual passou, em 1755, por parte da Inquisição, podemos
observar e compreender os seus manuscritos (que foram muitos ao lon-
go de sua vida) como uma forma de serem feitas críticas ao Santo Ofício
de Veneza.
Ao relatar a infraestrutura física da Prisão dos Chumbos, obser-
vamos que há uma preocupação em descrever toda a arquitetura do local,
passando-nos a ideia de um claustro, desconfortável e incômodo, no qual
deveriam ser reclusos todos aqueles que fossem considerados culpados
de algum crime, seja ele contra o Estado ou contra a instituição religiosa.

3. O Cárcere

Casanova, após sua prisão, faz um relato no qual descreve os


“Chumbos”, apontando características que tornam o seu tempo no cár-
cere incômodo e inconfortável, que vão desde a pequena altura da cela,
as condições higiênicas precárias, até à falta de iluminação e circulação
de ar. Ele escreve uma breve síntese do local, abarcando a sua exata lo-
calização e as formas de acesso. Segundo ele

Os chumbos, prisão destinada a encerrar os criminosos de Estado,


não são senão os altos do palácio ducal, e devem seu nome às largas
placas de chumbo que lhe recobrem o teto. Não se pode lá chegar
senão passando pelas portas do próprio palácio, ou pelo edifício das
prisões, ou ainda pela Ponte dos Suspiros [...]. Só se pode subir aos
Chumbos atravessando a sala em que se reúnem os inquisidores de
Estado, e apenas o secretário possui a chave, a qual confia ao carce-
reiro odas [sic] as manhãs, para o serviço diário.

424 Histórias, narrativas e religiões


A respeito das formas de tortura empregadas pela Inquisição de
Veneza – realizadas, entre outros lugares, na prisão em que Casanova esteve
–, também relatadas nas Memórias, observamos o seu relato ao descrever a
explicação, dada por um dos guardas da Prisão dos Chumbos, do uso de um
de seus instrumentos, quando de sua curiosidade acerca de tal objeto:

Pensava eu no que podia ser aquilo, quando o guarda, sorrindo me


disse: “Vejo, Senhor, que quereríeis adivinhar para que serve este ins-
trumento, e posso dizer-vos. Quando Suas Excelências dão ordem
para que se estrangule alguém, sentamo-lo sobre um tamborete, de
costas para este colar, e coloca-se-lhe a cabeça de modo a que o colar
lhe abrace metade do pescoço; uma tira de seda, que lhe dá a volta à
outra metade do pescoço, passa com as duas pontas por este buraco
que vai terminar num torniquete ao qual as ditas pontas ficam con-
fiadas; um homem faz girar o torniquete até que o paciente tenha
entregue a alma a Nosso Senhor, pois o confessor, Deus seja louvado,
só o larga depois de estar morto.” “É bastante engenhoso”, respondi-
-lhe [...]. (CASANOVA, 2012, p. 25-26).

O Santo Ofício em Veneza é relatado, por Casanova, enquanto


uma instituição punitiva e, em muitos momentos de suas descrições,
tido como arbitrário. Como ele destaca ao escrever sobre a história da
sua fuga, “[...] um tribunal [da Inquisição] como aquele podia saber
mais do que eu e reconhecer em mim crimes dos quais eu podia julgar-
-me inocente [...]” (CASANOVA, 2012, p. 20).
Nessa passagem, portanto, Casanova faz uma crítica à fabri-
cação de provas contra os acusados de determinados crimes ou práticas
heréticas, uma vez que não se toma conhecimento, na quase totalidade
dos casos, da veracidade dos crimes apontados.

4. A Literatura Pessoal enquanto Crítica

Escritas na década final de sua vida (1790), as suas Memórias,


enquanto literatura pessoal, representam uma importante forma de crí-
Histórias, narrativas e religiões 425
tica ao modelo inquisitorial empregado em Veneza, dado que, por meio
delas, Giacomo Casanova pôde se expressar e relatar muito do que pre-
senciou ao longo de sua vida.
Ademais, é imprescindível que se fale da importância deste
tipo de relato para a história das religiões, dado que os seus testemunhos
e escritos sobre a Inquisição nos evidenciam uma série de métodos pelos
quais o Santo Ofício se utilizava, sobretudo, como formas de punição às
atitudes consideradas hereges e anticlericais.

5. Metodologia

Foram realizadas as leituras de nossas fontes (os livros escritos


por Casanova), além de levantamentos bibliográficos sobre a Inquisição
Veneziana, complementados pelas análises de tal movimento e da forma
como ele é descrito por alguns dos principais autores da área, tais como
Riccardo Calimani e Andrea Del Col.
Por meio de anotações dos aspectos convergentes aos objetivos
propostos, atentando-se à forma pela qual Giacomo Casanova descreve
as principais características da Inquisição, foi feita uma análise compa-
rativa da abordagem que ele efetua deste movimento em suas três prin-
cipais obras: Memórias de Giacomo Casanova, História da minha fuga das
Prisões de Veneza e História da minha vida.
De forma sistemática, a metodologia utilizada consistiu nas
seguintes etapas: (1) levantamento e análise por meio da técnica de pes-
quisa bibliográfica; (2) método hermenêutico para a análise dos relatos
construídos por Giacomo Casanova acerca das ações do Santo Ofício
em sua vida, no que diz respeito às acusações e à consequente prisão e;
(3) método comparativo para a verificação das nuances entre os concei-
tos e definições presentes em suas três obras principais, identificando o
tratamento que ele emprega a tal instituição (o Santo Ofício de Veneza)
que agiu contra ele.

426 Histórias, narrativas e religiões


Além destes materiais, ao longo do trabalho foram utilizados
livros relacionados à temática e à conceituação de Inquisição, nos diver-
sos momentos de sua existência na Época Moderna; livros de comen-
tadores acerca da vida de Giacomo Casanova; bibliografias que versam
sobre aspectos associados à sexualidade e à importância do corpo no
século XVIII; artigos científicos e textos disponibilizados na web, de-
vido, em parte, ao elevado interesse que se possui com relação ao cará-
ter sexual de Casanova, comumente destacado em artigos e trabalhos
acadêmicos, os quais contribuíram para o desenvolvimento e melhor
compreensão do trabalho.

6. Conclusão

Após toda a discussão feita acerca das críticas à Inquisição


Veneziana produzidas por Giacomo Casanova, deve-se destacar que é
possível o emprego, em boa parte dos casos, da literatura (neste caso, a
pessoal) para se estudar a história das religiões, dado o seu papel fun-
damental de relatar determinados aspectos e mecanismos da sociedade.
Nota-se o papel fundamental do historiador e a sua necessária
atualização aos novos meios de propagação de conhecimento, através de
recursos literários que, em outras situações, não poderiam ser utilizados
(no caso do Santo Ofício, o uso do processo inquisitorial é o mais co-
mum dos casos, enquanto que ainda são poucos os casos em que se opta
pelo relato de determinada personagem acerca do mesmo).
Neste sentido, ainda é necessário realizar debates e discussões
acerca da temática, uma vez que estes auxiliam os historiadores e demais
pesquisadores a conduzir seus trabalhos e contribuem, substancialmente,
no desenvolvimento da história das religiões em associação à literatura.
Após toda essa análise, pode-se, por fim, destacar que este tra-
balho vem buscando contribuir com os estudos atuais e futuros da área
de História Moderna, com importante destaque para o uso da literatura
neste meio, destacando-se pontos de vista distintos sobre um mesmo fato.
Histórias, narrativas e religiões 427
Arraigado por uma série de conceitos e metodologias impor-
tantes, tal trabalho serve como uma importante forma de complementar
os estudos até então desenvolvidos, através da relação entre os múltiplos
campos do saber entre as religiões, a literatura e a história.

Bibliografia

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2. Ed. Tradução: Paulo M. Oliveira. São Paulo:
Edipro, 2015.

BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos


XV – XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

CALIMANI, Riccardo. L’Inquisizione a Venezia: eretici e processi (1548-1674). Milão: Mon-


dadori, 2002.

CASANOVA, Giacomo. História da minha vida. Tradução: Pedro Tamen. Lisboa: Divina Co-
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____________________. História da minha fuga das prisões de Veneza. Tradução: José Mi-
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____________________. Memórias de Giacomo Casanova. Tradução: Caio Jardim. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1957. 10 vol.

____________________. O Duelo. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1997.

DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII.


São Paulo: Companhia da Letras, 1992.

________________. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo:


Companhia da Letras, 1998.

DEL COL, Andrea. L’Inquisizione in Italia. Dal XII al XXI secolo. Milão: Mondadori, 2006.

KELLY, Ian. Casanova: Muito além de um grande sedutor. Tradução: Roberto Franco Valente.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

NOVAES, Adauto (org.). Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RÂMBU, Nicolae. The Philosophy of Casanova. In.: Philosophy and Literature. Vol. 36, N. 2,
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RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta no Antigo Regime: do sangue à doce vida. São Paulo:
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428 Histórias, narrativas e religiões


THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Tradução: Rosaura Eichenberg. São
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VALLERA, Tomás. ACADEMIA. Entre o libertinismo e a libertinagem: “as artes de não ser
governado” na sua relação com o nascimento do Estado de polícia na Europa do século XVIII.
Disponível em: <http://migre.me/vuJ0n>. Acesso em: 05 maio 2017.

ZWEIG, Stefan. Casanova. Tradução: Aurélio Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
1951.

Histórias, narrativas e religiões 429


Literatura de viagem e pesquisa
histórica: um estudo do fenômeno
religioso a partir dos relatos de Auguste
de Saint-Hilaire.

Aparecido Barbosa (PUCCAMP)

Resumo: Este estudo tem como objetivo pesquisar as expressões de


identidades religiosa e cultural do brasileiro, presentes no processo de
evangelização, arquitetura sacra, nas festas religiosas, procissões e dias
santos, nos relatos de viagens de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil nos
anos de 1816 a 1822. Esse fenômeno religioso será analisado a partir de
uma bibliografia especifica, a saber, das historiadoras Karen M. Lisboa,
Ilka Boa Ventura e Lorelai Kury, que pesquisaram relatos de viagens.
Pretendemos ressaltar a importância dessa literatura para a colaboração
dos estudos históricos pelo cientista da religião. Como método para a
interpretação e avaliação dos trechos selecionados será feito uma análise
qualitativa dos relatos produzidos pelo viajante, a partir do conceito de
“Cultura” e “representação” discutido por Roger Chartier, ou seja, uma
concepção do outro a partir do seu mundo cultural. Como resultado par-
cial, percebemos uma lacuna deixada pela historiografia que trabalhou
com a literatura de viagens, que não pesquisaram o fenômeno religioso
relatado pelo viajante selecionado, bem como, a visão antropológica do
“outro”, do além-mar, do Velho Continente sobre o catolicismo ou cato-
licismos vigentes no Brasil do período estudado.

Palavras-chave: Literatura de viagem; Fenômeno religioso; Cultura.

430 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

Esta pesquisa sobre algumas dimensões do fenômeno religioso


no Brasil oitocentista, tal como se apresenta nos relatos de viagens de
Auguste de Saint-Hilaire, pretende ser coerente com as exigências me-
todológicas e teóricas da disciplina Ciências da Religião. Hans-Jurguen
Greschat ressalta como o cientista da religião deve observá-la:
Num primeiro momento, a religião deve ser vista como totali-
dade, ou seja, como um universo de temas e problemas articulados por
uma lógica própria a partir da qual se podem estabelecer as relações
com as outras dimensões da estrutura social; em segundo o lugar, essa
totalidade da religião pode ser desmembrada em quatro perspectivas:
comunidade, sistemas de atos, conjunto de doutrinas e experiências
religiosas. Nesta articulação esta implícita a dimensão institucional da
religião, com toda a sua estrutura organizacional, como a hierarquia,
dogmas, ritos, festas, procissões e cultos, por exemplo. Em terceiro lu-
gar, devem-se ater as dinâmicas e transformações das religiões, pois elas
constituem realidades vivas e mudam sem cessar, e possuem, segundo
ele, uma história (GRESCHAT, 2005, p. 23-28).
Partindo do viés da história, este estudo quer ser uma contri-
buição às pesquisas sobre histórias das religiões e religiosidades, a par-
tir de algumas dimensões do fenômeno religioso na sua totalidade no
Brasil nas primeiras décadas do século XIX, no modo específico como
são apresentados e representados nos relatos de viagem de Auguste de
Saint-Hilaire.
Essa pesquisa nasceu de outro projeto, intitulado Relatos de
Viajantes: Raça e Civilização no Brasil Oitocentista, desenvolvido no
âmbito do programa de Apoio à Formação Científica do Discente
(Iniciação Científica) da Universidade Metodista de Piracicaba, nos
anos 2014/2015167.
Num primeiro momento, selecionamos dezessete autores; após
uma análise chegou-se a nove viajantes. Nos relatos analisados, encon-

167  Projeto orientado pela historiadora Dra. Valéria Alves Esteves Lima.
Histórias, narrativas e religiões 431
tramos muitos comentários sobre algumas dimensões do fenômeno re-
ligioso. Selecionamos quatro viajantes para esse estudo. Pela pouco tem-
po para esse estudo, escolhemos pesquisar as obras do viajante Saint-
Hilaire, definindo o recorte histórico de 1816 a 1822.
Sem a pretensão de concluir o assunto, pois essa pesquisa se
encontra em andamento. Vamos refletir a Literatura de viagem e pes-
quisa histórica, a partir de alguns relatos de Saint-Hilaire selecionados
para esse artigo, procuraremos historicizar os mesmos apresentando o
contexto de origem do viajante, bem como, uma breve realidade históri-
ca do momento que permaneceu no Brasil.

1. Literatura de Viagem e pesquisa histórica

A respeito dos testemunhos e relatos dos viajantes no contexto


colonial, Greschat diz que estes oferecem “ao cientista da religião uma
perspectiva singular de dentro de uma fé alheia” (GRESCHAT, 2005, p.
55). Para o historiador “as religiões e os fenômenos constituem os ver-
dadeiros objetos da Ciência da Religião” (GRESCHAT, 2005, p. 140).
Neste sentido, estudaremos esses fenômenos como produto do processo
histórico cultural brasileiro no século XIX.
Após a análise crítica de um grupo de pesquisadores das áreas
da história, antropologia e da sociologia, que basearam suas pesquisas
nos relatos de viajantes, localizamos o problema desta pesquisa, uma la-
cuna a ser preenchida sobre os estudos do fenômeno religioso relatados
pelos viajantes, que não eram missionários168.
Compreendendo que o fenômeno religioso é uma manifesta-
ção concreta na realidade histórica, social e politica, pretendemos histo-
ricizar e examinar as dimensões desse fenômeno utilizando do viés da

168  Após a abertura dos portos, chegaram ao Brasil missionários de várias igrejas protestantes,
o culto se restringia aos amigos, e nas casas, ainda neste contexto eram proibidos publicamente.
Vieram metodistas, presbiterianos e anglicanos, que aproveitaram a liberdade de culto declarada
por D. João VI. Os viajantes missionários mais citados são Kidder, Fletcher e Robert Walsh (cf.
as historiadoras Ilka Boaventura Leite (1996) e Maria Cecília Domezi (2005)).
432 Histórias, narrativas e religiões
História Cultural, pela sua prática interdisciplinar e a preocupação com
a narrativa histórica.
Como método para a interpretação e avaliação dos trechos se-
lecionados, será feito uma análise qualitativa dos relatos produzidos pelo
viajante. Optamos pelo método qualitativo por oferecer um modo de
investigação sobre as várias possibilidades interpretativas das dimen-
sões do fenômeno religioso relatada pelo viajante, bem como pela re-
lação interligada com o objeto de pesquisa que esse método possibilita
(ENGLER, Steven; STAUSBERG, Michael, 2013, p. 65-66).
Procurando fazer uma análise crítica historiográfica, seleciona-
mos as obras que utilizaram da literatura de viagem e, abordaram alguns
aspectos gerais da vida e prática religiosa do brasileiro até a metade
do século XIX. Destacamos dois grupos, um primeiro que utilizou dos
relatos apenas como fonte histórica, entre outras fontes; e um segundo
grupo que de forma analítica, tomou como objeto de pesquisa central os
relatos de viagens.
O primeiro grupo: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Junior, Robert Slenes, Lilia Moritz Schwarcz,
Márcia Naxara. Neste primeiro grupo de pesquisadores que utilizaram
dos relatos de viajantes como fontes entre outras, fizeram apenas menção
das características e dimensões da religiosidade brasileira oitocentista, e
como não eram seus objetos de estudos, não aprofundaram os mesmos.
O segundo grupo: Gunther Augustin, José Carlos Barreiro,
Karen Macknow Lisboa, Valéria Lima, Ilka Boaventura Leite e Mirian
Leite. Esses tomaram a literatura de viagem como objeto analítico e
especifico de pesquisa. As características dessa abordagem é que, além
de ter optado pelos viajantes como seus objetos de estudos, analisaram:
a vida, a obra, a matriz cultural, intelectual e suas pesquisas cientificas.
Percebemos que esses trabalhos científicos não tiveram como
objeto de pesquisa as dimensões e características do fenômeno religio-
so, talvez, por não possuírem os aspectos metodológicos que possuímos
hoje para analisarem os mesmos e, por isso não aprofundaram a tota-
lidade (GRESCHAT, 2005) apontada nos relatos sobre a religiosidade
brasileira oitocentista, deixando assim uma lacuna neste estudo.

Histórias, narrativas e religiões 433


Para uma análise e compreensão mais profunda da literatura
de viagem, é preciso pesquisar suas especificidades, como: o contexto
social, cultural, econômico e científico em que foram procedidas. Bem
como, é necessário compreender os pensamentos que iluminaram esses
escritos e as características desse gênero literário, e consequentemente
o procedimento crítico e metodológico que é submetido essa literatura.
O contexto e o momento da entrada dos viajantes no Brasil
foram à vinda da família real (1808) e o decreto de 28 de Janeiro deste
mesmo ano assinado por D. João VI, que possibilitou a abertura dos
portos e o fim do exclusivismo português.
Após a abertura dos portos, chegaram ao Brasil: naturalistas,
comerciantes, diplomatas, mercenários, imigrantes e aventureiros. Os
objetivos eram: “particulares, comerciais, científicos, literários ou de ex-
ploração dos recursos naturais, interagindo com os objetivos da esfera
pública” (LISBOA, 1997, p. 32).
Nestas viagens havia pelo menos dois interesses: um pessoal
e outro institucional, ambos de ordem cientifica-econômica e cultural.
Para a historiadora Ilka é fundamental atentar para a impressão tomada
pelos viajantes, a respeito de cada lugar visitado, pois, isso dependia do
vínculo estabelecido com o lugar e as pessoas.
Para a autora este “vínculo revestia-se de dois aspectos funda-
mentais: a transitoriedade e a indeterminação” (LEITE, 1996, p. 96). A
transitoriedade atuava diretamente na natureza do vinculo que se esta-
belecia entre os viajantes e o lugar e grupos visitados. Quanto à inde-
terminação, constitui o que Ilka chama de imprevisível, ou o que ocorre
além do fato pesquisado ou da experiência.
Para Ilka, era nessa fase de transitoriedade e indeterminação
que grande parte dos viajantes, no momento da elaboração subjetiva e
diferente, forjava os limites dessa diferença em relação ao “outro” com
relação aos preconceitos e a superioridade civilizatória.
Para formular uma visão crítica acerca da literatura de viagem,
segundo a historiadora Ilka Boaventura, é importante pensar esses es-
critos enquanto veículos de expressão, forma ou instrumento de domi-

434 Histórias, narrativas e religiões


nação, manifestação de uma cultura, tentativa de interpretar e compre-
ender o “outro” e escritos que reinventam uma realidade.
Pois, é fundamental para os estudiosos dessa literatura pensá-
-la como “representação” do outro, do exótico e das realidades sociais e
culturais de uma determinada sociedade. Tal postura “parece essencial
para apreensão das obras dos viajantes e para formular a avaliação crítica
da importância a elas atribuída, enquanto fonte documental e literária”
(LEITE, 1996, 22).
Sendo assim, a análise crítica dos relatos e descrições dos via-
jantes devem ser avaliadas pelo pesquisador como “representações”.
Segundo o historiador Roger Chartier na obra “A História Cultural: en-
tre práticas e representações (1990)”, a história cultural tem por principal
objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos
uma determinada realidade social é construída, pensada e dada a ler.
Para cada caso representativo analisado, é necessária a verificação crítica
dos discursos proferidos e a posição de quem e para que os utilizem.
Como representação o autor compreende que são:

Variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais, em


que o poder e a dominação estão sempre presentes. As representa-
ções não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas ten-
dentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar
escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no campo da concorrência
e da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao
mesmo grupo sua concepção de mundo social: conflitos que são tão
importantes quanto às lutas econômicas (CHARTIER, 1990, p. 17).

Esse conceito, para Chartier, tem como meta as classificações


e divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias
de percepção do real. Pois, segundo o historiador, as percepções do social
e do cultural não são de forma alguma “discursos neutros”, eles pro-
duzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas, religiosas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de outras, por elas menospreza-
das, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios
indivíduos, as suas escolhas e condutas, no caso dos viajantes, morais e
civilizatórias, uma vez que se intitulavam os propagadores do progresso.
Histórias, narrativas e religiões 435
Para Chartier, as representações como a ação que vê uma coisa
ausente ou não, e que num dado momento supõe uma distinção radi-
cal entre aquilo que representa e aquilo que é representado, devem ser
pensadas, criticadas e analisadas pela história cultural. Pois, para o autor,
toda representação é uma exibição de uma presença como apresentação
pública de algo ou de alguém e, nessa ação, existe classificação, exclusão,
diferenças radicais e concepções próprias, subjetivas de um tempo, pes-
soas ou de um espaço geográfico.
Na obra “O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do
outro (2014)”, o historiador francês François Hartog analisa os relatos
de viagens de Heródoto utilizando da etnografia e da antropologia,
com base nas seguintes ferramentas: tradução, descrição, comparação,
analogia, thôma, diferença e inversão. Todos esses termos formam a
“retórica da alteridade”, conceitos importantes para analisar critica-
mente os relatos de viagens, compreendendo-os como uma descrição
do outro e do diferente.
Sobre a vida de Auguste François Prouvençal de Saint-Hilaire,
ele nasceu em Orleans em 1779, e morreu na mesma cidade, em setem-
bro de 1853, é católico, oriundo de família nobre, passou alguns anos
de sua juventude na Alemanha, o que permitiu que adquirisse familia-
ridade com a língua e a cultura alemã. De retorno à França, dedicou-se
a história natural, formando-se em Botânica, publicou diversas obras e
artigos em revistas especializadas (KURY, 1995).
Em 1816, com 37 anos, Auguste de Saint-Hilaire veio para
o Brasil. Segundo o botânico e professor Mario Guimarães Ferri, ele
viajou pelos estados do Rio de janeiro, Espirito Santo, Minas Gerais,
Goiás, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O mate-
rial que colecionou no Brasil abrange um herbário de 30.000 espécimes,
de mais de 7.000 espécies, das quais umas 4.500 eram desconhecidas
dos cientistas, na época.
Em síntese eis o fenômeno religioso relatado por Saint-Hilaire
nas nove obras estudadas: Sobre o Estado e Igreja, o Clero secular e reli-
gioso, as paróquias e arquitetura sacra, as Irmandades, e o conflito dessas
associações com o catolicismo tradicional e os padres; a evangelização,

436 Histórias, narrativas e religiões


vista pelo viajante como modo de educação e civilização; relatou sobre
as festas, procissões e as devoções religiosas e populares.
Quanto as matrizes culturais, intelectuais e religiosas de Saint-
Hilaire, nas suas obras, o viajante se mostrou um apaixonado pela
História Natural, pois segundo ele, desde a sua infância nutria uma
grande paixão por essa ciência (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 17). Sendo
essa, a grande matriz cultural e intelectual desse cientista da natureza.
No Brasil, Saint-Hilaire utiliza como matriz histórica quando
relata sobre a Igreja católica e o clero, o memorialista José de Souza
Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), conhecido e citado pelo viajan-
te como Monsenhor Pizarro.
Na Europa, Saint-Hilaire, segundo a historiadora Lorelai
Kury tinha contato com vários naturalistas de prestígios na sua época.
O mais ilustre desses amigos naturalistas era sem dúvida Alexander Von
Humboldt (1769-1859).
Outra matriz cultural do pensamento de Saint-Hilaire é o po-
eta Johann W. von Goethe (1749-1832), pensador romântico e natura-
lista. Influenciou os viajantes com sua visão cósmica, poética, panteísta
e naturalista.
Segundo a historiadora Lorelai Kury, em 1816, Saint-Hilaire
possuía um espirito filosófico perceptível em seus escritos, e era citado
entre os representantes da “botânica filosófica”. Um dos filósofos que
faz parte da matriz cultural desse viajante é o também naturalista Jean
Jacques Rousseau, que “identificava a ordem da natureza com a ordem
moral e a virtude” (KURY, 2014, p. 307).
Procurando contextualizar os escritos de Saint-Hilaire, analisa-
mos alguns pressupostos históricos da Europa e do Brasil Oitocentistas,
como: as relações entre Igreja e Estado, clero secular e religioso; as arti-
culações entre as Irmandades, o Estado, Catolicismo tradicional e popu-
lar, bem como, a religiosidade popular e o Ultramontanismo.
Segundo o historiador italiano Giacomo Martina, com alguma
diferença de Estado para Estado, as condições politicas, sociais, eco-
nômicas e culturais religiosas da Europa continental no final dos sé-
culos XVIII estava ainda sobre o modo de governo do Absolutismo.

Histórias, narrativas e religiões 437


Enquanto no inicio do século XIX, sobre a influência do Liberalismo
começa a era da restauração cultural e religiosa.
A França no inicio do século XIX, segundo o historiador
Zagheni, enfrentava como os vários países da Europa, o problema da
restauração religiosa. Em 1814, Luís XVIII concedeu um regime cons-
titucional que proclamou o catolicismo como religião de Estado.
Neste período Luís XVIII instaurou um regime em que o
Estado era posto ao serviço da Igreja, e esta era dominada e controla-
da pelo Estado. Porém, na dimensão da restauração religiosa, a França
obteve um forte despertar, como o aumento de vocações sacerdotais, re-
construções de algumas ordens religiosas, renovação do corpo episcopal,
intensificação das missões populares, retomada da vida nas paróquias,
bem como das obras de educação religiosa da juventude.
Quanto ao Brasil, no momento que o viajante Auguste de
Saint-Hilaire chegou ao país em 1816, com relação ao Estado e a ins-
tituição Católica, o país estava em crise, e os dois pilares que apoiavam
essa relação era o padroado e o regalismo.
Em cada Estado o padroado tinha sua configuração. Em
Portugal esse direito provinha de duas fontes: o Padroado real e o da
Ordem de Cristo. Mesmo havendo crise entre os poderes, esse foi um
regime de relação e unidade entre o civil e o espiritual.
Pelo direito do Padroado real, do grão-mestrado da Ordem
de Cristo e da criação da Diocese, era da responsabilidade do Rei de
Portugal a construção de Igrejas e monastérios. Neste sentido cabia ao
Estado prover as paróquias de padres e religiosos, bem como: “nomear
bispos e apoiar a Igreja; e fazer isso tudo mediante administração do
dízimo em todo território ultramarino que fosse anexado ao império
lusitano” (BRUNEAU, 1974, p. 34).
Outra força que marcou as relações entre o poder civil e espiri-
tual no final do século XVIII e ecoou no XIX, foi o regalismo. Entende-
se por regalismo: A supremacia do poder civil sobre o poder eclesiástico.
O Regalismo dava ao Estado todo o poder sobre a Igreja e, consequen-
temente, colocava os interesses do Estado acima dos da Igreja.

438 Histórias, narrativas e religiões


A partir desse direito do Estado sobre as coisas sagradas, a reli-
gião era considerada um departamento da administração e os sacerdotes
seus funcionários.
Para compreendermos melhor o sistema de padroado e o re-
galismo que imperava no Brasil no período em que Auguste de Saint-
Hilaire esteve no país, é preciso analisar o auge dessa política em Portugal
com o Marquês de Pombal. Esse período foi marcado por grandes refor-
mas em vários setores da sociedade e do governo do Império lusitano.
Esse momento segundo as pesquisas realizadas aconteceu no reinado de
D. José I, que durou quase 27 anos (1750-1777) e foi o ministro do Rei
Sebastião José Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, quem governou
o império (VAINFAS, 2001, p. 377).
Esse período foi marcado por grandes reformas em vários seto-
res da sociedade e do governo do Império lusitano. Porém, destacamos
as mudanças que impactaram a Igreja como: a expulsão da Companhia
de Jesus e a formação do clero secular, que além de se tornar aliados de
Pombal eram meros funcionários do Estado.
Outro problema complexo na relação Igreja e Estado era em
relação aos dízimos. Segundo a historiografia que estuda o dízimo no
Brasil, nas terras lusas ultramarinas, onde vigorava as leis do padroado,
os dízimos eclesiásticos e civis pertenciam á Ordem de Cristo.
Sobre o clero secular e religioso, o contexto que Saint-Hilaire
esteve no Brasil, tanto os padres seculares como os religiosos ainda so-
friam os impactos da reforma pombalina, das forças do sistema do pa-
droado, bem como do regalismo. Pois, por falta de professores adequa-
dos para a formação do clero, ocasionou um clero de vida irregular e
imoral (AZZI, 1974, p. 647).
No século XIX existiram dois tipos de clérigos seculares: o pa-
dre tradicional vivendo imerso na própria vida do povo, com maior pre-
sença no mundo rural, como nos engenhos e fazendas; e o clero refor-
mado, cujo numero era menor e se fazia presente mais no urbano. Desse
clero, considerados celibatários e preocupados com a cura das almas, que
foram escolhidos os futuros bispos do Brasil, considerados os reforma-
dores da Igreja no período oitocentista, de maioria ultramontana.
Conhecidos como regulares, os religiosos presentes no
Histórias, narrativas e religiões 439
Brasil na primeira metade do século XIX, incluíam os Beneditinos,
Franciscanos, Capuchinhos, Carmelitas, Lazaristas, Oratorianos e os
Jesuítas (HOLANDA, 1977, p. 72-74). O clero religioso na sua maio-
ria possuía uma melhor formação intelectual. Neste sentido tanto para
Bruneau como para o historiador Serbin, eles atuavam mais na politica
e desfrutava de maior segurança econômica comparado aos padres se-
culares. Quanto às ordens religiosas femininas, no inicio do século XIX,
eram de pouca expressão.
Articuladas com o Estado, Igreja e o clero, as Irmandades fa-
zem parte de um fenômeno com raízes medievais, que tiveram impor-
tância crucial e impactaram a vida do catolicismo tradicional e popu-
lar brasileiro. Eram associações civis e religiosas, sociais e políticas da
classe proprietária e dos comerciantes nas cidades, ou seja, “organizada
por voluntários fieis leigos” (BRUNEAU, 1974, p. 40). Para Bruneau,
“Algumas tinham finalidades puramente religiosas, outras tinham ca-
ráter corporativo, reunindo todos os sapateiros” (BRUNEAU, 1974, p.
40), elas existiam primordialmente para construir Igrejas e outras para
obras sociais.
No século XIX, período que situamos nossa pesquisa, o ca-
tolicismo era hibrido no seu modo de ser, estava nas associações das
Irmandades, na esfera tradicional do Estado luso brasileiro e romano,
bem como no popular rural, que segundo o sociólogo Cândido Procópio
orientava “toda a vida social era permeada por valores religiosos, inclu-
sive as atividades ligadas ao lazer e á diversão” (CÂNDIDO, 1971, p. 9).
O catolicismo tradicional no século XIX apresentava diversas
características próprias, ele era luso-brasileiro, leigo, medieval, social, fa-
miliar e rural. Enquanto o catolicismo popular, apesar do seu desenvol-
vimento próprio, constrói-se de forma paralela com o tradicional. Pois,
no “popular a traços do catolicismo pré-tridentino, do tradicional, bem
como, de magia, superstição, sincretismo, crendices e da humanização
do divino” (SANTIROCCHI, 2015, p. 38).
Quanto a religiosidade popular brasileira, na primeira metade
do século XIX, ela possuía muitas características do catolicismo. Mesmo
com “a intromissão de elementos culturais africanos no catolicismo pos-
sibilitou a sua preservação sob uma aparência cristã” (HOLANDA,
1976, p. 154).
440 Histórias, narrativas e religiões
No final do século XVIII já existia cultos indígenas secretos,
penetrados de elementos católicos. Num lugarejo em Pernambuco cha-
mado Brejos dos Padres, o culto existiu até a metade do século XX. “to-
mava-se o ajuá, uma bebida feita da raiz da jurema, fuma-se cachimbo e
se invocava a Deus, a Virgem Maria e aos santos do catolicismo, inclusi-
ve padre Cícero, ao som de cantos entoados por cantadores e marcados
por maracá” (DOMEZI, 2015, p. 119).
Este exemplo revela que a religiosidade popular pode até ter
raízes no cristianismo católico, mas possuía um rito e símbolos com ca-
racterística singular própria, e totalmente afastada do rito romano. Pois,
“numa economia de classes sociais, resultou no sincretismo religioso,
numa dita religiosidade popular” (BASTIDE, 1971, p. 202).
Oposto a religiosidade popular era o ultramontanismo, que no
século XIX, de modo particular no Brasil, se caracterizou por uma série
de ideias e atitudes da Igreja católica, como “reação às novas tendências
politicas desenvolvidas após a revolução francesa e a secularização da so-
ciedade moderna” (SANTIROCCHI, 2015, p. 161), bem como, a forma
de governo do padroado, as ideias e os projetos regalistas.
A atitude dos bispos ultramontanos e reformadores, de modo
específico a partir da metade do século XIX foi de reação às novas ten-
dências secularizadas da sociedade moderna. As suas principais caracte-
rísticas foram: fortalecimento da autoridade pontifícia; reafirmação da
escolástica; restabelecimento de algumas ordens religiosas e luta contra os
perigos que assolavam a Igreja, como o liberalismo. (SANTIROCCHI,
2015, p. 161).

2. O fenômeno religioso na narrativa de Auguste


de Saint-Hilaire

A partir do conceito de representação e alteridade; historicizando


os relatos de Saint-Hilaire sobre algumas dimensões do fenômeno religio-
so no século XIX passamos a analisar alguns relatos sobre essa narrativa.

Histórias, narrativas e religiões 441


Na Aldeia de Valença em Minas Gerais, Saint-Hilaire relata a
relação Igreja e Estado na edificação de uma paróquia.

Em 1813, José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro,


visitou a aldeia de Valença; resolveu fazê-la cabeça de uma paróquia
à qual deu por limites o Paraíba, o Rio Preto, a paróquia de Santana
do Piraí, e a de Conceição da Paraíba Velha; e nos mês de agosto de
1817 o rei confirmou definitivamente as deliberações tomadas pelo
bispo (SAINT-HILAIRE, 1944, pp. 40-41).

Percebemos nesse relato que a religiosidade estava interligada


ao Estado e, era um produto das ações politicas entre a Igreja e o Estado
português. A paróquia é vista aqui como um território, mas também
como uma Igreja, que seria a matriz de Valença. O bispo, após a visi-
ta pastoral, percebendo as necessidades espirituais daquela população,
criou à paróquia, que demorou quatro anos para ser confirmada pelo
Rei. O relato revela o sistema do padroado e do regalismo, a partir do
controle do Estado sobre a Igreja.
Como citamos o período que Saint-Hilaire esteve no Brasil,
o catolicismo na França passava por transformações daquele vivido no
período absolutista. Embora o Estado controlasse a igreja, havia certa
ordem na vivência da fé.
A partir das suas concepções, regras e leis católicas, em Minas
Gerais o viajante critica o modo de vida do clero, através da represen-
tação (CHARTIER, 1990), comparação e analogia com seu país de
origem (HARTOG, 2014), aborda a unidade dos cristãos franceses na
luta contra o clero descompromissado, e deixa transparecer o ideário das
reformas ultramontanas que tomou corpo no Brasil na metade do século
XIX, na reforma do clero.

O povo mineiro, que tão belas esperanças davam, deve ser preser-
vado de semelhante desgraça; as paróquias devem ser tiradas dos
vigários, que vivem em estado habitual de concubinato; uma sólida
instrução, baseada nos princípios da religião, deve ser ministrada ao
povo; enfim, devem os homens unir-se bem unidos, qual se proce-
deu na França, para livrar-se os infelizes mineiros da desordem em

442 Histórias, narrativas e religiões


que naufragaram, reintegrando-os na comunhão cristã e dando-lhes
uma família aos filhos (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 77).

Em Paranaguá, na época província de São Paulo, hoje Estado


do Paraná, o viajante relata sobre a sexta-feira Santa e a devoção popular
no Sábado de aleluia.

Nesse dia, que é considerado a maior data religiosa na região, todas


as lojas ficam fechadas, o que jamais acontece nos domingos ou em
outros dias santos. À noite vi passar uma procissão, formada por uma
multidão que caminhava muito lentamente e em completa desor-
dem, acompanhando uma enorme cruz ladeada por dois lampiões,
que lançavam ao seu redor uma lúgubre claridade. Todos rezavam
em voz alta, soturnamente, e de tempos em tempos paravam, pu-
nham-se de joelhos e beijavam o chão. Essa procissão tinha qual-
quer coisa de tenebroso que se ajustava bem a data, e isso merece ser
mencionado, pois em nenhum outro lugar o povo tem menos noção
das conveniências do que ali, no que se refere ao culto ao público e
às cerimônias religiosas. No sábado de Aleluia vi bonecos enforcados
em quase todas as ruas da cidade, representando Judas. Tão logo
rompeu o Aleluia, os judas forma descidos dos postes e arrastados
pelas ruas, sendo surrados e estraçalhados pelas crianças. Essa farsa
popular foi levada de Portugal para o Brasil. Em 1816, eu me achava
em Lisboa na Semana Santa, e ali também o Judas foi enforcado e
feito em pedaços (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 107-108).

Neste relato percebemos a religiosidade católica tradicional


interligada com a popular, da primeira temos o resguardo da data e o
símbolo da cruz. Enquanto do popular esta está à desordem, a oração
em voz alta, o ajoelhar-se e beijar o chão, típico da religião desapegada
dos ritos e tradições romanas. Acompanhado do preconceito europeu
da sua época, o viajante descreve a tradição popular presente em nosso
país em várias regiões, a malhação do Judas e revela a origem medieval
e portuguesa dessa fé popular.

Histórias, narrativas e religiões 443


Conclusão

Contudo, a partir da sua multidisciplinariedade a disciplina


Ciências da Religião possibilita pesquisar o objeto religião a partir de
várias áreas do conhecimento. Analisamos alguns relatos do viajante
Saint-Hilaire a partir do viés da História Cultural, utilizando de uma
bibliografia especifica, das ferramentas metodológicas dos historiadores
Roger Chartier e François Hartog. Pensamos que com algumas ressalvas
subjetivas, como: o preconceito, a superioridade europeia em relação ao
“outro” e o “diferente”; os relatos sobre algumas dimensões do fenômeno
religioso podem ser futuramente fontes de pesquisas para os cientistas
da religião e demais áreas do saber humano.

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traduzida ao espanhol parcialmente por Miguel Asín Palacíos, com o
título de “Vida de santones andaluces”, apresenta-nos uma aproxima-
ção de específicas formas de vivência do Islã esotérico no Andalus. Os
relatos elaborados por Ibn ‘Arabi demonstram-nos como esses mestres
expressavam os pilares da fé islâmica, sendo assim, passíveis de serem
associados à santidade. Esses relatos, parte de uma tradição hagiográfica
islâmica, iniciada com Tirmidhi e popularizada com Qushayri, apon-
tam a importância do mestre que, pelo exemplo de sua vida, torna-se
um “amigo de Deus” (wali-Allah), um santo, venerado como inspiração
e fonte de benção para os fiéis que lhe estão próximos. Nestes relatos
hagiográficos, os milagres e os aspectos da vida cotidiana se mesclam
na constituição da imagem do santo akbarí, o santo islâmico andaluz na
perspectiva do místico murciano.

Palavras-chave: Islamismo; Santidade; Sufismo.

“[...] Para cada um de vós, fizemos uma legislação e um plano”.


Sura Al-Mai’dah (Mesa Provida), 5: 48.
“[...] em verdade, Meus santos estão abaixo de Minhas cúpulas, e
somente Eu os conheço (tradução nossa)”169.
Hadith qudsi

169  “[...] en verdade, Mis santos están bajo Mís cúpulas, y sólo Yo los conosco.” Os textos traduzidos
pelo autor durante o corpo do texto apresentam seus respectivos originais em notas de rodapé.
Histórias, narrativas e religiões 447
Aproximação ao conceito de santidade no
pensamento akbarí170

Os movimentos esotéricos islâmicos, pensado neste trabalho


como os grupos que se associariam à proposta do batin – a interioriza-
ção dos ensinamentos e práticas da fé -, apresentavam, em suas distintas
formas de interpretação da religião, a importância e função soteriológica
dos santos, que entre os teósofos171 e teóricos, são denominados pela raiz
árabe w.l.y. o wali172, o santo, e a walaya, a santidade. Estes conceitos de
santo e santidade amparariam a economia da ação divina no mundo e,
entre os místicos sunitas e os xiitas173, compunham parte importante da
vivência e modelo da ação do fiel. Os relatos sobre a vida destes mestres
santos seriam, assim, modelos de santidade e, cada hagiografia174 traria
uma lição. Os mestres, por sua função pedagógica em relação à ética da
fé, haviam sido santos, por proximidade, por representação, por vivência

170 O termo akbarí designa a obra e seguidores de Muhammad ibn Ali ibn Muhammad
Abu Bakr Ibn Arabi ibn at-Ta’i al-Hatimi, místico andaluz que viveu entre 1260 e 1340 E.C.
Nascido em Múrcia, viveu a maior parte de sua juventude em Sevilha, depois migrou para
o Oriente, fixando-se em Damasco, onde faleceu. Devido a sua extensa obra, classificada por
Osman Yahia (1964), recebeu ainda em vida os títulos de Muhiyy al-Din (Vivificador da Fé), Ibn
Aflatun (Filho de Platão) e Shaykh al-Akbar (O mestre maior). Assim, o termo “akbarí” designa
as obras e conceitos do Mestre Maior (Shaykh al-akbar), Ibn ‘Arabi.
171  Utilizamos o termo teósofo como referente a teosofia que, conforme Gersom Scholem
designa: “[...] uma doutrina mística, ou escola de pensamento, que pretende perceber e descrever
os misteriosos modos de atuar da Divindade, talvez acreditando também na possibilidade de
absorver em sua contemplação.” (1972, p. 208).
172  Faz-se importante notar que wali com vogal “a” breve designava o santo, enquanto o wali
com vogal longa “a” designaria o governante.
173  O termo wali, como afirmou Annemarie Schimmel (2001, p. 217), tem sido empregado
entre os xiitas para designar Ali e seus descendentes.
174  Compreendemos a “hagiografia” nos termos definidos por Ronaldo Amaral (2013, p. 56;
76): “Portanto, por tratar-se a hagiografia de uma história sagrada, fundada nas estruturas do
mítico e de seu imaginário, seu teor de “verdade” não deve ser buscado nas circunstâncias e nos
ideários encontrados no lugar daquele que fala, mas no lugar do qual se fala. [...] a hagiografia não
fala de homens, fala de santos, e mesmo o quinhão de testemunho factível que pode haver nela
acerca do homem antes do santo poderá encontrar-se esmaecido, distorcido, recriado”. Assim,
percebemos os relatos de vida e seus distintos elementos como construções do hagiógrafo, na
elaboração de meios legítimos de memória dos santos e, também, meio de compreensão do
contexto de escrita e seus discursos.
448 Histórias, narrativas e religiões
sincera175 da mensagem corânica.
Entre os teósofos de vertente sunita, designados amplamente
pelo termo sufi, e indicados como membros de um ramo do Islã deno-
minado sufismo176, a constituição de um culto aos santos principiou-
-se nos momentos posteriores à fitnah177, com a importância e mode-
lo dos Ahl al-Bayt, a família de Muhammad, e os Ahl al-Suffa, Grupo
do Banco, os Ajudantes (nasr) pobre na comunidade da Umma178 da
Madinah al-Nabi (antiga Yathrib, no Hijaz) (CHODKIEWICZ, 1993,
p. 9-13). No Corão, a santidade se amparara na Sura V, sura da Mesa
Provida, aliya 55, que afirmava: “Vossos aliados são, apenas, Allah e seu
mensageiro e os que crêem: aqueles que cumprem a oração e concedem
az-zakat, enquanto se curvam diante de Allah” (NASR, 2005), seriam
estes os “amigos”, protegidos de Deus, awliya (singular wali), os santos.
Apontou-nos Michel Chodkiewicz (1993) que as primeiras
teorizações sobre o santo islâmico nasceram com a obra de Al-Hakim
Tirmidhi (ca. 905-910 EC), Khatm al-awliya, “O Selo dos Santos”,
continuada por Sulami (ca. 937-1021), em sua obra Tabaqat al-sufiyya,
e Qushayri (ca. 1072), em sua Risala fi ‘ilm al-tasawwuf, Epístola so-
bre o conhecimento do sufismo. Tais obras apresentaram os primei-
ros modelos de hagiografia islâmica, inspiradas algumas, nas vidas de
Muhammad (como a Sirat Rasul Allah, de Ibn Ishaq), sendo Qushayri

175  No islã esotérico, a sinceridade (sidq ou ikhlas) é um dos elementos de comprovação da fé.
Vide: QUSHAYRI, 2007, p. 220-226.
176  Macedo (2008, p. 145), ao apresentar a entrada pensamento esotérico ismaili no Andalus,
aponta a inexistência de um sufismo, com características gerais. A autora se utiliza de uma citação
de Bertels: “Diferentes correntes do sufismo são caracterizadas por uma extrema variedade e um
único Sufismo jamais existiu. Esta é a razão pela qual, ao tentar distinguir os princípios que são
mais ou menos comuns a todas as correntes, inevitavelmente chegamos a um (alto nível) de
abstração que só aproximadamente reflete o real estado das coisas”.
177 A fitnah constitui-se por dois episódios no início da história islâmica em que a liderança
e a forma de governo da futura Umma, estendida pelas consquistas, foi questionada, resultando
em guerra entre os apoiadores dos omíadas e os partidários de Ali. Um dos eventos marcantes
deste conflito ocorreu no 10 de Muharram, quando as tropas de Yazid, governante da linhagem
de Sufyan, futura dinastia omíada, interceptaram um grupo liderado por Hussayn, neto de
Muhammad, em Karbala. Hussayn e seus seguidores lutavam contra a proposta centralizadora
de Yazid. O exército omíada os cercou e martirizou Hussayn. Este evento, a Ashura, aprofundou
a divisão entre Omíadas e os Ahl al-Bayt, criando uma cisão na comunidade islâmica
(ARMSTRONG, 2001).
178  Umma designa a comunidade com base legislativa corânica fundada por Muhammad em
Medina, após a Hégira.
Histórias, narrativas e religiões 449
o primeiro a trazer questionamentos para a compreensão do conceito de
santidade no Islã esotérico. Estes autores elaborariam suas teorizações
no período inicial da organização do Islã como uma religião institucio-
nalizada, em que ainda estava aberta a proposta da ijtihad, ou a livre in-
terpretação da mensagem corânica, que na perspectiva de autores como
Schimmel (2002) e Pereira (2007), comporiam as bases da sociedade
islâmica, sendo por isto percebido por estes teóricos como o momento
do Islã clássico.
Para Annemarie Schimmel (2002, p. 217), o amigo de Deus e
sua amizade seriam descritos deste modo:

O termo habitualmente traduzido por santo, wali, significa “alguém


que está sob uma proteção especial, amigo”, é o atributo dado pelos
xiitas a Ali, o wali Allah por excelência. A palavra é, como aponta
Qushayri, por sua vez ativa e passiva: um wali é alguém cujos as-
suntos são elevados, conduzidos (tuwulliya) por Deus e que pratica
(tawalla) a adoração e a obediência. (tradução nossa).179

A tradição dos ahadith, fossem eles aqueles recolhidos pelos


tradicionalistas, cuja cadeia de autenticidade (isnad) fora reconhecida,
ou mesmo os hadith qudsi, com asserções atribuídas diretamente a Deus,
embasavam o papel e função do santo islâmico. O fiel seria a habitação de
Deus, como afirmava o seguinte hadith: “El cielo y la tierra no pueden con-
tenerme, pero el corazón de Mí fiel servidor Me contiene.” (SCHIMMEL,
2001, p. 208), um outro hadith qudsi afirma:“ Yo estoy con aquellos cuyo
corazón está roto por Mí.”(SCHIMMEL, 2001, p. 208), por conter Deus,
seu santo já não existiría, como ser autônomo, aniquilando-se em Deus
(fana), pois: “[...] que se han aniquilado en Díos y subsisten gracías a Él, y
el wali es aquel que se há aniquilado en Él y vivi en Él.” (NICHOLSON,
1967, apud SCHIMMEL, 2001, p. 217).
Por serem próximo a Deus (qurba – proximidade), os santos se-
riam as personagens responsáveis pela implementação das leis dadas pelos

179 “Él termino habitualmente traducido por santo, wali, significa “alguién que está bajo una protección
especial, amigo”, es el atributo dado por los shíies a Ali, el wali Allah por excelência. La palabra es, como
sínala Qushayri, a la vez activa y passiva: un wali es alguiéncuyos asuntos son elevados, conducidos
(tuwulliya) por Dios y que practica (tawalla) la adoración y la obediencia.” (p.217).
450 Histórias, narrativas e religiões
profetas e principalmente pelo selo da Lei e o selo da Profecia, o Corão e
Muhammad. Com isto, tornavam-se os críticos do mundo injusto:

O santo é aquele que tomou sobre si os pecados e as dores do mun-


do; a morte injusta é para ele um dos meios de realização. Ele é o
‘grande auxilio’ e o Consolo do povo. É uma acusação vivente para
o mundo: sua existência é um insulto para os tiranos; sua morte faz
tremer a seus verdugos; sua canonização é a vitória da fé, do amor e
da esperança. (DERMENGHEM, 1954, p. 94 apud SCHIMMEL,
2001, p. 89, tradução nossa)180

Percebemos assim que os santos, os amigos de Deus (awliya Allah),


tomavam sobre si a responsabilidade de implementar a justiça no mundo,
cumprindo com os pilares da fé (arkam al-islam) e a mensagem corânica.
Para Armstrong (2001), a mensagem básica do Corão consti-
tuiu-se, desde sua publicização, na construção de uma sociedade iguali-
tária na história humana. Com isto, o santo passava a ser o foco da de-
núncia das desigualdades e injustiças, podendo sofrer até a pena capital,
dando testemunho de sua fé, tornando-se com isso um mártir (sahid). A
proximidade com Deus (qurba) também poderia ser na ocultação e co-
nhecimento único por Deus, como afirmou Simnani: “Por celos, Dios pone
un velo sobre ellos y los mantiene ocultos de los demás.” (SIMNANI apud
SCHIMMEL, 2002, p. 220). Al-Nasrabadhi, mestre sufis do Khorassan
citado por Qushayri afirmava que: “Friends of God have no demands; they
remains weak and anonymous” (Qushayri, 2007 p. 271).
Entre os místicos andaluzes, em meados do século X, durante o
período omíada, os mestres, cuja santidade era prestigiada pela popula-
ção devido muito a sua metodologia ascética (az-zuhd)181, tomavam so-
bre si a responsabilidade de executar a crítica social prescrita no Corão:

180  “El santo es aquél que tomo sobre sí los pecados y las dolores del mundo; la muerte injusta es para
él uno de los médios de realización. Él es el ‘gran auxílio’ y el Consuelo del pueblo. Es una acusación
viviente para el mundo: su existencia es un insulto para los tiranos; su muerte hace temblar a sus
verdugos; su canonización es la victória de la fé, del amor y la esperanza.”
181  Sobre exemplos de ascese entre os místicos sufis andaluzes, os relatos de Ibn ‘Arabi são
bastante exemplificadores, com práticas que se amparariam nas tradições corânicas, como o
choro, a pobreza, a tristeza, entre outras. Vide: M.M. Barcelos. “A ascese islâmica ou o desapego
(az-zuhd) na vida dos sufis andaluzes segundo os relatos de Ibn Arabi de Murcia. Séc. XII” In:
Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v. 5, nº 10, jan-jun. 2016, p. 108-129.
Histórias, narrativas e religiões 451
Mas estes primeiros ascetas eram também parte do mundo e nestas
biografias aparecem como denunciantes das injustiças e da opressão
exercida pelo poder, o que os converteu nessas ocasiões em veículos
do descontentamento popular, aumentando, sem dúvida, seu prestígio
entre a população. Por tudo isso, os ascetas andaluzes mais reputados
eram considerados pelo povo como perfeitos intermediários para ob-
ter a resposta divina a suas orações. Os atos piedosos mais comuns de
todos estes ascetas eram a constante recitação do Corão e, os atos de
devoção e jejum praticados fora dos tempos canônicos estabelecidos.
Eram generosos na esmola e humildes, e em casos mais excepcionais,
praticavam a castidade e o celibato. (PACHECO, 2001: 93, 94 y 95
apud CARMONA ÁVILA, 2012, p. 239, tradução nossa).182

A postura ética dos santos, cuja vivência sincera da fé os asso-


ciaria a plenitude da mensagem corânica, levavam-nos a tornarem-se
referenciais na crítica política. Os ascetas, por cumprirem os preceitos da
fé com sinceridade, tornariam-se intermediários entre a população e o
governo, na crítica deste, e, em representantes (khalifa) de Deus e meios
legítimos por angariar favores divinos.
Segundo afirmou Chodkiewicz (1993), Ibn ‘Arabi foi um dos
primeiros autores, que no século XIII, buscou teorizar sobre o conceito
de santidade (walaya) e a função dos santos (wali), na economia da sal-
vação islâmica, bem como no caminho de ascensão interior aos misté-
rios da divindade. Em sua obra Risala Ruh al-quds fi munakhasat al-nafs,
ou “Espírito da Santidade que muda a alma”183, uma carta escrita em

182  “Pero estos primeros ascetas eran también parte del mundo y en estas biografías aparecen cómo
denunciantes de las injusticías y la opresión ejercida por el poder, lo que los convirtió en ocasiones en
vehículos del descontento popular, aumentando, sin duda, su prestigio entre la población. Por todo esto,
los ascetas andalucíes más reputados eran considerados por el pueblo cómo perfectos intermediaros para
obtener respuesta divina a sus plegarías. Los actos piadosos más comunes de todos estos ascetas eran la
constante recitación del Corán y los actos de devoción y ayuno practicados fuera de los tiempos canónicos
establecidos. Eran generosos en la limosna y humildes, y en casos más excepcionales, practicaban la
castidad o el celibato.”
183  Osman Yahia (1964), em seu trabalho de classificação das obras akbaris, aponta que a
Risala Ruh al-Quds foi inciada no Magreb, em meados de 586 A.H., em uma visita a Fátima
de Córdoba, em Marchena, sendo finalizada em Meca, por volta de 600 A.H. e lida diante do
Mestre Maior e de seu grupo, em Alepo, no ano de 617 A.H. Utilizaremos aqui as seguintes
versões: Miguel ASÍN PALACIOS. Vida de Santones Andaluces. La “Epistola de la Santidad”
de Ibn Arabi de Murcia. Valladolid: Editorial Maxtor, 2005; e, IBN ARABI. Los sufíes de
Andalucía. Trad.: D. García Valverde. Málaga: Editorial Sírio, 2007. Esta última tradução foi
452 Histórias, narrativas e religiões
sua estada em Meca, no ano 600 AH (por volta de 1203 EC), o autor
murciano, em resposta às irmandades sufis egípcias, relatou, na terceira
parte da citada obra, hagiografias de seus mestres, com as quais ele in-
tentava responder ao mestre do Cairo que:“[...] pretendía que en tierras
de Occidente no tenía Díos persona alguna que conociese el método o cami-
nho que hacía Él conduce ni que tratase siquiera de averiguar-lo.”(ASÍN
PALACIOS, 2005, p. 21). Após apresentar os grandes mestres e santos
do Islã ocidental, cujos relatos de vida o Mestre Maior depois recolhe na
referida carta, o chefe da irmandade egípcia, disse perplexo: “Quedóse el
hombre atónito ante lo que oía y exclamó: ‘¡No imaginaba yo que en tierras del
Magreb hubiese algo semejante a eso!’” (ASÌN PALACIOS, 2005, p. 22).
Nesta carta, que em sua terceira parte se compreendiam os
relatos de vida e milagres dos mestres e santos andaluzes, o místico
murciano apresentara-nos modelos de santidade, bem como críticas às
formas de busca e caminhada dos sufis orientais, que o faria reafirmar
a autenticidade da experiência esotérica andaluz e magrebina, pois no
Cairo: “Por lo que toca a los sufíes que en estas tierras praticabán el ejercicío
del canto religioso para provocar el éxtasis, realmente toman la religión como
cosa de juego y divertimento” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 23), que se-
riam tempos:

[...] de sufis suspeitos, que só no bens daqui abaixo encontram seu


deleite; no fundo se seus corações tem ao mundo por grande coisa,
que não creem que haja sobre ele nada mais digno de ser buscado;
no entanto, em suas almas a verdade divina é coisa tão pequena, que
dela se apressam a fugir; toda sua atenção e cuidado colocam nos
tapetes sobre os quais fazem a oração, nas franjas coloridas de suas
túnicas, nos hábitos que vestem, nos bastões ou cajados com os quais
caminham; levam bem a vista as contas de seus rosários cheios de
adornos, como as velhas; são em realidade, meninos gulosos e mole-
ques bem nutridos, sem ciência que do ilícito dos aparte e sem con-
tinência que dos apetites mundanos os afaste; as práticas externas
da religião confundem por meio de instrumentos para conquistar as
coisas vãs deste mundo; vão aos cenóbios e rábidas somente para go-

elaborada a partir de tradução inglesa de R.W.J. AUSTIN. Sufis of Andalusia, George Alíen &
Unwin, Londres, 1971.
Histórias, narrativas e religiões 453
zar dos bens, lícitos ou ilícitos, que estas casas possuem; alargam as
bocas de sua mangas e engordam seus corpos. (ASÍN PALACIOS,
2005, p. 19, tradução nossa).184

Com esta crítica, endereçada às irmandades orientais nascen-


tes, o mestre andaluz iniciara sua carta a seu companheiro magrebino,
Abu Muhammad ‘Abd al-“Aziz b. Abu Bakr, de Al-Mahdiyya, expondo
os defeitos dos sufis orientais e, complementado por um exame de cons-
ciência pessoal, que culminaram com a exposição das formas benéficas
e sinceras dos sufis ocidentais que o auxiliaram na jornada (suluk) às
realidades divinas.

O conceito de santo e santidade em Ibn ‘Arabi

O santo, em sua caminhada mística e por graça divina, era con-


siderado como alguém que alcançara as verdades divinas. Estes homens
(rijal – conceito que abrange o homem como espécie), para ‘Arabi, fo-
ram sempre mestres que, por modelo e por sinceridade, permitiam a dis-
tribuição das bênçãos no mundo, bem como a intercessão deste mesmo
mundo junto a Deus.
Segundo Denis Gril (2007, p. 55): “Tout écrit et tout discours sur
la sainteté visent à proposer un modélè”. Como modelo, os santos (awliya)
se tornariam referenciais próximos para a comunidade dos fiéis. Assim,
o papel do santo seria o papel do mestre, daquele que encaminhava e
intercedia pelos discípulos, ensinando e apoiando:

184  [...] de sufíes sospechosos, que sólo en los bienes de acá abajo encuentran su deleite: en el fondo de
sus corazones tienen al mundo por gran cosa, que no creen haya sobre él nada digno de ser buscado; en
cambio, en sus almas la verdade divina es cosa tan pequeña, que de ella se apresuran a huir; toda su
atención y cuidado ponen en los tapices sobre que hacen la oración, en las fimbrias coloreadas de sus
túnicas, en los hábitos que visten, en los bordones o cayados com que caminan; llevan bien a la vista
las cuentas de sus rosários llenos de adornos, cómo las viejas; son en realidade niños golosos y muchachos
bien nutridos, sin ciencia que de lo ilícito los aparte y sin continencia que de los apetitos mundanos los
aleje; las prácticas externas de la religión enlean a guisa de instrumentos para logara las vanidades de
este mundo; acógense a los cenóbios y rábidas sólo para gozar de los bienes, lícitos o ilícitos, que estas casas
poseen; ensanchan las bocas de sus mangas y engordan sus cuerpos.”
454 Histórias, narrativas e religiões
O sufismo é assim uma prática e um caminho a seguir sob a direção
de um ou vários mestres espirituais. Ele implica práticas específicas, a
purificação da alma, a aquisição das virtudes, o caminho a Deus atra-
vés das estações e estados até a realização de um amor e de um conhe-
cimento de Deus que caracteriza o santo e sua fonte, com a permissão
de Deus e de seu shaykh, um mestre chamado a conduzir, por sua vez,
os homens à Via. (GRILL, 2007, p. 55, tradução nossa).185

Chodkiewicz, em sua análise da santidade em Ibn ‘Arabi, pre-


sente na obra “The Seal of the Saints” (1993), demonstrou-nos que o termo
que definiria o santo no islã, wali, estaria muito próximo da noção de
nusra, ou auxiliar. O autor relatou que o termo wali, termo corânico, de-
monstraria o conceito de amizade e proximidade (qurba), que segundo ele,
também se relacionaria com a ideia de proteção, bem como designava um
dos Nomes de Deus, al-Wali, que com a vogal “a” breve significa O Santo/
Amigo Próximo, e com a vogal “a” longo, o Governante/Protetor.
O autor prosseguiria distinguindo o conceito de wali, santo,
que no Islã possui esta acepção de proximidade e amizade com Deus, e
o conceito de qiddish (CHODKIEWICZ, 1993, p. 21), termo utilizado
pelos cristãos árabes para designar os santos. Além disso, Chodkiewicz
afirmou que: “[...] é claro que walaya não pode ser reduzido ao heroi-
cition das virtudes teológicas e cardinais assim como seria definido o
critério de santidade para os teólogos católicos romanos”.186 (1993, p. 47,
tradução nossa). O conceito de santidade (walaya) seria em ‘Arabi um
lugar hierárquico na comunidade e uma continuação da profecia, já que
os santos estariam na pegada dos profetas (1993, p. 17), mesmo que es-
tes santos pudessem, por sua proximidade e vivência sincera da ética da
fé, serem vias de milagres, e tendo sobre si um culto em distintas regiões,
distinguia-se dos critérios de santificação cristã.

185  Le soufisme est d’abord une pratique et une voie à suive sous le direction d’un ou plusieurs maîtres
spirituels. Il implique des pratiques spécifiques, la purification de l’âme, l’aquisition des vertus, le
cheminement vers Dieu à travers les stations et les états jusqu’à la réalisation d’un amour e d’une
connaissance de Dieu qui caractérisent le saint et le font de lui, avec la permission de Dieu et se son
cheikh, un maître appelé á conduire à son tour les hommes sur la Voie.
186  [...] it is already clear that walaya cannot be reduced to a heroicition of the theological and
cardinal virtues such as that which defines the criteria of sainthood for Roman Catholic theologians.”
Histórias, narrativas e religiões 455
A função islâmica do santo estaria designada em duas tradições
(ahadith) que demonstrariam o papel modelar desses agraciados com a
proximidade a Deus: “Entre meus servidores, meus amigos são aqueles
que se lembram de mim” (CHODKIEWICZ, 1993, p. 25), e: “Os san-
tos entre vocês são aqueles que alguém não pode ver sem lembrar de
Allah” (1993, p. 29, tradução nossa). Diante disso percebemos que os
santos seriam aqueles que perderam seu próprio “eu” (1993, p. 32), que
por sua proximidade com Deus, realizavam milagres e prodígios, sendo
continuadores dos profetas e da profecia universal (nubuwwa al-‘am-
ma), ocultando-se para os homens e o mundo. Citando Muslim, um dos
compiladores de hadith, Chodkiewicz afirmou que Muhammad havia
dito “Muitos homens com o cabelos despenteado, cujas posses contam
não mais que duas tâmaras, a quem ninguém quer mirar, podem, se
eles rogarem a Deus, ter suas preces respondidas”187(MUSLIM apud
CHODKIEWICZ, 1993, p. 36, tradução nossa), com isto, tais homens
poderiam realizar milagres (karamat), compreender a louvação dos di-
versos reinos (mineral, vegetal, animal e humano), percebendo como
toda a criação conheceria os segredos divinos.
O santo islâmico, segundo Qushayri (2007), seria aquele per-
sonagem que estava sob a proteção de Deus (mahfuz), o amigo, já que o
palavra que designa santo, wali, teria a conotação de passividade: “[...]
o amigo (wali) é aquele que está completamente engajado na adoração
e obediência a Deus em dimensão tal que seus atos virtuosos seseguem
um atrás do outro sem ser interrompido por nenhum resquício de deso-
bediência.”188(p. 269, tradução nossa). Um hadith qudsi apontava, segun-
do Quhsayri (2007, p. 269):

Deus o Mais Alto disse: ‘Quem quer que cause prejuízo a um de


Meus amigos (wali) declarou [com isso] guerra contra Mim. Meu
servo se aproxima de Mim cumprindo as obrigações que eu o im-
pus. Ele se arrasta até perto de Mim pelo cumprimento dos atos

187  “Many a man with unkempt hair, whose possessions amount to no more than a couple of dates,
whom no one wants to look at, may, if he adjures God, have his prayers answered.”
188  “[...] the friend (wali) is one who is toroughly engaged in worshiping and obeying God to such
an extent that his virtous acts follow one upon the other without being interrupted by any [tinge] of
disobedience.”
456 Histórias, narrativas e religiões
superrogatórios de piedade (nawafil) até que Eu o ame. Nada que
Eu faça deixa-me mais hesitante que ter que medir o espirito de
Meus servo fiel, porque ele teme a morte, enquanto Eu detesto
causar-lhe prejuízo. No entento, não há escapatória [para ele] de
Mim.” (tradução nossa).189

Estes santos, conforme a explicação de ‘Arabi, estariam na he-


rança dos profetas, que pela tradição islâmica, contavam um número
maior que 120 mil profetas, conhecidos e desconhecidos, sendo que o
número dos santos, por meio da relação de herança, associava-se àquele
dos profetas. Para Chodkiewicz (1993), a percepção de walaya, santi-
dade, no teósofo murciano estaria relacionada aos conceitos de risala
(relativo aos mensageiros – rasul – que trazem uma nova lei) e nubuwwa,
a profecia, sendo parte do arkam al-din, os pilares da religião: risala
(mensagem), nubuwwa (profecia), walaya (santidade) e iman (fé). Esta
herança (wiratha) recapitularia a sabedoria profética e, como um nusra,
auxiliar, possibilitaria a proteção do mundo. Diante dessa hierarquia e
relação de pilar da fé, o autor analisou que nos textos akbarí, a santidade
e os santos, distinguidos e divididos em categoria (1993, p. 53), compo-
riam não uma tipologia, mas sim uma topologia (1993, p. 89), pois cada
santo ocupava um lugar no comando da criação, sendo substituído pelo
seu predecessor na hierarquia.
Schimmel (2002) afirmou que:

O fim da santidade não é nada mais que o começo do estado de


profeta. Cada profeta leva em si mesmo o aspecto da santidade; o
santo ou místico pode esforçar-se por alcançar graus de proximidade
cada vez mais altos; mas o nível mais alto que um santo ou místico
pode alcançar é a ascensão espiritual que corresponde à ascensão que
o profeta realizou em corpo. Assim, “na última etapa da santidade, o

189  “God Most High says: ‘Whoever has caused harm to a friend of mine (wali) has [thereby] declared
war against me. My servant approaches Me by performing te obligations that I have imposed on him.
He draws even nearer to Me by performing supererogatory acts of piety (nawafil) until I love him.
Nothing that I do makes Me more hesitant than having to seize the spirit of My faithful servant,
because he dreads death, while I loathe causing harm to him. However, there is no escape [for him]
from it.’”
Histórias, narrativas e religiões 457
espirito do santo faz-se semelhante ao do Profeta.”, disse Simnani.190
(2002, p. 221, tradução nossa).

A topologia dos santos estaria relacionada ao conceito de


niyaba, substituição e autoridade dentro da realidade muhammadiana,
bem como a wiratha, herança profética e a qurba, a proximidade com
Deus. Estas três noções possibilitam uma economia espiritual topoló-
gica, pois o santo ascenderia a Deus imitando um profeta: “The ascent
to God is first and foremost an imitatio Prophetae.” (CHODKIEWICZ,
1993, p. 148).
Segundo Chodkiewicz, na obra akbari Diwan al-Awliya
(Poema dos Santos), a topologia dos santos fora exemplificada. O autor
também se utilizou dos textos das obras: Risala al-Anwar (Epístola das
Luzes), Fusus al-Hikam (Pérolas da Sabedoria) e Futuhat al-Makkiya
(Revelações de Meca), para demonstrar a percepção da santidade nos
escritos do mestre murciano. Afirmou o autor que as teorizações akba-
rí sobre a santidade encontravam-se esparsas em sua obra. Aqui neste
texto, faremos uma apresentação abreviada dessa tipologia/topologia,
apenas apontando as distintas funções desses santos, que ocupavam os
lugares de khalifa (representante) e nayb (deputado) de Deus na criação.

A topologia dos santos

Michel Chodkiewicz (1993) elaborou, em sua busca por com-


preender a walaya em Ibn ‘Arabi, a hierarquia dos santos no Islã eso-
térico. O autor denominou esta hierarquia de topologia devido a dois
pontos básicos: os membros dessa linhagem mística seriam represen-
tantes de Deus na terra e velariam pela boa caminhada da criação e, jun-

190  “El final de la santidade no es más que el comiezo del estado de profeta. Cada profeta lleva en sí
mismo el aspecto de la santidade; el santo o místico puede esforzarse por alcanzar grados de proximidade
cada vez más altos; pero el nível más alto que el santo o místico puede alcanzar es la ascensión espiritual
que corresponde a la ascención que el profeta efectuó en el cuerpo. Así, << en la última etapa de la
santidade, el espirítu del santo se hace semejante al del Profeta >> (N 443), dice Simnani.”
458 Histórias, narrativas e religiões
tamente a esta função, ligada a uma herança profética, encontrariam-se
presentes em todas a gerações, até o fim escatológico, os selos (khatm),
deste modo, a morte de um membro da hierarquia era seguida por sua
substituição em outro membro.
Chodkiewicz (1993) afirmou que no mais alto grau da topo-
logia dos santos (awliya) estavam quatro personagens. Tais personagens
atingiram a estação da proximidade (maqam al-qurba), sendo os mais
elevados de sua época e líderes espirituais da comunidade dos fiéis.
Em alto grau de importância estavam os Afrad – Solitários
(CHODKIEWICZ, 1993, p. 106-107), que contabilizavam três pesso-
as. Eram denominados de al-rukban (aqueles que cavalgam o camelo),
divididos em 2 categorias: os da energia e os da ação, vivenciando a ‘ubu-
da, a servidão perfeita e a total dependência de Deus. Segundo o autor,
foram identificados pelo místico murciano entre os malamiyya (1993, p.
105), aqueles que chamavam sobre si a vergonha, buscando a ocultação,
não angariando para si as glórias do mundo. Estes teriam o poder de
interpretar os sonhos, como o profeta Yusuf ( José).
No mesmo patamar dos solitários, encontrava-se o Pólo
(Qutb), que era considerado o rasul vivo de uma época. Sua posição de
liderança daria a ele responsabilidade sobre toda a criação. Herdeiro de
Muhammad e Idris – profeta identificado com o Enoque biblíco -, seus
títulos de Abd Allah (Servo de Deus) e khalifa (Representante e regente)
permitia-lhe exercer poder sobre a criação.
Logo abaixo do Pólo, como auxiliares, o autor citou a existência
dos Imãs. Os dois Imãs, da direita (Abd al-Rabb – Servo do Senhor)
e da esquerda (Abd al-Malik – Servo do Rei) auxiliavam no governo,
respectivamente, do mundo sensível e do mundo dos espíritos. O Imã
da direita seria o responsável pelo equilíbrio do mundo e, substituiria o
Pólo quando de sua morte. Este Imã era herdeiro do profeta Isa ( Jesus).
Já o Imã da esquerda, vigia do mundo dos espíritos (‘alam al-arwah), era
herdeiro do profeta Elias.
Estes personagens, juntamente com os herdeiros do profeta
Khadir, conformariam os Pilares (Atwad). Como afirmou o Corão, Deus
colocara o mundo sobre pilares, as montanhas, e a Caaba possuía quatro

Histórias, narrativas e religiões 459


lados, que indicavam a existência destes santos. Interessante apontar que
quatro desses profetas (Idris, Isa, Elias e Khadir), segundo a tradição
islâmica, não experimentaram a morte, tendo sidos elevados aos céus
em corpo. Cada um dos pilares possuía um título: Abd al-Hayy (Servo
do Vivente), Abd al-‘Alim (Servo dos Mundos), Abd al-Qadr (Servo do
Poderoso, sendo Qadr a noite de descenso do Corão) e Abd al-Murid
(Servo d’Aquele que deseja) (CHODKIEWICZ, 1993, p. 97).
Seguindo a topologia dos santos, os Abdal (Substitutos) seriam
os ocupantes dos lugares abaixo dos Pilares (CHODKIEWICZ, 1993,
p. 103), constituídos por sete pessoas, com jurisdição sobre os setes cli-
mas e as sete esferas celestes. Estes personagens estariam nas pegadas
(‘alam qadam) dos profetas Abraão, Móises, Aarão, Idris, José, Jesus e
Adão, tendo uma relação privilegiada com os Nomes divinos.
Os extratos mais baixos seriam:
- Nuqaba ou líderes, em número de doze, relacionados aos doze
líderes das tribos de Israel e aos signos do zodíaco celeste, com a sabedo-
ria da lei revelada e o poder de ver o mal oculto (Idem, p. 104);
- Niyaba, nobres ou deputados, compostos por oito persona-
gens que seriam governados por seu estado (hal) e conheciam o segredo
das oito esferas baixas;
- Hawariyyun191, que consistiria em um por época, cuja função
era a defesa da religião por meio da espada e da razão intelectual, pos-
suindo o poder da mu’jizat (ação milagrosa dos profetas);
- Rajabiyyun, os homens de Rajab, em número de 40 que apre-
sentavam sua santidade apenas no mês de Rajab.
Outros títulos são alocados nesta hierarquia, como os akhayr, os
bons, em número de 300, e os ocultos, compreendendo 4000 pessoas. Toda
a tipologia compreenderia a quantidade de santos relacionada à quantidade
de profetas, conhecidos e desconhecidos, que somariam 120 mil.
Toda esta hierarquia de santo possuía sua proximidade com a
hierarquia dos profetas, considerando as pegadas de Muhammad como
o sinal de perfeita santidade. Também se somava a esta ordenação o pa-
pel dos selos (Khatm), cuja função principal seria a escatológica. A figura

191  O termo hawariyyun no Corão designa os apóstolos de Jesus: Corão: 3:52; 5: 112; 61:14.
460 Histórias, narrativas e religiões
do Mahdi192, na escatologia muçulmana visto como o governante final
da Umma, estaria, na visão akbarí, relegada aos muçulmanos e à função
de implementação da justiça na Terra. Os selos teriam a função de de-
marcar a justiça espiritual. Conforme a apresentação de Chodkiewicz,
três selos eram importantes: O Selo dos Santos Universal, cuja heran-
ça seria isawi (de Jesus), e que estaria sobre toda a criação; o Selo dos
Santos muhamadiano, cuja herança do Profeta Muhammad o colocaria
no patamar escatológico do fim da santidade islâmica e, o Khtam al-
-Awlad, o Selo das Crianças, cujas pegadas estariam relacionadas a Seth,
este selo apontaria o fim do mundo, já que seriam as últimas crianças
nascidas no planeta, um casal de gêmeos originários da China e, seu
nascimento marcaria os eventos apocalípticos, com o soar da trombeta
de Israfil193 e a vinda do profeta Isa para julgar o mundo.

A santidade na vida dos mestres sufis andaluzes

Entre os mestres de Ibn ‘Arabi, poderíamos citar alguns que, se-


gundo o autor, participavam da hierarquia dos santos. Um de seus mestres,
que não conhecera pessoalmente, Abu Madyan de Bugia, era considerado
o Pólo de sua época, um dos santos que mais influíriam na vida do mestre
murciano, que ele apontou como: “[...] nuestro señor Abu Madyan, la quinta
esencia de los santos.” (ASÍN PALACIOS, 2005, p. 21-22).
Alguns santos, conhecidos em vida pelo Mestre Maior, foram
identificados nos relatos hagiográficos que ele escreveu para admoestar
os orientais, a presença dessa santidade, em mais alto grau, no Magreb.
Salih al-Kharraz ou, conforme a tradução de Asín Palacios
(2005), “O Santo Sapateiro”, que como outros mestres, intentava sempre
manter oculta sua condição de santo (wali), ocultação que era comum

192  O Mahdi compreende na escatologia islâmica o implementador da justiça na comunidade


dos fiéis. Na escatologia xiita, este personagem oculto seria descendente sanguíneo de
Muhammad.
193  Israfil seria o arcanjo responsável por soar a trombeta que anunciaria o Juízo Final (al-Yaum
al-Qiyamah), conforme a sura 36: 68.
Histórias, narrativas e religiões 461
entre outros mestres e que pode se aproximar do conceito de taqiyah
(dissimulação)194, sendo este, em Qushayri (2007, p. 271), um dos signos
da santidade. O relato akbarí afirmava as práticas deste mestre como:

Este homem de Sevilha se encontrava entre as pessoas de zelo, de


esforço e de escrúpulos (wara), entregado às obras de adoração que
praticava desde a idade de sete anos.(...) Vivia retirado e observava
longos períodos de silêncio. Seus companheiros diziam que ele não
lhes falava mais que quando fosse indispensável. [...] Por fim, reti-
rou-se a lugares desérticos, buscando a solidão e o isolamento.195(I-
BN ARABI, 2007, p. 127-129; ASÍN PALACIOS, 2005, p. 152-
155, tradução nossa).

Muhammad b. Ashraf Ar-Rundi, ou seja, de Ronda, segun-


do o relato era um dos abdal, membro da hierarquia dos santos inter-
cessores: “[...] Era um dos abdal [ou santos intercessores], que andava
sempre vagando pelos montes e lugares desertos, separado do mundo
e sem se achegar nunca a lugar algum habitado, durante cerca de trin-
ta anos”196(ASÍN PALACIOS, 2005, p. 139, tradução nossa). “Vivendo
nas montanhas a ao longo da costa, evitou lugares habitados durante
cerca de trinta anos. Tinha uma profunda intuição, chorava e rezava
muito e guardava silêncio perpétuo [...] seu domínio estático (wajd)
era intenso e suas lágrimas abundantes.”197(IBN ARABI, 2007, p. 111,
tradução nossa). Devido a sua posição na hierarquia dos santos, inten-
tava dissimular a identidade, para que pudesse cumprir sua missão sem
o prestígio mundano.

194 “Taqiya” é um dos conceitos islâmicos com o qual o fiel poderia salvar sua vida interiorizando
as práticas corretas e dissimulando, exteriormente, com as práticas erradas imposta por governantes
ou situações perigosas, ou seja, poderia viver como infiel, sendo interiormente um fiel.
195  Este hombre de Sevilla se encontraba entre las personas de celo, de esfuerzo y de escrúpulos (wara’),
entregado a las obras de adoracíon que practicaba desde la edad de siete años [...] Vivía retirado y
observaba largos períodos de silencío. Sus compañeros decían de él que no les hablaba más que cuando
indispensable. [...] A continuacíon, se retiró a lugares desérticos, buscando la soledad y el aislamento.
196  “Era uno de los abdal,, que anduvo siempre vagando por los montes y lugares desiertos, apartado
del mundo y sin acogerse jamás a lugar alguno habitado, durante cerca de trinta años”
197  “Viviendo en las montañas y a lo largos de las costas, evitó los lugares habitados durante cerca de
trinta años. Tenía una profunda intuicíon, lloraba y rezaba mucho y guardaba silencio perpétuo. [...]
su dominio estatico (wajd) era intenso y sus lágrimas abundantes.”
462 Histórias, narrativas e religiões
Abu Jadun Zakariyya, um dos quatro awtad (pilares) na hierar-
quia dos santos:

Era uma das quatro colunas [awtad] da hierarquia mística, em aten-


ção aos quais não deixa Deus ao mundo de sua mão [...] Havia pedi-
do a Alá que retirasse sua boa reputação do coração de todos. Assim,
quando estava ausente, não o atraiam e, quando estava presente, nin-
guém pedia sua opinião; quando chegava a um lugar, não lhe davam
as boas-vindas e no momento de uma conversa, não lhe dirigiam
a palavra e todo mundo o ignorava [...] este homem se esforçava
muito em seu trabalho espiritual. Dedicava-se a comercializar hena.
Tinha sempre os cabelos em desordem e poeirento e seus olhos es-
tavam pintados com kohl198 [...] Quando falava, com frequência o
tomavam por louco. Quando se sentava em uma reunião, os demais
saiam e, se permanecia, molestavam-nos sua presença. A ele, este
estado das coisas parecia gostar.199 (IBN ARABI, 2007, p. 108-109;
ASÍN PALACIOS, 2005, p. 136-138, tradução nossa).

Este mestre, Abu Jadun Zakariyya, buscava a ocultação, dissi-


mulando a identidade, um dos pontos que Chodkiewicz (1993) apontou
como forma de reconhecer a santidade em um homem, que se manteria
ordinariamente, na vida comum.
Os malamatiyya, ou na denominação akbarí, malamiyya, fa-
ziam parte do grupo daqueles que buscava a reprovação. Segundo
Chodkiewicz (1993, p.109), teríamos aqui o exemplo principal de santo
(wali) na concepção de Ibn ‘Arabi. Seus métodos de vivência interior e
reprovação exterior demonstravam a verdadeira prática da fé. Estavam,

198  Kohl designava o produto e maquiagem utilizada nas áreas dos olhos para a proteção dos
raios solares.
199  Era una de las cuatro columnas [awtad] de la jerarquia mística, en atención a las cuales no deja
Dios al mundo de su mano. [...]Le había pedido a Alá que quitara su buena reputación del corazón
de todos. Así, cuando estaba ausente, no le echaban de menos y, cuando estaba presente, nadie pedía su
opinión; cuando llegaba a un lugar, no le daban la bienvenida y en el momento de una conversación, no
le dirigían la palavra y todo el mundo lo ignoraba. [...] este hombre se esforzaba mucho en su trabajo
espiritual. Se dedicaba a comerciar con henná. Tenía siempre los cabellos en desorden y polvorientos y
sus ojos estaban pintados con kohl [...] Cuando hablaba, con frecuencia lo tomaban por loco. Cuando se
sentaba en una reunión, los demás solían marcharse y se se quedaban les molestaba su presencía. A él este
estado de cosas parecía gustarle.
Histórias, narrativas e religiões 463
na tipologia dos santos, ligados ao afrad, o solitário, o mais alto grau de
santidade, possuidor da qurba, proximidade com Deus.
Um dos centros dessa prática malamiyya era a preocupação
com os pobres. Segundo um hadith: “Quien se acuerda de Díos entre los
negligentes es cómo un combatiente en médio de los que huyen, cómo un arból
verde en medio de árboles secos.” (SCHIMMEL, 2002, p. 185). Assim, os
malamiyya, que tinham pelos pobres uma grande afeição, estavam entre
os perfeitos. Outra forma que possibilitava reconhecê-los, para o mestre
murciano, era por sua civilidade, futuwwa (civilidade), sendo pessoas
amistosas e desapegadas.
Podemos citar o caso de Abu Ya’qub Yusuf b. Yajlaf Al-Kumi
al-‘Abassi, que fora discípulo de Abu Madyan, o grande santo magrebino:

Era muito ligado às devoções privadas e sempre praticava a esmola


em segredo. Exaltava ao pobre e rebaixava ao rico, atendendo pes-
soalmente as necessidades dos indigentes. [...] Seguia, em grande
medida, o caminho dos Malamatiyyah. Com frequência se encon-
trava com o rosto fechado, mas quando via a um pobre, sua cara se
iluminava de alegria. Ví-o, inclusive, sustentar a um deles sobre seus
ombros. Comportava-se com frequência como um servo para com
seus discípulos.200(IBN ARABI, 2007, p. 22; ASÍN PALACIOS,
2005, p. 65, tradução nossa)

Umar Al-Qarqari: “Era um homem de Alá que se dedicava à


disciplina da alma; preferia viver retirado e não se sentava com ninguém.
Ganhava a vida com suas próprias mãos e só recolhia de seu soldo o
que precisava para comer, deixando o resto aos que o empregavam, sem
guardar nada para o dia seguinte.201 (IBN ARABI, 2007, p. 231, tradu-
ção nossa). Este santo demonstrara com sua ação como a proximidade e
confiança em Deus o levava a abstrair até mesmo da justiça humana. O

200  Era muy dado a las devociones en privado y siempre practicaba la limosna en secreto. Exaltaba
al pobre y rebajaba al rico, atendiendo personalmente las necesidades de los indigentes. (...) Seguía, en
gran medida, la senda de los Malamatiyyah. Con frequencia se le encontraba con el ceño fruncido, pero
cuando veía a un pobre, su cara se ilumunaba de alegría. Le ví, incluso, sostener a uno de ellos sobre sus
rodillas. Se comportaba con frecuencia cómo un siervo con sus discípulos.
201 “Era un hombre de Alá que se dedicaba a la disciplina del alma; prefería vivir retirado y no se
sentaba con nadie. Se ganaba la vida con sus própias manos y sólo cogía de su sueldo lo que necesitaba
para comer, dejando lo demás a los que le empleaban, sin guardar nada para el día seguiente.”
464 Histórias, narrativas e religiões
seu desapego (az-zuhd) exemplificaria a relação intima com a divindade
e a possibilidade de angariar sua posição de representante.

Apontamentos Finais

Os santos islâmicos, bem como os santos cristãos, seriam para


as respectivas comunidades modelos e intermediários. Suas vidas se tor-
nariam exemplos de como a imitação de homens piedosos levava à pro-
ximidade com Deus. Os modelos máximos desses santos, os profetas, no
Islã, possibilitariam a ascensão esotérica às realidades divinas e a certeza
das realizações escatológicas.
Poderíamos também somar a tal condição a possibilidade de rea-
lização de prodígios, milagres e intercessões (que na terminologia mística
seria designada pela karamat, o poder dos santos de realizar milagres), já
que estes santos, por suas vidas que se amparavam nos pilares da men-
sagem divina, estavam prontos para serem a habitação da força divina, a
sakina, e com isto, representavam Deus e sua mensagem na Terra, ocupan-
do um dos lugares na hierarquia soteriológica e escatológica.
Como modelos, os relatos que nos transmitiram Ibn ‘Arabi,
dentro de uma tradição de relatos islâmica, iniciada já nos primeiros
séculos do Islã, poderiam ser alocados dentro do gênero da hagiografia,
sendo este gênero literário, cuja influência no cristianismo seria ímpar,
também um gênero de extrema importância na fé nascida da mensa-
gem corânica. Sendo uma revelação continuadora, o Corão recolocaria
o exemplo dos Profetas como modelos de legisladores, implementando
os desejos divinos na Terra. Como tais legisladores teriam um fim, um
selo, com Muhammad, a santidade se tornaria o meio ainda aberto para
alcançar e alçar aos mistérios divinos até a completude dos tempos.
Os santos e suas vidas, imitações dos profetas, tornar-se-iam
luminares para o mergulho do fiel nos desejos divinos e na vivência
sincera da fé. Os pilares do Islã, o testemunho da unicidade de Deus e
as demais práticas éticas, mescladas às formas intelectuais e esotéricas,
Histórias, narrativas e religiões 465
possibilitariam a experiência de Deus e a proximidade com os mistérios
em um mundo trespassado por angústias e aflições. Além de modelos,
as vidas dos santos seriam baluartes de esperanças e luminares de jus-
tiça para aqueles que se encontravam tanto na busca mística quanto na
simplicidade ordinária do cotidiano. Entre profetas e santos, o homem
comum eclipsaria a magnificência das aristocracias, muito criticadas no
Corão, reiterando a tradição árabe de uma solidariedade comunitária.

Referências

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Institut Français de Damas, 1964.

Histórias, narrativas e religiões 467


Repressão e resistência escrava na
Salvador do século XIX: as relações entre
o Candomblé e a culinária no jornal O
Alabama da Bahia.

João Pedro Basso (Universidade do Sagrado Coração)


Vinicius Sales Barbosa (Universidade do Sagrado Coração)

Resumo: Desde as obras de Manuel Querino e Câmara Cascudo mui-


tos estudos têm demonstrado a importância da culinária para a difusão
dos costumes e a cultura do povo brasileiro. Neste trabalho buscamos
demonstrar a relação entre a culinária baiana, mais precisamente de
Salvador, e o candomblé como forma de resistência da população escra-
va de Salvador no século XIX. O jornal “O Alabama” da Bahia tornou-
-se fonte fundamental para a nossa análise, o recorte temporal foi o ano
de 1864, período em que é visível, neste periódico, uma grande repressão
ao candomblé. Tal documento nos permitiu encontrar na relação entre
culinária e religião uma resistência escrava que marcou a história de
Salvador no século XIX.

Palavras-chave: Repressão, Resistência Escrava, Candomblé, Culinária


Baiana

Introdução

As tradições alimentares de um povo são fontes inesgotáveis de


saberes históricos, além de manifestação clara de sua cultura. A culiná-
ria também pode ganhar significado dentro da religião, revelando traços

468 Histórias, narrativas e religiões


profundos dos mitos e ritos que a compõem. O diálogo entre o alimento
e a religião é visto nas festividades, nos ritos. Seja preparando a refeição,
escolhendo o que ingerir e quando ingerir ou respeitando determinadas
interdições alimentares, a religião acaba assumindo papel fundamental em
definir as tradições alimentares humanas. No candomblé não seria dife-
rente, e a culinária baiana – entendida aqui como as comidas do litoral da
Bahia, mais precisamente de Salvador – se apresenta como possibilida-
de para um entendimento maior das tradições afro-brasileiras originadas
com a escravidão. Longe de representar uma fidelidade aos hábitos nati-
vos do continente africano, tanto o candomblé quanto a culinária baiana
tiveram papel destacado no início de uma nova cultura: a brasileira.
Segundo o professor Carlos Roberto Antunes dos Santos
(2005), os estudos acerca da história da alimentação vêm ganhando
força dentro das humanidades. As análises envolvem articulações entre
diversas disciplinas, já que as pesquisas acadêmicas recentes dentro da
área de História trazem foco para aspectos sociais, culturais, econômi-
cos, políticos, nutricionais, antropológicos e até mesmo tecnológicos dos
mais variados processos históricos. Neste caminho, a gastronomia passa
a ser objeto de estudo de historiadores e a atenção ao imaginário, simbo-
lismo e representações dos alimentos se torna essencial para as reflexões
acerca da evolução da sociedade. Há ainda a premissa de que as tradi-
ções alimentares de um povo não se dão, exclusivamente, pelos aspectos
nutricionais. Comer é um ato social, pois está ligado a usos, costumes,
protocolos, condutas e situações: “[...]constata-se que a História da
Alimentação [...] demonstra agora a sua validade, pois diz muito sobre a
educação, a civilidade e cultura dos indivíduos.” (SANTOS, 2005, p. 13)
Para Ana Paula Nadalini (2009), a alimentação liga primei-
ramente o homem ao seu próprio organismo, satisfazendo sua própria
necessidade biológica. Depois, a alimentação liga o homem aos outros
homens, se tornando uma forma de sociabilidade. Por fim, os alimentos
possibilitam um vínculo entre o homem e suas divindades, já que gran-
de parte das práticas religiosas estão ligadas ao hábito de comer, seja a
eucaristia cristã, o ramadã islâmico, a proibição de ingerir carne de por-
co aos judeus e de vaca aos hindus. No candomblé, a alimentação tem

Histórias, narrativas e religiões 469


importância essencial, pois são as oferendas de alimentos e sacrifícios
as principais ligações entre os homens e suas divindades, sendo aquelas
algumas de suas bases teológicas.
Portanto, a dialética entre alimentação e religião existe e pos-
sibilita um vasto campo de estudo para o maior entendimento das rela-
ções entre homens e homens e homens e deuses ao longo dos tempos,
visto que tanto as tradições alimentares quanto a religião se configuram
em extensões da cultura humana, sendo resultadas a partir de complexos
processos históricos e sociais e, ao mesmo tempo, servindo de base para
estes mesmos processos.
Diante da possibilidade em conciliar os estudos históricos com
os estudos a respeito da alimentação e religião, proporcionada graças
ao advento da nova História, suas novas abordagens e metodologias,
se busca aqui investigar o papel desempenhado pela culinária baiana
dentro do candomblé e analisar de que forma essas duas manifestações
culturais se encaixaram no papel de resistência da população escrava
de Salvador no século XIX, através do jornal O Alabama de Salvador,
durante o ano de 1864. O presente texto é resultado da apresentação de
um artigo acadêmico para obtenção de nota na disciplina de História
do Brasil, no curso de Licenciatura em História da Universidade do
Sagrado Coração.

Imprensa como Fonte

A imprensa foi escolhida como forma de analisar os movi-


mentos de resistência promovidos por negros que praticavam o can-
domblé porque:

“...não apenas interfere nas questões políticas, mas em diversos se-


tores da vida social, na articulação e disseminação de idéias, valores,
referências, memórias, ideologias, modos de pensar e agir em sua
historicidade, o que a torna uma fonte inesgotável de pesquisa e es-
tudo”. (LEITE, 2015, p.5)
470 Histórias, narrativas e religiões
O jornal “O Alabama” foi publicado de forma ininterrupta en-
tre os anos de 1863 e 1900, em Salvador (Bahia), de acordo com os
estudos de Luiz Alberto Couceiro (2013, p.164). Segundo as análises
de Couceiro (2013, p.165-168), o jornal possuía o nome “O Alabama”
devido a um navio norte-americano que atracou no porto de Salvador
para comprar gêneros e matérias-primas durante a Guerra Civil.
“O editor colocava-se como astuto, severo e zeloso censor dos
costumes morais da cidade, sobre a qual o Alabama navegaria” (ibidem,
p. 165), se intitulando “capitão” do navio e escrevendo as notícias em
formas e diálogos satíricos com os “tripulantes”.
A proposta desse periódico era abordar “assuntos ligados aos ter-
reiros de candomblé e feitiçaria” (ibidem, p.163), assim como ir contra os
tratamentos recebidos dos escravos pelos seus senhores, de forma a:

“[...] impor sua moral aos outros acreditando fervorosamente esta-


rem empenhados em uma espécie de missão sagrada. Sua intenção
é fazer campanhas para extirpar tudo aquilo que os perturbam pro-
fundamente e consideram ser o mal para a sociedade na qual vivem,
sob o discurso de que a vida melhorará depois que isso ocorrer”.
(ibidem, p.165)

Considerando as informações supracitadas percebe-se que o


jornal não possuía um público alvo, conforme aborda Sosa (2006, p.
119-120) ao elencar que o conhecimento garante uma concentração de
poder na classe abastada responsável pela propagação das notícias. Com
“O Alabama” ocorre justamente o oposto, possuía o objetivo criticar pes-
soas de quaisquer classes e posições sociais e jurídicas e situações que os
redatores consideravam moralmente erradas.
O jornal “O Alabama” nos garante a possibilidade de ir “além
dos eixos políticos e econômicos, contribuindo, por exemplo, para es-
tudos sociais, culturais, literários e de gênero” (LEITE, 2015, p.9) da
Salvador do século XIX. Analisando os excertos retirados das edições
do jornal, podemos identificar seu perfil e como a sociedade da época
era abordada por ele.

Histórias, narrativas e religiões 471


No mês de Abril de 1864 identificamos citações ao movimento
do Porto e o comércio relacionado ao candomblé, devido a digitalização
possuir algumas falhas, não foi possível decifrar algumas palavras:

• “Descarregam Hoje – Sumaea C? Locouce, figuras de pau para can-


domblés” (02/04, nº45, p. 5) - Não encontramos significado

• “Movimento do Porto – Sahida do dia – Pernambuco— brigue-


-barca Palanque, cap. Anlonio Porco; carga 6. volumes mercadorias
refugadas, 2 caixões objectos para candomblés” (30/04, nº54, p. 41)

• “Importação - Barcasta Simon Gozangan, procedente das Quintas,


326 volumes pat. farias, 660 canastras candomblés, 780 m? a?”
(01/04, nº42, p. 44)

No levantamento bibliográfico não foi encontrado o motivo do


jornal abordar a movimentação do porto, em nossa análise, temos como
hipótese que essas notícias funcionavam como forma de denúncia, assim
como os excertos abaixo que repudiavam os terreiros e as práticas do
candomblé:

• “Expediente - Portaria ao guarda marinha pedestre Guilherme... -


Ao mesmo ordenando-Ihe que vá á ladeira do Carmo, procure ao
sapateiro Martinho, e indague do mesmo si é verdade que costuma
franquear a sua casa a negros captivos, mulheres perdidas, e toda
casta de gente inclusive certo procurador negociante de baleias, para
exercicios de feitiçarias e candomblés como me informam, mediante
uma paga, o que a ser exacto, deverá Vm. conduzil-o ao subdelegado
da freguezia para proceder como for conveniente. O que cumpra.”
(31/03, nº41, p. 59)

• “Expediente – Ao Sr. subdelegado de Sant’Antonio, communicando-


-lhe que na casa n. 48 à rua da Conceição do Boqueirão, ha sempre
reuniões de africanos, batuques, candomblés e o mais que se segue,
que incommoda a visinhança, a qual espera de S. S. providencias”
(07/04, nº44, p. 50)

• “Expediente - Ao Sr. subdelegado de Sant’Anna para que dê as pro-

472 Histórias, narrativas e religiões


videncias sobre uma casa de candomblé no beco d’Agonia, onde
muito se affronta a moral publica” (16/06, nº74, p. 26)

• “Expediente – Ao Sr. subdelegado da Sé chamando a atenção


de S. S. para um candomblé que ha no Maciel de Baixo n’una
das lojas do sobrado do Sr. Paranhos, do qual candomblé è
papae um preto de nome Jebù o qual inculca-se por grande
mestre de deitar e tirar diabos, dar ventura, curar de feitiço &.;
para o que reune alli nos domingos grande numero de pessoas
de toda qualidade” (15/11, nº 133, p. 26)

Cada trecho nos oferece possibilidades de identificar a for-


ma com que o jornal denunciava as atividades dos negros ligadas ao
candomblé e como ele “cobrava” das autoridades que o problema fosse
resolvido ao final de cada texto. Atitude dos editores que remete a carac-
terística de promoverem a moral que pensavam ser correta.
Mas o excerto que nos permite analisar o viés do jornal com
certa profundidade segue abaixo:

• “Expediente - Ao Sr. subdelegado de Brotas, communicando-Ihe


que no dia 7 de fevereiro no logar Engenho Velho, em uma casa
de candomblé ou terreiro de que é mamãe a crioula Maria Julia,
deu-se uma scena barbara e repugnante, sendo surrada uma mulher
de nome Theophila, por havei faltado à certas prescripções a que era
obrigada como filha da casa” (18/02, nº21, p. 14)

No fragmento é possível detectar a denúncia realizada pelo jor-


nal de uma negra que apanhou por ter faltado às obrigações “como filha
da casa”, criticando os maus tratos à mulher, e situando o ocorrido num
terreiro de candomblé, repudiando também o local.
O próximo excerto chama atenção para o aspecto culinário. Ao
fazer a suposta “denúncia”, o editor chama atenção para um grupo de
“vadios”, acompanhados de uma “negra dos bolinhos” (comerciante de
gêneros alimentícios), que estariam escandalizando as famílias hones-
tas pela segunda vez. No trecho, é exigido do guarda-marinha pedestre
Guilherme, um agente da ordem, que tome consigo um “muxingueiro”
(espécie de carcereiro) e vá dispersar o grupo. O editor parece não se
Histórias, narrativas e religiões 473
atentar para os produtos da “negra dos bolinhos”, um fato curioso já que
estas muitas vezes comercializavam comidas ritualísticas do candomblé
(esta mulher, especificamente, parece comercializar bolinhos de acarajé),
e o editor, como visto em outros trechos, não deixava de reparar nos
“objetos de candomblé”.

• “Expediente” – “Ao guarda-marinha pedestre Guilherme, ordenan-


do-lhe que vá á rua Direita de Santo Antonio acompanhado de mu-
xingueiro e pela segunda vez tanja aquella sucia de vadios que vivem
a escandalisar as familias honestas com aquella negra de bollinhos.
Cumpra.” (23/09, nº112, p. 34)

Isto permite a interpretação de que as comidas ritualísticas não


eram alvos de repressão contumaz como outros objetos e práticas do
candomblé. Porém, em nossa pesquisa bibliográfica, não encontramos
produções que corroborassem com tal premissa.
Portanto, a partir das análises, é possível identificar a relação
do candomblé como movimento de resistência, pois “é dentro dos ter-
reiros que acontecem as históricas manifestações culturais trazidas pelos
escravos nos navios negreiros, tornando o Candomblé no Brasil uma
religião de práticas ancestrais” (FALCÃO, 2016, p.99).

Culinária Baiana e o Candomblé

A íntima relação estabelecida no candomblé com a ingestão de


alimentos, mas também seu modo de preparo, revelam bastante sobre
o apego às tradições afro-brasileiras. Como dizia Bastide: “se a cozinha
africana pôde manter-se fielmente na Bahia [...]foi porque se encontrou
ligada ao culto dos deuses e que os deuses não gostam de mudar de há-
bitos” (BASTIDE, 1960 apud SANTOS, 2013, p. 19).
Não só a comida já preparada tem significado, mas seus in-
gredientes, seu modo de preparo, o local onde está sendo preparada,
quem a está preparando ganham suas significações. Algo interessante
474 Histórias, narrativas e religiões
sobre as comidas destinadas aos orixás do candomblé são os temperos
fortemente carregados, havendo sempre preocupação com os aromas e
sabores que emanam das refeições. As festas aos orixás envolvem sem-
pre grandes banquetes. Com o tempo, a cozinha de terreiro, também
denominada popularmente cozinha baiana, alcançou outros paladares.
(NADALINI, 2009) (SIMAS, 2015)
Nas religiões brasileiras de matriz africana, a comida está pre-
sente em quase todos os ritos. Ela é portadora de energia, compartilhada
entre homens e deuses, e o alimento certo fortalece o corpo e o espírito,
assim como o errado age no sentido contrário (SIMAS, 2015). Tanto
as interdições quanto o modo de preparo das comidas ritualísticas são
originárias das narrativas mitológicas, e são transmitidos por meio da
oralidade. (NADALINI, 2009) (COELHO-COSTA, 2016)
Embora o a culinária no candomblé esteja fundamentada em
seus mitos, isso não significa que ela esteve alheia ao hibridismo cultu-
ral. Em função do processo de deslocamento (primeiro da África para o
Brasil e, depois, o deslocamento interno) as comidas de terreiro foram
redefinidas em função de novos hábitos alimentares ou da substituição
de alimentos (COELHO-COSTA, 2016). Um exemplo é o preparo do
caruru, comida ritualística que consiste em quiabos refogados no azeite
com cebolas e gengibre, sendo acrescentados posteriormente camarões
secos, amendoim e castanha, além de sal. Tal prato tem a origem indíge-
na, mas foi apropriado, com o tempo, pelas cozinheiras africanas, tendo
estas acrescentado o quiabo e o dendê, e responsáveis também pela tran-
sição do prato da maloca para as festas dos orixás, e até para a mesa do
português (CASCUDO, 1983) (NADALINI, 2009).
As comidas de terreiro foram popularizadas com o passar dos
anos e alcançaram mesas em que elas não consistem em simbologia al-
guma. Mas para aqueles que acreditam no valor de tais alimentos para as
divindades afro-brasileiras, as práticas e interdições a respeito de consu-
mo e/ou preparo destes alimentos são passadas de geração em geração.
As prescrições, tabus, cuidados ou receitas são passados de forma oral e é
um processo que acontece em todo o Brasil: “[...] Não se pode esquecer
de considerar que esse processo já sofreu muitas perdas, esquecimentos,
acréscimos e ressignificações” (NADALINI, 2009, p. 50).

Histórias, narrativas e religiões 475


Candomblé e a Resistência

O candomblé é uma religião afro-brasileira que nasceu na


Bahia no século XIX. O acontecimento essencial para o advento des-
sa crença foi que “entre os anos de 1525 e 1851, mais de cinco mi-
lhões de africanos foram trazidos para o Brasil na condição de escravos”
(PRANDI, 2000, p.52).
Foi utilizado pelos negros como forma de criarem uma nova
comunidade baseada na sociedade que tinham antes de serem captura-
dos na África, por isso o estudo dessa religião “nos possibilita compre-
ender esses grupos como construtores e não copiadores de uma tradi-
ção europeia ou simplesmente preservacionistas das tradições africanas”
(PINHEIRO, 2008, p.2). Criaram sua própria nação em território bra-
sileiro, segundo a Prof.ª M.ª Érika do Nascimento Pinheiro (2009, p.6)
o termo “nação” significa práticas religiosas diferentes, mas que dialo-
gam com a sociedade na qual estão inseridas. Dessa forma, não impor-
tava se os negros que estavam presos juntos eram de uma mesma tribo,
por meio da interação entre as etnias criaram uma religião que abrangia
as crenças de outros povos para assim firmarem uma nova família.
No Novo Mundo no qual viviam, o conceito de “família” e “na-
ção” foram importantes e por isso incorporados ao momento de inicia-
ção no candomblé, uma vez que os negros enxergavam a religião como:

“... o local onde novas formas de sobrevivência são reinventadas.


Mas não deixam de dialogar com a sociedade, pois estão integradas
a ela. Foi uma forma de se constituir identidades no cotidiano. Foi a
maneira encontrada por diferentes etnias africanas de transmitirem
sua cultura. Essa transmissão aos mais novos foi sendo realizada na
forma de segredo”. (PINHEIRO, 2009, p.7)

A partir dessas informações, pode-se estudar os fundamentos do


candomblé por meio de duas visões: a primeira, realizar uma análise dos:

“... seus signos, forma e consumo de bens materiais e simbólicos,


como um complexo cultural formado por um conjunto de valores

476 Histórias, narrativas e religiões


que, inseridos num novo contexto, são reelaborados, originando
formas simbólicas próprias, pelas quais seus seguidores desenvol-
vem e transmitem seus saberes e suas atitudes em relação à vida”.
(RODRIGUES, 2010, p.108)

E a segunda, que aborda o sincretismo existente nessa religião


e os elementos que são possíveis destacar:

“... fusão de crenças, justaposição de exterioridades de ideias, asso-


ciação, equivalência de divindades, ilusão de catequese, adaptação,
reinterpretação, pureza africana, manifestações de contracultura (em
oposição à ideia de pureza africana) ”. (RODRIGUES, 2010, p.107)

Com a junção dessas duas características, forma-se um dos


princípios mais importantes do candomblé e a forma com que ele deve
ser executado em comunidade e, segundo o Prof. Dr. José Reginaldo
Prandi (2004, p.224), por essa crença pregar a interação na vida coti-
diana, os negros não deviam reprimir ou esconder os sentimentos e os
modos de agir, dessa maneira poderiam ser o que quisessem e resistir à
conjuntura na qual se encontravam.
Para se reunir, os negros criaram os terreiros, locais para re-
alização dos cultos para seus deuses. De acordo com Couceiro (2006,
p.252), havia diferenciação entre os terreiros presentes na área urbana e
na zona rural, nas cidades era mais comum o culto à apenas uma divin-
dade, enquanto que no campo, a diversidade estava presente.
A estrutura foi baseada nas “lembranças das sociedades tradi-
cionais que a memória foi buscar seus elementos para refundar, no Novo
Mundo, as antigas organizações sociais” (PINHEIRO, 2009, p.6), ou
seja, a arcabouço familiar Iorubá na África, serviu de base para criação
dos terreiros no Brasil. Para complementar, podemos ler o seguinte ex-
certo sobre a estruturação dos terreiros e da comunidade:

“Os Iorubás, em África, se organizavam em famílias extensas, que


eram a base da organização social. Viviam em habitações coletivas
patrilineares onde o Orixá cultuado de forma principal era o do
chefe da família, o pai. O Orixá da linhagem da mãe era cultuado
de forma secundária. No Novo Mundo houve uma reinterpretação
Histórias, narrativas e religiões 477
dessa organização familiar. O chefe do culto, pai ou mãe-de-santo
substituiu o chefe da família tradicional e o seu Orixá passou a ser
o principal da comunidade e uma nova situação foi elaborada, cada
integrante passou a ter um Orixá pessoal e suas ações passaram a ser
medidas, não a partir de suas condutas na sociedade, mas em relação
à fidelidade tanto ao Orixá como à comunidade. A idade passou a
ser medida pelo tempo de iniciação e não mais pelo de nascimento”.
(PINHEIRO, 2008, p.6)

Dessa forma, por estar baseado em estruturas familiares, o can-


domblé considera muito a questão da ancestralidade, porque, de acordo
com Rodrigues (2010, p.109), era uma saída que utilizaram para pre-
servar o segredo e o acesso restrito aos cultos. Através desse princípio, a
alteração do significado dos signos africanos no território brasileiro para
integrar a diversidade de etnias e manter a religião na comunidade negra
não “desvincula religião, política e economia, pois seu sistema cultural é
inteiramente baseado na prática e na experiência, não no conceito [...]
no corpo e não na mente”. (RODRIGUES, 2010, p.109)
Além desse vínculo com os ancestrais, havia também a ligação
com o território, o qual Pinheiro (2009, p.4) define como “o ser humano
se relaciona com o espaço, com o real, na busca de identidade”, por isso
os praticantes do candomblé passam a ser diferenciados pelos terreiros
que frequentam. Com isso, percebe-se que “o culto aos Orixás ganha a
cidade assim como a cidade penetra no terreiro” (PINHEIRO, 2009,
p.4), uma vez que a comunidade negra presente no candomblé passa
a se integrar cada vez mais ao cotidiano dos negros se tornando “uma
expressão de identidade religiosa, uma referência para escravos e libertos
ávidos por autonomia cultural e religiosa”. (PINHEIRO, 2009, p.3).
O ato de “resistência” não foi um movimento direto que mo-
bilizou os negros para apenas esse objetivo, justamente o oposto. Ao se
organizarem em comunidade e criarem um novo conceito de nação com
a mescla das variadas culturas, os negros resistiram aos diversos meios
de repressão que sofriam juntos, ou seja, a estruturação do candomblé
como religião com o princípio de unificar as etnias, auxiliou na constru-
ção da unidade familiar afro-brasileira da época.

478 Histórias, narrativas e religiões


Considerações Finais

O que se procurou aqui foi investigar o papel desempenhado


pela culinária baiana dentro do candomblé e analisar de que forma es-
sas duas manifestações culturais se encaixaram no papel de resistência
da população escrava de Salvador no século XIX, através do jornal “O
Alabama”, durante o ano de 1864.
As práticas culinárias ainda se mantêm firmemente ligadas aos
cultos de candomblé, no qual diversos aspectos da refeição ganham sig-
nificados, como o sabor, ingredientes, aromas e cores. Embora tocadas
pelo hibridismo cultural, estas tradições culinárias dentro do candomblé
se configuraram em importantes bastiões de resistência daquilo que vi-
ria a ser denominado de cultura afro-brasileira.
Na análise do jornal “O Alabama”, é possível interpretar que as
comidas ritualísticas não eram alvos de repressão contumaz como ou-
tros objetos e práticas do candomblé, embora em nossa pesquisa biblio-
gráfica, não tenhamos encontrado produções que corroborassem com
tal afirmação. Porém, é concreto que tal culinária ritualística permanece
como parte do candomblé e alcançou mesas em que ela não consiste em
simbologia alguma. Além disso, o preconceito de que é acometido os di-
versos aspectos do candomblé (ritos, mitos, entre outros) aparentemente
não atinge a culinária. O estômago parece falar mais alto nessas horas.
No que remete ao movimento de resistência perpetuado pelo
candomblé, verificamos que ele só foi possível devido à alta repressão
que os negros sofriam pelos escravocratas quando os mesmos reprimiam
os cultos às divindades africanas e obrigavam os escravos a cultuar as
figuras católicas, de acordo com Falcão (2016, p.102). Para sobreviverem
a essa conjuntura, se reuniram em comunidades formadas pelas mais
diversas etnias e que mais tarde originaram os terreiros. A mescla de
culturas foi essencial para a construção das bases do candomblé e sua
característica de se relacionar com a sociedade foi de suma importância
para que essa religião percorresse o tempo até os dias atuais.

Histórias, narrativas e religiões 479


Referências

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Histórias, narrativas e religiões 481


Ao “Devoto Leitor”: a literatura
religiosa de Fr. Nicolau Dias

André Rocha Cordeiro (UEM/CAPES)

Resumo: A presente comunicação objetiva tecer considerações acerca


das obras literárias religiosas, produzidas durante o século XVI, de
autoria do frade dominicano Nicolau Dias (1520?-1596). Escritas du-
rante o movimento de renovação espiritual da Reforma Católica, pe-
ríodo este na qual a instituição reafirma o papel dos santos canônicos
enquanto intercessores de Deus junto à humanidade, nota-se em Fr.
Nicolau Dias a construção de um discurso em defesa da fé lusitana na
Virgem Maria, no Bom Jesus e na Santa Princesa Joana. Em nossa
análise as fontes a serem utilizadas serão as primeiras edições dos três
títulos de obras, do referido frade dominicano, que sobreviveram até
nossos dias, sendo: Livro do Rosário de Nossa Senhora (1573), Tratado
da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (1580) e Vida da Sereníssima
Princesa Dona Joana (1585). Metodologicamente, partimos das dis-
cussões realizadas por Roger Chartier (1995) e André Cellard (2008)
no que concerne as regras que conduzem a produção escriturária. Os
conceitos de “lugar social” e “formalidade das práticas”, de Michel de
Certeau (1982), bem como a categoria de “linguagem autorizada”, de
Pierre Bourdieu (1998), nos auxiliam teoricamente nas discussões e
nas reflexões a serem construídas.

482 Histórias, narrativas e religiões


À margem de um projeto em construção:
Infiéis, gentis e naturais no Rio da Prata
colonial

Éverton Dalcin (PUCRS / CNPq)

Resumo: Distintos discursos acerca dos indígenas foram produzidos


por religiosos, autoridades civis e colonos que habitavam a região do Rio
da Prata colonial no período da fundação dos primeiros centros urbanos
e das primeiras missões religiosas (1536-1620). Conforme suas precon-
cepções e objetivos, missionários e administradores substantivaram os
grupos nativos com termos recorrentes como naturais, infiéis e gentis
para homogeneizar e classificar grupos indígenas que ainda não haviam
sido convertidos ao catolicismo pelos missionários, tampouco absorvi-
dos pelo projeto colonizador das autoridades metropolitanas. O presen-
te estudo busca, a partir da identificação explicita ou implícita destes
termos, compreender os objetivos que levaram os sujeitos históricos a
descrever destas formas os grupos indígenas que estavam à margem do
projeto colonial. Ao identificar tais objetivos, é possível compreender
em que circunstancias tais termos são acionados pelos relatores, civis
e religiosos, para descrever os grupos nativos com distintas denomina-
ções e suas possíveis intenções. Neste estudo, utilizaremos a segunda
(1610) e a terceira (1611) cartas ânuas da Província do Paraguai, por
apresentarem uma rica descrição dos grupos indígenas por meio de rela-
tos compilados pelo Padre Diego de Torres. Utilizaremos, ainda, alguns
documentos civis redigidos pelo governador da região, Hernando Arias
de Saavedra (1592-1615), que faz uso dos termos com objetivos distin-
tos dos religiosos.

Histórias, narrativas e religiões 483


O livro de Alborayque: uma sátira contra
os conversos (Castela, 1465)

Kellen Jacobsen Follador (UFES)

Resumo: O livro de Alborayque é uma sátira literária escrita em meio


aos conflitos entre cristãos-velhos e cristãos de origem judaica, de-
nominados conversos, na sociedade castelhana de fins do século XV.
Composta no anonimato, a obra critica os benefícios políticos e sociais
alcançados pelos cristãos de origem judaica, assim como os costumes e
as práticas religiosas imputadas a eles. Valendo-se de metáforas e sátiras
que buscavam ridicularizar os cristãos de origem judaica, o texto expõe
um olhar discriminatório e a representação que uma parcela dos cris-
tãos-velhos possuía dos conversos.

484 Histórias, narrativas e religiões


Religião e Modernização no Japão
Meiji (1868-1912) nas Obras de Percival
Lowell e Lafcadio Hearn

Edelson Geraldo Gonçalves (Doutorado – UFES)

Resumo: A presente comunicação tem como objetivo refletir sobre a re-


lação entre religiosidade e modernização no Japão da Era Meiji (1868-
1912) a partir das obras de dois autores que foram testemunhas desse
período, Percival Lowell e Lafcadio Hearn, mais precisamente a partir
dos livros The Soul of the Far East (1888) de Lowell e Japan: An Attempt
at Interpretation (1904) de Hearn.

Palavras-chave: Percival Lowell, Lafcadio Hearn, Orientalismo,


Modernização, Religião.

Introdução

Percival Lowell e Lafcadio Hearn foram dois orientalistas que


pesquisaram sobre a cultura japonesa na virada do século XIX para o
XX, tento produzido no período uma bibliografia influente sobre o tema.
Neste texto nos concentraremos nos principais trabalhos analí-
ticos de cada um deles, ou seja, o livro The Soul of the Far East publicado
por Lowell em 1888 e Japan: An Attempt at Interpretation de Hearn,
publicado postumamente em 1904.
O aspecto no qual nos concentraremos nestas duas obras será
o da relação entre a religiosidade japonesa e a modernização do país que
estava sendo levada a cabo naquele período.

Histórias, narrativas e religiões 485


Dois Orientalistas no Japão

Tanto Lowell quanto Hearn chegaram ao Japão em função dos


processos de modernização que ocorriam no Extremo Oriente no final
do século XIX.
O norte-americano Percival Lowell (1855-1916), mais conhe-
cido por seu trabalho como astrônomo (ou mais precisamente por sua
importância na descoberta do planeta Plutão e suas especulações sobre a
existência de canais hídricos em Marte, e a consequente existência de vida
no planeta), chegou a Ásia primeiramente pela Coréia, cujo governo esta-
belecia as primeiras relações diplomáticas com os EUA, e Lowell era pre-
cisamente um dos representantes americanos no país da manhã tranquila.
Com isso, além de tratar de seus afazeres diplomáticos, Lowell
também se concentrou no estudo das culturas do Extremo Oriente, en-
tre as quais o Japão.
Por sua vez o escritor e jornalista greco-irlandês Lafcadio
Hearn (1850-1904) foi enviado ao Japão em 1890, como corresponden-
te estrangeiro da revista nova-iorquina Harper’s Magazine, que decidiu
manter um representante no Japão após esse país dar mostras definitivas
de sua modernização, com sua industrialização, forças armadas moder-
nas e principalmente sua constituição de 1889.
Hearn já tinha fama nos EUA como um jornalista especiali-
zado na abordagem de culturas exóticas, e por isso foi escolhido como
correspondente no Japão, mas chegando ao país, em razão de desacordos
contratuais rompeu com a revista, e ficou no país pelos próximos 14
anos de sua vida, onde além de conduzir suas pesquisas etnográficas,
também trabalhou como professor e jornalista, tendo também estabele-
cido família e adquirido a cidadania japonesa.
Lowell e Hearn tiveram uma relação tanto intelectual quanto
pessoal. A relação intelectual se deu pela influência do livro The Soul of
the Far East de Lowell sobre Hearn, que o leu em 1888 e teve essa leitura
como marco que intensificou seu interesse pela cultura japonesa, e cer-
tamente influenciou sua aceitação de um trabalho no Japão (GOULD,
1908, p. 116). A relação pessoal por sua vez deu-se no Japão na década
486 Histórias, narrativas e religiões
de 1890, quando se tornaram amigos por serem ambos membros do
“círculo de Fenollosa”, ou seja, um grupo de amigos intelectuais (oci-
dentais e japoneses) que se reuniam na residência japonesa do também
orientalista Ernst Fenollosa (1853-1908) (BROOKS, 1962).
Por orientalismo aqui nos referimos basicamente a um termo
que faz “referência a quem tenha feito um estudo especial das línguas e
culturas asiáticas” (e do norte da África) (IRWIN, 2008, p. 12), e apesar
da amizade e admiração mútua Lowell e Hearn eram, no entanto, orien-
talistas de tipos totalmente distintos.
Uma definição de orientalismo que se tornou clássica foi po-
pularizada por Edward Said no livro Orientalismo publicado em 1978,
segundo a qual o orientalismo é uma “instituição autorizada a lidar
como Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, des-
crevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o
Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente” (SAID, 2008, p. 29).
Por outro lado, se Said está correto em afirmar que produções
orientalistas podem ser instrumentos a serviço do imperialismo, por outro
também existem orientalistas movidos meramente “pelo amor ao saber”,
como os define Robert Irwin no título de seu livro sobre o tema, e mais do
que isso, por simpatias aos orientais em detrimento do Ocidente.
Lowell era um orientalista que se alinhava com a descrição de
Said, enquanto Hearn pertencia ao grupo dos orientalistas dos quais
refere-se Irwin.
Esta distinção de visões sobre o Oriente também teria peso
nas opiniões desses dois autores quanto aos rumos do processo de mo-
dernização do Japão que estava em andamento, processo que de meados
da década de 1880 e mais notadamente na década de 1890, virava-se
de uma primeira fase de tendência liberal ou “ocidentalizante” iniciada
em 1868 com a Restauração Meiji para um novo projeto, visando uma
modernização conservadora, fortemente nacionalista e valorizadora da
cultura nativa (BURUMA, 2003, p. 34).
No final deste texto voltaremos a questão das inclinações de
Lowell e Hearn e de seus posicionamentos sobre a modernização japo-

Histórias, narrativas e religiões 487


nesa, e para isso antes faremos a análise dos pontos relevantes em suas
respectivas obras para essa discussão, ou seja, nos livros The Soul of the
Far East e Japan: An Attempt at Interpretation.
Começaremos com a análise do conteúdo do livro de Lowell.

Soul of the Far East

Este livro não tinha formalmente o Japão como tema exclusivo,


pretendendo ser um tratado sobre o Oriente em geral, mas que em suas
abordagens tendia a privilegiar a análise da cultura japonesa.
Em The Soul of the Far East, Lowell faz uma abordagem evolu-
cionista da cultura do Extremo Oriente, usando como argumento base
uma dicotomia entre a cultura oriental e ocidental, fundamentada no ar-
gumento de que no Ocidente a individualidade é uma virtude, enquanto
no Oriente reina a impersonalidade.
Com base nesse argumento central, Lowell afirma que o ca-
minho para a evolução civilizacional é traçado através da progressão da
noção de si, algo dominante no Ocidente, e que por isso seria uma cul-
tura mais avançada, e em déficit no Oriente, que por isso estaria civili-
zacionalmente atrasado.
Para Lowell os orientais não seriam inferiores, mas evoluti-
vamente atrasados, com plenas condições de alcançarem o Ocidente,
desde que investissem na promoção do individualismo, uma vez que a
individualidade seria fundamental para o desenvolvimento mental e da
imaginação (LOWELL, 1888, p. 213), que por sua vez seria o motor da
inovação (LOWELL, 1888, p. 208) e logo do avanço civilizacional.
Apesar do livro de Lowell abordar a cultura do Extremo
Oriente como um todo, o autor dá especial atenção à cultura japonesa,
por considera-la um exemplo extremo das tendências da região, justa-
mente pelo Japão ficar ao leste da China e da Coréia, pois no argumen-
to de Lowell (1888, p. 15) “a noção de si cresce mais intensamente a
medida que seguimos na trilha do sol poente e cai firmemente quando
488 Histórias, narrativas e religiões
avançamos em direção à aurora”. Em outras palavras quanto mais para o
Ocidente está uma cultura, mais individualista ela é, e por sua vez quan-
do mais para o Oriente está outra, menos individualista ela se mostra.
Para Lowell o Budismo teria protagonismo na formação da cul-
tura impersonalista do leste da Ásia, pois enquanto o Cristianismo te-
ria um efeito individualizante no Ocidente (LOWELL, 1888, p. 184), o
Budismo teria como objetivo a aniquilação do ego, considerando a indivi-
dualidade como ilusão e vaidade, tendo como objetivo alcançar o Nirvana,
o seja, a unidade com o universo (LOWELL, 1888, p. 16, 187, 189).
O resultado dessa visão de mundo, que consideraria o indivi-
dualismo como algo negativo, seria a razão pela qual os japoneses teriam
aceitado a cultura material do Ocidente, mas rejeitado as suas crenças
(LOWELL, 1888, p. 189). Dessa forma o Japão teria atingido a fase
adulta mantendo a mente de sua infância (LOWELL, 1888, p. 12).
A forma pela qual o Japão teria chegado a essa situação se-
gundo Lowell seria em função de duas características das sociedades do
Extremo Oriente: o “Espírito de Imitação” e o elevado talento para as
artes, mas pouca inclinação para s ciências.
De acordo com o autor o Espírito de Imitação seria o motor do
progresso nas sociedades do Extremo Oriente202, assim o Japão teria se
modernizado pela imitação do Ocidente (LOWELL, 1888, p. 10-11),
como fez no passado com relação à Coréia e a China.
Contudo, por sua fraca individualidade as pessoas do Extremo
Oriente teriam um déficit do tipo de imaginação necessária ao desenvol-
vimento científico e mesmo a arte que desenvolvem seria “observativa” e
não “criativa” (LOWELL, 1888, p. 216).
Na opinião de Lowell (1888, p. 208) relacionamos “rapidamen-
te a imaginação com a arte, mas não com a ciência, quando na verdade
a arte demanda menos imaginação que a ciência”. Dessa forma uma era
prática não é por isso menos imaginativa, sendo que para Lowell (1888,
p. 211) o período mais imaginativo da história seria justamente a sua
época, o século XIX.

202  Essa característica existiria desde a antiguidade. Dessa forma em seus primórdios a China
teria se civilizado através da imitação da Índia, a Coréia a partir da imitação da China e o Japão
a partir da imitação da Coréia (LOWELL, 1888, p. 12).
Histórias, narrativas e religiões 489
Dentro dessa lógica por sua oriental falta de imaginação os
japoneses poderiam imitar o Ocidente, mas não poderiam inovar, pois
segundo Lowell (1888, p. 113) o pensamento científico simplesmente
não entraria na cabeça dos orientais em seu presente estado evolutivo,
para “todo o Extremo Oriente a ciência é uma estranha203” (LOWELL,
1888, p. 111).
Com isso Lowell (1888, p. 226) conclui seu livro com o seguin-
te parágrafo:

Se estes povos continuarem em seu velho curso, a sua carreira terrena


estará encerrada. Tão certo quanto a manhã torna-se tarde, estão
destinadas essas raças do Extremo Oriente, caso se mantenham inal-
teradas, a desaparecer diante do avanço das nações do Ocidente. Eles
desaparecerão da face da terra e deixarão o nosso planeta na eventual
posse dos habitantes de onde o dia declina. A menos que suas recém
importadas ideias realmente criem raízes, será do mundo todo que
japoneses e coreanos, bem como os chineses, inevitavelmente, serão
excluídos. Seu Nirvana já está sendo realizado; a Ásia extremo-o-
riental já está sendo envolvida em sua mortalha, o sudário daqueles
que tiveram um dia que não passou da aurora, como se estivesse se
cumprindo a profecia que está nos nomes que deram a seus lares, a
Terra do Sol Nascente, e o País da Manhã Tranquila.

Japan: An Attempt at Interpretation

O livro Japan: An Attempt at Interpretation, foi o resultado da


síntese final dos conhecimentos de Hearn sobre a cultura japonesa, tema
no qual ele ganhava fama de ser uma autoridade, na Europa e nos EUA.
O livro é em sua composição muito semelhante às obras da
antropologia evolucionista que estava então em desenvolvimento, tendo
os tópicos do parentesco e da religião como suas principais áreas de
interesse (CASTRO, 2005, p. 8). Essa abordagem antropológica evo-

203  Segundo Lowell (1888, p. 111) mesmo as invenções chinesas foram feitas como arte não como
ciência, e por isso a China “queimou sua pólvora em fogos de artifício, não em armas de fogo.”
490 Histórias, narrativas e religiões
lucionista deve-se a forte inspiração que Hearn tinha nos trabalhos de
Herbert Spencer, seu grande ídolo intelectual, e um dos grandes refe-
renciais teóricos de seu último livro e; como destaca Celso Castro (2005,
p. 8); um autor que embora não fosse institucionalmente pertencente ao
campo antropológico, também se identificava com a abordagem evolu-
cionista da antropologia.
Outra grande influência na composição dessa obra é o livro
Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, obra em que Hearn (1910, p.
111) afirma a seu amigo Chamberlain ter encontrado “curiosos parale-
los entre a antiga família Indo-Ariana, culto doméstico e crenças com
aqueles do Japão”. E que “Em alguns tópicos o paralelo é magnífico”.
O trabalho de Hearn combinando teorias de Spencer e
Coulanges se dá de forma mais específica dentro de uma perspectiva
evolucionista, na qual o autor acreditava que a civilização japonesa es-
taria em um estágio evolutivo semelhante ao das sociedades analisa-
das por Fustel de Coulanges em seu estudo (MURRAY, 2004, p. 245).
Nesse caso o Japão estaria em meio ao processo evolutivo das revoluções
sociais descritas por Coulanges, sendo que um processo social tão seme-
lhante entre populações tão díspares no tempo e no espaço comprovaria
que “a lei da evolução sociológica admite apenas exceções minoritárias”
(HEARN, 1906, p. 67).
Contudo mais do que os paralelos culturais, a obra de Coulanges
influenciou a própria forma de Japan: An Attempt at Interpretation, tan-
to que os nove primeiros capítulos da obra de Hearn tratam quase li-
teralmente dos mesmos temas que os quatorze primeiros capítulos do
trabalho do historiador francês, mais especificamente família, crenças e
culto doméstico. Nos capítulos posteriores os dois livros se diferenciam,
tanto pelas óbvias diferenças nos processos históricos greco-romano e
japonês, quanto pelo próprio recorte temporal, restrito a antiguidade no
caso de Coulanges, e que no trabalho de Hearn abarca desde a antigui-
dade até o início do século XX.
O ponto mais notável desse livro é o fato do autor assumir o
Shinto como elemento central em sua interpretação da cultura japonesa,
escrevendo o seguinte parágrafo:

Histórias, narrativas e religiões 491


A história do Japão é de fato a história de sua religião. Nenhum
único fato é em sua conexão mais significante do que o fato de que o
antigo termo japonês para governo – matsuri-goto – signifique lite-
ralmente “assuntos de adoração”. Posteriormente descobriremos que
não apenas o governo, mas quase tudo na sociedade japonesa, deriva
diretamente ou indiretamente de seu culto aos ancestrais, e em subs-
tância são os mortos ao invés dos vivos que governam a nação, e são
os artífices de seus destinos (HEARN, 1906, p. 38).

Com base nesse raciocínio Hearn denomina o Japão como


“O Reino dos Mortos” (The Rule of the Dead), argumentando que “todo
o sistema ético do Extremo Oriente [e não apenas do Japão] deri-
va da religião do lar [o culto aos ancestrais]” (HEARN, 1906, p. 57).
Acrescentando ainda que “desse culto evoluíram todas as ideias de dever
para com os vivos, assim como para com os mortos, o sentimento de
reverência, o sentimento de lealdade, o espírito de auto sacrifício e o
espírito do patriotismo” (HEARN, 1906, p. 57)
Hearn (1906, p. 65) acrescenta ainda que sob esse culto se de-
senvolveram “a organização da família, [e] as leis que prezam pela pro-
priedade e sucessão” mais do que isso, a “família em si é uma religião,
e a casa ancestral um templo” (HEARN, 1906, p. 56) sendo que o laço
familiar “não era um laço de afeição, mas um laço de religião ao qual a
afeição natural está subordinada” (HEARN, 1906, p. 67). Em outras
palavras a própria existência das famílias japonesas seria subordinada ao
culto ancestral, as famílias se perpetuavam pelo dever de manter o culto
a seus ancestrais (HEARN, 1906, p. 68).
Sob a interpretação evolucionista que Hearn fazia da história,
o culto aos ancestrais podia se desenvolver e evoluir de um primeiro
estágio (familiar), e após passar por um segundo estágio tribal (culto aos
ancestrais importantes da comunidade), chegar ao terceiro estágio, o cul-
to nacional (culto aos espíritos ancestrais dos governantes) (HEARN,
1906, p. 41).
Hearn (1906, p. 122) comenta esse terceiro estágio com as se-
guintes palavras: “[...] a evolução do culto nacional – a forma na qual o
Shinto se tornou a religião do Estado – parece ter sido japonesa, no es-
trito sentido da palavra. Esse culto é a adoração dos deuses dos quais os
imperadores alegam descender, – a adoração dos ancestrais “imperiais””.
492 Histórias, narrativas e religiões
Esses ancestrais imperiais seriam em essência como outras di-
vindades do culto ancestral familiar e comunitário, patriarcas do passado
que foram deificados (HEARN, 1906, p. 33).
Lealdade, heroísmo, espírito de sacrifício e patriotismo são as
virtudes éticas que Hearn identifica no Shinto; e nas palavras do autor:

[...] a ética do Shinto está toda inclusa, na doutrina da obediência


irrestrita aos costumes, originada, em sua maior parte, no culto fami-
liar. A ética não é diferente da religião, a religião não é diferente do
governo, e a própria palavra governo significa “assuntos de religião”.
Todas as cerimônias governamentais são precedidas por orações e
sacrifícios, e do grau mais alto da sociedade até o mais baixo, cada
pessoa está sujeita a lei da tradição. Obedecer é piedoso, desobedecer
é ímpio, e a lei da obediência é compelida em cada indivíduo pela
vontade da comunidade à qual ele pertence. A antiga moralidade
consiste na mínima observância das regras de conduta da casa, da
comunidade e da mais elevada autoridade.

Mas essas regras de comportamento na maior parte das vezes re-


presentam o efeito da experiência social; e dificilmente será possível
obedecê-las fielmente e ainda assim permanecer uma má pessoa.
Elas ordenam reverência ao oculto, respeito à autoridade, afeição aos
pais, ternura para com a esposa e os filhos, gentileza com os vizinhos,
gentileza com os dependentes, diligência e pontualidade no traba-
lho, frugalidade e limpeza nos hábitos. Embora à primeira vista a
moralidade não signifique mais que obediência à tradição, a tradição
em si gradualmente se identifica com a moralidade (HEARN, 1906,
p. 175-176).

Dessa forma, no entendimento de Hearn, toda a moralidade


japonesa deriva essencialmente da lealdade, que praticada primeiramen-
te no seio da família (no culto familiar), progrediria evolutivamente para
a lealdade nacional (no culto nacional), e desse sentimento de lealda-
de seriam derivados os impulsos de patriotismo, heroísmo e sacrifício.
Virtudes consideradas essenciais no Japão Imperial.
Hearn (1906, p. 516) acreditava que um elemento central para
uma pretensa ocidentalização da cultura japonesa, a cristianização do país,

Histórias, narrativas e religiões 493


seria improvável, pois o Shinto estaria na base de toda a moralidade e orga-
nização social japonesa, portanto substituí-lo seria condenar essas estruturas
ao colapso, tal feito de engenharia social seria imprudente e perigoso.
Pôde-se notar que de uma forma geral a abordagem de Hearn
é simpática a cultura japonesa, não concordando que a plena ocidentali-
zação seja uma possibilidade acreditando ao contrário que a moderniza-
ção japonesa seguirá outro rumo, um caminho independente, sendo que
uma das bases para isso seria justamente sua religião nativa, e os valores
passados por ela.

Conclusão: Duas Interpretações da Modernização

O sociólogo Shmuel Noah Eisenstadt (2000, p. 1) chama de


“programa cultural de modernidade” a perspectiva dominante na segun-
da metade do século XIX, segundo a qual a ocidentalização seria o único
caminho para a modernização, perspectiva que contrapõe a seu próprio
conceito de múltiplas modernidades, ou seja, a ideia de que a moderni-
dade é alcançável por vários caminhos (EISENSTADT, 2000).
É justamente nestas duas perspectivas de modernização, a da
ocidentalização como único caminho e a possiblidade de caminhos al-
ternativos, que Lowell e Hearn diferem.
Enquanto Lowell, levando em consideração as influências bu-
distas afirma que se os povos extremo-orientais “continuarem em seu
velho curso, a sua carreira terrena estará encerrada” a não ser que “suas
recém importadas ideias [ocidentais] realmente criem raízes”, Hearn,
dando relevância às influências xintoístas vê elementos positivos herda-
dos dessas para a modernidade japonesa: lealdade, patriotismo, heroís-
mo e sacrifício.
Em outras palavras partindo de diferentes análises do papel de
duas diferentes religiões Lowell e Hearn também desenvolvem pon-
tos de vista distintos sobre o Japão que conheceram, sendo que para
o primeiro os traços culturais criados pela influência de uma religião
494 Histórias, narrativas e religiões
oriental (Budismo) seriam negativos e inviabilizariam a modernização,
plenamente conseguida apenas pela ocidentalização, ao passo que para
o segundo outra religião oriental (Shinto) seria uma valiosa fonte de
coesão nacional.

Bibliografia

BROOKS, Wick Van. Fenollosa and His Circle: With Other Essays in Biography. Nova York:
E. P Dutton & Co, 1962.

BURUMA, Ian. Inventing Japan: 1853-1964. Nova York: Modern Library, 2003.

CASTRO, Celso. Apresentação. In. _______ (org). Evolucionismo Cultural: Textos de Mor-
gan, Tylor e Frazer. p. 7-40. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

EISENSTADT, S. N. Multiple Modernities. Daedalus, Cambridge, VOL 129, Nº 1, 2000, p.


1-29.

GOULD, George M. Concerning Lafcadio Hearn. Filadélfia: George W. Jacobs & Company,
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HEARN, Lafcadio. Japan: An Attempt at Interpretation. Nova York: Grosset & Dunlap, 1906.

__________. June 10, 1893. In: BISLAND, Elizabeth. The Japanese Letters of Lafcadio
Hearn. p. 109-111. Boston: Houghton Mifflin and Company, 1910.

IRWIN, Robert. Pelo Amor ao Saber: Os Orientalistas e seus Inimigos. Rio de Janeiro e São
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LOWELL, Percival. The Soul of The Far East. Boston e Nova York: Houghton, Mifflin and
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MURRAY, Paul. Lafcadio Hearn’s Interpretation of Japan. In. HIRAKAWA, Sukehiro (org).
Rediscovering Lafcadio Hearn: Japanese Legends, Life and Culture. p. 242-258. Folkestone:
Global Oriental, 2004.

SAID, Edward. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia de
Bolso, 2008.

Histórias, narrativas e religiões 495


O jornal Imprensa Evangélica e o início
do sistema literário protestante no Brasil
dos Oitocentos

João Leonel (Mackenzie/CNPq)

Resumo: Esta comunicação parte da pergunta: como se dá o surgi-


mento da literatura protestante no Brasil? Para respondê-la, propõe a
análise do jornal Imprensa Evangelica, primeiro periódico protestante
brasileiro (1864-1892). Além do aspecto cronológico, a escolha do jor-
nal se justifica por haver nele literatura própria do protestantismo que,
diferindo daquela presente nos demais periódicos comerciais do perío-
do, colabora com a identificação da amplitude de temas constantes nos
jornais brasileiros do século XIX. Nesse sentido, faz-se o reconhecimen-
to da presença de gêneros literários variados que visavam a atender os
poucos convertidos ao protestantismo, como também atingir de forma
mais ampla os leitores católicos. Os autores dos textos, ainda que anô-
nimos nos primeiros números do jornal, por serem norte-americanos e
europeus em sua maioria, permitem reconhecer, no contexto particular
do protestantismo, a circulação atlântica e transatlântica de impressos.
Há no jornal igualmente anúncios de venda de livros, indicações de
pontos de venda de literatura religiosa que se espalham pelo território
nacional e notícias do surgimento de outros periódicos protestantes no
país. Dessa forma, temos elementos que admitem propor que o jornal
Imprensa Evangélica se transforma no eixo a partir do qual surge o sis-
tema literário protestante brasileiro. Para o desenvolvimento da análise
são utilizados os referenciais teóricos da História do Livro e da Leitura
e elementos da História do Protestantismo brasileiro

496 Histórias, narrativas e religiões


O Monastério de San Lorenzo el Real
del Escorial como local de apresentação
da defesa da fé pela monarquia
espanhola nas obras de José de Siguenza
(1544 – 1606) e Luis Cabrera de Córdoba
(1559 – 1623)

Camila Cristina Souza Lima (Doutorado – USP)

Resumo: O Monastério de San Lorenzo el Real de El Escorial foi edi-


ficado sob iniciativa do monarca Felipe II de Espanha (1556-1598) para
tornar-se o panteão dos Habsburgos espanhóis. Com sua construção
pretendia-se criar um local de perpetuação da memória dessa monar-
quia e de sua imagem de defensora da fé católica durante os anos de
reforma protestante e contra os avanços turcos. Dentre os autores que
escreveram sobre a construção do Monastério do Escorial apresentare-
mos dois observadores privilegiados desses eventos: José de Siguenza e
Luis Cabrera de Córdoba. Os dois autores viveram no Escorial durante
o governo de Felipe II. Siguenza foi prior desse monastério e historia-
dor da Ordem de São Jerónimo, religiosos que ocupavam esse edifício
com a função de guardar os corpos e rezar pelas almas da família real
que descansaria ali. Cabrera de Córdoba era filho do nobre responsável
pela organização do trabalho e pagamento dos construtores desse local
e tornou-se historiador do reinado de Felipe II após a morte do monar-
ca. Ambos defenderam o caráter sagrado dessa fábrica, sua função de
glorificar a Deus pelos benefícios recebidos pela monarquia espanhola
em sua defesa da fé cristã. A descrição da construção espiritual desse
monastério tem mais destaque em seus escritos do que sua construção
material. Dessa forma, procuramos demonstrar qual imagem da monar-
quia se desejava perpetuar com tal edificação, escolhendo autores que

Histórias, narrativas e religiões 497


presenciaram sua construção e participaram das primeiras elaborações
do discurso sobre imagem da monarquia apresentada neste edifício.

Palavras-chave: Espanha, Idade Moderna, Escorial, Monarquia,


Catolicismo.

Introdução

O Monastério de San Lorenzo el Real del Escorial foi edifica-


do sob iniciativa de Felipe II, rei de Castela de 1554 a 1598. Essa fábrica
tornou-se um importante símbolo da fé defendida pelo monarca, sobre-
tudo após a incorporação de Portugal em sua Monarquia Hispânica. O
complexo era constituído por um monastério entregue à Ordem de São
Jerónimo, uma basílica, um pequeno palácio real, uma biblioteca, um
colégio, uma biblioteca real e fora edificado com o objetivo de ser o pan-
teão dinástico dos Habsburgos espanhóis, cujos túmulos se realizariam
abaixo do altar-mor da basílica. Ainda hoje é o local de sepultamento da
família real espanhola.
O Monastério do Escorial, como é mais conhecido, era um
dos locais de refúgio da família real espanhola na Idade Moderna, mais
especificamente o palácio em que viviam durante a Semana Santa e
até o outono. Os aposentos reais se caracterizaram por um conjunto de
quartos construídos atrás do altar-mor da basílica, com uma abertura
para que o rei pudesse assistir missas de seus aposentos, sobretudo nos
momentos em que se encontrava com a saúde mais debilitada. Esses
aposentos reais também contavam com uma sala em que se recebiam
alguns visitantes, cujas paredes são decoradas com imagens de batalhas.
O número de pessoas que podia ver a fachada do imponente
monastério era bastante limitado, mais limitado ainda era o conjun-
to daqueles que podia adentrar e conhecer seu interior. Dessa forma, a
imagem da monarquia expressa por esse edifício se difundia através das
notícias escritas e as estampas realizadas pelo arquiteto Juan de Herrera,
498 Histórias, narrativas e religiões
que havia conseguido o privilégio para estampar e imprimir os dese-
nhos que tinha realizado do edifício (muitos deles utilizados durante a
construção), tendo a exclusividade para a impressão e venda das traças
do Escorial em todos os reinos e senhorios de Felipe II (CERVERA
VERA, 1998).
Dentre as notícias escritas sobre o monastério, assunto de que
trataremos especificamente neste texto, dois autores se destacam: José
de Siguenza e Cabrera de Córdoba, ambos imprimindo suas obras após
a morte de Felipe II.
O monarca não tinha permitido que se escrevesse sobre seu
reinado enquanto ainda era senhor da Monarquia Hispânica, o que im-
plicou que muito do que se escrevia e da imagem que se construía de
Felipe II se devia aos escritos estrangeiros, sobretudo daqueles que se
encontravam em guerra com o monarca, gerando a Legenda Negra, uma
interpretação bastante negativa do rei, marcada, sobretudo, pelo fanatis-
mo religioso.
Dentre as razões apresentadas na historiografia para não desejar
que se escrevesse uma história oficial de seu reinado estava em sua aver-
são à vaidade, além do gosto por segredos e dissimulações (PARKER,
1991). No entanto, a partir do século XVII alguns historiadores espa-
nhóis passam a escrever sobre seu reinado, entre eles Siguenza e Cabrera
de Córdoba, ambos tendo conhecido e servido ao monarca. A escrita
sobre o monarca após sua morte toma contornos muito mais elogiosos,
diminuindo o peso da legenda negra (GARCÍA CÁRCEL, 2003).

Os autores

José de Siguenza e Luis Cabrera de Córdoba escreveram sobre


o reinado de Felipe II durante o governo de seu filho, Felipe III, que
foi bastante hesitante em finalizar as obras do panteão real do Escorial.
Ambos foram oradores privilegiados por terem conhecido Felipe II e
participado ativamente de seu reinado.
Histórias, narrativas e religiões 499
O Padre José de Siguenza nasceu em 1544, na cidade de
Siguenza, Guadalajara, filho de um clérigo, Asensio Martínez, e uma
viúva, Francisca Espinosa (ANSEJO PELEGRINA, 1979). Ingressou
na Faculdad de Artes da Universidad de Siguenza em 1561, onde estudou
Lógica e Filosofia, recebendo o grau de bacharel em 1563, mesmo ano
em que iniciou seus estudos em Teologia, que se prolongam até 1566
(DÍAZ DÍAZ, 2001). Neste ano se dirigiu ao Monastério Jerônimo de
Santa María el Parral, onde iniciou sua vida religiosa. Em 1590 transfe-
riu-se definitivamente ao monastério do Escorial. Foi processado pelo
Tribunal do Santo Ofício de Toledo, entre 1592 e 1593, acusado por seus
irmãos de hábito no Escorial e pelo próprio prior, Frei Diego de Yepes.
Foi absolvido de todas as acusações, tendo deixado como legado diver-
sas obras escritas e, supostamente, tendo influenciado algumas soluções
para a ornamentação do palácio, monastério e basílica do Escorial. Foi
elevado a prior da Ordem por duas vezes e faleceu em 1606.
As principais fontes para conhecer a História da Ordem de São
Jerônimo, comunidade escolhida para guardar o panteão real do Escorial
(hoje o monastério é habitado por monges agostinianos), são os escritos
do frei José de Siguenza, entre eles, a “Vida de San Jerónimo” (publi-
cada em Madrid em 1595) e a “Historia de la Orden de San Jerónimo,
cujo terceiro volume se intitula “Fundación del Monasterio del Escorial
por Felipe II”, publicado em 1605. Além dessas obras, escreveu poemas,
“Instrucción de Maestros, Escurelas de Novicios, Arte de profeción re-
ligiosa, y monástica” e “Como vivió y murió Felipe II”. Nessas páginas
trataremos das obras “História primitiva e exacta del Escorial” e “Como
vivió y murió Felipe II”.
Luis Cabrera de Córdoba (1559-1623) também teve grande
proximidade ao monarca Felipe II devido à sua família. Seu avô morreu
na Batalha de San Quintin (primeira vitória do reinado de Felipe II) e
seu pai, Juan Bautista Cabrera de Córdoba passou a viver na corte como
criado da casa real dos Habsburgos desde essa perda. Juan Bautista
Cabrera de Córdoba teve diversos cargos ligados à coroa, servindo ini-
cialmente no palácio de Aranjuez, mas viveu parte considerável de sua
vida no Escorial, se instalando no local desde o inicio da construção do

500 Histórias, narrativas e religiões


mosteiro de San Lorenzo el Real nos albergues no entorno do edifício
que serviam para abrigar os servidores da coroa. Tornou-se o responsá-
vel pelo controle e vigilância da ‘fábrica y obra’ do mosteiro, vivendo ali
desde 1568. Em 1572 recebeu o cargo de Gobierno y Superintendencia de
los bueyes y carretería para a construção do monastério, supervisionando
a obra, controlando o trabalho e os salários (GARCÍA LOPEZ, 1996).
Luis Cabrera de Córdoba nasceu em Madrid, em 1559. Em
1581 foi a Lisboa acompanhando o embaixador D. Luis Cardenal para
cumprir serviços encomendados por Felipe II. Não há muitas notícias
sobre os estudos de Luis Cabrera de Cordoba, apenas que o abando-
nou para servir ao rei em viagens e outros assuntos, além de ter sido
ajudante de seu pai. O seu serviço ao monarca consistia em obter in-
formações sobre os problemas existentes nos reinos que constituíam a
Monarquia Hispânica, atuando muitas vezes de forma secreta, como um
espião (GARCÍA LOPEZ, 1996). Em 1588, recebeu o título de guarda
maior de montes, prados, defesas, caça, pesca e lenha do Escorial, que
cuidava especialmente dos montes reservados à caça do rei, título que
manteve até 1599. Também era responsável por receber embaixadores
que vinham à Espanha. Ficou no Escorial até 1599 e depois passou a
servir à rainha Margarida de Austria, esposa de Felipe III, preparando
os aposentos onde vivia o rei no Alcázar de Madrid.
Luis Cabrera de Córdoba escreveu, sobretudo, o gênero História,
dedicando-se a guardar para a posteridade os feitos do reinado de Felipe
II, sempre em tom bastante elogioso. Entre suas obras temos: “Historia
de Felipe II”, “Historia para entenderla y escribirla”, “Advertencia sobre
la educación del Príncipe”, “Elogium Rui Gomenzeii”, “Relactio vitae
mortisque Caroli infantis Philippi II”, “Relaciones de las cosas sucedidas
en las cortes de España desde 1599 hasta 1614” e “Laurentina”. Nessas
páginas tomaremos como principais referências a “História de Felipe II”
e o poema “Laurentina” (canto a São Lourenço). O poema “Laurentina”
não foi completamente preservado, sendo que hoje temos conhecimento
apenas dos cantos primeiro, vigésimo terceiro, vigésimo quarto, vigési-
mo quinto, vigésimo sexto, vigésimo sétimo e vigésimo oitavo.

Histórias, narrativas e religiões 501


O Escorial em Luis Cabrera de Córdoba e José de
Siguenza

Os aspectos ressaltados para se tratar do Escorial nos dois au-


tores são bastante convergentes. Ambos preocupam-se em explicar as
motivações para a edificação, para a escolha do local e da ordem reli-
giosa que ali habitaria. Também mencionam o edifício como símbolo da
religiosidade de Felipe II e de sua luta contra a heresia e pela manuten-
ção da ortodoxia católica em seus territórios. Ainda, o monarca é tomado
como exemplo de bom cristão, sendo muitas vezes comparado aos reis do
Antigo Testamento e sua morte no Escorial é o encerramento de uma
vida que até o seu último respiro foi dedicada a manter a si mesmo e
seu povo no caminho da fé católica. Trataremos especificamente sobre as
motivações da edificação do Escorial nesses dois autores e na buscar por
construir tal edifício como um templo em que se preservava a fé contra a
heresia, reforçando a ligação de Felipe II e seu reino aos desejos divinos.
No canto vinte e cinco do poema “Laurentina”, Cabrera de
Córdoba apresenta as razões para a construção desse monastério. Em pri-
meiro lugar indica a necessidade que existia antigamente de se celebrar
ano a ano as grandes vitórias, para que sua memória se preservasse. Tendo
vencido os franceses na Batalha de San Quintin, Felipe II decide construir
o mosteiro de San Lorenzo porque a vitória se deu no dia do santo:

“Este fue San Laurencio, nuestro hispano


fénix divina en fuego renovada,
en cuyo santo día soberano
se obtuvo la victoria señalada,
que la discordia y su furor tirano
dejó en el hondo abismo sepultada,
y sacó de la guerra paz dichosa,
y la pérdida hizo provechosa.

Porque, viendo Laurencio invocado


su nombre de Felipe invicto fuera,
que en su querida patria ha dominado,

502 Histórias, narrativas e religiões


como a su natural favorecida;
mas, porque era él de Francia bautizado,
aunque la gran victoria no le diera.
hizo que el premio todo lo gozase,
y sólo el vencedor honra sacase.” (CABRERA DE CÓRDOBA,
1975, p.119)

A memória que deve ser guardada dos feitos militares é uma


constante na obra de Cabrera, que dedica alguns versos para lembrar as
batalhas e vitórias que glorificaram o reinado dos monarcas de Espanha
e Portugal, reino que fora incorporado à Monarquia Hispânica. Em sua
História de Felipe II, Cabrera inclusive chama o monasterio de San
Lorenzo el Real de la Vitoria.
O fato de São Lourenço ser um santo espanhol também é va-
lorizado pelos dois autores, que julgam tal coincidência um sinal divino
de apoio à causa espanhola contra o rei francês. Segundo Siguenza, foi
desejo divino que a primeira vitória de Felipe II se desse no dia em
que se comemoram as festividades desse santo mártir espanhol. Os dois
autores reforçam a relação do santo com o reino de Felipe II. Siguenza
acrescenta que o rei já seria devoto de São Lourenço desde a infância,
sendo então escolhido como patrono do monasterio que edificaria pela
devoção particular e em memoria de sua proteção e vitória recebidas no
dia do santo (SIGUENZA, 2008).
Siguenza destaca a necessidade de se construir edifícios em
memória de Deus e dos santos que se mostram favoráveis às ações do
monarca ao longo de seu governo, reforçando o agradecimento aos céus
pelo benefício que recebem. Não apenas a batalha deveriam ser lembra-
das, mais ainda deve ser valorizada a fé daquele governante, o edificio é
um sinal da fidelidade do monarca à religião católica ligada ao papado:

“Reconociendo los muchos y grandes benefícios que de Dios Nuestro


Señor hemos recebido y cada día recibimos, y cuando Él ha sido
servido de encaminhar y guiar los nuestros hechos y los nuestros
negócios a su santo servicio y de sostener o mantener estos nuestros
reinos en su santa fe y religion y en paz y justicia: entendendo con

Histórias, narrativas e religiões 503


esto cuánto sea delante de Dios pia y agradable obra y grato testi-
monio y reconocimiento de los dichos benefícios el edificar y fundar
iglesias y monastérios, donde su santo nombre se bendisse y alaba, y
su santa fe con la doctrina y ejemplo de los religiosos siervos de Dios
se conserva y aumenta, y para que así mismo se ruegue e interceda a
Dios por nos y por los Reyes nuestros antecessores y sucessores y por
el bien de nuestras animas, y la conservación de nuestro Estado real
[...]” (SIGUENZA, 2008, p.12-13)

O edifício físico era, ao mesmo tempo, o agradecimento pela


providência, a busca de dar exemplos aos seus súditos que, vendo tal
monastério, se lembrariam da necessidade de se manter a fé, ou seja, se-
ria um elemento para manter a religiosidade entre sua população, o que
significaria manter a proteção divina de seu reino. Apesar de a ênfase
parecer distinta nos dois autores, a construção discursiva de Cabrera,
reforçando a glorificação dos feitos militares de Felipe II é constante-
mente justificada como expressão da vontade divina.
O rei é, segundo o discurso de Siguenza, responsável pela
manutenção de seu povo na fé que professava. Era um defensor des-
sa fé frente, sobretudo, às novas religiões cristãs que surgiam a norte
de Espanha, como luteranos e calvinistas, e frente aos seus inimigos
mais antigos, os muçulmanos a oriente e a sul. A função do rei, mais do
que manter seu estado, era de manter a religião de seu estado em suas
fronteiras e expandi-la nas colônias, tarefa que foi engrandecida com a
incorporação de Portugal e suas colônias, o que compunha para Felipe
II um “império em que o sol nunca se punha”.
A mesma mensagem pode ser percebida no frontispício da
obra de Cabrera, em que se vê Felipe II com uma espada, protegendo
a Igreja, que se encontra atrás do rei, contra a heresia. Ao fundo vê-se
o Escorial, também local de defesa da fé cristã contra a heresia, porque
glorifica a religião e guarda a memória de como a providência divina é
favorável aos reis espanhóis.

504 Histórias, narrativas e religiões


Imagem 1 – Frontispício da obra de Luis Cabrera de Córdoba “História de Felipe II”

Fonte: CABRERA DE CÓRDOBA, 1877.

Tais construções discursivas dos autores aqui apresentados


reforçam a tese de Maravall, que havia considerado o Escorial como
uma antecipação do Barroco. Ainda que sua arquitetura seja austera, sua
grandiosidade tinha a capacidade de sensibilizar os fiéis, suas riquezas
interiores podiam levar aqueles que adentravam seus espaços a conver-
Histórias, narrativas e religiões 505
ter-se ao catolicismo. Para Maravall o conceito de Barroco não deve se
restringir a aspectos estéticos, mas caracteriza a cultura de uma época
que, entre outras características, baseava-se na crença de que a visão é
o sentido privilegiado para gerar a devoção, para promover a conversão
dos súditos (MARAVALL, 2009).
Cabrera expressa reforça tal concepção nos seguintes versos da
Laurentina:

“Si entrásedes [os protestantes e infiéis] em este templo santo


[o Escorial],
que por el gran Felipe se há fundado,
amor os causaría y grande espanto,
el verle de mil joyas adornado
y más su celestial y sacro canto
con que el Senñor del Cielo es alabado,
y sus misterios grandes celestiales,
y de todos su santos inmortales.”(CABRERA DE CÓRDOBA,
1975, p.132)

Dentre as joias mais valiosas existentes no Escorial estavam as


relíquias que santificavam esse espaço, de que trataremos mais adiante.
A construção do Monastério do Escorial também fazia frente
às destruições de igrejas nos territórios que passam a ser protestantes,
como aponta Cabrera em sua História de Felipe II, “hereges enemigos
crueles de la Iglesia Católica, que con impiedade y tiranía asolaban los
templos em tantas províncias” (CABRERA DE CÓRDOBA, 1877,
p.371), demonstrando que ainda assim o rei espanhol mantinha o ânimo
de defender a religião e, em seu aspecto visual, de construir e enriquecer
os locais de culto religioso.
Há um conjunto de adjetivos empregados para a desqualifica-
ção daqueles que não seguiam a religião defendida pelo papado: aqueles
que não se mantém no catolicismo são todos irracionais; os turcos são
bárbaros e desumanos. Cabrera também qualifica as novas religiões pro-
testantes apenas como hereges.
506 Histórias, narrativas e religiões
A imagen de defesa da fé expressa no Escorial é reforçada pelo
segundo motivo que levou a edificação de tão imponente fábrica: a ne-
cessidade de se construir um mausoléu para o imperador Carlos V, pai
de Felipe II, que deixara em testamento tal tarefa a seu filho:

“y levantando mauseolo al religioso, invicto y máxima su padre


Cárlos V y á sus decendientes: cosa bien puesta en razon necessária,
y que muestra su gran poder en la grandeza de la obra, en su traza
y perfecion de su compuesto la ecelencia de su entendimeniento,
dando por todo mayor emiencia á su Estado.” (CABRERA, 1877,
p.371)

A obra ao mesmo tempo guardava a memória das vitórias de


Felipe II auxiliado pela providência divina, de sua defesa da fé e serviria
também para morada eterna da dinastia Habsburgo espanhola, receben-
do em primeiro lugar, e como principal motivação, a sepultura de Carlos
V, responsável por fazer frente às primeiras manifestações de reforma
religiosa enquanto era imperador.
Tais motivos são engrandecidos pelos seus dois historiadores
apresentados aqui comparando o monarca espanhol aos reis do Antigo
Testamento, importante simbologia expressa também nas estátuas co-
locadas sobre a fachada da Igreja do Escorial, formando o pátio dos
reis, cujo programa fora elaborado pelo humanista Arias Montano, mas
que Cabrera sustenta que também fora influenciado pelo padre José de
Siguenza: “prior que fue de aquel célebre y religioso convento, varon
observante y eminete de todas letras y lenguas, y de no vulgar elocuencia
em la española y latina” (CABRERA, 1877, p. 63).
Quando o Santíssimo é trasladado à nova igreja do Monastério
do Escorial, em 9 de agosto de 1586, véspera da comemoração da vitó-
ria de San Quintin e da festa de São Lorenço é 10 de agosto, os ritos
oferecidos por Felipe II em uma vigília, são comparados aos sacrifícios
feitos por Salomão para glorificar a Deus. Salomão sacrificava ovelhas
e bezerros a Deus e Felipe II “le iban oferecendo y sacrificando loores,
alabanzas, gracias y lágrimas de corazones contritos, devotos y humil-
des, proprio manjar de Dios” (SIGUENZA, 1928, p.82). Ao tratar do

Histórias, narrativas e religiões 507


mesmo evento, Cabrera também compara Felipe II a Salomão: “[Felipe
II] haciendo como Salomon infinitas gracias á Dios con alta meditacion
por haberle hecho tantos favores y mercedes que le dejase acabar una
fábrica que habia comenzado con tanto deseo de que en ella fuese ado-
rado siempre, bendito y alabado y servido.” (CABRERA, 1877, p.199).
Além da trasladação do Santíssimo Sacramento e sua custodia
à Igreja do Escorial, as relíquias eram fundamentais para a construção
espiritual daquele templo. Entre 1571 e 1611 foram realizadas oito en-
tregas de reliquias no Escorial, totalizando 7420 relíquias, entre elas 12
corpos inteiros e 144 cabeças inteiras de santos, constituindo-se, assim,
o maior relicário da Península Ibérica. Siguenza chega a ocupar o cargo
de ‘reliquiero’, de 1591 a 1594, que sempre deveria ser escolhido entre
os religiosos de certa idade e com relevância na comunidade jerónima
do Escorial (MEDIAVILLA, RODRÍGUEZ DÍEZ, 2004). Dado o
conhecimento dessa riqueza que promovia a construção espiritual do
monumento, é importante atentar para as reliquias que são destacadas
por Siguenza e Cabrera em seus escritos.
Cabrera e Siguenza ressaltam a existencia de um osso de São
Lourenço e a cabeça de São Hermenegildo, relíquias que são colocadas
no altar mor da basílica para a fundação da igreja. A ênfase nessas duas
reliquias de santos espanhóis e que viveram em momentos decisivos para
a formação da cristandade, marcam na memória escrita sobre o Escorial
a busca de demonstrar-se a temporalidade contínua entre aqueles que
foram defensores da fé no passado e Felipe II em seu tempo.
São Lourenço, segundo a Legenda Áurea, era de origem es-
panhola e fora levado à Roma pelo beato Sisto. Teria vivido por volta
do ano 1000 da fundação da cidade de Roma, momento em que o im-
perador Felipe aceitara o cristianismo como religião e teria realizado a
doação de seus bens aos dois beatos, motivo pelo qual foram persegui-
dos após a morte do imperador e martirizados, junto com muitos ou-
tros cristãos. São Lourenço teria sido torturado para negar a religião e
para entregar o tesouro do imperador que fora doado à Igreja, morrendo
em uma grade de ferro colocada sobre a brasa, para que fosse lenta e
cruelmente grelhado (VARAZZE, 2003, p.639-652). Posteriormente,

508 Histórias, narrativas e religiões


a arquitetura do Escorial passou a ser interpretada como o formato da
grelha que foi o instrumento de martírio de São Lourenço, simbologia
que não aparece nas palabras dos autores aqui apresentados.
São Hermenegildo (564-585), cuja cabeça fora trasladada ao
Escorial em 1585, era filho do rei visigodo Leovigildo (que era cristão
ariano). Esse nobre teria se rebelado contra o pai e se proclamado rei,
alegando motivos religiosos, já que Hermenegildo seguia a ortodoxia
romana. Pela rebelião foi preso e executado, sendo considerado um már-
tir pela fé pelo papa Gregório Magno. Passou a ser cultuado em diversas
cidades da Península Ibérica, ao longo da Idade Média, como Toledo,
Sevilha, Zaragoza, Santiago, Ávila, Salamanca e Plasencia. O martírio
de São Hemenegildo teria influenciado seu irmão, Recaredo, a aderir ao
cristianismo ortodoxo, o que seria o iniciador do caráter católico dos reis
espanhóis, linhagem reafirmada durante toda a reconquista.
Felipe II esforçou-se ao longo de seu reinado para difundir o
culto a São Hermenegildo, reafirmando dessa forma o caráter sagrado
de sua monarquia como herdeira do santo. O monarca incentivou cro-
nistas a escrever obras sobre o período em que viveu o mártir, pediu ao
papa que se fixasse uma data para suas festividades e, após a feliz coinci-
dencia do nascimento de seu filho Felipe (e que seria seu sucesor) no dia
do santo, decidiu por trasladar as relíquias que eram cultuadas no mo-
nastério de Sigena, em Huesca, para o Escorial (CORNEJO, 2000). Em
1591 os jesuítas Hernando de Ávila e Melchor Mucha representación
de la Tragedia de San Hermenegildo e, em 1574, o cronista Ambrosio
de Morales escreveu a “Crónica general de España” fixando uma versão
oficial da história do santo.
Além disso, ao retomar a filiação da monarquia hispánica ao
pasado visigótico buscava-se reforçar o vínculo da unidade territorial da
península ibérica ao momento vivido a partir do reinado de Felipe II,
com a União das Coroas Ibéricas.
Não apenas as que consagravam o altar mor, mas todas as re-
liquias presentes no Escorial davam ao seu templo o caráter sagrado.
Segundo Siguenza:

Histórias, narrativas e religiões 509


“En este santo y consagrado templo, hay cuarenta altares consa-
grados (…)En cada uno de, están puestas en la cueva ó sepulcro
que se hace en medio de la mesa, muchas reliquias de santos, y creo
que desde el principio de la Iglesia hasta hoy, no se ha visto templo
donde haya cosa semejante: memoria digna de la insigne piedad de
Felipe II y digna basílica y casa Real del gran mártir Lorenzo (…)”
(SIGUENZA, 2003, p.193)

Além disso, o número de reliquias era o resultado do resgate de


muitas igrejas existentes em territórios que passavam a professar o lute-
ranismo no Sacro Império. Felipe II conseguiu autorização do Papa para
trasladar as reliquias das igrejas que desejassem entregá-as ao monarca
(SIGUENZA, 2003, p.195).
Além da sacralização do espaço, as reliquias eram utilizadas
pelo monarca como alívio para seu sofrimento físico e foram parte cen-
tral do cenário montado para sua norte como um exemplo de cristão que
se mantém fiel até seus últimos suspiros.

“Vino mal convalecido y muy achacoso de la gota, y mejoró en este


sitio con el contento de ver su criatura o fábrica, en desocupándo-
se del ordinario y forzoso despacho del gobierno de su extendida
monarquía, pues lo principal es hacer primero lo que está cada uno
obligado en su oficio.” (CABRERA DE CÓRDOBA, 1877, p.198)

A localização dos armários com relíquias permitia tanto que


estivessem próximas dos aposentos do rei, como facilmente mostrada
aos que se encontravam na igreja: “mandó que antes de comenzar la
misa mayor se les mostrasen las reliquias desde las ventanas del coro,
en el altar del Crucifijo, que se ve desde el patio del pórtico, y después,
a la tarde, se enseñaron otras dos veces, para que les gozasen todos.”
(SIGUENZA, 2008, p.87).
As relíquias constituíam parte da construção espiritual do
Monastério do Escorial, sua grandiosidade ia além do imponente edifi-
cio físico levantado nos arredores da Serra de Guaderrama.

510 Histórias, narrativas e religiões


Considerações Finais

A história do Escorial apresentada nas obras de Siguenza e


Cabrera de Córdoba é a história da devoção e o exemplo do rei enquanto
bom cristão, que cuida para a salvação da própria alma, bem como para
a manutenção de seu povo na fé católica. De maneiras diferentes, mas
convergentes, o Escorial é apresentado nas duas obras como o edifício
que petrifica e perpetua o caráter sagrado da monarquia Hispânica, sua
defesa contra as heresias e a reafirmação do que há de especificamente
ibérico na igreja espanhola, como a Ordem de São Jerónimo, a devoção
ao mártir espanhol São Jerónimo e a origem das monarquias católicas
com São Hermenegildo.
Mesmo Cabrera tendo como enfoque as guerras empreendi-
das por Felipe II, o Escorial aparece como local em que a providencia
divina se apresentava ao monarca. As batalhas devem ser lembradas
porque são a prova de que a monarquia hispânica é presenteada pelo
favorecimento divino.
Os dois autores contam a história da construção do Escorial
como edifício físico e espiritual. As cerimônias e ações de construção do
Escorial como edificio sagrado tem o mesmo peso da edificação física
na obra de Siguenza. Além disso, devido ao conhecimento sobre arqui-
tetura do monge jerónimo, em suas obras se discorre sobre as escolhas
estéticas do edifício, contribuindo para a leitura da imagem expressa na
arquitetura do Escorial.
A proximidade que tiveram do rei e a capacidade de valorizar
as intenções da monarquia expressas no Escorial, além da fortuna críti-
ca, sendo os dois autores as principais referências para os que escreveram
sobre tal fábrica nos séculos que se seguiriam são os principais motivos
da importância de regatar as palavras originais de Siguenza e Cabrera e
Córdoba sobre o monastério de San Lorenço el Real del Escorial.

Histórias, narrativas e religiões 511


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Histórias, narrativas e religiões 513


O Romance Missionário Protestante:
de Maldito a Abençoado (Séc. XIX-XX)

Sergio William de Castro Oliveira Filho (Doutorado – UNICAMP/


Marinha do Brasil)

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo discutir discute de que


maneira o romance enquanto gênero literário encontrou guarida no
meio protestante, especificamente aqueles que possuíam por trama as
missões transculturais. Tal empreitada encontrou um árduo caminho de
aceitação dentro das comunidades protestantes estadunidenses onde vá-
rios embates foram realizados nos púlpitos e em meio impresso durante
a primeira metade do século XIX acerca da validade do romance com
teor religioso. Contudo, a segunda metade do século XIX e o princípio
do XX vêem o romance religioso missionário logrando êxito, tornan-
do-se um sucesso editorial, ganhando novas tramas na medida em que
ocorria a expansão do movimento missionário e tendo extrema rele-
vância no meio feminino, pelo fato de as mulheres terem se constituído
como a maior parte das autoras e leitoras de tal tipo de publicação.

Palavras-chave: Romance; Protestantismo; Missões; Estados Unidos.

“Candida” is a distinct gain to our best literature. Mrs. Wardlaw has


brought the Christian world into her debt by writing it. Beside its rich
local coloring, interest in the author’s chief aim is heightened and sus-
tained throughout by the charming love story, full of the most delicate
and refined sentiment, pearls held together by a golden thread which runs
through the book. A book which, like “Candida”, will bear and repay a
second perusal, should find a welcome in every Christian home. (NEW
YORKER OBSERVER, 1903, 299)204

204  ““Candida” é uma distinta conquista para a nosso melhor literatura. Sra Wardlaw trouxe
ao mundo cristão sua dívida em escrevê-la. Junto ao rico colorido local, o objetivo principal da
autora é demonstrado ao longo de uma encantadora história de amor, repleta do mais delicado
e refinado sentimento que atravessa o livro como pérolas unidas por um fio de ouro. Um livro
514 Histórias, narrativas e religiões
Quando o romance ‘Candida’ de Mary Hoge Wardlaw foi pu-
blicado nos Estados Unidos em 1902, não houve reprovações ao seu teor
ou constituição enquanto gênero literário advindas de nenhum setor
da sociedade estadunidense a que se destinava a obra. Pelo contrário,
‘Candida’ fazia parte de um estilo de escrita que já se encontrava conso-
lidado no meio editorial protestante do início do século XX.
Conforme a sucinta exposição do livro, publicada no periódico
protestante ‘New York Observer’ (transcrita acima), tal romance era apresen-
tado ao público com um elogio excepcional: “a distinct gain to our best litera-
ture”. Além disso, a bela história de amor escrita por Mary Hoge Wardlaw,
deveria ser, consoante o articulista, “welcome in every Christian home”.
Em um contexto de grande fluxo de missionários que saíam
dos Estados Unidos a fim de propagar as diversas vertentes protestantes
em várias outras nações, bem como de tantos outros que retornavam
ao lar após terem dedicado seus esforços à referida missão; era notável
a existência nos Estados Unidos, a partir da segunda metade do século
XIX, de numerosos meios pelos quais tais sujeitos podiam expressar de
forma escrita suas experiências missionárias.
Entretanto, outras formas de divulgação escrita das atividades
missionárias também merecem destaque neste período, tais como as
obras publicadas por editoras afiliadas a alguma destas igrejas. Dentre
tais editoras, destacamos neste trabalho o The Presbyterian Committee of
Publication, sediado em Richmond, no estado da Virginia.
Este comitê tratava-se da casa de publicações mais importante
da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos desde o século XIX e
ficava estrategicamente localizado na cidade de Richmond que era uma
espécie de “quartel general” dos presbiterianos sulistas, sediando além do
The Presbyterian Committee of Publication, o Union Theological Seminary,
local de onde foram egressos inúmeros ministros e missionários presbi-
terianos.
O Presbyterian Committee of Publication publicava diversos ti-
pos de obras literárias (romances, relatos de missionários, tratados teo-

como “Candida” merece uma leitura atenta e deve encontrar recepção em cada lar cristão.”
(Tradução livre).
Histórias, narrativas e religiões 515
lógicos, livros de história do protestantismo, contos infanto-juvenis, hi-
nários, sermões, relatórios) cujo rol de autores era formado por membros
da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos ou por autores protestantes
reconhecidos e aprovados pela comunidade presbiteriana estadunidense.
A publicação de um romance cujo pano de fundo era o processo
de difusão do protestantismo em uma nação majoritariamente não pro-
testante configurava-o como um escrito especialmente bem visto pelos
membros do Comitê de Publicações de Richmond. Nada melhor que um
romance escrito por uma missionária para servir de edificação espiritual
aos leitores presbiterianos estadunidenses, especialmente às mulheres.
De certa maneira, os líderes protestantes de fins do século XIX
e início do século XX viam as mulheres como público receptor priori-
tário deste tipo de literatura. Assim, os romances protestantes surgiam
como especialmente válidos no cumprimento da função de literatura
edificante às mulheres. Logicamente, tais livros deveriam possuir em
seus enredos um forte teor religioso, com personagens que encarnassem
o ideal feminino de submissão, fidelidade, piedade e zelo doméstico-fa-
miliar, tanto no papel de mãe quanto nos de esposa e filha.
Paradoxalmente, a mesma perspectiva que a uma primeira vista
soaria como claro indício da visão cerceadora da mulher, posta como
submissa ao homem e carente de amparo espiritual, também possibi-
litou a este gênero literário ter como seus principais autores mulheres.
Isto se configurou como um fenômeno extremamente recorrente nos
meios protestantes, na medida em que ia ao encontro de uma premissa
básica sobre a função da mulher em tais círculos, ou seja, às mulheres era
destinado o papel fundamental de instrução doméstica dos filhos e que
poderia ser ampliado para além dos limites do lar através do magistério.
Desta forma, romances edificantes voltados às mulheres e fic-
ções infanto-juvenis que poderiam ensinar questões de fé aos jovens,
iam de encontro a tal concepção, na medida em que estariam de acordo
com a missão destinada à mulher protestante: ser agente de Deus as-
segurando o avanço moral e intelectual do mundo, dando suporte aos
líderes religiosos nessa missão.

516 Histórias, narrativas e religiões


Tais constatações aparentam certa lógica quando partimos da
perspectiva das representações que o romance enquanto gênero literá-
rio se nos apresenta desde sua ascensão, contudo ao nos voltarmos com
maior atenção para a argumentação desenvolvida nos parágrafos ante-
riores veremos que o processo de utilização deste tipo de escrito não se
deu sem tensões, reconfigurações e mudanças de perspectiva sobre sua
função social.
O romance, tido atualmente como uma espécie de gênero li-
terário balizado de nobreza e valor, nem sempre foi visto sob este pris-
ma pelos literatos, filósofos e sujeitos letrados. Analisando a história da
leitura a partir de Jean-Jacques Rousseau e seu romance La Nouvelle
Héloïse, Robert Darnton afirma que

No século XVIII, os romances eram, com frequência, considerados


moralmente suspeitos, ou uma forma inferior de literatura, e os ro-
mancistas em geral, não punham seus nomes, nas folhas de rosto de
seus livros. (DARNTON, 2006, 359)

(...) os romances eram vistos como perigo moral, especialmen-


te quando abordavam o amor e seus leitores eram senhoritas.
(DARNTON, 2006, 294).

Desta maneira, os romances eram encarados com desconfiança


e porque não dizer com aversão por grande parte dos grupos letrados da
Europa, a ponto de alguns literatos terem se negado a admitir que seus
escritos se tratassem de romances como no caso de Daniel Defoe sobre
seu Robinson Crusoé (ROBERT, 2007, 12), que via o romance como
falso, superficial, sentimentalista e corruptível.
Entretanto, o fim do século XVIII, se mostrou como uma re-
viravolta com relação às percepções sobre o romance, o qual passou,
paulatinamente, a ganhar espaço por entre os outros gêneros literários
a ponto de no século XIX já não mais ser visto com ojeriza, mas, pelo
contrário, como gênero detentor de importante função social.
Conforme nos indica Peter Gay:

Histórias, narrativas e religiões 517


Sem dúvida, há mais de um modo de ler um romance: como uma
fonte de prazeres civilizados, como um instrumento didático que
serve ao aperfeiçoamento pessoal, como um documento que abre
portas para sua cultura. (GAY, 2010, 15)

Fruto de uma natureza burguesa, o romance descortinou-se com


as principais características que poderiam descrever a burguesia em ascen-
são, dentre as quais poderíamos destacar o individualismo e a sanha pela
realização pessoal mesmo diante de circunstâncias sociais adversas.
Para muitos teóricos do romance, tal estilo literário somente
alcançou seu ápice quando a burguesia também o fez. De mãos dadas,
a burguesia e o romance construíram-se mutuamente. Benjamin, so-
bre esse ponto afirma que “o romance, cujos primórdios remontam à
Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia
ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento” (BENJAMIN,
2012, 218).
A solidão do leitor adquire aqui uma estreita relação com um
modo de vida burguês que em vários aspectos tende a uma individuali-
zação dos sujeitos. O sucesso, o amor, os projetos, os sonhos, a família,
tudo isso passa a ser permeado por uma aura de extremo individualismo.
O leitor do romance busca em sua leitura uma satisfação, distra-
ção, lazer - todos estes termos são válidos – individuais. Curiosamente,
há novamente um ponto de encontro quase weberiano aqui entre a bur-
guesia e o protestantismo. A teologia protestante tem dentre seus pilares
básicos o individualismo. Quando se fala em individualismo não esta-
mos castrando a ideia de uma comunidade religiosa que tende a forjar
laços de auxílio mútuo, mas sim atentando para o fato de que o aspecto
essencial deste tipo de cristianismo, que é a salvação, claramente é apre-
goado como algo absolutamente individual.
Ou seja, o relacionamento do homem com o sagrado é algo
solitário. A salvação é individual, a decisão é pessoal. Por conta disso,
no meio protestante são expurgadas práticas como a confissão auri-
cular, ou a interseção pelas almas dos que morreram, na medida em
que ninguém mais além do próprio indivíduo pode tomar a decisão
considerada correta. Além disso, o fiel poderia alcançar o sagrado sem

518 Histórias, narrativas e religiões


a necessidade de intermediários, fossem eles instituições (a igreja) ou
outros homens (sacerdotes).
Assim, já se pode vislumbrar que o romance poderia encontrar
terreno fértil no meio protestante, mas necessitava para isso de uma
série de outras transformações.
Mas não bastou ao romance essa simbiose à burguesia para
demarcar seu espaço privilegiado no meio literário. Fazia-se necessá-
rio cambiar as representações sobre tal gênero literário que o atestavam
como um oceano de futilidades que tinha o poder de corromper donze-
las, para que o mesmo se tornasse um “instrumento didático que serve
ao aperfeiçoamento pessoal” às famílias burguesas.
À tal mudança paradigmática dois fatores corroboraram: o
comprometimento do romancista com o princípio da realidade e a mis-
são implícita a tais obras literárias de denunciar as mazelas morais da
sociedade.
Esse complexo percurso, hoje tão naturalizado, forjou-se a par-
tir do que Marthe Robert denominou de arrivismo aventureiro da parte
de um “plebeu que vingou”:

O romance moderno, a despeito das nobres origens a ele atribuí-


das pelo historiador e que ele próprio reivindica, é na realidade um
recém-chegado nas Letras, um plebeu que vingou e que, em meio
aos gêneros secularmente estabelecidos e pouco a pouco por ele su-
plantados, continua parecendo um arrivista, às vezes até mesmo um
aventureiro. (ROBERT, 2007, 11)

Todo este trajeto de tomada de posição no campo literário por


este gênero que um dia fora “plebeu” teria para Darnton um caminho
cujo ápice se deu ao findar do século XVIII, ao que tal historiador es-
tadunidense afirmaria “Em pouco mais de duzentos anos, o mundo da
leitura havia se transformado. Á ascensão do romance contrabalançava
um declínio da literatura religiosa” (DARNTON, 2010, 175).
De fato, dados estatísticos demonstram que, apesar do módico
número de leitores, até a primeira metade do século XVIII, havia uma
tiragem e distribuição muito maior de obras religiosas do que de escritos

Histórias, narrativas e religiões 519


leigos (WATT, 2010, 38-39). Tal cenário paulatinamente foi alterado
no decorrer deste século com o crescimento do público leitor e com
diversas transformações sociais desencadeadas na Europa.
Contudo, tal assertiva encontrou justamente nos Estados
Unidos um ponto de contradição. Durante os séculos XIX e XX, este
país teve seu mercado editorial marcado pela fusão do romance com a
literatura religiosa.
A obra ‘Uncle Tom’s Cabin’ de Harriet Beecher Stowe destaca-
-se como um desses romances que aliou um discurso fortemente reli-
gioso com alusões e críticas ao contexto social estadunidense, especifica-
mente a escravidão. Publicado no início da década de 1850, o romance
de Stowe alcançou um sucesso quase imediato, tendo vendido dez mil
exemplares na primeira semana de vendas nos Estados Unidos e alcan-
çando grande receptividade também na Inglaterra.
‘Uncle Tom’s Cabin’ tornou-se um dos marcos para os militan-
tes da emancipação dos cativos nos Estados Unidos, e Harriet Stowe
passou a ser aclamada como uma das principais vozes de tal militância.
Entretanto, a própria Stowe afirmava que seus escritos seriam apenas
instrumentos pelos quais o Espírito Santo poderia se comunicar à co-
munidade cristã. Claramente há uma imbricação entre a fé protestante
e o gênero literário “romance” em ‘Uncle Tom’s Cabin’, e sobre a qual a
historiadora Candy Gunther Brown assim analisa:

Harriet Beecher Stowe’s Uncle Tom’s Cabin, which sold more than 3 mil-
lion copies in the nineteenth century and awoke the nation’s conscience,
achieved popularity by employing a sentimental style deplored by fiction’s
opponents. Yet Stowe shared evangelical assumptions about the correct
relationship among writers, publishers, texts, and readers, namely, that
reading should influence readers through their texts (…) Stowe marked
her novel as a religious work, in a sense inspired by the Holy Spirit;
the text did not belong to her, as an author or as a woman, but to the
Christian community. (BROWN, 2004, 98) 205

205  “A “Cabana do pai Tomás” de Harriet Beecher Stowe vendeu mais de 3 milhões de cópias
no século XIX e despertou a consciência da nação, alcançou popularidade por empregar um
estilo sentimental deplorado pelos oponentes da ficção. Apesar disso, Stowe compartilhava de
pressupostos evangélicos a respeito do modo como deveria se dar a relação entre os escritores,
editores, textos e leitores, isto é, a leitura de seus textos deveria influenciar os leitores (...) Stowe
520 Histórias, narrativas e religiões
Desta maneira, por mais que houvesse um caráter extrema-
mente voltado a uma demanda social, a autora de tal romance via sua
obra como um trabalho de cunho religioso. Cabe ressaltar que Harriet
Stowe alcançou um sucesso editorial extraordinário nos Estados Unidos
do século XIX como uma romancista que aliava religião à ficção, mas
que não foi a única a desenvolver esta prática de escrita.
Logicamente, as raízes da fusão laico-religiosa são provenien-
tes da Europa. Muitos escritores protestantes contavam com influên-
cias de leituras seculares para a consecução de seus escritos, do mesmo
modo que a grande maioria de autores de obras leigas compartilhava de
repertórios culturais das mais variadas vertentes religiosas cristãs e/ou
demonstravam interesse literário por obras de cunho religioso.
Autores considerados como precursores do romance na
Inglaterra, tais como Daniel Defoe e Samuel Richardson, são citados
por Watt como figuras representativas dessa tendência:

Seus antepassados, como os de muitos dos seus leitores, praticamen-


te liam apenas obras de devoção no século XVII; mas eles mesmos
conjugavam interesses religiosos e laicos. Defoe escreveu romances
e também obras piedosas como Family instructor [O instrutor da
família]; Richardson conseguiu transferir seus anseios morais e reli-
giosos para a ficção predominantemente secular. (WATT, 2010, 53)

No entanto, do outro lado do Atlântico, entre o final do século


XVIII e as décadas iniciais do XIX, não havia um consenso quanto às
chamadas “religious novels”. Isto é, essa articulação romance-religião não
encontrou um ambiente isento de conflitos no meio protestante norte-
-americano. A consolidação de romances protestantes nos comitês de
publicações das várias denominações existentes nos Estados Unidos foi
um processo que encontrou oposição em sua trajetória.
Em 14 de outubro de 1829, a Igreja Congregacional de
Acworth, em New Hampshire, recebeu como seu novo Ministro o
Reverendo Moses Grosvenor. Para sua recepção um sermão foi prepa-

apontou seu romance como uma obra religiosa, no sentido de percebê-lo como inspirado pelo
Espírito Santo; o texto não pertencia a ela, como autora ou como uma mulher, mas sim à
comunidade cristã.” (Tradução livre).
Histórias, narrativas e religiões 521
rado e ministrado pelo Reverendo Zedekiah Smith Barstow, intitulado
de ‘The ministers of Christ should not miss the aim’ (BARSTOW, 1829).
O título do sermão já chama atenção por previamente pro-
por uma admoestação, ou seja, dava a entender que alguns Ministros
de Cristo estariam a esquecer seus objetivos principais, daí a necessi-
dade de tal sermão para o pregador. O Rev. Barstow inicia seu sermão
enfatizando a Bíblia como o mais importante livro existente e segue
aconselhando sua audiência a portarem-se como homens honestos e
fervorosos cristãos. Mas, para isto o “Ministro de Cristo” deveria tomar
alguns cuidados, dentre eles o “amor pela literatura” que poderia ser uma
distração danosa:

Another thing (…) has a tendency to divert some ministers from their work
— the love of literature. He that is not driven to farming, to procure a
living, may be in as great danger of missing his aim, while drinking deep
at the fountains of learning. Having procured a valuable library, and cul-
tivating a taste for the pleasures of literature, he may lose sight of his object,
and “run as uncertainly”, while indulging in his favourite pursuits. He may
think, that he cannot do wrong, if he is only in the study; and yet he may be
“missing his aim” in various respects. (BARSTOW, 1829, 11)206

Apesar desse alerta, Barstow, indica leituras edificantes:


“Botany, or Chymistry, or Architecture, (...) Theology” (BARSTOW, 1829,
12). Assim, se por um lado apregoavam-se algumas leituras como vir-
tuosas para um ministro protestante, por outro um alerta era lançado
quanto a possíveis leituras que seriam distrações prejudiciais ao ministé-
rio. Dentre tais leituras vistas com desprezo pelo pregador estariam: “the
fashionable trifles which are dignified with the name of “Religious Novels””
(BARSTOW, 1829, 19)207.

206  “Outra coisa (...) há uma tendência que tem desviado alguns ministros de seu trabalho - o
amor pela literatura. Aquele que não se ocupa com a agricultura, para sua sobrevivência, pode
estar correndo grande perigo de perder seu objetivo, enquanto bebe das profundas fontes do
conhecimento. Tendo adquirido uma valiosa biblioteca, e cultivado o gosto pelos prazeres da
literatura, ele pode perder de vista o seu objetivo, e “andar de modo incerto”, enquanto desfruta
de sua atividade favorita. Ele pode pensar que não está fazendo nada de errado já que está
apenas estudando; mas ainda assim ele pode estar “perdendo seu objetivo” em vários aspectos.”
(Tradução livre).
207  “as futilidades da moda que recebem o nome de “romances religiosos””. (Tradução livre).
522 Histórias, narrativas e religiões
Ao coro do Rev. Barstow contra os “fúteis” romances religiosos
juntar-se-iam as vozes de ministros de outras denominações, como a do
pastor Episcopal Charles Wesley Andrews.
Esse reverendo publicou em 1856 a obra ‘Religious novels: an
argument against their use’. Com um total de 43 páginas divididas em
sete tópicos, o pequeno tratado de Andrews trazia como principal ar-
gumento a impossibilidade do uso de literatura ficcional para fins edifi-
cantes à cristandade.
Em tom de debate com aqueles que denominava de defensores dos
romances religiosos, tal reverendo episcopal afirmava que tanto os romances
seculares, quanto os pretensamente religiosos seriam danosos, constituindo-
-se uma falácia a defesa das ficções religiosas: “The fallacy that “good novels”
will supplant the taste for bad ones, experience has made as palpable as that wine
will cure the thirst for distilled liquors. The demoralization of the Church in this
respect has, in fact, been effected by “good novels.”” (ANDREWS, 1856, 25)208.
O principal argumento da crítica do Rev. Andrews estava no fato
que mesmo enquanto uma ficção, os romances religiosos almejavam passar
uma aura de realidade aos seus leitores, sendo isso um fator deveras preju-
dicial à formação espiritual das crianças e jovens, na medida em que um
cristão deveria ter sua formação moral tendo sempre por base a “verdade”.
Esse realismo inserido nos romances era per si encarado pelos
críticos protestantes como a manifestação do mal, já que não se poderia
ensinar a “verdade” através de uma pretensa mentira. Apesar disso, Charles
Andrews explicita em seu argumento que alguns textos não poderiam
ser confundidos com os romances, tais como as parábolas de Cristo e o
Pilgrim’s Progress de Bunyan209. Tais escritos seriam alegorias que de an-
temão deixavam claro a seus leitores sua desvinculação com a realidade.
208  “É uma falácia afirmar que “bons romances” substituirão o gosto pelos maus, a experiência
tem demonstrado isso ser tão palpável quanto afirmar que o vinho vai curar a sede por bebidas
alcoólicas destiladas. A desmoralização da Igreja a este respeito tem, de fato, sido efetuada por
“bons romances”. (Tradução livre).
209  Pilgrim’s Progress de autoria do pastor batista John Bunyan e publicado pela primeira
vez em 1678, é considerada a obra literária mais valorizada no meio protestante depois da
bíblia. Em 1792 já contava com 160 edições. Entretanto, coadunado ao discurso de Charles
Wesley Andrews, a alegoria de Bunyan distancia-se dos romances setecentistas por possuir uma
dimensão temporal vaga e descrições fragmentárias, além disso, conforme a análise de tal obra
por Watt: “dizer que as personagens são alegóricas equivale a afirmar que sua realidade terrena
não constitui o principal assunto do autor, mas que este espera, através delas, mostrar-nos uma
realidade maior, situada além do tempo e do espaço.” (WATT, 2010, 85).
Histórias, narrativas e religiões 523
Supunha-se que a leitura dos romances, além de potencial-
mente corruptíveis para as mulheres e crianças, eram distrações à real
missão cristã e um dispêndio de tempo e dinheiro dos fieis. Surge aqui
um paradoxo, pois à mulher apregoava-se como parte de sua natureza
a atração pelo pecado, pois se por um lado a leitura de romances era
visto por alguns líderes religiosos como algo danoso, por outro Ian Watt
(2010, 48) afirma que a ascensão do romance na Inglaterra muito se
deveu à influência de comunidades puritanas que viam na ociosidade
feminina um potencial risco à sociedade, de modo que passou a ser in-
centivado que as mulheres ocupassem o tempo ocioso com leituras e
discussões literárias.
Em 1855, outra obra (PHYSICIAN, 1855) contendo severas
críticas às obras de ficções religiosas foi publicada nos Estados Unidos.
Tratava-se de um texto anônimo cujo autor assinava como um médico
(Physician), e no qual alertava que os romances (inclusive os religiosos)
apenas serviam para excitar a imaginação dos leitores, inflamando pai-
xões de modo a ser nocivo ao autocontrole necessário a um bom cristão:

Novels, by contrast, were “not only useless, but positively injurious” because
they tended “wrongly to excite the imagination”. The “inflammation” of
the passions, rather than inducing readers to fulfill their Christian duties,
gave readers a “disrelish for the most ordinary duties of life”. (BROWN,
2004, 97)210

Ante esse panorama, os opositores do romance no meio pro-


testante admoestavam os ministros a posicionarem-se contra tal tipo
de literatura em suas comunidades religiosas, os quais não deveriam ser
“indifferent at finding upon their own field so powerful and so irresponsib-
le a competitor as the fictitious religious press” (ANDREWS, 1856, 38)211,
assim como conclamava-se as casas editoras das diversas denominações
protestantes a não publicarem romances.

210  Os trechos entre aspas são citações da obra supracitada de autoria anônima (Physician):
‘Confessions and experience of a novel reader’. “Romances, pelo contrário, são “não apenas inúteis,
mas positivamente nocivos” porque eles tendem “erroneamente para excitar a imaginação”.
“Inflamam” as paixões, ao invés de induzir os leitores a cumprir os seus deveres cristãos, gerando
nos leitores uma “aversão para as tarefas habituais da vida.” (Tradução livre).
211  “Indiferente ao encontrar em seu próprio campo tão poderoso e irresponsável concorrente
como a imprensa religiosa ficcional”. (Tradução livre).
524 Histórias, narrativas e religiões
Porém, a partir da segunda metade do século XIX, se iniciou
um processo de acomodação da literatura ficcional aliada a interesses
religiosos. A ideia central era unir instrução e divertimento ao mesmo
tempo em que se cria poder santificar os romances. Uma das romancis-
tas que ganhou grande prestígio no mercado editorial norte-americano
de ficções protestantes (romances e contos infanto-juvenis) após 1850
foi a escritora congregacional Elizabeth Prentis212.
Prentis teve em sua trajetória de escritora trinta e uma publi-
cações e afirmava que seus romances seriam uma espécie de tradução
da doutrina pregada aos fiéis que possuíam menor grau de formação
teológica, fazendo uso de conexões com a vida cotidiana.
Se por um lado, a autoria desse tipo de literatura (romances
protestantes) era majoritariamente de mulheres, por outro a aceitação
de tais publicações no seio das comunidades protestantes passou pelos
discursos masculinos dos líderes religiosos.
Os romances protestantes, bem como as ficções de menor porte
voltadas especialmente ao público infanto-juvenil, tornaram-se, simul-
taneamente, bem vistos por grande parte das lideranças protestantes por
serem usados como instrumentos para o ensino religioso inclusive nas
escolas dominicais, e bem recebidos pelas casas de publicação e editoras
das diversas denominações por terem se constituído numa categoria li-
terária com vasto público leitor.
Coadunada à consolidação dos romances de cunho religioso,
na segunda metade dos oitocentos, o movimento missionário, que pas-
sou a ultrapassar as fronteiras nacionais estadunidenses, possibilitou o
surgimento de novos enredos e tramas aos romances.
Mary Hoge Wardlaw, no prefácio de ‘Candida’, esboça esse
interesse e incessante estímulo da parte de seus compatriotas para a
publicação de um livro que trouxesse ao público suas experiências no
campo missionário:

I have for years refused to attempt a story of life in Brazil, although


frequently urged to write one. Now, however, after twenty years spent

212  Para mais detalhes sobre a trajetória de Elizabeth Prentis Cf. BROWN, Candy Gunther.
Op. cit. pp. 99-104.
Histórias, narrativas e religiões 525
in close and sympathetic study of Brazilians and their surroundings,
I feel that it may not be presumptuous to portray them as I see them.
(WARDLAW, 1902, 5)213

Apesar de postarem-se como obras de cunho ficcional, os ro-


mances protestantes que tinham por trama central a atuação de mis-
sionários assemelhavam-se à literatura de viagem pelo ensejo de seus
autores (muitos dos quais missionários e como tal viajantes também) em
apresentar aos leitores um olhar acerca do “outro”. Outro este que geral-
mente era nativo do solo estrangeiro e que ganhava traços de potencial
alvo a ser alcançado e convertido pela missão. Mrs. Wardlaw aponta
como um dos fatores legitimadores para a aceitação de seu romance, os
seus vinte anos de trabalho missionário no Brasil que lhe deram oportu-
nidade de estudar os brasileiros e seu meio.
Uma das autoras mais prolíficas deste tipo de literatura foi a
metodista Annie Maria Barnes. Miss Barnes, que nascera em 1857 em
Columbia, na Carolina do Sul, era proveniente de uma família de edi-
tores e aos quinze anos tornou-se correspondente regular do ‘Atlanta
Constitution’. Em 1885, Barnes publicou seu primeiro livro ‘Some Lowen
Liven’, seguido de uma série de outras obras, das quais a grande maioria
compunha-se de romances e ficções voltadas ao público infanto-juve-
nil, dentre as quais: ‘Children of the Kalahari: a Story of Africa’ (1890),
‘Ninito: a story of the Bible in Mexico’ (1892), ‘Matouchon: a story of Indian
child life’ (1895), ‘Izilda: a story of Brazil’ (1896), ‘The ferry maid of the
Chattahoochee; a story for girls’ (1899), ‘Chonita: a story of the Mexican
mines’ (1898), ‘An American girl in Korea’ (1905).
Ao final da década de 1890, Annie Barnes era editora da Junta
de Missões da Igreja Metodista do Sul dos Estados Unidos e, apesar de
não ter atuado no campo missionário, percebe-se pelo teor de suas obras
um forte ativismo quanto às missões protestantes. Tal ativismo era bem
visto por outras denominações protestantes estadunidenses, a ponto de

213  “Por anos me recusei a tentar escrever uma história sobre a vida no Brasil, embora
frequentemente convidada a fazê-lo. Agora, no entanto, depois de vinte anos que passei
estudando atentamente os brasileiros e sua terra, sinto que não seria presunçoso retratá-los
como eu os vejo”. (Tradução livre).
526 Histórias, narrativas e religiões
seus livros terem sido publicados por comitês de publicação não filia-
dos à Igreja Metodista, tais como: o Presbyterian Board of Publication
and Sabbath-School Work, o Presbyterian Committee of Publication e o
American Baptist Publication Society.
Mrs. Wardlaw, por sua vez, não contava com todo o aparato
editorial de que dispunha Miss Barnes, entretanto ela tinha algo que
tornava seu romance diferenciado ante o olhar do público leitor: a ex-
periência como missionária em solo estrangeiro. As duas décadas de
trabalho missionário (1880-1901) no Brasil possibilitaram à autora um
discurso legitimador de seu olhar construído sobre os brasileiros e acerca
do proselitismo destes.
Essa legitimação fazia parte do enquadramento em um con-
texto de adequação aos interesses do público leitor. De modo similar aos
leitores de relatos de viagem, os leitores de escritos cujos autores eram
missionários que abordavam suas experiências no campo buscavam su-
prir seus múltiplos interesses a respeito destes relatos. Tais interesses iam
desde a mera curiosidade pelas peripécias e aventuras dos escritores, até
o aspecto de manual no qual muitos escritos passavam a configurar-se.
Isto é, aos que almejavam seguir os passos dos missionários, o
fidedigno e confiável relato destes, mesmo que em uma obra de ficção
(como o romance), servia como ponto de partida214 da viagem, no qual
de antemão já esboçariam os sucessos e dificuldades da missão em terras
estrangeiras.
E tal interesse é novamente instado em uma breve resenha do
livro de Mrs. Wardlaw publicada no periódico ‘The Missionary’ em 1903:

Through the kindness of our Richmond Board of publication we have


been permitted to read the interesting story “Candida” by Mrs. Mary
Hoge Wardlaw. (...) she had for years, refused to attempt a history of her
life in Brazil, although frequently urged by her friends to write one. It
is a moderate commendation of the excellency of Mrs. Wardlaw’s work

214  Todorov afirma que o relato de viagem, mais que o fim de uma viagem se configura como
o ponto de partida de tantas outras: “O relato de viagem não é, em si mesmo, o ponto de partida,
e não somente o ponto de chegada, de uma nova viagem? O próprio Colombo não tinha partido
porque havia lido o relato de Marco Polo?” In. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a
questão do outro. 3 ed. Tradução de Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 17.
Histórias, narrativas e religiões 527
to say that in the book she shows as much familiarity with the people of
Northern Brazil (...). “Candida” is a good story, with a good plan and
well told. (...) The characters are imaginary, but the incidents are real.
(THE MISSIONARY, 1903, 425)215

O resenhista além, de elogiar a obra, aponta mais três ele-


mentos de extrema relevância ao público norte-americano do início
do século XX interessado em relatos de missionários: (1) Por anos a
autora foi instada por seus amigos a escrever sobre sua vida no Brasil,
e após muita relutância, Mary Wardlaw cede aos pedidos e escreve
‘Candida’. Destaca-se aqui que, mesmo se configurando como um ro-
mance, o autor, esboça para a publicação a expressão “a story of her life
in Brazil”; (2) A excelência do escrito da missionária é legitimada,
conforme já afirmamos anteriormente, pelo seu vasto conhecimento
do tema abordado, fruto de sua experiência em terra estrangeira que
lhe concedeu grande “familiarity with the people of Northern Brazil”;
(3) Por fim, a resenha-propaganda engrossa o coro da autora e ratifica
que, apesar de as personagens serem imaginárias, todos os incidentes
abordados na trama são reais.
Passado quase meio século do debate, na década de 1850, que
buscava por em xeque os romances protestantes no ambiente religioso
e a publicação de ‘Candida’ em 1902, tal tipo de literatura já não mais
inspirava desconfiança ou descrédito. Extremamente difundido entre o
público leitor protestante estadunidense (especialmente o público fe-
minino), o romance com temática protestante e missionária alinhava-se
a diversos interesses que iam desde a busca dos líderes religiosos por
mecanismos de instrução doméstica e na Sabbath School, até a expansão
do movimento missionário que a cada ano engrossava suas fileiras com
homens e mulheres (casadas e solteiras), os quais viam nos romances um
modo de relatar suas experiências pessoais e um caminho para incenti-
var seus compatriotas a investirem nas missões.

215  “Através da bondade do nosso Board de Publicações de Richmond nos foi permitido ler a
interessante estória “Candida” de autoria da Sra. Mary Hoge Wardlaw. (...) durante anos, ela se
recusou a escrever uma história de sua vida no Brasil, embora frequentemente fosse instada por
seus amigos a fazê-lo. É um moderado elogio da excelência do trabalho da Sra. Wardlaw dizer
que, no livro, ela demonstra grande familiaridade com o povo do Norte do Brasil (...). “Candida”
é uma boa estória, com um bom plano e bem contada. (...) Os personagens são imaginários, mas
os incidentes são reais”. (Tradução livre).
528 Histórias, narrativas e religiões
De modo similar aos reports, cartas, artigos publicados em peri-
ódicos missionários e descrições dos costumes dos nativos, os romances
de cunho missionário-protestante, como ‘Candida’, inseriam-se em um
contexto de um discurso triunfalista, no qual, apesar das perseguições e
resistências enfrentadas pela missão, o êxito era apresentado como pro-
duto final. Além disso, conforme Singh, estes escritos constituíam “a
body of “knowledge” about the Other. Images of “degradation” and narratives
of “Christian progress”” (SINGH, 2000, 11), direcionados a um público
ansioso por histórias de sucesso.
Pode-se dizer que, o arrivismo do romance no mundo das letras
também demonstrou seu vigor no ambiente protestante estadunidense
dos séculos XIX e XX. Partindo de um contexto de descrédito, paulati-
namente a literatura ficcional religiosa ganhou destaque e relevância nos
comitês e casas publicadoras protestantes nos Estados Unidos.

Referências

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D. F. Randolph, 1856.

BARSTOW, Zedekiah Smith. The ministers of Christ should not miss their aim: a sermon
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BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 8 ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BROWN, Candy Gunther. The word in the world: Evangelical writing, publishing, and read-
ing in America, 1789-1880. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural


francesa. Tradução de Sonia Coutinho. 5 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

______. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução de Denise Bottmann.


São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Histórias, narrativas e religiões 529


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Paulo: Cosac Naify, 2007.

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in South Asia (1860s-1940s). New York and London: Garland Publishing, 2000.

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WARDLAW, Mary Hoge. Candida; or, by a way she knew not. A story from Ceará. Richmond:
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WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução de
Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

530 Histórias, narrativas e religiões


As Brumas de Avalon:
Aproximações entre história e literatura

Ana Carolina Lamosa Paes (UEM)

Resumo: A presente comunicação está vinculada ao Projeto de Iniciação


Cientifica, intitulado: “História e Literatura: as narrativas mitológicas
em As Brumas de Avalon (1982) ”, tendo como fonte a obra As brumas de
Avalon, escrita por Marion Zimmer Bradley, no ano de 1982. Trata-se
de uma releitura da lenda arturiana, inspirada na obra de Sir Thomas
Malory, “La mort d’Artur” (1470), porém, adotando uma abordagem
distinta, onde abre espaço para as mulheres da lenda, colocando-as em
evidência. Com intuito de compreender a relação entre história e li-
teratura, analisaremos a fonte, tendo em vista as narrativas mitológi-
cas presentes e como estas podem ser entendidas por meio da história
das religiões. Em função da problematização da narrativa, utilizar-se-á
dos apontamentos de Roger Chartier, Roland Barthes (2004) e Michel
Foucault (2001), quanto as relações entre Autor e Leitor. Servimo-nos,
também, dos estudos de Roy Willis (2007) e Joseph Campbell (1990)
acerca da interpretação de elementos presentes nos ritos.

Palavras-chave: As brumas de Avalon; História e Literatura; História


das Religiões

Introdução

O estudo que será aqui apresentado tem por objetivo buscar


compreender de forma mais profunda, as relações e aproximações entre
História e Literatura, ao passo que nosso objeto de estudo se caracteriza

Histórias, narrativas e religiões 531


enquanto uma obra literária e como tal, apresenta suas particularidades
e demanda uma metodologia específica para que se realize uma análise.
Em tal caso, diante destes objetivos, buscaremos observar a presença
destes aspectos na obra As Brumas de Avalon (1982).
Escrita por Marion Zimmer Bradley e publicada em 1982
numa versão de volume único, a obra revisita a lenda arturiana e busca
novas abordagens. Apesar de ser uma única obra, ela aparece dividida
em quatro livros: “A senhora da Magia”, “A grande Rainha”, “O Gamo-
Rei” e “O Prisioneiro da Árvore”. No Brasil, foi publicado numa coletâ-
nea de quatro volumes pela editora Imago.
Tendo como fonte de inspiração a obra de Sir Thomas Malory,
La mort d’Artur (1470), Marion Zimmer Bradley busca renovar a abor-
dagem, abrindo espaço para as mulheres da lenda, denotando um signi-
ficativo diferencial da história costumeiramente conhecida. Ao desen-
volver uma versão bastante distinta da história, a autora pretende ofertar
às mulheres da lenda, um lugar de destaque.
A trama se desdobra no período Medieval, durante os conflitos
da Bretanha, resistindo aos saxões invasores. Junto destes povos, vem
também sua crença, o cristianismo, e a partir deste conflito inicia-se uma
tentativa de manutenção dos cultos à Deusa, tradicionais da região da
Bretanha e o avanço crescente da fé cristã.
O ponto de partida do enredo da obra são as filhas de Avalon:
Viviane, a Senhora de Avalon; Igraine, mãe de Artur e Morgana, cujo
destino pretende grandes desafios e sacrifícios em nome da Deusa.
Marion Eleanor Zimmer Bradley, autora do romance, nasceu
em 3 de junho de 1930, em Albany, Nova Iorque. Sua infância se dá logo
após a grande depressão econômica de 1929, o que a faz crescer num lar
bastante humilde. Ao completar 16 anos, Marion ganha como presente
de aniversário sua primeira máquina de escrever e, a partir daí, exercita
o ato e o hábito da escrita. (PINHEIRO, 2011)
Durante muito tempo escreveu literatura considerada de fá-
cil tiragem, vendendo livros de conteúdo erótico e romances de ficção
científica para garantir o sustento de sua família. Em 1958, obteve certo
reconhecimento, ao publicar o primeiro romance da série Darkover, in-

532 Histórias, narrativas e religiões


titulado The Planet Savers, outro de seus livros de ficção científica. Mas
é nos anos 1980 que Bradley marca sua carreira ao publicar The Mists
of Avalon (As brumas de Avalon), destoando de sua produção anterior,
pois este é um livro longo e com um enredo mais complexo. A obra
permaneceu por três meses na lista dos Best-Sellers do The New York
Times, ultrapassando a marca de 300.000 exemplares vendidos, nesse
período. (SEKLES, 1987)
Apesar de haver alguma dificuldade para encontrar referências
mais completas sobre a vida de Marion Zimmer Bradley, notamos a sua
passagem por distintas comunidades religiosas e, embora se apresentasse
como cristã, demonstrou interesse por crenças neopagãs e tinha atração
especial pelo ocultismo. Segundo Paxton, cunhada de Bradley e compa-
nheira de escrita, os trabalhos de Dion Fortune podem ter sido a grande
influência acerca do ocultismo e de onde viria a inspiração para a magia
de Avalon. (PINHEIRO, 2011)
Dion Fortune é o pseudônimo literário de Violet Mary Firth
Evans (1890-1946), psicóloga e escritora ocultista britânica. Fortune fi-
cou conhecida por suas obras acerca de magia e ocultismo, saber que, se-
gundo ela, adquiriu através de Theodore Moriarty, após desacreditar da
psicoterapia. Bradley cita a obra Avalon of the Heart, de Fortune, como
tendo sido de grande importância para a construção da sua narrativa.
Existe alguma dificuldade em construir a biografia da autora,
sendo que estas informações apresentadas foram coletadas de sites, re-
portagens, entrevistas e poucos trabalhos acadêmicos que buscaram uma
investigação mais profunda, mas que fornecem apenas dados pontuais,
sem muitos detalhes.

Reflexões sobre História e Literatura

Falar sobre os Annales e as transformações possibilitadas pe-


las aproximações teóricas entre a história e a literatura é, sem dúvida,
sublinhar as múltiplas possibilidades da Historiografia. A Escola dos
Histórias, narrativas e religiões 533
Annales, fortemente marcada por um pensamento interdisciplinar, abre
a possibilidade de conjugar os saberes a partir de outras áreas do conhe-
cimento, sendo uma delas a literatura.
Após o surgimento da “Revolução Documental”, proposta por
Marc Bloch (1886-1944) e Lucien Febvre (1878-1956), o arcabouço
de fontes historiográficas ampliou, de forma que oferece ao historiador
diversas possibilidades de análises históricas para além dos documentos
oficias. Ao desvencilhar-se da proposta positivista de análise históri-
ca, que possuía enquanto um de seus personagens, Fustel de Coulanges
(1830-1889), e que consistia em praticar o escrito historiográfico ex-
clusivamente por meio de documentos escritos e oficiais, a École des
Annales, fundadas no ano de 1929 por Bloch e Febvre, apresenta uma
nova concepção de história, como uma construção e produto de uma
situação. (MEIRELLES, 2002)
Roger Chartier tem evidenciado a relação entre a literatura e
a história, sublinhando que esta relação pode vir a ser entendida de al-
gumas maneiras. A primeira delas reside no tocante a compreensão da
forma como nos relacionamos com as obras, usualmente tratando-as
como invariáveis. As obras devem ser compreendidas no seu espaço e
no seu tempo de criação. É preciso romper com o procedimento de
apreciação da obra partindo dos nossos princípios. “Devemos romper
com a atitude espontânea que supõe que todos os textos, todas as obras,
todos os gêneros, foram compostos, publicados, lidos e recebidos segun-
do os critérios que caracterizam nossa própria relação com o escrito”.
(CHARTIER, 1999)
Portanto, faz-se interessante buscar compreender e identificar,
histórica e morfologicamente, as especificidades da escrita e dos discur-
sos, deste modo, reconhecer a diversidade das operações e autores que
implicam na produção e na publicação de um texto.

Trata-se também de considerar o sentido dos textos como o resul-


tado de uma negociação ou transações entre a invenção literária e
os discursos ou práticas do mundo social que buscam, ao mesmo
tempo, os materiais e matizes da criação estética e as condições de
sua possível compreensão. (CHARTIER, 1999, p.197)

534 Histórias, narrativas e religiões


Outra maneira de se estabelecer uma relação entre história e
literatura, também apresentada por Chartier, caminha no sentido da
compreensão das categorias que fundamentam e caracterizam a “insti-
tuição literária”. Esta se pauta em três noções: A primeira busca identi-
ficar o texto como algo estabilizado e manipulável; A segunda, partindo
da ideia de que a obra é produzida para um leitor, que lê para si mesmo
quando em público, ou seja, um leitor silencioso; E por fim, a caracte-
rística da leitura enquanto pertencente a um autor e uma decodificação
da significação.
No entanto para compreender as razões da produção, modali-
dades de realização e as formas das apropriações das obras do passado,
é preciso buscar distanciamento destas características e examinar a his-
toricidade.
Segundo apontamentos de Zeloi Aparecida Martins dos Santos
(2009) a afinidade multidisciplinar da história com a filosofia, antropo-
logia, linguística e, finalmente, a literatura, levou a história a construir
novos procedimentos teóricos, temáticas, técnicas e metodologias.
Ao se utilizar de referências como Pesavento e Leennhardt
(1998), Santos nos propicia um olhar mais direcionado a grande ques-
tão que fomenta um antigo debate, a verdade. A verdade, o simbólico, a
intenção presente na narrativa histórica e literária, o uso de tempo e a
recepção do texto. Estas indagações situam a história e a literatura en-
quanto possíveis recriações imaginadas do real.
Do mesmo modo, Santos serve-se dos apontamentos de Ria
Lemarie (2000) para elucidar as relações entre a história e literatura
como uma aproximação a partir de questionamentos epistemológicos
da história, sublinhando que: “No domínio da história, o estudo dos
laços entre discursos históricos e literários, tornou-se possível graças a
um questionamento epistemológico que se situa, globalmente, em dois
níveis distintos” (LAMARIE, 2000, p.9), um deles determina uma di-
ferenciação entre o passado real (passeidade) e o passado historiográfico,
ou seja, a narração do passado, sendo uma recriação por meio de uma
forma plausível. A autora diz que é justamente esta distinção que apro-
xima o historiador e o escritor; nas suas palavras “É esta distinção que

Histórias, narrativas e religiões 535


aproxima um do outro, o historiador do fato real e o escritor de ficção
literária” (LAMARIE, 2000, p. 9). Baseando-se nestas ideias, percebe-
mos que as informações do passado, ou seja, fatos recuperados por meio
de fontes e não dos próprios fatos brutos, são, portanto, representações
de fatos ocorridos no passado.
Por conseguinte, Lamarie diz que

tanto a narração literária quanto a historiográfica pressupõe um


processo e estratégias de organização da realidade, uma procura de
uma coerência imaginada baseada na descoberta de laços e nexos,
de relações e conexões, entre os dados fornecidos pelo passado. Essa
coerência – imaginada pelo escritor/historiador de tal maneira que o
leitor possa reconstruí-la. (LAMARIE, 2000, p. 9-10)

Dado este movimento, seus adeptos como Robert Darnton,


Peter Gay, Carlo Ginzburg, entre outros, vem mostrando que estilo e
pesquisa não são opostos e acabam se complementando. Diante dis-
to, podemos perceber que “O discurso literário resulta de uma reflexão
e se constitui em uma mediação social, tal como o discurso histórico.
Daí ser possível através das técnicas de expressão literária tais como os
modos de narrar e construir pontos de vista poder-se revelar a história”
(SANTOS, 2009, p.6).
Neste sentido, quando refletimos sobres o discurso literário en-
quanto uma produção discursiva, consequentemente, estamos pensando
que este discurso é produzido por alguém, o Autor. Mas quem, de fato é
o Autor, é aquele a quem se pode atribuir o que foi escrito?
No início de sua conferência “O que é um Autor?”, Michel
Foucault faz uma reflexão acerca dos elementos que podem vir a compor
a chamada “função-autor”, sendo esta a maneira como o autor está pre-
sente de forma irrestrita, situando-se fora ou antecedente a ele. “Mas os
discursos “literários” não podem mais ser aceitos senão quando providos
da função-autor: a qualquer texto de poesia ou ficção se perguntara de
onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstancia ou a
partir de que projeto. ” (FOUCAULT, p. 279, 2001)

536 Histórias, narrativas e religiões


Estas perguntas realizadas ao texto constituem a função-autor,
já que este é constituído de um nome (daquele que o produziu); das
relações de apropriação, já que não podemos dizer que o autor inventa
ou produz a partir do vazio; das relações de atribuição, onde está o autor
como aquele a quem se atribui a produção do escrito ou dito embora
esta seja resultante de operações críticas complexas eventualmente jus-
tificadas; E por fim, a posição do autor, sendo apresentada enquanto os
formatos presentes da estrutura do texto. (FOUCAULT, 2001)
Assim, parece-nos ser a função autor a caracterização do modo
de circulação e funcionamento dos discursos em diferentes contextos
sociais, marcando um mecanismo de apropriação que nos permite dis-
tinguir os muitos “eu” ocupados nos textos. Barthes (2004) também já
fez esta discussão acerca de quem escreve, da voz do autor. Na sua con-
cepção, o autor é uma caracterização moderna, responsável por balizar o
nosso entendimento sobre a obra literária de sua autoria, em uma pers-
pectiva histórico-social. Essa relação autor/leitor articulada por meio do
texto é que dará matizes distintas a leitura do texto, desvendando outro
escritor que de acordo com Barthes (2004) se dá pela “morte de autor”.
Segundo Barthes, o conceito clássico de autor pressupõe um
alguem que produz um texto e que é anterior a este produto, e para
Barthes a escrita é um espaço onde o autor deixa de viver para que esta
(a escrita) possa tornar-se existente. “A escrita é esse neutro, esse com-
pósito, esse obliquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco
aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do
corpo que escreve”. (BARTHES, p.57, 2004)
Roland Barthes pretende trazer luz à crítica com respeito ao
tratamento coercitivo que visa centrar-se no autor, atribuindo os escritos
como extensão do mesmo. A crítica é diretamente relacionada ao ato de
buscar explicar a obra sempre procurando olhar para quem a produziu
“como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse
sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, que nos entre-
gasse a sua confidência. ” (BARTHES, p.58, 2004)
Barthes se utiliza do conceito de Escritor para referir-se a este
escritor moderno que, diferente do autor clássico, é gestado juntamente

Histórias, narrativas e religiões 537


ao seu texto e não existe antes dele ou além dele. O autor morre ao dar
vida à escrita

o scriptor moderno nasce ao mesmo tempo que o seu texto; não está
de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua
escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o pre-
dicado; não existe outro tempo para além do da enunciação, e todo
o texto é escrito eternamente aqui e agora. (BARTHES, p.59, 2004)

Para Foucault, é imprescindível que exista um autor, à medida


que os questionamentos que se fazem sobre a obra podem vir a ser res-
pondidos se levado em consideração as características da função-autor.
Levando em conta que é o autor e suas vivências que tornam cabíveis e
compreensíveis a presença de alguns acontecimentos na obra, tais quais
suas modificações ou variações; isso se dá mediante os prismas indivi-
duais, analisas ou posições sociais, sendo estes aspectos fundamentais.
Muito embora a discussão de cada um dos autores seja de
suma importância, optamos aqui por seguir o ponto de vista de Michel
Foucault, pois este apresenta contribuições que nos parecem mais in-
teressantes para este trabalho, ao realizarmos uma reflexão acerca da
autora da obra “As brumas de Avalon”, Marion Zimmer Bradley.
Ao passo que Foucault busca estabelecer o autor como um pro-
dutor de discurso que os produz baseado em seu entorno característico
como: posição de classe, biografia ou perspectiva individual; demons-
trou-se interessante para nossa análise, estabelecer um paralelo com a
categoria de “Lugar Social” de Michel de Certeau (1982), entendida
enquanto a forma com que a História se articula com um lugar de pro-
dução socioeconômico, político e cultural. E é em função deste lugar que
se delineia uma topografia de interesses.
Nesse sentido, compreender de que maneira Bradley apresenta
as práticas religiosas em sua obra literária, quais os discursos produzidos
por ela, como e quem recebe estes discursos, pressupõe compreender
que a organização da história é relativa a um espaço específico, assim
como o seu tempo e isso ocorre, ao passo que cada corpo social analisa
a si mesmo com as ferramentas que lhe são inerentes. (CERTEAU,

538 Histórias, narrativas e religiões


1982). Nessa mesma linha podemos perceber o alinhamento com os
recursos presentes na função-autor

O autor é o que permite explicar tão bem a presença de certos acon-


tecimentos em uma obra como suas transformações, suas deforma-
ções, suas diversas modificações (e isso pela biografia do autor, a
localização de sua perspectiva individual, a análise de sua situação
social ou de sua posição de classe, a revelação do seu projeto funda-
mental. (FOUCAULT, p.81, 2001)

Nos anos de 1970, o cenário posto é o do surgimento e ex-


ploração de diversas novas formas de expressão de religiosidade, algo
que Carrol Fry (1993) chama de Religiões Não Tradicionais, o que leva
Bradley a aprofundar-se nesses conhecimentos. Em seu artigo publicado
em Journal of Popular Culture, Fry (1993) escreve sobre seu contato com
o neopaganismo, a partir do desenvolvimento de sua série documental
Creeds in Conflict, a qual consiste em uma série de entrevistas com pra-
ticantes de diversos segmentos religiosos. Nota, então, a presença das
obras de Bradley atuando como fonte de influência para esse público:
“Uma característica generalizada entre os pagãos é um amor pelos li-
vros. Quase todos liam muito da ficção de Bradley”216 (FRY, 1993, p.68).
Outro ponto levantado por Fry é o de que, nos anos de 1970, ocorre uma
explosão de produções da ficção popular.

Talvez por causa do laço estreito entre crenças neopagãs e tradições


literárias e folclóricas ocidentais – e talvez por causa do amor dos
pagãos pelo medievalismo – escritores de fantasia heroica aprende-
ram a usar o Craft, como os praticantes o chamam, como o quadro
para suas obras (FRY, 1993, p.67).

Levando em consideração a vasta produção de obras literárias


que seguem esta linha temática, notamos uma rápida adaptação de um
movimento cultural pelos produtores de conteúdo, por exemplo, os es-
critores. Bradley apresenta cerca de 50 títulos que abarcam a discussão

216  No original: “One widespread characteristic among Pagans is a love of books. Nearly every
Neo Pagan I have met has read much of Ms. Bradley’s fiction”.
Histórias, narrativas e religiões 539
sobre misticismo, magia e ficção científica, o que nos leva a perceber um
público interessado, que a consome esse tipo de produção.
Bradley, como pessoa influente neste meio e produtora de con-
teúdo, interpreta estes desenvolvimentos e os transpassa em suas obras,
retratando nelas características do tempo e do espaço nos quais está
inserida. A partir de Certeau (1982), podemos entender que a litera-
tura de Bradley não pode ser analisada fora da sociedade na qual se
insere, pois isso implicaria a transformação das situações acentuadas.
Dessa forma, se a organização da narrativa é referente a um lugar e a um
tempo, isso se deve, inicialmente, às suas técnicas de produção, uma vez
que cada sociedade se pensa historicamente com os instrumentos que
lhe são próprios.

O livro ou o artigo de história é, ao mesmo tempo, um resultado e um


sintoma do grupo que funciona como um laboratório. Como o veículo
saído de uma fábrica, o estudo histórico está muito mais ligado ao
complexo de uma fabricação específica e coletiva do que ao estatuto
de efeito de uma filosofia pessoal ou à ressurgência de uma “realidade”
passada. É o produto de um lugar (CERTEAU, 1982, p.64).

Diante destes apontamentos, é possível que percebamos como


as relações entre o autor, seu contexto de produção e o produto final de
sua obra estão relacionados, segundo os excertos de Michel Foucault.

O mito como objeto de estudo

Tendo em vista que as mitologias presentes na obra “As brumas


de Avalon” (1982) são o nosso principal foco de observação, nos pareceu
interessantes buscar compreender mais a respeito das concepções sobre
mito e suas estruturas, embora nosso olhar não seja restrito a estas.
Mircea Eliade em seu livro intitulado “Mito e realidade” (1972)
inicia a discussão a respeito dos mitos apontando que os estudiosos des-
te tema, a pouco mais de meio século, passaram a observar o mito tal
540 Histórias, narrativas e religiões
qual as sociedades arcaicas observavam: como uma “história verdadeira”;
e esta característica é bastante valiosa.
Compreender a função e a estrutura do mito em uma comu-
nidade não significa apenas perceber o funcionamento e a forma como
é estruturada uma sociedade arcaica, mas também nos leva a compre-
ensão da nossa sociedade contemporânea. Os mitos fornecem ao ho-
mem, e a sociedade, modelos de conduta a respeito do comportamento.
(ELIADE, 1972)
Para Eliade, a definição de mito é a de que o mito conta uma
história sagrada, que recupera um acontecimento primordial e seu tem-
po. É o relato de como, graças a forças do Sobrenatural, a realidade passa
a existir. É, portanto, a narrativa de uma criação.

Juramos num templo, hoje perdido sob o mar, onde o grande Orion
não governará mais. Juramos partilhar da sorte daquele que roubou
o fogo do Céu, para que o homem não vivesse nas trevas. Foi grande
o bem que adveio desse dom do fogo, mas também grande foi o
mal, pois o homem aprendeu a usá-lo indevidamente, com perver-
sidade... e assim, aquele que roubou o fogo, embora seu nome seja
reverenciado em todos os templos por trazer a luz à humanidade,
sobre tormentos para sempre, onde está acorrentado, com um abutre
a roer-lhe eternamente o coração... (BRADLEY, p. 70, 2008)

Em alguns trechos da obra, tal qual citado acima, podemos ob-


servar a presença destes aspectos, levando-nos a ler a obra As brumas
de Avalon, enquanto uma narrativa mitológica. Uma das características
importantes a ser percebida em uma narrativa mitológica é a presença
da jornada ou saga do herói.
Segundo Joseph Campbell, nas mitologias é comum defron-
tar-se com a presença do herói ou heroína, que descobre ou realiza uma
tarefa além do comum. Esta proeza realizada pelo herói, pode ser tanto
física, como um ato de coragem e bravura, quanto espiritual, na qual ele
aprende a lidar com a alteração do nível espiritual, como a necessidade
de abandonar o local de omisso e assumir uma posição mais madura. “O
herói é alguem que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo. ”
(p.137, 1990)
Histórias, narrativas e religiões 541
Em nossa fonte, “As brumas de Avalon”, podemos perceber que
a função “herói” é desempenhada em sua maioria pelas mulheres, por-
tanto quem compõe a saga, nesta narrativa, são as heroínas. Tendo em
vista esta característica do abandono de uma posição confortável para
responder a grandes responsabilidades, imediatamente no início da obra
nos deparamos com Igraine. Para corresponder ao que é indicado pela
Deusa, Igraine deve casar-se com um homem escolhido e sua tarefa será
gestar o grande herdeiro da Bretanha. “Mas, quando Viviane falou, sua
voz era muito suave. Disse: - Você, Igraine. Você nos dará esse Grande
Rei”. (BRADLEY, p.28, 2008)
Em outro momento, onde Morgana já adulta, irá passar pelo
ritual do Grande Casamento, podemos observar a presença do elemento
da “saga do herói”, ao passo que Morgana, na qualidade da presença da
Deusa, deve oferecer sua virgindade ao Deus.

Uma grande figura cheia de chifres, metade homem, metade animal,


abrindo de repente a cortina e entrando em seu quarto (...) à sua
volta, nas paredes, pôde ver os símbolos sagrados, pintados desde o
princípio do tempo, o gamo, os galhos, o homem com os galhos na
testa, a barriga crescida e o peito intumescido, Ela Que Dá a Vida...
(BRADLEY, p.194-200 ,2008)

Em Roy Willis (2007) encontramos uma referência a respeito


da imagem do cervo e dos chifres, quando ele chama de “Cernunnos,
o Chifrudo” sendo atribuído a uma deidade masculina, representando
fertilidade e abundância, e também o provedor:

Outras imagens gaulesas mostram o deus chifrudo sentado, entre-


laçado por duas serpentes com cabeça de carneiro que comem uma
pilha de frutos em seu colo [...]. Um relevo em pedra do sudoeste
da Inglaterra mostra o deus com duas grandes serpentes com cabeça
de carneiro formando suas pernas; estas se erguem perto de bolsas
de dinheiro abertas, de cada lado dele. Uma moeda de prata de c.
20 d.C, do sul da Inglaterra, mostra a deidade com uma roda entre
seus chifres. Como a roda é um símbolo solar, esta imagem talvez
represente a fertilidade e o renascimento da terra na primavera. A
associação com a serpente é sugestiva, pois a serpente é um símbolo

542 Histórias, narrativas e religiões


generalizado de fertilidade e renascimento, ligado ao mundo sub-
terrâneo. Na tradição gaélica, ela ressurge no dia de Santa Brígida,
marcando o retorno da primavera. A serpente de cabeça de carneiro
ligada a Cernunnos simboliza duplamente, portanto, virilidade e re-
novação (WILLIS, 2007, p.179).

Considerações finais

No presente artigo, buscamos abordar a obra “As brumas de


Avalon” (1982), de modo que fosse possível compreender mais profun-
damente, as relações e aproximações entre História e Literatura, sempre
tendo em vista as possibilidades de abordagem da História das Religiões,
à medida que nosso objeto de estudo nos traz ambas perspectivas. Ao
passo que a obra “As brumas de Avalon”, apresenta-se como uma obra
literária, buscamos aqui levantas alguns aspectos e possibilidades de
abordagem para este tipo de fonte, os quais pudemos nos servir dos
autores Michel Foucault (1969) e Roland Barthes (2004), bem como os
apontamentos de diversos escritos de Roger Chartier.
Após estas observações, entendemos que a trajetória de Marion
Zimmer Bradley, por denotar um trânsito por diversas formas de reli-
giosidade, assim como o consumo de seu discurso literário por elas, á
mesma forma o contrário, proporciona a Bradley um amplo conheci-
mento que é absorvido pela autora, interpretado a partir de suas próprias
convicções e transposto para a obra.
Além disto, buscamos também observar no conteúdo da obra, a
presença de narrativas míticas que acabam por construir “As brumas de
Avalon” como uma narrativa mitológica. Alguns aspectos como a “saga
do herói” são rapidamente notados na obra.
Dessa forma, os apontamentos apresentados pelos autores
Joseph Campbell (1990) e Roy Willys (2007), trazem luz a alguns as-
pectos presentes na obra, por exemplo os simbolismos, que muito nos
ajudam na compreensão da história enquanto uma narrativa mitológica.
Histórias, narrativas e religiões 543
Os autores acima citados podem ser de grande auxílio teórico
e fundamentais para a compreensão das personagens presentes na obra
“As brumas de Avalon”, nas abordagens as quais nos propusemos a ter
neste artigo. Contudo, ressaltamos que este é um dos olhares possíveis a
se debruçar sobre a obra e as considerações levantadas são apenas possi-
bilidades, não anulando as demais perspectivas que podem ser usadas ao
observarmos a totalidade da narrativa.

Referências

BARTHES, Roland. A morte do autor. O rumor da língua, v. 2, p. 57-64. Martins Fontes, 2004.

BRADLEY, Marion. As brumas de Avalon: A senhora da magia. Tradução de Waltensir Du-


tra. Rio de Janeiro: Imago, 2008. [vol. 1]

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Moisés). São Paulo, Palas Athena, 1990.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão
técnica de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

CHARTIER, Roger. Literatura e História. Topoi. Rio de Janeiro, nº1, p. 197-216, 1999.

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FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura,
música e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, p. 264 – 298, 2001.

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mer Bradley’s Novels. The Journal of Popular Culture, vol. 27, pp.67-80, 1993. Disponível em:
<http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.0022-840.1993. 64521458967.x/abstract> DOI:
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MEIRELLES, William Reis. Ler, ouvir e ver. A Revolução Documental na pesquisa histórica:
uma abordagem das formas da construção da história. História & Ensino, Londrina, v. 8, p.
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544 Histórias, narrativas e religiões


SEKLES, Flavia. Elas são medievais. Revista Veja, 1987. Disponível em: <https://acervo.veja.
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WILLIS, Roy. Mitologias: deuses, heróis e xamãs nas tradições e lendas de todo o mundo.
(Tradução de Thaís Costa e Luiz Roberto Mendes Gonçalves). São Paulo, Publifolha, 2007.

Histórias, narrativas e religiões 545


Os gnósticos cristãos, caminho de
inserção do cristianismo na cultura
clássica no século II d.C.

Leonardo Henrique Piacente (PUCRio)

Resumo: No século II d.C. surgiram dentro das comunidades cristãs


interpretações, doutrinas e propostas que marcaram os primeiros séculos
do movimento cristão e convocaram estudiosos a defenderem doutrina
cristã, o valor das Escrituras e sua interpretação, e a fé em Jesus Cristo.
Os gnósticos, que neste período tiveram um amplo desenvolvimento
dentro do cristianismo e das fronteiras do Império Romano, inseriram o
movimento cristão num ambiente ainda não aprofundado: a sistemati-
zação da fé e a cultura greco-romana. O início da pregação da Boa Nova
de Jesus Cristo foi marcado pelo convite à uma nova experiência de vida,
de serviço ao próximo e de levar a todos a novidade do Evangelho. No
século II, não somente com as heresias gnósticas, mas também sua in-
terpretação das Escrituras e da doutrina cristã, levou Irineu de Lião, na
obra Adversus haereses, a aprofundar-se na cultura clássica greco-roma-
na, com suas diversas influências, e a apresentar mais que uma defesa da
fé, mas também sistematizá-la. Desta forma, o objetivo desta pesquisa
é analisar a obra literária de Irineu de Lião e sua interpretação dos gru-
pos gnósticos cristãos, possibilitando compreender o desenvolvimento
do cristianismo neste novo ambiente cultural-filosófico. A metodologia
será qualitativa, tendo como base um método bibliográfico exploratório
e a hermenêutica das fontes e dos textos.

546 Histórias, narrativas e religiões


As “operações poéticas” do judaizante
Luis de Carvajal: inventividades em
relação à ortodoxia católica do século XVI

Plínio Felipe Amaral Pires (Mestrado – UNICAMP)

Resumo: O texto tem como tema o caso de Luis de Carvajal, cristão-


-novo entregue às chamas da Inquisição mexicana em 1596. Com o
recrudescimento, na segunda metade do século XVI, da perseguição
inquisitorial à heresia da Lei de Moisés em Portugal, grupos de cris-
tãos-novos, entre eles Luis e sua família, migraram para Nova Espanha
procurando um território menos vigilante para vivenciar seu “judaís-
mo”. Contudo, mesmo no Novo Mundo, eles continuavam a habitar
um meio social em que as representações religiosas serviam como dis-
positivos para instaurar a ortodoxia católica. Embora a Igreja tentasse
instituir a univocidade do texto, as práticas de leitura a subvertiam tácita
e constantemente através das “operações poéticas” (termo de Michel de
Certeau): o leitor, pluralidade indefinida de significações, sempre in-
sinuava inventividades em relação à ortodoxia católica na construção
de sentido do texto. Assim, com o intuito de fazer apontamentos para
uma historiografia ainda generalizante – que ora identifica os judai-
zantes aos sefarditas; ora os classifica como marranos (cristãos-novos
divididos entre o judaísmo e o catolicismo) - delinearemos as operações
poéticas produzidas por Luis em algumas de suas leituras. Daremos es-
pecial atenção as suas Memorias e suas cartas - material que escrevera
em seus anos na Nova Espanha e que foram anexados aos seus processos
inquisitoriais (1589 e 1596) - para analisar como as articulações dessas
operações contribuíram para que, através da produção desses documen-
tos, Luis representasse suas re(construções) identitárias judaicas.

Palavras-chave: História da Leitura; Século XVI; Nova Espanha;


Cristãos-novos; Luis de Carvajal (“El Mozo”).
Histórias, narrativas e religiões 547
Introdução

No século XVI ocorreu a conhecida Conquista Espiritual da


América. Esse processo foi profundamente determinado por um cato-
licismo que, ao longo do século, conheceu um recrudescimento das for-
ças de centralização da Igreja em Roma. Com o surgimento e ameaça
dos chamados protestantismos, essa centralização levou a uma inédita
sistematização dos esforços da Igreja para reafirmar o que era o catoli-
cismo ortodoxo e também sua homogeneização entre os que estavam
sob a sua jurisdição. Assim, esse impulso ordenador também viajou pelo
Atlântico. Com o intuito de combater a idolatria e conduzir a Nova
Espanha corretamente ao catolicismo, os clérigos contaram com dife-
rentes dispositivos para imposição da ortodoxia: o teatro, as procissões,
o catecismo (KARNAL, 1998, p. 22, 23, 140) mas também as leituras
religiosas. Os laços entre a imposição da ortodoxia e os livros não se
resumiam a conhecida censura de materiais pelo Index, tratava-se de
uma aspiração autoritária mais orwelliana: a univocidade do sentido das
Escrituras (CERTEAU, 1998, p.267).
A Igreja instituiu uma ruptura social entre clérigos e “fiéis” que
mantinha as Escrituras no estatuto de uma “Letra” supostamente inde-
pendente dos leitores. Essa autonomia do texto reproduzia relações so-
cioculturais que estabeleciam que só havia um modo de ler as Escrituras.
No entanto, com a difusão da impressa e as reformas, esse esforço de
imposição da ortodoxia romana teve que lidar com práticas de leitu-
ras intrinsecamente inventivas e que, na maioria das vezes, souberam se
manter no silêncio - mas que continuavam a ser ainda transgressoras às
aspirações de univocidade (CERTEAU, 1998, p.268).
Desse modo, a leitura, no século XVI, era a conjunção entre
o esforço da Igreja em impor a univocidade do sentido das Escrituras,
repreendendo as leituras heréticas, e a silenciosa atuação das opera-
ções poéticas, construções do texto pelo leitor, que em cada leitura in-
sinuavam uma pluralidade de inventividades no campo da ortodoxia
(CERTEAU, 1998, p.268). Assim, a seguir delinearemos as operações
poéticas utilizadas por Luis de Carvajal em algumas de suas leituras e
548 Histórias, narrativas e religiões
discutiremos como nossos apontamentos sobre essas operações podem
contribuir para uma reavaliação das vertentes historiográficas sobre o
“judaísmo” dos cristãos-novos.

Metodologia

O jovem Luis de Carvajal nasceu em 1566 em Benavente,


fronteira com Portugal, foi letrado em casa, instruído em latim e retó-
rica pela Companhia de Jesus (em Medina del Campo, Espanha) e só
na idade de doze anos seus pais o ingressaram nas suas crenças judaicas.
Sua família era composta de cristãos-novos portugueses que, embora
publicamente fossem católicos e estivessem isolados da religião judaica
desde a conversão forçada de 1497 do rei Don Manuel, eles ocultamente
guardavam práticas mosaicas. Os Carvajal chegaram a Nova Espanha
em 1580, mas não demorou para que se encontrassem, como outros
portugueses cristãos-novos, nos cárceres secretos da Inquisição mexi-
cana (entre 1589-90) pela heresia da Lei de Moisés (AGNM, 1589,
f.108-108v, 110).
Poucos anos depois (1595), os Carvajal sofreram seu segun-
do processo. Os inquisidores encontraram diferentes maneiras para que
Luis delatasse seus familiares e outros judaizantes. Uma delas foi o uso
de um espia, Gaspar de Villafranca, o companheiro de cárcere de Luis.
Após ganhar sua confiança, Luis lhe revelou que escrevera um espécie
de diário, que os inquisidores denominariam Memorias, onde ele relata-
va suas desventuras pela Nova Espanha (AGNM, 1596, f.24v). Em suas
Memorias, Luis nos conta um episódio que definitivamente marcara sua
vida de judeu. Em seus primeiros anos na Nova Espanha, ele comprou
uma vulgata e logo em seguida se pôs a lê-la assiduamente, desde o co-
meço, com intuito de encontrar os mistérios divinos do judaísmo. Ele
se lembra que ao chegar em Gênesis 17:14 ele sofreu um grande temor:

Histórias, narrativas e religiões 549


“Lendo um dia no capitulo 17 do Gênesis onde o senhor mandou circun-
cidar-se a Abraão nosso santo pai. Especialmente naquelas palavras em
que dizia: “A alma que não for circuncidada será apagada do Livro dos
Viventes”. Isso lhe deu tal golpe de temor no coração que sem mais adiá-lo,
acudiu a execução de tal divina inspiração, movido pelo altíssimo e pelo
Seu bom anjo, e assim se levantou do corredor da casa onde estava lendo,
e deixando a sagrada Bíblia aberta pegou uma tesoura de gumes gastos,
e se foi às margens do rio Pánuco onde com cobiça e ardente desejo de
ser escrito no Livro da Vida, que sem este santo sacramento é impossível,
selou-se com ele e se cortou quase todo o prepúcio, de maneira que apenas
ficou um pouco por cortar (...)”217(GONZÁLEZ OBREGÓN, 1935,
p.464-465).

Luis repetiu esse impressionante relato a Luiz Diaz. Ele lhe


disse que, embora não aguentara o procedimento até o fim - pois quase
desmaiara pelo efeito da dor – ele se orgulhava de tê-lo cumprido. Ele
explicava que, malgrado estivesse preso e condenado à fogueira, ele esta-
va circuncidado e, portanto, já não temia a morte (AGNM, 1596, f.14v).
Seu nome estava escrito no “Livro da Vida”.
Essa expressão apareceu nas outras vezes em que ele relembrou
o episódio diante dos inquisidores. Em uma delas, com o intuito de dar
mais autoridade a decisão de circuncidar-se, Luis recitou em latim o que
escrevera em suas Memorias: “Anima enim quem cincuncisa [non] fue-
rit delebitur de libro viventium (AGNM, 1596,f.169v). Tomemos como
comparação o Gênesis 17:14 de uma vulgata e de uma vernácula. Na
vulgata: “masculus cujus præputti caro circuncisa non fuerit delebitur anima
illa de populo suo quia pactum meum irritum fecit” e na vernácula “o incir-
cunciso, que não se circuncidar na carne do prepúcio, essa alma será extirpada
do seu povo; violou o meu pacto”. Como podemos ver, a expressão “Libro

217 “(...) y leyendo un dia en el capitulo 17 del genesis done el sr. mando circuncidarse
a Abraham nro. pe. sto. especialmente, aquellas palabbras que dicense lanima que fuere
incircunciddada sera borrada del libro de los vivientes diole tal golpe de temor en el con. que
sin mas dilatarlo acudio a la execucion de la diuina inspiracion movio por altisimo y por su
buen angel, y ansi se lebanto e un corredor de la casa donde estaba leyeno, y exando aun la
sacra biblia abierta tomo unas tixeras de bienvotos, gastaos filos, y se fue sobre la barranca del
rio Panuco donde con cobdicia y encendido deseo de ser escrito en el libro de la vida que sin
este sacramento sto. es imposible se sello con el y se corto casi todo el prepucio, de manera que
solo quedo del un poco por cortar (...)”.
550 Histórias, narrativas e religiões
viventium” ou “Livro da Vida”, mencionadas por Luis, não estão em
Gênesis 17:14. Então, o que o levou a fazer esse acréscimo?
Ambas citações em latim, a de Luis e a da Vulgata, contém a
palavra delebitur, que é o futuro passivo do verbo deleo e que significa
“arrasar, destruir ou apagar”. Na vulgata, esse verbo é usado no sentido
de “destruir algo”, isto é, o incircunciso será arrasado do povo de Deus.
No entanto, Luis o empregou no sentido de “apagar algo escrito”. Ele
se referia a ter o nome apagado do Livro da Vida - que ele certamen-
te encontrara em outras passagens do Antigo Testamento. Contudo, se
tomarmos algumas referências explícitas a essa expressão (como Êxodo
32:33 ou salmos 69:28) veremos que nenhuma delas associa o Livro da
Vida à circuncisão. Essa peculiar associação, na verdade, resulta da cons-
trução de um significado próprio para a circuncisão. O Livro da Vida é
o livro onde Deus escreve o nome dos justos e lhes garante a vida. No
entanto, para Luis, não se tratava só de vida terrenal, pois após a cir-
cuncisão ele não temia a morte, ele esperava a vida eterna. Essa recons-
trução mostra que, para ele, a circuncisão faz, pela sua “função” de asse-
gurar a vida eterna, um paralelo com o batismo dos católicos, ou como
ele mesmo dizia, era um “sacramento santo” (LOZADA JUNIOR;
F.SEGOVIA, 2014, p. 129).
Luis se reconhecia como judeu, mas as concepções que cons-
tituíam seu judaísmo eram construídas por conceitos do universo cató-
lico – a circuncisão é apenas um entre muitos exemplos. As operações
poéticas não atuam em um lugar próprio; sua particularidade “é jogar
em um terreno alheio que lhe é imposto tal como o organiza a lei de
uma força estranha”, diz Certeau (CERTEAU, 1998, p.100). É somente
em um lugar estabelecido (no caso, a ortodoxia), que se caracteriza por
diferenciar-se do outro, é que as operações poéticas podem insinuar-se
e construir uma significação diferente para a circuncisão; não mais um
indicio de heresia, mas sim, como dizia Luis, “um santo sacramento” que
garantia a salvação.
Durante sua segunda prisão, Luis encontrou uma maneira
original de se comunicar com suas irmãs; ele costumava escrever e
enviar mensagens escondidas em frutas. Em suas palavras de consola-

Histórias, narrativas e religiões 551


ção, Luis lhes assegurava que elas teriam vida eterna ao lado de Deus,
pois este era o destino reservado aos que morriam como mártires na
Inquisição em nome do judaísmo (GONZÁLEZ OBREGÓN,1935,
p.516, 524 e 526). Na carta de 30 de maio de 1595, Luis escreveu a sua
irmã Catalina o seguinte:

“(...) Abraão nosso senhor pai, atou de pés e mãos a seu filho, e o bendito
Isaque, com maravilhosa obediência esperava a facada. Ânimo, ânimo,
carregadas minhas! Então andava o anjo do senhor trazendo o carneiro
que por ele foi oferecido. Não é Sua vontade que morra Isaque, mas sim
dar-lhes o mérito pela tentação, para dar-lhes o prêmio da vida eterna que
esta não é, mas somente de larga morte e tormento (...)” (GONZÁLEZ
OBREGÓN, 1935, p. 517)218.

Como podemos ver, Luis alterou substancialmente o episódio


do sacrifício de Isaque. Enquanto em Gênesis 22, Abraão é posto à pro-
va, na versão de Luis, trata-se de Isaque que aceita ser sacrificado (!).
Além disso, por respeitar Sua vontade, Deus lhes promete a vida eter-
na - onde não havia sofrimento – e não as bençãos mencionadas nos
versículos 17 e 18 (DOLLINGER, 2002, p.98). Em outra carta, Luis
continuava seu relato:

“(...) havendo chegado ao alto do monte Abraão disse ao seu filho: hás de
saber, filho meu, que o nosso senhor Deus me ha mandado que te ofereça
em sacrifício a Sua divina majestade. Bem-aventurado e feliz tu, pois
como é certa e sem dúvida a morte de todos filhos de Adão, tu morres por
soberano modo oferecido ao Deus Altíssimo, senhor da vida eterna; antes
tenho inveja que vergonha de ti, filho meu, que ao bom senhor vás ofere-
cido (...)” (GONZÁLEZ OBREGÓN, 1935, p.528).219

218  “(…) Abrahan nuestro sancto pe. ato de pies y de manos a su hijo, y el bendito Ysac con
maravillosa obediencia esperaba el golpe del cuchillo, animo animo cargadas mias que entonzes
andaba el angel del señor trayendo el carnero que por el fue ofrezido no es su voluntad no que
muera Ysac sino daros esta merito en la tentación para daros el premio de la eterna vida que esta
no es sino larga muerte y tormento (…)”.
219  “(…) aviendo llegado a lo alto del monte dixole Abraham a su hijo as de saber hijo mio que
el Sr. D. nuestro me a mandado que te offrezca a su divina magestad en sacrificio, bienaventurado
y dichoso tu pues como sea cierto y sin duda el morir en todos los hijos de Adam tu mueres por
soberano modo offrecido al D. altisimo Sr. de la vida eterna antes te tengo embidia que manzilla
hijo mio que a buen Sr. bas offrezido (…)”.
552 Histórias, narrativas e religiões
Ao que responde Isaque:

“Certamente, meu pai, pois o senhor assim manda que se cumpra Sua
vontade que aqui estou obediente” (GONZÁLEZ OBREGÓN, 1935,
p.528).220

É seguro dizer que as alterações no episódio indicam que


Luis estabeleceu um paralelo entre as circunstâncias em que estava
sua família, a espera da morte pela Inquisição, e o sacrifício de Isaque
(DOLLINGER, 2002, p.98). Portanto, vamos analisar atentamente tais
circunstâncias.
Àquele que reincidia no judaísmo estava reservado uma morte
terrivelmente infame. No auto de fé, o sentenciado era exposto a uma
população que vocifera injurias e em alguns casos até o apedrejava.
Diante de tal destino desonroso, Luis retomou o episódio do sacrifício,
que certamente lera antes da prisão, e o ressignificou de acordo com sua
atual situação. Vemos que ele tentava convencer suas irmãs de que aque-
les que morriam em nome do judaísmo não eram infames, na verdade
lhes era reservado uma morte bem-aventura, feliz, certa e sem dúvida
(própria “dos filhos de Adão”), pois aceitaram ser um sacrifício de Sua
divina majestade. Uma morte, dizia Abraão, “invejável”. Além disso, ve-
mos que Isaque aceitou o sacrifício espontaneamente (!), ele tem um
papel ativo na história. Assim, a morte nas chamas pela Lei de Moisés,
não se tratava, segundo Luis, de uma vitória do Santo Oficio no comba-
te à heresia. Tal como Isaque aceitava o sacrifício, era os judaizantes que
decidiam enfrentar as chamas da Inquisição, um mero instrumento de
Deus, que testava sua fé (DOLLINGER, 2002, p.102).
Desse modo, o sentido que Luis atribuía ao texto não estava
isolado de sua exterioridade. Na verdade, a construção de significação,
“que tem por forma uma expectativa ou uma antecipação” diz Certeau,
é como um bloco inicial em que cada vez que o indivíduo decodifica
o escrito, ele está talhando esse bloco e dando lugar a diversas leituras
(CERTEAU, 1998, p.263-264).

220  “(…) por cierto padre mio pues el Sr. ansi lo manda cumplase la voluntad suya que aqui
estoi obediente (…)”.
Histórias, narrativas e religiões 553
Desenvolvimento

As operações poéticas envolvidas nas leituras de Gênesis 17:14


e 22 buscaram demonstrar a maneira pela qual Luis (re)construía sua
identidade judaica pelas Memorias e pelas cartas. Mas essa demons-
tração só foi possível pela singularidade desses materiais. Como vimos,
pelas Memorias e as cartas, Luis, um judaizante, produziu uma narrativa
para seus “pares”. Em contrapartida, os processos inquisitoriais, a prin-
cipal fonte de informação que temos sobre os judaizantes, tinham como
filtro a necessidade de representar a Lei de Moisés tomando como re-
ferência a transgressão à ortodoxia católica. Assim os testemunhos que
compunham um processo deviam ressaltar os fatos que enunciassem as
ocasiões em que o réu incorria nos indícios inquisitoriais sobre a Lei
de Moisés (SUTTON, 2010, p.20, 27). Nessa construção do testemu-
nho os dois lados participavam: os inquisidores recorriam à tortura e
à “promessa” de uma sentença mais branda para os que cooperassem.
Os judaizantes colaboravam ao elaborar respostas que fizessem “eco
às perguntas dos inquisidores”. Assim, os inquéritos eram verdadeiros
“diálogos monológicos” - expressão bakhtiniana apropriada por Carlo
Ginzburg (GINZBURG, 2007, p.286).
A partir desse apontamento, uma linha historiográfica conclui
que os cristãos-novos portugueses do século XVI e XVII já não se-
guiam mais ritos judaicos; a similaridade entre seus testemunhos e os
manuais inquisitoriais não se tratava de coincidência; os cristãos-no-
vos eram coagidos e seus testemunhos inseridos na lógica dos diálogos
monológicos. No caso de Portugal, afirmava Antônio Saraiva, o Santo
Oficio cumpria a função, como instrumento da Coroa, de garantir a ma-
nutenção dos privilégios dos cristãos-velhos; prendia os cristãos-novos,
grupo vinculado à emergente burguesia portuguesa, acusando-os falsa-
mente de insistir no judaísmo. Assim criou-se um mito do cristão-novo
como judeu que sobrevivera mesmo a sua assimilação ao catolicismo
(NOVINSKY, 1992, p.5). Outros autores vão afirmar que esse estere-
ótipo é o que levou muitos cristãos-novos a regressar aos ritos judaicos
de modo que a Inquisição em Portugal funcionou como uma “fábrica de
554 Histórias, narrativas e religiões
judeus” (ROWLAND, 2010, p.182). As Memorias e as cartas demos-
tram que existiam cristãos-novos que efetivamente se consideravam ju-
deus, como Luis, que se considerava membro da “nação hebraica”. Além
disso, o trabalho com as operações poéticas comprova que é descabida
a proposição de que o judaísmo dos cristãos-novos não passava de uma
impressão efetiva dos estereótipos inquisitoriais.
No outro extremo, outros autores, principalmente associados à
Escola de Jerusalém, concluíram, pela frequência com que velhos ritos
judaicos apareciam diante dos inquisidores, a sobrevivência do mosaís-
mo ibérico à conversão forçada no século XVI até a atualidade. Diante
dos esforços persecutórios da Inquisição ibérica ao longo dos séculos,
os cristãos-novos, praticando o criptojudaísmo, conservaram as práti-
cas e crenças de seus antepassados. Não haviam deixado de ser judeus
(SANCOVSKY, 2013, p.28). Essa perspectiva essencialista também
é bastante questionável se lembrarmos que os referenciais pelos quais
Luis constituía seu judaísmo pertenciam à teologia católica.
Uma tentativa de superação dessa classificação dos judaizantes
como católicos ou como judeus apareceu com a elaboração do termo
Marranismo. Nathan Wachtell afirma que o marrano era o cristão-novo
que vivia entre as duas religiões, católica e judaica, e as diferentes ten-
sões que essa convivência provoca, sejam “as vacilações (...), as dúvidas,
as oscilações, as idas e voltas, às vezes o desapego cético, mas também
as interferências, as hibridações, as sinceridades duplas (WACHTELL,
2001, p.15)”.221 Diante dessa amalgamação, ele diz que a essencialidade
marrana residia em uma forma de unidade de deísmo que se constituía
em oposição à trindade, noção da doutrina católica que lhes era imposta.
(WACHTELL, 2001, p.28).
No entanto, Wachtell afirma que a afinidade entre os marranos
partia de uma identificação étnica, mais que religiosa, de modo que eles
se reconheciam como os membros da “nação hebraica”. Segundo o autor,
esse sentimento de pertencimento étnico surgia de uma interiorização
da lógica ibérica de pureza de sangue em que os marranos, invertendo os

221  “(…) les hésitations (...), les doutes, les oscillations, les allers et retours, parfois le
détachement sceptique, mais aussi les interférences, les hybridations et les doubles sincérités”.
Histórias, narrativas e religiões 555
termos, orgulhavam-se por ser cristãos-novos e assim ser de ascendência
hebraica. Assim, o marranismo não se constitui por um corpo doutrinal
definido, mas por um esforço de reafirmar que a Lei de Moisés, a que se-
guiram seus ancestrais, não caducou, e assim honrar uma verdade ances-
tral. Seria uma “Fé da recordação” (“Foi du Souvenir”) (WACHTELL,
2001, p.29).
Para Wachtell, o marranismo é um conjunto de inquietudes, prá-
ticas e crenças, e não uma religião claramente definida (WACHTELL,
2001, p.28), onde ocorrem amalgamações entre as doutrinas católicas
e judaica. Essa explicação nos parece problemática, pois, ela implicita-
mente guarda a ideia de que havia um católico ou judeu “puro”, isto é,
em total conformidade com o catolicismo ou o judaísmo ortodoxo. No
entanto, ao lermos os escritos de Luis, fonte aparentemente não cor-
rompida pelos diálogos monológicos, alguns apontamentos de Wachtell
parecem bastante sensatos. Em suas Memórias, Luis se referia aos cris-
tãos-novos, de um modo geral, como membros da nação hebraica (naci-
ón hebreo), fosse ao falar daqueles que ainda seguiam práticas judaizan-
tes, fosse para criticar os que buscavam sinceramente seguir o catolicis-
mo - os quais ele chamava “herejes de nuestra nación” (GONZÁLEZ
OBREGÓN, 1935, p. 463, 469, 474, 477, 483). O orgulho étnico de
pertencer uma família da “nação hebraica” parece uma incorporação “às
avessas” da lógica ibérica de pureza de sangue. Além disso, vimos, pelo
exemplo do sacrifício de Isaque, que a morte nas mãos da Inquisição (o
martírio) era para Luis uma forma de honrar a fé de seus ancestrais.
Não obstante, um trabalho a partir da redução da escala social,
como é o estudo do caso de um único judaizante, é mais interessan-
te para questionar, e não confirmar, teorizações. Malgrado tenhamos
feito a crítica ao conceito de marranismo, nosso objetivo aqui não é
reformulá-lo. Ao nos debruçar sobre um caso de documentação atípica
buscaremos fazer apontamentos, a partir dos exemplos dados, com in-
tuito de fornecer proposições que estimulem novas teorizações sobre o
“judaísmo” dos cristãos-novos.
Nosso exemplo da leitura de Gênesis 17:14 demonstrou que
as operações poéticas atuavam insinuando inventidades no campo da

556 Histórias, narrativas e religiões


ortodoxia católica. Essa pluralidade no sentido e a ambiguidade na in-
terpretação dos símbolos, comumente detectada nos estudos de caso,
estão determinadas pela consituição de diferentes capitais culturais – no
nosso exemplo, os conhecimentos de latim e retórica de Carvajal - e
pela distribuição desigual dos recursos materiais e simbólicos (LEVI,
2011, p. 53) – como os textos que Luis tivera em mãos. Também deve-
mos levar em conta como determinante as específicas relações de forças
(CERTEAU, 1998, 44), isto é, os conflitos, negociações e afetividades
entre os que “zelavam” pela fé e os judaizantes na Nova Espanha. Como
Baltasar, irmão maior de Luis, conseguiu, estando na populosa Cidade
do México, circuncidar-se em pleno dia? Como os dois irmãos se aven-
turam na tentativa de “conversão” de Gaspar, primogênito dos Carvajal,
dentro do convento dos dominicanos sem levantar suspeitas? Parece-
nos que na Nova Espanha havia maior espaço de liberdade para práticas
mosaisca em relação aos reinos ibéricos, pois a maior parte da população
era neófita e os vínculos sociais e econômicos entre a população cris-
tã velha (incluindo agentes inquisitoriais) e a nova produziram situa-
ções inéditas de “aceitação” aos desvios à ortodoxia (ALBERRO, 1988,
p.419,420). Assim, diante das limitações e determinações de múltiplas
variáveis na relação entre os indivíduos e a interpretação dos símbolos,
devemos questionar as formulações que atestam uma homogeneidade
nas crenças e práticas dos marranos222.
Pelo exemplo da ressignificação do sacrifício de Isaque busca-
mos demonstrar que “(...) cada criatura é dotada de uma série de identi-
dades, ou provida de referências mais ou menos estáveis, que ela ativa su-
cessiva ou simultaneamente, dependendo do contexto” (GRUZINSKI,
2001, p.35). As Memorias e as cartas estão especificamente vinculadas
a situações particulares da vida dos Carvajal. A produção das Memorias
de Luis se iniciou com seu livramento da penitência no Hospital de los
Convalesciente e a descoberta da biblioteca do Colegio de la Santa Cruz

222  Tanto a historiografia “essencialista” como aqueles que adotam a noção de marranismo
tendem a definir e catalogar um corpo de crenças exclusivamente judaizante. O volumoso
livro (de título bastante sugestivo) de Giglitz, que cita judaizantes do século XIV até os atuais
de hoje, dos Reinos ibéricos até os americanos, é o exemplo mais concreto dessa tendência
homogeneizante. GIGLITZ, David M. Secrecy and Deceit: the Religion of the Crypto-Jews.
Albuquerque: University of New Mexico Press, 1996.
Histórias, narrativas e religiões 557
de Santiago de Tlatelolco e terminou logo após ele conseguir as esmolas
para livrar-se do seu sambenito; assim elas deviam ser o testemunho
para outros judaizantes dos milagres de Deus na vida de sua família. Em
contrapartida, as cartas estavam associadas a um momento mais som-
brio e angustiante: a espera pela fogueira e a necessidade de consolar
suas irmãs de tal destino. Diante de situações e interlocutores diferentes,
ativaram-se outros e específicos referenciais; os quais influíram para que
Luis, através da produção textual, representasse as construções de sua
identidade judaica.

Conclusão

Luis pereceu nas chamas da Inquisição mexicana, como deze-


nas de outros judaizantes, em 1596. Como vimos, a historiografia que
se dedica a discutir e compreender o que esses judaizantes entendiam
como judaísmo assumiu diferentes posições. A essencialista ainda tende
a identificá-los ao sefarditas; outra vertente os classifica como cristãos-
-novos que, divididos entre o judaísmo e o catolicismo, viviam sincerida-
des duplas e contradições e que constituíram uma identidade marrana.
Assim, uma de nossas intenções foi demonstrar como a compreensão
do marranismo, ou de modo geral, o que os judaizantes entendiam por
judaísmo, ainda não foi formulada de um modo apropriado.
Assim nos debruçamos sobre um único caso - as leituras de
Luis de Carvajal e a escrita das Memorias e as cartas - para fazer uma
experimentação metodológica - o uso das operações poéticas e produção
de inventidades em relação à ortodoxia. Pelos exemplos não só consta-
tamos uma pluralidade na interpretação dos símbolos e na produção
dos significados pelos judaizantes, mas também como essa pluralidade
estava determinada por múltiplas variáveis. Por esse exercício podemos
concluir que “a historiografia do marranismo” deve superar essa obses-
são pelas formulações que homogeneízam as crenças e práticas de um
grupo social - o que inevitavelmente leva a rótulos (católicos, judeus,
558 Histórias, narrativas e religiões
marranos). O que consideramos como mais interessante para essa área
de estudo é uma maior atenção às articulações das operações poéticas
pelas quais os judaizantes produziam inventidades em relação à ortodo-
xia católica - não só constituída pelos textos, mas também pelas ima-
gens, pinturas, procissões e outras formas de representação cultural – e
assim, em momentos diferentes de suas vidas, (re) construíam identida-
des judaicas.

Referências

Fontes
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AGNM, Inquisición. Segundo proceso contra Luis de Carvajal. vol. 1489, exp.1 f.1-463.

COLUNGA, Alberto; TURRADO, Laurentio (edits. lits.). Biblia Vulgata. Madri: Biblioteca
de Autores Cristianos, 1991.

GONZÁLEZ OBREGÓN, Luis. Procesos de Luis de Carvajal (El Mozo). México, Publica-
ciones del Archivo General de la Nación, 1935.

Referências bibliográficas
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tura Económica, 1988.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Trad. de Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

GIGLITZ, David M. Secrecy and Deceit: the Religion of the Crypto-Jews. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 1996.

GRUNZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. Trad. de Rosa Freire d’Aguilar. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

KARNAL, Leandro. Teatro da Fé: Representação Religiosa no Brasil e no México do Século


XVI. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.

NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Histórias, narrativas e religiões 559


ROWLAND, Robert. Cristãos-novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição. Topoi, v. 11,
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SANCOVSKY, R. R.. A Cultura do Segredo: Aspectos Teóricos sobre o Estudo da Condição


Marrana. In: Helena Lewin. (Org.). Judaísmo e Cultura: Fronteiras em Movimento. 1ed. Rio
de Janeiro: Imprimatur, 2013, v. 1, p. 27-34.

SUTTON, S. H. El sentido de las palabras en los testimonios inquisitoriales de las Riveras:


judaizantes en la Neuva España. México: Editora da Universidad Nacional Autónoma de Mé-
xico (UNAM), 2010.

WACHTELL, Nathan. La foi du Souvenir: Labyrinthes Marranes. França, Seuil: 2001.

560 Histórias, narrativas e religiões


Representações da violência católica na
literatura sobre a perseguição religiosa
no México: entre a ficção e as modernas
hagiografias dos mártires mexicanos
(1926-1990)

Caio Pedrosa da Silva (UVJM)

Resumo: Os conflitos entre católicos e revolucionários mexicanos, cujo


ápice foi o período da Rebelião Cristera (1926-1929), deixaram marcas
profundas na literatura. Variadas formas literárias produzidas ao longo
do século XX trataram do período, desde hagiografias sobre os católicos
mortos pelas forças do Estado revolucionário, até textos ficcionais de
cunho anticlerical que criticaram o posicionamento da Igreja diante das
políticas revolucionárias. A literatura foi um dos campos em que se deu
a disputa em torno da memória da Revolução mexicana e da Rebelião
Cristera. Além disso, lidar com essa memória era essencial para pen-
sar e construir os espaços de atuação do catolicismo e das religiões no
status quo pós-revolucionário – também chamado modus vivendi pela
bibliografia. Um dos pontos mais polêmicos dessa disputa literária foi a
questão da violência católica, seja dos rebeldes camponeses ou de grupos
católicos urbanos – os quais foram responsáveis por, entre outras ações,
atentados contra lideranças revolucionárias. Se por um lado os católicos
acusaram o governo de realizar uma perseguição religiosa que vitimava
sacerdotes e outros católicos, por outro, também os católicos se envol-
veram em sucessos violentos no período. Como essa violência católi-
ca era representada e/ou justificada nos textos literários? Seria o clero
responsável pela violência católica? Essas, entre outras questões, serão
abordadas na apresentação. Desse modo, o objetivo dessa comunicação
será apresentar algumas reflexões sobre a produção literária que tratou
da Rebelião Cristera refletindo, especialmente, sobre as formas como a
violência promovida por grupos católicos foi representada nesses textos.
Histórias, narrativas e religiões 561
Castigo, transcendência e redenção em
Guimarães Rosa

Luisa Fernandes Vital (Mestrado – UNESP/CNPq)

Resumo: O trabalho tem como objetivo averiguar como se constro-


em, em três contos de Guimarães Rosa - “Conversa de bois”, “A hora
e vez de Augusto Matraga”, ambos publicados em Sagarana, no ano de
1946, e “A menina de lá” de 1962, publicado em Primeiras estórias, -
dois mitemas: o destino e o julgamento final sob o motivo simbólico da
viagem e da morte, respectivamente, das personagens Agenor Soronho,
Nhinhinha e Augusto Matraga. Temas recorrentes no estudo das religi-
ões, pretende-se apontar a particularidade do destino nas composições
rosianas, que se desenvolve no cenário da viagem e culmina na morte
prematura de tais personagens. Esse fim abrupto representa uma es-
pécie de julgamento final, realizado pelo destino. Partindo do conceito
de arquétipo, faz-se uma análise das personagens e da forma como são
construídas ao longo da narrativa. Tenciona-se mostrar como cada mor-
te alcança valor simbólico diferente, a saber: castigo, transcendência e
redenção. O trabalho conta com embasamento teórico dividido em dois
grupos. O primeiro é constituído pela fortuna crítica rosiana, sobretudo,
os estudos de Benedito Nunes. O segundo é formado por estudos do
mito como os de Mircea Eliade e Gilbert Durand, além do conceito de
deslocamento proposto por Nhortrop Frye. Por meio desse apoio teóri-
co, procura-se analisar o modo como Guimarães Rosa constrói o efeito
de estranheza utilizando o conceito de destino e julgamento final junto
com a noção de livre arbítrio e justiça.

562 Histórias, narrativas e religiões


Simpósio Temático 5 – Educação e
Religião: construindo identidades e
subjetividades

Coordenação:
Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura (UPE)
Prof.ª Dtrnda. Júlia Rany Campos Uzun (UNICAMP)

A educação e a religião são dois aspectos sociais com diálo-


gos constantes para a construção das diferentes nações, de tal forma
que a própria história da educação nacional deve ser analisada a partir
das apropriações religiosas sofridas durante os últimos anos. Dado o
crescimento considerável das investigações em Ciências Humanas que
concebem a interface entre estas duas esferas do conhecimento, surge a
necessidade de oferecer um espaço acadêmico para o desenvolvimen-
to de debates acerca desta relação. Para este simpósio temático, serão
aceitos trabalhos que reflitam, sob a luz da História Cultural, acerca de
questões relacionadas à cultura escolar, às práticas educativas, à inves-
tigação sobre planos educacionais e religiosos, às identidades religiosas
no ambiente escolar, à formação de instituições de ensino que represen-
tavam determinada doutrina religiosa e aos debates sobre as propostas
de expansão das diversas denominações religiosas em concomitância às
novas configurações educacionais nos espaço pesquisados.

Histórias, narrativas e religiões 563


Comunicações – Simpósio Temático 5

564 Histórias, narrativas e religiões


A Diversidade Religiosa na Escola
Católica: Desafios e Perspectivas da
Educação Formal.

Gilson Carreira Junior (Colégio Notre Dame Recreio)

Resumo: O presente artigo determina-se em abordar a relevância da


dimensão pedagógico-cultural, diante das expressões religiosas presen-
tes hoje e o papel educacional das instituições de ensino confessionais
católicas. Sendo o campo da religiosidade, parte do ser humano no pro-
cesso incessante das relações, procura dar significado transcendental à
existência, ou seja, atualmente nas diversas maneiras e expressões de re-
ligiosidade, a escola católica deve dar resposta, propondo religar e reler a
vida humana com o sagrado.

Palavras-chave: Educação; Escola Católica; Religiosidade;

1. Introdução

Considerando, então, que a multi, a inter e a transdisciplinari-


dade são ferramentas importantes, para a contextualização na via histó-
rica e social das culturas e expressões religiosas, no campo das Ciências
Humanas, na sociedade contemporânea.
Não descartando as diversas realidades difíceis, partimos do
pressuposto, de uma educação promotora do reconhecimento de respeito,
direitos e deveres de todos os cidadãos, avançando na perspectiva de que a
formação educacional das instituições confessionais se compromete com
educação que contemple o ser humano em suas diversas esferas formativo.
Neste contexto a grande diversidade religiosa, presente nas escolas católi-

Histórias, narrativas e religiões 565


cas soa como desafios para o trabalho de evangelização, mas como grande
campo, para o trabalho de construção de valores e práticas.
Uma discussão que nos leve ao entendimento desta realidade
e aceitação de sua vivência, como ferramenta de estudo das juventudes
contemporâneas e suas religiosidades, haja vista, o processo de amadure-
cimento e formação das religiosidades como uma dimensão importante,
parte da integralidade do ser, é ainda um paradigma nas relações sociais,
talvez porque as culturas religiosas nos transmitiram a possibilidade de
os exercícios relacionados à religiosidade serem exclusivamente relacio-
nados às formas de cultos, ritos, sacramentos, devendo assim a centra-
lização e controle da espiritualidade nas religiões. Partindo do pressu-
posto de que a religiosidade não pode ser controlada, ou assegurada por
nada, sendo as doutrinas, celebrações e ritos posteriores a ela. Portanto a
abordagem de forma crítica a relação das juventudes com religiosidade
e como isso se dá nas instituições de ensino católica.
A discussão que nos leva ao contraponto de religião x religiosi-
dade é de extrema relevância à pesquisa sobre a postura das juventudes e
suas realidades contemporâneas. Sendo que a análise sociologia das ju-
ventudes, deve se apoiar no fato da categoria social estudada, ou seja, as
juventudes acompanham de modo acirrado as mudanças da sociedade,
de forma que lidamos com a multiplicidade da palavra juventude, visto
que, nossa intenção é justamente entender o mundo juvenil e sua relação
com a religiosidade.
Citamos de maneira geral e plural as juventudes, por se tratar da
faixa etária propriamente emancipada, nas escolhas e posturas acerca de
suas práticas religiosas. Por outro lado, temos que considerar nos espaços
das escolas católicas os estudantes que não se identificam com nenhuma
tradição ou cultura religiosa, no âmbito institucional, ou até mesmo com
certa rejeição ao sagrado e ao transcendente. Sendo assim, um dos cam-
pos a ser analisado outrora, visando o entendimento de tais grupos, para
salientar a importância do dialogo na diversidade de crenças opiniões e
valores. Então, a doravante pesquisa tende a se debruças nas realidades
sociológicas da educação como um todo, assim como também é salutar
especificar o papel contemporâneo das escolas confessionais católicas, na

566 Histórias, narrativas e religiões


promoção de atendimento a todos, com uma educação intregalizadora e
universal, mesmo que no cerne de sua proposta caiba a evangelização de
preceitos e dogmas católicos, surgindo o desafio. Mas ao mesmo tempo
não devemos crer que a diversidade religiosa, ou até mesmo, a divergência
de opiniões ligadas ao religioso, possa ser um empecilho para a continui-
dade do trabalho educacional as mesmas.
A partir de tais levantamentos percorreremos o caminho me-
todológico, apanhando autores que consigam dialogar com tal diversi-
dade no campo das juventudes e, compilar questionamentos acerca da
diversidade religiosa e a reposta das escolas católicas a esse fenômeno.

2. Referencial Teórico

2.1. Sociologia da Educação e o Papel da Escola Católica

Entendendo o papel da escola, inserida em dado contexto só-


cio histórico, apoiado as transformações sociais, políticas e econômicas,
Pierre Bourdieu dá uma resposta em meados dos anos 60, ao processo
de construção da escola, como principal meio de escolarização e forma-
ção funcionalista da sociedade. Denunciando então a grande vastidão
das desigualdades, devido ao processo antidemocrático vivido. Bourdieu
contrapõe à lógica meritocrática que se acendia na época.
Bourdieu (1992, p.11) afirma que os vários capítulos desse livro
apontam para um mesmo princípio de inteligibilidade: o “das relações
entre o sistema de ensino e a estrutura das relações entre as classes”:

Esse princípio de inteligibilidade orienta, na verdade, o conjunto das


reflexões de Bourdieu sobre a escola. A escola e o trabalho pedagógi-
co por ela desenvolvido só poderiam ser compreendidos, na perspec-
tiva de Bourdieu, quando relacionados ao sistema das relações entre
as classes. A escola não seria uma instância neutra que transmitiria
uma forma de conhecimento intrinsecamente superior e que ava-
liaria os alunos a partir de critérios universalistas, mas, ao contrário,

Histórias, narrativas e religiões 567


seria uma instituição a serviço da reprodução e legitimação da domi-
nação exercida pelas classes dominantes. (NOGUEIRA, 2002. p.28)

Neste contexto a Escola Católica também pensa em sua re-


formulação, onde se concebe a escola como um lugar onde a educação
começa por um encontro, com uma estrutura organizacional promotora
de uma prática de ensino e de aprendizagem abrangente em razão da
diversidade dos dons, das diferenças étnicas e culturais. Defende um
projeto pedagógico contextualizado e inovador, subsidiado por proces-
so de ação e reflexão da sua própria prática. É uma organização que
aprende e ensina, que se humaniza e se profissionaliza. A escola carac-
teriza-se como um espaço sociocultural e linguístico privilegiado para a
interação nas diversas dimensões - espiritual, artística, esportiva, inte-
lectual, linguística, emocional, ecológica, científica, lógico-matemática
(GARDNER, 1984, p. 54- 229), em favor de uma nova visão de ser
humano, de sociedade e de mundo naturalista.
Ela está fundamentada nos atuais paradigmas curriculares. É
uma escola aberta à construção de projetos de vida, a partir da vivência
de valores altruístas, do desenvolvimento de competências, habilidades e
atitudes, na perspectiva da cidadania. Não deixando de integrar a missão
da Igreja Católica.
As instituições católicas se diferem pelo papel religioso pres-
supondo que o ser humano procura dar um significado transcenden-
tal à existência. A trajetória da vida apresenta-se como um mistério
cuja compreensão se vela e se revela na inerência de sua historicidade.
Acreditam que as religiões contribuem na construção do sentido e das
repostas inerentes à vida. Propondo-se a religar e a reler todas as coisas
entre si, com o ser humano e com o divino, assim que o ser humano tem
na religiosidade o sentido mais profundo e total da sua existência.

2.2. Sociologia da Juventude

Como referência teórica para abordagem do trabalho sobre as


juventudes e suas religiosidades, buscamos dada análise sociológica com
autores como Durkheim e Weber.

568 Histórias, narrativas e religiões


Para Durkheim a sociedade é compreendida através das re-
gras que moldam o modo de viver dos indivíduos. Existe uma coerção,
impostas por essas regras, que garantem a coesão social. Esse conjunto
de regras, que configuram o meio social, molda o indivíduo. Em certa
medida, o meio social impõe como os indivíduos devem se compor-
tar, como devem pensar, às escolhas que os jovens fazem em sua vida
etc. Analisando assim as juventudes e seus contextos sociais, dialogando
com Weber, para entender então as relações sociais diversas presentes
na categoria social juventude. “Weber vai entender que a construção da
autonomia está diretamente ligada às esferas sociais, no campo, político,
econômico, intelectual, erótico e religioso”. (TRAGTEMBERG, 1992,
P. 43). Na cristandade medieval, por exemplo, havia o predomínio da
esfera religiosa sobre as demais, como a Igreja que tinha uma domina-
ção política, dizia o tom das artes plásticas, a forma de regulamentação
política e até mesmo a vestimenta adequada. Já na atualidade, pode-se
observar que há uma autonomia das esferas sociais em relação à religio-
sidade, como, por exemplo, a independência artística. Contudo o resul-
tado desse processo de autonomia das esferas sociais ainda é relativo na
sociedade, pois a esfera religiosa continua atuando, não predominando,
mas ainda influenciando as demais.
As teorias de Weber e Durkheim ajudam a visualizar a partici-
pação da juventude na sociedade como desdobramento da compreensão
sobre a ação social e a reflexão sobre o protagonismo juvenil, assim como
a garantia de direitos dos jovens. Grande influência desses autores tem
na elaboração de políticas públicas. Entretanto, com o estruturalismo, a
compreensão de políticas públicas para a juventude, se torna algo que
não envolve a participação dos jovens, mas busca transforma-los.

2.3. Juventudes

A leitura sociológica deve ser atualizada de maneira hermenêu-


tica, pois para Groppo a juventude pode ser considerada como uma “ca-
tegoria social” e, não meramente certa condição biologia ou até mesmo
construção imaginária. Groppo também dialoga com a perspectiva di-
Histórias, narrativas e religiões 569
versa da juventude, pluralizando o termo, para então ampliar a concepção
acerca de uma dialética extremamente comprometida cientificamente.

As juventudes serão consideradas aqui como elemento estruturan-


te das sociedades modernas, com importância análoga a elementos
como classes sociais, mas sob uma concepção que se quer dialética,
ou seja, considerando a contraditória convivência, na condição juve-
nil, entre o objetivo de normatizar os comportamentos e os anseios
de autonomia que acabam daí surgindo. Esta tentativa se baseia nas
indicações, registros e ideias que emergem de uma leitura crítica
de obras de diversos cientistas sociais e historiadores. (GROPPO,
2000, p.55)

Para Groppo as juventudes são classificadas e conjecturadas de


diversas maneiras na sociedade. Ou seja, diante de tantos temas que não
são inerentes, mas estão presentes na fase juvenil, como drogas, DST,
direitos sexuais e reprodutivos, gênero e sexualidade, desafios étnico-
-raciais, evasão escolar e tantos outros, são preocupações constantes da
sociedade, tornando assim juventude como momento de atenção social.
Oriunda do capitalismo industrial a atenção às juventudes “desregra-
das”, começam a surgir como resposta a todas as urgências sociais, ob-
servando-se o crescente desemprego, as várias formas de organização
contra cultural e tantos outros meios de visualização das juventudes,
classificando-se sempre de forma pejorativa.

Esta faixa etária não tem caráter absoluto e universal. É um produto


da interpretação das instituições das sociedades sobre a sua própria
dinâmica. A juventude trata-se de uma categoria social usada para
classificar indivíduos, normatizar comportamentos, definir direitos e
deveres. É uma categoria que opera tanto no âmbito do imaginário
social, quanto é um dos elementos “estruturante” das redes de socia-
bilidade. De modo análogo à estruturação da sociedade em classes,
a modernização também criou “grupos etários homogêneos”, cate-
gorias etárias que orientam o comportamento social, entre elas, a
juventude. (GROPPO, 2005, p. )

570 Histórias, narrativas e religiões


Podendo então concluir que a concepção trabalhada por
Groppo, parte do pressuposto sociológico, onde juventude não é ape-
nas uma faixa etária Ortega y Gasset (1987), ou uma fase biologica-
mente transformadora, ou mesmo um processo esvaziadamente abstra-
to Murdock e McCron, e sim, uma construção histórico-social, e não
absolutamente universal. Desconstruindo toda “naturalização” de que
juventude vem a ser sinônimo de transgressão ou desregra. Encaixando
a análise da modernidade e pós-modernidade devemos assumir o papel
de pesquisadores comprometidos com as ciências, que acima de tudo
trabalhem a interculturalidade e transversalidade, correlacionando ju-
ventudes com outras categorias sociais.

2.4. Religiosidades

Autor de várias obras, Georg Simmel (1858- 1918), tem sua


obra de certo modo recente, nos clássicos, traz consigo aspectos episte-
mológicos entre a religiosidade e a religião e adoção da visão epistemo-
lógica “relacionista”.
A sociologia de Simmel pode ser compreendida no esforço em
visualizar o macrossociológico ao micro, a problemática da diferenciação
social e religiosa à perspectiva da experiência religiosa do indivíduo vivi-
da no concreto da vida cotidiana e das relações sociais. A principal obra
de Simmel sobre a religião trabalha ao mesmo tempo, delineando a sua
perspectiva “relacionista”. Baseado nela, afirma que nossa representação
pode ser única e é tirado da experiência rotineira mediante as sensações,
como também é um só o fluxo das experiências. As várias formas cultu-
rais da religião constituem, para Simmel, outros tantos mundos entre si
irredutíveis, que permanecem em nós e diante de nós.
O homem é naturalmente religioso. A religiosidade é um modo de
ser do homem, quer ela tenha, agora, um conteúdo, ou não, quer esta
característica possa ser incorporada ou não, numa fé. Assim como é
inteligente, erótico, justo ou belo, assim é religioso: o ser religioso, por-
tanto, é uma maneira primária, absolutamente fundamental, do ser.

O conteúdo religioso do indivíduo, porém, é um só, proveniente


da ordem empírica, pois para Simmel, o homem se apega a uma espécie
Histórias, narrativas e religiões 571
de movimento entre natureza e História: os dados sensoriais são organi-
zados baseados nas organizações culturais, entre as quais existe também
a religiosidade, que exerce a sua eficácia noutro nível, isto é, moldando
as vivências da vida prática, assim como os conteúdos, e colocando-os
na normatividade de significado própria, isto é, a religião, dentro da qual
corresponde um significado novo.
Jorge Claudio vem também em direção à pesquisa sobre a reli-
giosidade, criando ponte com a vida das juventudes. Claudio identifica
que o número de jovens na Igreja Católica Romana cai nos últimos dez
anos, assim como na maioria das religiões mais tradicionais. Ao mesmo
tempo cresce a procura de jovens pelas religiões neopentecostais e pelas
religiões espíritas. Na mesma via o número de jovens que não se iden-
tificam com nenhuma expressão ou tradição religiosa é significativo na
maioria das vezes, sendo o recorto jovens de classe média que frequen-
tam universidades.
Já nas classes mais populares a prática religiosa ainda é habitu-
al. Vejamos:

572 Histórias, narrativas e religiões


Diante desta tabela podemos identificar a popularidade das re-
ligiões entre jovens de baixa renda, com nível de escolaridade baixo, loca-
lizados em áreas de violência e de alto índice de tráfico de drogas ilícitas.
Partindo do pressuposto de que as Escolas Católicas atendem
na sua maioria o publica das classes média e média alta, podemos con-
cluir que a diversidade religiosa, ou a não identificação com qualquer
vivência religiosa é altamente perceptível.

2.5. Diversidade Religiosa desafios e perspectivas

Jacques Le Goff (2000, p. 38) traz consigo o conceito de tole-


rância, que pode nortear nossa análise sobre a diversidade religiosa:

A noção de tolerância (e, correlativamente, a de intolerância) surge no


século XVI. Uma de suas primeiras utilizações públicas é encontrada
no Edito de Tolerância (1562), que concede liberdade de culto aos pro-
testantes. A partir do final do século XVII, ela é amplamente utilizada
(assim como a de intolerância). A ideia de que a tolerância não é natu-
ral, mas exige certo esforço para ser aceita, uma disciplina, perdura até
nossos dias. A tolerância é uma construção, uma conquista.

Ainda que o papel das escolas católicas seja objetivamente a


educação integral e universal, elas não deixam de ser católicas. Ou seja,
preceitos, dogmas, orientações religiosas não deixaram de fazer parte do
processo pedagógico assim como o processo pedagógico não se apartara
do religioso. Parecendo ambíguo, mas de intrínseca relação uma escola
que possui identidade religiosa compromete-se inteiramente com a falta
de laicidade, partindo para dois espaços, o de aprendizagem e o religioso.
Isso é um desafio para diante das diversidades religiosas? Com certeza
não é uma resposta fácil e rápida de se dar, mas acima de tudo devemos
perceber tal realidade e direcionar o trabalho para que contemplem de
certa forma todos em sua proposta educacional.
Através da promoção de direitos a diversidade religiosa a escola
católica se compromete a amplamente aderir a total tolerância a todas
as formas de expressar o sagrado, ou até mesmo, aqueles e aquelas que
Histórias, narrativas e religiões 573
não sentiram tal necessidade, haja vista, as liberdades religiosas pessoais
se manifestarem na fase biológica das juventudes, mas como já visto, por
ser uma categoria social atenta às transformações contemporâneas.

3. Considerações finais

Diante do religioso contemporâneo, é importante salientar que


o estudo das religiões cristãs, judaicas, islâmicas, as centenas de igrejas
evangélicas, pentecostais, neopentecostais e outras tantas manifestações
religiosas, de forma multidisciplinar é muito salutar para formação in-
tegralizada do aprendente. Portanto, fica clara a necessidade da oferta a
esses saberes para superar estereótipos e preconceitos.
A história cultural das religiões como forma de identificar que
toda sociedade é composta, também por tradições religiosas, nas suas
mais diversas origens e configurações, assim como todo processo só-
cio histórico, que compreende o indivíduo como potencial participe das
práticas de organização e política, sendo até mesmo religiosas.
Todavia, o estudo outrora apresentado objetivou em apresentar
de maneira sistemática as análises sociológicas da diversidade religiosa
na escola católica e seus presentes desafios, assim como todas as perspec-
tivas. Entendendo que a categoria social, juventudes, em sua pluralidade,
compreende num cenário oblíquo do campo religioso, subdividindo por
classes e níveis de escolaridade, pudemos perceber a diferenciação com o
relacional religioso, ou até mesmo a clareza nos aspectos não identitários
com tradições e crenças religiosas.
Concluímos, então, que as instituições de ensino católicas de-
vem estar atentas as diversas expressões religiosas e seus dados indi-
víduos, que majoritariamente se manifestam na juventude. Ao mesmo
tempo a identidade confessional da instituição não se deixa fazer pre-
sente, possibilitando um embate, caso as intenções ao estejam claras. O
papel da promoção dos direitos constitutivos de liberdade religiosa deve
ser assegurado por toda e qualquer instituição de ensino, visto que, o
574 Histórias, narrativas e religiões
objetivo priori é sua condição pedagógica, cabendo a escola católica pro-
mover o respeito à diferença e tolerar qualquer manifestação contrária
ao espaço religioso.

Referências

BORDIEU, Pierre. A reprodução. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

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Sociologia e a História das Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

___________________. Uma onda mundial de revoltas: movimentos estudantis de 1968. Pi-


racicaba: Editora Unimep, 2005.

LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da intolerância. In: A Intolerância. Trad. Eloá Jacobi-
na. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

MURDOCK, Graham; McCRON, Robin. Resistance through rituals. Londres: University of


Birmingham, Utchinson and Co., 1976, p. 192-207.

NOGUEIRA, Claudio. NOGUEIRA, Maria Alice. Revista Eduação & Sociedade, ano XXIII,
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São Paulo: Edusp, 2004.

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Alegre, Editora Sulina, Editora Universitária Metodista, 2007.

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WEBER, Max; TRAGTENBERG, Maurício. Ensaios de sociologia e outros escritos. S. Pau-


lo: Abril Cultural, 1974.

Histórias, narrativas e religiões 575


A voz jesuítica no interior paulista

Andrea Colsato (USP)

Resumo: Este estudo objetiva mostrar a atuação dos jesuítas na edu-


cação da elite do interior paulista nas últimas décadas do século XIX
e início do século XX. Os discursos em cerimônias do colégio católico
revelam um modelo que se orientava para a ideologia civilizatória e para
a memória apologética da Companhia de Jesus. O imaginário e a “voz”
jesuítica são compreendidos a partir da descrição de dados linguísti-
cos, o que faz emergir as relações orquestradas nas práticas políticas,
culturais, sociais e linguísticas. A escola é entendida como “um espaço
institucional no qual se configura a difusão de bens culturais, sociais e
simbólicos, relacionados aos saberes linguísticos”. Nesse aspecto, consi-
deramos que os discursos em análise revelam a convergência de fatores
histórico-sociais e culturais, além das perspectivas do produtor do signo
sobre o contexto comunicativo, uma vez que, os discursos, como uma
modalidade escrita e oral, em que se instancia a voz, tem potencialidades
de representação e de comunicação que são organizadas culturalmente
na interação entre os produtores e seus ouvintes.

576 Histórias, narrativas e religiões


O discurso do catolicismo na educação
de surdos no Brasil (1950-1960)

Bianca Silva Lopes Costa (UFBA)

Resumo: O discurso do catolicismo na educação de surdos no Brasil


(1950-1960) O presente estudo consiste em uma análise sobre os dis-
cursos do catolicismo na educação de surdos, especificamente a partir
das produções discursivas da Pastoral dos Surdos no Brasil entre (1950-
1960), dentro da perspectiva da História Cultural. A análise parte de
literaturas específicas construídas para a evangelização e consequente-
mente a educação de surdos; buscando identificar nas mesmas, os mo-
dos como a surdez foi construída, tecida pela Igreja de forma a instituir
saberes. Além disso, perceber as relações históricas, de poder, de saber e
de práticas instituídas pela Igreja para com a surdez. A Pastoral se cons-
titui como instituição cerne da Igreja Católica na orientação e educação
de surdos no país, (SILVA, 2012). Conforme o mesmo autor, diretrizes
e princípios doutrinais provêm da Pastoral, a qual tem estabelecido com
a surdez relações simbióticas, produzindo discursos e práticas que guar-
dam, por assim dizer, interesses e redes de poder que foram tecidos na
construção de enunciados que instituíram significados múltiplos para e
na educação de surdos, e como corolário determinou condições históri-
cas e sociais desses sujeitos. Nesse sentido, a produção desses discursos
foi materializada nas práticas pedagógicas para com os surdos, e conse-
quentemente tem se constituído em uma circulação de saberes tornados
como verdadeiros, os quais pensam, falam e produzem em nome desses
sujeitos. Essa pesquisa qualitativa de perspectiva histórica tem investi-
gado como são produzidos esses discursos e esquadrinhado as inúmeras
práticas produzidas pela instituição católica para com à surdez, as quais
têm interpelado esses sujeitos, produzindo sentido para suas existências,
sentimentos, atos políticos, desejos, defesas, significados, partidos e ou-
tros tantos elementos idiossincráticos relativos à surdez.

Histórias, narrativas e religiões 577


A experiência de ensino religioso
em uma escola confessional no
interior de Minas Gerais: dimensões
interdisciplinares, éticas e pedagógicas

Maria Augusta B. Gentilini (Mestrado – PUCCAMP)

Resumo: Esta comunicação refere-se a um estudo de caso realizado


em uma escola situada no sudeste de Minas Gerais que estabeleceu o
Ensino Religioso como disciplina obrigatória para todas as séries do
Ensino Fundamental, no entanto dentro de uma perspectiva interdis-
ciplinar associada à área de ciências humanas e sociais. Apresenta as
características da instituição, o projeto desenvolvido pelos professores
e uma análise preliminar reflexivo/avaliativa da experiência pedagógica
da instituição no que tange ao Ensino Religioso, sua aplicabilidade e
seu impacto na comunidade escolar. Os resultados apontam que a insti-
tuição escolar inovou na abordagem da disciplina ao ministrá-la numa
perspectiva interdisciplinar e levando em consideração o respeito pelas
opções religiosas dos alunos atuando diretamente na formação de valo-
res éticos, humanos e de cidadania.

Palavras-chave: educação religiosa – pluralismo religioso – história.

1. Introdução

A LDB/1996, em seu Artigo 33 (parágrafos 1º. e 2º.) definiu que


o Ensino Religioso é disciplina do currículo do Ensino Fundamental, em-
bora de matrícula facultativa, fazendo parte da formação básica de cidada-

578 Histórias, narrativas e religiões


nia, assegurando-se o respeito à diversidade cultural e religiosa no Brasil,
sendo vedadas todas as formas de proselitismo e que os sistemas de ensino
definiriam como seria ministrada a disciplina nas instituições escolares. A
materialização dessa diretriz dependeu da iniciativa dos professores in-
dicados para a disciplina nas escolas que introduziram ou mantiveram o
Ensino Religioso em seu currículo. O que tem se verificado, entretanto,
é que os conteúdos e metodologias previstos no currículo da disciplina,
pouco se diferenciavam das tradicionais catequeses, conservando seu ca-
ráter confessional promovido por padres, pastores ou teólogos. São poucas
as experiências descritas de Ensino Religioso nas instituições escolares,
sobretudo particulares, que destoam deste quadro. Neste sentido, torna-se
importante descrever e avaliar a experiência da Escola Profissional Dom
Bosco, objeto deste estudo, em relação ao Ensino Religioso, como uma re-
ferência importante para outras instituições escolares públicas ou privadas
e que tenham essa disciplina em seu currículo.
Os professores, juntamente com a coordenação pedagógica
e a direção da Escola Dom Bosco, após uma reflexão sobre as várias
possibilidades de se organizar o Ensino Religioso, levando-se em conta
o fato de tê-lo incluso como uma disciplina obrigatória no currículo
do Ensino Fundamental, optaram por inseri-lo num projeto interdis-
ciplinar e dentro de uma perspectiva histórica. Os professores tinham
consciência de que um projeto pedagógico interdisciplinar implicaria
em uma mudança na posição adotada por eles quanto à disciplina em
questão e também quanto aos conteúdos e ás metodologias adotadas.
Ao mesmo tempo, tal projeto se configurava como um desafio quanto às
suas eventuais consequências se não fosse muito bem discutido e execu-
tado, podendo motivar questionamentos sobre as crenças religiosas dos
alunos e o potencial conflito que poderia envolver as suas famílias e a
comunidade escolar.
Juntamente com a opção por uma perspectiva histórica en-
tendeu-se, na discussão com os professores de todas as áreas envolvidas
(História – Português – ensino Religioso), que havia necessidade de inse-
rir no projeto, conteúdos e atividades pedagógicas tendo como principal
referência, valores humanos que reforçassem o convívio solidário e respei-

Histórias, narrativas e religiões 579


toso entre os alunos, os professores e as famílias. Este seria o passo inicial
para uma inserção e participação dos alunos na sociedade, o que implicava
também em um trabalho de formação no campo da ética e da cidadania.
O projeto discutido e implantado na Escola Profissional Dom
Bosco e que está em desenvolvimento, mostrava-se desafiador e encon-
trou apoio na coordenação e na direção da Escola. O potencial de êxito
era grande uma vez que a Escola tem uma tradição de apoiar iniciativas
e ideias inovadoras, aliando sua preocupação em formar profissional-
mente e proporcionar educação integral para seus alunos.
Para se entender como o projeto apresentava uma boa opor-
tunidade de ser concretizado com êxito, será preciso, inicialmente, fa-
lar das características da instituição em questão. Posteriormente, será
apresentado o projeto no qual foi inserido o Ensino Religioso, como ele
foi executado em sua primeira etapa e, posteriormente, uma avaliação
preliminar de seus resultados.

2. Escola Dom Bosco: breve histórico

A Escola Profissional Dom Bosco é uma das mais importantes


e tradicionais instituições de ensino de Poços de Caldas, município lo-
calizado no sudeste de Minas Gerais e conhecido por ser uma das maio-
res estâncias hidrominerais do Brasil. Fundada em 1946, por iniciativa
do Monsenhor Carlos Henrique Neto em parceria com a musicista e
professora Maria Aparecida Figueiredo, a escola começou de forma mo-
desta, com um espaço suficiente para acolher não mais do que cinqüenta
crianças. O objetivo de seus fundadores era proporcionar atividades a
meninos que perambulavam pelas ruas de Poços de Caldas vivendo em
situação de miserabilidade após o fechamento dos cassinos e que sem
qualquer recurso não tinham condições mínimas de sobreviver.
As atividades proporcionadas aos meninos constituíam-se de
aulas de artesanato, jogos e o catecismo. Com o tempo, essas ativida-
des se tornaram mais amplas, incluindo-se iniciação e aprendizado de
580 Histórias, narrativas e religiões
instrumentos musicais, técnicas de encadernação, marcenaria e esfor-
ços de inserção dos mesmos junto às empresas locais, após obterem
sua formação inicial. Já na década de 1950, com apoio de empresários,
personalidades locais e a diocese católica de Guaxupé, Padre Carlos e
a Professora Maria Figueiredo propuseram a organização de uma fun-
dação – Fundação de Assistência ao Menor (FAM) – e com os recur-
sos arrecadados, procuraram uma área para iniciar a construção de um
prédio para instalar as salas de aula e as oficinas, o que foi possível com
a doação de um terreno onde foram construídas as atuais instalações
físicas da Fundação.
Desde o início, portanto, seus fundadores e colaboradores mos-
travam-se altamente sensíveis aos problemas sociais que a estância hi-
dromineral de Poços de Caldas apresentava diante da ausência de ações
por parte do poder político local no sentido de criar políticas públicas
voltadas para aquele segmento da população, ou seja, crianças e jovens
oriundos de famílias pobres, residindo na periferia da cidade. Essas
ações, de iniciativa das elites ou de instituições religiosas, quando acon-
teciam, caracterizavam-se pelo caráter marcadamente assistencialista e
caritativo, o que levou os fundadores da Escola a desenvolver uma ação
de forma diferenciada, propiciando aos meninos, uma formação inicial
para o trabalho com possibilidades de sobrevivência autônoma.
É importante destacar que esta ação refletia não apenas a vo-
cação individual de seus fundadores para a educação, fortemente moti-
vada pela visão cristã voltada para os mais pobres, mas também por uma
visão pedagógica inspirada nas filosofias educacionais de formação para
o trabalho que surgiam, sobretudo nos países em processo de industria-
lização e profundas mudanças urbanas.223

223  A Escola Dom Bosco definia-se como uma instituição com fins sociais e voltada para
a formação para o trabalho e formação humana de adolescentes e jovens, aproximando-se da
filosofia de São João Bosco, clérigo italiano que se notabilizou, no século XIX, pela criação de
oficinas que procuravam formação profissional para os jovens pertencentes à classe trabalhadora
ou que estavam ameaçados de marginalização social. Uma melhor compreensão da filosofia
educacional da Escola – expressa em um desenho de três círculos entrelaçados com os dizeres
“Ciência, Trabalho e Oração” – são as reflexões educacionais de Padre Carlos, publicadas pela
gráfico-editora da própria Escola (V. bibliografia ao final) (N. da A.)
Histórias, narrativas e religiões 581
Assim, gradativamente, a obra sócio-educacional cresceu e nas
décadas de 1960 e 1970, já contava com ensino médio e cursos técnico-
-profissionais, mantidos com a ajuda financeira de empresas, com quem
mantinha parcerias no sentido de integrar os jovens o mais rapidamen-
te possível no setor produtivo e de serviços. Mas a preocupação não
era apenas de caráter “preventivo” em proporcionar uma profissão aos
jovens evitando sua marginalização futura, mas também proporcionar
uma formação educacional ampla, através das disciplinas do currículo
oficial da educação brasileira e, principalmente uma formação humana
e social. Neste sentido, além das disciplinas regulares, a Escola oferecia
um amplo leque de atividades no campo artístico, científico e cultural,
com o aprendizado de música, montagem de peças teatrais, artes plásti-
cas, artesanato, excursões educativas e organização de feiras de ciências.
Nos cursos técnicos, além dos professores diplomados para li-
cenciatura plena para as disciplinas de formação geral, a Escola contava
com a colaboração de profissionais que já trabalhavam nas empresas
locais ou nos órgãos da administração municipal. Esses profissionais,
além de transmitirem seus conhecimentos e experiências, constituíam
uma espécie de “ponte” que possibilitava os estágios e futuramente, a
contratação dos jovens recém-formados. No final dos anos de 1960, a
Escola teria todos os seus cursos, do Ensino Fundamental ao Médio e
Técnico, reconhecidos legalmente pelo Ministério da Educação e várias
vezes visitada por autoridades educacionais que a colocaram como re-
ferência de educação integral, objetivo perseguido há décadas no Brasil.
Desde então a escola passou a receber alunos de todo o sul de Minas,
posteriormente de outros cantos do país e mesmo do exterior.

3. O projeto interdisciplinar

O projeto interdisciplinar no qual foi inserida a disciplina


Ensino Religioso, com a participação dos professores de História e
Português foi denominado “Projeto Mandalas”. Ele está dividido em
582 Histórias, narrativas e religiões
quatro fases, cada uma delas voltada para uma série do Ensino funda-
mental II. Dentro de cada uma das fases há etapas a serem cumpridas de
forma que o resultado final possa ser uma educação religiosa e ética mais
ampla e de caráter histórico que se desprenda da catequese e se alinhe
ao conteúdo histórico, mitológico e lingüístico das séries em questão.
Na primeira fase – voltada para o 6º ano escolar – está a introdução à
história das religiões a partir da experiência dos próprios alunos e pos-
terior complementação com as demais religiões (possíveis e passíveis
de estudo em tempo hábil). Na segunda etapa – voltada para o 7º ano
escolar – está a discussão sobre conflitos e fundamentalismos religiosos
e sua base discursivo/argumentativa. Na terceira fase – voltada para o
8º ano escolar – encontra-se as distorções interpretativas, o pensar filo-
sófico e as noções de “espaço/tempo/poder” constitutivas do “sagrado”
na concepção da religião. Finalmente na quarta fase – voltada para o 9º
ano escolar – está a análise do discurso religioso, o pluralismo religioso,
o Estado laico e o mercado religioso, partindo da premissa de que o
conhecimento assimilado já é suficiente para promover o mínimo de
raciocínio crítico a respeito do tema e suas implicações.
Para fins de análise, apresenta-se aqui a primeira fase dividida
em três etapas. Nesta primeira etapa, o objetivo foi transmitir conhe-
cimentos que levassem os alunos a refletir e a reproduzir, em seu dia
a dia, através de exemplos concretos e orientações práticas ações no
cotidiano a partir de valores como a generosidade, a lealdade, a justi-
ça, a honra e a compaixão. São valores que poderiam ser trabalhados,
tanto quanto possível, por cada um dos professores participantes do
Projeto, sem prejuízo dos conteúdos específicos de suas disciplinas.
Obviamente, a posição da disciplina Ensino Religioso assumiu o pro-
tagonismo da situação, na medida em que procurou, na discussão com
os alunos, identificar os referidos valores como dimensões comuns que
não dependiam das crenças religiosas.224

224  É importante registrar que, apesar de a Escola Profissional Dom Bosco ser uma escola de
orientação católica, ela não faz discriminação com relação às crenças religiosas de seus alunos
e famílias. Embora a maioria dos alunos pertença à religião católica, verifica-se a presença de
alunos de famílias protestantes, espíritas, umbandistas e alunos de pais confessadamente ateus
(N. da A.).
Histórias, narrativas e religiões 583
Na segunda etapa da primeira fase, foram exibidos e discutidos
com os alunos, vídeos educativos de forte impacto, tirados da vida real.
Em todos os vídeos, há sempre uma conexão entre os sujeitos e os en-
contros futuros, muitas vezes, com aqueles que foram por eles ajudados.
Na terceira etapa os alunos foram motivados a transformar em
ações práticas seu aprendizado, de iniciativa individual ou coletiva, vol-
tada para o próprio ambiente escolar como, por exemplo, reconhecer o
valor dos funcionários da escola, muitas vezes sequer notados. Em grupo
os alunos visitavam as diversas seções e oficinas da Escola, salas de aula,
biblioteca, cozinha, portaria, etc., para homenagear os funcionários com
abraços, mensagens de otimismo e agradecimentos. Todas as atividades
foram registradas em vídeo para a formação de um acervo a ser poste-
riormente analisado. Ao mesmo tempo na disciplina de História o con-
teúdo informativo sobre as diversas religiões foi trabalhado e o discurso
analisado na disciplina de língua portuguesa.
A conclusão dos professores envolvidos foi de que, numa pri-
meira etapa, antes do trabalho mais aprofundado no campo da ética e
da cidadania, dever-se-ia iniciar pelo ensinamento dos valores, pois em
uma sociedade com alto nível de violência e risco de desagregação social
eles são extremamente necessários e não poderiam ser negligenciados,
como os demais aspectos da educação ética dos alunos, sobretudo nos
primeiros anos escolares.
Também se buscou, na literatura pedagógica, religiosa e histó-
rica, textos de autores que poderiam fundamentar a metodologia ado-
tada no Projeto, isto é, como desenvolver um trabalho interdisciplinar
como recomendam as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Básica (DCNEB, 2013); aos aspectos da LDB/1996 que
orientam as escolas a desenvolver trabalhos em direção à cidadania em
uma sociedade democrática (SILVA; MACHADO; 1998); estudos so-
bre como chegar às dimensões éticas e de cidadania, iniciando-se por
discutir valores que são criações da inteligência humana ao longo de sua
trajetória histórica e que se expressam no cotidiano, como virtudes, bons
sentimentos e os direitos fundamentais da pessoa humana (MARINA,
2009; SILVA e MACHADO, 1998), autores que buscam entender a

584 Histórias, narrativas e religiões


crise da educação em tempos da pós-modernidade e que propõem estra-
tégias para o trabalho dos professores neste contexto (SIBÍLIA, 2012),
além dos efeitos de uma sociedade fundada no consumismo que atinge,
principalmente, as novas gerações e os espaços ainda existentes para se
contrapor a esta situação através de valores perenes e não - mercanti-
lizáveis (SANDEL, 2012). Particularmente, foram feitas leituras com
relação às Ciências da Religião visando complementar o conteúdo, com
Mircea Eliade, Frank Usarski, Prandi, entre outros.
A metodologia empregada no início da execução do projeto
foi a de associação conceitual através de atividades de pintura em dese-
nhos de mandalas budistas ou feitas a partir da criatividade dos próprios
alunos. Tais mandalas foram posteriormente trocadas entre os alunos e
ressignificadas de acordo com a religião de cada um. Simultaneamente,
foram realizadas palestras, uso de mídias educativas, doação de mate-
riais, plantio de árvores e redações nas quais os alunos descreviam e
refletiam sobre seu envolvimento nestas atividades e sobre a percepção
de seus familiares sobre tal processo.
Como exemplo dos valores motivados na primeira fase de tra-
balho do projeto pode-se citar a discussão com os alunos sobre “Formas
de melhorar o cotidiano” ou como eles poderiam se tornar pessoas muito
mais tranqüilas e bem humoradas através de atitudes simples. Com o
apoio de slides, os alunos foram motivados, por exemplo, a fazer um
elogio sincero por dia ou agradecer a quem faz a vida deles mais fácil;
oferecer ajuda a quem precisa e procurar qualidades antes dos defeitos,
dividir o que sabe com seus colegas e colocar-se no lugar dos outros em
situações difíceis doando um sorriso para alguém que não esteja ou não
consiga sorrir (lembrando que a faixa etária dos alunos envolvidos na
primeira fase do projeto é entre 10 e 12 anos de idade).

4. Avaliação preliminar do Projeto

Mesmo estando em fase de desenvolvimento, o Projeto inter-


disciplinar já apresenta resultados considerados satisfatórios. É notória
Histórias, narrativas e religiões 585
a mudança, por exemplo, no comportamento dos alunos nos horários de
intervalo de aula, as relações de convivência entre eles e com os demais
professores. A aceitação das diferenças é claramente observada pelo
conjunto de professores e pela coordenação pedagógica.
O retorno dado pelas famílias, nas reuniões pedagógicas ou nas
conversas diretas com os professores, mostra uma mudança para melhor
do comportamento dos filhos que passaram a ter com seus pais uma re-
lação mais próxima e autêntica, onde se respeita as regras de convivência
familiar ou com a vizinhança. Iniciativas dos alunos com relação à na-
tureza, ao patrimônio público e aos animais, tornaram-se frequentes na
Escola, bem como um posicionamento mais crítico diante, por exemplo,
de programas de TV ou nas redes sociais, onde se pode ver as manifes-
tações de violência ou discriminação étnica, religiosa, etc.
Verificou-se, portanto, que até o momento, os valores humanos
e sociais como criações da inteligência humana e das experiências cole-
tivas dentro de uma micro-sociedade escolar constituíram a base para a
tomada de posição ou de atitudes dos alunos junto à família, à comuni-
dade e à sociedade onde estão inseridos, se traduzindo em esperança de
melhorias no ambiente e na educação através de pequenas intervenções
e grande diálogo entre as áreas do conhecimento.

5. Conclusão

Concluímos que o Projeto Mandalas, realizado na Escola


Profissional Dom Bosco situada no sudeste de Minas Gerais, cujo
Ensino Religioso consta como disciplina obrigatória para todas as séries
do Ensino Fundamental, teve um resultado satisfatório apontando que
a instituição escolar inovou na abordagem da disciplina ao ministrá-la
numa perspectiva interdisciplinar e levando em consideração o respeito
pelas opções religiosas dos alunos atuando diretamente na formação de
valores éticos, humanos e de cidadania.

586 Histórias, narrativas e religiões


Bibliografia

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Histórias, narrativas e religiões 587


Identidades em Questão:
a experiência formativa nas narrativas
de ex-seminaristas e ex-diretores do
Seminário Santa Maria dos Capuchinhos
(1953-1973)

Edson Claiton Guedes (Mestrado – UEPG)

Resumo: Este trabalho esta inserido numa pesquisa mais ampla so-
bre a reformulação das identidades sacerdotal e franciscana a partir do
Vaticano II. Para nossa análise, escolhemos o Seminário Seráfico Santa
Maria dos Capuchinhos, que teve suas atividades iniciadas em 1953 e en-
cerradas em 1987, na cidade de Irati, Paraná. A escolha deste Seminário
deu-se por três fatores: em primeiro lugar por que dentre os vários semi-
nários menores dos Capuchinhos no Paraná e Santa Catarina, o Santa
Maria agrega aquilo que chamamos de “ideário formativo” da Igreja e
da Ordem; em segundo lugar, a cronologia do Seminário favorece uma
leitura dos modelos em questão: Tridentino (antes de 1965) e Vaticano
(após 1965) e as tensões geradas nessa transição; em terceiro lugar, a
farta documentação e a inexistência de qualquer tipo de análise do papel
deste Seminário e do atores envolvidos sobre nossa temática. Queremos
entender de que maneira as tensões, advindas dos dois modelos de for-
mação (Trento e Vaticano II) foram vivenciadas e experimentadas no
cotidiano do Seminário a partir dos relatos de vida daqueles que esta-
vam diretamente envolvidos no processo. E mais: quais tensões são pos-
síveis de serem percebidas em suas experiências enquanto alunos e di-
retores da instituição. Estes questionamentos foram surgindo ao longo
da pesquisa e, descobrimos na metodologia da história oral, o caminho
adequado para acessar os “registros da memória” dos sujeitos envolvidos.

Palavras-chave: Identidades. Capuchinhos. Santa Maria. Vaticano II.


588 Histórias, narrativas e religiões
1. Introdução

Este trabalho insere-se numa pesquisa mais ampla sobre a re-


formulação das identidades sacerdotal e franciscana a partir do Concílio
Vaticano II. Para analisarmos tal temática, escolhemos o Seminário
Seráfico Santa Maria dos Capuchinhos, que teve suas atividades inicia-
das em 1953 e encerradas em 1987, na cidade de Irati, Paraná.
A escolha deste Seminário deu-se por três fatores: em primeiro
lugar por que dentre os vários seminários menores dos Capuchinhos no
Paraná e Santa Catarina, o Santa Maria agrega aquilo que chamamos de
“ideário formativo” da Igreja e da Ordem225; em segundo lugar, a crono-
logia do Seminário favorece uma leitura dos modelos em questão: tri-
dentino (antes de 1965) e Vaticano II (após 1965) e as tensões geradas
nessa transição; em terceiro lugar, a farta documentação e a inexistência
de qualquer tipo de análise do papel deste Seminário e dos atores envol-
vidos sobre nossa temática.
Tais fatores nos animaram a filiar-nos na discussão deste even-
to que foi, para usarmos uma expressão de Paul Ricouer em “tempo
e narrativa”, um “Momento axial”226 na história moderna da igreja. O
Concílio Vaticano II sinaliza, ao menos como evento, um desejo de re-
forma geral da Igreja que buscava atingir todos os setores. Nossa hipó-
tese é que o ambiente seminarístico, por ser o lugar de formação clerical
por excelência da Igreja Católica, é um excelente espaço para perceber-
mos a movimentação das identidades em questão.
Queremos entender de que maneira as tensões, advindas dos
dois modelos de formação (Trento e Vaticano II) foram vivenciadas e

225  O ideário de formação integra uma cultura escolar que, de acordo com Julia (2001) agrega
“um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, um
conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos”. Cf. Dominique Julia, A Cultura escolar como objeto histórico. Revista
Brasileira de História da Educação. Campinas, SP: Editora Autores Associados, n. 1, janeiro/
junho, 2001.
226  A expressão “tempo axial” foi cunhada por Karl Jasper. Ricouer o definiu como “momento
axial” um momento pontual que estabelece um parâmetro para o antes, o durante e o depois.
Segundo ele é o “ponto zero do cômputo”. Cf. Paul Ricouer. Tempo e narrativa: tomo III.
Tradução Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Papirus, 1997, p. 183.
Histórias, narrativas e religiões 589
experimentadas no cotidiano do Seminário a partir dos relatos de vida
daqueles que estavam diretamente envolvidos no processo. E mais: quais
tensões são possíveis de serem percebidas em suas experiências enquan-
to alunos e diretores da instituição.
Estes questionamentos foram surgindo ao longo da pesquisa e,
descobrimos na metodologia da história oral, o caminho adequado para
acessar os “registros da memória” dos sujeitos envolvidos.
Será importante também esclarecermos alguns termos e con-
ceitos por nós utilizados neste trabalho:
a) A expressão “experiência formativa” adquire um duplo signi-
ficado por conta da especificidade da situação: por um lado trata-se da
formação recebida enquanto estudante no seminário; por outro lado, sig-
nifica também a experiência do interlocutor enquanto responsável pela
formação de outros seminaristas, ou seja, enquanto diretor da instituição.
b) Trabalhamos a partir de dois modelos de formação à vida
sacerdotal e religiosa que a nosso ver, vigoraram no Santa Maria: a) o
proposto pelo Concílio de Trento (1545-1563), que tem sua base no
decreto Cum adolescentium aetas, e que vigorou, teoricamente, até 1965
e; b) aquele derivado dos documentos do Concílio Vaticano II (1962-
1965), especialmente a Optatan Totius e Perfectae Caritatis que se propôs
renovar a formação sacerdotal e religiosa na igreja. Estes dois modelos se
movem em tensão até hoje.
c) Utilizamos o conceito de Identidade mesmo sabendo que ele
é complexo, provocante e não conclusivo. O que há de consenso neste
conceito é que a identidade está em contínuo movimento e, por isso, é
possível falar de “identidades”.

2. O caminho da produção da fonte oral ou: da


metodologia de pesquisa.

À proposta de utilizarmo-nos de entrevistas para acessar os


“registros de memória”, surgiu a complexidade que envolve as questões
590 Histórias, narrativas e religiões
entre memória e história227. Grandes nomes da historiografia dedica-
ram várias páginas sobre este tema, como Jacques Le Goff em “História
e Memória”, Paul Ricoeur em “História, memória e esquecimento”,
Mauríce Halbwachs em “Memória coletiva”, Pierre Nora com “Entre
memória e história: a problemática dos lugares”, citando apenas os mais
conhecidos. É importante entender que a história saber/conhecimento
não existe sem a memória, que a história é vista como campo da obje-
tividade e a memória como campo da subjetividade. As relações são de
antagonismo e também de complementariedade228.
Providencialmente, para debatermos e conhecermos melhor
este campo nos foi oferecida a disciplina de Tópicos Especiais em
Memória, Narrativa e História Oral, pelo professor Robson Laverti,
do programa de pós-graduação em História, Cultura e Identidades da
Universidade Estadual de Ponta Grossa/PR (UEPG).
A partir dos textos apresentados no programa do curso e das
discussões em sala, decidimo-nos por duas entrevistas pontuais, onde
pudéssemos abranger as questões tanto do ponto de vista dos semina-
ristas quanto dos responsáveis pela formação. Novamente a sorte de
pesquisador iniciante se apresentou. Ao acessar a lista dos antigos estu-
dantes, descobrimos que dois deles não só foram alunos e diretores do
Seminário, como suas trajetórias enquadravam-se com nossa periodiza-
ção, com a conivência, para nós, de morarem na mesma cidade.
Nossos interlocutores gentilmente atenderam ao pedido de en-
trevista. Porém, a cada data marcada para realizá-las, alguns desencon-
tros surgiam. Após algumas tentativas, conseguimos. Decidimos pela
modalidade de “histórias do cotidiano”229 sem um questionário fechado,
227  Segundo Lowenthal, “memória não é menos residual que a história. Por mais volumosas
que sejam nossas recordações, sabemos que são meros lampejos do que já foi um todo vivo. A
erosão do tempo afeta tristemente o que resta das lembranças (p. 74). Cf. LOWENTHAL,
David. Como conhecemos o Passado? Trad. Lucia Haddad. Projeto História, São Paulo, 1998.
228  Nesta relação entre memória e história, Nora afirma que a “história é a reconstrução
sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado [...] a história,
porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a
lembrança no sagrado, a história a liberta, e a torna sempre prosaica” (NORA, 1993 p. 9).
229  De acordo com Alberti pela história do cotidiano, “a entrevista da história de vida
pode conter descrições bastante fidedignas de ações cotidianas”, situações vivenciais que
possivelmente estão guardadas somente na memória daqueles que estiveram lá. Cf. ALBERTI,
Histórias, narrativas e religiões 591
mas dividindo a entrevista em duas partes: a primeira o entrevistado
falaria de sua vida de modo geral, e, na segunda parte, ele focaria em sua
experiência enquanto aluno e diretor da instituição.
Colocadas estas premissas, iniciamos a entrevista filmando e
gravando. Desnecessário dizer que o projeto bipartido da mesma logo foi
ignorado pelos entrevistados. Percebemos, na prática, que a memória não
é uma categoria extática, imóvel. Ao contrário, ela é “uma força ativa, que
molda, que é dinâmica - o que ela sintomaticamente planeja esquecer é
tão importante quanto o que ela lembra” (SAMUEL, 1997, p. 44).
Esta primeira experiência de história oral nos fez perceber sua
relevância na construção das evidências do cotidiano, possivelmente
silenciadas pelos documentos oficiais ou muito irrelevantes para neles
constar. Raphael Samuel faz esta constatação ao dizer que

A evidência oral torna possível escapar de algumas das falhas dos


documentos, pelo menos até onde interessa os termos recentes (i. É.,
aqueles que são da memória viva), e o testemunho que traz é pelo
menos tão importante quanto o das cercas vivas e campos, embora
um não deva excluir o outro. Há verdades gravadas na memória das
pessoas mais velhas e em mais nenhum lugar, eventos do passado
que eles podem explicar-nos, vistas sumidas que só eles podem lem-
brar. Documentos não podem responder; nem, depois de um certo
ponto, eles podem ser instigados a esclarecer, em maiores detalhes,
o que querem dizer, dar mais exemplos, levar em conta exceções,
ou explicar discrepâncias aparentes na documentação que sobrevive
(SAMUEL, 1990, p. 230)

O Estatuto da história oral diz que o historiador produz a suas


fontes, mas não qualquer fonte, produz aquela circunscrita nas pergun-
tas que tem a ver com a disposição que o entrevistado tem do passado.
É sempre uma narrativa dialógica.
Desta forma, o convite a pensar a história oral é pensar a orali-
dade nas fontes escritas. A narrativa oral é uma linguagem, não é apenas
fonte. Aquilo que o sujeito produz, inscreve-se num modo de lingua-
gem. A linguagem não é posterior a linguagem social, mas constitutiva.

Verena. Histórias dentro da história. In Fontes Históricas. Carla B. Pinsky (org.) São Paulo:
Contexto, 2014, p. 167.
592 Histórias, narrativas e religiões
Não é opor fontes (documentos) à historia oral, mas produzir uma lin-
guagem. A linguagem é a tridimensionalidade da fonte.
A história oral enquanto método mudou a maneira como nós
entendemos as fontes escritas. A medida que nos aprofundamos no
fenômeno histórico a partir da subjetividade do sujeito, como afirma
Alberti (2005), nós começamos a entender a narrativa desde a modu-
lação do vivido, uma percepção do real. Porém, esta percepção do real
é subjetiva, uma interpretação. Isso porque “O esforço para contar o
incontável resulta em narrativas interpretáveis, constructos culturais de
palavras e ideias”(PORTELLI, 2010, p. 108).
Na história oral, portanto, não procuramos um informante.
Somente será historia oral se problematizarmos a fonte oral, situar o
sujeito na história. Nela, nós não trabalhamos na categoria discurso,
porque não basta o discurso, é preciso entender também a construção da
narrativa. A história oral instaura a possibilidade de um registro de ex-
periência. No momento da história oral, da entrevista, duas interpreta-
ções ocorrem: daquele que dá a entrevista e daquele que faz a entrevista,
por isso é sempre uma relação dialogal230.
Na produção que gerou a narrativa de nossos colaboradores, o que
buscávamos, para além da problematização que tínhamos em mente, era
perceber de que forma aquele momento histórico fora vivenciado, experi-
mentado na sua subjetividade. A riqueza dos detalhes, os gestos, a mudança
da expressão ao relembrar um momento, somente nos são proporcionados
pela história oral. Nenhum outro documento pode nos dar este contato tão
próximo com o ocorrido, ainda que mediado pela memória.

3. O perfil de nossos interlocutores

Nossos dois colaboradores, Nelson Bonassi e Luiz Antônio


Frigo, estudaram e dirigiram o Seminário Santa Maria em momentos
diferentes. Ambos, oriundos de famílias de agricultores do meio oeste
230  Portelli afirma que a historia oral é um diálogo em que duas agendas se encontram: “ a
agenda do historiador, que tem perguntas, algumas coisas que queremos saber; e a agenda do
entrevistado, que aproveita a presença do historiador para contar as histórias que ele quer contar,
as quais não são necessariamente as histórias que buscamos” (PORTELLI, 2010, p. 03-04).
Histórias, narrativas e religiões 593
catarinense, Concórdia e Capinzal, de descendência italiana, entraram
adolescentes no Seminário. Tanto a conotação étnica que, aliás, foi um
dos atrativos para vinda dos Capuchinhos Vênetos ao Paraná231 e Santa
Catarina, quanto a influência familiar (mãe e pai) definiram a escolha
por estes religiosos, como podemos perceber em suas falas. Questionados
da motivação que os levou ao Seminário, ambos recorreram à família e
a comunidade local à qual pertenciam como definidores de sua vocação:

Porque que entrei nos Capuchinhos? [...] Minha mãe era muito re-
ligiosa, muito religiosa. O meu pai era muito severo. Porque meu pai
era de origem italiana e preferiu os Capuchinhos que eram italianos, e
os franciscanos eram alemães. Então eu fundamentalmente escolhi os
Capuchinhos não por causa de espiritualidade, mas porque eram italia-
nos [...] meu pai ia lá, falava o dialeto com eles, eles eram simpáticos, o
que não acontecia com os alemães (NELSON BONASSI, 2016).

E do Luiz Antônio Frigo:

Cresci em linha bonita, um ambiente muito religioso, uma comuni-


dade muito religiosa, e daquela comunidade tinha muitos freis e ao
mesmo tempo muitas irmãs. Na comunidade linha bonita nós somos
em praticamente cinco padres e um bispo, e tem dezessete irmãs,
na comunidade Linha Bonita. Ali nasceu a vocação participando da
comunidade, e eu me encantei muito com os missionários, e quem
influenciou muito na minha vocação foram os meus familiares, meu
pai e minha mãe. Meu pai era muito religioso e minha mãe também
(FRIGO, 2016)

A identidade cultural (étnica e linguística) fez com que o


Seminário Capuchinho não fosse percebido pelas famílias e pelos jovens

231  Dom João Francisco Braga, bispo de Curitiba, solicitou junto ao Papa Bento XV (1854-
1922), que enviasse missionários para auxiliar na evangelização, tendo em vista que em 1910
havia 25.000 imigrantes italianos na diocese de Curitiba. Em reposta ao pedido do bispo, na
Carta do ministro geral dos capuchinhos, frei Venâncio de Lisle-em-Rigault, encaminhada ao
provincial de Veneza, Frei Serafim de Údine em 07 de abril de 1919, ele assim se expressa:
“E como a colônia italiana é formada na maior parte de imigrantes pertencentes à região do
Vêneto, gostaria muito que os nossos religiosos destinados à sua Diocese fossem desta mesma
província monástica” (ARQUIVO PROVINCIAL CAPPUCCINOS (FREI VENÂNCIO
DE LISLE-EM-RIGAULT, 1919, p. 1).
594 Histórias, narrativas e religiões
como um lugar estranho, porque havia fortes elementos de identifica-
ção232 que se sobrepunham inclusive ao religioso, como era o sentimento
de italianidade. Este sentimento, aliás, pode ser revelador no número de
alunos com sobrenome de origem italiana nos primeiros registros do
Santa Maria, datados de 1953.
Um dado importante a ser ressaltado do perfil do Nelson e do
Frigo, é que após o término da formação inicial (colegial, clássico, filo-
sofia e teologia), ambos foram enviados novamente ao Seminário Santa
Maria, primeiro para exercer a função de assistente da formação dos
seminaristas, e depois como diretores. Os caminhos que os dois fizeram
são bastante semelhantes, mas não o desenlace.
No caso do Nelson, ele permaneceu na Ordem até outubro de
1976, quando a deixou, casou-se, trabalhou como professor da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) até sua aposentadoria, permanecendo
em Florianópolis. O Luiz Antônio Frigo continuou membro da Ordem,
prosseguiu na área de educação após o encerramento das atividades do
Seminário de Irati, especializou-se em Roma e hoje atua como vigário
paroquial em Florianópolis (Trindade) e responsável pela pastoral univer-
sitária na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Suas experiências formativas enquanto estudantes e diretores
têm muitos pontos de contato, porém percebemos também discordân-
cias. Isso porque refletem modelos em transformação e tensão. Este é o
ponto que queremos aprofundar daqui para frente.

4. Frades ou Padres: tensões na formação a partir


das diretrizes do Vaticano II

O movimento franciscano é caracterizado na origem no sé-


culo XIII pela flexibilidade na sua composição institucional. Francisco

232  Parto do uso comum de identificação descrito por Hall (2014, p. 106). Segundo ele, ela
é construída “a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que
são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal”. Cf. Hall,
Stuart. Quem precisa de identidade? In: Silva, Tadeu T. Identidade e diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2014.
Histórias, narrativas e religiões 595
de Assis, de acordo com a historiografia franciscana233, demonstrava-se
avesso à hierarquia de classes234 de seu tempo e nos seus escritos, colo-
ca como única condição para “aqueles que querem abraçar esta vida”235,
que sejam pessoas convertidas. Não vamos nos delongar na análise do
conceito de “conversão” do ponto de vista do movimento franciscano
iniciado no século XIII. Para nós aqui, basta dizer que ela apresenta-se
socialmente relevante, somente quando torna-se movimento a “partir
de campos de solidariedade, quando os núcleos sociais se reconhecem
e atribuem uma missão, dando um direcionamento à sua ação” (SILVA,
2000, p.66).
Oficialmente para a Ordem dos Frades Menores (OFM), o
movimento iniciado por Francisco de Assis, não podia ser enquadrado
nem como clerical nem como laical. De acordo com seus documentos,
quando há referências de membros clérigos e leigos na fraternidade, é
apenas uma constatação existencial

Nelas jamais aparece que a vontade ou a intenção de Francisco, como


Fundador, tivesse sido a de qualificar a dimensão clerical e laical como
elemento essencialmente constitutivo da Ordem e, menos ainda, que
na sua mente e nos seus propósitos tivesse pensado em fundar uma
Ordem exclusiva ou preferencialmente laical (CONFERÊNCIA
DOS MINISTROS GERAIS DA PRIMEIRA ORDEM
FRANCISCANA E DA TOR, 1999, p. 14).

Esta tensão sobre as intenções do fundador está presente des-


de o início do movimento franciscano. Existe algum consenso, sobre

233  Remetemo-nos aqui ao conjunto de textos inseridos na obra: Escritos e biografias de São
Francisco de Assis: crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis,
Vozes, 2000. São, em grande parte fontes hagiográficas, mas que refletem as tensões internas da
Ordem sobre a interpretação do personagem Francisco e do movimento.
234  Há uma certa divergência com relação à concepção hierárquica da sociedade medieval
entre dois grandes expoentes da historiografia, Le Goff e Huizinga. Enquanto Le Goff (2013, p.
103) aceita bem a divisão tripartida da sociedade em oratores, bellatores e laboratores e propõe que
elas “devem ser postas em relação com os progressos da ideologia monárquica e com a formação
das monarquias nacionais na cristandade pós-carolíngia”, Huizinga (2013, p. 86) afirma esta
divisão pode se muito maior, utilizando-se do conceito de estamento: “em geral, cada grupo,
função, profissão é vista como um estamento, de forma que, ao lado da divisão da sociedade em
três estamentos, também seria possível dividi-la em doze”.
235  Regra Bulada, cap. 2,1. In: Escritos e biografias de São Francisco de Assis: crônicas e
outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis, Vozes, 2000.
596 Histórias, narrativas e religiões
duas questões: a) que Francisco iniciou um movimento acessível a todas
as classes do seu tempo; b) que a identidade clerical da Ordem tor-
nou-se proeminente por conta de uma maior profissionalização de seus
membros e de uma maior inserção na vida eclesiástica por meio dos
sacramentos e da pregação. Ou seja, aquela intuição inicial do fundador,
que os franciscanólogos buscam, ficou comprometida pela absorção da
Ordem na Igreja, principalmente por meio da sua legislação que priori-
zava o trabalho dentro da igreja, portanto, clerical.
Giovanne Merlo, estudioso do movimento franciscano primi-
tivo, afirma que, com a aprovação da Regra de São Francisco pela Igreja
e a passagem da exortação para pregação, favoreceu que sacerdotes aflu-
íssem cada vez em maior número à fraternidade. “A clericalização dos
frades é fenômeno, não exclusivo, que inicia enquanto frei Francisco es-
tava vivo e que terá como resultado a plena sacerdotalização da Ordem
nos anos quarenta do século XIII” (MERLO, 2005, p. 81).
Esta introdução é relevante porque a partir dela percebemos
que o debate sobre a identidade na Ordem Franciscana é tão antigo
quanto sua fundação. O Concilio Vaticano II, ao propor aos religiosos
que voltassem a seu carisma inicial, recoloca a questão no século XX.
Em 1563 o Concílio de Trento (1545-1563), com o decreto
Cum adolescentium aetas, lançou as bases para criação dos seminários
clericais na Igreja e que deveriam ser implantados em todas as dioceses
do mundo. Buscava-se “cultivar” (seminarium) a vocação a partir da ado-
lescência num ambiente controlado, onde tempo e espaço foram sacra-
lizados e a férrea disciplina um condicionante para afastar o jovem dos
perigos do mundo. Este modelo vigorou, teoricamente, até 1965, data
que se encerrou o Concílio Vaticano II (1962-1965) e que promulgou
novas diretrizes para formação sacerdotal e religiosa236.
Na fala de nossos colaboradores, podemos observar estes mo-
delos em constante tensão. No relato do Nelson, que entrou no seminá-
rio em 1952 e foi ordenado sacerdote em 1964, é possível perceber de
que modo a rigidez disciplinar e a ênfase na moral sexual eram trabalha-
das durante a formação

236  Os documentos do Concílio sobre a renovação da formação estão nos decretos Optatan
Totius (Opção pela renovação de toda igreja) e Perfectae Caritatis (Perfeita Caridade) sobre a
renovação da vida religiosa, ambos aprovados em outubro de 1965.
Histórias, narrativas e religiões 597
[...] estava no seminário, e o pregador do retiro [...] Um frade auste-
ro, alto, falava bem (imitando a voz grossa do frade), uma voz grave.
E nós, toda aquela piazadinha reunida no salão, e ele em cima do
palco, armou um caixão, botou 4 velas, sentou na mesa, acendeu as
velas, apagou as luzes. Chegou lá, a noite já era inverno como agora,
batia no caixão ( imitando com a boca o barulho e fazendo o gesto):
quem está ai? Quem que tá? Não responde? Como que foi a tua vida?
e vai e vai e vai. Se sabe que se estiver no inferno, por ter cometido
um pecado mortal, inferno nunca acaba? Você quer ter uma ideia do
que é o inferno? Pense numa pombinha que esta lá no céu. A cada
100 anos ela vem de lá, pega um grãozinho de areia e leva embora.
Vai levar toda a terra embora e o inferno esta ainda no começo. Bom,
como a gente ficava? Acabou a conferência era aquela fila enorme no
confessionário, todo mundo no confessionário porque todo mundo
estava em pecado mortal e o pecado mortal era qualquer bobagen-
zinha. Um pensamento. Masturbação: pecado mortal. Mesmo em
sonho, se tivesse uma masturbação noturna, o confessor perguntava:
você consentiu? Como eu vou consentir? Como vou saber no so-
nho? Pecado mortal, se você morrer vai pro inferno [...] por via das
dúvidas é melhor confessar porque se eu morrer nesta noite eu vou
pro inferno [...]Se a gente deixasse de rezar uma hora, era pecado
mortal. Isso me marcou negativamente. Quando eu fui pro novicia-
do, primeiramente cheguei no quarto, luzinha fraca lá em Barra fria
[Santa Catarina], malemá dá pra ler. De noite dormindo, pesadelo
vendo o demônio em cima da janela que queria me levar. Isso me
prejudicou muito, essa parte foi extremamente negativa, formação
espiritual, embora tenha aspectos bons não é? (Nelson).

A experiência do Luiz A. Frigo enquanto estudante do Santa


Maria, nos anos 1965 a 1973, portanto pós-concílio vaticano II, ainda
reflete uma formação com forte cunho disciplinar

Edson Guedes: Como você foi estudante [ no Santa Maria] no pe-


ríodo pós-conciliar e pegou um bom tempo e depois como diretor,
mas quando estudante, você lembra de alguma coisa que pensava
“talvez isso podia ser diferente” e quando diretor tenha implantado
esta mudança?

598 Histórias, narrativas e religiões


Luiz A. Frigo: Sim, muitas! Uma delas é a respeito dos horários
muito fixos, sabe. Outra coisa era a respeito do tipo de punições. Se
a pessoa faz isso, tem isso; se não faz isso tem essa restrição, fazia-se
isso antes.

Edson Guedes: Que tipo de punição tinha?

Luiz A. Frigo: Eram punições do tipo, a pessoa ficar sem pra-


ticar esporte, você vai ter que ficar estudando hoje a tarde, na
hora do esporte você vai estudar porque você não tirou a nota
necessária, são coisas assim, que marcava também a vida das
pessoas. Não eram punições físicas, punições orientativas. Isso
quando fui estudante.

No que foi exposto, é possível delinear uma estrutura de forma-


ção que foi muito bem descrita por Foucault (1987, p. 110) em sua obra
“vigiar e punir”. A partir do disciplinamento, da correção e do castigo,
que sujeita o corpo para ser útil e dócil, é que se instaura “uma maqui-
naria de poder, que o esquadrinha, desarticula e o recompõe”. O corpo
pode ser visto como objeto de controle pelo ideário formativo vigente
no Seminário. A ideia era uma vigilância constante sobre o seminarista
com a intenção de torná-lo imune àquilo que se constituía um perigo
a sua vocação, especialmente o contato com o sexo feminino. É este
modelo de formação que o Concílio, por meio do documento Optatan
Totius237, sugeriu inovações238.
O isolamento total do seminarista, que era um dos fundamen-
tos do método tridentino, passou a ser relativo. Buscava-se uma forma
de inserir os seminaristas numa vida social mais ativa, ao menos como
grupo. A maneira encontrada pelo Nelson, quando diretor do Santa

237  De acordo com Serbim (1992, p. 99), O documento sobre a formação presbiteral do
Vaticano II, Optatan Totius, “representou uma ruptura com a formação do seminário fechado,
não só pela maior flexibilidade que tencionava na formação, senão também pela voz que deixou
aos bispos, o que representou uma diminuição no poder de Roma sobre os seminários”. Cf.
Serbin, K. Padres, celibato e conflito social.
238  Ainda que no documento conciliar sobre a formação do clero não esteja presente quais
inovações devem ser introduzidas na prática formativa, ele dá algumas pistas, tais como: uma
maior interação com a família, sendo abolido o isolamento, a inserção da psicologia para ajuda e
avaliação dos candidatos, uma relação menos hierárquica e mais “paterna” entre os superiores e
os seminaristas. Cf. Optatan Totius, n.3, p. 02.
Histórias, narrativas e religiões 599
Maria entre 1968 a 1972, foi utilizar-se do futebol como meio de inte-
ração com outros grupos e comunidade local

E ai, organizamos o nosso esporte, competíamos com os times da


vizinhança, eles vinham no seminário, nós íamos no campo deles,
jogávamos. Depois fizemos o campo de futebol de salão, ai entre a
capela, que ainda existia até pouco tempo, e a noite vinham os times
de Irati, lá de Engenheiro Gutierrez, de outros lugares, vinham jogar
lá, lá no seminário (Nelson).

Além da prática esportiva, que passou a ser obrigatória, outro


fator importante nas adaptações à proposta do Vaticano II estava rela-
cionada a participação do seminarista quanto a sua manutenção na ins-
tituição por meio do trabalho239. A concepção do trabalho no Seminário
assume o discurso franciscano de se identificar com os pobres que traba-
lham pelo seu sustento. A meta, segundo o Frigo, era a autonomia

No que consistia esta autonomia? Fazer com que os alunos estu-


dassem de manhã, tivessem três horas de trabalho por dia, come-
çando ali as duas horas da tarde, mais ou menos, até as cinco. Tinha
um lanche, depois tinha o banho depois tinham o estudo. Então
estas três horas por dia, bem divididos, com trabalho bem feito,
acompanhado, remunerado, nós mantivemos a nossa caminhada
de autonomia (Frigo).

Como o Concílio pediu que os institutos religiosos regres-


sassem às suas fontes adaptando-se às “condições do tempo” (Perfectae
Caritatis, n. 2, p. 01), estas prerrogativas foram aos poucos sendo imple-
mentadas pelos frades, não sem tensões.
Algumas delas podemos perceber na ata de 24 de agosto de
1971. Reuniram-se no seminário Santa Maria para “resolver alguns
problemas internos da casa”. Pelo que consta na referida ata, estes pro-

239  Estes dois fatores foram elencados por Frei Antônio Rodrigues de Lima, diretor do
seminário entre 1963-1967, em entrevista ao “Brasinha”, informativo de circulação interna do
Seminário Santa Maria sob a responsabilidade dos alunos do 3o ano do segundo grau, em 1978.
Segundo ele, estas atualizações foram postas em prática após um curso sobre as novas diretrizes
do Vaticano II em Porto Alegre em 1966, para diretores de seminários. Cf. Brasinha. Entrevista
a frei Antônio Rodrigues de Lima. 1978
600 Histórias, narrativas e religiões
blemas estavam ligados a convivência entre os frades, ocasionadas por
divisões de opinião relacionadas a metodologia rígida ainda em voga no
Seminário apesar das novas orientações. O que estava em jogo nas dis-
cussões em ata era o quanto o Seminário deveria ser um ambiente mais
aberto, “mais fraterno”, e o quanto o modelo disciplinarmente rígido
deveria ser prezado. As opiniões mostraram-se divergentes. Além do
mais, a própria finalidade clerical do Seminário foi colocada em questão.
Frei Alfredo, um dos docentes, expõe isso ao dizer que “devemos formar
os jovens para vida religiosa. Há normas objetivas. Estou fazendo uma
campanha para irmãos entre os seminaristas” (1971, p.02).
O fato é que as distinções que haviam colocado frades clérigos
de um lado e frades leigos de outro tinham sido, teoricamente, extintas
pelo Concílio e pelas novas diretrizes da Ordem240. A aceitação destas
posições, no entanto, foi palco de muitas tensões no ambiente semina-
rístico e entre os frades.
Os frades não sacerdotes eram vistos, segundo o Nelson, como
“frades de segunda categoria”, “empregados dos padres” ou como aqueles
que não tinham condições para o estudo. Ainda que as novas constitui-
ções da Ordem Capuchinha, implantadas em 1968, formulassem que
“todos os frades são iguais” (Const. 1975, n. 74, p. 75) ao tratar da for-
mação, traça uma clara distinção entre clérigos e leigos

Os frades chamados para as ordens sacras devem ser formados segun-


do as normas da igreja, levando em consideração a índole própria de
nossa Ordem [...] para a formação dos frades não chamados às ordens
sacras, cada província providencie, com o mesmo cuidado que para os
outros frades, quanto ao preparo apostólico, intelectual e técnico, de
acordo com as atribuições de cada um (Const. 1975, n. 138, p. 112).

Este item foi suprimido pela revisão das constituições na dé-


cada de 1980 e que foram aprovadas em 1990. No novo texto, não há

240  Havia uma fronteira claramente delimitada entre os candidatos ao sacerdócio e os outros
que seriam irmãos. Entre 1958 e 1967 funcionou, no mesmo prédio do Seminário Santa Maria,
mas em Ala separada, o seminário para freis que não seriam padres, com o nome de “Seminário
São José”. De maneira geral, a indicação para ser irmão ou sacerdote provinha dos superiores
que utilizam alguns critérios: a inaptidão do candidato ao estudo eclesiástico ou quando o jovem
entrava adulto na Ordem. O seminário dos irmãos vigorou de 1955 a 1972.
Histórias, narrativas e religiões 601
mais qualquer menção de formação diferenciada entre os frades. No
lugar disso, se propõe que, em razão da mesma vocação “dê-se a todos os
frades a mesma formação religiosa” (const. 1992 N.30, p 41).

5. Considerações finais

Nas experiências narradas por nossos colaboradores podemos


perceber o entrecruzamento de temporalidades diversas, seja na dinâmi-
ca pessoal como na institucional, que confere a cada um, um enfrenta-
mento singular. A reconstrução do passado a partir da subjetividade dos
entrevistados, ou seja, de suas experiências como estudantes e diretores
do Santa Maria, é tensionada pela sua condição presente que ficou re-
fletida na frase final de ambos “sinto-me feliz pela experiência”. Esta
frase reveladora, denota o cuidado dos entrevistados com seu próprio
patrimônio mnemônico, a sua memória no sentido de uma herança à
posteridade, mas também desta dialética sempre presente entre memó-
ria e história, como bem lembrou Le Goff ( 2013, p. 437) “A memória,
na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro”.
O que buscamos analisar neste trabalho, por intermédio da his-
tória oral, foi de que forma as inovações do Concilio Vaticano II foram
implementadas e experimentadas naquele ambiente formativo em que
ambos participaram profundamente. Foi a “singularidade das experiên-
cias” de nossos colaboradores, como afirma Delgado (2010, p.36) que
constituiu o substrato da marca de um tempo.
A intenção foi examinar a partir dos registros da memória, as
identidades tensionadas por aquele momento de renovação, propiciado
no calor das discussões, e sua importância na construção ou na recons-
trução do ideal franciscano que ambos participaram num momento de
transição, ainda não terminado.
A “singularidade” desta experiência no campo da historia oral
nos fez perceber que o historiador, ao produzir suas fontes, acaba por
602 Histórias, narrativas e religiões
interferir na narrativa e esta intersubjetividade fica marcada no docu-
mento. Isso obviamente não invalida o trabalho, mas reconhecemos que
são nossos estímulos oferecidos por meio das perguntas que faz o en-
trevistado rememorar, ocultar ou mesmo relatar certo acontecimento de
maneira mais suave ou mais forte.
A memória intervém no momento certo e depende do contin-
gente; sua articulação à situação é o momento tático. “Essa articulação
não é criada, mas percebida. A oportunidade é fruto de uma conjuntura
ou circunstâncias exteriores, nas quais se percebe a ocasião favorável e a
nova articulação, acrescentando-lhe um algo a mais” ( JOSGRILBERG,
2005, p. 86).

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604 Histórias, narrativas e religiões


Os projetos educacionais dos jesuítas
portugueses e as suas contribuições para
a recatolização no Brasil (1910 – 1936)

Carlos André Silva de Moura (UPE)

Resumo: Após a implementação da República em Portugal, em 05 de


outubro de 1910, as ações laicistas do novo governo atingiram direta-
mente as ordens religiosas. Com os decretos publicados pelo novo go-
verno, membros da Companhia de Jesus se exilaram em vários países,
sobretudo, na Espanha, na Itália e no Brasil. A escolha por terras brasi-
leiras se configurou pela língua em comum, pelas aproximações cultu-
rais, mas principalmente, pelos projetos religiosos desenvolvidos no país.
O nosso trabalho tem o objetivo de compreender as ações educacionais
dos jesuítas que se exilaram no Brasil na primeira metade do século XX,
com a análise das relações entre os seus projetos pedagógicos e o proces-
so de Restauração Católica. A partir da História Cultural das Religiões,
buscaremos compreender como a educação foi um instrumento para a
promoção de novos cultos por membros da Companhia de Jesus.

Palavras-chave: Companhia de Jesus, Missão Cultural, Projeto


Educacional, Restauração Católica.

As trocas culturais entre portugueses e brasileiros também fo-


ram incentivadas pelo processo de emigração dos lusitanos para o Brasil.
Com o fim do trabalho escravo observou-se o crescimento no número
de estrangeiros que entraram no país. Os trabalhadores, intelectuais e
eclesiásticos contribuíram com a formação de práticas culturais, sociais
e religiosas nos diversos lugares em que se instalaram.
Entre os imigrantes que desembarcaram em terras brasileiras,
os de nacionalidade portuguesa foram os que mais se destacaram. Nos
últimos anos do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, o nú-
Histórias, narrativas e religiões 605
mero de lusitanos que se destinaram às diversas cidades superou os ín-
dices de todos os outros expatriados (CARVALHO, 1998, p. 16). Entre
os anos de 1901 e 1930, foram contabilizadas 754.147 chegadas, já entre
1931 e 1950 são calculados 148.699 desembarques legais no país241.
O final do século XIX em Portugal foi marcado por dificuldades
na produção agrícola, problemas na distribuição da renda, crescimento
populacional desordenado no norte do país, lento processo de industria-
lização, elevada taxa de natalidade e baixa mortalidade. Estes fatos oca-
sionaram a incapacidade econômica de gerenciar a nação, que também
enfrentava problemas com questões relacionadas à crise da monarquia.
Uma das soluções encontradas para esses pontos foi o processo
de emigração. Entre os anos de 1886 e 1959, a expatriação legal absor-
veu 50% do excesso do número de nascimentos em relação às mortes da
população lusitana. No auge do movimento migratório, entre os anos
de 1912 – 1913, 1918 – 1920 e 1966 – 1972, o país apresentou taxas
de crescimento populacional negativas242. Rui Ramos especificou que
estes números foram percebidos principalmente nas províncias do norte
português (MATTOSO; RAMOS, 2001, p. 512).
A saída dos homens em idade economicamente ativa ajudou
os governantes a solucionar questões relacionadas ao desemprego, com
as reservas do mercado de trabalho equilibradas, o fortalecimento do
movimento sindical no ambiente operário e agrário e a crescente po-
breza decorrente do aumento populacional. A maioria dos emigrantes
destinava-se a outros países com a intenção de conquistar uma acessão
social que não conseguiriam em sua terra natal (PEREIRA, 2002, p. 11,
85, 110).
Na primeira metade do século XX, momento no qual concen-
traremos nossas análises, as epidemias como a “gripe espanhola”, as mu-
danças no sistema de governo, as perseguições políticas e religiosas, o

241  Utilizamos os dados que abordasse o nosso recorte temporal entre 1910 e 1942. (Cf.
IBGE, 2013).
242  Do início do século XIX até a década de 1950, mais de quatro quintos dos emigrantes
portugueses registrados foram para o Brasil. No entanto, existem diversas variáveis nos números
aqui apresentados. Os cálculos tornam-se relativos devido à quantidade de imigrantes ilegais e
aos registros de saída e de entrada feitos de forma incompleta. (KLEIN, 1993 (2º), p. 235 – 237,
239 - 240.)
606 Histórias, narrativas e religiões
medo proporcionado pela Iª Guerra Mundial, a falta de trigo, os altos
preços dos alimentos, o desenvolvimento econômico em alguns países
do “novo mundo” e a construção da ideia do Brasil como um lugar de
enriquecimento eram os principais motivos para o êxodo (PEREIRA,
2002, p. 16). No período investigado, a imigração portuguesa foi es-
sencialmente masculina, em idade adulta e oriunda da região norte de
Portugal, como Trás-os-Montes, Minho, Douro Litoral, Beira Alta,
Beira Litoral e Estremadura.
No entanto, o processo de emigração não pode ser compre-
endido apenas por questões sociais, econômicas, religiosas ou políticas,
mas também como por uma conjunção de fatores que levou à neces-
sidade da saída de um número considerável de indivíduos para outras
localidades (PEREIRA, 2006, p. 274). Tais questões devem ser analisa-
das como o resultado de um processo histórico que contribuiu para as
mudanças aqui pensadas.
Deve-se perceber que, para alguns indivíduos, o sentido do exílio
teve início antes do desembarque no Brasil. As perseguições políticas, o
isolamento cultural ou o impedimento das suas práticas cotidianas pro-
vocaram um isolamento social, profissional e psicológico, um luto entre o
imaginário e o simbólico, principalmente para os expatriados por questões
políticas ou religiosas (Cf. BERTA, 2007; MONTAÑÉS, 2013).
A língua em comum, os laços históricos, as “facilidades” apre-
sentadas pelos “contratantes” da mão de obra europeia, as redes de co-
municação com outros lusitanos que já tinham se aventurado no sonho
do enriquecimento e o incentivo do governo foram alguns motivos que
contribuíram para a emigração dos portugueses ao Brasil (VITORIO,
2015, p. 209). Os imigrantes eram em sua maioria homens sem escola-
ridade ou formação profissional e que deixaram a família nas províncias
lusitanas. O fato colaborou para que as mulheres assumissem não apenas
as funções domésticas, bem como se dedicassem ao trabalho agrícola
e/ou comércio, à manutenção da propriedade e à subsistência dos seus
dependentes (PASCAL, 2008, p. 285).
A língua portuguesa não foi importante apenas para facilitar
a adaptação dos lusitanos no Brasil. O idioma contribuiu para dimi-

Histórias, narrativas e religiões 607


nuir as dificuldades enfrentadas em um exílio, principalmente quando
a observamos como propriedade privada de uma nação, sobretudo, no
momento de formação de um discurso voltado para a cultura lusófona
ou o estabelecimento de uma “comunidade imaginada” de um grupo no
Brasil (ANDERSON, 2008, p. 108, 128).
Em meio ao conjunto de imigrantes que chegaram ao Brasil
na primeira metade do século XX estavam os membros da Companhia
de Jesus que foram exilados de Portugal, devido à cultura laicista imple-
mentada após a instauração da República. As representações formadas
do clero, o trabalho em torno do movimento de Restauração Católica
e as aparentes afinidades entre o poder político e o religioso foram de-
terminantes para que alguns membros da hierarquia católica portugue-
sa se destinassem ao Brasil. Ao se fixarem nas diversas cidades, deram
continuidade às atividades que já desenvolviam nas dioceses lusitanas,
colaborando com a formação de novas práticas religiosas.
Ao embarcarem com destino ao Brasil, os religiosos comparti-
lhavam de um sentimento de dúvida e receio em relação à recepção dos
eclesiásticos e principalmente dos governantes. Mesmo com o processo
de liberdade religiosa, o país ainda estava no imaginário dos jesuítas
como um lugar de onde tinham sido expulsos, principalmente com os
fatos recorrentes em Portugal.
As primeiras instalações que receberam os religiosos lusitanos
foram os Colégios de Nova Friburgo (Rio de Janeiro) e Itú (São Paulo),
coordenados pela província romana da Companhia de Jesus (AZEVEDO,
1914, p. 249). No lugar, os portugueses iniciaram as suas atividades pasto-
rais e os contatos para se fixarem nas diversas dioceses do país.
Com a chegada, alguns bispos aproveitaram a ocasião para for-
mar o seu clero, já que faltavam padres com especialização em estudos
filosóficos e teológicos. Nos primeiros anos da década de 1910, o pa-
dre geral da Companhia de Jesus, Franz Xavier Wernz (1842 – 1914),
recebeu vários pedidos para que enviasse religiosos para trabalhar nas
dioceses do Brasil.
No entanto, alguns eclesiásticos não aceitaram os lusitanos de
imediato. Dom Joaquim Arcoverde (1850 – 1930) foi um dos bispos

608 Histórias, narrativas e religiões


que demonstrou reservas à “interferência” dos estrangeiros nas questões
eclesiásticas do país (AZEVEDO, 1986, p. 08). O problema precisou da
interferência da Cúria romana, que em carta do Cardeal De Lai aos lí-
deres da hierarquia católica no Brasil, foram apresentados os problemas
políticos em Portugal e a importância de receberem os “irmãos” para
que pudessem superar o difícil momento vivenciado (Archivio Segreto
Vaticano, 1921. Busta 171, fascicolo 932. Doc. 86.).
Parte da reação eclesiástica à imigração portuguesa destinada ao
Brasil foi incentivada pela carta pastoral de Dom Sebastião Leme. O tex-
to do bispo contribuiu com a organização de um movimento conservador
que valorizava o sentimento patriótico, com a gestação de uma lusofobia
de caráter político, social e cultural (MENDES, 2010, p. 162 – 163).
Mesmo com as dificuldades apresentadas, os inacianos con-
tinuaram com um projeto cultural em seu novo espaço de atuação. A
primeira ação desempenhada pelos exilados da Companhia de Jesus foi
a fundação do Colégio Antônio Vieira, em março de 1911. A instituição
fazia parte dos projetos educacionais do bispo Dom Jerônimo Tomé da
Costa (1849 – 1924), que ofereceu residência aos religiosos em Santo
Antônio da Barra. O estabelecimento de ensino foi o ponto de partida
para outros empreendimentos dos jesuítas no Nordeste brasileiro. Ainda
na Bahia, as atividades dos religiosos se estenderam para Caetité, tor-
nando-se uma das principais ligações para as missões que se destinavam
ao Sertão (ASSUNÇÃO, 2003, p. 458; FOULQUIER, 1940).
Os membros da Companhia de Jesus fundaram instituições em
São Leopoldo, São Paulo, São Luis, Belém, Fortaleza, Aracati, Salvador,
Caetité, Recife, Baturité, dentre outras cidades. No entanto, durante as
nossas pesquisas destacamos as ações executadas na cidade do Recife
devido ao trabalho desenvolvido entre os projetos pedagógico e o forta-
lecimento do culto a Nossa Senhora de Fátima no país243.

243  Parte da imigração dos religiosos para o Nordeste brasileiro acompanhou as notícias sobre
as dificuldades econômicas da região. As informações sobre a seca e a fome, atraíram diversos
eclesiásticos que tinham a intenção de implementar seus projetos pastorais na localidade.
Mesmo assim, em contraponto as outras capitais nordestinas, as cidades de Recife e Salvador se
caracterizaram com a presença de uma comunidade portuguesa reduzida e elitizada. (MENDES,
2010, p. 158 – 159, 163).
Histórias, narrativas e religiões 609
Dom Sebastião Leme, bispo de Olinda e Recife, foi o principal
articulador dos projetos dos jesuítas na região, mesmo que incialmente
tenha contribuído para a formação de um movimento religioso nacio-
nal. Nas questões educacionais, o eclesiástico não se limitou à implanta-
ção apenas de uma instituição de ensino básico, intencionava organizar
ações para os diversos níveis de formação. O intuito do bispo já tinha
sido apresentado em sua carta pastoral publicada em 1916 (LEME,
1916, p. 102).
Para desempenhar as ações pensadas para o Recife, em 1917
chegaram à cidade treze jesuítas (seis padres, seis irmãos e um escolás-
tico). Com o apoio do bispo, que facilitou a aquisição do espaço para o
início das obras, em 19 de março de 1917, os membros da Companhia
de Jesus inauguraram o Colégio Manuel da Nóbrega, localizado no
Palácio da Soledade, residência oficial do bispado (AZEVEDO, 1986,
p. 115 – 117).
A instituição seguiu o modelo já aplicado pelos religiosos em
outras cidades, com uma educação católica, de formação moral de jovens
meninos e a colaboração com as atividades de recatolização da sociedade
(SOUSA, 2013). Alinhado a um projeto educacional, os jesuítas também
se mantiveram preocupados com o fortalecimento do culto a Fátima.
Ainda que as ideias de construção de um templo dedicado à
“Senhora do Rosário” tenham sido pensadas durante o bispado de Dom
Sebastião Leme, foi na gestão de Dom Miguel de Lima Valverde (1922
– 1951)244 que as atividades foram efetivamente executadas. O padre
Joseph Foulquier ficou à frente do projeto inicial, mas devido a proble-
mas de saúde, cedeu lugar ao padre Domingos Gomes (AZEVEDO,
1986, p. 122).
A construção do templo foi significativa para os jesuítas exi-
lados no Brasil. Desde 1917, Fátima era referência no combate ao an-
ticlericalismo e à cultura laicista, tinha se constituído como o principal
símbolo do processo de recatolização da sociedade em Portugal. Após o
reconhecimento do culto pelo bispo de Leiria em 1930 e o posiciona-

244  Sobre a gestão de Dom Miguel Valverde a frente da Arquidiocese de Olinda e Recife (Cf.
SILVA, 2006).
610 Histórias, narrativas e religiões
mento político das mensagens que lhe foram atribuídas, várias outras lo-
calidades passaram a organizar homenagens que contribuíram para a in-
ternacionalização do culto mariano iniciado em Portugal (AZEVEDO;
CRISTINO, 2007, p. 158 164).
Os projetos para a construção de um templo dedicado à Fátima
na cidade do Recife tiveram início antes do reconhecimento oficial do
culto pela Igreja Católica em Portugal. Desde 1928, o jesuíta Pe. Manuel
Rufino Negreiros foi o principal incentivador da execução de uma obra
em homenagem às aparições marianas na capital pernambucana. Com
a ajuda financeira da comunidade portuguesa, os trabalhos tiveram iní-
cio em 15 de outubro de 1933, com a inauguração em 08 de setembro
de 1935245. A igreja foi erguida no terreno onde também se localizava
o Colégio Manuel da Nóbrega, tornando-se um dos principais locais
de circulação dos intelectuais católicos da cidade (Boletim Mensal da
Archidiocese de Olinda e Recife, 1935; AZEVEDO, 1986, p. 125).
A instituição aqui em análise colaborou com um amplo pro-
jeto de ensino de meninos e meninos, que a organização de escolas
confessionais na primeira metade do século XX, a exemplo do Colégio
São José das Irmãs Dorotéias, o Colégio Nossa Senhora do Carmo e o
Colégio das Filhas de Maria Auxiliadora, na área central da cidade, ou
os Colégios dos Maristas e o Colégio Imaculado Conceição em regiões
mais afastadas do centro. Outras instituições de ensino foram fortaleci-
das, como o Colégio Salesiano de Artes e Ofícios do Sagrado Coração,
que desenvolvia as suas funções desde 1895246.

245  Efetivamente, a obra foi executada nos cinco últimos meses, já que depois do lançamento da
pedra fundamental, os jesuítas enfrentaram problemas para a arrecadação das verbas destinadas
à construção do templo. Parte da historiografia que relata a importância da igreja dedicada à
Fátima na cidade do Recife, como os livros do Pe. Ferdinand Azevedo, destacou que o templo
foi o primeiro construído no mundo, mesmo antes do erguido em Portugal. No entanto, a
instituição no Recife foi a primeira igreja de grandes proporções, já que entre 28 de abril a 15
de julho de 1919 foi construída a Capelinha em Fátima. A atual Basílica do Rosário começou a
ser erguida em 1928, tendo sido consagrada em 07 de outubro de 1953. (FERNANDES, 1944,
p. 106 – 107).
246  Parte dos projetos educacionais foi desenvolvida por missionários que desembarcaram
na cidade, a exemplo dos membros da Companhia de Jesus e dos Salesianos, que mantinham
uma estreita relação com as ações de ensino. Outros grupos se empenharam nestas ações para
colaborar com as atividades de fortalecimento da recristianização (Cf. CASALI, 1995).
Histórias, narrativas e religiões 611
Com o sucesso da missão cultural dos jesuítas no Nordeste
Brasileiro, a crise financeira na Igreja Católica, os rumores da Segunda
Guerra Mundial e as dificuldades para o financiamento do clero, a
Companhia de Jesus passou a enfrentar empecilhos para manter a sua
estrutura internacional. Para diminuir os gastos com os financiamen-
tos, algumas províncias foram declaradas independentes, como a Vice-
província Dependente Setentrional do Brasil, por ser considerada a mais
amadurecida no trabalho missionário. Deste modo, a partir de 08 de de-
zembro de 1938, a instituição passou a atuar com seus próprios recursos
e a organizar o seu corpo administrativo (AZEVEDO, 1986, p. 246.).
A principal crítica à independência da Vice-província do Brasil
foi a possibilidade da instituição não continuar com os projetos que fo-
ram iniciados, em 1911, com o Colégio Antônio Vieira em Salvador.
Em 1938, a Companhia contava com 60 sacerdotes, 40 estudantes e
53 irmãos. No entanto, a falta de experiência de jovens jesuítas para
substituir religiosos que participaram de várias missões era a principal
preocupação de alguns líderes da ordem (AZEVEDO, 2006, p. 33.).
Mesmo com todo o receio, os membros da Companhia de
Jesus que continuaram com os projetos desenvolvidos por seus anteces-
sores foram bem sucedidos nas atividades relacionadas à educação e à
expansão do culto católico. O processo de imigração dos jesuítas contri-
buiu para o fortalecimento do intercâmbio cultural entre os intelectuais
católicos portugueses e brasileiros na primeira metade do século XX.
Mesmo resguardando as suas especificidades, os eclesiásticos desen-
volveram trocas fundamentais para a formação cultural dos dois países,
principalmente nas questões relacionadas à Igreja Católica.
O trabalho da Companhia de Jesus no Nordeste brasileiro con-
tribuiu com a expansão da missão desenvolvida pelos representantes da
ordem em diversos países. No Brasil, as atividades dos eclesiásticos fo-
ram fundamentais para o fortalecimento das tradições católicas e dos
projetos em torno do movimento de recatolização da sociedade e das
instituições. As ações organizadas pelos inacianos foram fundamentais
para o intercâmbio cultural entre os intelectuais luso-brasileiros, con-
tribuindo com parte do sucesso das obras da Província Portuguesa dos
Jesuítas no país.

612 Histórias, narrativas e religiões


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614 Histórias, narrativas e religiões


Ōuchi Seiran e a institucionalização
do budismo japonês no período Meiji
(1868-1912)

Júlio César de Melo do Nascimento (Mestrado – UNICAMP)

Resumo: O presente artigo analisa o texto intitulado “Sociedade e


Religião” (Shakai to Shūkyō), cuja base é a palestra proferida, em 1900,
por Ōuchi Seiran (1845-1918), budista leigo, influente no meio religio-
so do período Meiji (1868-1912) e importante pensador nacionalista ja-
ponês. Nesse documento, o autor discute, no contexto sócio-político da
virada do século, o papel da educação na formação moral dos cidadãos
e a incapacidade do sistema educacional contemporâneo em realizar tal
projeto sem o auxílio da religião. Seiran considera falho o modelo oci-
dental adotado pelo governo Meiji para estabelecer o sistema escolar,
pois, ao mesmo tempo em que este carecia dos elementos morais cris-
tãos nele existentes em sua forma original, desprezava, ainda, os precei-
tos éticos inerentes ao budismo.

Palavras-chave: Ōuchi Seiran, Japão; Budismo; Educação; Período Meiji.

1. Separação entre secular e sagrado

Ōuchi Seiran247 (1845-1918) nasceu em uma família de samu-


rais, na atual cidade de Sendai, na província de Miyagi. Ainda jovem,

247  As transliterações dos nomes japoneses são realizadas segundo o sistema Hepburn e os
nomes próprios seguem a ordem japonesa (sobrenome e nome). Ainda, em termos desse sistema
, chi deve ser pronunciado ti, como na palavra “tia” na pronúncia de São Paulo ou do Rio de
Janeiro, e ji deve ser lido como “dia” na mesma pronúncia. Mácrons indicam vogais prolongadas.
A letra r é sempre uma vibrante simples alveolar, pronunciada como o “r” da palavra cadeira, e gi
ou ge são sempre pronunciados gui ou gue, como em “guia” ou “gueto”, respectivamente.
Histórias, narrativas e religiões 615
tornou-se monge da escola budista Sōtō Zen, mas abandonou o sacer-
dócio em favor de atividades mais suprasectárias. Assim, além de atuar
na formação de um corpo doutrinário para sua própria escola, Seiran
participou também de inúmeros projetos conjuntos com budistas das
mais variadas linhagens (Hoshino, 2012; Tamamuro, 1967; Ikeda,
1976): foi responsável pela criação do primeiro periódico budista do
Japão Moderno em 1875, o Meikyō Shinshi, criou associações políticas de
cunho budista e candidatou-se a deputado nas primeiras eleições ocorri-
das no Japão, em 1890. Teve um importante papel na compilação daquilo
que viria a ser um dos principais documentos litúrgicos da Sōtō Zen, o
Shushōgi, que provocaria uma “Revolução Copernicana” na distinção en-
tre leigos e monges da mesma escola e marcaria profundamente o caráter
do Zen moderno (LOBREGLIO, 2009, p. 88).
Uma de suas inclinações de trabalho foi, mediante a utilização
de diferentes mídias e palestras públicas, promover o budismo àqueles
que ainda não possuíam por ele relação ou interesse. As palestras, cha-
madas enzetsu em japonês, eram, à época, além de importante veículo
de propagação de conhecimento, uma forma de entretenimento, e che-
gavam, em certos casos, a contar com alguns milhares de ouvintes (Cf.
Hoshino, 2012).
A fim de ter suas ideias reconhecidas pelo público-alvo, Seiran
comumente buscava comentar, sob sua ótica religiosa, eventos recentes do
mundo sócio-político japonês. É exatamente essa perspectiva que obser-
vamos em “Sociedade e Religião” (Shakai to shūkyō), o documento ana-
lisado neste artigo. Trata-se da transcrição de um dos inúmeros enzetsu
realizados por Seiran, proferido no verão de 1900, no templo budista
Kinryūji, na província de Tochigi, próxima a Tóquio. Nesse discurso, o
principal assunto é o papel do sistema educacional na formação moral
dos futuros cidadãos. Seiran critica o sistema com base na ideia de que
o este carecia de valores religiosos dentro de seus campos de instrução.
Note-se que moralidade pública era uma questão de extrema impor-
tância para o governo do período Meiji (1868-1912) e os discursos de
Seiran sobre esse assunto vão ao encontro de sua convicção acerca do
budismo como importante elemento ético na construção de uma nação
forte e desenvolvida.

616 Histórias, narrativas e religiões


Até, pelo menos, a Restauração Meiji, que marcou o fim do
período Tokugawa (1603-1868), templos budistas eram responsáveis
pela criação de registros populacionais utilizados pelo governo como
meio de controle civil. Todos os habitantes de áreas do arquipélago sob
jurisdição direta ou indireta do clã Tokugawa deveriam estar registra-
dos em um templo, e assim, não raro, contribuir financeiramente para a
manutenção deste (cf. Hur 2007 e Kasahara, 2001, p. 333-345). Ou
seja, havia uma simbiose entre o governo e a instituição budista. A si-
tuação começa a mudar em 1868, com a Restauração supramencionada,
uma vez que, com o retorno da figura do imperador ao palco político,
inicia-se um processo de desestabelecimento do budismo, que, até então,
gozava de uma posição próxima à de religião de estado, processo – que,
de certa forma, culmina em 1871 com a eliminação das influências bu-
distas da corte imperial (Breen, 2000, p. 241). No entanto, isso não
pode ainda ser identificado como uma separação entre religião e estado,
pois o xintoísmo, a antiga “religião” japonesa, passara a ser utilizado
como elemento unificador de suporte ao culto do imperador. Apesar de
conhecidas no Japão a partir da década de 1870 (Cf. Krämer 2016),
noções ocidentais de separação entre igreja e estado só ganhariam força,
de fato, entre as décadas de 1880 e 1890 (Isomae, 2014, p. 43-54).
Note-se, aliás, que o próprio modelo ocidental de “religião”
– no caso, cristão protestante – era até então desconhecido pelos japo-
neses, e o termo utilizado hoje para falar do assunto, shūkyō, data justa-
mente deste período, desenvolvido com fins específicos de tradução (cf.
Masuzawa, 2005; Maxey, 2014). Sob influência desse novo paradig-
ma, escolas budistas reformulam suas noções de ortodoxia doutrinária,
buscando, ainda, um estilo de proselitismo. Os enzetsu surgem neste
contexto como forma de explicar o budismo para uma população que,
apesar de tradicionalmente adepta deste , desconhecia-o em termos
de doutrina. Seiran foi uma figura emblemática nesse cenário, pois,
apesar de ser fundador de associações com forte expressão anticristã,
utilizou modelos cristãos em seus discursos para a construção da nova
identidade budista (Hoshino, 2012, p. 70-82), como perceberemos no
documento a seguir analisado.

Histórias, narrativas e religiões 617


2. Sociedade e Religião

Em “Sociedade e Religião”, Seiran inicia lamentando, mes-


mo que brevemente, a crescente secularização da sociedade e o conse-
quente abandono às tradições religiosas (Ōuchi, 1900, p. 121-123) 248.
Após essa breve introdução, Seiran parece, ao descrever as qualidades
do projeto educacional japonês, dialogar com o Édito Imperial sobre a
Educação (Kyōiku chokugo), documento promulgado cerca de uma déca-
da antes, em outubro de 1890, profundamente inspirado por uma ética
confucionista. Dos alunos de todas as escolas da nação, esperava-se que
memorizassem seus 315 caracteres que, representando as palavras do
imperador, exigiam dos súditos a busca pela sabedoria, a entrega incon-
dicional às necessidades da nação fundada pelos ancestrais e a obedi-
ência às leis. Apesar de extremamente importante, uma década depois
de sua promulgação já se observavam vozes críticas à sua eficácia, como
observado na análise a seguir.
Seiran, ao escrever acerca das qualidades do projeto japonês,
discorre sobre o formato de educação do Período Meiji, comparando-o
com aquele realizado anteriormente no período Edo. Segundo o autor,
a educação, antes da (re)abertura japonesa ao ocidente, era realizada
por meio do progresso intelectual, concomitantemente ao aperfeiçoa-
mento das intenções morais, estas últimas passadas de geração em ge-
ração. Sendo assim, sabedoria e moralidade eram temas unificados que
faziam parte constitutiva da formação dos indivíduos. Ele explica que,
apesar de existirem mestres xintoístas e confucionistas, os responsáveis
por educar os jovens eram, em sua maioria, monges budistas, e os ma-
teriais didáticos utilizados eram também produzidos por eles. Dentro
das “escolas”, os sermões doutrinários e cerimônias em datas especiais
faziam parte indissociável do processo educativo, doutrinando alunos
desde cedo a respeitarem e acreditarem nos valores budistas. Os mon-
ges possuíam autoridade dentro e fora do campo educacional, pois
eles também eram responsáveis por apaziguar contendas familiares.

248  Doravante, referir-nos-emos a este texto apenas pelo número das páginas.
618 Histórias, narrativas e religiões
Portanto, sua presença transcendia o espaço dito escolar e alcançava a
comunidade (p. 125-127).
Para Seiran, o grande ponto de discussão é, como assinalado,
o fato de que o sistema educacional adotado no Japão a partir de 1872
teria como modelo aquele encontrado no ocidente, onde escola e tem-
plo são entidades separadas e cada uma se encarrega de uma área de
formação específica. Ciências seriam ministradas na escola, e a educação
moral, baseada na doutrina cristã, nas igrejas, às quais todos compare-
cem aos domingos. Além dessa forma quase ritualística, que faz parte
do modus operandi cotidiano dos cristãos, essa religião estaria também
presente em todas as esferas sociais, sendo que a ausência de crença tor-
nar-se-ia empecilho para a realização de quaisquer tipos de intercâmbio
social. Relações comerciais são impossíveis para aqueles que se declaram
descrentes, fazendo com que essa religião seja quase mandatória e ati-
va diariamente. Essa presença ubíqua seria responsável pelo constante
aperfeiçoamento moral de todos (p. 127-129).
No caso do Japão, apesar da recitação diária do Édito Imperial
sobre a Educação nas escolas, Seiran acreditava ser limitada a eficácia
deste, pois sua execução circunscrever-se-ia apenas ao âmbito escolar,
estando desconectado da sociedade e do seio familiar. Assim, por mais
que os valores e virtudes sejam o objetivo da educação, estes não esta-
riam, em tal contexto, sendo desenvolvidos plenamente (p. 128). Seiran
utiliza, no intuito de justificar tal preocupação, relatos de antigos mi-
nistros da educação, como Inoue Kowashi (1844-1895), no cargo entre
1893 e 1894, e Toyama Masakazu (1848-1900) (p.129), que ocupou a
posição por apenas poucos meses em 1898.
A religião não se fazia presente no espaço escolar, e sequer po-
deria legalmente ocupá-lo. Para Seiran, em virtude da carência de um
veículo ético, o aperfeiçoamento intelectual é até realizado, mas o moral
é abandonado, o que torna o papel dos educadores incompleto. Para
exemplificar, ele utiliza o fato ocorrido em 1899 na sessão ordinária da
Câmara dos Representantes, na qual foi votado o projeto para proibição
do consumo de tabaco por menores de idade, pois este seria prejudi-
cial ao desenvolvimento físico. Para Seiran, o fato de o Estado ter que

Histórias, narrativas e religiões 619


deliberar sobre esse tipo de questão demonstra a falência do sistema
educacional como guia de conduta. Dentro das escolas, o consumo de
cigarro pelos alunos havia sido proibido, mas não havia nenhuma preo-
cupação por parte da população em coibir essa prática ou outras, como
o consumo de bebidas alcóolicas por menores, hábitos até então co-
muns. O tempo de permanência em casa era maior que o na escola, e,
se as famílias possuíam falhas morais, os educadores não tinham chance
nenhuma de prevenir essas situações (p. 131-132). Em certo ponto, ele
esclarece que

...de qualquer maneira, a religião possui uma intrínseca relação com


a escola e com a família. A religião domina nosso espírito desde o
momento em que nascemos até o momento em que morremos, e
seguramente deve cultivar a moralidade humana (p. 132).

O autor menciona que a introdução ou não de ensinos religio-


sos no sistema educacional ocupou acirrada posição de debates nos anos
interiores, possuindo defesa de várias partes. Revistas como a Kyōiku
jiron (Discussões sobre assuntos educacionais), publicada por Kaneko
Umaji (1870-1937), renomado filósofo e pensador do período, eram
conhecidas por artigos que discutiam a relação entre escola e religião.
Além de períodicos como este, Seiran ressalta pesquisas acadêmicas
conduzidas no contexto de universidades, como as de Motora Ryūjirō
(1858-1912), primeiro professor de psicologia da Universidade Imperial
de Tóquio.
Em fevereiro de 1900, ou seja, poucos meses antes da palestra
de Seiran, que ora analisamos, Motora reuniu alguns alunos estudantes
de ética e, com eles, distribuiu um questionário em todas as instituições
de ensino do país, para alunos em idade escolar, a partir de 12 anos. Tal
questionário trazia perguntas como: “qual a atitude dos alunos em rela-
ção à religião”, “que tipo de influência a religião tem na vida doméstica”,
“se não há influência, por que não há”, “se já houve influência e ela foi
esquecida, por quais motivos”, e “se acreditam em alguma religião ba-
seada em algum livro ou escrito”, entre outras. Pode-se perceber nesse
questionário um interesse por parte da intelectualidade contemporânea

620 Histórias, narrativas e religiões


em descobrir como se davam as práticas religiosas e as convicções reli-
giosas dos cidadãos, sendo a escola uma ponte entre estas pesquisas e a
população geral. Seiran cita a proliferação de tais estudos como prova
de que compreender a religião no espaço público havia se tornado uma
necessidade (p. 133-134).
Seiran versa, ainda, sobre outros assuntos, como a presença da
religião no exército, e termina seu discurso com uma exortação aos res-
ponsáveis do templo em que realiza sua palestra, enfatizando que devem
ir além da crença inquestionável e fazer com que todos compreendam
profundamente quais são seus objetos de cultos e o significado de seus
mantras. Declara ele, ao fim do sermão, que pesquisar e compreender a re-
ligião (japonesa) é fundamental para o estabelecimento de um corpo dou-
trinário sólido. Tal busca deveria, então, ser realizada em todos os âmbitos
da sociedade, seja na escola, seja nos quartéis, seja nos próprios templos.

3. Conclusão

Como budista, Seiran utiliza seus discursos como instrumentos


de conscientização da situação religiosa de seu tempo e dá importância à
construção de uma sociedade moderna e moralmente desenvolvida por
meio dos ensinos religiosos. Para ele, religião significava, no entanto,
o budismo, cuja artificial ausência no sistema educacional constituiria
uma falha de julgamento dos responsáveis pela formação escolar.
Seiran também exibe enorme erudição sobre os temas em voga
na discussão da formação de identidade nacional. Sua análise dos há-
bitos ocidentais não foi baseada em conhecimento in loco, já que ele
mesmo não teria ido aos Estados Unidos ou à Europa, e reverbera as
impressões que outros japoneses tiveram dessas culturas. Além disso,
para ele, a importância que é dispensada pelo ocidente à religião serve
como prova para ratificar sua proposta de solução ao que ele vê como
problemas morais da sociedade japonesa.

Histórias, narrativas e religiões 621


A adoção irrefletida e apressada de conceitos e modelos oci-
dentais representava, para Seiran, um abandono dos costumes condi-
zentes ao espírito japonês, o que ele busca resgatar ao mesmo tempo em
que propõe uma reformulação da relação entre o povo e tais elementos
renegados. A secularização parecia-lhe ser nociva à situação do budismo
e, por isso, exortava a todos que compreendessem de maneira profun-
da suas próprias crenças e comportamentos. Religião, para ele, deveria
constituir um elemento de fronteiras bem definidas, realizando um pa-
pel social que não fosse apenas de letra morta.
Ainda, suas reflexões agudas sobre o Cristianismo, para ele ele-
mento formador da cultura ocidental, também o levaram a advogar pela
causa da presença religiosa nos mais variados aspectos sociais, como a
educação. A posição do cristianismo na sociedade ocidental o levou a re-
conceber o próprio papel do budismo no contexto do Japão do período
Meiji. Seja como for, as pesquisas atuais e as futuras sobre esses temas
nos ajudarão a compreender melhor como se deram os processos de
modernização em tão conturbados anos da história japonesa.

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Histórias, narrativas e religiões 623


“Cara professora, Irmã Maura” – cultura
escolar e identidades religiosas (Vargem
do Cedro, 1933 – 1943).

Carolina Cechella Philippi (Doutorado – UNICAMP)

Resumo: Este artigo retoma alguns aspectos da cultura escolar da Escola


Estadual Mista Desdobrada de Vargem do Cedro (São Martinho/ Santa
Catarina) entre 1933 e 1944. São eles: seu espaço físico e a formação
de seu quadro docente, tematizados como pontos de aproximação da
instituição com a Igreja Católica local. A escola foi edificada em vila
de colonização alemã no ano de 1882. Já no momento de sua funda-
ção destacou-se a atuação da congregação das Irmãs Franciscanas de
São José, a quem seu funcionamento permaneceu vinculado até 1997
(HELLMAN, 2010, p. 295 - 310). Em 1934 a escola torna-se pública
e estadual – a partir deste momento ela deveria ter apenas professores
laicos. Porém, a comunhão entre aspectos organizativos da instituição,
práticas escolares e a organização religiosa permanece. Tal permanência
compõe a cultura escolar investigada e dimensiona um leque de práticas
escolares lá assinaladas. Este trabalho faz uso do conceito de cultura
escolar ( JULIA, 2001; VIÑAO FRAGO, 1995) e tem como objetivo as-
sinalar aspectos da cultura religiosa local no interior da Escola Estadual
Mista Desdobrada de Vargem do Cedro. É assim possível perceber um
espaço de trocas da escola com a comunidade que a recebe e com demais
instâncias sociais. Mais que delimitar trânsitos, esta abordagem permite
perceber a escola como espaço de apropriação das demais culturas que
o circundam.

Palavras-chave: cultura escolar; arquivo escolar; instrução primária;


cultura religiosa.

624 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

Florianópolis, ano de 1941. Após retornar de uma de suas


viagens a serviço da inspetoria escolar do estado de Santa Catarina, o
inspetor encarregado da circunscrição na qual se encontrava a Escola
Estadual Mista Desdobrada Vargem do Cedro a ela se refere de forma
elogiosa. Segundo ele, sua escrituração escolar era comprometida e cui-
dadosa, estando a instituição e sua rotina em “dia e em ordem” em relação
às instruções do Departamento de Educação do Estado. Sua impressão
foi, portanto, “satisfatória” a respeito da pequena escola – elogiou, inclu-
sive, o trabalho da docente encarregada, a Irmã Maura Schuch (SANTA
CATARINA, 1941).
Maura Schuch assinou e remeteu grande parte da escrituração
escolar – boletins de movimento mensal, livros de chamada, matrícula, es-
crituração escolar e ofícios – da Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem
do Cedro entre 1933 e 1943. A pequena escola foi edificada em Vargem do
Cedro – distrito do município catarinense de São Martinho – e teve sua
institucionalização ligada à congregação a qual a professora pertencia.

Histórias, narrativas e religiões 625


Figura 1: mapa físico de Santa Catarina, com destaque ao Município de
São Martinho (2015). Disponível em http://www.cidades.com.br/cidade/
sao_martinho/004125.html

626 Histórias, narrativas e religiões


Figura 2: mapa físico dos arredores do distrito de Vargem do Cedro. Disponível em
https://www.google.com.br/maps/place/Vargem+do+Cedro/.

As primeiras representantes da congregação das Irmãs


Franciscanas São José249 chegaram ao município no ano de 1928. Eram
elas: Irmãs Madalena Heider e Madalena Huskens – da Alemanha – e
Irmã Conrada Murck – holandesa.A chegada deveu-se ao pedido do Padre
Schwirling, que requisitou prestação de seus serviços no Colégio Santos
Anjos250.Lá atuaram na direção e na docência,prestando serviços também na
Pastoral Paroquial. A chegada das religiosas é apontada por Josefina
Hellman (2010, p. 295 - 330) como transformadora da estrutura es-
colar, sendo a pequena escola dirigida por elas até 1997. O trabalho
das católicas teve outras facetas junto à comunidade, sendo destacada
sua atuação na assistência aos enfermos e no ministério da catequese.
Inicialmente as professoras eram apenas as integrantes da Congregação;
mas, em 1934, a escola passou a ter caráter público estadual, passan-
do a ter, como parte do corpo docente professoras e professores laicos
249  A congregação foi fundada em 1867 por Madre Alphonsa Kuborn na pequena cidade
de Schweich, na Alemanha. Chegou ao Brasil no ano de 1926 para trabalhar na assistência a
portadores de Hanseníase no Hospital São Roque (Paraná) (IRMÃS FRANCSICANAS DE
SÃO JOSÉ, S/P, 2017).
250  Antigo nome da Escola Estadual Msita Desdobrada de Vargem do Cedro.
Histórias, narrativas e religiões 627
(BOEING, 1997, p. 330-334 e p. 295-310). A fundação do município
data de 1866; (HELLMANN, Op. Cit., p. 28-30) a da escola, por sua
vez, data de 1882251.
A instituição iniciou suas atividades com a vinda do
professor Grundling da Alemanha para o Brasil, encarregado
pela administração de aulas no idioma alemão. Teve, portanto, sua fun-
dação e institucionalização ligada ao ensino de linguagem, entendida
como forma de manutenção dos costumes. Nessa dinâmica se insere a
atuação das irmãs integrantes da Congregação – são, pois, elementos
componentes da cultura escolar daquela instituição.
O conceito de cultura escolar252 é mobilizado neste artigo para
propor uma aproximação com a instituição e assim assinalar trocas entre
esta e uma cultura religiosa que também a compõe. É então avultado em
dois sentidos, tomando para isso referenciais distintos. Em um deles a cul-
tura escolar é aqui percebida como um “conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práti-
cas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação
desses comportamentos” ( JULIA, 2001, p. 10). Seriam, pois, as práticas
de transmissão de conhecimentos e comportamentos do interior da es-
cola. Estas, contudo, conversam com demais culturas que lhe são exter-
nas e contemporâneas: social, econômica, política e, por fim, religiosa. Ao
assinalar para o conceito de cultura escolar como um leque de práticas,
Dominique Julia a toma também como objeto histórico e viabiliza seu
estudo em contato com o meio no qual se insere. Por outra via de enten-
dimento, Viñao Frago (2003, p. 56-66), toma as culturas escolares como
possuidoras de uma existência ligada às origens da escola como institui-
ção. Para ele:

251  Marco inferido no livro escrito por Josefina Hellman, tendo como fonte o livro de Tombo
da Paróquia de São Sebastião de Vargem do Cedro (1921-1959).
252  Para texto de balanço teórico do uso do conceito, conferir FARIA FILHO, L. M.;
VIDAL, D. G., PAULILO, A. L. A cultura escolar como categoria de análise e como campo de
investigação na história da educação. Educação e Pesquisa. São Paulo, vol. 30, n. 1, p. 139-159,
jan/abril de 2004. Destrinchando a cultura escolar como categoria de análise na área, os quatro
pesquisadores retomam textos basilares de História da Educação elaborando balanço teórico e
metodológico.
628 Histórias, narrativas e religiões
[...] La cultura escolar, así entendida, estaria constituida por un conjunto
de teorías, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y
prácticas (formas de hacer y pensar, mentalidades y comportamientos) se-
dimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y
reglas de juego no puestas en entredicho, y compartidas por sus actores, em
el seno de las instituciones educativas. [...] Sus rasgos característicos serían
la continuidad y persistencia en el tiempo, su institucionalización y una
relativa autonomía que le permite generar productos específicos como las
disciplinas escolares. La cultura escolar sería, en síntesis, algo que perma-
nece y que dura30 [...] (VIÑAO FRAGO, 2003, p. 59).

Sugere assim a elaboração e uso do conceito plural, culturas


escolares , já que para cada estabelecimento educacional porta caracte-
253

rísticas particulares:

[...] hay, pues, culturas específicas de cada centro docente, de cada


nivel educativo y de cada uno de los grupos de actores que inter-
vienen en la vida cotidiana de las instituciones de enseñanza, así
como subculturas más específicas” (VIÑAO FRAGO, Op. Cit.,
p. 64).

Sendo assim, a cultura escolar da Escola Estadual Mista


Desdobrada Vargem do Cedro é acessada, sendo para isso composta
série de Livros de Chamada, Matrícula e Registro Escolar. Interessa en-
tendê-la em seu trânsito com demais culturas que com ela estabelecem
trocas ( JULIA, Op. Cit.), destacando-a como um movimento de conti-
nuidade e permanência (VIÑAO FRAGO, Op. Cit.). Tal permanência
compõe a cultura escolar investigada e dimensiona um leque de práticas
escolares lá assinaladas. Este trabalho tem como objetivo assinalar as-
pectos da cultura religiosa local no interior desta escola, sendo assim
possível perceber um espaço de trocas desta com a comunidade que a
recebe e com demais instâncias sociais. Mais que delimitar trânsitos,
esta abordagem permite perceber a escola como espaço de apropriação
das demais culturas que o circundam.

253  Sobre a temática, conferir, de mesmo autor, o texto “Culturas escolares y reformas (sobre la
naturaleza histórica de los sistemas e instituiciones educativas”. Revista Teias. Volume 1, número
2. Disponível em http://www.periodicos.proped.pro.br/index.php/revistateias/article/view/40.
Histórias, narrativas e religiões 629
Este artigo se organiza listando dois aspectos nos quais os
trânsitos entre a cultura escolar e a cultura religiosa melhor se fizeram
ver: na estrutura física da instituição e em seu corpo docente. Retoma
então as fontes254, organizadas em série documental, assinalando para
tais trânsitos.

***

Atualmente a Escola Estadual Mista Desdobrada em o nome


de Escola Estadual Rodolfo Feuser – localiza-se no mesmo distrito, mas
afastada de seu centro. O prédio, inaugurado na década de 70, é térreo
e foi construído para abrigar a escola. É também ali que é guardado o
arquivo escolar 255 da instituição, onde pesquisadores e moradores podem
fazer consultas diversas.

Foto 1: fechada atual da Escola Estadual Rodolfo Feuser.

254  Este artigo é recorte da dissertação de mestrado “A Escola Isolada Modelo (1937 – 1940)
e a Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem do Cedro (1933 – 1944) – culturas escolares e
educação comparada” (Programa de Pós Graduação em Educação – FE/UNICAMP), defendida
em 2015.
255  Conferir: SÃO PAULO, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO. Manual de trabalho em
arquivos escolares. São Paulo: CRE Mário Covas, 2004.
630 Histórias, narrativas e religiões
No período do qual este artigo se ocupa, porém, o prédio escolar
era outro. Inicialmente o Colégio Santos Anjos teve sede em uma pequena
casa próxima à Igreja; em 1928 foi inaugurado seu novo prédio, passan-
do a escola a ocupar seu antigo espaço. Esta mesma estrutura física ainda
se encontra erguida em frente à atual Igreja local. Seu nome foi alterado
para “Casa São José” e ali são desempenhadas funções comunitárias –
como catequese e clube do idoso.

Foto 2: Fachada da casa ocupada, na época pesquisada, pela Escola Estadual Mista
Desdobrada de Vargem do Cedro. Julho de 2013

A comunhão entre os espaços físicos de Igreja e Escola não se


faz ver apenas pela proximidade geográfica - ocorre uma troca entre am-
bas as instituições, ilustrando seu vínculo. É tratando destas situações que

Histórias, narrativas e religiões 631


João Klug (2003, p. 142) afirma haver um “comensalismo256 institucional”
entre Igreja e Escola nas comunidades alemãs em Santa Catarina. As duas
instituições vivenciaram uma dependência e uma expansão; para Klug, a
escola consistia em uma “escola-templo”, na qual funções educacionais e
de fé se embrenhavam em práticas cotidianas. Conforme Hellman (2010,
p. 177) a religiosidade mobilizava aspectos não apenas institucionais, já
que esta tangenciava diferentes esferas de sociabilidade257.

Foto 3: A esquerda a antiga igreja, transformada em escola após 1928. Fotografia


reproduzida em Hellman (Op. Cit., p. 309).

A cultura escolar, neste ponto, estabelecia claro trânsito com a


cultura religiosa. Não é neste artigo mobilizada a ideia de “comensalismo

256  Entende-se por “comensal: cada uma daqueles que comem junto” segundo o Mini
Dicionário Aurélio da Língua portuguesa (conferir FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.
Mini Aurélio: o mini dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo, 2008). Para
cunhar a categoria de entendimento, João Klug apropriou-se de termo utilizado em estudos
biológicos, esgarçando-os para o entendimento de duas instituições distintas
257  A esse respeito conferir: BOPRÉ, Maria Regina. O Colégio Coração de Jesus na Educação
Catarinense (1898-1988). Florianópolis: Editora Lunardelli, 1989. Nele a autora situa a atuação
das Irmãs da Divina Providência, sobretudo na fundação e atuação junto ao Colégio Coração
de Jesus (Florianópolis, Santa Catarina). Neste movimento entende a vinda de congregações
religiosas como parte de um esforço político de difusão da escolarização formal no estado.
632 Histórias, narrativas e religiões
institucional”; contudo, através da serie documental organizada é possí-
vel assinalar para a presença de elementos da cultura religiosa nas cul-
turas escolares assinaladas. A divisão do prédio não ilustra apenas uma
proximidade física, mas organizacional e de sentidos – ao ser herdado o
prédio, herda-se também uma forma de organizar e conceber o espaço.

***

Ao longo de todo o período pesquisado, os materiais de escri-


turação escolar foram preenchidos e assinados por religiosas. Conforme
excerto de relatório reportado ao começo deste artigo, o fato não aparece
como problema em documentos da Inspetoria Escolar daquela circuns-
crição. Apesar de ter sido convertida em escola pública estadual já no
ano de 1934 – devendo, a partir de então, ser chefiada por professores
leigos – as irmãs continuaram atuando em funções de docência, secreta-
riado e direção. Para quê, pois, essa permanência sinaliza?

Foto 4: Primeiras irmãs estrangeiras da comunidade. Fotografia reproduzida em


Hellman (Op. Cit., p. 307).

Histórias, narrativas e religiões 633


A chegada das Irmãs à comunidade é, conforme já referenciado,
assinalada como ponto fulcral na organização do ensino (HELLMAN,
Op. Cit.). Da mesma forma iniciativas semelhantes são comumente docu-
mentadas na historiografia da educação em Santa Catarina; a presença de
professores próximos da população local (comumente chamados de mestre
escola) e de religiosos e religiosas nas funções de docência são, pois, rotinas
comuns. Na Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem do Cedro a pre-
sença de representantes da congregação foi deliberadamente constante.
Trata-se, pois, da permanência de um aspecto de sua cultura
escolar frente à crescente burocratização da organização pedagógica.
Conversando com a definição de Viñao Frado (Op. Cit.) é um aspecto
que remete às origens desta escola específica como instituição; por ser
de tal forma a ela integrada, sua mudança se torna difícil. Por este viés,
embora se trate de uma cultura conforme ( JULIA, Op. Cit.), ela possui
uma dinâmica que lhe é própria e que respeita o posicionamento de
seus sujeitos em seu interior – onde, afinal, se desenrolam as práticas e
o cotidiano escolar.

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo propor aproximações entre a


cultura escolar da Escola Estadual Mista Desdobrada Vargem do Cedro
e a cultura religiosa da comunidade - para tanto atentaram-se para dois
aspectos: a estrutura física e o corpo docente. Interessou mobilizar o
conceito de cultura escolar para entender as especificidades desta escola
como instituição e seus trânsitos com a comunidade local – o foco foi
descentrar a história da escola de uma série de normativas legais que
preconizavam seu afastamento da Igreja local. Desta forma foi assina-
lada uma proximidade e uma comunhão de espaços e professores. Este
deslocamento na análise descentrou-a das normais e situou-a nas prá-
ticas presentes no cotidiano escolar – é neste viés que ganham protago-
nismo os sujeitos que se deslocaram em seu interior e a significação e o
uso dado à religião.
634 Histórias, narrativas e religiões
Fontes

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


chamada 1936 – 1940. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


chamada 1937 – 1939. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


chamada 1939 – 1940. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


matrícula 1934 – 1944. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


matrícula/chamada -1944. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Registro


Escolar 1946 – 1949. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


chamada 1942 – 1943. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


Chamada 1932. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Quadro de


Resultado de Exames, 1942. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESCOLA ESTADUAL MISTA DESDOBRADA DE VARGEM DO CEDRO. Livro de


Matrícula, 1935 – 1938. Vargem do Cedro, Santa Catarina.

ESTADO DE SANTA CATARINA, Relatório do mês de fevereiro de 1941. De-


partamento de Educação do Estado de Santa Catarina – Inspetoria Escolar
da 4ª circunscrição. S/p

Referências:

BOEING, Irmã Serena. Escola Primária Santos Anjos - Vargem do Cedro SC. In: Quero
Misericórdia – História da Congregação das Irmãs Franciscanas de São José. Itapema: 1997.
Pág. 330 – 334

HELLMANN, J. Imigração; Ocupação do Vale do Capivari; Enfim, no Vale do Capivara. A


escola. Colonização, cultura e tradições de Vargem do Cedro – 1880 a 2010. Santa Catarina:
Nova Letra, 2010. Pág. 24-25; 26-27;28-30; 295 – 330.

Histórias, narrativas e religiões 635


IRMÃS FRANCISCANAS DE SÃO JOSÉ. Histórico. S/p; s/d. Disponível em http://www.
franciscanasdesaojose.org.br/sobre-nos-identidade.asp. Acesso 1º de maio de 2017.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da
Educação. Vol. 1, núm. 1, 2001. Disponível em http://www.rbhe.sbhe.org.br/index.php/rbhe/
article/view/273. Acesso 28 de abril de 2013.

KLUG, João. A escola alemã em Santa Catarina. In: DALLABRIDA, Norberto. Mosaico de
escolas: modelos de educação em Santa Catarina na Primeira República. Florianópolis: Cidade
Futura, 2003. Pág. 141 – 155

VIÑAO FRAGO, Antonio. Las Culturas Escolares. In: Sistemas Educativos, Culturas Esco-
lares y Reformas: Continuidades y Cambios. 2003. Pág. 56 – 66

636 Histórias, narrativas e religiões


O problema do sagrado:
identidade, religião e intolerância

Sandra Regina Marcelina Pinto (Doutorado – PUCSP/CAPES)

Resumo: No Brasil, o sagrado é um problema desde a chegada dos por-


tugueses. Esse encontro é o marco da diversidade em território nacional
e com ele surgem a intolerância religiosa juntamente das crises identi-
tárias. Posteriormente, temos então a chegada do africano solidifica-se
a tríade: o africano que fora destituído de sua terra capturado como
animal para ser trazido, o índio destituído da posse de sua terra e o por-
tuguês que apodera-se de tudo. Soberano, o português inicia o processo
de imposição de origens por meio de sua religião e identidade cultural.
Todos esses elementos culminam num distanciamento do que é indí-
gena e na desafricanização do povo brasileiro que só se assume quando
conveniente é ser descendente de índio e negro. Propõe-se pensar um
dos tantos caminhos que a nulidade identitária tem para emponderar-se.

Histórias, narrativas e religiões 637


Formação da identidade do aluno
no contexto escolar: o samba como
instrumento de reafirmação da cultura
afro-brasileira

Diego Ribeiro (UFOP/UFJF)

Resumo: Este estudo pretende apresentar as influências africanas pre-


sentes na constituição do gênero musical designado samba nos anos fi-
nais do século XIX e primeiros anos do século XX. E com isso, propor
formas de se trabalhar tal temática, associada ao ensino de História, a
fim de que elas possam romper com os paradigmas e estigmas que per-
meiam a abordagem da temática afro-brasileira tantas vezes apresentada
com um olhar eurocêntrico. Esse modo de olhar para o mundo e ensinar
História torna-se responsável pela construção de uma identidade dos
indivíduos no espaço escolar, ausente de elementos voltados à cultu-
ra afro-brasileira. Além disso, este trabalho também examinará como
o samba, com suas raízes africanas desde o batuque, e sua apropriação
nos terreiros teve papel fundamental na busca dessa identidade. Sendo
assim, esta pesquisa busca utilizar o samba e as referências históricas
como elementos de ressignificação, reafirmação e resistência de mani-
festações religiosas e culturais dos povos de origem afro-brasileira. Isso
será observado levando em consideração o samba como instrumento de
reafirmação que nasce a partir de um processo social no qual parte da
população, em grandes centros, é obrigada a se estabelecer nas regiões
periféricas das cidades, no caso específico da capital federal no período
do Estado Novo, o Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Samba; História; Estado Novo; Cultura afro-brasileira.

638 Histórias, narrativas e religiões


1. Introdução

Tendo como base o atual currículo brasileiro para o ensino de


História e partindo de uma visão que considera que esse ensino visa à
formação de sujeitos críticos e agentes ativos dentro da sociedade, en-
contramos algumas contradições no ambiente escolar, que acabam por
não dar importância aos diferentes grupos culturais e sociais presen-
tes no convívio dentro dos colégios e salas de aula, apesar de esse am-
biente ser multicultural e multifacetado. Com a implementação da lei
10.639/03 que institui a obrigatoriedade do ensino de história da África
e dos africanos no currículo escolar do Ensino Fundamental e Médio,
esperava-se que houvesse o estudo da História da África e dos africanos,
além das contribuições da cultura afro-brasileira na formação da socie-
dade nacional, resgatando suas influências nas áreas social, econômica
e política ao longo da história do Brasil.2581 Assim, os conteúdos refe-
rentes à história e cultura afro-brasileira deveriam ser ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística, Literatura e História brasileiras.
Sendo assim, o ensino de história deveria passar por mudanças,
mas a falta de preparo dos educadores, de maneira geral, para lidar com
questões metodológicas e ideológicas acerca do assunto, e a ausência de
material didático sobre o tema acabam conferindo um discurso euro-
cêntrico em torno da temática que deveria ter por objetivo recuperar a
historicidade negra e contemplar a diversidade, religiosidade, sincretis-
mo e direitos, negando o preconceito.
Com isso, os alunos são vistos como iguais, suas individualidades
e subjetividades são deixadas de lado e sua origem não é levada em con-
sideração. Isso é assinalado por Vera Neusa Lopes quando ela afirma que:

Ao longo dos anos, os currículos foram sendo construídos, tendo por


base um modelo eurocêntrico, o que significa ter tornado o homem
branco como referência para a construção das propostas de ensino e

258  1 Sobre a lei 10.639/03 na íntegra, ver mais informações em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>
Histórias, narrativas e religiões 639
aprendizado [...]. Tomar consciência de que o Brasil é um país mul-
tirracial e pluriétnico, portanto, reconhecer e aceitar que, nesta diver-
sidade, negros e indígenas também desempenham papéis relevantes
se substantivos, são aprendizagens que precisam ser realizadas e que
convergem para a educação das relações étnico-raciais [...]. (LOPES
apud FREITAS; LIMA, 2012, p.78)

Partindo dessas considerações inicias e voltando o olhar para o


conteúdo específico de História do Brasil, este trabalho buscará elencar
pontos específicos voltados para a cultura afro-brasileira que poderiam
ser tratados principalmente nos anos finais da chamada República Velha
e o período do Estado Novo ou Era Vargas visando propor a utilização
do samba como instrumento capaz de interferir na construção da iden-
tidade dos alunos.
Nessa abordagem, com o samba associado ao ensino de História,
é necessário alertar para que se tome cuidado para que tal escolha não se
torne mais uma ferramenta que folclorize e delimite um universo cultural
que, se olhado com cuidado e tendo-se uma visão macro, torna-se tão
complexo e rico de referências que deveriam ser abordadas de maneira a
desconstruir a visão eurocêntrica já consolidada no ambiente escolar a fim
de exaltar os aspectos da construção cultural nacional como um todo.
Não levar em consideração a diversidade presente em sala de
aula é ignorar a individualidade dos alunos e, consequentemente, o po-
tencial de se explorar tais subjetividades na construção do conhecimento
inerente a todo o processo educacional. O que se tem visto é um esforço
cada vez maior para criar indivíduos que somente reproduzam conteú-
dos e que não se questionem acerca deles, o que gera uma construção de
saberes limitada e que fica a critério do discurso dominante eurocêntri-
co, consolidando no imaginário universal os ditames a serem percorri-
dos no que se refere à África e à cultura afro-brasileira.
No ensino de História, o samba entraria como uma forma de
propor a interação entre os alunos com o objetivo de construir um olhar
diferenciado acerca das questões afro-brasileiras presentes no período
do Estado Novo. Esse gênero musical, no início de seu percurso, foi
apropriado pelo “branco” para, muitas vezes, agredir e depreciar a cultura

640 Histórias, narrativas e religiões


do negro que buscava seu lugar dentro da sociedade da época, a qual era
extremante conservadora e patriarcal. O samba, em suas origens, nasce
nas roças, como eram chamados os terreiros de candomblé no interior
da Bahia e tem uma ligação forte com a umbigada que é definida como
“um gesto coreográfico que em uma das línguas do tronco banto cha-
mava-se “semba”, suposta origem da palavra ‘samba’ ” (LOPES, 1992;
SANDRONI, 2001, apud SILVA, 2015, p.1).
Tendo visto tais questões, este trabalho buscará inicialmente
no percurso histórico da construção do gênero musical hoje conhecido
como samba, as influências de matriz africana que foram relevantes e
foram inseridas, seja de maneira direta ou indireta, pois sem elas não
seria possível conhecer o samba tal qual o conhecemos hoje, visando dar
ênfase nessas influências e apresentar ainda pontos ligados ao samba e
às religiões de matriz africana.

2. Origem crioulo-africana: do batuque à umbigada

Tratar a questão do samba, sua formação e constituição nos


leva a buscar a origem desse processo e não podemos deixar de apontar
sua ligação direta com características de origem africana. O samba, em
sua origem, carrega vestígios de uma herança africana, mas em alguns
momentos de seu processo de consolidação, isso é negado, por motivos
de associação à cultura africana que, às vezes, é repudiada devido à plás-
tica coreográfica de suas danças, ou isso ocorre simplesmente pelo fato
de ser relacionado a culturas negras africanas.
Para entender melhor sobre essa temática, vamos buscar em
sua origem histórica as características que fizeram com que o samba se
tornasse samba, influenciado pelas culturas africanas tão ricas e diversas.
A única maneira de os escravos africanos se reunirem durante o
século XVI era quando se estabelecia o batuque, momento em que a ma-
nifestação da cultura africana se dava livremente e os colonizadores não
imaginavam a extensão de tais expressões. Sendo assim, essa reunião em
Histórias, narrativas e religiões 641
torno do batuque não era delimitada apenas como algo festivo, mas, sim,
carregava conotações religiosas, danças, rituais e também formas de lazer.
A distinção das manifestações festivas e religiosas só irá acon-
tecer no decorrer do século XVIII, e a separação de práticas religiosas e
festivas iria delimitar o espaço geográfico onde cada uma poderia ocor-
rer. Havia uma diferença entre os ritos da vida social e aqueles que eram
mera diversão e que acabaram por chamar a atenção de brancos e mu-
latos das camadas baixas que começaram a frequentar esses ambientes,
gerando modificações.
As manifestações religiosas aconteciam em áreas abertas, ocul-
tas no meio da mata, por isso a designação, que ainda hoje se usa na
Bahia, de roça como sinônimo dos terreiros de candomblé. Por outro
lado, os eventos de lazer se instalaram em áreas urbanas ou nas periferias
das áreas rurais. A esse respeito, podemos observar as considerações de
Tinhorão:

E, assim, ao mesmo tempo que as cerimônias religiosas passaram


a ser realizadas em locais abertos às escondidas na mata — o que
explica o nome de roça ainda hoje usado na Bahia para os terreiros
de candomblé —, os batuques da área urbana ou da periferia dos
núcleos povoados da zona rural puderam ganhar, afinal, o caráter
oficialmente reconhecido de local de diversão.
E foi assim que, com o paralelo crescimento da participação de bran-
cos e mulatos das camadas baixas das cidades e vilas nesses “batuques
negros”, começaram a surgir adaptações provocadas pelo casamento
da percussão, da coreografia e do canto responsorial africano-crioulo
com estilos de danças, formas melódicas e novo instrumental (prin-
cipalmente a viola), introduzida pelos herdeiros nativos da cultura
europeia (TINHORÃO, 2008, p.55-56).

O que se pode perceber a partir desse momento são mudanças


causadas por combinações de características crioulo-africana e branco-
-europeia, que irão influenciar na diversidade de cantos e danças folcló-
ricas derivadas do batuque como o lundu ou baiano, o coco, o bambelô,
o tambor de crioula, o jongo, o caxambu, o bate-baú, e inclusive as várias
modalidades de samba de roda baiano e carioca. Vale ressaltar que todos

642 Histórias, narrativas e religiões


eles têm um traço comum de nítida origem crioulo-africana que seria
a umbigada, manifestação simbólica, ritual e coreográfica que também
deu origem ao lembamento ou lemba que é o nome dado à cerimônia de
casamento entre os negros.
O termo batuque então vem a generalizar essa diversidade de
cantos e danças das rodas de negros onde a umbigada será a coreogra-
fia pinçada por observadores e que era descrita nos séculos XVIII-XIX
como sendo de origem crioula africana e se caracterizava da seguinte
maneira, conforme apresenta Alfredo Sarmento:

Nesses distritos e presídios, o batuque consiste também num círcu-


lo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou preta
que depois de executar vários passos, vai dar uma embigada, a que
chamam de semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio
do círculo, substituí-lo (SARMENTO, 1880, apud TINHORÃO,
2012, p. 59)

Com a apropriação dessas coreografias, danças e cantos nas ro-


das designadas pelos portugueses de batuque, a influência de brancos e
mulatos brasileiros, que cada vez mais se tornam presentes e passam a
frequentar esses batuques de negros, no Brasil, na segunda metade do
século XVIII, acaba tornando favorável um cenário de mudança no qual
há o afastamento dos crioulos africanos.
As sugestões de cantos e danças negros ditos por esses mulatos
e brancos ao se defrontarem com o batuque de origem africana acabam
fazendo com que este último perca força, seja por influência das condi-
ções locais, seja por mudanças ocorridas na África. Isso leva a uma apro-
priação dos elementos que mais se adaptavam à cultura local, surgin-
do, assim, novas formas de danças e cantos que se tornaram nacionais.
As três primeiras formas que têm influências de brancos e mestiços do
Brasil a partir da gênese do ritmo e da coreografia crioula africana dos
batuques foram: a fofa, o lundu e o fado, sendo que a umbigada torna-se
a coreografia em comum entre eles seja de maneira subjetiva, seja de
maneira velada. A umbigada tornou-se o objeto de estudo de vários au-
tores, desde o período colonial até os dias atuais. A maneira de se dançar

Histórias, narrativas e religiões 643


tão peculiar e marcante nos é explicada por Edison Carneiro e apresenta
três formas de se dançar a umbigada:

Dança de par, dança de roda e de fileiras. Esta última é denominada


batuque de umbigada, onde mulheres e homens ficam dispostos em
fileiras vis-à-vis, as colunas masculinas e femininas vão se aproxi-
mando para dar a umbigada, o homem inclina o corpo para trás
para aplicar melhor a umbigada, três de cada vez, intercaladas por
ligeiras reviravoltas sobre o corpo, e assinaladas por palmas acima
da cabeça. Alguns dançarinos mais habilidosos dão saltos, giros e se
contorcem até o chão antes de dar a umbigada que pode ser aplicada
na mulher que vem a sua frente na fileira ou em outra na diagonal
(CARNEIRO, 1982, apud MATHIAS, s/d, p.3-4)

Essas maneiras de se dançar a umbigada são descritas tendo


como base pesquisas feitas desde o Maranhão até o interior de São
Paulo2592. A umbigada seria além de uma coreografia de origem do anti-
go reino do Congo e remete à reorganização do universo. O umbigo se-
ria visto como forma de conexão com as energias do universo, nosso pri-
meiro canal de alimentação, nossa primeira boca, primeiro contato com
o mundo externo, o ventre materno, nossa primeira morada, e a dança
também era vista como um ritual de fertilidade para as recém-casadas.

2.1 – Samba, mestiçagem e o projeto de criação de identidade


nacional

A questão que envolve samba, mestiçagem e a identidade na-


cional é tema abordado por Hermano Vianna (2002) em sua obra O
mistério do samba, na qual tenta narrar, de forma surpreendente, o encon-
tro de figuras consagradas do meio artístico e literário nacional, no Rio
de Janeiro, em meados dos anos vinte do século XX. O encontro entre
Gilberto Freyre, Donga, Pixinguinha, Villa Lobos e Sérgio Buarque de
Holanda irá configurar um marco dentro da construção musical e lite-
rária do período.

259  2 Ver mais em: TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil – Cantos, Danças,
Folguedos: Origens. São Paulo, Editora 34, 2008.
644 Histórias, narrativas e religiões
O encontro entre essas personalidades de diversas áreas, como
salienta Vianna (2002), juntava dois grupos: de um lado negros ou mes-
tiços das camadas mais pobres do Rio de Janeiro; de outro, representan-
tes da intelectualidade e da arte erudita, todos de “boas famílias brancas”:

De um lado, dois jovens escritores, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque


de Holanda, que iniciavam as pesquisas que resultaram nos livros
Casa-grande e Senzala, em 1933, e Raízes do Brasil, em 1933, funda-
mentais na definição do que seria brasileiro do Brasil. À frente deles,
Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira definiam a música que seria,
também a partir dos anos 30, considerada como o que no Brasil
existe de mais brasileiro (VIANNA, 2002, p.20).

Utilizando dessa linha de raciocínio, Vianna (2002) propõe um


jogo de palavras, fazendo referência à obra de Sérgio Buarque, que trata
da questão do homem cordial, traçando as características sociológicas da
sociedade brasileira. Vianna (2002) chama a atenção para o fato de que
nesse encontro entre negros e mestiços e os representantes de grupos
intelectuais, ambas as partes teriam se sentido à vontade e esse encontro
seria a fusão cultural entre o humilde mestiço e os brancos eruditos,
sendo assim o “cordial Brasil mestiço”.
A noitada de violão seria vista como uma alegoria de invenção
da tradição, surgindo, assim, a questão do Brasil mestiço e o samba irá
ocupar um lugar diferenciado e de destaque como um elemento defi-
nidor da nacionalidade. Não sendo levada em consideração por muitos
estudiosos e biógrafos dos indivíduos envolvidos na ocasião, a roda que
teve presença dessas personalidades citadas anteriormente, não foi oca-
sião corriqueira, mas, sim, um projeto montado.
É necessário levar em consideração o contexto histórico de tal
acontecimento, o qual envolvia o Rio de Janeiro no período da República
Velha e pré-Revolução de 1930, tendo-se um esgotamento de manobras
da oligarquia cafeeira que detinha o monopólio do poder, um Rio de
janeiro dos levantes tenentistas, e São Paulo da coluna Prestes. Há assim
de se entender como essa questão da invenção da tradição e a constru-
ção da identidade nacional foram levadas a sério dentro do governo de
Getúlio Vargas do Estado Novo.
Histórias, narrativas e religiões 645
A questão geográfica atrelada à reformulação da capital cario-
ca, devido às reformas urbanísticas iniciadas com Pereira Passos, levam
a uma divisão sociocultural associada à geografia urbana. Antes, o centro
do Rio misturava tudo, agora existia uma divisão delimitada entre zona
norte pobre e zona sul rica.
Os morros acabam sendo o lugar de refúgio desses que foram
colocados à margem e o Rio passa por uma “modernização” no sentido
físico. A chegada de Gilberto Freyre à cidade, nesse encontro que men-
cionamos, faz-se em 1926, quatro anos depois da Semana de 22 em São
de Paulo. Gilberto Freyre zomba das reformas encomendadas aos mol-
des europeus, no centro do Rio de Janeiro, e se interessa mais por essa
cultura popular musical recém-nascida nos morros cariocas chamada de
samba, como aponta Vianna:

O regionalista Gilberto Freyre estava sendo seduzido pela cultura po-


pular carioca. Não só ele: todo o Brasil, principalmente a partir dos
anos 30, passa (ou é obrigado) a reconhecer no Rio de Janeiro os em-
blemas de sua identidade de povo ‘sambista’ (VIANNA, 2002, p. 26).

Existe ainda a questão social atrelada ao samba, pois, inicial-


mente, ele foi acossado e tido como gênero degenerado, sendo perse-
guido pela polícia e os que faziam parte daquele meio se escondiam nos
terreiros de candomblé. Também havia a questão atrelada à resistência
e o samba foi tomado como meio de afirmação social. O samba só co-
meçou a tomar seu lugar de importância com crescente aceitação e im-
portância do carnaval. Como se pode observar na passagem a seguir de
Hermano Vianna:

“Num segundo momento, os sambistas, conquistando o carnaval e as


rádios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade,
mantendo relações intensas com a maior parte dos segmentos sociais
do Brasil e formando uma nova imagem do país “para estrangeiro (e
para brasileiro) ver.” (VIANNA, 2002, p.29)

O fim da hegemonia da oligarquia cafeeira, como mencionado


anteriormente, e uma ampla desorganização no cenário nacional, pro-

646 Histórias, narrativas e religiões


veniente do fim desse período, levam a uma ausência de unidade nacio-
nal e é exatamente nesse contexto que surge a obra de Gilberto Freyre,
Casa-grande e Senzala, que trata da questão da mestiçagem como tema
central, exaltando esse traço único e que antes era visto com maus olhos.
Dentro desse contexto, a mestiçagem se torna algo supervalori-
zado visto e exaltado como modelo de autenticidade, o que afeta direta-
mente o samba que tem como seus principais mentores os mestiços. O
debate acerca da mestiçagem serve de combustível para o debate acerca
da teoria de Gilberto Freyre que trata o mestiço como primordial para
entendimento da brasilidade.
Nesse contexto, aparece a figura de Noel Rosa, sambista que
ganharia notoriedade devido às suas composições, as quais apresen-
tavam mudanças, nas letras, no ritmo e na cadência de maneira geral
do samba que teve seus desdobramentos, como apontado por Dionisio
Márquez Arreaza:

O que se associava ao termo samba ao redor de 1911, era uma mú-


sica em evolução desde o último terço do XIX até as primeiras duas
décadas do XX, cujo primeiro registro sonoro, gravado pela casa
Edison, foi ‘Pelo Telefone’ no ano 1916, peça coletiva polemica-
mente assinada pelo sambista Donga. Feito no “estilo antigo”, é um
samba próximo da estrutura rítmica do maxixe do qual, em realida-
de, evoluiu essa primeira forma do samba. O samba antigo era uma
entre várias formas de canto e música, todas depositárias de toda a
tradição musical dos negros migrados à capital e dos seus descen-
dentes agora cariocas. Entre essas formas migrantes se encontram:
batuque, baiano, cateretê, coco, capoeira, calango, chula, cantos de
trabalho, tirana, batucada, cantigas de roda, poesia dos cantadores,
samba baiano, samba paulista e lundu. (ARREAZA, 2013, p.2)

A cultura brasileira, definida como mestiça é algo a ser cuida-


dosamente preservado, assim como pode-se perceber em textos escritos
por Olavo Bilac para o periódico kosmos2603 nos anos iniciais do século
XX e outros intelectuais ligados ao período tal prática acaba se tornando

260  3 Ver mais em: DANTAS, Carolina Vianna. A nação entre sambas, cordões e capoeiras nas
primeiras décadas do século XX.
Histórias, narrativas e religiões 647
comum naquele período influenciado por ecos do modernismo2614 pois
se torna a garantia de nossa especificidade e tem o samba como um de
seus expoentes cada vez em maior ascensão popular devido ao carnaval
e à sua propagação no cenário nacional e internacional, assim, esse gê-
nero musical torna-se objeto de estudo de diversos autores que tentam
compreendê-lo e difundi-lo.
Gilberto Freyre consegue estabelecer um aspecto positivo ao
mestiço. A partir de Casa-grande e Senzala, de Sobrados e Mocambos o
brasileiro passou a ser determinado como a conciliação mais ou menos
harmoniosa, mais ou menos conflituosa, de traços indígenas, portugue-
ses e africanos.
Sendo assim, o samba ocupa seu lugar no processo de constru-
ção da dessa identidade nacional tendo como base esse debate acerca da
mestiçagem. O samba vira símbolo nacional dentro desse processo no
qual a mestiçagem brasileira torna-se um processo heterogêneo, valo-
rizar a mestiçagem é uma opção pela “unidade da pátria” unidade essa
buscada pelo estado como instrumento de igualdade social para disse-
minar a cultura autoritária que vai atingir seu auge no período do Estado
Novo2625, onde existe uma busca na formação de uma cultura unificada,
visando desvincular valores do período anterior, República Velha.

3. Samba, terreiros e a abordagem em sala de aula

A questão sumária do samba, atrelado ao viés histórico anterior-


mente citado traz à tona a complexidade do assunto que dialoga em várias
vertentes, seja no sentido social, festivo ou religioso. Nesse ponto do estu-
do interessa-nos relacionar a questão do samba diretamente com questões
ligadas aos terreiros onde se praticavam tradições religiosas de matriz afri-

261  4 Ver mais em: DANTAS, Carolina Vianna. A nação entre sambas, cordões e capoeiras nas
primeiras décadas do século XX.
262  5 Ver mais em: VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed./
Ed. UFRJ, 2002.
648 Histórias, narrativas e religiões
cana, além de observar como o samba se relaciona com essa questão e de
que forma pode-se desenvolver esse assunto no ambiente escolar.
O samba, em sua crescente no final do século XIX e início
do XX, sofre com perseguições e acaba se instalando no interior dos
terreiros, principalmente de candomblé. Sendo assim, a semelhança na
organização das rodas de samba tanto no aspecto físico quanto nas ca-
racterísticas ligadas à musicalidade, seja devido à sincope das batidas
dos atabaques como dos instrumentos de percussão dos sambistas não é
mera coincidência.
A roda no terreiro tem um sentido de igualdade, mesmo haven-
do hierarquia, é na roda que os orixás concedem o axé. A musicalidade
presente nos terreiros, no momento sagrado da manifestação religiosa,
serve para conduzir o Orixá até seu cavalo, fazendo a ligação do sagrado
com o profano do Orum com Ayé.
A música torna-se primordial dentro dos terreiros, pois vem a
ser uma ferramenta utilizada durante os cultos para invocar os Orixás ao
culto ou às festas, onde esses são os personagens principais chamados ao
xirê, tendo os devotos o intuito de buscar o axé dos cultuados.
Os cultos afro-brasileiros tomam forma, cada um com sua es-
pecificidade devido à região proveniente, mas a música torna-se presen-
te em todos. Em festas, rodas e cultos sempre estão presentes os instru-
mentos atabaques, tambores e posteriormente instrumentos de corda.
Pensar essas religiões de matriz africana e não expor sua musi-
calidade e tentar entender o papel fundamental dela no culto, nas festas
e rodas é primordial para entender a dinâmica por detrás da organização
dos terreiros e seus membros. A música e batuques têm um papel funda-
mental seja no culto, nas festas e de maneira geral dentro dos terreiros,
onde se utiliza a música como ferramenta, seja para cultos com embasa-
mento religioso para, assim, provocar a incorporação, seja no sentido de
complementar o ambiente nos eventos festivos.
O samba e seus personagens, que se inserem no meio dos ter-
reiros, principalmente em um contexto onde são perseguidos, sofrem
influência dessa musicalidade ligada à religiosidade, pois muitos sam-
bistas vão compor músicas que fazem referência direta aos terreiros e a

Histórias, narrativas e religiões 649


seus Orixás, como é o caso de Clara Nunes, Candeia, Romildo Bastos,
Toninho do Nascimento. Esses dois últimos compõem “A Deusa dos
Orixás”, que foi interpretada por Clara Nunes e ganhou destaque no
cenário nacional. Essa canção traz à tona um mito iorubá e há conflitos
que envolvem amor e tristeza, conforme indica este trecho:

Iansã cadê Ogum?/ Foi pro mar/ Mas Iansã penteia seus cabelos
macios/ Quando a luz da lua cheia/ Clareia as águas do rio/ Ogum
sonhava/ Com a filha de Nanã/ E pensava que as estrelas/ Eram os
olhos de Iansã// Mas Iãnsã, cadê Ogum?/Foi pro mar// Na terra os
orixás/ O mar se dividia/ Entre um Deus que era de paz/ E outro
que combatia/ Como a luta só termina/ Quando existe um ven-
cedor/ Iansã virou rainha/ Da coroa de Xangô// Mas Iansã, cadê
Ogum?/ Foi pro mar. (A Deusa dos Orixás de Romildo Bastos e
Toninho Nascimento)

Através da análise do samba de composição de Romildo Bastos


e Toninho Nascimento, podemos perceber a presença de componentes
que fazem referência direta à religião de matriz africana, pois são cita-
dos orixás como Ogum, Iansã e Xangô. Levar canções como essa para o
ambiente escolar pode despertar o interesse dos alunos e o objetivo deste
trabalho é refletir como seria a melhor maneira de abordar tal conteúdo
em sala de aula.
O trabalho dessa temática, em sala de aula, seria feito intro-
duzindo o assunto da República Velha em seus anos finais e a transição
para a Era Vargas, expondo o cenário caótico da capital Rio de Janeiro,
em meio a protestos e falta de planejamento do governo da época her-
dado do período anterior em que Pereira Passos foi prefeito do Rio de
Janeiro. Matéria essa que é abordada no conteúdo básico comum do
ensino de História no nono ano do Ensino Fundamental e terceiro ano
do Ensino Médio.
Posteriormente, seria necessário associar tais questões com a
retirada de indivíduos de classes sociais menos favorecidas para regiões
periféricas, levando ao nascimento das favelas. Seria importante também
explicar como se deu esse processo e a questão da formação da identida-
de nacional, atrelada ao nascimento do samba, nessas zonas periféricas
650 Histórias, narrativas e religiões
e, consequentemente, nos terreiros, trazendo, assim, a cultura de matriz
africana e a manifestação das religiões de matriz africana à tona. Também
seria essencial, em sala de aula, trabalhar letras de samba como “A Deusa
do Samba”, analisando os elementos principais como com Orixás e seus
mitos, como Reginaldo Prandi faz em sua obra Mitologia dos Orixás.
Com isso, seria possível chamar a atenção dos alunos para a
concepção eurocêntrica do currículo de História e mostrar a eles como
se pode trabalhar a História do Brasil atrelada à África, descontruin-
do os discursos preconcebidos e destacando as manifestações culturais
afro-brasileiras presentes em nosso cotidiano que se fazem presentes na
construção do samba como gênero musical.
Portanto é primordial trazer essas concepções ligadas à cultura
de matriz africana para o ambiente escolar e trabalhar de maneira a
desconstruir o discurso já preestabelecido visando elaborar um traba-
lho multidisciplinar interligando História, Geografia, Artes, e as demais
matérias, buscando, assim, inovar na construção do saber, em sala de
aula, e reconfigurar as práticas pedagógicas. Além disso, seria possível
utilizar o samba como instrumento e ferramenta capaz de dar respaldo
no ensino de História e na construção de identidades.

4. Conclusão

O samba é um gênero musical que, no processo de sua forma-


ção, sofreu influência da cultura de matriz africana. O que era designado
de maneira geral como sendo batuque apresentou algumas ramificações
oriundas de diversas representações culturais africanas, sejam elas tendo
sentido de festejo ou manifestação religiosa.
Essas diversas manifestações possuem peculiaridades, mas
apresentam um traço originário em comum, a umbigada. Contudo, es-
sas manifestações, em alguns momentos da História, não tiveram boa
receptividade devido à plástica coreográfica da umbigada e sua maneira,
muitas vezes apontada como imoral, de ser executada.
Histórias, narrativas e religiões 651
A ocorrência de preconceito em relação a essas manifestações
culturais deve-se ao fato de que a sociedade, na qual elas se inseriam, era
extremamente conservadora e patriarcal nos séculos XVIII e XIX. Sendo
assim, muito se fazia de maneira escondida, em locais afastados e isolados
por causa da falta de conhecimento de quem via ou porque essas mani-
festações culturais eram tidas como algo exótico e digno de ser exibido a
convidados. Além disso, muitas delas chamaram a atenção de estrangeiros
que incorporam de forma não intencional características do lundu, como
se observa no caso da fofa, que se torna ritmo tipicamente português.
O samba sofre influência tanto dessas manifestações negras
africanas como de brancos europeus, mesmo que indiretamente, e poste-
riormente de mestiços brasileiros. O samba, em sua invenção, passa por
um percurso que conta com intervenções de brancos e negros, e tem sua
origem ligada as camadas populares e que habitavam regiões periféricas.
O debate trazido por Gilberto Freyre sobre o processo de mesti-
çagem é objeto de discussões polêmicas em alguns meios historiográficos.
Isso porque o processo de mestiçagem é visto, primeiramente, como algo
ruim e que dava uma conotação impura à nação e a seus componentes.
Quando há a publicação de Casa-grande e Senzala, o conceito
de mestiçagem insere-se dentro de um contexto intelectual em que o
mestiço torna-se objeto de valor e é sumariamente marcante devido a
suas características únicas e essa mistura torna-se original.
Somado a isso, leva-se em consideração o contexto histórico de
uma República oligárquica decadente e sua transição para um Estado
Novo getulista, contexto no qual se buscou um vigor na população
e enxergou-se na questão da mestiçagem, e sua influência no samba,
uma oportunidade para inocular nos cidadãos um ideal de unidade e
identidade nacionais. Sendo assim, buscava-se espalhar a ideia de uma
identidade e unidade nacionais por meio do entretenimento, levado às
residências através da música, no caso o samba propagado pelos rádios
e no carnaval.
No contexto do ensino de História, este trabalho pretendeu
contribuir para a percepção do processo histórico cultural da influência
da cultura africana na formação e construção do gênero musical samba.

652 Histórias, narrativas e religiões


O intuito principal desta pesquisa é chamar a atenção para as vertentes
africanas presentes e atuantes de maneira ativa dentro do processo de
formação histórico-cultural e sociocultural do samba que muito pouco
tem espaço de debate no cenário social atual. Propõe-se trazer esse de-
bate para dentro da sala de aula, tendo em vista que tratar a temática
no ambiente escolar encontra, na maioria das vezes, resistência seja por
parte dos próprios alunos, seja da direção da escola ou até mesmo dos
pais dos alunos.
Levar em consideração a pluralidade e individualidade dos
alunos é papel crucial de professores e educadores, portanto, deve-se
abordar a temática, em sala de aula, de maneira esclarecedora e tendo
embasamento teórico metodológico do assunto visando elucidar e não
doutrinar, tendo em vista que o samba tem, em sua composição, elemen-
tos provenientes de religiões de matriz africana.

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654 Histórias, narrativas e religiões


Da formação imaginária do Ensino
Religioso em Minas Gerais.

Amauri Carlos Ferreira (PUCMinas)


Regina Esteves Santos (Secretaria de Estado de
Educação de Minas Gerais)

Resumo: A relação educação e religião se efetiva na instituição escolar


predominantemente no campo interdisciplinar do Ensino Religiso. A
formação de vários docentes até final dos anos de 1990 esteve associada
aos segmentos da Igreja Católica ou de referência cristã em parceria com
a Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais. Tal procedimento
e relação com o estado formou um imaginário que o Ensino Religioso
representa o seguimento Cristão e Católico no espaço escolar em um
país laico e com uma grande diversidade religiosa. Tal abordagem é ge-
radora de conflitos e preconceitos em relação a disciplina. Para fugir a
este imaginário já construído e comprovado em outros estudos, o segui-
mento acadêmico das ciências da religião reivindica a base epistemoló-
gica desta área, a partir do momento que a educação religiosa se tornou
área de conhecimento no MEC. Por outro lado, professores de Ensino
religioso e suas respectivas secretarias tentam desassociar o Ensino
Religioso da formação cristã e relacioná-lo a formação de valores, tendo
em vista a diversidade religiosa no espaço escolar. Pretende-se discutir
esta polêmica e apresentar o resultado de uma pesquisa que aborda estas
questões da formação de professores de Ensino Religioso nos anos 90 e
analisar alguns depoimentos de professores, planos de ensino no intuito
de compreender a formação imaginária dos docentes sobre a disciplina
que lecionam seus problemas e desafios. O referencial teórico utilizado
para entendermos a questão do imaginário foram autores como Gilbert
Durand, Le Goff, Hilário Franco Junior entre outros.

Histórias, narrativas e religiões 655


Os projetos educacionais dos grupos
religiosos e seus impactos na formação
educacional

Amanda Cristine Cézar Segura (SMEEL-RJ/UFF)

Resumo: A configuração resultante das eleições de 2014 fortaleceu


grupos religiosos ligados às religiões católica e evangélicas no interior
do Congresso Nacional. O crescimento desses grupos no interior do
Parlamento engendrou o fortalecimento da bancada evangélica e, mais
recentemente, a formação de uma nova frente parlamentar, que se vin-
cula diretamente a uma dessas religiões cristãs, a Frente Parlamentar
Católica (FPC). Com isso, esses grupos religiosos adquiriram uma
maior expressividade política, com impacto na formulação de políticas
públicas na área da educação. Eles começaram a apresentar propostas
de limitação a atuação dos docentes nas salas de aulas, com o intuito
de proibir os debates de gênero nas escolas e da cidadania, que foram
rotulados como tentativas de doutrinação dos discentes pelos professo-
res. Assim, apresentaram projetos de leis e projetos de decretos de leis,
que visam impedir o debate de gênero e sexualidades nas escolas, sacra-
mentando isso inclusive nos Planos de Educação dos âmbitos federal
aos municipais. Alguns desses projetos, como o “Escola sem partido”,
impossibilitam qualquer discussão nas escolas que apresente algum po-
sicionamento contrário ao defendido pelas famílias dos discentes. Essa
comunicação pretende debater os impactos negativos da intervenção
política desses grupos na esfera educacional, na formação de seres que
já sofrem com a opressão heteronormativa presente em nossa sociedade.

656 Histórias, narrativas e religiões


Educação e gênero em terras salesianas:
a Inspetoria Santa Catarina de Sena no
alvorecer da República brasileira
(1892 - 1930)

Júlia Rany Campos Uzun (Doutorado – UNICAMP)

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir a implan-


tação da Inspetoria Santa Catarina de Sena nos primeiros anos da
República brasileira, apresentando as especificidades da educação sa-
lesiana em seu recorte de gênero. Sob o olhar da História Cultural,
pretendemos mostrar como tal Inspetoria criou um sistema de ensino
oferecido por mulheres para a formação global e exclusiva de meninas,
indagando qual era o modelo de feminilidade criado por esta edu-
cação, ressaltando como o cristianismo salesiano ajudava a moldar o
caráter desta mulher a ser formada pela nova Inspetoria. Serão utiliza-
das, para este trabalho, diversas fontes disponibilizadas pelo Arquivo
da Inspetoria Santa Catarina de Sena, como relatórios educativos, car-
tas pastorais e manuais educacionais.

Palavras-chave: Educação religiosa; Educação feminina; Salesianas no


Brasil; Filhas de Maria Auxiliadora; Inspetoria Santa Catarina de Sena.

Introdução

No ano de 1872, o Instituto das Filhas de Maria Auxiliadora


foi fundado por Dom Bosco em Mornese, na Itália, com a função de
realizar o trabalho educativo e evangelizador para as meninas, liderado

Histórias, narrativas e religiões 657


pela Madre Maria Domingas Mazzarello. A ideia era expandir o esforço
salesiano para além dos meninos, que já era realizado há vários anos,
criando uma nova instituição para expandir o método preventivo no
ensino também para as meninas. (DAMAS, 2002, p.25)
O braço feminino da obra de Dom Bosco foi criado, dessa for-
ma, para se tornar um apêndice da Congregação Salesiana masculina,
fazendo com que as mulheres dependessem do Superior Geral, desen-
volvessem atividades apostólicas e de serviços de ordem geral na casa dos
salesianos. No entanto, a Congregação de Bispos viu com maus olhos o
fato de homens e mulheres pertencerem à mesma congregação religiosa
e determinou, através do documento Normae Secundum Quaes, de 1901,
a autonomia definitiva de todos os institutos femininos de regras de vida
simples, incluindo as salesianas (CAVÀGLIA, 2005, p.81).
Cabe ressaltar que a dependência da Congregação feminina
frente à masculina era uma constante no período e o esforço de separa-
ção realizado pela Congregação de Bispos não se limitou à obra de Dom
Bosco, mas à todos os casos semelhantes, tornando-se um marco histó-
rico para a Igreja Católica. A total separação entre homens e mulheres
só se deu 5 anos depois (RAMPI, 2007, p.37).

As filhas de Maria Auxiliadora no Brasil

Tendo conhecido como se deu a formação do Instituto das


Filhas de Maria Auxiliadora e sua posterior separação da congregação
masculina, queremos descobrir como as Salesianas se instalaram em
terras brasileiras, lembrando que nosso estudo trabalha exclusivamente
com as Filhas de Maria Auxiliadora, e não com os salesianos.
Em 1877, as Filhas de Maria Auxiliadora lançaram sua primei-
ra expedição missionária às terras americanas – dois anos após a chegada
dos salesianos, firmando-se na Argentina e no Uruguai. Uma das princi-
pais lideranças salesianas da América, o Padre Luis Lasagna, conseguiu
criar uma Inspetoria separada para as Filhas de Maria Auxiliadora pra
658 Histórias, narrativas e religiões
o Brasil e o Uruguai, em 1886, determinando também a criação de uma
nova Visitadoria salesiana nestas regiões (RAMPI, 2007, p.39).
A ideia do Padre Lasagna era a de instalar as irmãs em regi-
ões interioranas mais ardorosas, em que a tradição católica fosse mais
latente do que nos centros urbanos, nos quais as ideias liberais já ha-
viam chegado. Desse modo, a chegada das Irmãs Salesianas à América,
especialmente ao Brasil, fez parte de um projeto de reforma católica
que buscaria restaurar a força da Igreja por meio da ação educativa, cen-
trando suas ações na educação de mulheres, na assistência social e nas
atividades ligadas à saúde (AZZI, 1999)
As primeiras irmãs Salesianas chegaram ao Brasil em 1892.
Seguindo o projeto reformista, o grupo formado por missionárias uru-
guaias e italianas escolheu o município de Guaratinguetá, no interior
de São Paulo, para fundar sua primeira casa no país, o Colégio Nossa
Senhora do Carmo (WERNET, 2004, p.221). Como resultado do au-
mento da autonomia das irmãs salesianas no Brasil, houve uma nova
separação: em 1908, a Visitadoria do Brasil foi separada da Visitadoria
do Uruguai. Dessa forma, no dia 07 de fevereiro do mesmo ano, a antiga
Visitadoria do Brasil foi transformada na Inspetoria Santa Catarina de
Sena, que circunscrevia a atividade salesiana no Brasil e era sediada em
São Paulo, no Colégio de Santa Inês (RAMPI, 2007, p.36).
Podemos então criar uma reflexão acerca do conjunto de trans-
formações no modelo de feminino que estas novas práticas educativas
ajudaram a implantar na Primeira República brasileira. Segundo Ivan
Aparecido Manoel, estes colégios representavam a articulação das três
principais entidades ativas no período: a elite oligárquica, o Estado e a
Igreja Católica que, unidas, seriam capazes de resolver alguns dos pro-
blemas que afetavam o patriarcalismo tradicional de um período de mo-
dernizações sociais, políticas e culturais (MANOEL, 1988, p.54).
Uma destas questões foi a institucionalização de uma educa-
ção conservadora para as filhas da oligarquia, capaz de resguardá-las
do contato com tal afã modernizador, resgatando as ideias do catolicis-
mo romanizado. Se, por um lado, a educação católica era um meio de
isolar as meninas das transformações modernizantes advindas com os

Histórias, narrativas e religiões 659


ideais republicanos, por outro lado ela também propiciou o contato das
mulheres com o conhecimento acadêmico, expandindo seus horizontes.
Segundo Wernet,

“O projeto de educação católica para o sexo feminino em grande


parte correspondia às expectativas e às idealizações das classes mé-
dias e altas. A mulher idealizada pelas congregações femininas era,
sobretudo, a dona de casa, fiel esposa e boa mãe. (...) As irmãs reli-
giosas assumiram uma função social, aparecendo como agentes so-
ciais, comprometidas com a manutenção da ordem existente, poucas
vezes como promotoras de uma crítica social. Entretanto, é inegável
que, pelo menos em parte, as congregações religiosas contribuíram
para a ascensão social do sexo feminino e para que, por meio da
educação, muitas mulheres chegassem a um enfoque crítico de sua
existência feminina” (WERNET, 2004, pp. 222-3).

As instituições educativas das Filhas de Maria Auxiliadora


organizavam-se em duas modalidades distintas. A primeira delas, os
Internatos, tinha como objetivo a preparação das meninas para o traba-
lho doméstico. Para isso, ensino era dividido entre as aulas teóricas de
instrução elementar e as aulas práticas de prendas do lar, com conteúdos
como bordado, limpeza, corte e costura, pintura, artesanato e confecção
de flores artificiais (SILVA, 2001, p.33). Durante a Primeira República,
o modelo era considerado o ideal para a educação da juventude, espe-
cialmente feminina, visto que permitia preparar as meninas para a futu-
ra vida familiar de forma integral, defendendo-as dos possíveis perigos
que a vida social externa representava.
A segunda modalidade era composta pelos externatos, mol-
dados para receber as jovens com condições financeiras mais simples,
ainda que fossem regidos pelos mesmos princípios morais, religiosos
e educativos dos Internatos, tendo apenas como diferença o tempo de
permanência escolar. Havia, ainda, os oratórios festivos, através dos
quais a ação evangelizadora das irmãs se dava através de jogos, aulas de
catecismo, passeios e da participação em solenidades religiosas (CURY,
1984, p.62).

660 Histórias, narrativas e religiões


Em ambos os casos, a principal atividade educativa era a for-
mação cristã das meninas, com o desenvolvimento da prática sacramen-
tal como elemento imprescindível na reforma estabelecida pela Igreja
no Brasil. Assim, todo o planejamento das atividades tomava por base
o comparecimento às missas diárias obrigatórias e o desenvolvimento
de uma vida sacramental, diferente da vida familiar, na qual as meninas
eram educadas a partir de práticas devocionais, transformando sua for-
ma de expressar sua fé (SILVA, 2001, p.36).
Além disso, para promover a formação religiosa das alunas, era
comum que as irmãs dos colégios adotassem associações religiosas locais
ou regionais, como a Companhia de Santos Anjos e a Pia União das
Filhas de Maria Imaculada, realizando festividades em datas religiosas
destacadas, como o dia da padroeira da cidade (RAMPI, 2007, p.48).
A doutrina católica salesiana aplicada pelas irmãs salesianas era
baseada em um conjunto de livros, dentre os quais estavam La Dotrinna
Cattolica e La Pedagogia, de Chiara Chiari, nos quais a educação é vista
como uma dimensão de fé e transcendência. A autora apresenta uma
nova forma de catequese que afirma que educar é trazer para fora o que
está dentro, reconhecendo as capacidades do indivíduo e transformando
a doutrina católica em um instrumento de aperfeiçoamento moral e não
somente de desenvolvimento espiritual. A autora contesta a concepção
de educação de Rousseau por acreditar que ele não considera as profun-
das diferenças entre os seres humanos e por ele separar a educação moral
da intelectual (CHIARI, 1918, p.27).
Como complemento aos textos de Chiari, o Centro da
Congregação das Filhas de Maria Auxiliadora enviou para todas as direto-
ras e professoras um manual para tratar dos principais aspectos da educa-
ção salesiana e como proceder em relação a eles. O documento Educazione
Salesiana, traz a diferença entre instrução e educação, sendo esta ligada à
formação de caráter e aquela à tornar o homem cheio de conhecimento.
Além disso, o documento também traz uma série de indicações sobre a
moral a ser empregada nas escolas para formar boas meninas.
O modelo do feminino que as Filhas de Maria Auxiliadora
ajudaram a formar era, antes de tudo, o feminino cristão católico. Mas

Histórias, narrativas e religiões 661


como deveria ser esta mulher em formação? Quais seriam suas práticas
ideais ou suas estratégias para lidar com as questões que enfrentaria no
seu cotidiano? De acordo com Dorcelina Fátima Rampi, se a educação
para a fé era o principal objetivo das irmãs salesianas, esse objetivo es-
tava enraizado na boa formação moral das alunas, direcionando-as para
padrões morais de conduta que fossem condizentes com a moral católi-
ca (RAMPI, 2007, p. 22).
Em uma de suas cartas pastorais enviadas no final do século
XIX, o arcebispo Dom Antonio de Macedo Costa traz um anexo em
que define as obrigações de uma jovem para que ela possa ser conside-
rada um modelo de feminilidade para o período (publicado em 1878).

“Obrigações de uma jovem:


1-Ser muito modesta em todas as suas ações
2-Andar acautelada a cada passo
3-Ser grave e sempre decente nas falas e maneiras
4-Gostar de estar em casa e ajudar sua mãe
5-Aplicar-se de contínuo ao trabalho
6-Raras vezes sair e só por necessidade
7-Aborrecer a vaidade nos vestidos e enfeites
8-Evitar conversações indiscretas com pessoas do sexo diferente
9-Detestar dissipações e profanos divertimentos
10-Amar os exercícios de piedade
11-Ser muito franca, leal e amorosa com sua mãe, e não ter segre-
dos para ela
12-Edificar com bom exemplo e doutrina seus irmãozinhos meno-
res”
(Carta pastoral de Dom Antonio de Macedo Costa. Livro de
Crônica do Colégio do Carmo in AZZI, 1999)

Conclusão

O modelo educativo das Filhas de Maria Auxiliadora tinha como


um de seus principais objetivos o estabelecimento de meninas cujo maior
662 Histórias, narrativas e religiões
interesse fosse a família e as atividades de casa, desenvolvendo modos dis-
cretos e uma extrema decência e sendo muito apegadas à fé e ao trabalho
árduo. Como complemento, a espiritualidade salesiana também prescrevia
a virtude da pureza, desenvolvendo nas meninas o recato, a modéstia e a
simplicidade – visto que a moral católica valorizava a jovem pelas suas
qualidades do espírito e não pelos seus atrativos físicos.
Por que era importante desenvolver tal modelo de femini-
no? De acordo com Heleieth Saffioti, as práticas educativas católicas
da Primeira República reproduziam a estrutura patriarcal da família e
reforçavam as diferenças entre os gêneros, restringindo os espaços do
feminino à Igreja e ao ambiente familiar (SAFFIOTI, 1979, p.54). Dois
aspectos adensavam essa perspectiva no universo das Filhas de Maria
Auxiliadora: em primeiro lugar, a própria formação religiosa destas
irmãs salesianas, que retomava a sua dependência em relação à con-
gregação masculina; em segundo lugar, os internatos salesianos eram
sustentados por membros da elite, que pretendiam que suas filhas man-
tivessem a mesma formação tradicional e conservadora da casa de onde
vieram – e, portanto, não tolerariam modernizações bruscas nas ativida-
des educativas.

Referências

AZZI, Riolando. As Filhas de Maria Auxiliadora no Brasil: cem anos de história – implanta-
ção do Instituto – 1892 a 1917. Vol. I. São Paulo: Serviços Gráficos, 1999.

CAVAGLIÀ, Piera. Linee di Storia dell’Istituto dele Figlie di Maria Ausiliatrice. Appunti
ad uso dele studenti. Curso de Espiritualidade Salesiana. Roma: Faculdade Auxilium, 2005.

CHIARI, Chiara. La Dottrina Cattolica e La Pedagogia. Roma: Scuola Tip. Salesiana, 1918.

CURY, Carlos R. Jamil. Ideologia e Educação Brasileira: católicos e liberais. São Paulo: Edi-
tora Cortez/ Autores Associados, 1984.

DAMAS, Luis Antonio H. de Oliveira. A preventividade na educação salesiana: gênese e desen-


volvimento até sua consolidação no ensino superior. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2002.

Educazione Salesiana. Torino: Buona Stampa, 1910.

Histórias, narrativas e religiões 663


MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina: os colégios das irmãs de São José de
Chamberry (1859-1919). Tese de doutorado. São Paulo: USP, 1988.

RAMPI, Dorcelina de Fátima. A formação de professoras da Escola Normal do Colégio de


Santa Inês: a Educação Salesiana no Brasil inserida na Pedagogia Católica (1927-1937). Dis-
sertação de Mestrado. São Paulo: PUC-SP, 2007.

SAFFIOTI, Heleieth I. Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Rio


de Janeiro: Vozes, 1979.

SILVA, Maria Aparecida Félix do Amaral. Educação de Mulheres no Vale do Paraíba – Colé-
gio do Carmo: 1892 – 1910. Guaratinguetá: Digital Print Gráfica e Editora, 2001.

WERNET, Augustin. “O catolicismo reformado e a diversificação da paisagem religiosa (1854-


1951)” in PORTA, Paula (org.) História da Cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
Pp. 216-229.

664 Histórias, narrativas e religiões


Religião e Educação: estratégias e
táticas na formação de identidade para a
disciplina de Ensino Religioso

Evandro Francisco Marques Vargas (Doutorado – UENF/FAPERJ)

Resumo: A presente proposta de comunicação compõe parte do proje-


to de doutoramento em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do
Norte Fluminense – Darçy Ribeiro (UENF). O programa de Políticas
Sociais tem como área de concentração: Regulação e Participação. O pro-
jeto de pesquisa foi submetido ao processo seletivo 2016-1 para linha de
pesquisa (1) Educação, Cultura Política e Cidadania, cujo foco se situa
nas tensões decorrentes da participação e regulação na produção, distri-
buição e apropriação diferenciada dos bens sociais, educacionais, culturais
e políticos pelos indivíduos e coletividades. Com o objetivo de colaborar
na construção do conhecimento, na perspectiva da História Cultural, por
meio da analise das estratégias e táticas formuladas por grupos sociais
ligados a instituições de ensino confessionais na tentativa de construir a
identidade enquanto “disciplina escolar”. Inserindo o Ensino Religioso no
campo da História da Educação. Com efeito, nossa analise pretende dis-
cutir dois aspectos sociais: Religião e Educação a partir das apropriações
religiosas ocorridas nos últimos anos por meio da regulação e participação
de instituições que representam determinada doutrina religiosa (catoli-
cismo) aos debates sobre as propostas de expansão das diversas denomi-
nações religiosas em concomitância às novas configurações educacionais.
Fazendo um contraponto ao conceito de “transposição didática” proposta
como arrefecedora das tensões e contradições presentes na realidade, e
refletindo sobre os limites de se usar História Cultural como fórmula (pu-
rismo teórico) esvaecida de significados e vazia de conceituação.

Palavras-chave: Educação; Ensino Religioso; Regulação; Estratégia;


Táticas.
Histórias, narrativas e religiões 665
Considerações iniciais

Este texto tem como objetivo situar o Ensino Religioso nos de-
bates do campo da História Cultural, a presente proposta visa analisar,
sob o prisma da análise comparada, as regulamentações estaduais para a
formação, habilitação e admissão dos docentes de Ensino Religioso no
Brasil, no intuito de se pensar as diferentes modalidades/formatos atuais
para o ER no território nacional.
De forma a balizar esta discussão no campo da História
Cultural, utilizamos os conceitos de estratégias e táticas (CERTEAU,
1998) para identificar os grupos que exercem liderança na direção cul-
tural na delimitação do campo e o formato para o Ensino Religioso, por
meio da seleção de seus conteúdos nas legislações estaduais.
A regulação dada pela Lei nº 9.475/97 entrega aos sistemas de
ensino a responsabilidade de orientar a implementação dessa disciplina,
uma vez que foi exarada na Constituição de 1988 como parte integrante
da formação básica do cidadão:

[...] a partir da observação da presença do ensino religioso nas es-


colas públicas é que os grupos religiosos de pressão, especialmente
o clero católico, conseguiram inscrevê-lo como a única disciplina
escolar mencionada na Constituição brasileira. A partir daí, prosse-
guiram na pressão para deixar a legislação infraconstitucional cheia
de claros, de modo a poderem completá-la, conforme seus interesses
proselitistas, ostensivos ou dissimulados, nas instâncias inferiores
do Estado. A concordata Brasil-Vaticano seguiu o mesmo figurino.
Numa palavra: o regime federativo foi de grande valia para a geração
da anomia jurídica, propiciadora, por sua vez, da folia pedagógica
(CUNHA, 2012, p. 102).

E é justamente essa falta de norteamento nas políticas educa-


cionais para o ER que levam à denominada folia pedagógica, já que fica
delimitado que cada sistema estadual de ensino o faça de acordo com as
autoridades religiosas competentes:

666 Histórias, narrativas e religiões


O que acontece nas aulas de Ensino Religioso provém de um cardá-
pio variado. Umas turmas recebem aula de uma dada Religião, ou-
tras de uma espécie de denominador comum às religiões da tradição
cristã (Católica e evangélicas), fruto de correlações de força onde
nenhuma delas consegue a hegemonia na disputa tão real quanto
dissimulada; outras, ainda, recebem aulas sobre “valores”, que negam
sua genealogia religiosa, mas não passam de expressões confessionais
de regras de conduta conservadoras ou reacionárias – uma espécie
devota de Educação Moral e Cívica, de triste memória. Relações
sexuais fora do casamento, homossexualismo, aborto e drogas são
temas frequentes nessas aulas. Isso, apesar de os temas transversais
dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental
terem um tratamento laico (CUNHA 2013, p.936).

Embora inserida como parte da formação básica do cidadão e,


portanto, denominada como área de conhecimento, segundo as Diretrizes
Curriculares Nacionais, não há parâmetro curricular para a disciplina de
ER em nível nacional. Isso se justifica, em parte, pela autonomia que foi
dada aos sistemas de ensino para definir os conteúdos, organização da
disciplina e da seleção de professores. Todavia, existe uma orientação cur-
ricular para a disciplina elaborada pelo Fórum Nacional Permanente do
Ensino Religioso (FONAPER) e editada pela editora Ave-Maria.

Regulações e movimentos sobre formação docente


em Ensino Religioso

Quanto à formação específica desse docente, o parecer nº 97/99


de 06 de abril de 1999, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que
versa sobre o credenciamento e reconhecimento de cursos de licenciatu-
ra em ensino religioso, conclui pela impossibilidade de criar tal diretriz
curricular (BRASIL, 1999a). O parecer usa a justificativa de que tal
ação poderia ferir a autonomia de cada sistema de ensino quanto à defi-
nição dos conteúdos, habilitação e forma de contratação dos professores.

Histórias, narrativas e religiões 667


A mesma posição foi tomada pelo parecer nº 1.105/99 do CNE
que se manifestou contra o pedido de autorização para funcionamento
do curso de Licenciatura em Ensino Religioso, a ser ministrado pela
Faculdade de Ciências Religiosas e Teologia Eurípedes Barsanulfo, pro-
posto pela Associação Aliança de Assistência ao Estudante, com sede
em Curitiba, Estado do Paraná (BRASIL, 1999b).
Apesar disso, algumas universidades públicas instituíram o
curso de licenciatura em Ciências da Religião para suprir as demandas
geradas por formação de professores para a disciplina.

Nesse sentido, novas investigações se tornam de extrema relevância


acerca da criação destes cursos no âmbito das universidades federais,
uma vez que o Estado não emitiu novas diretrizes sobre a criação
desses cursos, apontando para duas situações problematizadoras:
uma ausência do CNE para tomada de decisão ou uma omissão in-
teressada do Estado brasileiro quando se escusa da tomada de deci-
sões porque pode ter interesses não muito claros sobre os desdobra-
mentos dessas ações. (AMARAL; SOUZA, 2015, p. 6).

Pelas pesquisas levantadas, apurou-se que até o momento


existem 6 (seis) Instituições de Ensino Superior (IES) públicas com
curso de licenciatura em Ciências da Religião: Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF); Universidade Federal do Sergipe (UFS);
Universidade Federal da Paraíba (UFPB); Universidade Estadual de
Montes Claros (UNIMONTES); Universidade Estadual do Pará
(UEPA); Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN).
O que indica que a despeito da falta de regulação para a formação em
Ensino Religioso que essas (IES) têm buscado estratégias para dar
conta dessa lacuna.
É preciso compreender as disputas travadas entre o campo po-
lítico e o religioso quanto à atuação de seus sujeitos e seus reflexos no
campo educacional. Até o momento existem estudos sobre a formação
de professores de Ensino Religioso (CARON, 2007, 2010; KLEIN &
JUNQUEIRA, 2008; RAMOS, 2012; JUNQUEIRA; FRACARO,
2011), mas:

668 Histórias, narrativas e religiões


A urgência na investigação desses cursos pode ser justificada por
seus possíveis impactos sobre a laicidade do Estado, especialmente
porque permitirá conhecer a estrutura de um curso de formação do-
cente para o ensino religioso de uma instituição pertencente ao sis-
tema federal de educação e compreender quais políticas de formação
de professores postas por uma instituição vinculada ao governo fede-
ral estão previstas para os futuros profissionais da área (AMARAL;
SOUZA, 2015, p. 13).

A partir da preocupação maior com a formação docente para o


ER, buscaremos analisar a configuração desses cursos de licenciatura nas
universidades públicas brasileiras. Isso sem perder de vista as pesquisas
recentes sobre a política educacional para a formação de professores.
Para tanto, elencamos os problemas localizados na formação inicial de
professores no Brasil. Com base em pesquisas e ensaios sobre o tema dos
quais emergem:

[...] improvisação de professores; ausência de uma política nacional


específica para as licenciaturas; pouca atenção às pesquisas sobre o
tema; diretrizes curriculares isoladas por curso; currículos fragmen-
tados; estágios sem projeto e acompanhamento; aumento da oferta
de cursos a distância; despreparo de docentes das instituições de en-
sino superior para formar professores; e características socioeduca-
cionais e culturais dos estudantes, permanência e evasão nos cursos
(GATTI, 2014, p. 24).

Há que se ressaltar a existência de possíveis mudanças na pró-


pria configuração da política educacional voltada à formação de pro-
fessores no âmbito nacional, havendo uma busca em corrigir as defa-
sagens na formação, aproximando-se das demandas da sociedade, com
atuações como do Conselho Técnico-Científico de Educação Básica da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CTC-
EB/Capes) (MELLO; CURY, 2014, p.1087). Nesse sentido a formação
da “nova” CAPES institui uma Política Nacional de Formação Docente
articulada com a Educação Básica de forma a aproximar o Sistema
Nacional de Pós-Graduação com os interesses da sociedade.
Histórias, narrativas e religiões 669
No entanto, destacamos que o problema da formação docente
atravessa outras áreas de conhecimento também, mas o agravante no
caso específico do ensino religioso refere-se à problemática dos diferen-
tes modelos de ensino que têm se configurado nos Estados brasileiros
a partir da “abertura” gerada pelo texto da LDB. Faz-se necessário sis-
tematizar esse material para análise dos diferentes contextos da política
de ensino religioso por todo o Brasil. De modo a colaborar no estado do
conhecimento sobre esse tema.

O uso de estratégias e táticas aplicadas ao Ensino


Religioso

Um dos modelos/formatos do ER presentes em alguns siste-


mas públicos de ensino no Brasil na atualidade é, por exemplo, a de
caráter “confessional”. Esse formato para a disciplina fere o princípio
do Estado Laico ao favorecer as religiões de matrizes cristãs, sobre ou-
tras formas de crer e não crer, que são representativas da pluralidade na
sociedade atual. Por isso, justificamos a escolha do método comparativo
entre as possíveis modalidades atuais de ER para classificar, construir
tipologias acerca das modalidades e permitir uma avaliação em conjunto
desses dados dispersos.
No projeto “Mapeamento do Ensino Religioso no Brasil: de-
finições normativas e conteúdos curriculares” de Giumbelli (2008), de-
senvolvido no Instituto de Estudos da Religião (ISER) pode-se obser-
var uma série de informações sobre a situação do ensino religioso em
12 estados brasileiros (RS, SC, PR,GO, MS, RJ, MG, AL, PB, PI, PA,
AP). Neste estudo, o autor tomou como critério de seleção: a “existência
de informações prévias sobre implementação da disciplina, diversidade
regional e diversidade religiosa” (GIUMBELLI, 2008, p.11).
Este autor caracteriza o ER, de acordo com os termos usados
nos documentos para definir a opção adotada, em dois modelos: 1) con-
fessional (RJ): delimitado pela “divisão dos alunos de acordo com credos,
670 Histórias, narrativas e religiões
atendidos por docentes e conteúdos correspondentes” (GIUMBELLI,
2008, p.13); e 2) não confessional: caracterizado pela “possibilidade de
se estabelecer um conteúdo comum e único para a disciplina” (Ibid. p.5).
Esse último desdobra-se em outros dois formatos: supraconfessional
(RS, SC, SP); e interconfessional (PB). Os demais Estados não delimi-
tam um termo para caracterizar a opção.
Outra questão que fomenta este estudo é a possibilidade de
perceber a causalidade entre a participação e a regulação das políticas
educativas no que se refere ao ensino religioso, das quais delimitamos as
pesquisas em educação e sobre os movimentos da sociedade civil orga-
nizada que pressionam tanto para manter o ER, quanto para refutá-lo.
Para o primeiro caso a dissertação de mestrado do presente
autor deixou evidente, por meio da reconstrução histórica das legisla-
ções, a mobilização tática dos grupos religiosos para obter a legalidade
do Ensino Religioso por meio da atual Constituição brasileira. Além
da formação de grupos de pesquisa: como Fórum Nacional Permanente
do Ensino Religioso (FONAPER) e o Grupo de Pesquisa Educação e
Religião (GPER).
Para o segundo caso, encontramos vestígios da mobilização da
sociedade civil organizada – Observatório da Laicidade (OLE); Ação
Educativa; Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
(CNTE) – na ação de inconstitucionalidade do ensino religioso im-
petrada pela Procuradoria Geral da República, que teve uma audiência
pública no dia 15 de junho de 2015, para a qual 31 entidades expositoras
foram selecionadas.
É justamente nesse entroncamento que buscamos em Certeau
(1998) a fundamentação para uso dos conceitos de estratégias e táticas
como forma de dar conta do movimento das práticas culturais.

Chamo de estratégia o cálculo (ou manipulação) das relações de for-


ças que se torna possível a Partir do momento em que um sujeito
de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma ins-
tituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar
suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a base de onde
se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ame-

Histórias, narrativas e religiões 671


aças (os clientes os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da
cidade, os objetivos e objetos da pesquisa etc.). [...] chamo de tática
a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio.
Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de au-
tonomia. A tática não tem por lugar senão o outro. E por isso deve
jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de
uma força estranha (CERTEAU, 1998, p. 99-101).

Alguns Estudos, entre outros aspectos, tem apresentado ên-


fase na defesa do modelo teórico das Ciências da Religião como área
de conhecimento para embasar a formação dos docentes em (ER).
(BAPTISTA, 2015; JUNQUEIRA, 2012). Percebe-se o desenvolvi-
mento de medidas no sentido de reduzir o problema da formação do-
cente para essa disciplina. Cujos modelos teóricos eram pautados pelo
modelo catequético e teológico (RAMOS, 2012; SOARES, 2009).
Estes pesquisadores buscam a fundamentação para a formação
dos docentes de Ensino Religioso nas Ciências da Religião. Todavia
este campo ainda em formação não oferece uma unidade conceitual, que
pode ser comprovado tanto dedutivamente pelo dilema epistemológico
(RAMOS, 2012), quanto empiricamente, pelo fato da habilitação dos
docentes pelos sistemas de ensino dar-se de forma circunscrita em âm-
bito estadual.
Outro argumento destacado é o referente à transposição didá-
tica (RAMOS, 2012) do campo das Ciências da Religião, na formação
do docente em ensino religioso. Como uma forma de superar a tradição
catequética e teológica para a disciplina. O conceito (transposição didá-
tica) foi elaborado por Chevallard (1991), pesquisador francês do ensino
de matemática da Université d’Aix-Marseille II, em um texto apresen-
tado durante o Simpósio Internacional de Pesquisa e Desenvolvimento
em Educação Matemática, Bratislava, Tchecoslováquia, 1988.
Chervel (1990) historiador francês do Institut National de
Recherche Pédagogique (INRP), no artigo “A história das disciplinas
escolares: reflexões sobre um campo de pesquisas”, traduzido e publi-
cado na revista Teoria & Educação, em 1990. Cujo interesse é a cons-
trução das disciplinas escolares, baseado em estudos de cultura escolar.

672 Histórias, narrativas e religiões


O autor problematiza o automatismo entre produção e apropriação do
conhecimento. Contrapondo-se ao conceito transposição didática, de-
fendido por Chevallard (1991).
Com efeito, a crítica de Chervel (1990) é referente a pesquisas
que estudam a escola atribuindo importância aos textos legais e desme-
recem a prática que existem dentro da escola. Pensamos que este cami-
nho teórico e metodológico de analise da cultura escolar também deve
ser trilhado em relação ao (ER) enquanto objeto de pesquisa.
Esses dados permitem abarcar parte do movimento que vem
ocorrendo nas universidades públicas em criar os cursos de licenciatura
em ciências da religião, uma vez que o CNE não autorizou a criação de
licenciatura em Ensino Religioso, apesar da existência de uma demanda
social para tal formação. Constatada nos dispositivos constitucional e
infraconstitucional dos entes federados.
Pelo exposto temos indícios que justificam a pesquisa nesse
tema, dado que os interesses vindos da participação da sociedade civil e
das pesquisas educacionais parecem estar sendo selecionados pela agen-
da governamental nas atuais políticas educativas.
Pretendemos investigar até que ponto a interlocução das institui-
ções religiosas não ultrapassam a baliza do Estado laico. Tomando como
critério o conteúdo das regulações atuais para verificar a influência dos ela-
boradores das propostas de ensino religioso, por meio da apropriação da
produção intelectual destes grupos, nas esferas de tomadores de decisão, por
meio do conteúdo da legislação oriundas das ações de governo.
De acordo com Moix Martinez (1978), que faz uma revisão
da literatura acerca das concepções anglo-saxônicas de políticas sociais,
sublinhamos a consideração de P. R. Kain-Caudle, em que o objeto da
política social passa por mudanças com o passar do tempo. Mais adiante,
ao tratar de precisar sua natureza assinala que a expressão política social
pode significar condutas baseadas na deliberação, resultante de uma de-
cisão influenciada pela ideologia. (KAIN-CAUDLE, 1967).
Embora, se apresse em adiantar, que isto em muitos casos é
uma mera simplificação, pois na prática a Política social é o resultado
de acidentes históricos: a atuação de grupos de pressão, de personali-

Histórias, narrativas e religiões 673


dades destacadas. Exemplifica, entre outros, que o influxo da igreja na
política social de governo é evidente no âmbito educacional (MOIX
MARTINEZ, 1978).
Dessa forma, até que ponto esses grupos de pesquisa sobre o ER
têm influxo sobre o projeto político de uma teoria social? Evidenciando
as tensões decorrentes da participação e da regulação na produção, dis-
tribuição e apropriação destes bens educacionais pelos indivíduos e co-
letividades. Com tal arcabouço teórico é que iremos investigar as políti-
cas educativas dos sistemas de ensino estaduais para o ensino religioso
no Brasil.
Vale destacar que embora ainda não haja um grande volume
de estudos publicados, parece que as pesquisas sobre a formação do-
cente para o Ensino Religioso vêm ganhando fôlego no contexto atual.
Os artigos selecionados desvelam os limites e desafios à laicidade – ao
fazer da regulamentação do ER e de sua implantação um mecanismo
de regulação da Religião na esfera pública. Afinal, se se privilegia uma
denominação religiosa ou outra por via da regulação, não estaríamos
favorecendo-as frente outras, suprimindo a discussão de determinadas
denominações religiosas no percurso escolar do aluno, ignorando a di-
versidade religiosa brasileira?

Considerações finais

Ao identificar a estratégia dos grupos religiosos cristãos em


busca de legitimação da disciplina em um contexto laico: pela perspec-
tiva e princípios de uma educação para a cidadania plena, sustentada em
pressupostos educacionais e não sobre argumentações religiosas. Estes
pesquisadores buscam a fundamentação para a formação dos docentes
nas Ciências da Religião objetivando um projeto político de teoria so-
cial. Refletir acerca desta fórmula é uma forma de evitar purismos teóri-
cos para um objeto complexo como o fenômeno religioso.

674 Histórias, narrativas e religiões


A relevância desta pesquisa será em oferecer uma contribuição
para esse debate, ao atualizá-lo sob a perspectiva de análise das políticas
educacionais para a formação, habilitação e admissão docente para mi-
nistrar a disciplina de Ensino Religioso, investigando a existência ou não
de políticas de formação de professores nos sistemas de ensino estaduais.
Por fim, podemos problematizar o argumento que considera
um avanço o deslocamento da responsabilidade e competência do ER
das instituições religiosas para o Estado, uma vez que a comunidade
científica que elabora as diretrizes seguidas pelos sistemas de ensino está
vinculada a instituições e editoras confessionais.

Referências

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676 Histórias, narrativas e religiões


Simpósio Temático 6 – Gênero e
Religião: a História Cultural e a
construção das identidades religiosas
femininas

Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Eliane Moura da Silva (UNICAMP) 

As últimas quatro décadas presenciaram o surgimento de novas


abordagens epistemológicas para o estudo da História, que permitiram
o entendimento das práticas e estratégias religiosas a partir de novas
leituras e apropriações. Os modos de interpretação dos enunciados e
a representação dos sentidos elaborados emergiram a partir dos pres-
supostos teóricos da História Cultural, permitindo o entrecruzamento
entre categorias como gênero, religião e etnias para a delimitação das
identidades. Este simpósio temático busca agregar investigações que
discutam as relações entre gênero e religião na formação das identidades
e subjetividades, refletindo acerca das apropriações e representações dos
significados religiosos construídos de forma plural a partir do embate
entre estas duas categorias, sob o olhar da História Cultural. 

Histórias, narrativas e religiões 677


Comunicações – Simpósio Temático 6

678 Histórias, narrativas e religiões


Isis e Maria:
Representações da mulher no imaginário
do gnosticismo contemporâneo

Marcelo Leandro de Campos (FAV)

Resumo: O propósito de nossa comunicação é tecer algumas considera-


ções sobre as representações do feminino e o imaginário que dão suporte
à construção identitária da “dama gnóstica”, no universo das instituições
neognósticas fundadas pelo esoterista colombiano Samael Aun Weor
(Victor Manuel Gomez) e seus discípulos, a partir de 1950. Samael,
que faleceu em 1977, é fundador de instituições como o Movimento
Gnóstico Cristão Universal e a Igreja Gnóstica Cristã Universal; suas
várias ramificações espalharam-se por toda América Latina e Estados
Unidos, e desde a década de 1980 chegaram à Europa, principalmente
em países como Espanha e Itália. Em relação a esse universo específico
de representações e construções identitárias, nos interessa o imaginário
que lhe dá suporte e o conjunto de práticas que o concretizam e man-
tém. Em relação ao imaginário, a doutrina gnóstica samaeliana opera
uma curiosa mistura de exercícios sexuais oriundos do tantrismo, rein-
terpretados por grandes esoteristas europeus do final do século XIX,
com uma moral sexual própria do catolicismo popular predominante
na América Latina e uma releitura romântica das civilizações pré-co-
lombianas, próprias do nacionalismo indigenista que viceja na América
Latina na década de 1960. Em relação às práticas, há um conjunto de
exercícios conhecidos como Magia Sexual, que norteiam as regras so-
ciais do casamento entre os gnósticos e os processos identitários de
construção de gênero, resultando numa visão fortemente idealizada do
feminino em seus papéis de mãe, esposa e sacerdotisa; esse processo é
reforçado pela prática de rituais mágicos em que as funções ritualísticas
são atribuídas por gênero.

Histórias, narrativas e religiões 679


As Sexualidades femininas no âmbito
jurídico luso-brasileiro: representações
sobre a honra da mulher colonial
(1708-1768)

Vanessa Cruz (UEL/CAPES)

Resumo: O presente trabalho tem como tem como objetivo investi-


gar as representações sobre a honra e a sexualidade femininas enquan-
to instrumentos na tentativa de moldar práticas e comportamentos no
Brasil colonial. Nele utilizamos como fonte o Livro V das Ordenações
Filipinas e das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, pois
neles está presente uma série de títulos que versavam sobre os compor-
tamentos esperados de mulheres e homens, permitindo-nos conhecer as
principais imagens idealizadas do feminino que constituíam o estatuto
jurídico da mulher nos Direitos Portugueses e, por conseguinte, nas nor-
mas impostas à Colônia brasileira, num esforço conjunto entre o Estado
Metropolitano e a Igreja Católica. Para tanto, utilizaremos como me-
todologia uma análise interdisciplinar entre história, gênero e direitos,
orientados pelo conceito de representação, de Roger Chartier.

680 Histórias, narrativas e religiões


Candomblés segundo Édison Carneiro:
a mulher no rito nagô (1930 a 1940)

Elaine Cristina Ventura Ferreira (Doutorado – UFRRJ)

Resumo: A presente comunicação tem como referencial teórico a his-


tória cultural. Faremos uma reflexão em torno da obra Candomblés da
Bahia publicada pela primeira vez na década de 1940 com a finalida-
de de refletir como Édison Carneiro constrói uma interpretação dos
candomblés, contemplando a atuação da mulher pertencente à vertente
nagô na formação histórica desta religiosidade.

Palavras-chave: Édison Carneiro – religiões de matrizes africanas –


rito nagô – mães de santo.

I. Introdução

Para esta discussão, partirei de uma reflexão sobre o lugar que


as mulheres negras e dirigentes dos candomblés nagôs263 ocuparam no
pensamento de Édison de Souza Carneiro. Pretendo fazer um contra-
ponto com a história cultural, articulando as convicções do referido autor
e refletindo sobre como seu olhar sobre os candomblés de matriz nagô
irá, de algum modo, lançar uma nova luz de análise sobre a constituição
das identidades religiosas das mães de santo da Bahia. O artigo foi divido
em dois itens. No primeiro analisarei a trajetória intelectual de Édison
Carneiro e sua inserção no campo de estudos sobre os candomblés para

263  Ver: PARÉS, Nicolau. A Formação do Candomblé História e Ritual da nação jeje na Bahia.
São Paulo: Unicamp, 2007. Nagô, anagô ou anagou era um etnômio ou autodenominação de
um grupo de fala iorubá que habitava a região de Egbado, na atual Nigéria, mas que emigrou e
se disseminou por várias partes da atual República do Benim. p. 25.
Histórias, narrativas e religiões 681
identificar como o autor constrói uma narrativa sobre estas religiões e,
qual, a interpretação feita sobre o negro em seus estudos. No segundo,
analisarei o que Édison Carneiro chama de seriedade dos candomblés a
partir de sua obra Candomblés da Bahia e discutirei com base em seu pen-
samento, o lugar da mulher nos candomblés de matriz nagô.
Os conceitos de apropriação e ressignificação norteiam o cam-
po de estudos sobre religiões na historiografia contemporânea. O histo-
riador Michael De Certeau referência no tema - analisa as formalidades
das práticas religiosas na sociedade colonial, e, com base nas categorias
de usos e táticas, em seus estudos sobre o cotidiano, verifica que as apro-
priações e ressignificações das práticas culturais formais podem ser rein-
terpretadas e gerar novos significados na reconstrução de identidades.
Por meio destes conceitos o estudo das sociedades, contemplando uma
análise do cotidiano, abre janelas para refletirmos que a análise do macro
para o micro social, como as formas culturais instituídas são ressignifi-
cadas pela atuação de diferentes indivíduos na transformação da própria
cultura. (DE CERTEAU, 1998, pp. 91-106).
Para observar as vantagens da preocupação com o tema e mes-
mo da adoção do conceito de gênero, é interessante relembrar as con-
quistas da História das Mulheres, assim como as primeiras tentativas de
incorporar os estudos de gênero à disciplina histórica. Para a historia-
dora Carla Pinsky, a noção de gênero tem servido de base para indi-
car a criação cultural das ideias sobre os papéis próprios aos homens e
mulheres. A história cultural possibilita compreender o gênero como
construção cultural, negando o caráter natural, radical, universal atri-
buído aos papéis masculinos e femininos. Esse enfoque abre-se para
os papéis informais visíveis no cotidiano, constituindo-se em mais um
recurso para a reconstrução da experiência de homens e mulheres na
criação de sua própria história. (PINSKY, 2009, pp. 159). Nos estudos
das práticas rituais, Edward Thompson observa, por exemplo, em seu
texto sobre a venda das esposas, que nessa prática cultural ocorriam di-
versas de negociações e conflitos, fato que, ao contrário de não anular,
reforça a participação ativa da mulher na construção histórica do ritual.
(THOMPSON, 1998, p. 323).

682 Histórias, narrativas e religiões


Os estudos sobre gênero no âmbito da história cultural bus-
cam explicar a história das sociedades a partir da atuação das mulheres
em diferentes contextos e situações, refletindo, deste modo, a forma
como as mesmas reafirmam suas identidades socioculturais e provo-
cam mudanças no interior das sociedades. A análise aqui proposta tem
por perspectiva refletir como Édison Carneiro lançou uma nova luz
para se pensar a formação histórica dos candomblés, tendo em vista
o lugar que será ocupado pelas mulheres (dirigentes dos candomblés
nagôs) em seu pensamento.
Como assinalado por Rachel Soihet (SOIHET, 2011, pp. 263-
283), a década de 1960, marco do surgimento de estudos sobre a mulher,
tem propiciado a ressignificação histórica das mulheres que por muito
tempo estiveram à margem da escrita histórica. A principal proposta dos
estudos sobre as mulheres é refletir sobre a construção de suas identida-
des coletivas, ou seja, as mulheres são alçadas à condição de sujeito da
história. Desta forma, ao perceber que a raiz dos candomblés nagôs tem
sua gênese na atuação das mulheres, o pensamento de Édison Carneiro
será investigado no âmbito da história cultural.

II. Os primeiros passos de um “jovem feiticeiro264”

Os primeiros trabalhos sobre as religiões de matrizes africanas


têm por referência os estudos do médico Raimundo Nina Rodrigues.
Segundo a historiadora Vanda Serafim, Nina Rodrigues foi o primei-
ro homem de ciência a estudar as religiões de matrizes africanas no
Brasil. Rodrigues foi ainda segundo a autora - responsável por inserir
as religiões trazidas pelos africanos escravizados no Brasil como objeto
de estudo da ciência. E observa que Nina Rodrigues, apesar de estudar
as religiões de matrizes africanas com base nas teorias evolucionistas e
darwinistas de seu tempo, impulsionou um campo de investigação sobre

264  Estado da Bahia, s/d. “Jovem Feiticeiro”. Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
Histórias, narrativas e religiões 683
as culturas de origem africana. Nina Rodrigues como é sabido - não
estudou as religiões de matrizes africanas apenas pela ótica da ciência
médica oitocentista. Em seu pensamento há o olhar católico, do “folclo-
rista”, e do ogã, do “historiador”. Ou seja, de um intelectual com múlti-
plas identidades disciplinares. (SERAFIM, 2010, p. 81).
Para o historiador e antropólogo Sérgio Ferretti, estudioso das
religiões de matrizes africanas no Brasil, somente cerca de trinta anos
após o falecimento de Nina Rodrigues, - Arthur Ramos, também mé-
dico, retomou os estudos sobre o negro no Brasil. Arthur Ramos de-
senvolveu seus estudos no contexto em que o pensamento evolucionista
não era mais predominante e se fundamentou na antropologia cultu-
ralista para refletir sobre os fenômenos religiosos. Compreendendo a
complexidade do conceito de sincretismo e considerando que o mesmo
possui diferentes sentidos, Ferretti aponta que Arthur Ramos interpre-
tou o sincretismo como aculturação, sem qualquer forma de resistência.
Ferretti também identificou que o próprio Ramos constatou posterior-
mente, que nem sempre o sincretismo é tão harmonioso. (FERRETTI,
2013, p.47). Édison Carneiro foi integrante do grupo de estudos lidera-
do por Arthur Ramos criador da “escola Nina Rodrigues”.
Édison Carneiro, filho de pais baianos, negro, nasceu no dia
12 de agosto de 1912 em Salvador, Bahia, e faleceu em dezembro de
1972, no Rio de Janeiro. Concluiu o ensino primário e o secundário
em Salvador, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito do estado. Atuando em diferentes áreas, o pesqui-
sador foi classificado como jornalista, etnógrafo, historiador, folclorista,
dentre outras denominações, que explicam, como salienta a antropóloga
Ana Carolina Nascimento, que produziu um trabalho sobre a trajetória
do estudioso, a dificuldade de categorizá-lo a partir de uma identidade
disciplinar. (NASCIMENTO, 2011, pp. 21-35).
Ao estudar a trajetória intelectual de Édison Carneiro no cam-
po de estudos das relações raciais no Brasil, o antropólogo Luiz Gustavo
Freitas Rossi, observou que a “conversão” de Édison Carneiro ao comu-
nismo durante sua juventude na Academia dos Rebeldes em 1920 na
Bahia - selou o destino de sua produção intelectual e suas tomadas de

684 Histórias, narrativas e religiões


posição no campo de estudos sobre o negro brasileiro. Como assinala-
do pelo autor, o ambiente familiar, e o contato entre Édison Carneiro
e Carlos Marighella, contribuíram para o posicionamento radical com
o qual Édison Carneiro se posicionou no cenário intelectual brasileiro.
Para Rossi, as vinculações políticas de Édison Carneiro estruturam seu
pensamento. “Dito de uma melhor maneira: na medida em que passava
a justificar as tomadas de posição intelectuais e políticas como efeitos
de sua vinculação aos interesses dos explorados e do proletariado, Édison
ajustou também seu olhar ao problema das “raças oprimidas” na Bahia
e no Brasil” (ROSSI, 2011, p. 143). O contexto de perseguição policial
aos candomblés e sua aproximação com os segmentos sociais oprimidos
é o que marca os estudos de Édison Carneiro no campo das religiões de
matrizes africanas. O autor foi defensor da liberdade de culto por acre-
ditar que as religiões de matrizes africanas deveriam ser reconhecidas
como as outras matrizes religiosas. O intelectual contestava o discurso,
no qual, esta religiosidade era inferiorizada e dizia:
Nenhuma das liberdades civis tem sido tão impunemente des-
respeitada, no Brasil, como a liberdade de culto. O texto constitucional
não tem clareza, embora seja claro como a luz do dia o princípio demo-
crático que lhe serve de base, - e qualquer beleguim da polícia se acha
com o direito de intervir numa cerimônia religiosa para semear o terror
entre os crentes. Esse desrespeito a uma liberdade tão elementar atinge
apenas as religiões chamadas inferiores. E quanto mais inferiores, mas
perseguidas. Contando com o declarado apoio de dezenas de milhares
de pessoas, em cada cidade brasileira, as religiões perseguidas necessitam
de coesão entre si, precisam organizar-se para conquista comum por
cima das divergências e das diferenças de concepção de mundo – de um
direito que interessa a todos. Lutando organizadamente pela liberdade
de culto, as pequenas religiões conquistarão seu lugar ao sol265.
Desde 1933 já se interessava pelos cultos populares de origem
africana e, em geral, pelo folclore e pela cultura popular, tendo iniciado
então, em companhia do romancista Guilherme Dias Gomes, um curso

265 “Liberdade de Culto”. Édison Carneiro, Janeiro de 1950. Biblioteca Amadeu Amaral do


Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
Histórias, narrativas e religiões 685
de yorubá ou nagô. O conhecimento dos candomblés lhe deu a possibili-
dade de divulgar por escrito as suas festas, para o que foi contratado pelo
jornal O Estado da Bahia em 1936, e de tentar uma federação das várias
casas de culto na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia. No mesmo
ano, escreveu sobre os ritos e festas dos candomblés baianos, sendo um
dos principais defensores da liberdade religiosa266.
Em 1937, organizou o segundo Congresso Afro-Brasileiro reali-
zado em Salvador, e em seu discurso de abertura, assim definiu seu objetivo:

Este Congresso tem por fim estudar a influência do elemento africa-


no no desenvolvimento do Brasil, sob o ponto de vista da etnografia,
do folclore, da arte, da antropologia, da história, da sociologia, do
direito, da psicologia social, enfim, de todos os problemas de relações
de raça no país. Eminentemente científico, mas também eminente-
mente popular, o Congresso não reúne apenas trabalhos de especia-
listas e intelectuais do Brasil e do estrangeiro, mas também interessa
a massa popular, aos elementos ligados por tradições de cultura, por
atavismo ou por quaisquer outras razões, à própria vida artística,
econômica, e religiosa do Negro no Brasil267.

Para Carneiro, as religiões de matrizes africanas estão associa-


das à vida do negro na sociedade brasileira. E com os problemas de “raça”
e conflitos em torno da legitimação da identidade negra. O Congresso
marcou a atuação de Carneiro como intelectual dedicado aos estudos
das religiões de matrizes africanas. Com o desdobramento do evento,
ocorreu ainda em 1937, a criação da União das Seitas Afro-brasileiras
da Bahia, que foi dirigida pelo intelectual. O objetivo da instituição era
unir os pais de santo de terreiros de candomblé da Bahia na luta pela
liberdade religiosa268.
Ao buscar um posicionamento intelectual, Édison Carneiro,
em diferentes momentos, retomou o pensamento de Nina Rodrigues,

266  Diário Oficial. Projeto de Lei do Senado, número. 31 de 1974. Biblioteca Amadeu Amaral do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Rio de Janeiro.
267  O Negro no Brasil. Trabalhos apresentados ao 2º Congresso Afro-Brasileiro (Bahia). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1940.
268  O Estado da Bahia “Cidade de Salvador”, Édison Carneiro 31 de setembro de 1938 Salvador,
Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
686 Histórias, narrativas e religiões
com destaque, o discurso da supremacia dos candomblés nagôs. Na obra
Religiões Negras, – publicada em 1936, em diversas passagens nota-se
que Édison Carneiro reforça o discurso da superioridade nagô. Pois,
o autor estabeleceu fronteiras rígidas entre as diferentes vertentes re-
ligiosas de matrizes africanas, principalmente entre nagô e banto, sem
considerar os cruzamentos culturais. A polaridade demarcada reproduz
a superioridade da cultura nagô e da inferioridade da cultura banto. Na
mesma obra, a narrativa construída sobre o negro merece destaque, pois
segundo o autor: “elemento ativo do progresso do país, o negro rea-
giu ainda, mansamente, influindo no folclore, na religião, na composi-
ção étnica do Brasil”. (CARNEIRO, 1991, p. 22). Além disso, Édison
Carneiro reafirma a superioridade do rito nagô, porém desconstrói o
discurso em torno da ideia de pureza nos rituais nagôs, apontando que:
“E a prova de sua importância está, principalmente, na absorção das
várias míticas negras, inclusive a mítica dos jejes269, por parte da nagô”.
(CARNEIRO, 1991, p.31).
Na obra Candomblés da Bahia, publicada em 1940, o conceito
de sincretismo é interpretado como assimilação, visto como subterfú-
gio ou estratégia dos crentes contra a repressão policial e, aos poucos, a
assimilação foi adaptada, tornando-se uma segunda natureza dos fiéis.
(CARNEIRO, 2008, p. 51). O conceito de assimilação se aproxima da
ideia de negociação. Se retomarmos aqui o texto de Thompson, “a venda
das esposas”, é possível refletir sobre a relação entre conflito e formação
de identidades socioculturais, já que o autor afirma que a cultura é res-
significada em meio a conflitos e negociações e proporciona a constru-
ção de identidades. (THOMPSON, 2001, p. 64). Na análise da defini-
ção do conceito de sincretismo segundo Édison Carneiro, busco chamar
atenção para o fato de que o autor lançou uma nova luz para explicar o
fenômeno. E aqui retomo o pensamento de Ferretti, pois o autor aponta
que, na evolução dos estudos do sincretismo realizados pelo antropólogo
americano Melville Herskovits, o conceito pensado como aculturação e
harmonia simplesmente, não deu conta de explicar sua complexidade. E

269  Ver: PARÉS, 2007. Os jejes têm sido usualmente identificados, ao menos a partir do século
XIX e, posteriormente, na literatura afro-brasileira, como daomeanos grupos provenientes do
antigo reino Daomé.
Histórias, narrativas e religiões 687
do mesmo termo, derivaram-se as ideias de acomodação e assimilação
como conflito. (FERRETTI, 2013, pp. 95-96). Sendo assim, da amplia-
ção do conceito de sincretismo, que está o posicionamento intelectual
de Édison Carneiro.
Na década de 1980, a historiografia brasileira, embasada nos
estudos culturais, passou a estudar as religiões de matrizes africanas
considerando a história da resistência, pois as religiões de matrizes afri-
canas são consequência de um processo histórico dinâmico, e a diáspora
africana foi marcada por apropriações e ressinificações desta religiosida-
de. Os cultos de matrizes africanas foram vistos como inferiores pelas
elites brasileiras ainda no século XIX e eram subestimados. Reis destaca
que o batuque africano e o candomblé eram apontados como obstáculo
ao processo civilizatório ocidental, no qual, as elites educadas deseja-
vam encaixar o Brasil. Segundo o autor, a formação do que viria a ser
o candomblé está relacionado com a diáspora africana e a história da
resistência dos africanos escravizados. Destaca ainda que a preocupação
das autoridades com relação às religiões negras guardava relação com o
“medo” de que esta prática cultural pudesse se tornar uma organização
subversiva. (REIS, 2008, p. 143).
Os cultos de matrizes africanas no Brasil podem ser definidos
como uma instituição religiosa criada pelos afro-brasileiros na Bahia
desde o início do século XIX, quando, pela primeira vez, foram feitas re-
ferências à expressão, em documentos da polícia. Foram localizados em
certos bairros das cidades baianas, onde contavam com a cumplicidade
de vizinhos, próximos a quilombos urbanos, associados a líderes de re-
beliões, ou podiam estar relacionados a irmandades católicas, formadas
inicialmente por africanos.

III. Candomblés segundo Édison Carneiro: a


mulher no Rito Nagô

Em pesquisas mais recentes é possível observar que as casas de


candomblé mais antigas de Salvador não foram fundadas por mulheres
688 Histórias, narrativas e religiões
iorubanas (O mesmo que nagô) originárias Ketu – (parte de um grupo
proto – iorubá que fundaram a cidade de Ké, posteriormente, chamada
reino de Ketu) – como afirmam os mitos de origem, mas por africanas
provenientes do reino de Daomé. Para comprovar essa tese (que salien-
ta a importância jeje em detrimento do nagô na fase da formação do
candomblé), o historiador Nicolau Parés apresenta dados demográficos,
etimológicos e antropológicos. E ele mostra que os documentos mais
antigos não falam de orixás (termo iorubano), mas de voduns (espíri-
tos provenientes do Golfo do Benin termo fon, jeje); não se referem
a Exú, mas a Legba (Legbá  é o correspondente  Jeje  do orixá Exú dos
iorubás). (PARÉS, 2006, pp. 13 – 21). A reflexão proposta neste item
busca observar como Édison Carneiro, ao construir uma narrativa sobre
a atuação das mulheres nos candomblés nagôs, deu continuidade a uma
matriz de pensamento já existente, acerca da supremacia desta verten-
te dos candomblés. Todavia, nesta análise, a figura feminina ocupa um
lugar de destaque na formação histórica dos candomblés. O outro dado
no pensamento do autor refere - se ao candomblé como elemento de
ligação entre o Brasil e a África.
A fundação do que viria a ser o candomblé, segundo Édison
Carneiro, ocorreu aproximadamente por volta de 1830 e o modelo nagô
deu origem ao que se pode chamar de culto de origem africana no
Brasil. Pois, para o intelectual, os nagôs na Bahia se constituíram como
uma elite religiosa e seu modelo de culto rapidamente foi reproduzi-
do. (CARNEIRO, 2008, p. 09). O autor observa que este culto foi um
fenômeno presente nos centros urbanos e, como modelo organizado, a
fundação do que veio a ser o candomblé ocorreu no Engenho Velho da
Bahia. Este candomblé foi dirigido e fundado pelas sacerdotisas: Adetá,
Iá Nassô e Iá Kala eram três negras velhas da Costa africana, de quem
se conhece apenas o nome africano – Adetá (talvez Iá Detá), Iá Kala e
Iá Nassô. Carneiro observa que a história dos candomblés está relacio-
nada com a presença da mulher na direção dos terreiros, cabendo-lhes
a manutenção da autoridade moral, espiritual, da educação religiosa, da
organização da casa, da preparação dos alimentos e da iniciação das fi-
lhas, sendo ainda função das mulheres velar pelos altares e a ordenação
sobre a casa:

Histórias, narrativas e religiões 689


Ao assumir a chefia do candomblé, a filha (sacerdotisa) passa a se cha-
mar mãe e, como os candomblés são igrejas independentes entre si, e
em si mesma resume, inquestionavelmente toda autoridade espiritual
e moral. Parece, porém, que nem sempre houve pais e mães e que, anti-
gamente, o candomblé foi nitidamente, um ofício de mulher. Indicam
- nos entre outras coisas, a necessidade de cozinhar as comidas sagra-
das, de velar pelos altares, de enfeitar a casa por ocasião das festas, de
surpreender a educação religiosa de mulheres e de crianças – serviços
essencialmente domésticos, dentro de quatro paredes270.

Na obra Candomblés da Bahia, publicada na década de 1940,


Édison Carneiro reafirma sua posição perante o rito nagô e apresenta-nos
uma análise sobre a atuação da mulher nestes candomblés. Nascimento
observou que, dentre os antropólogos que, fizeram pesquisas no Brasil,
Ruth Landes, autora da obra A Cidade das Mulheres, foi quem teceu
com Édison Carneiro uma associação de importância sem par. A an-
tropóloga estudou as relações raciais no Brasil em especial na Bahia,
comparando as relações entre negros e brancos com os Estados Unidos.
Segundo Nascimento, por meio do contato com Édison Carneiro a an-
tropóloga americana passara a ter acesso ao universo religioso baiano.
Para Nascimento, do contado com Ruth Landes, Carneiro desenvolveu
novas metodologias de pesquisas, com destaque, a antropologia cultural.
(NASCIMENTO, 2010, pp. 10- 20). Para antropóloga Mariza Corrêa,
a obra escrita por Ruth Landes foi criticada por seus pares, exatamente,
pelo papel central ocupado pela mulher nos candomblés. (CORRÊA,
2000, p. 251). É possível pensar que o olhar tecido por Édison Carneiro
sobre a participação da mulher na formação histórica dos candomblés
tenha sido por influência da obra de Landes.
Em 1948, Édison Carneiro publicou no jornal O Estado da
Bahia o falecimento de sua amiga a ialorixá Eugênia Ana dos Santos,
- a mãe aninha, expressando então, sua relação não apenas com os can-
domblés nagôs, mas também, com os cultos dirigidos por matriarcas.
Ao falar de sua identidade religiosa, a matriarca afirmou: “também ani-
nha, falando da origem de seu terreiro, dizia, orgulhosamente, a Donald
Pierson”: “minha seita é puramente nagô, como o Engenho Velho”.
(LIMA e OLIVEIRA, 1987, p. 53). E ao falar da morte de Dona

270  O Estado da Bahia. Mães de Santo. Édison Carneiro, s/d. Centro Nacional de Folclore e
Cultura Popular. Rio de Janeiro.
690 Histórias, narrativas e religiões
Aninha, Carneiro apontava que as religiões de matrizes africanas era
uma questão a ser resolvida na sociedade brasileira e dizia:

Com a morte de Anninha, perdem as religiões afro-brasileiras uma


de suas maiores intérpretes, chego mesmo a dizer que a maior. Não
era possível querer mais distinção, mas inteligência, mas compreen-
são dos problemas de sua gente da África. Essa negra alta, disposta,
falando clara e corretamente, o beiço inferior avançando em ponta,
era bem um expoente superior da raça negra do Brasil, síntese feliz
da soma de conhecimentos da velha Maria Bada e da agilidade in-
telectual do professor Martiniano do Bonfim, companheiro de Nina
Rodrigues nas suas incursões pelos candomblés baianos e de todos
os que, com a mesma sinceridade, se propõe servir a obra de reabili-
tação social dos antigos escravos271.

A imagem retrata a matriarca dos candomblés nagôs, mãe


Aninha, com quem Édison Carneiro teceu profundas relações de admi-
ração e amizade:

IMAGEM I: A Ialorixá Eugênia Ana dos Santos, a famosa Aninha. Reprodução.

271  O Estado da Bahia, Bahia 25 de janeiro de 1948. “Dona Aninha”. Édison Carneiro.
Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
Histórias, narrativas e religiões 691
Para Édison Carneiro, a mulher conhecida como Yabás é res-
ponsável pela manutenção da ordem no terreiro e, ao assumir a chefia do
candomblé, a filha (sacerdotisa) passa a se chamar mãe, e exerce a auto-
ridade espiritual e moral sobre a casa. Destaca ainda, que os candomblés
eram ofícios femininos272. As mulheres seriam responsáveis pela inicia-
ção de suas filhas e pela relação entre os fiéis e o universo sagrado. A
seriedade dos candomblés nagôs, para o autor, ocorre porque sua gestão
é de competência de mulheres maduras, responsáveis por preservar a
unidade grupal, os laços ancestrais e segundo o autor:

O título de mãe advém do fato do chefe do candomblé aceitar ini-


ciandas (filhas, no futuro) para criar na devoção aos deuses. Depois
de efetivamente admitidas na comunidade, estas iniciandas se consi-
deram filhas espirituais do chefe do candomblé – e, neste sentido, se
emprega a palavra mãe. Fazer o santo vale por uma segunda educa-
ção, que confere ao chefe da seita a ascendência de mãe em relação à
filha. A exigência antiga de sete anos, pelo menos, de iniciação, para
poder tomar sobre os ombros a tarefa de dirigir um candomblé, já
hoje decaiu de importância nos candomblés não nagôs.

Realmente, Zé Pequeno, Germina, Idalice, outros pais e mães nunca


passaram pelo processo de fazer o santo: “Ninguém, lhes pôs a mão
na cabeça”. Para estes casos se criou uma tapeação digamos jurídica.
Os interessados afirmam que os seus respectivos orixás (santos pro-
tetores) foram feitos em pé, ou seja, eram evidentes e tão poderosos
que dispensaram a intervenção de terceiros. Daí o vasto número de
pais e mães improvisados, que tanto têm comprometido a pureza e
a sinceridade dessas religiões. Parece, porém, que nem sempre houve
pais e mães e que, antigamente, o candomblé foi nitidamente, um
ofício de mulher. Indicam-nos, entre outras coisas, a necessidade de
cozinhar as comidas sagradas, de velar pelos altares, de enfeitar a
casa por ocasião das festas, de superintender a educação religiosa de
mulheres e de crianças – serviços essencialmente domésticos, dentro
de quatro paredes. Outro indício está na marcada preponderância
da mulher na história dos candomblés. A importância da mulher foi
decisiva na formação dos atuais candomblés de caboclo, pois foram

272  O Estado da Bahia. “Mães de Santo”. Édison Carneiro, s/d. Biblioteca Amadeu Amaral do
Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
692 Histórias, narrativas e religiões
mulheres – Naninha e Silvana – que os introduziram. Mas, mes-
mo agora, os nomes de mulheres são mais importantes do que os
dos homens, na chefia dos candomblés. As mães dos candomblés
nagôs são, em geral, mulheres velhas, respeitáveis, que cumpriram
todas as suas obrigações como filhas durante várias dezenas de anos.
Nascidas e criadas dentro do ambiente do candomblé, conhecendo
profundamente todos os seus segredos, as mães nagôs possuem uma
consciência de si mesmas que já se tornou um dado primário da
observação. Se insisti nesse particular é porque a grande maioria de
pais não pertence ao número de candomblés nagôs. São os pais não
nagôs, por outro lado, que mais tem concorrido para a desmoraliza-
ção dos candomblés, entregando-se à prática do curandeirismo e à
feitiçaria – por dinheiro. “Nos candomblés não nagôs, a autoridade
do chefe quase sempre se reveste de forma tirânica, que corresponde
à maior frouxidão da hierarquia e da disciplina”273.

A antropóloga Beatriz Góis Dantas investiga os usos da África


no Brasil, considerando as diferentes formas narrativas com relação à
originalidade do culto. Para a autora, a construção da ideia de “pureza”
no candomblé está vinculada a vertente nagô que, dentre tantas ma-
trizes, seria a mais “africana” e “original”. A construção destas narrati-
vas busca no continente africano sua ancestralidade. Para Góis, existem
conflitos em torno da construção desta memória ancestral, tendo em
vista as diferentes formas discursivas sobre a ancestralidade nos cultos
de matrizes africanas. (DANTAS, 1988, p. 17). A mesma temática é
discutida pela antropóloga Stefania Capone, pois a autora afirma que:
“Na Bahia como o resto do Brasil, nagô (ou ioruba se preferirem) é, mais
do que nunca, sinônimo de “africano”, bem como o qualificativo obriga-
tório do que está ligado a reafirmação das raízes africanas da identidade
negra brasileira”. (CAPONE, 2009, p.08). O trabalho das autoras abre
possibilidades para refletir que a construção destas narrativas ocorre por
meio de alianças dentro e fora dos terreiros, tendo em vista o papel que
os intelectuais exercem no que compete à legitimação da ideia de uma
“verdadeira raiz ancestral”. Tomando emprestado, as reflexões levanta-

273  “Mães de Santo”. Édison Carneiro, s/d. Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
Histórias, narrativas e religiões 693
das, - é possível pensar que Édison Carneiro, como estudioso das religi-
ões de matrizes africanas, ao retomar e reafirmar o discurso da superio-
ridade nagô a partir da atuação da mulher nesses candomblés, exerceu
uma função importante na construção desta memória reafricanizada e
reinventada nos terreiros como afirmam as autoras, pois esta narrativa é
construída com o apoio dos intelectuais. Todavia, carecemos de investi-
gações mais amplas. As autoras apontam que a matriz nagô foi consa-
grada como “verdadeira” representação da África no Brasil. É importan-
te aqui reiterar que na obra – Religiões Negras Édison Carneiro afirma
a fusão entre as míticas jejes e nagôs, desconstruindo a ideia de pureza.
Em seu discurso, a relação Brasil e África representada no candomblé,
estava sempre presente, e, em junho de 1937, o estudioso expressava sua
“Saudade da África” dizendo:

A saudade da África persiste nos netos dos negros escravos, possi-


velmente com a mesma força com que agia sobre os negros crioulos.
Talvez mais, já que o candomblé representa uma forma de ligação
entre a África e o Brasil, já que a África continua a ser a grande terra
da vida onde demoram as esperanças melhores do negro274.

A mulher também é vista como representação dos orixás das


águas e são muito conhecidas no universo dos fiéis, geralmente, elas são
associadas às santas católicas devido ao sincretismo religioso:

Os orixás femininos – as iabás – são quase todos os orixás das águas


em geral gozam de larga popularidade entre a gente do candomblé.
Iemanjá, a mãe – d’água, se identifica com a Senhora da Conceição e
é festejada a 8 de dezembro. (CARNEIRO, 2008, p. 112).

O olhar que Édison Carneiro teceu para os candomblés femi-


ninos pode se explicar pela crescente desmoralização dessa religião face
à prática do charlatanismo realizada por alguns dirigentes masculinos
de candomblés não nagôs. Pois para o autor: “são esses pais que mais
têm concorrido para desmoralização dos candomblés, entregando-se à

274 “Saudade da África”. Édison Carneiro, junho de 1937. Biblioteca Amadeu Amaral do


Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, Rio de Janeiro.
694 Histórias, narrativas e religiões
prática do curandeirismo e da feitiçaria – por dinheiro”. (CARNEIRO,
2008, p. 67).
Além da análise sobre a mulher, que marca a seriedade dos
candomblés nagôs segundo Édison Carneiro, a obra-, Candomblés da
Bahia-, apresenta-nos outros elementos. No livro, Édison Carneiro
aponta a existência de um Deus único nos cultos de matrizes africanas,
negando a idolatria. Traço que marca seu estudo é a discussão em tor-
no das desigualdades sociais vividas pelas populações negras da Bahia.
(CARNEIRO, 2008, p. 51). No momento de reafirmação das identida-
des socioculturais, as dirigentes nagôs ocupam uma posição de destaque
na construção das identidades religiosas e na história social dos can-
domblés segundo Édison Carneiro.
Édison Carneiro lança as bases para refletir a relação religio-
sidade e resistência cultural, com destaque para atuação da mulher nos
candomblés nagôs, e segundo o autor: “eis a razão do extraordinário
vigor do candomblé, que tem resistido com sucesso ao terror policial e às
campanhas alarmistas da imprensa diária”. (CARNEIRO, 2008, p. 33).

Considerações finais

A proposta foi trazer para discussão o pensamento de Édison


Carneiro a partir da história cultural, pois seus estudos sobre as religiões
de matrizes africanas inclui uma análise da atuação da mulher na forma-
ção histórica dos candomblés. Édison Carneiro investigou as religiões
de matrizes africanas como espaço para o negro reafirmar sua identida-
de. O candomblé na análise do autor conferiu um lugar para as mulheres
reafirmarem sua identidade religiosa, tendo em vista, a atuação das mes-
mas, na formação dos candomblés nagôs. Édison Carneiro almejou se
posicionar perante autores como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, mas
acabou por dar continuidade ao discurso da supremacia nagô. O papel
que a mulher exerceu na condução histórica dos candomblés nagôs, se-
gundo Édison Carneiro, são elementos que nos criam espaço para uma
Histórias, narrativas e religiões 695
reflexão, no âmbito da história cultural sobre a formação das identidades
religiosas femininas.

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Histórias, narrativas e religiões 697


Os campos precisam florir:
sementes do espiritismo em Marialva-
PR (1972-2016)

Carolina Cleópatra da Silva Imediato (Mestrado – UEM)

Resumo: O presente trabalho pretende perceber as trajetórias de Carolina


de Mathias Sozza e Maria Aparecida Maximiano, na medida em que são
mulheres cuja liderança é significativa para a formação dos espiritismos
na cidade de Marialva (1972-2016). Esse trabalho está conexo ao proje-
to de Mestrado intitulado A Casa Espírita Paulo de Tarso (2006-2016) e
as manifestações religiosas espíritas em Marialva-PR e utiliza como fonte
a biografia Os campos precisam florir: relatos de D. Cida, uma vencedora
(GUIMARÃES, 2014), bem como pesquisa de campo e entrevistas reali-
zadas com os colaboradores da Casa Espírita Paulo de Tarso e do Centro
Espírita André Luiz, ambos na cidade de Marialva-PR. Nessa proposta, a
História das religiões é entendida como discurso histórico e culturamen-
te construída (CHARTIER, 2002) e as representações das mulheres em
destaque são compreendidas a partir das noções de “táticas” e “estratégias”
de Michel de Certeau (1998). Para discutir a representatividade de Maria
Aparecida e Carolina de Mathias no espiritismo, em Marialva, é utilizada
também a categoria de gênero discutida por Joan Scott (1990).

Palavras-chave: Gênero; História das religiões; Espiritismo.

Introdução

O presente artigo se refere a alguns elementos relativos ao pro-


jeto de Mestrado intitulado A Casa Espírita Paulo de Tarso (2006-2016)

698 Histórias, narrativas e religiões


e as manifestações religiosas espíritas em Marialva-PR. A pesquisa em
questão está em andamento e utilizamos para este simpósio os dados
iniciais. Como fonte está sendo utilizada a biografia Os campos precisam
florir: relatos de D. Cida, uma vencedora (GUIMARÃES, 2014), bem
como pesquisa de campo e entrevistas realizadas com os colaborado-
res da Casa Espírita Paulo de Tarso e do Centro Espírita André Luiz
(CEAL), ambos na cidade de Marialva-PR.
Para atender as especificidades do presente Simpósio, preten-
demos perceber as trajetórias de Carolina de Mathias Sozza e Maria
Aparecida Maximiano, na medida em que são mulheres cujas lideranças
são significativas para a formação dos espiritismos na cidade de Marialva
(1972-2016). Nessa proposta, a História das religiões é entendida como
discurso histórico e culturalmente construída (CHARTIER, 2002) e as
representações das mulheres em destaque são compreendidas a partir
das noções de “táticas” e “estratégias” de Michel de Certeau (1998). Para
discutir a representatividade de Maria Aparecida e Carolina de Mathias
no espiritismo, em Marialva, é utilizada também a categoria de gênero
discutida por Joan Scott (1990).
Partimos da categoria de gênero, discutida por Joan Wallach
Scott (1990) na obra “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”,
na medida em que esse conceito nos permite pensar além da História
das mulheres, permite-nos também compreender a relação das mulheres
entre si e a relação entre homens e mulheres, em perspectiva históri-
ca. Sobretudo no que diz respeito à trajetória da Sra. Maria Aparecida
Maximiano, a qual as fontes puderam nos fornecer mais material de
análise até o momento, a categoria de gênero explica diversas situações
da trajetória dessa mulher que nos permite pensar o papel dela na fa-
mília, na comunidade e na religião e, sobretudo, permite-nos entender
algumas posturas religiosas dela. A discussão realizada por Joan Scott
nos auxília também na inserção da figura da Sra. Carolina de Mathias
Sozza na historiografia regional.
Dessa forma, pretendemos contribuir para a historiografia,
pensando inclusive nos apontamentos realizados por Roger Chartier
acerca da escrita histórica. Chartier frisa que o objeto da história deixou

Histórias, narrativas e religiões 699


de ser apenas as estruturas que regulam as relações sociais, a história
passou a se preocupar com as racionalidades e as estratégias utilizadas
pelas comunidades, parentelas, famílias, indivíduos. Buscamos reconhe-
cer de que forma as trabalhadoras em questão dão sentido a suas práticas
e a seus discursos, o que, nas palavras de Chartier (2002) “parece residir
na tensão entre as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comu-
nidades e, de outro lado, as restrições, as normas, as convenções que
limitam [...] o que lhes é possível pensar, enunciar, fazer” (2002, p. 91).
Para Chartier (2002) toda história deve pensar a diferença atra-
vés da qual as sociedades subtraíram do cotidiano, em figuras variáveis,
um domínio particular da atividade humana, bem como pensar as de-
pendências que inscrevem variadamente a invenção estética e intelec-
tual. Segundo Chartier (2002), autores como Louis Marin, Bronislaw
Geremek e Carlo Ginzburg escreveram uma história das modalidades do
fazer-crer e das formas de crenças, trata-se de uma história das relações
simbólicas, uma história da aceitação ou rejeição do ideário inculcado.

Carolina de Mathias Sozza: fundadora do


espiritismo kardecista em Marialva

Embora o levantamento acerca da trajetória da Sra. Carolina


de Mathias Sozza esteja ainda no início, é possível apontá-la como fun-
dadora do espiritismo em Marialva. Para explicar essa assertiva, faz-se
necessário uma breve contextualização da cidade de Marialva.
Marialva foi fundada pela Companhia de Terras Norte do
Paraná na década de 1940, tendo sido planejada como Patrimônio, entre
Mandaguari e Maringá, no trecho conhecido como caminho de Peabiru.
Marialva foi elevada a Distrito de Mandaguari através da Lei Estadual
n º 2 de 01/10/1947. A emancipação sobreveio em 14 de novembro de
1951 com a Lei Estadual nº 790/51. A origem do nome da cidade é uma
homenagem a D. Pedro de Alcântara Menezes, o Marques de Marialva
(1711-1799), conforme El Khatib (1969).
700 Histórias, narrativas e religiões
O Espiritismo é citado por Ricieri (2008) no capítulo sobre
“Assistência Social”. A autora relata que a Casa da Sopa foi fundada pelo
casal Silvério Antonio Sozza e Carolina de Mathias Sozza, os quais tive-
ram dificuldades para fundá-la, uma vez que não havia centro espírita kar-
decista em Marialva até a década de 1970. Ricieri (2008) descreve que o
casal Silvério e Carolina precisou vender uma propriedade rural para ad-
quirir a casa que posteriormente serviu como Casa da Sopa. Voluntários
como Geraldo Neves da Luz, representante da 7ª União Regional Espírita
(URE) e da Federação Espírita do Paraná, bem como Odeonel Lopes, José
Antônio Aurélio Zuffo, João Antonio de Mathias e Antonio Eugênio de
Souza, auxiliaram na edificação do prédio que se encontra hoje no terreno.
A Casa da Sopa foi inaugurada em 15 de outubro de 1972. A propriedade
adquirida por Silvério e Carolina é hodiernamente a sede da Sociedade
Espírita André Luiz, a qual teve como primeiro presidente o Sr. Odeonel
Lopes, conforme narra Ricieri (2008).
Atualmente, na cidade de Marialva, existem dois centros espí-
ritas, regularmente registrados na Federação Espírita do Paraná (FEP):
a “Casa Espírita Paulo de Tarso” e a “Sociedade Espírita André Luiz”
(ou “Centro Espírita André Luiz” como é conhecida), conforme pode
ser verificado pelo sítio275 oficial da federação.
Após as entrevistas iniciais e diante do que pôde ser percebido
até o momento através da pesquisa de campo, percebe-se que a Casa da
Sopa e posteriomente o Centro Espírita André Luiz foram fundados
pela Sra. Carolina de Mathias Sozza e seu esposo. As narrativas mí-
ticas apontam a forte vontade de D. Carolina como responsável pelo
empreendimento, embora ela tenha tido apoio e auxílio material de ou-
tras pessoas e da União Regional Espírita (URE). Os colaboradores do
centro espírita, ao relatar a história de fundação da casa, explicitaram
a dedicação e o desprendimento da Sra. Carolina para fundá-la e para
mantê-la, cozinhando e servindo sopa às vezes até mesmo sob chuva.
Os netos da Sra. Carolina relataram que a avó sempre pedia
para que eles lessem o evangelho para ela, porque a Sra. Carolina não
sabia ler. Já o Sr. Roque disse que ela sabia ler, com dificuldade apenas.

275  Disponível em: < http://www.feparana.com.br/ures/listagem/>. Acesso em 18 maio de 2016.


Histórias, narrativas e religiões 701
A Sra, Carolina e o Sr. Silvério tiveram doze filhos. Residiram
no interior do Estado de São Paulo e no noroeste do Paraná. Os relatos
descrevem a Sra. Carolina como sendo uma pessoa muito dedicada à
família e aos necessitados, de personalidade serena e firme, embora fosse
bondosa, era uma mulher muito enérgica. A Sra. Carolina é retratada
como um exemplo cristão e o seu trabalho é comemorado até os dias
atuais, lembrando bastante as hagiografias.
Conforme os relatos obtidos através de entrevista com o Sr.
Roque, a Sra. Carolina conheceu o espiritismo na cidade de Gleba
Alegre-SP, quando buscava auxílio espiritual para os acessos do filho.
Com a cura do filho, o casal abraçou vigorosamente a doutrina espírita.
A Sra. Carolina e a família residiram na área rural de
Mandaguari. Com as dificuldades que o Centro Espírita Allan Kardec
estava passando, com carência de colaboradores, a D. Carolina e o
Sr. Silvério decidiram comprar uma residência em frente ao referido
Centro, a fim da D. Carolina poder cuidar do Albergue da instituição.
Em meados de 1964, o casal Sozza se mudou para Maringá e
cuidaram da sopa da AMEM (Associação Espírita de Maringá) por 5
anos. Ainda em Maringá, a D. Carolina teria pensado em fazer mais e
levar a caridade e a doutrina espírita a algum lugar que carecesse mais.
Conforme explicou o filho do casal, a decisão de fundar uma casa da
sopa e um centro espírita em Marialva foi da Sra. Carolina e que o seu
genitor concordou porque “sempre fazia tudo por sua esposa” (sic).
Dentre os pontos da trajetória da D. Carolina, narrados por
seus familiares, as que mais chamaram a atenção foram: a) a venda de
um imóvel da própria família para abertura da Casa da Sopa, na forma
de fundação e parte integrante da Federação Espírita do Paraná, na me-
dida em que o bem passou a ser da instituição; b) o milagre do parto;
quando uma de suas filhas estava em trabalho de parto faltou energia
elétrica na cidade, porém, quando a criança nasceu, pelas mãos de D.
Carolina, os presentes alegam ter visto um clarão no quarto e que a luz
advinha de D. Carolina; c) Acolhimento e abrigo à Ester, mulher que
trabalhava como prostituta e havia sido expulsa do estabelecimento por
que estava com tuberculose; a Sra. Carolina abrigou e cuidou da moça

702 Histórias, narrativas e religiões


até a sua morte e depois custeou o seu enterro; d) quando a Sra. Carolina
pensou em desistir das obras de caridade, ante a dificuldade para conse-
guir recursos e administrar os voluntários, recebeu conselhos de Divaldo
Franco, quando este veio à cidade palestrar, o qual teria lhe dado conse-
lhos animadores para poder continuar.
Citar a Sra. Carolina de Mathias Sozza na historiografia regio-
nal é importante, na medida em que foi uma mulher de grande relevân-
cia, na cidade de Marialva e região. Segundo Joan Scott a historiografia
deve apresentar a participação feminina na história, resgatando suas he-
roínas e explicando as dificuldades da opressão patriarcal.

Maria Aparecida Maximiano e a Casa Espírita


Paulo de Tarso

Em relação a Sra. Maria Aparecida Maximiano, em informa-


ções obtidas através de pesquisa de campo preliminar, foi possível cons-
tatar que sua participação no espiritismo marialvense foi fundamental
para a fundação da Casa Espírita Paulo de Tarso.
O grupo que fundou a Casa Espírita Paulo de Tarso surgiu
em um grupo de estudos sobre “Evangelho segundo o espiritismo”, um
livro do Pentateuco espírita codificado por Allan Kardec (pseudônimo
de Hippolyte Leon Denizard Rivail). Os encontros do grupo eram rea-
lizados na casa da D. Maria Aparecida do Planalto. Esse grupo cresceu
e passou a realizar sessões mediúnicas, também na casa da D. Maria e
sob a supervisão desta.
A procura de pessoas na casa da D. Maria era diária e cresceu
muito, o que fez com que seus filhos reclamassem da manutenção do
grupo em sua casa. Assim, o grupo decidiu procurar outro lugar para fa-
zer os estudos e as reuniões mediúnicas. Alugaram uma casa no Jardim
dos Nobres e passaram a se reunir naquele local a partir de 2006.
O grupo que fundou a Casa Espírita Paulo de Tarso se cons-
tituía basicamente de pessoas que conheceram o espiritismo através
Histórias, narrativas e religiões 703
da D. Maria e pessoas remanescentes do Centro Espírita André Luiz
(CEAL). A casa alugada para as reuniões foi locada em nome de Lenita
(pseudônimo) e Sra. Monika Domene foi a sua fiadora.
As reuniões mediúnicas eram dirigidas por D. Maria e por D.
Edileuza (pseudônimo) e as duas doutrinavam os espíritos atendidos. Após
alguns meses, devido a desentendimentos, D. Maria saiu da Casa Espírita e
passou a atender as pessoas novamente em sua própria residência.
Com a saída da D. Maria da Casa Espírita, os médiuns por ela
treinados saíram também, permanecendo a Sra. Monika e seu compa-
nheiro Sr. Marcos, os quais haviam conhecido o espiritismo através da
D. Cida, bem como alguns colaboradores remanescentes do CEAL, que
passaram a ser dirigidos então pela D. Edileuza, única médium osten-
siva276 do grupo. Como a D. Edileuza era a única médium psicofônica,
Sr. Marcos aprendeu a doutrinar para que as reuniões continuassem a
ser realizadas.
Há divergências nos relatos fornecidos em relação ao motivo
pelo qual D. Maria deixou a Casa Espírita. A Sra. Monika e o Sr. Marcos
afirmam que a D. Maria se desentendeu com a D. Edileuza porque esta
dizia que as práticas da D. Maria eram de “animismo277” e não de “me-
diunismo”. A D. Maria, por sua vez, relata: que “as pessoas da Casa não
me queriam lá” (sic); que “a Lenita e a Edileuza estavam vendendo os
livros que consegui para os estudos a 10 reais na Bezerra de Menezes
em Maringá” (sic); que “Lenita disse que as doações da Casa deveriam
ir para os trabalhadores pobres da Casa e que eu era a mais pobre” (sic);
que “me desprezavam porque sou preta, pobre e analfabeta” (sic).
Antes da saída da D. Maria da Casa Espírita, a mesma era a
responsável pelos tratamentos espirituais de cura. Após seu afastamento,
a D. Edileuza assumiu a função.
276  A mediunidade ostensiva é aquela que se manifesta por meio da escrita, da palavra ou
de outras manifestações materiais, conforme explicitado no “Livro dos Espíritos” (KARDEC,
p. 34-35), disponível em <http://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2012/07/135.pdf>.
Acesso em 4 set. 2016.
277  O animismo para a doutrina espírita é um fenômeno em que “a comunicação é realizada pelo
próprio encarnado, quando este se encontra no estado de emancipação da alma, vulgarmente conhecido
no meio espírita como anímico ou, ainda, de desdobramento espiritual”. (Disponível em: <http://
www.febnet.org.br/blog/geral/colunistas/mediunismo-e-animismo/>. Acesso em 19 maio de
2016).
704 Histórias, narrativas e religiões
A Casa Espírita Paulo de Tarso se organizou da seguinte forma
após a saída da D. Maria do grupo: A D. Edileuza passou a ser a única
dirigente dos trabalhos mediúnicos (reuniões mediúnicas e reuniões de
desobsessão) e a Presidente da Casa; a Sra. Monika Domene assumiu a
tesouraria da Casa e o atendimento fraterno, este último com o auxílio
da Sra. Vanessa Batista; o Sr. Marcos Silva passou a ser o doutrinador
nos trabalhos mediúnicos.
Com o aumento de frequentadores da Casa, foram acrescenta-
das outras terapêuticas ao atendimento, como a acupuntura e o reiki. A
acupuntura não permaneceu. O reiki continua sendo utilizado na Casa e
a sua direção foi assumida pelo Sr. Ney, trabalhador que não participou
de sua fundação.
A Sra. Monika Domene registrou a Casa Espírita Paulo de
Tarso junto à Federação Espírita do Paraná (ano), através da presidência
da 7ª URE (União Regional Espírita) e comunicou o presidente que,
embora estivesse se filiando, “a Casa iria continuar a oferecer reiki aos
frequentadores” (sic).
A Casa Espírita Paulo de Tarso hodiernamente oferece aos
frequentadores palestras semanais, aplicação de reiki diariamente;
atendimento fraterno, atendimento mediúnico, grupo de estudo do
“Evangelho segundo o espiritismo”, grupo de estudo do ESDE (Estudo
Sistematizado da Doutrina Espírita), grupo de estudo do livro “O Céu
e o Inferno”, grupo de estudo do livro “Nosso Lar” e grupo de apoio ao
luto “Maria de Nazaré”.
Em relação à vida pessoal de D. Cida, através de entrevistas e
de sua biografia “Os campos precisam florir”, foi possível perceber que o
processo de exclusão pelo qual passou no seio espírita de Marialva não
foi fato isolado em sua trajetória.
A D. Cida casou-se com 13 anos, neta de homem escravizado,
filha de preto e índio. Teve 10 filhos, sendo que um nasceu morto, o
qual ela conta igualmente como sendo filho dela. Sofreu violência física,
psicológica e obstétrica de seu ex-marido. Passou fome, trabalhou na
roça, teve câncer, não aprendeu a ler ou escrever, nem contar dinheiro.
Divorciou-se depois de idosa, porque recebeu apoio de um dos filhos.

Histórias, narrativas e religiões 705


Foi excluída da Igreja, do Centro Espírita de Apucarana, do Centro
Espírita André Luiz, da Casa Espírita Paulo de Tarso, a qual fundou.
Encontra-se, ainda hoje, doente. Ela se considera uma vencedora.
O trajeto de vida de D. Cida, relatado na biografia Os cam-
pos precisam florir: relatos de D. Cida, uma vencedora (GUIMARÃES,
2014) e também por ela mesma, denota a forte presença da crença cristã,
em que o martírio e a resignação elevam o espírito e, por isso, devem ser
considerados uma oportunidade de servir Jesus.

“Táticas” e “estratégias” como categorias


operacionalizáveis na presente pesquisa

Mary del Priore recorda que a história dos espiritismos no


Brasil é marcada em grande parte pela presença da mulher, seja como
vidente, como cartomante, como sonambula ou como médium.
Ao fazer um contraponto entre as trajetórias de Carolina de
Mathias Sozza e de Maria Aparecida Maximiano, é possível analisá-las a
partir das ideias de “táticas” e “estratégias” de Michel de Certeau (1998),
em vista que a D. Cida exerce sua religiosidade e trabalha pela sua cren-
ça sem possuir um “próprio”, conforme as demandas surgem, D. Cida se
adapta, lance a lance. A tentativa de estabelecer um próprio através da
fundação da Casa Espírita Paulo de Tarso não se operacionalizou para a
D. Cida, conquanto a instituição tenha proporcionado a operacionaliza-
ção de estratégias por outros integrantes do grupo da D. Cida.
Já a D. Carolina conseguiu, juntamente com o grupo que lhe
apoiou, o domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo; teve
a possibilidade de antecipar-se ao tempo pela leitura de um espaço. O
trabalho da D. Carolina em Marialva já começou de forma estratégica,
mais do que um esboço a Casa da Sopa e o Centro Espírita André Luiz
já começou a tomar forma quando da compra do terreno no início da
década de 1970, tornando-se realidade palpável e juridicamente emba-
sada em 1972.
706 Histórias, narrativas e religiões
Ressalta-se que embora os maiores esforços em fundar o pri-
meiro centro espírita de Marialva tenham partido do casal Sozza, espe-
cialmente de D. Carolina, o estatuto de fundação colocou o Sr. Odeonel,
representante da 7ª URE (União Regional Espírita – Maringá) como
primeiro presidente da instituição e o Sr. Silverio Sozza como vice. Esse
ponto nos traz alguns questionamentos, os quais pretendemos dirimir
com a continuação da pesquisa.
É possível verificar que o apoio da URE ao empreendimento
da D. Carolina teve grande influência na operacionalização estratégica
da fundação da instituição espírita em Marialva, conquanto não tenha
sido um apoio desinteressado, senão vejamos: embora os recursos físicos
tenham advindo em grande parte do casal Sozza, o estatuto prevê severa
submissão da instituição à Federação Espírita do Paraná – FEP (não só
no que tange à disposição dos bens da fundação, quanto do ponto de vista
doutrinário); o presidente da instituição foi o representante da URE local,
sendo que a União Regional é uma subdivisão administrativa da FEP.
Embora a Casa Espírita Paulo de Tarso não esteja subordinada
à Federação Espírita paranaense da mesma forma que o CEAL, está
registrada no órgão e, assim, recebe orientações doutrinárias da URE e
também fornece auxílio ao órgão quando há promoções de venda de pi-
zzas ou rifas; podendo, entretanto, afastar as orientações que recebe caso
seus ‘trabalhadores’ assim queiram. A Casa Espírita Paulo de Tarso é
uma instituição e consegue operacionalizar suas práticas de forma estra-
tégica, diferentemente da D. Cida, a qual realiza seu trabalho espiritual
de forma tática.
Para Certeau (1998), a diferença entre tática e estratégia reside
nos tipos de operações que as estratégias são capazes de produzir, ma-
pear, impor, enquanto que as táticas só podem utilizá-los, manipulando
ou alterando. É importante frisar que os contextos de usos, segundo
Certeau (1998), remetem ao ato de falar. O enunciado supõe uma efetu-
ação do sistema linguístico, isto é, a língua só se torna real no ato de fa-
lar, bem como uma apropriação da língua por quem age e a implantação
de um interlocutor, real ou fictício, além da instauração de um tempo
presente. Esse modelo pode ser aplicado a operações não linguísticas

Histórias, narrativas e religiões 707


que dependam de consumo. Certeau (1998) alerta, entretanto, que se
faz necessário analisar a natureza dessas operações, considerando suas
relações de forças (não só os fortes empreendem “ações”).
Certeau (1998) denomina estratégia o cálculo das “relações de
forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de
querer e poder pode ser isolado” (p. 93). A estratégia reclama um lugar
“próprio” de ação, o que ocasiona efeitos, tais como: o domínio do tempo
pela fundação de um lugar autônomo; possibilidade de antecipar-se ao
tempo pela leitura de um espaço; o poder do saber. A estratégia utiliza
do poder para elaborar lugares teóricos (sistemas e discursos) que arti-
culem um conjunto de lugares físicos onde as forças possam se distribuir.
A tática, por sua vez, na conceituação de Certeau (1998), é a
ação calculada, que é determinada justamente pela ausência de um “pró-
prio”. A tática não logra a autonomia, não tem um lugar seu e, por isso,
trabalha com aquilo que lhe é imposto. A tática não possui visão global
do adversário, sua operação se dá lance por lance. A tática se aprovei-
ta das ocasiões e depende delas, não possui o controle dessas ocasiões,
utiliza o tempo com astúcia. A tática é determinada pela ausência de
poder, enquanto a estratégia é estabelecida pelo postulado de um poder.
Certeau (1998) sugere que as práticas cotidianas dos consumidores, tais
como habitar, falar, ler, comprar, ou cozinhar são tipos de táticas, isto é,
são gestos astuciosos do “fraco” na ordem estabelecida pelo “forte”.
Dessa forma, verifica-se que o Centro Espírita André Luiz já
foi fundado com apoio institucional, de forma estratégica, diferente-
mente da Casa Espírita Paulo de Tarso que logrou se organizar de for-
ma estratégica somente a partir de 2006, passando a possuir, assim, um
“próprio”, conforme explica Certeau (1998).

Conclusão

Conquanto a pesquisa esteja em fase inicial, momento em


que ainda está sendo realizado o levantamento de fontes, é possível te-
708 Histórias, narrativas e religiões
cer algumas considerações. Dentre as considerações mais relevantes, a
principal é reconhecer que a Sra. Carolina de Mathias Sozza e a Sra.
Maria Aparecida Maximiano foram as principais fundadoras do Centro
Espírita André Luiz e Casa Espírita Paulo de Tarso, respectivamente.
Sem desprezar a colaboração dos demais membros das duas instituições,
parece-nos que sem o trabalho missionário dessas duas mulheres, não
teria sido possível a fundação dos referidos centros naquele momento
histórico em Marialva.
Conforme a discussão realizada, é possível verificar na dinâmi-
ca de fundação do CEAL e da Casa Espírita Paulo de Tarso, a opera-
cionalização de “táticas” e “estratégias”, nos termos de Certeau (1998).
As relações de poder envolvidas na fundação do CEAL permitiram que
desde o início a instituição tivesse um “próprio”, possibilitando o domí-
nio do tempo e do saber, bem como a criação de sistemas e discursos,
os quais se alinharam ao da Federação Espírita Brasileira, ante a forte
atuação da URE junto àquele Centro.
Já a Casa Espírita Paulo de Tarso surgiu como grupo não ar-
ticulado, utilizando o espaço da residência da Sra. Maria Aparecida,
mas de forma precária. Além disso, o grupo não possuía regras bem
estabelecidas, bem como suas práticas e estudos doutrinários ainda se
encontravam em construção. Dessa forma, é possível perceber que de
2004 a 2006 o grupo fundador utilizou-se de “táticas” para se manter,
solucionando as ocasiões lance a lance, trabalhando com aquilo que lhe
era imposto.
A partir de 2006 o grupo fundador da Casa Espírita Paulo de
Tarso conseguiu se organizar de forma estratégica e passaram, assim, a
ter um “próprio”. A Sra. Maria Aparecida, por sua vez, não permaneceu
no grupo e voltou a atender em sua residência, sem vínculo institucional,
operacionalizando novamente as “táticas” que lhe eram conhecidas.
É possível perceber várias dissidências, tanto no CEAL, quanto
na Casa Espírita Paulo de Tarso. Em relação à dissidência que levou a Sra.
Maria Aparecida a sair da Casa Espírita Paulo de Tarso, há vários fatores
que foram levantados e ainda estão sob análise, dentre eles o analfabetis-
mo, o racismo, diferenças de crença e doutrinárias, dentre outros.

Histórias, narrativas e religiões 709


Referências

CERTEAU, Michel de. Fazer com: usos e táticas. In: CERTEAU, Michel de. A Invenção do
cotidiano. 3. ed. trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1998.v1., p. 91-106.

CHARTIER, Roger. A história entre narrativa e conhecimento. In: CHARTIER, Roger. À


beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 81-100.

DEL PRIORE, Mary. Do outro lado: a história do sobrenatural e do espiritismo. São Paulo:
Planeta, 2014.

GUIMARÃES, Tânia Braga. Os campos precisam florir: relatos de Dona Cida, uma vence-
dora. Biografia. 2014.

EL-KHATIB, Faissal. História do Paraná. Curitiba: Grafipar, 1969.

GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:GINZBURG, Carlo. Mitos,


emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.

RICIERI, Maria Teresa. Marialva: do café à uva fina. Maringá: Clichetec, 2008.

SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS:
Corpo e Cidadania. Recife, 1990

710 Histórias, narrativas e religiões


A filha de Ali: Sayyida Zaynab e a
reinterpretação do papel das mulheres na
sociedade através dos rituais da Ashura

Flávia Abud Luz (Mackenzie)

Resumo: Nas novas leituras feitas dos rituais da Ashura e das persona-
gens envolvidas na narrativa da Batalha de Karbala (680 E.C.), sobre-
tudo da centralidade do Iman Hussein e de sua irmã Sayyida Zaynab,
existe uma tentativa de resgatar o protagonismo de Zaynab, represen-
tando as demais mulheres presentes no confronto em Karbala, com o
propósito de mobilização social e política, como foi observado primei-
ramente no Irã pré-revolucionário (com o intuito de engajar as massas
contra governo vigente) e no Líbano, entre as décadas de 1970/1980
no contexto da mobilização política das massas xiitas sob a égide de
grupos sociais e políticos como o Amal (Movimento dos Desprovidos)
e o Hezbollah (DEEB, 2005 e 2009; EL-HUSSEINI, 2008; AFARY e
ANDERSON, 2011). Em suas versões anteriores as narrativas que fun-
damentam as práticas realizadas anualmente pelos adeptos do xiismo
do décimo segundo Iman, traziam as figuras femininas como agentes
passivos e vítimas da tragédia, descrevendo as provocações que elas en-
frentaram. Tendo em vista as influências determinantes dos contextos
cultural, nacional e sócio-político em que tal movimento de construção
de gênero através da personagem de Zaynab é desenvolvido, a presente
comunicação oral possui o objetivo de apresentar e discutir de que for-
ma o movimento permitiu uma discussão ampliada acerca do papel da
mulher muçulmana xiita na sociedade em que se insere, utilizando como
referência os processos observados no Irã e no sul do Líbano.

Histórias, narrativas e religiões 711


O empoderamento da mulher negra nas
religiões de matriz africanas

Mônica Abud Perez de Cerqueira Luz (Doutorado – UNINOVE)

Resumo: Nas religiões de matriz afro-brasileira, as mulheres ocupam


posição de destaque se comparada a outras religiões como a católica e
a evangélica. É importante salientar que a participação feminina nas
religiões de matriz africana se dá na prática religiosa; talvez pelo fato de
no Brasil, as mulheres negras terem conseguido suas alforrias antes dos
homens negros. Com a independência, as mulheres negras se tornaram
comerciantes, inclusive para comprar a alforria de seus companheiros.
Além disso, se organizaram inclusive na religião de modo a formar os
primeiros terreiros de candomblé, onde louvavam os seus orixás. Nas
religiões afro, o posto mais importante é quase sempre ocupado pelas
mulheres (mães de santo). As mães de santo para Landes (1967) apon-
tam a existência da relação de gênero transgressor que colocavam as mu-
lheres negras em funções centrais nas casas religiosas. Atualmente existe
a supervalorização do feminino frente ao masculino, no que diz respeito
aos terreiros, dando a mulher reconhecimento oficial de seu papel na
religião. Para Verger (1992) por toda a África a mulher negra liberta
pôde ter propriedade, controle de mercado, dos serviços domésticos, da
religião. Pesquisas feitas no Brasil colônia e nos dias atuais referendam o
papel da mulher na religião africana. A presente comunicação pretende
tratar da questão da construção da identidade feminina no contexto das
religiões afro-brasileiras.

Palavras-chave: Empoderamento feminino; Religião; Gênero;

712 Histórias, narrativas e religiões


Introdução

Nesse artigo, abordaremos a temática das religiões afro-brasi-


leiras: suas respectivas formações, seus preceitos e práticas ritualísticas.
Entendemos que o estudo sobre religião é fundamental, pois
ela continua sendo uma das bases mais importantes para a (re)constru-
ção sócio- cultural da identidade do povo brasileiro.
Durante os séculos XVI e XIX cerca de quatro milhões de
pessoas de diferentes regiões da África migraram para o Brasil, onde fo-
ram submetidas à escravidão. Cada etnia tinha seus costumes religiosos,
suas tradições e crenças.
Os sudaneses eram originários da África Ocidental, conhe-
cidas atualmente como Nigéria, Togo e Benim. São os iorubás ou na-
gôs, os jejes e os fantiachanti, além dos grupos islamizados, denominado
hauçás, tapas, peuls, mandingas e fulas.
Os bantos são originários das regiões onde é o Congo, Angola
e Moçambique. Esses povos são denominados caçanjes e angolas.
Toda essa miscigenação de etnias e culturas aqui no Brasil
criaram as religiões afro-brasileiras, originando diversos grupos como
o Candomblé, a Umbanda, o Xangô, o Catimbó, o Tambor de Mina,
o Omolocô e o Batuque, dentre outros. Essas religiões são símbolo de
resistência dos negros contra a escravidão.
Na concepção das religiões afro-brasileiras não existe a ideia de
profano e pecado, como no Catolicismo.
O espaço do sagrado são os terreiros destinados ao culto e aos
rituais de iniciação para se tornarem chefes religiosos e intermediários
dos Orixás.
O Axé é a força vital contida e transmitida por meio de ele-
mentos materiais e algumas substâncias como o sangue animal, folhas,
raízes do leite dos rios e pedras. Desse modo, receber o Axé é incorporar
os elementos simbólicos que representam os princípios vitais do mundo
visível e invisível.
Temos como objetivo esclarecer o papel que a mulher e o feminino
ocupam nas religiões afro-brasileiras, em especial no candomblé no Brasil.
Histórias, narrativas e religiões 713
Depois de desempenhar o papel de escrava doméstica e sexual
durante o período da escravatura, a mulher negra, afro-brasileira, liberta,
desempenha seus papéis frente aos obstáculos impostos por uma socie-
dade segregadora e racista.

1- A mulher e o feminino no Candomblé

Nas religiões afro-brasileiras a presença do feminino se justi-


fica historicamente, pois desde o fim da escravidão, as mulheres foram
incentivadas a serem autônomas economicamente. Quando alforriadas,
se tornavam comerciantes, vendendo joias, mugunzá, acarajé.
Essa situação colocou as mulheres em uma situação de inde-
pendência financeira e com maior liberdade para exercer sua religiosi-
dade. Juntando ao fato de que eram as mulheres negras que detinham o
conhecimento sobre ervas medicinais, utilizadas para as curas de doen-
ças dos povos negros que não tinham acesso a tratamentos da medicina
tradicional, eram elas as líderes religiosas.
O lugar que as mulheres ocupam nessas religiões contrasta com
o papel designado para a mulher em nossa sociedade.
No entrecruzamento de religião e gênero, etnia e classe há mui-
to que se discutir sobre o papel da mulher. O sexo feminino ocupa uma
posição de maior destaque em comparação às outras religiões, como na
religião católica por exemplo.
De acordo com Teixeira (2000) a religião afro-brasileira é pre-
dominantemente feminina.
Para o pesquisador

“Os terreiros de candomblé no Brasil têm sido percebidos por estu-


diosos, literatos e público de maneira geral como espaços primor-
dialmente femininos” (TEIXEIRA, 2000, p. 197).

A autonomia feminina no período pós-escravidão assegurou a


subsistência das suas mulheres e de seus filhos.

714 Histórias, narrativas e religiões


Toda essa desestruturação familiar causada pela escravidão
também fez com que as mulheres não casassem; tornando-se indepen-
dentes dos homens.
Cabe ressaltar que na África, a religião é comandada por homens.
Verger (1992) as mulheres negras no Brasil precisaram desen-
volver o espírito de iniciativa para a sobrevivência delas e de seus filhos.
E reitera que esse fenômeno

“Isto explica já em parte a tradição das mães autoritárias, visíveis


em alguns candomblés de origem nagô da Bahia” (VERGER,
1992, p. 101).

Algumas mulheres negras africanas foram responsáveis pelo sur-


gimento dos primeiros terreiros de Candomblé em Salvador, na Bahia.
Foram elas: Iyansssô, Adetá e Yyakalá. Do terreiro de Yyakalá surgiram as
principais casas de Salvador: o Gantois, o Afonjá e a Casa Branca.
Landes (1967) argumentou a respeito das relações de gênero
“transgressoras” que predominavam nos cultos afro-brasileiros e que co-
locavam as mulheres em funções centrais nas casas religiosas. A pesqui-
sadora enfatiza a predominância de mulheres na direção dos terreiros,
em Salvador, Bahia. Os sacerdócios nagôs na Bahia são quase exclusi-
vamente femininos, apesar de haver homens ocupando altos postos na
hierarquia; a maioria dos adeptos é feminina.
A antropóloga e pesquisadora ainda enfatiza que no Candomblé
existe a promoção do empoderamento feminino

A tradição afirma, redondamente, que somente as mulheres estão


aptas, pelo seu sexo, a tratar as divindades e que o serviço dos ho-
mens é blasfemo e desvirilizante. Embora alguns homens se tornem
sacerdotes, a razão, ainda assim, é de um sacerdote para cinqüenta
sacerdotisas (LANDES, 1967, p. 285).

Outros aspectos da visão de mundo do povo de santo como


a relação conflituosa entre homens e mulheres negros, uma vez que
enquanto elas conseguiram trabalho e independência financeira, os
homens ficaram desempregados, dificultando as uniões conjugais, já

Histórias, narrativas e religiões 715


que para essas mulheres a união com homens dependentes não pa-
recia interessante.
A mulher é mediadora das trocas de bens econômicas e dos
bens simbólicos. O lugar social ocupado pela mulher possibilita-lhe o
exercício de um poder fundamental para a vida africana.
Outra questão é que o culto exige responsabilidade e dedica-
ção que muitos “companheiros” não aceitam como a prioridade do orixá
sobre eles mesmos.
O fato de a mulher vir a ser a sacerdotisa-chefe do Candomblé
diz respeito à densidade do sentimento materno na africana. Esse senti-
mento, por sua vez, tem muito a ver com a noção de Terra-Mãe comen-
tada por Morin (1988).

A Terra-Mãe como metáfora só virá a florescer em toda a sua exten-


são nas civilizações agrárias, já históricas, o trabalhador Anteu colhe
sua força no contato com a terra, sua matriz e horizonte, simbolizada
na Grande Deusa... onde jazem seus antepassados, onde ele se julga
fixado desde sempre. Com esta fixação ao solo, virá impor-se à magia
da terra natal; que nos faz renascer por que é nossa mãe... É bem
conhecida a dor do banido grego ou romano que não terá ninguém
que lhe continue o culto como ficará separado para sempre da Terra-
Mãe (Morin, 1988: 114)

A forma como o feminino é tratado no Candomblé com enti-


dades mulheres, Orixás guerreiras, muitas delas ligadas a força e a luta
e da preservação da sua cultura quebram o paradigma social patriarcal
brasileiro que a mulher é frágil e submissa.
O Candomblé representa a terra-mãe que possui os seus signi-
ficados ligados ao feminino e essa expressão religiosa ao representá-la,
ganha todas as suas significações. Nesse sentido que a grande sacerdoti-
sa do candomblé é chamada de mãe de santo.
Jung (1993) propõe um arquétipo de mãe

“É a mãe que providencia calor, proteção, alimento, é também a la-


reira, a caverna ou cabana protetora e a plantação em volta. A mãe
é também a roça fértil e o seu filho é o grão divino, o irmão e amigo
dos homens, a mãe é a vaca leiteira e o rebanho” ( JUNG, 1993: 39)

716 Histórias, narrativas e religiões


Bastos (2009) sobre a presença da mulher no Candomblé reitera

Nas religiões afro-brasileiras, particularmente, o sexo feminino pare-


ce ocupar uma posição de maior destaque em comparação às outras
religiões. Podemos perceber que na religião católica, não é permitido
às mulheres dirigir a cerimônia de maior destaque, que é a missa.
Nos templos evangélicos e pentecostais a situação se repete, pois,
a grande maioria de bispos é do sexo masculino. Há pouco tempo,
começaram a surgir timidamente, algumas mulheres nessa posição
(BASTOS, 2009, p. 156).

A partir do final do século XIX e no início do século XX que as


mães de santo e suas comunidades começam a ganhar notoriedade. Em
grande parte pela necessidade de resistência e luta contra a violência e
pelo direito de cultuar os deuses de seus antepassados.
Tem como maior arma era a conciliação, o acolhimento e o
cuidado com o outro, características atribuídas ao feminino.
Assim, portadoras de um conhecimento e de um poder dife-
renciado, as mães negras constituíram importante presença na sociedade
brasileira ao ressignificar papéis tradicionais.

2- O Feminino na liderança dos terreiros

Landes explica que a presença das mulheres em cargos altos


no Candomblé não é por acaso. Em uma pesquisa feita em 1940 em
Salvador, Bahia, a autora aponta a presença maciça de sacerdotisas na
direção dos terreiros.
Para Landes (1967) somente as mulheres pelo seu sexo, estão
aptas a tratar as divindades. Reitera que o serviço dos homens é blasfemo.
A promoção do empoderamento feminino e a divergência
quanto ao matrimônio dão maior visibilidade ao feminino.
A origem do matriarcado perpassa diretamente no Camdomblé,
segundo Teixeira, 2000. Para a pesquisadora os terreiros têm sido espa-
ços predominantemente femininos.

Histórias, narrativas e religiões 717


As mães Yorubás são bem importantes, pois se acredita que a
continuidade da humanidade depende delas. São progenitoras, articula-
doras da economia local: de bens simbólicos e não simbólicos.
O lugar ocupado pela mulher iorubá lhe legitima e possibilita o
exercício de um poder fundamental para a vida africana.
Para Abiodum (1989) as mães são benevolentes quando bem
tratadas especialmente pelos homens. Assim, os Yorubá acreditam no
seguinte dito popular: atrás de todos os homens bem sucedidos, existe
uma mulher.

Considerações

A importância da mulher tanto no ritual das religiões de ma-


triz africana no Brasil, quanto na sustentação da vida social da família,
tem motivos históricos. A mulher negra, após a “abolição da escravatu-
ra”, viu-se frente a uma estrutura social onde o homem negro, alijado
do mercado de trabalho, expropriado de sua força de trabalho e margi-
nalizado por sua condição racial já não podia manter o núcleo familiar
como outrora.
Diante deste quadro a mulher negra assume a responsabilidade
de encontrar alternativas de sobrevivência da família e do grupo.
A mulher negra encontra no candomblé não apenas plenas
possibilidades de realizar-se religiosamente, como também política e
socialmente.
A mulher, no candomblé, comumente dirige os “terreiros” na
figura da yalorixá, da mãe de santo. É ela quem conhece todos os rituais
e segredos da mística religiosa afro-brasileira. Também é responsável
pela administração do terreiro. A mãe de santo encarrega-se da maior
parte das responsabilidades na administração, juntamente com as outras
mulheres da comunidade, que também ocupam uma posição de privilé-
gio. Estas constituem filhas de santo muito antigas da casa. Como tais
mulheres executam a maior parte das tarefas necessárias à manutenção
718 Histórias, narrativas e religiões
do terreiro, resta ao pai de santo dar a palavra final nas decisões relativas
às datas e hora para a realização dos grandes rituais.
Aprendendo e ensinando a religião dos orixás, a mulher negra
desenvolve suas próprias capacidades administrativas, políticas-sociais,
humanas e religiosas.
Ao contrário do catolicismo, onde o gênero feminino ocupa
posição marcadamente inferior na hierarquia religiosa, no Candomblé a
mulher tem as chefias de centro e dos seus “filhos de santo”.
O fenômeno da liderança e hegemonia femininas nos terreiros
das religiões afro-brasileiras tem sido estudado e as explicações são múl-
tiplas e diversificadas.

Referências

ABIODUN, Rowland. 1989. Women in yorubá religious images. African Languages and Cul-
tures 2 (1):1-18.

BASTOS, Ivana Silva. A visão do feminino nas religiões afro-brasileiras. CAOS Revista Eletrô-
nica de Ciências Sociais. Número 14. Setembro de 2009, p.156-165.

JUNG, G. Carl. A civilização em transição. Petrópolis, Vozes,1993.

LANDES, Ruth. A cidade das mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. Publica-
do originalmente em 1947.

MORIN, Edgard. O homem e a morte. Portugal, Publicações Europa-América, 1988.


______________. O paradigma perdido. Portugal, Publicações Europa-América, 5a. edição, 1991.

TEIXEIRA, Maria Lima Leão. Lorogum: identidades sexuais o poder no candomblé. In:
MOURA, Carlos Eugenio M. de (0rg.). Candomblé: Religião do corpo e da alma: tipos psico-
lógicos nas religiões afro- brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2000, p. 197-225.

VERGER, Pierre. A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil. In: Artigos.
São Paulo: Corrupio, 1992.

Histórias, narrativas e religiões 719


Tia Neiva e o Vale do amanhecer:
(des)continuidades ritualísticas

Daniel Lucas Noronha de Sena (PUCSP)

Resumo: O vale do amanhecer é uma religião de característica con-


temporânea, fundada por uma mulher, Tia Neiva, no final da década de
1950, em meio à construção de Brasília. Tia Neiva, carrega em seu cor-
po, sua história de vida, muita coisa que alude a preconceitos, tais como,
mulher, viúva, mãe de cinco filhos, caminhoneira, nordestina, enfrenta
diversos obstáculos para a construção de um movimento de fé, atual-
mente, espalhado por mais de 600 templos, e, em dezenas de países pelo
mundo. É de nosso interesse discutir o papel da mulher na fundação
desta religião bem como os meandros e desdobramentos na sua estrutu-
ra e conjuntura, social, ritualística, simbólica.

720 Histórias, narrativas e religiões


Entre Missão e Pregação:
a História Cultural das Religiões e a
História da Igreja

Eliane Moura da Silva (UNICAMP)

Resumo: As evidências que nos levam a identificar o “religioso” nas


mais variadas experiências históricas não tornam mais simples a tarefa
de definir o que é “religião” ou seu campo de estudo. A despeito disso,
nas últimas duas décadas tanto a História Cultural das Religiões quanto
uma nova História da Igreja floresceram. Uma História Cultural das
Religiões menos devedora de conceitos universais convive hoje com
uma História da Igreja renovada pela crítica bem sucedida ao enqua-
dramento exclusivamente institucional que a marcou no passado. O
objetivo dessa apresentação é colocar algumas questões fundamentais
para avançar com uma perspectiva multiculturalista para esse diálogo,
destacando as possibilidades de estudos de história cultural das relações
entre religião e gênero.

Histórias, narrativas e religiões 721


Simpósio Temático 7 – Festeiros e
Devotos: histórias singulares com
significados plurais

Coordenação:
Prof.ª Dr.ª Edianne dos Santos Nobre (UPE)
Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

As festas e expressões culturais populares constituem férteis


campos de análise das experiências religiosas nas mais diversas tempo-
ralidades e lugares. As diferentes formas de comunicação com o sagrado,
sobretudo cristãs e afro-brasileiras, vivenciadas nos diversos contextos das
celebrações no Brasil serão o foco desse simpósio, que entre outros obje-
tivos busca reunir estudantes e pesquisadores que enxerguem no interior
dessas experiências individuais e coletivas uma pluralidade de abordagens
instrumentalizadas por diferentes concepções teórico-metodológicas.
Partindo dessa premissa e nos espelhando na atual conjuntura
na qual estamos imersos, discutir sobre festas e religiosidades dentro da
universidade é uma oportunidade para problematizar o próprio papel
do curso de História na sociedade, as interfaces com a educação, a am-
pliação dos currículos escolares, a atualização das práticas de ensino, a
contextualização dos conteúdos, entre outras mudanças voltadas para a
valorização dos diferentes saberes e práticas. Será que já paramos para
analisar quantos alunos, técnicos e professores integram grupos ou tem
entre seus familiares, alguém que participa ou já participou de algu-
ma manifestação festiva com estreito vínculo religioso? Este foi um dos
pontos de partida para pensarmos esse simpósio, que reunirá estudan-
tes interessados em problematizar, entre outras questões, o lugar social
dos populares nas diversas celebrações e expressões culturais, a ocupação
dos espaços públicos, as relações com os poderes públicos instituídos,
a reconfiguração das programações festivas oficiais, as políticas públi-
722 Histórias, narrativas e religiões
cas de incentivo, as ações de salvaguarda, entre outros temas que nos
levam a refletir sobre relações de poder, intolerância religiosa, identida-
de, memória, ancestralidade, patrimônio cultural, educação, entre outras
abordagens que multiplicam os sentidos das festas e religiosidades como
objeto de estudo da História.

Histórias, narrativas e religiões 723


Comunicações – Simpósio Temático 7

724 Histórias, narrativas e religiões


Axé e resistência na terra do Padre
Cícero: uma análise acerca da caminhada
contra a intolerância religiosa e os povos
de terreiro em Juazeiro do Norte, CE

Marcela Melo de Carvalho (UNILEÃO)

Resumo: O presente trabalho visa realizar uma breve reflexão de como


as religiões de matrizes africanas em Juazeiro do Norte- CE, cidade
de fortes tradições católicas ligadas ao Padre Cícero - um dos ícones
do catolicismo popular - vem conquistando, reafirmando espaços, ter-
ritorialidades, construindo identidades e empoderamentos, a partir de
ações como a Caminhada contra a Intolerância Religiosa que ocorre
anualmente no município e já faz parte da agenda cultural religiosa da
região. O evento que já está em sua 6ª edição, acontece sempre no dia
21 de janeiro, data em que se comemora o Dia Nacional de Combate
à Intolerância Religiosa, e reúne praticantes de religiões de matrizes
africanas da região do Cariri, que saem às ruas com seus trajes típicos
– baianas, fios de conta, águas de cheiro – ao som de atabaques e carros
de som, pedindo uma convivência pacífica e respeitosa entre as religiões
e convidando todos aqueles que desejarem, a se juntarem a caminhada,
independente de sua crença religiosa. Tal evento serve como reflexão e
motivação na busca pela liberdade do culto religioso e combate ao racis-
mo arraigado na sociedade.

Histórias, narrativas e religiões 725


Seguindo as coisas: estandartes de Folias
de Reis em Campestre (MG)

Mariana de Carvalho Ilhéo (UNICAMP)

Resumo: A religiosidade do povo sul-mineiro se constitui e é cons-


tituída por diversos rituais de devoção; no tempo do Advento, após o
nascimento de Jesus, saem em peregrinação as companhias de Folia de
Reis. Os foliões se organizam, a partir de laços consanguíneos ou afins, e
retornam à narrativa dos três Reis Magos [Baltasar, Gaspar e Melchior]:
guiados pela Estrela do Oriente, partem ao encontro da criança nascida
em Belém levando ouro, incenso e mirra. As “companhias” percorrem as
zonas rural e urbana para orar e cantar, estabelecendo espaços de circu-
lação de dádivas – simbólicas e materiais –com os anfitriões. No Dia de
Reis, 06 de janeiro, quando finalmente os Santo Reis alcançam o objetivo
da jornada, é a chegada. O grupo inclui os devotos que recebem, os donos
da casa, incumbidos do alimento para o corpo e aqueles que chegam – os
agraciados com o dom da voz, que se revezam em sete vozes ou acom-
panham a toada em posse de viola, sanfona ou percussão; curiosos que
acompanham a aglomeração de cantores e Bastiões são bem-vindos.
No plano da materialidade se circunscrevem coisas boas para
pensar a experiência religiosa católica dessas gentes: réplicas da estre-
la do oriente; enfeites de todos os tipos, da decoração temática às fi-
tas presas aos instrumentos musicais e lapelas; ou a comida dada em
contrapartida pela seresta. As reflexões do presente trabalho partem de
registros audiovisuais, memórias e objetos resgatados através da pes-
quisa etnográfica na cidade de Campestre, no Sul de Minas Gerais, e
têm como objetivo apontar para as pistas contidas nas trajetórias das
coisas da Folia de Reis, protagonistas nesse caso serão os estandartes. O
exercício consiste em olhar para as coisas que existem no espaço como
testemunhantes do fluxo no universo ritual, jogando luzes para o que em

726 Histórias, narrativas e religiões


detrimento de como se troca e, consequentemente, esmiuçar as narrativas
que surgem a partir das bandeiras de Reis.

Palavras-chave: Folia de Reis; Materialidades; Etnografia; Antropologia


da Religião.

Introdução

Minha comunicação contempla a Folia de Reis [e suas coisas]


tal qual ocorre no município de Campestre, sul de Minas Gerais; fo-
ram levantadas quatro companhias ativas. Uma é reminiscente do grupo
formado pelo Mestre João Pradinho, já falecido; entre eles tenho como
interlocutor privilegiado seu parceiro de viola, Antônio ou Pradiano. A
segunda é formada por um grupo parental, Folia Lago e Melo. Indicadas
por Antônio, outras duas ocorrências: a primeira, na zona rural, e, na
zona urbana, foi apontada a companhia do mestre João Bosco. Também
serão considerados os interlocutores mobilizados a partir do processo
etnográfico do ritual de benzimento278; fato esse que demonstra a pos-
sibilidade de intercruzamento de domínios rituais na experiência reli-
giosa das gentes (ILHEO, 2017). Fazendo o caminho inverso, pode-se
notar também o atravessamento da Folia pelo benzimento, já que se
tem notícia de benzedores operando também como mestres, é o caso do
supracitado João Pradinho.
A inserção em tal domínio ocorre através de uma rede de tes-
temunhantes, localizados a partir do “boca-a-boca”: a população de
Campestre segundo o CENSO de 2010 totalizava 20.686 habitantes;
também vale dize que a transição rural-urbano se completou recente-
mente – em 2000. Além do contingente populacional reduzido, as rela-

278  O benzimento consiste em um conjunto de técnicas que se desdobra em uma prática com
viés religioso, a fim de subtrair um mal físico ou psíquico do corpo do indivíduo. Cada benzedor
ou benzedeira possui uma trajetória e manipula elementos rituais específicos visando a eficácia
de sua performance.
Histórias, narrativas e religiões 727
ções se dão de maneira estreitada, sendo comum “darem notícia” da vida
dos moradores: são estabelecidas conexões entre os informantes, que se
conhecem entre si, de maneira a guiar a aprendiz de antropóloga em
direção ao objeto. Minhas reflexões contemplam a observação de uma
chegada, bem como entrevistas e relatos de ocorrências da Folia de Reis
no referido contexto, mobilizando a narrativa dos foliões e dos devotos.
Também me valho de registros audiovisuais angariados e produzidos no
âmbito da comunidade279.
Em uma relação de aproximação com Durkheim (1996),
Halbwachs (1991) trabalha com a noção de memória enquanto fato so-
cial, ou seja, modos de comportamentos exteriores ao indivíduo, pos-
suidores de poder coercitivo pelo qual lhe são impostos. Segundo tal
autor, através dos “quadros sociais”, a memória do indivíduo está rela-
cionada com seus grupos de convívio e de referência: família, religião,
classe social, cultura, entre outros. Sua ênfase se direciona às instituições
formadoras do sujeito, sua proposição é que a vida atual do indivíduo
toma seu curso a partir da memória; algo é lembrado porque, diante
de uma situação específica, a memória vem à tona, espontaneamente.
Os aspectos enaltecidos da memória coletiva são utilizados para pen-
sar a (re)significação dessas práticas e dos símbolos religiosos de que se
vale ao longo do contexto da comunidade e os eventos demográficos,
políticos e econômicos que se dava em segundo plano. O ato da lem-
brança consiste na reconstrução de um passado longínquo: (re)pensar as
experiências passadas com o instrumental que se encontra disponível,
a lembrança é construída a partir das representações atuais da consci-
ência do indivíduo; ao lembrar-se de uma realidade, estará ela alterada
(HALBWACHS, 1991).
Consta muito viva no repertório das gentes católicas a estória
dos Reis Magos que, guiados por uma estrela, colocaram-se em pere-
grinação à Belém, até que, “finalmente, entrando na casa, acharam o

279  FOLIA DE REIS LAGO E MELO, Campestre (MG), 2015, 2016 e 2017
(Vídeos disponíveis em: https://www.youtube.com/user/JaymeLago2010/videos?shelf_
id=0&view=0&sort=dd. Acesso: março/2017).
728 Histórias, narrativas e religiões
menino com Maria sua mãe e, prostrando-se, o adoraram; e abrindo
os seus tesouros, ofertaram-lhe dádivas: ouro, incenso e mirra” (Mateus
2:11). O período das jornadas se inicia logo após o Natal, o nascimento
de Jesus, encerrando-se com a chegada, no dia seis de janeiro, quando os
presépios devem ser desmontados; as pastorinhas280 e as folias costumam
se despedir, voltando a aparecer no ano seguinte. Trata-se de uma matriz
simbólica cuja função é dar base para pensar as experiências vivenciadas
em determinado contexto. A relação entre fatos e eventos sociais com
essa matriz, ou seja, com uma “cultura bíblica” (VELHO, 1995), é o que
revela o caráter simbólico da realidade social.
Alinhando-me a Carlos Rodrigues Brandão (1981), que pro-
põe menos uma definição que um modo de explicação, a Folia de Reis
é um espaço simbolicamente estabelecido a partir /de um período de
tempo ritualizado, onde circulam dádivas entre um grupo de caminhan-
tes e os devotos que os recebem em suas casas. O deslocamento entre
diversos contextos produz novos enquadramentos para os objetos, do-
tando elementos tradicionais de novos significados a partir da experiên-
cia individual e coletiva, por meio da inventividade do grupo, ao mesmo
tempo em que possibilita o estabelecimento de uma grande rede de afe-
tividade e envolvimento entre os indivíduos da comunidade.
Ao seguir as pistas contidas nas trajetórias de Bandeiras ou
Estandartes, o presente trabalho visa apontar os diferentes entendimen-
tos e significados produzidos para o objeto nos contextos em que circu-
la, bem como contemplar sua função ritual e modos de uso. Tomar os
objetos – a bandeira ou estandarte – como categoria analítica consiste
em uma tentativa de revelar os critérios classificatórios que sustentam
sua materialidade, já que sua feitura se dá a partir de um fundamento
mesmo, compartilhado dentro de um contexto religioso (ou cultural),
que remete à narrativa bíblica (APPADURAI, 2008). Olhar para a tra-
jetória dos objetos significa trazer à tona seu processo de significação e
constituição enquanto tal; bem como assinalar que a identidade das coi-

280  Bailado folclórico de origem portuguesa, formado em sua maioria por meninas. Representa
um grupo pastoril em visita ao menino Jesus, durante o ciclo natalino.
Histórias, narrativas e religiões 729
sas, de maneira semelhante à das pessoas, é dada relacionalmente com
base em classificações, reclassificações e singularizações em um contexto
(KOPYTOFF, 2008).

Folias de reis em Campestre (MG)

O Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo (2012),


indica que Folias podem ser muitas: do Divino Espírito Santo ou pro-
cissão, também em homenagem aos santos padroeiros; ele ainda aponta
para referências ibéricas, que, em terras tupiniquins foram ressignifica-
das e transformadas a partir do contato com outras práticas religiosas.
Segundo o autor, tal categoria designa um grupo de pessoas andantes
em prol de um desígnio religioso – comemoração ou louvor ao santo
de devoção, e ainda relacionado a promessas (CASCUDO, 2012). O
ritual em questão foi enquadrado pelos estudiosos do folclore enquanto
“fato folclórico”, cuja preocupação se voltou a compreender suas origens,
enfatizando a noção de traços culturais e difusão (BITTER, 2008). Em
seu Sacerdotes de Viola, Brandão aponta que o lugar de origem brasileira
das Folias de Santos Reis são as comunidades camponesas; o autor se vale
da fala de um campestrense para validar sua proposição de que é grande
a recorrência de tal fenômeno no estado: “aqui e por toda parte (do Sul
de Minas), de 25 a 6 é só Reis” (BRANDÃO, 1981:33).
Ao contrário do que sugeriam os trabalhos dos folcloristas e
seus herdeiros, nos contextos urbanos os rituais de religiosidade popular
não estiveram fadados ao fracasso, perspectiva corroborada ao longo do
ST07 – Festeiros e devotos: histórias singulares com significados plurais,
do Encontro em que a comunicação foi apresentada. Apareceram como
alternativa à manutenção e ao fortalecimento dos laços sociais, fato que
assegura a continuidade de sua ocorrência no recorte em questão, em-
bora tenham sido afetados pelo processo de expansão do município. Em
concordância com Menezes (2003:2), me valho de popular para evocar a
730 Histórias, narrativas e religiões
legitimidade dessas práticas e circunscrever tais manifestações religiosas
em um campo de disputa elucidado ao longo do processo investigativo;
dessa forma, incorporam-se as questões e categorizações do plano em-
pírico à análise a partir de sua problematização. Tal movimento é essen-
cial, pois ressalta o dinamismo do ritual em questão, permanentemente
atualizado no âmbito da prática (MENEZES, 2003). Além da perma-
nência do fenômeno nos dias atuais, bem como sua reformulação diante
das disputas internas da esfera em que se circunscreve, é válido notar que
o tema atualmente é abordado a partir de seu enquadramento enquanto
patrimônio cultural imaterial (GONÇALVES, 2007). A realização de
um recenseamento das companhias, realizado pelo Instituto Estadual
do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA), foi de-
cisivo para o reconhecimento da Folia de Reis mineiras como patrimô-
nio cultural281. Tal fato deixa nítida a importância de se estudar o tema
nos contextos atuais, de maneira a salvaguardar o rito enquanto memó-
ria e entender continuidades e/ou rupturas no plano social.
A divisão de tarefas entre os foliões é dada a partir de seus
dons. Segundo o folião Antônio, aqueles agraciados com a voz divi-
dem-se em sete funções, de acordo com a potência de sua cantoria – o
mestre é quem puxa as estrofes, que o contramestre responde; depois,
tala e contra-tala se reforçam o coro; completam contralto, tipi e contra-
-tipi, com as vozes mais agudas e que sustentam os versos até a última
batida musical. A disposição dos indivíduos no espaço ritual é dada da
seguinte forma:

281  FOLIAS DE MINAS SÃO RECONHECIDAS COMO PATRIMÔNIO


IMATERIAL (Disponível em:http://www.iepha.mg.gov.br/component/content/article/25-
primeira-pagina/1485-folias-de-minas-sao-reconhecidas-como-patrimonio-cultural. Acesso:
março/2017).
Histórias, narrativas e religiões 731
QUADRO I – DISPOSIÇÃO DOS INDIVÍDUOS NO ESPAÇO RITUAL

Os instrumentos utilizados pelas bandas são viola, violão, san-


fona, percussão, pandeiro... Os tocadores foram abençoados com a ha-
bilidade musical (FOTO I). É comum que outros tocadores acompa-
nhem a cantoria, de forma que, muitas vezes, revezam o instrumento e
alternam funções. Há ainda os bastiões, vestidos com roupas coloridas
que diferem das comuns e uma máscara (FOTO II); são chamados por
Daniel Bitter (2008) de palhaços, figuras ambíguas e operadores rituais
da transformação. Cabe a eles uma performance alegre, durante o trajeto
e a cantoria, bem como o intermédio entre promesseiros e foliões.

732 Histórias, narrativas e religiões


Na tentativa de reconstruir as etapas da troca durante uma vi-
sita, Brandão (1981:41) aponta que o rito se inicia com um canto, no
qual os foliões dizem se apresentam e pedem autorização do dono para
adentrar sua casa (FOTO III). Então, o dono segura a bandeira, sig-
nificando que “aceitou” receber o grupo (FOTO IV). Autorizada sua
entrada, do lado de dentro da casa o grupo continua sua toada pedindo
bênçãos aos presentes. Em seguida o morador carrega a bandeira da
Folia por todos os cômodos, indicando que a benção é extensiva aos
seus domínios. Findada a etapa musical, é servida uma refeição: o cardá-
pio é variado, de acordo com a vontade do anfitrião, mas deve ser farto
(FOTO V). Outro aspecto que deve ser pontuado são as bebidas alco-
ólicas: por vezes associadas à profanação, não são obrigatoriedade para a
ceia. Finalmente, os foliões voltam a cantar, dessa vez para arrecadar do-
nativos e ofertas em prol dos necessitados: são recolhidos alimentos em
geral e quantias em dinheiro; da somatória só podem ser descontados os
gastos para a jornada – como transporte ou reparo para os instrumentos
musicais –, o restante é ofertado a indivíduos em situação de vulnerabi-
lidade, em casas de acolhimento de crianças ou idosos.
Aqueles que fizeram promessas, os promesseiros, seguram a ban-
deira enquanto sua graça é conclamada pelas estrofes que se seguem,
até o momento da despedida. A bandeira é aparece, portanto, como
agenciadora de diferentes relações: a saída da bandeira sinaliza o início
da temporada de visitas da companhia; ao pedir permissão para entrar,
a aceitação do mesmo objeto estabelece o início das transações entre
foliões e anfitriões; o transporte da bandeira pela casa indica bênçãos
e graças e, finalmente, em contrapartida, regula a distribuição das ofer-
tas simbólicas, mas também as ofertas materiais – gêneros alimentícios,
quantias em dinheiro, prendas em geral. É válido notar que as categorias
classificatórias mobilizadas no momento ritual não são fixas, guardando
variância e instabilidade em relação ao contexto social em que se dá. Em
outras palavras, de acordo com Bitter (2008), é preciso que se olhe para
as incongruências e paradoxos, iluminar os pontos de tensão e ruptura a

Histórias, narrativas e religiões 733


fim de compreender o sistema em que operam as classificações. É preci-
so tomar o ritual como um processo simbólico e criativo, no qual os mo-
vimentos de transmissão e aquisição caminham juntos, abrindo espaço
para reinterpretações e reformulações pelos indivíduos e grupo ao longo
do tempo. Destarte, a abordagem aponta os efeitos das pessoas sobre os
objetos e, principalmente, dos objetos sobre as pessoas, tomando ambas
as categorias em um só sistema de ação, enquadradas em relação dialó-
gica e não em oposição dicotômica.

O fluxo dos objetos rituais

Obedecendo às regras de prestação e contraprestação de dons,


circulam os bens entre as pessoas. É no plano da materialidade se cir-
cunscrevem coisas boas para pensar a experiência religiosa católica des-
sas gentes: réplicas da estrela do oriente; enfeites de todos os tipos, da
decoração temática às fitas presas aos instrumentos musicais e lapelas;
ou a comida dada em contrapartida pela seresta. Os objetos são trans-
portados espaço-temporalmente, o que indica que, em tal fluxo, são do-
tados de grande valor e potencialidade mágica; relacionados entre si,
bem como às pessoas, que os manipulam, podem materializar as fron-
teiras da experiência religiosa, fato que garante movimento e faz emergir
novos sentidos e significados. O exercício consiste em olhar para as coi-
sas que existem no espaço como testemunhantes do fluxo no universo
ritual, jogando luzes para o que em detrimento de como se troca.

734 Histórias, narrativas e religiões


QUADRO II – CIRCULAÇÃO DE DÁDIVAS NA FOLIA DE REIS

Conforme assinala Brandão (1981:48), a estrutura contratual


da Folia é pautada na tríade relacional maussiana dar-receber-retri-
buir: foliões pedem e recebem bens materiais para outros, retribuem
por meio de dádivas sociais e espirituais (MAUSS, 2015). A partir do
esquema supracitado, emergem obrigações rituais: é prescrito aos fo-
liões negar-se a pedir e/ou receber bens materiais em detrimento dos
espirituais; mas eles podem ocupar a posição de mediação entre dife-
rentes categorias – diferentes tipos de homens (moradores/ pobres);
deuses e homens. Ainda de acordo com Brandão (1981:47), na Folia
os dois grupos [a saber, devotos e foliões] são de parceiros desiguais:
um dos lados dá bens materiais e recebe bens simbólico-religiosos;
o outro recebe bens materiais e dá bens simbólico-religiosos. Dadas
as trocas desiguais, importante é notar que os foliões redistribuem as
dons simbólicos e materiais entre as partes do sistema, circunscrito em
um campo relacional e representacional.
Organizados a partir de laços consanguíneos ou afins, cada
grupo – que percorre as zonas rural e urbana para orar e cantar, esta-
belecendo espaços de circulação de dádivas simbólicas e materiais com
Histórias, narrativas e religiões 735
os anfitriões ­– é representado por uma bandeira. Como aponta Daniel
Bitter (2008), a bandeira aparece operando como elemento de mediação
entre domínios simbólicos diferentes; pode-se dizer ainda que produz
efeitos sobre foliões e os devotos, desencadeando alterações a partir das
relações estabelecidas ao longo de sua trajetória. Assim, tal objeto serve
como suporte ou extensões das divindades que evocam e meio de mani-
festação delas entre os homens (MAUSS, 2015). Porém, é preciso dizer
que, assinaladas suas peculiaridades, a bandeira há de ser entendida em
relação ao contexto em que circula, bem como a partir das pessoas que
a rodeiam.

A bandeira e o mestre, o mestre e a bandeira

A bandeira opera como suporte para imagens e/ou repre-


sentações mítico-pictóricas da devoção, pois se relaciona aos santos
(BITTER, 2008). Porém, representa também uma associação de pes-
soas organizadas em torno de um mesmo objetivo – a devoção ao Santo
Reis -; Câmara Cascudo (2012:133) indica que a palavra bandeira vem
de “bando, bandaria, grupo sob o mesmo símbolo”. Destarte, prece-
dendo os foliões e indicando os caminhos por onde devem passar, bem
como as etapas rituais subsequentes, o objeto desempenha o papel de
símbolo dominante, estabelecendo hierarquias e interações a partir de si
(TURNER, 1980).
De maneira singular, o processo de feitura de tais objetos mo-
biliza diferentes materiais: linhas, agulha, fitas, flores, pano... Além disso,
a representação mítica pode ser produzida através da simples colagem
de uma imagem impressa, pintada à mão com tintas e pincel e/ou uma
bricolagem de essas e outras técnicas. Quero dizer que são mobilizados
materiais variados que, juntos, formam um objeto específico dotado de
valor mágico e religioso por onde circula; tal processo ocorre com base
um fundamento mesmo, compartilhado dentro de um contexto religioso
(ou cultural), que remete à narrativa bíblica da visita dos homens do
736 Histórias, narrativas e religiões
Oriente à estrebaria onde, na doutrina católica, nascera o filho de Deus
(APPADURAI, 2008). Aproximando-me da noção de biografia cultu-
ral, proposta por Kopytoff (2008), chamo a atenção para os diversos
significados que a bandeira de Reis assume ao longo de sua trajetória,
podendo aparecer, permanecer, sofrer apropriações e expropriações ou
ter sua circulação cessada (BITTER, 2008).
A confecção e o gerenciamento do objeto durante o tempo sa-
grado, mas também fora dele, cabe ao mestre da companhia; folião que
se distingue dos companheiros pelo fato de ter se aprofundado no fun-
damento, estudado literalmente seu objeto de devoção. Podem eles mes-
mos montar suas bandeiras e/ou encomendá-las a um devoto que tem
“mão boa”, autorizado para tanto. Assim ocorreu com a bandeira vista na
chegada em que estive presente e fui enquadrada pelos devotos e foliões
como aquela que vai gravar o DVD. A atual bandeira foi encomendada
pelo mestre Divino a uma familiar, conforme relata Antônio: feita de
feltro e pintada à mão, conta ainda com os adereços típicos desses obje-
tos, a saber, fitas de cetim e flores coloridas, muitas (FOTO VI). Porém,
no âmbito dessa companhia, levando em consideração sua trajetória, a
designação do grupo já foi dada de outras formas e mediada por outras
bandeiras. Dissidentes do mestre João Pradinho, cujo contramestre e par-
ceiro de viola era Antônio, o rearranjo se deu com sua morte: a bandeira
feita por ele, que o acompanhara junto de sua companhia, parou de cir-
cular a partir desse evento. Evocando a relação de complementaridade
entre os objetos e seus donos, foram ambos enterrados. De recordação,
restou a miniatura em posse de sua viúva (FOTO VII).
Seguir as Bandeiras ou Estandartes implica em trabalhar com
o paradigma dos objetos e seu lugar na vida social – ou, a vida social das
coisas, nos termos de Appadurai (2008) –, problematizando a fronteira
entre as noções de sujeito e objeto. Jogar luzes para o processo de feiu-
tura dos estandartes, bem como os usos corporais que dele se fazem,
serve para desestabilizar tal polarização ao relacionar as duas catego-
rias, bem como sua constituição contextual. No âmbito do contrato e
da troca, coisas e pessoas “no fundo, são misturas” (BRANDÃO, 1981
apud Mauss, 2015). Como demonstrou Malinowski (1976) ocorrer com

Histórias, narrativas e religiões 737


as canoas entre os trobriandeses, se dá no âmbito da Folia de Reis: as
pessoas fazem os objetos ao mesmo tempo que são fabricadas por eles;
dessa forma, é necessário observar a circulação dos objetos na vida social,
mas também a forma que podem assumir dons, contra-dons, sacrifícios
e promessas em detrimento de sua existência.

Conclusão

Pessoas e coisas estão inseridas em um sistema de crença ca-


tólico, eixo norteador para suas ações, bem como para os modos de ver
o mundo. Dessa forma, o ritual da Folia de Reis não pode ser tomado
como descolado do contexto em que se dá, uma vez que guarda suas es-
pecificidades. Com isso, quero apontar, em primeiro lugar, que as identi-
dades são relacionais: constituídas a partir dos espaços que percorrem e,
dado seu deslocamento, modificando os significados e sentidos produzi-
dos em torno de si. Em segundo, que tais manifestações não são fadadas
ao fracasso nos contextos urbanos. Pelo contrário, são constantemente
atualizadas através da ação e a partir de suas fronteiras com outras prá-
ticas religiosas e culturais.
Destarte, o universo ritual se traduz em um sistema de pres-
tações totais a partir de um símbolo ritual dominante: a bandeira ou
estandarte, que produz novos enquadramentos através dos contextos por
onde circula. Operando como elemento mediador entre domínios com-
plementares – foliões e devotos, material e simbólico, sagrado e profano
– no âmbito de sua materialidade são borradas as fronteiras impostas
pelas categorias nativas, bem como as categorias analíticas sujeito e ob-
jeto. Como bem apontou Bitter (2008), as bandeiras se apresentam me-
nos como simples representação pictórica de uma devoção que materia-
lidade sagrada, através da qual se alcançam bênçãos e milagres, proteção
e até mesmo a cura.
Entretanto, trata-se de um artefato, sujeito à inventividade
das gentes e suas vontades; e para sua feitura são mobilizadas téc-
738 Histórias, narrativas e religiões
nicas diversas, de acordo com elementos adquiridos através da me-
mória religiosa da comunidade, permanentemente atualizadas através
do contato com a diferença. Neste sentido, passam a ser tais objetos
testemunhantes do ritual; as narrativas acerca da experiência religiosa
privilegiam sua perspectiva, constituídas a partir das pistas que contém
a trajetória das bandeiras de Reis campestrenses. No contexto ritual,
sua circulação opera o retorno ao mito original (ELIADE, 1992), bem
como estabelece, nos momentos sagrados, enquadramentos que são
extensivos à vida cotidiana.
Trocando em miúdos, quero dizer que os mestres fazem as
bandeiras e as bandeiras fazem os mestres (MALINOWSKI, 1976).
Tomando estes objetos enquanto categoria analítica, as reflexões inten-
tam romper com a oposição dicotômica dada entre sujeitos e objetos,
fazendo emergir histórias, memórias e relações sociais em torno de si.
Tal abordagem permite a reconhecer que os objetos materiais produzem
os efeitos concretos sobre as pessoas, bem como reconhecer sua agência
no domínio ritual em que também se circunscrevem as gentes.

Referências

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coisas (org.). –Niterói, RJ: EDUFF, 2008.

BITTER, Daniel. A Bandeira e a Máscara: a circulação de objetos rituais nas Folias de Reis. –
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religiões. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.

GONÇALVES, José Reginaldo S.. “Teorias antropológicas e objetos materiais”; “Ressonância,

Histórias, narrativas e religiões 739


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MALINOWSKI, Bronislaw. “As canoas e a navegação”. In: Argonautas do Pacifico Ocidental:


um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Me-
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MENEZES, Renata de C.. “A benção de Santo Antônio e a ‘religiosidade popular’”. In Estu-


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TURNER, Victor W. La selva de los simbolos: aspectos del ritual Ndembu. – México, DF:
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VELHO, Otávio. “O Cativeiro da Besta-Fera”. In: Besta-Fera: recriação do mundo. – Rio de


Janeiro: Ed. Relume - Dumará.1995.

740 Histórias, narrativas e religiões


Anexos

FOTO I – Tocadores na chegada de Folia; Companhia dissidente de João Pradinho.


– Campestre, 05-01-2017.

Histórias, narrativas e religiões 741


FOTO II – Bastiões; Companhia Lago e Melo. – Campestre, 2014.

742 Histórias, narrativas e religiões


FOTO III – Canto para pedir licença; Companhia dissidente de João Pradinho. –
Campestre, 05-01-2017.

Histórias, narrativas e religiões 743


FOTO IV - Visita da Folia, Companhia não identificada. – Campestre: 1996.

744 Histórias, narrativas e religiões


FOTO V – Oferta de comida; Companhia dissidente de João Pradinho. –
Campestre, 05-01-2017.

Histórias, narrativas e religiões 745


FOTO VI – Bandeira; Companhia dissidente de João Pradinho. – Campestre,
05-01-2017.

746 Histórias, narrativas e religiões


FOTO VII – Miniatura da bandeira de João Pradinho. – Campestre (2016).

Histórias, narrativas e religiões 747


Patrimônio é festa: os bens culturais
mineiros sob nova perspectiva

Adalberto Andrade Mateus (IEPHA/MG)


Guilherme Eugênio Moreira (UFMG)

Resumo: A política de proteção aos bens culturais imateriais mineiros


vem alcançando ao longo de seu desenvolvimento uma aproximação ao
campo das celebrações religiosas. Festejada no século 21 como uma das
políticas públicas mais inclusivas, a proteção aos bens culturais imateriais
permitiu o reconhecimento e valorização de práticas culturais e religio-
sas antes relegadas a um papel coadjuvante, provocando uma releitura
dos sentidos do patrimônio e dessas mesmas manifestações, agora sob a
perspectiva cultural. Reconhecida como patrimônio cultural mineiro no
ano de 2013, a Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
de Chapada do Norte foi o primeiro bem imaterial registrado no Livro
das Celebrações. Já em 2017, quando é decidida a inscrição das Folias de
Minas no mesmo livro, novos entendimentos e políticas públicas devem
ser colocados em prática. O reconhecimento dessas manifestações, que
abrangem diferentes territorialidades – a primeira muito específica de
uma comunidade, a segunda presente em todo o estado de Minas Gerais
–, suscita o desafio de encará-las sob a perspectiva de uma patrimonia-
lização que lhe alcança novos sentidos, mais abrangentes, plurais e re-
presentativos. A presente comunicação pretende apresentar o desenvol-
vimento dessa linha de política patrimonial tendo em vista as nuances
próprias das diversas e diferentes realidades socioculturais do território
mineiro. Congadeiros, foliões e devotos, diante da valorização de suas
práticas, protagonizam em cenário que já dominavam bem antes de seu
reconhecimento. Técnicos e analistas saberão entender a independência
desse protagonismo?

748 Histórias, narrativas e religiões


A Procissão de Cinzas como
componente das práticas religiosas da
Ordem Terceira de São Francisco de
Assis de Ouro Preto

Milena Frigi Nunes (UFV)

Resumo: O presente artigo pretende analisar a Procissão de Cinzas, or-


ganizada pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis de Ouro Preto,
ou Ordem Terceira da Penitência, como uma importante atividade reli-
giosa no seio da irmandade. Essa procissão, compreendendo um espaço
de devoção, realizada no início do período que compreende a quaresma,
expressava o caráter penitencial da espiritualidade franciscana, além de
trazer à tona aspectos da forma de organização social da época, neste
caso, dando enfoque àqueles que compunham o quadro de irmãos ter-
ceiros franciscanos.

Palavras-chave: Procissão; Cinzas; Penitência; Ordem Terceira.

Introdução

A Procissão de Cinzas da Ordem Terceira de São Francisco de


Assis, objeto de análise deste trabalho, constitui um importante aspecto
do caráter penitencial que o movimento franciscano iniciou no século
XII com o patriarca São Francisco de Assis. O santo de Assis, de acordo
com alguns de seus biógrafos e estudiosos, vivia sob o luxo da vida urba-
na medieval. Filho de um rico mercador de tecidos da Itália, Francisco
se depara, no início de sua conversão, com a ganância e com os exageros

Histórias, narrativas e religiões 749


de uma vida mundana, contrastando com a pobreza de uma parcela da
sociedade também existente naquele contexto. Neste cenário, Francisco
decide abandonar a vida que levava e viver na extrema pobreza e dedica-
ção a evangelização, penitência e vida fraterna.
Este período da história foi fortemente marcado pela ideia
de que somente nos mosteiros era possível um verdadeiro encontro
com Deus e efetivas práticas religiosas que conduziriam o indivíduo
à salvação. Temos, portanto, o fortalecimento da espiritualidade mo-
nástica enquanto a vivência leiga era desvalorizada. No entanto, já no
percurso de sua conversão, Francisco não encontra na espiritualidade
monástica a forma como desejava viver a fé e consagrar-se ao serviço
a Deus e à Igreja. Por isso é impulsionado a viver na pobreza, peni-
tência e espírito missionário.
Francisco encontra na penitência uma de suas principais for-
mas do exercício da fé e prática evangélica. Além disso proporciona o
fortalecimento e consolidação da vivência de uma espiritualidade leiga
que encontra espaço fora dos mosteiros e abadias para buscarem tam-
bém a salvação. A partir de então surgem as Ordens Terceiras, asso-
ciações de leigos, com suas estruturas e regras baseadas principalmente
nas normas e práticas das Ordens Primeiras, como é o caso da Ordem
Terceira de São Francisco de Assis.
Como parte das práticas religiosas da Ordem Terceira de São
Francisco de Assis, a Procissão de Cinzas introduz um importante perí-
odo da Igreja Católica, a Quaresma. Este tempo é marcado, sobretudo,
por práticas de penitência, no intuito de levar o fiel a uma reflexão sobre
a condição miserável do homem que é pecador.
Em Ouro Preto a procissão, baseada na cerimônia ocorrida e
Portugal, trazia elementos ilustrando a brevidade da vida, a prática peni-
tencial de Francisco, entre outros elementos que compunham o cortejo
e levavam os membros da Ordem e demais fieis às reflexões sobre a vida
e a necessidade da salvação de sua alma.
Veremos neste artigo como a procissão era organizada e con-
duzida pelos membros da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de
Ouro Preto, buscando uma reflexão por meio da temática da penitência

750 Histórias, narrativas e religiões


e sua presença no movimento leigo fortalecido por Francisco ainda na
Idade Média.

A penitência em Francisco: base para a


espiritualidade de seus seguidores

No final do século XII e início do XIII, a Itália viu surgir uma


figura marcante que trouxe um novo viés às práticas de evangelização,
assim como influenciou nas relações sociais da Alta Idade Média. São
Francisco de Assis, canonizado pelo papa Gregório IX em 1228, teve a
história marcada por uma profunda transformação.
Um jovem, filho de um rico mercador decide abandonar todas
as suas riquezas para dedicar-se a uma vida de pobreza, evangelização
e penitência. A história do santo de Assis é registrada por biógrafos –
especialmente Tomás de Celano e São Boaventura. Criado no luxo e
sob costumes dissolutos não se atentava muito aos costumes religiosos,
levando uma vida de vanglória e futilidades que o levava à fama entre
seus amigos. (PEDROSO, 1991, p. 180).
Como nos afirma Pedroso:

Este é, pois, um homem que vive no pecado com paixão juvenil.


Arrastado pelos impulsos de sua idade, pelas tendências da juventu-
de e incapaz de controlar-se, poderia sucumbir ao veneno da antiga
serpente. Mas a vingança, ou melhor, a misericórdia divina, subita-
mente desperta sua consciência mediante angústia espiritual e en-
fermidade corporal, conforme as palavras do profeta: Fecharei com
espinhos seu caminho, cercá-lo-ei com um muro. 282

Debilitado então por uma enfermidade, desconhecida também


por seus biógrafos, foi tomado por sentimento de conversão e de despre-

282  PEDROSO, Frei José Carlos. O.F.M. São Francisco de Assis. Escritos e biografias de
São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. 6ª ed.
Petrópolis. Editora Vozes. 1991, p 181.
Histórias, narrativas e religiões 751
zo pelas coisas antes veneradas e amadas. (PEDROSO, 1991, p. 182).
Daí em diante, parece-nos que o jovem Francisco se deixa levar pelo que
considerou um chamado de Deus em sua vida, desprezando a riqueza
em uma radicalidade até então não expressada. Francisco, a partir de
então, se entrega a uma vida de pobreza e renuncia à tudo que possuía,
incluindo sua casa e família.
Essa renúncia percorre a rotina urbana em que vivia Francisco.
Brevemente expondo, segundo o historiador Jacques Le Goff, a cida-
de medieval, tomada na época por um desenvolvimento demográfico e
econômico, impulsionado em partes pela imigração de camponeses para
os núcleos urbanos, além do desenvolvimento de uma “industrialização”
constituída por três principais núcleos, “a construção, o de tecidos e o curtu-
me” era palco de vanglorias e disputa por poder. (LE GOFF, 2010, p. 23)
A cidade se torna então o local onde se concentra as principais
relações, compras, vendas e demais práticas sociais, incluindo as reli-
giosas, muitas vezes acrescidas de ganância. É nesse cenário que vive o
jovem Francisco.
Em resposta a esse contexto, Francisco, dedica-se a uma vida de
penitência e oração, observada também por seus seguidores. A penitên-
cia, como auxílio na renúncia dos bens terrenos, impulsiona Francisco
em seus novos ideais. Para o homem que se deixa levar pelas paixões,
como era o caso de Francisco, deus concede a reconciliação por meio da
penitência, de modo que sua vida se converta a Deus.283 De fato, pare-
ce-nos que foi esse o caso de Francisco. Não encontrando mais sentido
em tudo que possuía, prefere a pobreza e a penitência como forma de
conversão e nova maneira de viver e se satisfazer.
Quando no início do seu processo de conversão e prática
apostólica, Francisco não encontra nas ordens monásticas a maneira
adequada a seus desejos para exercer aquilo a qual era chamado. Temos
um Francisco que poderia ser considerado herege por suas práticas
de pobreza e miséria completa, por seu desejo de igualdade e tantas
outras práticas um tanto exageradas para o contexto religioso em que
vivia. No entanto, Francisco permaneceu ligado firmemente à Igreja,

283  Cf. Celebração da Penitência, p 15.


752 Histórias, narrativas e religiões
principalmente por sua necessidade dos sacramentos. (LE GOFF,
2010, p. 110-113)
Gustavo Henrique Barbosa (2010, p. 20) nos apresenta uma
questão relevante para entender a espiritualidade franciscana em seu
caráter penitencial, um dos principais aspectos dessa espiritualidade. O
autor discute a transição ocorrida no período medieval na estrutura das
Ordens Religiosas. Para ele os séculos X e XI foram marcados pelo fe-
chamento da Igreja gerando uma ideia de que a verdadeira busca pela
salvação e vivencia profunda do cristianismo se dava na vida em mos-
teiros e abadias, pois somente ali era possível a fuga dos pecados que
se explicitavam no cotidiano leigo. Ao contrário, nos mosteiros, eram
observadas regras rígidas que afastavam o indivíduo das tentações mun-
danas. O autor nos aponta que

O advento do comércio, o aumento do número de cidades e a nas-


cente mentalidade do lucro desafiavam as estruturas sociais vigen-
tes. Tais transformações acirraram as clivagens sociais e criaram
uma imensa camada de pobres, mendigos e desclassificados que
vagavam pelas cidades levando os cristãos a novas interrogações
sobre vida e fé.[...] 284

A partir destas questões, surgem alguns movimentos na Igreja


que passaram a questionar a vida monástica como único canal para a
salvação, além das dificuldades envolvidas no acesso que a população
possuía ao Evangelho somado à vida luxuosa do clero. Questões essas
que entraram em contraste com o emergir de indivíduos desprovidos
na sociedade. Ainda segundo Gustavo Henrique Barbosa, foi na Itália
que essas novas possibilidades de exercício da fé foram iniciadas, espa-
lhando-se pela Europa através dos movimentos que surgiam. Diante
disso temos o surgimento do movimento franciscano que, mais do que
qualquer outro movimento Católico na época citada, dedicava as aten-
ções aos excluídos da sociedade como menciona o autor. (BARBOSA,
2010, p. 23):

284  Barbosa. Gustavo Henrique. Associações religiosas de leigos e sociedade em Minas colonial: Os
membros da Ordem terceira de São Francisco de Mariana (1758-1808), Belo Horizonte, 2010,
p. 21.
Histórias, narrativas e religiões 753
É nesse contexto de renovação da espiritualidade, de possibilidade
de viver a fé em meio às tentações do mundo, por meio do acesso
ao evangelho e de um estilo de vida austero, que a mensagem de
São Francisco de Assis e de suas três ordens religiosas – A Ordem
dos Frades Menores (1209), a Ordem das Pobres Clarissas (1212)
e a Ordem Terceira de São Francisco (1289) – adquire sua funcio-
nalidade. Seu rápido crescimento e sucesso entre religiosos e leigos
se explicam pelo diálogo preciso de seus objetivos e doutrina com a
realidade de seu tempo.285

É neste meio e, a partir das questões apontadas que surge o


caráter penitencial na espiritualidade. Inspirado na pobreza evangélica,
São Francisco de Assis abdicou de seus bens para viver uma vida peni-
tente e de constante anuncio do evangelho entre os pobres, difundindo a
mensagem de uma vida simples e pautada em renúncias e sacrifícios que
levariam à santificação do indivíduo. (BARBOSA, 2010, p 24)
Para Jacques Le Goff, (2010, p. 59) Francisco, um jovem que
passava seu tempo com divertimentos como jogos, bate-papos e can-
ções, no ócio e nas atrações dos melhores tecidos da moda como quem
imitava os nobres, passa então a uma vida penitente, entregue à pobreza
e ao anuncio do Evangelho, o que mudaria sua vida de uma vez por to-
das, dando origem a grupos de seguidores e imitadores do seu exemplo.
Francisco transforma sua vida em constante entrega ao projeto de evan-
gelização. Como nos afirma Le Goff

[...]A conversão caminha. Ele será um dos maiores santos da his-


tória do cristianismo. Mas levará para sua nova vida as paixões da
juventude: a poesia e o gosto da alegria – poesia e alegria que de pro-
fanas se farão místicas; a prodigalidade, que consistirá em espalhar
não o dinheiro, mas a palavra, as forças físicas e morais, ele próprio,
total; o ardor militante que permitirá a ele resistir a todas as prova-
ções e se lançar sobre todas as fortalezas erguidas no caminho da
salvação de seus irmãos, sobre Roma, sobre o sultão, sobre o pecado
sob todas as formas.286

285  Ibidem, p. 23.


286  LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis. Trad. Marcos de castro. 9ª ed. – Rio de Janeiro:
Record, 2010, p. 62.
754 Histórias, narrativas e religiões
É importante atentarmos, nas palavras do autor, que Francisco
não abandonou suas características mas as transformou pelo esforço de
uma vida penitente dedicada ao que decidira abraçar a partir daquele
instante. Diante disso temos um legado deixado por ele em relação a
seu carisma que envolveria todos os ramos do movimento franciscano a
partir dele. As três ordens que vieram a se formar com os ensinamentos
de Francisco demonstram a força do testemunho e obras do santo. São
elas: a Ordem dos Frades Menores, a Ordem das Clarissas e a Ordem
Terceira. Dentre elas destacaremos a Ordem Terceira, formada por lei-
gos que desejassem viver o carisma franciscano.
Le Goff (2010, p. 38) nos diz que, a partir desse momento,
os leigos ganham maior participação na vida religiosa, assim como os
consagrados, podem se dedicar a uma “vida verdadeiramente apostólica”.
Apesar de já serem inseridos na realidade religiosa das ordens monás-
ticas, é com o movimento franciscano que a participação leiga ganha
importante função e estrutura dentro da Igreja. É em 1221 que temos
o estabelecimento, com aprovação do papa Honório III, da Venerável
Ordem Terceira da Penitência, ou posteriormente, Ordem Terceira de
São Francisco de Assis, que se expande pela Europa e territórios euro-
peus além mar.
Já no Brasil, quando observamos os passos que deveriam ser
dados pelo pretendente à Irmão Terceiro, nos atentando para o caminho
de noviciado e a profissão do mesmo junto as demais regras estabeleci-
das, a impressão que temos é que a associação transcendia à experiência
leiga e adentrava à vida religiosa. Isso se dá pelo fato de que os Irmãos
Terceiros seguiam, justamente, as diretrizes da Regra Franciscana e se
assemelhavam à Ordem dos Frades Menores em sua estrutura, como
o noviciado e os votos de profissão como Irmão Terceiro, assim como
pelo uso do habito e do cordão cingindo a cintura. Além disso, podemos
destacar algumas práticas espirituais e rituais da Ordem que respeita-
vam datas dedicadas ao Santo fundador e festas do calendário litúrgi-
co, como o dia quatro de outubro em que se comemora o dia de São
Francisco de Assis.

Histórias, narrativas e religiões 755


Adalgisa Arantes Campos (1999, p. 121-134) nos indica que
isso se dava em grande medida pela ausência de ordens regulares e que
por isso os terceiros assemelhavam suas práticas aos religiosos francis-
canos. Como já citado, passavam por um período de um ano de novi-
ciado, faziam os votos de profissão, participavam de procissões e festas
litúrgicas. A autora ainda destaca que nas procissões os irmãos terceiros
tinham lugar de destaque alegando que não eram uma simples confraria
e por isso deveriam obedecer a uma hierarquia.

A Procissão de Cinzas

Destacamos que a Igreja na colônia dava importância aos ri-


tos exteriores, não somente nas ordens religiosas mas no cotidiano das
irmandades. Por estarem sob os reflexos das normas tridentinas, em-
basadas nas Constituições Primárias do Arcebispado da Bahia, obser-
vavam também as práticas exteriores da fé, como procissões, via sacras,
podendo dessa maneira, demonstrar ao povo os possíveis caminhos a
serem seguidos por aqueles que pretendiam alcançar a salvação da alma
e levar uma vida dedicada aos assuntos de Deus. Além das práticas de
jejum e confissão, os Irmãos Terceiros deveriam observar algumas cele-
brações religiosas em que participariam, entre elas, também sinalizando
o caráter penitencial da Ordem, estava a Procissão de cinzas. Quanto a
elas Adalgisa Arantes Campos nos aponta para algumas datas que eram
guardadas por eles

[...]Estes faziam ordinariamente a cerimônia da profissão de seus


membros, a procissão da Penitência na Quarta-feira de Cinzas; cele-
bravam a Quinta-feira Santa ou de Endoenças (do latim indulgen-
tiae) com sermão do Mandato, Lava-pés e Exposição do Santíssimo
à veneração dos devotos; exercícios espirituais às segundas, quartas e
sextas-feiras da quaresma; Sermão da Paixão e da Soledade na Sexta-
feira da Paixão; a festa da padroeira (Nossa Srª da Porciúncula) em
02 de agosto; Quinqüena das Chagas nos cinco dias anteriores ao

756 Histórias, narrativas e religiões


17 de setembro, a festa do Patriarca em 4 de outubro e aquelas refe-
rentes aos santos franciscanos[...] 287

Fig. 1: Imagem de São Francisco de Assis localizada no altar mor da Capela de São
Francisco de Assis de Ouro Preto. Foto: Milena Frigi Nunes.

Observando o destaque que a Ordem atribuía a questão da pe-


nitência, muitos elementos na prática da devoção franciscana evocavam
a mortificação. “Na arte dos terceiros são abundantes os crucifixos, a
representação da palma do martírio, cravos, disciplina, cilícios, chicotes,

287  CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Ordens terceiras de São Francisco nas Minas Coloniais:
Cultura artística e procissão de Cinzas”. In: Estudos de História (UNESP). Franca, v. 6, n. 2,
1999, p. 121-134.

Histórias, narrativas e religiões 757


ampulhetas, crânios, rosário, atributos para ajudar na penitência e na
santificação” (CAMPOS, 1999).
A imagem de São Francisco de Assis do Altar Mor da Capela
da Ordem Terceira Franciscana de Ouro Preto, colocada abaixo, era
conduzida na procissão de cinzas. Ela traz o santo com um crânio e uma
cruz nas mãos. Nela podemos observar a temática da penitencia exposta
pela autora.
A Procissão de Cinzas pretendia recordar o povo de sua con-
dição de pecadores e frágeis diante das tentações mundanas e que, por
isso, deveriam se colocar em postura de penitência para que suas almas
fossem purificadas e dessa forma se aproximassem do sagrado.
A procissão tornou-se um dos principais eventos religiosos na
colônia, praticada pelas Ordens Terceiras Franciscanas, reunia a popula-
ção em torno da fé penitente que caracterizava o início do tempo qua-
resmal. Neste dia os fiéis celebram o início de um dos principais tempos
vividos no calendário católico pois reúnem-se à volta do percurso vivido
por Cristo na terra e seu legado, como nos aponta Alvez

A Quarta-feira de Cinza, com a cerimónia da imposição das cinzas


e com a realização da Procissão de Cinza, dá início ao período da
Quaresma que deve ser entendido como uma preparação da Páscoa,
o mais importante ciclo da vivência cristã já que, ao celebrar-se a
vida e a morte de Cristo, anuncia-se também a sua Ressurreição e
a promessa de uma vida eterna para todos aqueles que seguirem as
Suas palavras e acreditarem na Sua mensagem redentora.288

Por isso era dada atenção especial a este período do ano e às


celebrações que o envolviam. Além da importante celebração, os indiví-
duos eram levados a refletir a respeito da brevidade da vida neste mundo
sendo conduzidos a pensar a respeito da morte e do pecado que conduz
à perdição.
Para compreendermos melhor como se dava a dinâmica da
procissão, recorramos a Adalgisa Campos analisa como se dava a pro-
cissão e alguns de seus principais elementos.

288  ALVEZ, Natália Marinho Ferreira. A Procissão de Cinza e a Ordem Terceira de São Francisco
do Porto: análise de um esquema devocional. In: Os Franciscanos no Mundo Português: Artistas
e obras I. III Seminário Internacional Luso-Brasileiro, Rio de Janeiro, 2008, CEPESE, p. 422.
758 Histórias, narrativas e religiões
Na Procissão de Cinzas saíam originalmente os santos leigos (pe-
nitentes), a padroeira da ordem – N. Sa. da Conceição –, cenas
alusivas à vida do poverello e algumas extraídas do Gênesis, relativas
à criação do homem, à desobediência e à punição de Deus através da
imposição da morte (Gn 3, 19). Eram essas as invocações básicas do
cortejo, com o sentido de mostrar ao devoto a narrativa da criação
e da queda, o martírio e a redenção de Jesus, de suscitar nele uma
reflexão sobre a morte corporal, a vaidade e transitoriedade de tudo
que é mundano (Ec 1, 2, 3)289

Neste sentido, a cerimônia demonstrava à população da época


a importância das mortificações e penitências para se alcançar a salvação
e a purificação da alma, principalmente no tempo que compreendia a
quaresma, pois consiste num tempo propicio para tais práticas.
Ainda hoje essas datas são observadas no calendário da Igreja
Católica. A procissão de Cinzas era uma das mais importantes da Ordem.
Demonstrando a penitência como um dos principais carismas franciscanos,
esta procissão tinha importância especial no calendário da Congregação.
Campos (1999) relata como se dava a cerimônia em Vila Rica. Segundo
ela a procissão era marcada por cenas do livro de Gênesis como Adão e
Eva no paraíso diante da árvore da ciência com uma cobra enrolada, por
imagens de São Francisco em seus principais momentos como quando
recebe as Chagas do Cristo Crucificado e a Regra, autorizada pelo papa
Honório III. Além disso, traz outras cenas como o amor de Francisco a
Deus representado por seu abraço a Cristo na cruz, a morte na expressão
de roupa contendo pintura de um esqueleto. Traziam também a cruz e o
andor da Ordem, além de outras representações.

E, dentro desse escalonamento simbólico, aparecia o andor com


Cristo Crucificado, finalizando o cortejo. Cada andor possuía
quatro sanefas e até complicados arranjos de tecidos sustentados
internamente por varas de madeira formando montes (por ex. o
Alverne), nuvens, elementos caracterizadores da cena histórica ou
da aparição sagrada.290

289  CAMPOS, Adalgisa Arantes. Semana Santa Na América Portuguesa: Pompa, Ritos e
Iconografia. Belo Horizonte, UFMG, 1999, p. 1202.
290  CAMPOS, Adalgisa Arantes. As Ordens terceiras de São Francisco nas Minas Coloniais:
Histórias, narrativas e religiões 759
Durante os quarenta dias que compreendiam o tempo quares-
mal, os terceiros eram convidados a praticar exercícios espirituais princi-
palmente nas segundas, quartas e sextas feiras. No último dia de cada se-
mana, dedicavam-se a Via-Sacra recordando a Paixão de Cristo. Ainda
compreendia esse tempo o Domingo de Ramos e a Semana Santa, úl-
tima semana da quaresma, que iniciava-se com a celebração da quin-
ta-feira estendendo-se até o Sábado de Aleluia. Todas as celebrações
quaresmais eram marcadas pelo caráter penitente da Ordem e carisma
franciscanos, recordando a morte de Cristo e a morte das vaidades hu-
manas. (CAMPOS, 1999)
No entanto, a forma como se conduzia a Procissão da Penitência
ou Procissão de Cinzas, nos atenta para a ostentação de privilégios e sta-
tus possuídos pelos membros da Ordem. Acerca das questões sociais que
envolviam as irmandades na colônia, podemos considerar que a Ordem
Terceira de São Francisco de Assis, por ocupar lugar privilegiado na so-
ciedade e abrigar membros de maior prestigio social, demonstrava com
a procissão a ideia de superioridade e riqueza, ao passo que o sentido da
mesma deveria convergir para a pobreza e penitencia.
Este fator é apontado por Natália Marinho Ferreira-Alves
(2008, p. 425-426), em estudo da Procissão de Cinzas da Ordem Terceira
de São Francisco do Porto, nas questões que envolvem as representações
da procissão. Elementos ricos, tecidos sofisticados e um certo exagero no
conduzir da cerimônia e no número de elementos constituindo o cor-
tejo, nos aponta para o contrário de pobreza e vida penitente. Os mem-
bros da mesa administrativa da Ordem possuíam lugares específicos e
privilegiados na procissão. Segundo ela é necessário atentar-se ao fato
de que, ser irmão terceiro também significava ter elevado prestigio social
e possuir alguns privilégios comparando-se ao restante da população.
Por fim destacamos que, com todos esses aspectos considera-
dos, a procissão pretendia expor uma das maneiras encontradas pelos
terceiros franciscanos para relacionarem-se com o sagrado e demonstrar
sua fé, legitimando as práticas e a presença da Ordem terceira na capi-
tania mineira.
Cultura artística e procissão de Cinzas”. In: Estudos de História (UNESP). Franca, v. 6, n. 2,
1999, p. 121-134.
760 Histórias, narrativas e religiões
Conclusão

Como percebemos no decorrer do texto, a Procissão de Cinzas,


praticada pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis, trazia em seu
curso a temática da penitência como forma de expor a seus componen-
tes e ao povo mineiro a brevidade da vida, a condição pecadora do ho-
mem e a necessidade do exercício penitencial como forma de aproximar
o homem de Deus e alcançar a salvação.
Com suas bases fixadas na cerimônia que era conduzida pela
Ordem Terceira em Portugal, no Brasil percebemos elementos muito
similares àqueles, que demonstram a forma como deveria ser conduzida
a procissão. Dessa maneira vemos que, como componente das práticas
religiosas da Ordem Terceira, a procissão exprimia o sentido penitencial
da mesma, demonstrando de forma pública um pouco do cotidiano da-
queles que compunham a irmandade.

Referências

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762 Histórias, narrativas e religiões


Negra Devoção - Leitura da cosmologia
Bantu “escrita com a luz” nas festas de N.
Sra. do Rosário e de São Bendito

Marco Antônio Fontes de Sá (PUCSP)

Resumo: As festas do afrocatolicismo no Brasil são baseadas, principal-


mente, na devoção a N. Sra. do Rosário e São Benedito. Acontecem em
vários estados brasileiros com várias características comuns e algumas
bem singulares. Seu ponto alto são procissões realizadas por grupos co-
nhecidos como ternos ou guardas que se distinguem pelos nomes, tais
como moçambiques, congos, marujadas, ticumbis, cacumbis, catopés, e
que se distinguem pelo papel que assumem no caminhar das procissões,
nos instrumentos usados e na forma de se vestir. Todavia, festas popu-
lares religiosas no Brasil acontecem em ciclos simultâneos, o que limita
a quantidade que é possível acompanhar num período de mestrado ou
doutorado. Eu fiz um caminho inverso. Levantei o material fotográfico
no campo durante quase uma década e tenho agora um vasto material
para, no ambiente acadêmico, fazer comparações e avaliações, embasado
por um referencial teórico conceituado, para mostrar os elementos da
cultura Bantu que estruturaram essa devoção no período escravocrata e
que a mantém viva até hoje.

Histórias, narrativas e religiões 763


A festa da Cabocla: Uma análise sobre
a celebração da festa da cabocla Dona
Jandira no templo de Candomblé Ilé Asé
Iyá Ogunté no Pará

Yasmin Estrela Sampaio (UNAMA)

Resumo: O templo da religião africana Ilé Asé Iyá Ogunté é localizado


no estado do Pará, na cidade de Ananindeua, dirigido pela Yalorixá Iyá
Ejité. Esta pesquisa remonta a trajetória da sacerdotisa que ao longo de
sua vida teve passagens pela religião católica na sua infância, passando
para a Umbanda e posteriormente para o Candomblé. A passagem pela
Umbanda permitiu que ela preservasse elementos da mesma e os levasse
para o Candomblé, como foi o caso da Cabocla Dona Jandira. A con-
figuração afro-religiosa no estado do Pará segundo Luca (2003) possui
como característica marcante a presença dos caboclos, pois, os sacerdo-
tes presentes na região eram praticantes principalmente da Umbanda
e do Tambor de Mina e para se iniciar no Candomblé eram chamados
sacerdotes da Bahia ou os mesmos dirigiam-se para o estado para serem
iniciados. Essa transição manteve elementos, que por questões espiritu-
ais não poderiam ser descartados. É o que ocorre com a Dona Jandira
que possui uma celebração especial todos os anos conhecida como a
“Festa da Dona Jandira” celebrada em 01 de Maio no terreiro Ilé Asé
Iyá Ogunté de nação ketu, mas que mobiliza e remonta elementos tra-
dicionais da Umbanda permitindo uma conexão entre o indivíduo e o
mundo sagrado através das manifestações presentes na festividade, con-
figurando o espaço através do simbolismo. O espaço torna-se então um
elemento carregado de símbolos e significados que proporciona uma
proximidade com o sagrado e o separa da realidade cotidiana.

Palavras-chave: espaço sagrado; caboclo; simbolismo; umbanda; candomblé

764 Histórias, narrativas e religiões


1. Introdução

O presente texto foi elaborado tendo como base a minha expe-


riência de um trabalho de campo na região de Ananindeua, em Belém
do Pará realizado no ano de 2016 no terreiro de candomblé Ilé Asé
Iyá Ogunté onde desenvolvi uma pesquisa tratando-se do fenômeno
religioso dentro da Geografia tendo como princípio as religiões de ma-
triz africana, a construção do espaço sagrado e do território religioso. O
trabalho foi construído a partir de pesquisas bibliográficas envolvendo
os autores como Zeny Rosendahl, Gil Filho, Sérgio Ferreti, Roberto
Lobato Corrêa Reginaldo Prandi, Márcia Sant’Anna, Taissa Tavernard
de Luca, Vagner Gonçalves da Silva e Marilu Campelo.
As narrativas construídas a partir de entrevistas cedidas pela
dirigente da casa, a Yalorixá Iyá Ejite, contribuíram amplamente para
a contextualização e construção desta pesquisa baseando-se nas teorias
discutas dentro dos campos acima citados para o progresso desta narra-
tiva. Porém o principal ponto desta pesquisa é discutir a respeito de uma
celebração que ocorre todos os anos na casa: A festa da cabocla Dona
Jandira, sabendo que o referido terreiro é de candomblé ketu, onde não
é tradição haver o culto aos caboclos. No entanto segundo Campelo e
Luca (2007) o candomblé foi introduzido em Belém por iniciativa de
alguns paraenses que eram iniciados na Umbanda ou na Mina que iam
à Salvador “fazer o santo” ou da importação de pais e mães de santo que
se dirigiam a região com essa finalidade porém acabavam se instalando
na cidade. Portanto, as interações entre as tradições religiosas permitem
que elementos como o caboclo faça parte da tradição do candomblé.
O período da chegada dos cultos de matriz africana no Pará
ocorre no final do século XIX no período da exploração da borracha no
estado com a migração de nordestinos para trabalhar nos seringais tra-
zendo consigo suas referências culturais (CAMPELO; LUCA, 2007).
Porém, o candomblé organiza-se apenas a partir de 1970 onde divide e
reorganiza o campo afro-religioso trazendo para discussão temas como
identidade religiosa e cultura negra (CAMPELO, 2013). Segundo a
última autora citada, o Candomblé foi instaurado por meio de alguns
Histórias, narrativas e religiões 765
paraenses que iam à Salvador fazer o santo, e pela permanência dos pais
e mães de santo que vinham à Belém para iniciar seus filhos e acaba-
ram alojando-se na cidade e fazendo parte da memória afro-religiosa
(CAMPELO, 2013).
Para Luca (2007), a tradição e a história do Candomblé, gi-
ram em torno de candomblecistas e sua memória seletiva e quantita-
tiva que se refere a uma descendência e a formação de uma rede de
relações familiares que são o suporte da socialização religiosa. Para a
autora, a história do candomblé em Belém gira em torno da vida de
Pai Astianax - Astianax Gomes Barreiro - iniciado em Salvador em
1952 sendo o primeiro paraense iniciado nesta categoria de culto, a
feitura291 para o orixá Oxumarê. Viveu 10 anos em Salvador e Rio de
Janeiro voltando para Belém em 1968 com o objetivo de se estabe-
lecer e implantar o candomblé, porém sem êxito. Mesmo não conse-
guindo, Pai Astianax tornou-se referência na história do movimento
afro-religioso em Belém falecendo em 2003 onde “fechou um ciclo de
retorno às raízes e de definição do Candomblé no campo paraense”
(CAMPELO; LUCA, 2007, p. 21).
Segundos as autoras, a expansão do Candomblé em Belém
é demonstrada pela visibilidade dos terreiros, onde há a formação de
grupos sociais que possibilita a troca e mediações no campo religioso
paraense.

O Candomblé em Belém não teve uma entrada harmoniosa na cida-


de, pelo contrário, a busca por esta modalidade é uma estratégia tra-
zida na busca pela legitimação. Alguns iniciados optaram por tentar
manter um culto mais africanizado, seguindo o modelo baiano pure-
za; outros tentaram manter os dois cultos, retomando suas atividades
religiosas cotidianas como “mineiros” e festejando apenas o seu orixá.
Esses só pagam obrigação nem festejam “orixá” anualmente. Os “mi-
neiros” que se misturaram passaram a ser criticados pelos “candom-
blecistas” na medida em que “misturam” os dois rituais criando o
que chamam pejorativamente de “minomblé” (CAMPELO; LUCA,
2007, p. 23).

291  Significa “ser feito”, iniciado no candomblé por um sacerdote oriundo da Bahia, ou que
tenha se deslocado à Belém com este objetivo (CAMPELO, 2013).
766 Histórias, narrativas e religiões
A história do Candomblé é marcada pela luta e pela resistência
dos negros a um regime escravista e excludente que separou inúmeras
famílias, nações e tribos que mediante a tantos acontecimentos negati-
vos, uniram-se através de um fator comum: a religião. A formação do
sistema afro-religioso demonstra como a religião e seus elementos cul-
turais foram de suma importância para a formação linguística e contri-
buíram para constituir grande parte da cultura brasileira.
Os terreiros e espaços de candomblé são lugares de resignifica-
ção da memória não só da cultura africana que veio ao Brasil, mas sim da
cultura que faz parte do Brasil. A preservação é perceptível na reverência
às divindades e na conservação dos rituais e da língua das denominadas
“nações” onde se divide o Candomblé, sendo os terreiros espaços alta-
mente sagrados onde é possível a comunicação do mundo externo com
o mundo dos orixás (SANT’ANNA, 2006).
Portanto, o terreiro Ilé Asé Iyá Ogunté busca através da tra-
dição, estabelecer e evidenciar o seu espaço sagrado por meio das suas
práticas e dos símbolos que compõe a casa e a caracterizam como espaço
sagrado. Sendo originalmente uma casa de nação ketu, o referente ter-
reiro possui práticas que decorrem de denominações anteriores da sua
representante, a Yalorixá Iyá Ejité e que configuram o espaço a partir
da organização dos seus elementos simbólicos da umbanda juntamente
com o candomblé.

2. A configuração espacial do terreiro Ilé Asé Iyá


Ogunté

Fundado em 12 de abril de 2003 o Ilé Asé Iyá Ogunté é dirigi-


do pela Yalorixá Iyá Ejité cujo nome civil é Rita de Cássia Azevedo lo-
calizado na cidade de Ananindeua no Pará em um conjunto habitacio-
nal chamado Júlia Seffer. A trajetória da Yalorixá construiu e constitui o
espaço que hoje é a sua casa de Candomblé. Através de entrevistas con-
Histórias, narrativas e religiões 767
cedidas por Iyá Ejité, foi possível acompanhar a trajetória da sacerdotisa
primeiramente pela religião católica e posteriormente a umbanda.
Segundo ela, a sua infância foi marcada por um problema de
saúde diagnosticado como epilepsia. Porém, Iyá Ejité o compreende
como a manifestação mediúnica de uma entidade espiritual através das
convulsões, que pioram com o decorrer do tempo sem soluções através
dos remédios receitados por médicos especialistas. Com muita resistên-
cia e através de uma tia chamada Raimunda que frequentava uma casa
de umbanda, sua mãe decide levá-la e a partir daí ela é iniciada nos prin-
cípios da Umbanda sendo filha de Iemanjá guiada pela cabocla Dona
Jandira. Portanto se inicia a sua jornada pela religião.
Passado os dezessete anos na casa, depois de muitos ensina-
mentos, desenvolvimento da sua mediunidade, já não havia mais os
ataques epiléticos, agora comprovado que estes eram manifestações sa-
gradas no corpo da Iyá Ejité, o mesmo sacerdote que a iniciou sugere
que ela agora siga o seu caminho e ela se retirou da casa, comprou uma
imagem de Iemanjá e passou dois anos reclusa. Após os anos de reclu-
são, ela conhece o babalorixá apresentado pela sua tia que irá iniciá-la
no Candomblé. Portanto Iyá Ejité é uma yalorixá que iniciou a sua vida
espiritual na Umbanda e mantém seus elementos embora sua casa seja
de Candomblé de nação ketu, por uma questão de devoção espiritual,
tendo em vista que a yalorixá alega não poder excluir a sua Cabocla do
Candomblé, pois foi ela que desenvolveu a sua mediunidade e a prepa-
rou para a vida espiritual como sacerdotisa.

A questão Brasil principalmente nós do Norte, a gente tem a ques-


tão do caboclo muito forte. Eu te digo assim, se não cem mas no-
venta e nove vírgula nove por cento das pessoas que são de ketu hoje,
são de candomblé, seja angola, seja ketu, seja jeje, são pessoas que ti-
nham seus caboclos. São pessoas que eram da mina, a maioria. Você
tem muito poucas pessoas que dizem assim, ah fulano nasceu no
Candomblé entendeu? Porque o Candomblé em si, ele não... Porque
se você for em África não existe caboclo em África, caboclo é Brasil,
afro-brasileiro nossos caboclos são afro-brasileiros. Aí você dá cabo-
clo a sua vida inteira e vai fazer ketu como eu, passei dezessete anos
na umbanda dando minha cabocla Jandira aí fui raspar pro ketu. Eu

768 Histórias, narrativas e religiões


vou pegar a Jandira e jogar no lixo? Foi ela que me trouxe, foi ela que
abriu a minha mediunidade, foi ela que iniciou todo o meu processo
médium. Então no Brasil isso é muito forte, como te digo quase no-
venta, cem, noventa e nove por cento das pessoas, elas tem essa raiz.
Então, existe a questão do caboclo (Iyá Ejté, entrevista realizada em
01 de novembro de 2016).

Por esta configuração religiosa, são mantidas determinadas tra-


dições em algumas nações de Candomblé ketu no Pará. No terreiro há
uma bandeira que simboliza a presença de caboclos na casa, a bandeira
do Tempo que é erguida no mastro demonstrando segundo Iyá Ejité,
a paz. Todos os anos durante a celebração da festa da Dona Jandira, a
bandeira é trocada onde todos que estão presentes têm de escrever o seu
nome na bandeira que significa a elevação da vida durante aquele ano a
oportunidade de escrever o seu nome na bandeira que significa a eleva-
ção da vida durante aquele ano.
A questão do Tempo em uma nação ketu possui uma série de de-
bates que envolvem a discussão do sincretismo religioso. Segundo Ferreti
(2007), os que mais defendem a questão da “pureza nagô” são os praticantes
do candomblé ketu, que justamente buscam preservar os ritos trazidos pelos
africanos ao Brasil opondo-se ao sincretismo religioso. Porém, entende-se
que a pureza com o passar dos anos perde o sentido, pois segundo o autor,
as religiões são compostas e continuamente reconstruídas.
Campelo (2013) afirma que há um marco divisor no campo afro-
-religioso paraense construído por um discurso dessas pessoas, que valori-
za a feitura, mesmo que o sacerdote seja reconhecido e de grande clientela,
era recomendado ele ser feito, e a construção de dois grupos: ketu e angola
buscando manter variações internas que marcam suas identidades.
O ritual ketu ressalta as tradições provenientes dos povos ioru-
bás, predominantes das tradições de angola, congo, jeje e ijexá e mantém
a ênfase no conjunto de divindades de 16 Orixás, com outros nomes
ou características além dos principais (CAMPELO; LUCA, 2007). Por
fazer parte da nação nagô, de acordo com seus praticantes, é considerado
o rito mais puro por manter as tradições preservadas com maior inte-
gridade, enfatizando o legado das religiões sudanesas. Porém a noção de

Histórias, narrativas e religiões 769


“pureza” e “deturpação” no candomblé é fortemente discutida por estu-
diosos das religiões afro-brasileira (SILVA, 2005).
Segundo o autor, os terreiros que praticando o rito jeje-nagô
cultuam os orixás, voduns, erês (espíritos infantis) e os caboclos (espíri-
tos indígenas). Os terreiros que cultuam somente os orixás são conhe-
cidos como candomblé ketu e os que cultuam voduns de candomblé
jeje. Nos terreiros que prevalece a noção de “pureza” ritual, são malvistos
os cultos aos caboclos da mesma maneira como o sincretismo com os
santos católicos. Nos rituais suas músicas são cantadas em iorubá ar-
caico com atabaques percutidos com baquetas (o aguidavi), com ritmos
e expressões corporais possuindo sequências específicas nos rituais de
iniciação que consiste na raspagem dos cabelos indicando a chegada de
um novo filho na religião (CAMPELO; LUCA, 2007).
O Tempo tem suas origens no candomblé de nação angola e
significa que a casa possui além dos orixás como divindade, os caboclos
brasileiros. Em ketu não existe o culto aos caboclos, porém, segundo
Campelo e Luca (2007) a organização religiosa dos terreiros no Pará
ocorreu de forma distinta de outras partes do Brasil. No Pará os sa-
cerdotes não pertenciam ao candomblé, grande parte deles pertencia
ao Tambor de Mina, á Pajelança ou á Umbanda e iam para Bahia para
serem feitos no Candomblé ou traziam um sacerdote que viesse à Belém
com essa finalidade.
A partir desta organização espacial do Ilé Asé Iyá Ogunté é
possível compreender a noção de espaço sagrado conforme os estudos
de Gil Filho (2012) que concebe o espaço através da conexão de sentidos
e significados da realidade religiosa do sujeito e ratifica o espaço sagrado
como conformação simbólica292. Logo, a hibridação entre os orixás do
Candomblé e os caboclos, faz parte de uma experiência religiosa que

292  De acordo com Gil Filho (2012) o espaço sagrado discutido como conformação simbólica,
parte da discussão da fenomenologia de Ernst Cassirer sobre a construção da realidade através
da cultura e da significação simbólica onde a religião faz parte do processo de pensamento
humano como uma forma de dar sentido e significado à realidade humana. Portanto, a vivência
não é constituída apenas a partir de fatos, mas também a partir de significados atribuídos à
ela. Logo, segundo o autor, o espaço sagrado é construído a partir das experiências e vivências
que estruturam a dimensão da esfera religiosa que irão configurar o espaço sagrado através das
formas simbólicas.
770 Histórias, narrativas e religiões
estrutura o espaço sagrado atribuindo-lhe símbolos e significados que
compõe e configuram como território religioso delimitando a presença
de cada elemento sagrado presente no terreiro. Os espaços improvisa-
dos para a prática dos cultos são dotados de elementos simbólicos que
reforçavam a identidade das pessoas dentro do território por meio dos
geossímbolos293 (SOUZA, 2010). É possível analisar no espaço do tem-
plo Ilé Asé Iyá Ogunté a importância da simbologia e seus significados
que caracterizam e demarcam o território religioso de acordo com os
sentidos das práticas simbólicas executadas (CORRÊA, 2012).

3. Os caboclos e a Celebração da festa da Dona Jandira

Os caboclos são uma das entidades mais conhecidas dentro das


religiões afro-brasileiras ligados aos elementos da natureza como água,
luz, raios, entre outros e utensílios comuns utilizados pelos povos primi-
tivos indígenas brasileiros como o arco, a flecha, machado (ANDRADE
JÚNIOR, 2014). Os caboclos, segundo Maués (2005) representam seres
humanos que não passaram pelo processo da morte, mas foram “encan-
tados”. No processo de encantamento não envolve nenhum tipo de mé-
rito moral como no caso dos santos, conhecidos por praticarem o bem
enquanto vivos. Segundo o autor, as pessoas se encantam porque são
atraídas por outros encantados para o “encante”, o seu local de morada.
Geralmente o encante se encontra no fundo dos rios e lagos em cidades
subterrâneas ou subaquáticas.

Os encantados, ao contrário dos santos, são seres humanos que não


morreram, mas se “encantaram”. Essa crença tem certamente origem
europeia, estando ligada às concepções de príncipes ou princesas
encantadas que ainda sobrevivem nas histórias infantis de todo o

293  “Um geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma extensão que, por
razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma
dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade” (BONNEMAISON apud SOUZA,
2010, p. 77).
Histórias, narrativas e religiões 771
mundo ocidental. Mas foi influenciada por concepções de origem
indígena, de lugares situados “no fundo”, ou abaixo da superfície
terrestre, e provavelmente também por concepções de entidades de
origem africana, como os orixás, seres que não se confundem com os
espíritos dos mortos (MAUÉS, 2005, p. 262).

Para Andrade Júnior (2014), o caboclo na Umbanda possui


características bastante específicas sendo por vezes apresentado em seu
estado selvagem ou como índio civilizado. As entidades na Umbanda
são identificadas não somente pela sua nomeação, mas também pelas
suas marcas conhecidas como Pontos Riscados e Pontos Cantados.
De acordo o autor, os pontos riscados podem ser compreendi-
dos como um conjunto de símbolos presentes em um círculo que repre-
senta o universo que reúne e organiza todos os elementos humanos, e
possui a função a marca da entidade espiritual e suas características. São
nestes pontos que se encontram elementos que identificam se a entidade
é um caboclo, preto-velho, exu, pomba-gira, entre outras entidades.
Os pontos cantados são para convocar as entidades para a “gira”,
que são os trabalhos mediúnicos. Estes pontos carregam importantes
informações sobre a entidade a qual está se referindo, sendo cantos sa-
grados que não podem ser utilizados de forma aleatória (ANDRADE
JÚNIOR, 2014).

São estas “mensagens” que vão definir as características, as poten-


cialidades, as vibrações, as marcas identitárias e, em muitos casos, o
nome da entidade. Por estes pontos cantados podemos demarcar até
mesmo o espaço em que a entidade (no nosso caso o caboclo) viveu
antes de desencarnar e onde atua na contemporaneidade como enti-
dade mediúnica (ANDRADE JÚNIOR, 2014, p. 226).

Uma das características mais relevantes do Candomblé para-


ense segundo Luca (apud SENA, 2014) é a presença do caboclo, decor-
rente das interações entre umbanda, mina e candomblé. Porém, ainda
existem iniciados que optam pela tentativa de tentar manter uma es-
pécie de culto mais africanizado com a intenção de seguir o modelo de
“pureza” baiano assim como prevalecem práticas religiosas que mantêm

772 Histórias, narrativas e religiões


os cultos com a presença de entidades como o caboclo (CAMPELO;
LUCA, 2007). A própria trajetória da yalorixá descrita nesta pesquisa,
exemplifica o que a autora descreve como interações entre religiões, es-
clarecendo a possibilidade de preservar duas tradições religiosas como o
candomblé e a umbanda.
Portanto, cada manifestação religiosa se torna única em cada
terreiro, sendo então, no Ilé Asé Iyá Ogunté os caboclos não são acomo-
dados conforme um padrão entre casas. Uma única festa é dedicada a
Cabocla Jandira anualmente e no restante do ano o calendário pertence
aos orixás da casa. Apesar de não ser uma festa destinada a um orixá, Iyá
Ejité descreve como a maior celebração da sua casa no dia 1º de Maio.
Neste dia dedicado aos caboclos da casa há uma grande mobilização de
todos os membros do terreiro para organizar e preparar o espaço para a
chegada de Dona Jandira e os demais caboclos. A festa se inicia durante
a manhã, por volta das nove horas começando com a troca da bandeira
do tempo, que simboliza a paz podendo ser assinada pelos que estão
presentes na festa representando a elevação da vida durante aquele ano
seguido do sacrifício dos animais dando início a celebração com os ata-
baques, as danças e os cantos.

Nós temos a festa da dona Jandira e dos caboclos durante o ano todo
ela tem a festa dela. Durante o ano todo é uma das maiores festas
nossa. Aí ela vem e os caboclos todos vem dos filhos, dos convida-
dos. Até os convidados hoje na nossa casa já se comportam do mes-
mo jeito porque ela foi e acabou colocando todo mundo né, nesse
processo aí. Aí se paramentam se enfeitam, nisso, enquanto isso, as
equedes, as yabassés estão preparando porque são feito sacrifícios no
dia da festa dela. É no dia que é feito os sacrifícios pra eles todos, á
todos os caboclos, eles comem exatamente no dia da festa dela. Por
exemplo no Candomblé você corta vinte e quatro horas antes. Na
festa do Caboclo não, é no dia da festa deles. No dia da festa deles é
o dia que é o sacrifício pra eles. Então durante as equedes, as yabas-
ses que são as cozinheiras dos orixás estarem preparando toda essa
comida que vai ser devolvida pra eles. Tem partes do animais que
voltam para os assentamentos e a carne propriamente dita é usada
na festa. Quando elas estão fazendo o inxé, que nós chamamos de
inxé, que são aquelas partes que vão voltar para o caboclo, o caboclo

Histórias, narrativas e religiões 773


tá aqui bebendo, dançando, abraçando quem ele tem que abraçar,
cantando, aquela coisa toda. Dona Jandira criou essa norma pra nos-
sa casa. Quando prepara-se o inxé, que vai ser arriado, a comida pra
eles, quer dizer vai devolver pra eles as coisas, ela arrasta com todo
mundo da nossa casa. Então já tem pessoas que já sabem como é que
funciona a nossa casa, então os caboclos já vem “tudinho” atrás com
ela pra casa dela. Então ali há a reza é arriada a comida é feito todos
os fundamentos, tem a “cura” que é servido a abóbora do caboclo
aquela coisa toda, Dali ela dá mais uma meia hora e ela e os caboclos
começam, já vou e ela já vai embora (Iyá Ejité, entrevista realizada
em 01 de novembro de 2016).

Quando Iyá Ejité fala “aí ela vem e os caboclos”, são as ma-
nifestações nos integrantes que caracterizam a chegada das entidades
incluindo a Dona Jandira recebida pela Iyá Ejité. Essa manifestação,
também caracterizada como hierofania, exemplifica uma conexão entre
o indivíduo com o mundo sagrado onde na perspectiva de Gil Filho
(2012) a realidade religiosa é construída a partir do sentir que a expressa
por meio das narrativas, representações ou performances rituais, como
é o caso da festa da cabocla citada. Portanto, para o autor, são as expe-
riências e as relações que irão configurar o espaço sagrado através do
simbolismo. A religião faz parte desse universo de significados sendo
integrada ao processo de pensamento humano e uma forma de dar sen-
tido às coisas e a vida, portanto, “nesse sentido as buscas se dão em como
o homem instaura os significados das suas experiências” (GIL FILHO,
p. 43), ou seja, é o sujeito que produz as configurações simbólicas no
espaço que seria resultado de diferentes experiências religiosas reunidas
através do homem religioso, o fiel. É a partir desse sujeito que se con-
figuram as dimensões do espaço não se tratando apenas de um espaço
localizável, mas pode ser configurado a partir de dimensões não-mate-
riais que constroem e solidificam as relações enfatizando o sentido e da
realidade religiosa.

774 Histórias, narrativas e religiões


Conclusão

À guisa de conclusão, foi possível observar a partir da configu-


ração afro religiosa de Belém do Pará que a consolidação do Candomblé
no estado ocorreu a partir interações e trocas dentro do campo religioso
como afirma Campelo e Luca (2007). A grande evidência dos caboclos
em muitas casas de candomblé ketu no Pará resulta dessa hibridação re-
ligiosa tendo em vista que os sacerdotes que se iniciaram no candomblé
pertenciam á outras denominações como a Umbanda e a Mina.
Destarte, partindo desta consolidação do Candomblé em
Belém a construção do espaço sagrado configura-se buscando agregar á
este espaço elementos de adaptação onde o caboclo encontra e demarca
o seu território dentro de uma casa de candomblé. A religião segundo
Corrêa (2012) constrói um território religioso que constitui uma di-
mensão espacial da cultura, ou seja, a religião é uma forma de expressão
cultural no espaço que abrange espacialmente determinados conjuntos
de práticas e significados, portanto, o caboclo torna-se uma manifesta-
ção cultural não africana que delimita e constrói marcas na paisagem
religiosa afro-brasileira.
A análise sobre espaço, religião e cultura propõe uma discussão
abrangente onde é possível explicar que o espaço é configurado atra-
vés da religião que, por conseguinte é uma das muitas manifestações
culturais que imprimem símbolos na paisagem que são incutidos de
significados e utilidades dentro do espaço que revelam e constituem
traços fundamentais do ser humano (CORRÊA, 2012, p. 135) criados
por diversos grupos sociais demarcando-o para determinados fins. O
Ilé Asé Iyá Ogunté demonstra através das suas manifestações sagradas
diferentes culturas (caboclos e orixás) interagem e configuram o espaço
religioso através dos seus símbolos que delimitam o território de cada
entidade que compõe o terreiro.

Histórias, narrativas e religiões 775


Referências

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Pará. Dossiê Religião, v. 4, p. 1-27, 2007.

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FERRETTI–UEMA-BRASIL, Mundicarmo. Pureza nagô e nações africanas no Tambor de


Mina do Maranhão1

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PRANDI, Reginaldo. Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branquea-


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LUCA, Taissa Tavernard de. Revisitando o tambor das flores: a Federação Espírita e Umban-
dista dos cultos afro-brasileiros do Estado do Pará como guardiã de uma tradição. 2003.

MAUÉS, Raymundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a


religião. Estudos avançados, v. 19, n. 53, p. 259-274, 2005.

PRANDI, J. Reginaldo.  Segredos guardados: orixás na alma brasileira. Editora Companhia


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SANTOS, Cléver Sena dos. Pombo, Pato, Galinha, Bode: Bichos em Trânsito! Estudo etno-
gráfico sobre as apropriações de animais no Ilé asé Iyá Ogunté–um templo de candomblé na
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SILVA. Vagner Gonçalves. Candomblé e Umbanda. Caminhos da devoção brasileira. 5ª edição.


São Paulo: Selo Negro Edições, 2005

SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro brasileiras: Significados do


ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, v. 13, n. 1,
p. 207-236, 2007.

776 Histórias, narrativas e religiões


A Jurema Sagrada e suas interfaces com
a brincadeira dos Ursos no Carnaval do
Recife (1980-2001)

Mário Ribeiro dos Santos (UPE)

Resumo: A ausência de uma historiografia do Carnaval do Recife atua-


lizada, a qual apresente os Ursos como foco principal das discussões nos
impulsiona a estudar essa modalidade destacando a sua relação com a
religião Jurema Sagrada – prática ritualística afro-brasileira, fortemente
vivenciada nos subúrbios do Recife, sobretudo, por uma parcela consi-
derável de lideranças de agremiações carnavalescas.  O recorte temporal
compreende os grupos criados nos terreiros de Jurema, entre os anos
1980 e 2001, como uma forma de negociação entre a entidade e o repre-
sentante da agremiação. Para este estudo, faremos uso da metodologia
da História Oral, intermediada pela história cultural e outras fontes de
pesquisa. Como resultados iniciais, apresentarei o contexto no qual os
grupos foram criados, as relações de poder das lideranças para além do
espaço sagrado dos terreiros, os significados plurais existentes nas sim-
bologias dos grupos e os rituais religiosos que antecedem os desfiles dos
Ursos nas ruas durante o Carnaval.

Histórias, narrativas e religiões 777


‘Dar de comer ao santo’:
Festa e devoção afro-brasileiras sob o
olhar de Nina Rodrigues

Vanda Fortuna Serafim (DHI/PPH/UEM)

Resumo: A comunicação está vinculada ao projeto de pesquisa docente,


em andamento, intitulado “Crenças, narrativas e devoções: uma discus-
são teórica”. A proposta inicial que guiou a construção da reflexão a ser
apresentada consistiu em pensar os intelectuais e as crenças e devoções
afro-brasileiras, por meio de Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) e
da obra O animismo fetichista dos negros bahianos (1900). O intuito
foi trabalhar noção de festa, mapeando e historicizando como a cate-
goria é trabalhada na obra do autor em questão. Os aportes teóricos e
metodológicos que possibilitaram pensar como as festas foram repre-
sentadas por Nina Rodrigues consistiram no conceito de “festa” presente
em Ruggiero Romano (1994) e nas noções de “representação” e “visão
de mundo” presentes em Roger Chartier (1990, 2002). Para a finalidade
da compreensão histórica do discurso de Nina Rodrigues sobre festas
religiosas afro-brasileiras em consonância com o contexto sociocultural
baiano, utilizaremos a noção de “formalidade das práticas” de Michel de
Certeau (1982).

778 Histórias, narrativas e religiões


A Lavação das Escadarias da Igreja
do Rosário em Curitiba: hibridismo
religioso e estratégias de criação e
manutenção da identidade Negra em
Curitiba no século XXI (2009-2015)

Andresa Pereira Serpejante (Mestrado – UEPG)

Resumo: Diante de temas pertinentes que abrangem o entendimento


da história e cultura africana e afro-brasileira, e que por conta da lei
10.639/03, passaram a ser de estudo obrigatório em todas as instituições
do país, o conceito de identidade negra, dentre outros temas, passou a
ser trabalhadas sendo por meio deste conceito que vêm sendo trabalhada
há algum tempo questões que perpassam pelo âmbito cultural, religioso,
racial e étnico. Dessa forma, o presente trabalho, que se constitui como
parte de uma dissertação de mestrado, tem como objetivo analisar a
Lavação das Escadarias da Igreja do Rosário em Curitiba (2009-2015),
trazendo para discussão, o hibridismo religioso e as estratégias para a
manutenção da (s) identidade (s) negras (s), em Curitiba no século XXI.
Iniciada em 2009, a Lavação das Escadarias da Igreja do Rosário é um
fenômeno religioso com elementos do candomblé e umbanda, que ocor-
re num espaço revestido de força simbólica para alguns dos segmen-
tos da população afrodescendente curitibana. A igreja, foi construída
por escravos, em 1737, e abrigou as Irmandades de Nossa Senhora do
Rosário e dos Homens Pretos de São Benedito nos séculos XVIII e
XIX. É através da ligação desta igreja com as irmandades que procurare-
mos abordar o problema, mostrando o quanto elas tiveram papel efetivo
na criação de identidades negras para os escravos e afrodescendentes
da cidade. Palavras-chave: Lavação das Escadarias, Identidade negra,
hibridismo religioso

Histórias, narrativas e religiões 779


Pesquisa de Campo:
Algumas considerações sobre
metodologia no Hallel de Maringá-PR

Mariane Rosa Emerenciano da Silva (UEM)

Resumo: O presente trabalho está vinculado ao projeto de iniciação cien-


tífica Festa Religiosidade: reflexões acerca do Hallel (Maringá/ PR, 1995-
2016). O Hallel é um evento de música católico organizado por leigos
em vários lugares do Brasil, como, Brasília- DF, Aparecida do Norte-
SP, Ribeirão Preto- SP, Restinga- SP, Cubatão- SP, Piraju- SP, Tabuão
da Serra- SP, Londrina- PR, Florianópolis- SC, Campo Grande- MS,
Paracatu- MG, Uberlândia- MG, João Pessoa- PB e Fortaleza- CE,
Franca-SP que foi a primeira cidade a realizar o “Hallel” em 1988 pela
Renovação Carismática Católica (RCC). Na cidade de Maringá o
Hallel é organizado pelo Projeto Mais Vida, a primeira edição acon-
teceu em 30 de julho de 1995 e a última edição foi realizada nos dias
03 e 04 de dezembro de 2016. O intuito dessa apresentação oral é fazer
algumas reflexões teórico-metodológicas sobre o “Hallel” de Maringá-
PR (1995-2016) apontadas por Carlos Rodrigues Brandão Repensando
a pesquisa participante de Carlos Rodrigues Brandão (1985); Reflexões so-
bre como fazer trabalho de campo, de Brandão (2007), em que discutem
sobre o trabalho e a importância da pesquisa de campo; A pesquisa em
ciências humanas: uma leitura bakhtiniana, das autoras Albuquerque, e
Souza (2012), em que discorrem sobre o dialogismo, alteridade e ética
do pesquisador para com seu objeto.

Palavras-chave: Hallel; catolicismo; pesquisa de campo; metodologia.

A palavra de origem bíblica significa ‘Aleluia’. Encontrada no


livro dos Salmos, nos respectivos capítulos: 105, 106, 110, 111, 112, 113,
114, 116, 117, 134, 135, 145, 148, 149 e 150.
780 Histórias, narrativas e religiões
Uma das fontes escritas utilizadas para o desenvolvimento da
pesquisa é o jornal O Diário do Norte do Paraná apresenta, por meio, de
D. Jaime o primeiro Arcebispo da Arquidiocese de Maringá. O seguinte
trecho sobre o nome do evento,

Etimologicamente, a palavra vem da língua hebraica onde o louvor


é traduzido de forma mais característica como “HILLEL”. É uma
explosão de hinos e cantos de louvor com o qual se designava, na
antiga sinagoga, um grupo de Salmos (Sal 113-118), os quais se uti-
lizavam especialmente em circunstâncias solenes e festivais. O mes-
mo se vê na tradição rabínica, de um “grande” Hallel. Cantavam-se
salmos, na alegria e nas tristezas, mas sempre no louvor a YAHVEH,
o Deus supremo, AQUELE QUE É, o louvor a um Deus VIVO.
Não são os mortos que louvam ao Senhor, mas os que estão vivos (O
DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ, 1995, p.2, grifo do autor).

Hallel seria a grande manifestação do povo que louvava a Deus


através dos sons de instrumentos musicais e da dança294. Esse nome
é dado a um dos maiores eventos de músicas católicos da América
Latina. O primeiro Hallel foi organizado pela Renovação Carismática
Católica na cidade de Franca-SP, no ano de 1988. No ano de 1995 a
cidade de Maringá é convidada a realizar a primeira edição do Hallel
Maringá, sendo seus organizadores do Projeto Mais Vida, com apoio
da Arquidiocese. O evento é realizado em outras cidades: Brasília- DF,
Aparecida do Norte- SP, Ribeirão Preto- SP, Restinga- SP, Cubatão-
SP, Piraju- SP, Tabuão da Serra- SP, Londrina- PR, Florianópolis- SC,
Campo Grande- MS, Paracatu- MG, Uberlândia- MG, João Pessoa-

294  A palavra Hallel é de origem aramaica e significa cântico de louvor a Deus, uma música
que celebra a Vida. Os salmos bíblicos fazem referência à exaltação dos cantos e da música
através dos sons de instrumentos musicais e da dança. O Salmo 135 (136) era especialmente
recitado na Páscoa. O Salmo 150 é um convite a para que todos os instrumentos musicais e
todos os seres vivos louvem à Deus. Nos dias atuais, em lugar de cítaras, harpas, liras e trombetas,
ouvimos guitarras, baterias, teclados, percussão, baixos, microfones, vozes e efeitos especiais, com
qualidade para que o anúncio de Jesus Cristo chegue às pessoas, de qualquer idade, nível social,
etnia ou credo, possibilitando que todas encontrem seu espaço. Esse trecho e no site oficial do
evento. Disponível em: http://www.hallelmaringa.com.br/about/historia/. Acesso em:18 de
mar. de 2016.
Histórias, narrativas e religiões 781
PB e Fortaleza- CE295. O evento ainda apresenta algumas edições em
outros países, como: Chile, Peru, Paraguai, Colômbia, México, EUA296,
entre outros.
O nome do evento nos leva a considerar a realização do Hallel
como um dia festivo, com muita música, dança, palestras, missas, aberto
a toda comunidade, “o Hallel é uma festa que envolverá todas as pessoas
de todas as faixas etárias das mais variadas formas” (O DIÁRIO DO
NORTE DO PARANÁ, 1995, p.4).

Imagem 1: Hallel Maringá- Pr (2015)

Fonte: Arquivo pessoal

O evento em Maringá é Organizado no Parque de Exposição


Francisco Feio Neto (Imagem 2), numa área total de 248 mil metros
quadrados.

295  Vide o site do Hallel de Franca. Disponível em: http://hallel.org.br/hallel-evento/hallel-


pelo-brasil/. Acesso em: 16/01/2017.
296  Disponível em: http://hallel.org.br/hallel-evento/hallel-pelo-mundo/. Acesso em:
16/01/2017.
782 Histórias, narrativas e religiões
Imagem 2: Parque de Exposição Francisco Feio Ribeiro.

Disponível em: http://www.srm.org.br/site/estrutura. Acesso em: 21/11/2016.

Delimitamos o objeto no qual atentamo-nos especificamente


ao Hallel de Maringá-PR (1995-2016). Nos anos que antecedem 2016,
procuramos trabalhar com fontes escritas, como O Diário do Norte do
Paraná em que auxilia-nos na compreensão de como o evento se con-
figura e é representado nos periódicos. Em 2016 nos dias 03 e 04 de
dezembro na realização da 22ª edição do Hallel maringaense, tivemos a
oportunidade de aplicar 124 questionários nos participantes que passa-
ram pelo evento.
Para Tanto, o projeto tem como referência metodológica Carlos
Rodrigues Brandão (1985), Repensando a Pesquisa Participante. Propõe
métodos que auxilia-nos no contato com o âmbito de pesquisa, Brandão
discorre o seguinte: “Só se conhece em profundidade alguma coisa da
vida da sociedade ou da cultura, quando através de um envolvimento
em alguns casos, um comprometimento pessoal entre o pesquisador e
aquilo, o aquele, que ele investiga” (BRANDÃO, 1985 p. 8). A pesquisa
participante está além de uma explicação da cultura por meio de frag-

Histórias, narrativas e religiões 783


mentos alheios. O pesquisador poderá, conviver, pensar através de sua
lógica e sentir com ele.
Ao encontro da citação acima, Wilfred Canwell Smith (1967)
em La religion comparada questiona:¿ nos dirá, que o objeto que se pes-
quisa, deve se identificar com o que o pesquisador produz. Do contrário,
o pesquisador não estará falando do seu objeto tal como ele se apresenta
mas, como o pesquisador quer vê-lo e descrevê-lo, principalmente no
que diz respeito, a manifestação de crenças e cultura. Ao levar em con-
sideração que o Hallel de Maringá ocorre contemporâneo a pesquisa.
O contato entre pesquisador e pesquisa é importante na compreensão
objeto e pesquisa e vice-versa.
No artigo “Reflexões Sobre Como Fazer Trabalho de Campo”,
Brandão (2007) indica que:

Um projeto de pesquisa não diz aquilo apenas como aquilo vai ser
pesquisado. Uma teoria que fundamenta uma hipótese de pesquisa
delimita até o que vai ser visto, ou seja, até aquilo que, dentro de um
todo de relações sociais, econômicas e politicas, vai ser intencionali-
zado pelo pesquisador, vai ser objeto de sua própria atenção, de sua
maneira de observa. (BRANDÃO, 2007, p. 12).

A princípio, como observamos por meio de Brandão (2007), o


pesquisador deve levar em consideração a cultura que investiga a forma
que os personagens a expressam. No entanto, não devemos desconside-
rar que o pesquisador é um agente histórico, que olha seu objeto no seu
próprio tempo e espaço. Acaba por ter que tomar um posicionamento
frente ao que observa e vivência do seu objeto de pesquisa. Ou seja,
o pesquisador não é imparcial ao que pesquisa, pondera que esse terá
que realizar uma análise crítica, dos registros que recolhe. Diante disso,
enfatizamos que o pesquisador busca representar a verdade de forma
fidedigna. Mas isso passa por um filtro de suas próprias críticas, sendo
assim, o que um pesquisador realiza é uma das várias possibilidades de
abordagem que um objeto possa apresentar.
Vários elementos devem ser levados em consideração, a pesqui-
sa participante como fonte de compreensão de um determinado contex-

784 Histórias, narrativas e religiões


to social, seria um equívoco torna-la a única fonte de pesquisa. Brandão
aponta que para auxiliar na análise da pesquisa de campo e observação
participante, aconteça uma relação com outras fontes tais como livros,
artigos, jornais, monografias, etc. Podendo de forma antecipada ter um
conhecimento prévio sobre o objeto estudado. O autor ainda aborda o
cuidado que se deve ter ao transcrever entrevistas, e questionários, a de-
dicação empenhada em tal trabalho, que faz com que o pesquisador saia
do interior do seu laboratório e vai ao interior de sua pesquisa.
Construir ou problematizar um conhecimento das ciências
humanas implica em conhecer o que é objeto, e o que é conhecer um
indivíduo, deve-se levar em consideração que o historiador, é tão sujeito
da história quanto seu objeto. No artigo publicado em 2012 por Solange
Jobim e Souza, e Elaine Deccache Porto e Albuquerque, A pesquisa em
ciências humanas: uma leitura bakhtiniana, as autoras expõe a duplicidade
de “ser sujeito e, ao mesmo tempo objeto de conhecimento – exige que as
ciências humanas se definam a partir de uma problemática que lhes seja
própria e de um campo especifico de exploração” (ALBUQUERQUE;
SOUZA, 2012, p.110). As autoras enfatizam que o encontro do pesqui-
sado com o outro deve ser regida por uma produção de conhecimento
dialógico e de alteridade. A alteridade nesse caso, não se limita apenas à
consciência da existência do outro, e nem se reduziria ao diferente, mas
comporta também o estranhamento e o pertencimento.
As autoras analisam a compreensão do sujeito por meio, de
uma leitura explicita por Mikhail Bakthin, e citam a seguinte questão:
“A compreensão que o sujeito tem de si se constitui através do olhar e
da palavra do outro. Cada um de nós ocupa um lugar espaço-tempo-
ral determinado, e deste lugar único revelamos o nosso modo de ver o
outro e mundo físico que nos envolve” (ALBUQUERQUE; SOUZA,
2012, p.112). Nesse sentido, podemos observar que tanto o pesquisa-
dor lança um olhar de compreensão sobre seu objeto, quanto seu obje-
to pode apreender o que um pesquisador descreve sobre ele, seria uma
questão de se perceber, se identificar em relação ao que o outro enun-
cia. “Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse”
(ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.112). E ainda ressaltam:

Histórias, narrativas e religiões 785


Pensar pesquisa em ciências humanas como um modo especial de
acontecimento na vida implica levar em consideração que a compre-
ensão dos temas que se quer investigar se dá a partir de confrontos
de ideias e negociação de sentidos possíveis entre o pesquisador e os
sujeitos [...]. O pesquisador não está só na cena da pesquisa, o grande
desafio diz respeito a sua disponibilidade de se deixar surpreender
pelo encontro/confronto que acontece no campo com os sujeitos da
pesquisa (ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.112).

Como manter uma neutralidade diante da pesquisa, e mesmo


quando se diz neutralidade posicionar-se diante de uma ideia, uma te-
oria e ser um agente crítico, existiria essa imparcialidade? Como dizer
que somos imparciais se os pesquisadores são humanos e agentes histó-
ricos? E ainda, como escrever um texto, que faça digno dos personagens
a quem escrevemos se reconhecerem como produtores daquilo que o
pesquisador escreve? Ao propor-se a uma pesquisa, o pesquisador terá
que levar em consideração vários fatores, o primeiro é, justamente, o que
Brandão (2007): o olhar do próprio objeto sobre ele. Depois os con-
frontos de ideias que temos sobre o nosso objeto, e nesse momento faz
necessário, o exercício de alteridade e dialogismo, Albuquerque e Souza
mencionam o seguinte:

O diálogo entre o pesquisador e o seu outro, a alternância de pergun-


tas e respostas, a perplexidade diante dos atos e discursos alheios, as-
sim como os pontos de vista e valores em jogo, fazem da pesquisa um
processo vivo de produção de sentidos sobre os modos de perceber e
significar os acontecimentos na vida. O pesquisador, nesse contexto,
não apenas pergunta para obter respostas que atendem aos objetos
definidos de antemão, mas, ao perguntar e também responder, se
posicionam como um sujeito, que, do lugar de pesquisador, traz pers-
pectivas e valores diversos sobre as experiências compartilhadas com
os sujeitos. (ALBUQUERQUE; SOUZA, 2012, p.116).

E ao pensar nessa relação de pesquisa objeto é necessário que


esse, contudo, vivido no campo de pesquisa, tome forma, ou seja, é hora
do pesquisador transcrever, transformar em texto, aquilo que vem a pes-
quisar, sistematizar as ideias, e nesse do encontro entre o pesquisador
e seu texto, o compromisso ético é essencial, para construir o entendi-
mento da experiência vivida. O compromisso do pesquisador, mesmo

786 Histórias, narrativas e religiões


diante de vários limites, e a impossibilidade de alcançar a verdade em
sua plenitude, é com a densidade e a profundidade do que é possível ser
revelada com a sua pesquisa.
Levando em consideração essas questões ao fazer uma pesquisa
de campo no Hallel de Maringá, traçamos acima alguns limites, e cuidados
para com o objeto, mas gostaríamos de enfatizar, que ao pensar na pesqui-
sa de campo, com auxílio de periódicos, e documentos disponíveis sobre o
evento busca-se ampliar e aprofundar, tanto o conhecimento sobre a pes-
quisa quanto valorizar o posicionamento que o nosso objeto tem de si.
Como nos é possível estar em contato com os dias que fora
realizado o Hallel, podemos fazer algumas considerações teóricas so-
bre os participantes e a configuração do evento. Dentre essas questões
utilizamos “peregrinação” e trânsito de leigos entre “módulos” temáticos
discutido por Danièle Hervieu-Léger (2008), e “tribos”, de Maffesoli
(1998). A (imagem 3), é um mapa distribuído pelo organizadores, para
as pessoas que participam do Hallel. Podemos observar como o evento
é dividido e organizado em capelas (Capela do Silêncio e Capela do
Louvor), palco central (com missas e bandas) e os módulos.

Imagem 3: Mapa Hallel 2015

Fonte: Arquivo pessoal.

Histórias, narrativas e religiões 787


A imagem 4, representa a programação e atividades desenvol-
vidas nas edições do Hallel de 1998.

Imagem 4: Programação Hallel 1998- Diário do Norte do Paraná.

Fonte: Arquivo pessoal

Logo abaixo citamos as atividades do ano de 1999, que nos leva


a observar que a programação muda, ou seja, os módulos podem ou não
permanecer.

Teremos montados no parque diversos módulos de evangelização


com capacidade para 250 a 400 pessoas onde serão falados de temas

788 Histórias, narrativas e religiões


específicos. Desta forma temos, por exemplo, módulo de Maria (pa-
lestras sobre Nossa Senhora), módulo do matrimonio, módulo do
namoro, módulo de pessoas especiais (palestras com assunto ligado
a pessoas excepcionais) módulo da música, módulo da prevenção
e combate às drogas (depoimentos de ex-dependentes, palestras),
módulo da Renovação Carismática, módulo do cursilho, módulo
do movimento familiar cristão, módulo de evangelização dos co-
légios Regina Mundi e Marista (O DIÁRIO DO NORTE DO
PARANÁ, 1999, p.04).

É necessário enfatizar, que nos módulos além de palestras a mú-


sica é um dos principais instrumentos de evangelização. “Os módulos são
temáticos, com palestras sobre assuntos como família, Nossa Senhora e
Namoro. Existem módulos com palestras para músicos e até de heavy
metal” (O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ, 2006, p. D-2).
Diante dos dados citados, percebemos que há uma liberdade
de trânsito para frequentar os módulos, capelas e palco central. Sendo
assim, as pessoas podem participar das atrações que mais lhe chamem
atenção, e que mais se identifiquem. A peregrinação consiste justamente
na procura de um grupo, comunidade, ou como define Michel Maffesoli
(1998) em O tempo das tribos de uma “tribo”, na qual exista o sentido de
“pertença”. Danièle Hervieu-Léger (2008) em O peregrino e o convertido:
a religião em movimento, pontua a significância da crença e como essa
pode estar vinculado aos elementos de identificação.
Atribuímos a definição de peregrinação para um quadro mais
reduzido, se por um lado a autora expõe a peregrinação de jovens que de
forma voluntária que a cada dois anos se reúnem em volta do papa na
jornada mundial da juventude ( JMJ). A religião, referimo-nos no pre-
sente trabalho ao catolicismo, não se configura de maneira homogênea.
É perceptível que os métodos para atingir os fiéis são os mais copiosos.
Levando em consideração que os indivíduos apreender e interpretam
de forma distintas as manifestações religiosas. Sendo assim existe uma
forte presença peregrina dentro de uma determinada religião, como a
formação das mais variadas congregações (franciscanas, beneditinas,
marianas), grupos de orações formado por leigos.
Podemos observar que o Hallel de Maringá é uma festa que
Histórias, narrativas e religiões 789
utiliza a música como instrumento de evangelização. Mas sua confi-
guração em “módulos” possibilita uma peregrinação dos participantes
na procura de alguns gêneros musicais, assim como, na discussão de
determinados assuntos, por meio das pregações e palestras. Estamos
falando de um lugar que propõe um transito de troca de experiência,
com uma relação entre os próprios participantes que costumam par-
ticipar do evento em grupos. Como dos músicos e palestrantes que
participam do Hallel.
Uma das características dos eventos peregrinos é a pluralidade
e autonomia. Os participantes (Hervieu-Léger, discorre principalmen-
te sobre os jovens) não se sentem obrigados a estarem nesses lugares,
as atividades propostas permite avaliar as ofertas espirituais dentro do
próprio catolicismo. “Um aspecto merece particular atenção: a gestão
do pluralismo que permite, num contexto de avançada diminuição da
desregulação institucional, a combinação da peregrinação e do agru-
pamento emocional que caracteriza as peregrinações contemporâneas”
(HERVIEU-LÉGER, 2008, p.103).
Ao pensar no contexto em q o Hallel se organiza, enfatiza-
mos o primeiro Hallel o de Franca no ano de 1988. Que se inspirou
no evento Rock in Rio (1985) percebe-se que ocorre o que Maffesoli
(1998) menciona como “tribalismo”. O “tribalismo” ou “tribos” segundo
o autor seria uma das características da Modernidade. Ocorre uma nova
construção social, no qual se perde a presença do individualismo em
função do solidarismo. As pessoas procuram comunidades que possi-
bilitem uma identificação. Nesse sentido, as “máscaras” são elementos
fundamentais de pertença a uma determinada comunidade.

Em seu artigo sobre ‘A sociedade secreta’ G. Simmel insiste, aliás, no


papel da máscara, da qual se sabe que tem, entre outras funções, a de
integrar a ‘persona’ numa arquitetura de conjunto. A máscara pode
ser uma cabeleira extravagante ou colorida, uma tatuagem original,
a reutilização de roupas fora de moda, ou ainda o conformismo de
um estilo ‘gente bem’. Em qualquer caso ela subordina a persona a
esta sociedade secreta que é o grupo afinitário escolhido. Aí existe a
‘des-individualização’, a participação, no sentido místico do termo, a
um conjunto mais vasto (MAFFESOLI, 1998, p.128).

790 Histórias, narrativas e religiões


Por mais indicativos que se tenha da sociedade Moderna como
sendo individualista, Maffesoli enfatiza que o indivíduo não legítima
por si suas ações, não haveria nenhum destaque se esse agir só. Sendo,
assim, pertencer a uma tribo atribui significância para suas expressões e
manifestações. Citação de Maffesoli:

Agora, cada vez mais, nos damos conta de que mais vale considerar
a sincronia ou a sinergia das forças que agem n a vida social. Isso
posto, redescobrimos que o indivíduo não pode existir isolado, mas
que ele está ligado, pela cultura, pela comunicação, pelo lazer, e pela
moda, a uma comunidade, que pode não ter as mesmas qualida-
des da idade média, mas que nem por isso deixa de ser comunidade
(MAFFESOLI, 1998, p.114).

Uma das questões pontuadas pelo autor é o relativismo que se


prepondera. Apesar da dualidade criada no que consiste pertencer uma
tribo, como o de segregação, racismo ou ostracismo de se identificar com
uma determinada comunidade em detrimento da outro. Por outro lado,
pode ocorrer a criação de uma nova cultura. No Hallel, por exemplo, foi
a utilização de uma música profana o rock, com letras que mencionas-
sem o sagrado.
Exposto tais considerações percebemos que há duas dimensões
a serem analisadas sobre o Hallel de Maringá por meio de questionários.
A primeira é os participantes e sua percepção sobre o evento e a segunda
é os organizadores e sua constatação do que é a realização do Hallel.
Desses realizamos apenas os questionários com os partici-
pantes, como já mencionado no começo do relatório foi aplicado no
dia 04 de dezembro de 2016, 124 questionários entre às 10h00min. e
18h30min. Para realizar a análise dos das respostas dividimos em duas
partes, essa primeira parte com os dados dos participantes e a segunda
que será a análise sobre algumas características que o Hallel representa
para os visitantes.
Nesse relatório nos atentaremos a primeira parte de análise dos
questionários. Dos 124 entrevistados, 14 possuem entre 13 e 15 anos; 58
entre 16 e 20 anos; 30 entre 21 e 25 anos; 12 entre 26 e 30 anos; 4 entre
31 e 35; 2 possuem de 36 a 40; 2 entre 41 e 45 e 4 acima de 51 anos.
Histórias, narrativas e religiões 791
Em relação ao sexo, 77 declararam feminino, 41 masculino e 6
optaram por não declarar. Sobre o local em que vivem 8 declaram que
moram em Maringá, 115 mencionaram vir de outras cidades e apenas 1
não respondeu. Ao mencionar a escolaridade: 7 declaram não ter o fun-
damental completo; 6 têm o fundamental completo; 32 o ensino médio
incompleto; 31 o ensino médio completo; 27 o ensino superior incom-
pleto e 21 o ensino superior completo.
Quando perguntado a frequência: 26 declaram participar todos
os anos do Hallel de Maringá; 43 de forma irregular; 54 pessoas estavam
no Hallel pela primeira vez; 1 optou por não responder. Ao indagar a re-
ligião que praticam: 116 se declaram católicos; 1 católico não praticante;
4 mencionaram ser evangélicos; 3 que não praticam nenhuma religião.
No que consiste a participação desses em outras religiões: 108 disseram
que não participou de nenhuma outra religião; 16 disseram que sim.
É interessante observar que apesar do evento ser realizado em
Maringá, o público geralmente vêm de outras cidades, como, Apucarana-
PR; Londrina-PR; Guarapuava-PR; Pitanga-PR; Bandeirantes-PR;
São José das Palmeiras-PR; Marumbi-PR; Ponta Porã-MS; Loanda-
PR; Ponta Grossa-PR; Cianorte-PR; Toledo-PR; Cornélio Procópio-
PR; Cidade Gaúcha-PR; Teodoro Sampaio-SP; Tibagi-PR; Cruzeiro
do Sul-PR; Paranacity-PR; Paranavaí-PR; Cafezal do Sul-PR; Altonia-
PR; Iporã-PR; Andirá-PR; Terra Rica-PR; Cruzeiro do Oeste-PR;
Jacarezinho-PR; Cascavel-PR; Alto Paraná-PR; Sete Quedas-MS;
Anhuma-SP; entre outras. A maioria reside no estado do Paraná, mas
existe um grande fluxo de pessoas dos estados de São Paulo e Mato
Grosso do Sul.
Outra questão a ser pontuada é que o evento é realizado por
católicos, mas quando foi mencionado sobre qual religião o indivíduo
pertence dois mencionaram serem católicos, porém que jamais haviam
participado de outra religião. Outros dois disseram que já foram ca-
tólicos e atualmente participavam de igrejas Evangélicas. Com relação
aos que se denominam católicos 11 mencionaram participar ou te-
rem participado de outras religiões, como, Umbanda, Cristã do Brasil,
Assembleia, Batista, Protestante, Evangélica, Mauá. O entrevistado que

792 Histórias, narrativas e religiões


disse ser católico não praticante, enfatizou que gosta de conhecer várias
religiões: Espirita; Candomblé; Evangélica. Essas informações nos faz
refletir sobre questões pontuadas por Danièle Hervieu-Léger (2008)
sobre “peregrinações”. Não temos apenas uma peregrinação dentro do
Hallel, que seria entre os módulos e a procura de atividades que mais
atraem os participantes, mas também na procura por identidade em
uma determinada religião.
Por último gostaríamos de ressaltar como os participantes tive-
ram conhecimento sobre o evento: 17 por meio de grupos de oração; 25
grupos de jovens; 54 por meio de parentes ou amigos; 3 que já sabiam
por si; 11 pela internet ou outra mídia; 14 pela Igreja. Pontuamos assim,
a pertença desses indivíduos em “tribos”, seja meio de um grupo dentro
da Igreja, seja na identificação com uma igreja ou na sociabilidade das
relações entre amigos e familiares, que comentam sobre a experiência
no Hallel tanto espiritual quanto de diversão e convidam outras pessoas
para participarem do evento.

Referências

ALBUQUERQUE, Elaine Deccache Porto e; SOUZA, Solange Jobim e. A pesquisa em ciên-


cias humanas: uma leitura bakhtiniana: Bakhtiniana, São Paulo, 7(2), p.109-122, jul./dez. 2012.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Reflexões sobre como fazer trabalho de campo. Sociedade e
Cultura: Revista de pesquisas e debates e ciências sociais. UFG, Goiás, v. 10, n. 1, p. 11-27
jan./jun. 2007.

__________. Repensando a pesquisa participante, 2. Ed. São Paulo: editora brasiliense, 1985.

HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em movimento, Petró-


polis, RJ: Vozes, 2008.

MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de


massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

Histórias, narrativas e religiões 793


Fontes

O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. Hallel, Maringá, p. 02, 30 jul.1995.

O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. I Hallel de Maringá, Maringá, p. 4, 29 jul.1995.

O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. Programação, Maringá, p. B-01, 05 set. 1998

O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. O que é o Hallel, Maringá, p.04, 04 set. 1999

O DIÁRIO DO NORTE DO PARANÁ. Uma presença constante, Maringá, p. D-2, 03 e


04 set. 2006.

794 Histórias, narrativas e religiões


As festas religiosas e o lugar das
identidades em Espírito Santo do
Pinhal/SP: apropriação, reinvenção e
espetacularização

Tamaso, Renata Maria (IFSP – São João da Boa Vista)

Resumo: A história das cidades brasileiras encontra-se relacionada à


religiosidade e à devoção a diferentes expressões religiosas. A doação
de terras para construção da capela a um padroeiro é o marco funda-
dor de muitas vilas e cidades e com Espírito Santo do Pinhal, no inte-
rior de São Paulo, não foi diferente. Tendo como padroeiro o Espírito
Santo a cidade nasceu e se desenvolveu no entorno da Igreja Matriz
e têm na Procissão do Divino e nos festejos que ocorrem em paralelo
aos rituais sagrados uma das mais importantes representações da reli-
giosidade católica local. Além dessa manifestação, devem ser lembradas
outras expressões da religiosidade católica na cidade, tais como: a Festa a
Nossa Senhora Aparecida, as folias, os festejos aos santos juninos (Santo
Antônio, São João e São Pedro) e a Festa de Santa Luzia, que atrai anu-
almente mais de 40 mil romeiros. Algumas dessas manifestações têm
nos servido como objeto de investigação desde 2005 e nos levam a refle-
tir sobre o lugar de determinados grupos étnicos nos espaços urbanos e
rurais da cidade. Por meio delas, podemos reconhecer sujeitos, demarcar
lugares e identificar suas práticas e representações. Como tais manifes-
tações festivas foram apropriadas e reinventadas ao longo da história de
Pinhal, tem sido nossa preocupação nos últimos anos e serão apresen-
tadas nesse simpósio. Além disso, buscaremos refletir sobre o fenômeno
da espetacularização das expressões religiosas na cidade a partir de 1990.

Histórias, narrativas e religiões 795

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