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Ensino sobre o Cristianismo Joseph Pitts Wiles, M.A. Uma edigao abreviada de AS INSTITUTAS DA RELIGIAO CRISTA de Joao Calvino Introdugao por J. I. Packer FS PUBLICAGOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 - Sao Paulo - SP Titulo original: Instruction in Christianity Primeira edigdo: 1920 Reimpresso: 1966 Editora: Sovereign Grace Union Primeira edigéo em portugués: 1984 Segunda edicao: 2002 Traduciio do inglés: Gordon Chown Revisor: Antonio Poccinelli Cooperadora: Sharon Barkley Capa: Sergio Luiz Menga Impressiio: Imprensa da Fé INDICE Introdugio Prefacio .... Do tradutor ao leitor Carta de Calvino ao rei da Franga O escopo da obra LIVROI Sobre o conhecimento de Deus, o Criador 1. Hé estreita vinculacao entre o conhecimento de Deus eo conhecimento de nés mesmos 2. O que significa conhecer a Deus. 3. Oconhecimento de Deus é implantado no coragao do homem de modo natural ........cccssesssseseeeesseeeseeseeseeseeee 34 4, Este conhecimento é abafado ou corrompido parcial- mente pela ignorancia e parcialmente pela maldade . 36 5. Oconhecimento de Deus resplende na estrutura do universo e no governo continuo do mesM0 ............600 38 6. A fim de chegar a um verdadeiro conhecimento do seu Criador, o homem precisa da orientagao e do ensino das Sagradas Escrituras 7. A autoridade das Escrituras é estabelecida pelo testemunho do Espirito, e nao pelo jufzo da Igreja.... 47 8. H4provas sdlidas e racionais que servem para confirmar a veracidade das Sagradas Escrituras .. 50 9. Aqueles que negligenciam as Escrituras, e procuram revelacées novas, transtornam todos os principios da PICMAde’ oo. eeecessseessessessecesesssesseesseseeesecsneessssesnessneaneeseenee 56 10. ll. 12. 13. 14. 15. 16. 17. . Deus emprega de modo justo agentes impios .. _ . A-escravidao da vontade humana.. As Escrituras providenciam um remédio para toda a supersticao, ao distinguirem o Deus verdadeiro de todos os deuses das nagdes E ilicito atribuir a Deus uma forma visivel; e todos aqueles que fabricam {dolos para si, separam-se do Deus verdadeiro Deus é distinguido dos idolos, a fim de que o culto seja prestado somente a Ele.........ceesseseseeeessesseeee 67 As Escrituras ensinam que a esséncia (ou seja, 0 ser) de Deus é uma, e que contém trés pessoas see 70 As Escrituras, no seu registro da Criacao, distin- guem o Deus verdadeiro de todos os deuses falsos..... A criagao do homem Deus, que criou 0 universo, sustenta-o pelo Seu poder e governa todas as suas partes mediante a Sua providéncia .. O emprego da doutrina da providéncia divina. . 100 - 108 -117 LIVRO II Sobre o conhecimento de Deus, o Redentor 121 . 125 A queda de Adao e 0 pecado original A vontade do homem esta escravizada ao pecado, e somente pode ser libertada pela graga .. Como Deus opera no coragao dos homens. Uma resposta aos argumentos que comumente se levantam em prol do livre-arbitrio O homem arruinado precisa buscar em Cristo a LEACN CAO... esecsessessessneessessessessnesseeeseeseeseesseensennerseeeneenee 160 i) 10. ll. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 1 VAN A lei foi dada a Israel, nao para que os israelitas descansassem nela, mas para fomentar neles a esperanga da salvagao por Cristo, até que Ele viesse Sobre a lei moral Embora Cristo fosse conhecido pelos judeus sob a lei, nao era plenamente revelado até que foi dado o evangelho . 188 Comparacao entre o Velho Testamento e 0 Nov .191 A diferenga entre o Velho Testamento e 0 Novo....... 197 Foi necessério que Cristo Se tornasse homem a fim de exercer 0 officio de Mediador..... Cristo realmente assumiu carne humana As duas naturezas na pessoa do Mediador .. Cristo deve ser considerado nos Seus trés oficios, de profeta, rei e sacerdote . 212 A obra redentora de Cristo . 216 Declara-se, corretamente, que Cristo obteve a salvacao para nds mediante Seus METILOS .........cseeseeeedeeseesees 226 164 ~177 . 203 - 206 . 209 LIVRO Ill Sobre a maneira de receber a graca de Cristo, ¢ os efeitos que se seguem A operagao secreta do Espirito, mediante a qual o evangelho de Cristo é de proveito para nés . 230 A fé e suas propriedades » 233 A natureza do verdadeiro arrependimento . 245 Um exame da doutrina romana do arrependimento 255 Indulgéncias, purgatério e oragées em prol dos mortos.... . 262 i Sewmnn 11. 12. 13. 14. 15. 16. 25. . As promessas da lei e as do evangelho . A doutrina da justificagao pelas obras n4o pode . A oracao: uma exposicao do “Pai nosso” . © A CCI GAO wo esessesseseesesseensesseseeneereseensenesees .» 23., 24, Uma declaracao do testemunho das Escri- A vida do homem Crista ....scssssesssssesssseseessnesssnseees 265 A abnegagio do cristao Carregando acruz...... Contemplando a vida do porvi: O uso correto da vida presente e dos seus confortos . 274 A justificagdo pela £6.00... csssssestescsseesnesscssneeseeneensees 275 Para entendermos a necessidade da justificagao gratuita, devemos elevar nossos pensamentos para o trono do julgamento divino weiss 278 A justificagao pela fé d4 gléria a Deus, e paz a consciéncia ... O comeco eo progresso continuo da justificagéo A doutrina de que nossas obras s40 meritérias despoja Deus da Sua gléria e nds da nossa CeTtEZA de SA]VACAO o...esssescsecssessseesssesssensscssseessnessneess 285 Uma refutagao de algumas acusagées caluniosas que os papistas langam contra a doutrina da justi- ficagao pela fé + 287 -. 289 ser deduzida corretamente daquilo que as Escrituras dizem com respeito ao galarda 291 A liberdade crista 292 295 301 turas a verdade da doutrina da eleigdo, e uma refutagao das objegdes que sempre tém sido levantadas contra ela .. A ressurreicao...... Epilogo do Traduto: Para ver um resumo do Livro IV, ver pagina.............. 17 INTRODUGAO _ AS “INSTITUTAS” DE CALVINO, isto ¢, INSTRU- CAO BASICA NA RELIGIAO CRISTA éum dos livros mais grandiosos da Igreja. Nele o mais brilhante, perceptivo e pen- sador profundo dos Reformadores comprimiu tudo quanto sabia da graca e da verdade de Deus. A obra foi crescendo pau- latinamente. Comecou sua existéncia em 1536 como resumo e defesa da fé distintiva da Reforma. Embora esta primeira edigéo nao adotasse a forma de perguntas e respostas, tanto Calvino como os publicadores a chamaram de catecismo, e fica claro que os leitores em prol dos quais foi preparado eram protestantes leigos e comuns. Foi impresso no formato de livro de bolso, e tinha cerca de trés quartos do tamanho do Novo Testamento. Através das edigdes sucessivas, no en- tanto, a obra tornou-se maior, até que em 1559 o texto latino definitivo surgiu como um volume folio de oitenta capitulos e meio milh&o de palavras, quase o tamanho da Biblia inteira. (Atradugao em inglés mais recente chega a 1521 paginas!) Agora ja nao era meramente um manual de fé, como os pro- testantes o consideravam; era também um livro texto de teologta dogmAtica para os estudiosos, tratando de forma sis- tematica tanto expositiva como polémica com a totalidade da teoria e da pratica da religiao biblica. O propésito definido das “Institutas” na sua forma completa é capacitar seus leitores a entenderem a Biblia. Apresenta instrugao basica eficiente do ponto de vista biblico. Procura remover todas as falsas pressuposi¢ées racionalistas, moralistas, antropocéntricas e idélatras que j4 infectaram, e, na medida desta infecgio, cegaram todo homem e toda cultu- ra deste mundo a partir da queda de Adio, colocando em lugar delas 0 esbogo biblico do verdadeiro conhecimento — tanto de Deus como de nés mesmos — ou seja, o conhecimento da nossa propria estulticia e incapacidade como pecadores, e da soberania de Deus na Sua providéncia e graca. Visa, portanto, ao invés de impor uma interpretagdo da Biblia de fora para dentro, fazer exatamente 0 oposto — desmascarar e explodir as falsas idéias das quais emanam interpretacdes impostas, de tal modo que a Biblia seja livre para interpretar- -se para nés de dentro para fora, e nés mesmos sejamos livres para escutar e receber a sua propria mensagem sem distorgdes e sem perturbacio. Com realismo honesto diante de Deus, e reconhecendo humildemente que nada possufa além daquilo que recebera de Deus, Calvino acreditava que tinha atingido 0 seu objetivo. “Creio que abrangi de tal maneira a soma da religido em todas as suas partes, e que a dispus em tal ordem, que se alguém a entende corretamente, nao seré dificil para ele determinar 0 que deve procurar especificamente nas Escrituras, e com qual objetivo deve relacionar 0 contetido delas.” A reivindicacao é audaciosa, mas nao audaciosa demais. O livro ja provou ser, para incontavel niimero de pessoas, tudo aquilo que Calvino pensava que era. B. B. Warfield endossou a descrigao que Ritschl fez dele como sendo “a obra mestra da teologia protestante”, e o veredicto fica incontestado. Aquilo que Agostinho ouviu com respeito as Sagradas Escrituras tam- bém pode ser dito com seguranga a qualquer cristao acerca das “Institutas” — “tole, lege”, “tome e leia”; prove-o, e entao vocé saberd por si mesmo qual é 0 valor delas. Mesmo assim, deve ser reconhecido que comparativa- mente poucos cristéos dos nossos dias j4 leram as “Institutas”, até entre aqueles que professam estar mais em simpatia com o ponto de vista geral de Calvino. E talvez isso nao deva nos surpreender, De infcio, 0 préprio tamanho do livro é desanimador, principalmente quando se descobre que cada paragrafo é argumentado de forma concisa, sem palavras desnecessérias. Além disso, 0 estilo literério de Calvino, que é 10 muito marcante, conciso e vigoroso, forénsico ¢ literario ao mesmo tempo, nao se encaixa bem na lingua inglesa, e, ondeo latim e francés de Calvino é fluente, a traducao inglesa das “Institutas” avanca aos solavancos, sendo uma leitura tosca e irritante. Ademais, as argumentacées detalhadas com as quais se revestem os arcabougos basicamente singelos de Calvino as vezes produzem uma situagao tal que de tantas arvores nao se vé o mato, Outrossim, a pesquisa contempordanea acerca de Calvino nao ajuda o leigo tanto quanto poderia, preocupada com as questées técnicas referentes ao método teoldgico de Calvino, as afinidades histéricas, a construcao formal de dou- trinas especificas, ela tende a obscurecer a natureza pratica e religiosa das “Institutas”, deixando a impressao de que a obra é essencialmente um exemplo brilhante do intelectualismo teolégico — nada menos do que isto, mas também nada mais. A obra realmente é uma exposicao profunda e extremamente devocional dos trés R no evangelho — Ruina, Redencio e Regeneragao, todas vistas de modo teocéntrico- contudo é algo que muitos cristaos, que somente conhecem Calvino através de livros que falam dele, ainda nao descobriram. E exatamente aqui que a condensagao das “Institutas” I- LIT, feita pelo Sr. Wiles, pode ser de grande utilidade. Seme- lhante as abreviagées anteriores feitas por Bunny, Delaune, Fischer (Piscator), no século XVI, Van Ceulen (Colonius) no século XVII, e por muitos desde entao, seu alvo é isolar 0 fluxo central do argumento de Calvino da massa de detalhes histéricos, exegéticos e polémicos que o rodeia na obra com- pleta. Wiles é bem sucedido nesta intengao. As vezes, para conservar 0 sentido de fluéncia e impulso para o leitor, ele parafraseou com certa liberdade; mas, tendo em vista a pericia que demonstra em ressaltar a forga principal do argumento de Calvino, o fim aqui justifica os meios. A omissao do Livro IV éuma perda, de certo ponto de vista, porém, isso significa que acondensagio acaba tendo apenas dois tergos do tamanho que teria de outra forma, e, portanto, o custo fica reduzido 11 também, e isso pode ser considerado uma vantagem! De qualquer forma, é evidente que os estudantes de Calvino nao podem considerar uma edigao resumida das “Institutas” como mais do que uma “prévia” para a obra verdadeira, e continua- rao a empregar a original. Para os muitos, todavia, que alme- jam o beneficio trazido pela leitura das “Institutas”, mas que nunca conseguiriam dominar a obra na sua forma completa, o trabalho de Wiles poderia ser como uma dadiva de Deus. Nao ha davida de que preenche uma lacuna. Existem (em inglés) varias coletaneas de selecdes tiradas da obra prima de Calvino (tais como: A Calvin Treasury, editado por W. F. Keesecker, e Compend of the Institutes, poy H. T. Kerr), mas, nao obstante tais compilagées terem sido arbitrarias, o forte de Calvino esta em seu argumento, e uma apresentacao concentrada do argumen- to total dos Livros I-III, tal como Wiles faz, nos capacita a conhecer Calvino, e a aprender dele, de modo muito melhor do que se poderia fazer com qualquer coletanea de selegdes. Esperamos, portanto, que esta obra, agora reimpressa, tenha uma grande circulagéo, e um ministério verdadeiramente frutifero, J. IL. Packer, M.A.; D.Fil. Latimer House, Oxford, 1966 12 PREFACIO Um escritor da atualidade prestou a seguinte homenagem bem merecida ao sistema de teologia de Calvino: “Nos tempos modernos nenhum sistema tem tido uma influéncia prética mais poderosa do que o calvinismo. E um sistema de ousadia espléndida, com consisténcia corajosa em todas as suas partes, nas premissas, no processo e na conclu- sao, Era um sistema arrazoado, a raz4o podia entendé-lo, e ele podia controlar a raz4o que 0 compreendia. Os homens que acreditavam nele sentiam que tinham seus pés firmados na realidade final e mais alta, néo apenas como caminho de salvagdo ou como caminho de paz na morte, mas como um sistema de verdade absoluta; e uma fé tao forte e compreen- siva como essa produzia homens fortes e dominantes. Entrou como ferro no sangue do protestantismo nascente, dando-lhe fortaleza para a resisténcia e os esforgos mais herdéicos. Produ- ziu os homens que, na Franca, lutaram nas nobres batalhas dos huguenotes; os soldados e cidaddos que, nos pantanos da Holanda, resistiram e quebraram o poder cruel e tiranico da Espanha; os puritanos que na Inglaterra ¢ nas florestas do Faroeste formaram tudo quanto houve e ainda ha de mais corajoso, vigoroso e varonil em nossa vida religiosa; os pactudrios da reforma na Escécia que, durante longos anos de perseguicao, alcaram e seguiram a bandeira azul que procla- mava os direitos soberanos de Cristo.” Estou profundamente grato porque meu amigo nos deu este livro, “As Institutas de Calvino” em nova tradugao do latim, em forma simples e de facil leitura, em linguagem atual. Preenche uma grande lacuna, e pessoalmente dou boas- -vindas a ele, com grande alegria e com esperangas de que 13 tenha grande utilidade. A obra surgiu em boa hora; a Igreja de Cristo esta passando por um perfodo muito critico, e creio que tanto precisa de— como também em muitos casos anseia por — ensinamentos fortes e firmes com respeito as verdades funda- mentais da nossa religiao; e este livro é uma contribuicao valiosa no sentido de preencher aquela lacuna. Espero sinceramente que os jovens robustos, pensadores e inteligentes das nossas igrejas, que acabaram de voltar das tragédias da guerra, e que viram a falacia de muitas coisas terrenas, e qu4o vazios sao os sofismas dos nossos dias, ficarao conhecendo esta obra que, com a béngao do Espirito Santo, os levaraé a uma conviccao forte e inteligente das realidades celestiais da fé crista. O livro também devera ser de valor incalculavel para todos os pastores, e especial- mente para os estudantes que aspiram ao ministério, cujo tempo € por demais limitado para ler penosamente a obra inteira das “Institutas de Calvino” na sua forma original. Que o Senhor abengoe ricamente esta obra do Seu servo, usando-a poderosamente. H. TYDEMAN CHILVERS Metropolitan Tabernacle 19 de novembro de 1920 14 DO TRADUTOR AO LEITOR Praeter apostolicas post Christi tempora chartas Huic peperere libra saecula nulla parem Tal foi o veredicto dado h4 muito tempo por um sébio, com respeito ao livro que procurei abreviar e traduzir. As duas linhas podem ser traduzidas assim: “Desde a época de Cristo e depois dos escritos dos Seus apéstolos, nao surgiu no mundo nenhum livro tao notavel”. A dificuldade de abreviar tem sido maior do que a de traduzir. Como se poderia representar 1.000 paginas de latim elegante com 200 paginas de inglés singelo? Omiti muitas passagens controversiais que se referem a opinides e erros de pessoas que j4 foram esquecidas; isto foi necessario e facil. O que, porém, se poderia fazer com o restante do grandioso livro? Ocorreram-me dois planos. Ou deveria escrever algum tipo de an4lise, uma lista 4rida dos varios assuntos tratados, ou teria que dar uma versdo mais ou menos completa de certas passagens, e totalmente omitir muitas paginas de matéria excelente — pois Calvino nao escreveu nada de trivial. Escolhi a segunda alternativa, e também simplifiquei a minha tarefa de abreviacgao omitindo totalmente o Livro IV, que trata do governo da Igreja e das ordenangas externas. Senti certeza de que esta seria uma maneira melhor e mais interessante de fazer o livro conhecido a leitores em geral. E é para tais leito- res que escrevi; aqueles que podem ler fluentemente o latim deverio, de preferéncia, procurar e estudar a obra original. E seré que posso pedir a tais pessoas, se criticarem a minha tradugao, que tratem com ela de modo clemente? Embora tenha procurado a cada passo dar o verdadeiro senti- do das palavras do reformador, nao segui as regras usuais dos 15 tradutores corretos e elegantes. Se eu tivesse feito assim, o resultado nao teria sido tao util para a classe de leitores a qual desejo trazer proveito. E, quanto as omissGes consider4- veis que fiz, eram totalmente necessérias a fim de evitar que 0 livro se soterrasse sob o seu proprio tamanho. O préprio Calvino escreveu no rodapé do prefacio a sua tiltima edigao: Quos animus fuerat tenui excusare libello, Discendi studio magnum fecere volumen. Ou seja: “Pensei em escrever um folheto em defesa deles; a sede deles para aprender me levou a fazer um volume grande”. Nao era uma parte pequena da maravilhosa obra da sua vida, revisar, aumentar e reeditar a Institutio até que no ano 1559, cinco anos antes da sua morte, cle a levou a sua formae tamanho completos. O sucesso da obra era enorme, e, para o seu autor, in- esperado. Dentro de pouco tempo, Calvino pessoalmente a traduziu para o francés, do seu proprio latim; depois, foi traduzida para o inglés, o alemao, o holandés, 0 italiano, o espanhol, o portugués, o grego, e outras linguas. Cerca de 30 anos apés a morte de Calvino, um dignitario catélico-romano escreveu 0 Seguinte a respeito dela: “Na Inglaterra, as “Institutas” s4o quase preferidas a propria Biblia. Os falsos bispos recomendam que todos os ministros quase as decorem, e que as tenham a m4o continua- mente. Sao colocadas numa posigao de destaque nos ptilpitos das igrejas, e conservadas com tanto cuidado como se fossem os Oraculos Sibilinos. Na Escécia, tao logo os jovens tiram o Mestrado em Humanidades, comecam seus estudos teoldgi- cos com a leitura das “Institutas”. Em Heidelburg, Genebra, Herborn, ¢ nas universidades dos calvinistas, ou as “Institutas” ou resumos delas sfo expostos em ptiblico pelos professores aos alunos de teologia. Traduzem estas “Institutas” para todas 16 as linguas, a fim de se capacitarem a matar e destruir os habi- tantes de todas as nacdes com este veneno mortifero. Na Suica (onde todos, desde o mais graduado conselheiro de Estado até o carreteiro ou marinheiro mais vil, conhecem a teologia de Calvino), nao ha ministro nem pregador da Palavra de Deus, nem senador eminente, nem servidor pUblico ou magistrado, enfim, ninguém que dé valor 4 literatura sacra, que n4o perlustre, de dia e de noite, estas “Institutas” de ouro, confor- me as chamam. Enfeitam-nas com ouro, purpura, e todo ornamento caro, como sendo a mais preciosa jéia do evange- lho, como se fossem um tesouro caido do céu; e, na base destes livros, decidem e determinam toda controvérsia.” Uma palavra acerca do titulo que Calvino deu ao seu livro, Institutio Christianae Religionis. Sua tradugdo comum em inglés é: “The Institutes of the Christian Religion” (As Institutas da Religiao Crista). Parece-me que tal titulo trans- mite uma impress4o falsa do carater do livro; pensamos tratar-se de um catélogo macante de doutrinas, definigdes e estatutos. Jnstitutio, porém, significa “Instrucao”. Daf titulo que dei 4 presente abreviacao, A intengao do grande homem era instruir os homens no conhecimento do cristianismo ver- dadeiro; rogo a Deus que Ele use este humilde esfor¢go para essa mesma finalidade! Amigo, tolle et lege: tome-o e leia-o. Com a béngao de Deus o achara de bastante utilidade no correto entendimento das Sagradas Escrituras, e para o verdadeiro conhecimento do caminho da salvacao. E se vocé é um ministro do evangelho, achard aqui muita coisa de proveito e para exercitar a sua mente. Agradego ao Sr. Chilvers por seu bondoso prefacio. Se esta tentativa para reavivar as doutrinas da Reforma venha a ser bem recebida, poderei em algum tempo futuro, se for da vontade de Deus, publicar uma forma abreviada do Livro IV, 0 restante da Institutio. J. B WILES 22 de novembro de 1920 Warkworth House, Devizes 17 ENSINO SOBRE O CRISTIANISMO CARTA INTRODUTORIA A FRANCISCO I A Sua Soberana Majestade 0 mais poderoso e ilustre monarca FRANCISCO, rei muito cristao dos franceses, JOAO CALVINO deseja paz e prosperidade em Cristo. Quando me propus de inicio a fazer esta obra, nada estava mais longe dos meus pensamentos, ilustrissimo rei, do que escrever um livro que chegasse depois a ser apresentado a Sua Majestade. Pretendia meramente publicar um tratado elemen- tar para a piedosa edificagao daqueles que se interessam pela religiao; e as minhas labutas visavam mais especialmente 0 beneficio dos meus compatriotas, os franceses. Quando, po- rém, percebi que a fiiria de certos homens infqiios baniram do seu reino a sa doutrina, pensei que valeria a pena empregar a minha obra como confiss4o da nossa fé diante da sua pessoa, a fim de que saiba qual é a doutrina contra a qual se enfurecem com o fogo e a espada. Eu, pois, confesso francamente que 0 meu livro contém a stimula e a substaéncia da mesmissima doutrina a qual, conforme os clamores deles, deve ser castiga- da com prisao, exilio, banimento, e chamas; deve ser extermi- nada em terra e mar. A sua parte, 6 rei, ser4 a de nao fechar seus ouvidos nem seu coragéo contra uma causa tao justa, especialmente tendo em vista a importancia do assunto que esta em questo, a saber, a integridade da gléria de Deus sobre a terra, a manutencao da dignidade da Sua verdade e a 19 seguranca do reino de Cristo entre nés. Tal questo é digna dos seus ouvidos, digna do seu conhecimento, digno do seu tribunal. Nés, na realidade, somos miseraveis pecadores diante de Deus, e desprezados pelos homens; mesmo assim, a nossa doutrina ficara em pé, exaltada acima de toda a gloria do mundo e invicta por todo o poder dele; isto porque nao €anossa doutrina, mas sim a do Deus vivo e do Seu Cristo. Os nossos adversarios dizem que a nossa doutrina é nova e incerta, sem confirmacao por milagres, contraria a voz una- nime dos pais e contraria ao costume antigo; insistem em que confessemos que, ou a nossa doutrina se opée a igreja, ou que nao tem havido igreja alguma durante os muitos séculos em que tal doutrina era desconhecida. Finalmente, dizem que nao h4 necessidade de argumentos contra uma doutrina que pode ser julgada pelos seus frutos — seitas, disturbios e licenciosidade irrefreada. Respondo: 1. Ao dizerem que é nova a nossa doutrina, ofendem a Deus, cuja santa Palavra nao deve ser acusada de “novidade”. Para eles 6 nova, nao duvido, mas aqueles que sabem que sao velhas as seguintes palavras de Paulo: “Jesus Cristo morreu pelos nossos pecados, e ressuscitou para a nossa justificacao”, nao acharao que ha nada de novo quanto a nés. 2. Por mais que zombem da incerteza dela, se eles tives- sem que dar a vida pela sua religiao, logo veriamos qual o valor que atribuem a sua propria doutrina. Quanto a nés, tal é anossa certeza da verdade que professamos, que nao tememos nem os terrores da morte nem o tribunal da justica de Deus. 3. A exigéncia deles quanto aos milagres é desonesto, pois nao estamos formando um evangelho novo, e sim apegamo-nos Aquilo que j4 foi confirmado por todos os milagres de Cristo e dos Seus apéstolos. Os milagres modernos mediante os quais nossos oponentes sustentam a causa deles, ou sao frivolos ou sao falsos. 20 4. E uma caltinia colocar-nos em oposigéo com os Pais antigos, como se fossem eles os cimplices da maldade dos nossos adversérios. Aqueles santos homens escreveram muita coisa que era excelente e sabia, porém havia muitas coisas que eles nao sabiam. Freqiientemente estavam em desacordo entre si, e As vezes, com eles préprios. Nossos advers4rios nos dizem que Salomao falou: “Nao removas a marca antiga, que teus pais colocaram”. Por que, entao, eles removem a marca sempre quando querem? Um dos Pais disse: “Os ritos sacros nao precisam de ouro; eas coisas que no se podem comprar por ouro, nao adquirem encanto algum por meio do ouro”. Eles, portanto, removem a marca quando, no seu culto, se deleitam tanto em ouro, prata, méarmore, jéias e sedas. Foi um Pai que disse: “Eu como carne enquanto outros jejuam, porque sou um cristao”. Assim, re- movem a marca quando amaldicoam a alma que provar carne durante a Quaresma. Outro Pai disse: “E uma abominagao horrorosa ver uma imagem de Cristo, ou de qualquer santo, retratado num lugar de culto cristao”; outro disse: “A substan- cia do pao e do vinho permanece na Ceia do Senhor, assim como a substancia e a natureza do homem permanecem, jun- tadas 4 divina, em Cristo”. Outro disse: “A Ceia do Senhor deve ser recusada aqueles que somente querem participar de uma forma” (i.e. do pao, e n4o do vinho), ainda outro: “Nao se deve proibir o casamento aos ministros da igreja”, enquanto outro: “A igreja nao deve colocar a sua prépria autoridade antes da de Cristo, porque Ele sempre julga com justica, enquanto os juizes eclesidsticos muitas vezes se enganam”. Sera que eles se conservam dentro destes limites? E, no entanto, ousam nos repreender por removermos as marcas antigas! 5. Além disso, o apelo deles ao costume de nada adianta. Se, na realidade, os julgamentos humanos sempre fossem corretos, os homens bons seriam obrigados a conformar-se aos costumes anteriores, mas ao contrario, acontece freqiientemente que aquilo que a maioria faz, logo obtém a autoridade do 21 costume, embora raras vezes aconteca que a maioria escolhe o caminho melhor. No reino de Deus, no entanto, nada deve ser obedecido ou considerado senao Sua propria verdade eterna, que no pode ser invalidada por nenhum periodo de tempo, nem por quaisquer costumes ou acordos dos homens. Um mau costume nada mais é do que uma pestiléncia ptiblica, pela qual os homens nao perecem menos por perecerem juntamente com uma multidao. 6. O dilema ao qual eles querem nos conduzir (ou somos hereges ou a Igreja tem estado morta ha muitas geracées) nao nos perturba muito. A Igreja de Cristo tem vivido, e con- tinuaré a viver enquanto Cristo estiver a destra do Pai para sustentd-la pelo Seu poder. Com essa Igreja nao temos contenda. Nossa controvérsia gira em torno de dois pontos: primeiro, eles sustentam que a forma da Igreja é sempre aparente e externamente gloriosa; segundo, eles fazem com que aquela forma consista na igreja catélica romana e no seu sistema hierarquico. Pelo contrério, asseveramos que a Igreja no consiste em forma externa, nem sequer naquele esplendor material que estultamente admiram, mas é marcada pela pregagao pura da Palavra de Deus e pela administragao legitima das Suas ordenangas. 7. Finalmente, nao ha eqitidade na sua enumeragao invejosa das perturbacdes, tumultos e contendas que, segundo alegam, foram causados pela pregacao da nossa doutrina; a culpa por estas coisas deve recair sobre a malicia de satanas. Esta é uma caracteristica peculiar, se posso assim falar, da palavra divina, ou seja, quando ela é proclamada, satands nunca permanece dormindo quietamente. Esta é uma marca especialmente segura e certa mediante a qual é distinguida das doutrinas falsas, que sao bem recebidas de todos os lados em meio aos aplausos gerais. Contudo, durante varios séculos, enquanto o mundo inteiro estava envolto em densas trevas, satands fazia troca da raca humana e deleitava-se na posse imperturbavel do seu poder. Quando, porém, a luz que 22 raiou de cima comecou a dissipar essas trevas (na aurora da Reforma), ele acordou, sacudiu de si o seu sono e agarrou as suas armas para a batalha. Primeiramente despertou a vio- léncia dos homens para apagar a luz nascente da verdade; quando, porém, fracassou esse plano, passou ao emprego de armadilhas traigoeiras, provocando lutas e disputas acerca de doutrinas, através dos seus anabatistas e doutros emissdrios vis, a fim de obscurecer e extinguir a verdade do evangelho. Mas que malvadez é lancar contra a Palavra de Deus 0 oprébrio desses disttirbios ¢ excessos! Nao se trata, no entan- to, de qualquer coisa nova. A Elias foi perguntado: “Es tu, o perturbador de Israel?” Cristo foi considerado pelos judeus como provocador de sedicaio. Os apéstolos foram acusados de perturbar 0 povo; lembraram-se, porém, do dito: “Cristo é pedra de tropeco e rocha de ofensa” e prosseguiram corajosa- mente em meio a toda a oposicao. Volto a ti, 6 rei. Nao sejas comovido pelas insinuagées dos nossos adversarios, de que este “evangelho novo” confor- me o chamam, visa meramente gerar sedicao, e dar licenga aos vicios. Nosso Deus nfo é 0 autor da divisao, e sim da paz, eo Filho de Deus nao é ministro do pecado, pois veio destruir as obras do diabo. E nés, pela graga de Deus, fizemos ta- manho progresso no evangelho que nosso viver pode servir aos nossos Caluniadores como exemplo da castidade, da benevoléncia, da misericérdia, do dominio préprio, da paciéncia, da moderagao e de toda virtude. Receio que escrevi 4 Sua Majestade uma carta longa demais; pois 0 objetivo dela nao é expor uma defesa completa da nossa causa, e sim meramente dispor a sua mente a um exame franco e sem preconceitos da mesma. Todavia, se seus ouvidos estao fechados contra nossa peti¢ao pelos cochichos da caltinia, de modo que nossos perseguidores tenham ainda liberdade para enfurecer-se contra nés, sob seu beneplacito, com prisées, acoites, suplicios, torturas e chamas, seremos realmente reduzidos 4 apertura extrema como ovelhas 23 destinadas 4 matanga; mesmo assim, possuiremos as nossas almas com paciéncia e esperaremos ser libertados no tempo devido pela poderosa mao de Deus. Que o Senhor, o Rei dos reis, estabelega o trono de Sua Majestade na justia, e seu reino na eqiiidade, 6 ilustrissimo rei. Escrito em Basiléia em 1 de agosto de 1536 24 O ESCOPO DA OBRA Antes de entrarmos na nossa tarefa de condensar o livro imortal de Calvino, seria bom dar aos nossos leitores um breve resumo do contetido da obra inteira. A primeira edicao, que foi publicada em Basiléia em 1536, foi um mero optisculo em comparagéo com aquela que foi impressa em Genebra em 1559, com os acréscimos e melhorias finais do autor. Estas mudangas, laboriosamente introduzidas por Calvino em muitas edigdes sucessivas no decurso de um periodo de 23 anos, consistiam, nao em alteragdes de doutri- na, mas sim, em novas disposigées feitas para garantir a maior perfeigéo do método, no ampliado tratamento de ligdes im- portantes, e na refutacao dos varios erros dos adversdrios do evangelho. No prefacio a edicao final (1559) 0 autor faz a ob- servagao tocante: “Posso apresentar uma prova clara da since- ridade dos meus esforcos no sentido de apresentar esta obra (na sua forma completa) a Igreja de Deus; no inverno passado, quando pensava que uma febre me estava levando ao meu fim, quanto pior ficou a doenga, tanto menos me poupei, de modo que pudesse deixar um livro que retribuisse,em certa medida, a generosa aceitagdo que os piedosos tém dado as minhas labutas”. No fim daquele prefacio, ha um curioso epigrama em latim, aparentemente composto por Calvino: “Pensei em escrever um optisculo em defesa deles, porém sua sede em aprender exigiu um livro imenso”. Temos diante de nés uma reimpressao da primeira edi- cao, na qual achamos a seguinte declaragao: “Ainda nos resta considerar qual é a natureza da fé verdadeira. Facilmente a 25 aprenderemos do Credo dos Apéstolos, assim chamado, em que é oferecido de modo conciso um tipo de epitome da fé, epitome este que é aceito pela Igreja universal”. Na edicao de 1559, o mesmo pensamento é expresso mais plenamente nos seguintes termos: “Até aqui tenho seguido a ordem do Credo dos Apéstolos: porque este credo, tocando ligeiramente nos pontos principais da redengao, pode servir-nos de indicio em que percebemos nitidamente e na devida ordem os varios aspectos que exigem atencao em relacao a Cristo... Considera- mos que, além de toda a controvérsia, a hist6ria inteira da nossa fé ali é tracada de modo breve e sistematico; e que nada € contido nele que nao é estabelecido por provas biblicas seguras.” Ao dizer isso, Calvino referia-se especialmente Aquela parte da sua obra que trata do conhecimento do Reden- tor; mas a declaracéo de que seguiu a ordem do Credo dos Apéstolos aplica-se com igual forga ao livro inteiro, conforme finalmente o legou a Igreja. Passaremos agora a demonstrar este fato. O Credo dos Apéstolos, “Creio em Deus Pai Todo-pode- roso, etc.”, pode ser reduzido a quatro divisées principais, as quais sao: a crenca em Deus como o Criador de todas as coisas; a crenga em Jesus Cristo, o Filho de Deus; a crenga no Espirito Santo; e a crenca na Igreja Universal. De modo semelhante, a Institutio, na sua forma final, consiste em quatro Livros: Livro I Sobre conhecimento de Deus, 0 Criador Livro II Sobre conhecimento de Deus, o Redentor Livro III Sobre a maneira de receber a graca de Cristo, e os efeitos que se seguem Livro IV Sobre os meios externos da graga Fica evidente que estes se correspondem exatamente As quatro divisées principais do Credo que acabamos de frisar. Isso foi cuidadosamente elaborado por um autor antigo num resumo em latim da Institutio, do qual passamos a fazer uma 26 traducao livre e um pouco condensada: “O escopo do nosso autor é duplo: em primeiro lugar, o conhecimento de Deus; em segundo lugar, o conhecimento de nés mesmos. Com esta finalidade, toma por seu modelo o Credo dos Apéstolos, por ser muito familiar a todos os cristaos. I. O primeiro artigo do Credo refere-se a Deus e Sua onipoténcia, que inclui a criagao, a preservacao e o governo de todas as coisas. De modo semelhante, o primeiro livro da Institutio trata do conhecimento do Criador, Preservador e Governador de todas as coisas. Explica qual é 0 conhecimento do Criador, e para qual finalidade tende: que nao é aprendido na escola, e sim é possuido por todo homem desde seu nasci- mento; e que a depravacao do homem é tao grande que sufoca este conhecimento, em parte pela ignorancia, e em parte pela maldade. E embora este conhecimento inato seja ajudado pelo espelho da criag&o, em que o poder de Deus claramente pode ser visto, mesmo assim, 0 homem nem sequer disso tira proveito. Portanto, quando é 0 designio de Deus tornar-Se mais intimamente conhecido aos homens para a salvacao deles, Ele coloca diante deles Sua Palavra escrita. Esta consi- derag&o leva nosso autor a tratar das Escrituras Sagradas, nas quais Deus Se revelou e mostrou que nao somente 0 Pai, como também juntamente com Ele, o Filho e o Espirito Santo sdo o Deus verdadeiro, o Criador do céu e da terra, a quem nao poderiamos conhecer para que O glorificdssemos, nem pela nossa conviccao inata da Sua existéncia, nem pelas Suas obras na criacdo. Isso leva a uma discussao da revelacéo que Deus deu de Si mesmo nas Escrituras, como sendo um em esséncia etrés quanto as pessoas. E a fim de que o homem nAo culpasse Deus por sua cegueira deliberada, Calvino aqui mostra 0 que o homem era, primeiramente pela criacdo, e trata da imagem de Deus, da liberdade original da vontade do homem e das perfeiges originais da natureza humana. Tendo tratado assim 27 da criagao, passa a falar da preservacdo e governo de todas as coisas, e discorre detalhadamente sobre o assunto da provi- déncia divina. IL. Visto, porém, que o homem caiu, deve apelar a Cristo; dai segue-se no Credo: “E em Jesus Cristo seu tinico Filho, nosso Senhor”. De modo semelhante, Calvino, no segundo livro da sua Institutio trata do conhecimento de Deus como Redentor em Cristo, enos leva a Cristo o Mediador. Aqui trata da Queda e do pecado original, e mostra que o homem nao tem poder em si mesmo para escapar do pecado nem da maldicao que paira sobre ele por causa do seu pecado; mostra também que, até que seja reconciliado com Deus e renovado no seu coragdo, nada pode proceder dele senao aquilo que merece — condenacao; e dessa forma 0 homem, estando com- pletamente perdido em si mesmo, e incapaz até de conceber um bom pensamento para curar-se ou para agradar a Deus, deve procurar a redengao fora de si mesmo em Cristo. Isso leva a uma exposic&o da lei moral. Calvino demonstra que, na época da lei, Cristo era conhecido pelos judeus como o Autor da salvacao, mas Ele foi mais plenamente revelado ao mundo através do evangelho. Daj surge uma discuss4o da semelhanca e diferenga entre o Velho Testamento e 0 Novo. Depois somos ensinados que, para efetivar uma salvacdo perfeita, foi neces- sario ao Filho de Deus tornar-Se homem; que realmente tomou sobre Si uma verdadeira natureza humana, e que as naturezas divina e humana sao unidas numa s6 pessoa em Cristo; que Seus oficios de sacerdote, rei e profeta tém o propésito de obter e aplicar uma salvacao completa mediante Seu mérito e poder. Depois somos informados como Ele realmente realizou a obra de um redentor; e aqui estao expostos 0s artigos do Credo que tratam da morte, ressurrei- ¢4o e ascensao de Cristo para o céu. 28 III. Mas enquanto Cristo esta separado de nés, nada nos aproveita; por isso, precisamos ser enxertados nEle como sarmentos numa videira; entéo segue-se o Credo: “Creio no Espirito Santo” pois é Ele o vinculo de unifo entre nés e Cristo. Assim, nosso autor, no seu terceiro livro, trata do Espirito Santo que nos une a Cristo, e, conseqiientemente, da £6, mediante a qual abracamos a Cristo e recebemos da parte dEle os beneficios da justificagao gratuita, da regenerac4o e do arrependimento. A fim de demonstrar a inutilidade deuma f€ que nao é acompanhada pelo arrependimento, Calvino passa a discorrer sobre aquele arrependimento continuo que Cristo produz em nés quando é recebido pela fé. Volta, entao, para o assunto da justificacéo gratuita, e também fala da oragao como sendo a mio pela qual recebemos as béncdos prometidas entesouradas em Cristo. Visto, porém, que nem todos os homens estao unidos a Cristo pelo Espirito Santo, nosso autor, em seguida, trata da eleigdo eterna por Deus, mediante a qual Ele, nao vendo nada de bom em nés senao aquilo que Ele mesmo nos outorga, deu-nos a Cristo e nos uniu a Ele através da chamada eficaz do evangelho. Quanto aos plenos efeitos da regeneracao e da perfeita fruicao da feli- cidade refere-nos, entdo, 4 ressurrei¢do, para a qual devemos olhar para obté-las, pois neste mundo a felicidade dos piedo- sos apenas comeca. IV. Visto, entao, que Deus geralmente nao outorga a fé sem 0 uso de meios, mas sim emprega para essa finalidade a pregacao do evangelho, e prescreveu o uso de ordenangas e disciplina, o Credo passa a dizer: “Creio na santa Igreja universal”. Por essa razao, Calvino, no seu quarto livro fala da Igreja e dos meios que o Espirito Santo utiliza para chamé- -la e para preserva-la; a pregacéo da Palavra, o Batismo e a Ceia do Senhor, os quais s4o, por assim dizer, 0 cetro com que Cristo governa Seu reino espiritual. E visto que os governos civis, embora diferentes do reino espiritual de Cristo, sio em 29 certo sentido lares e abrigos (hospitia) para a Igreja neste mun- do; mostra que tais governos sao uma béncio de Deus que a Igreja deve reconhecer com gratidao, até que seja chamada destes abrigos tempor4rios para sua heranga eterna, onde Deus sera tudo em todos. Tal é a simula da Institutio de Calvino. Em resumo: 0 homem, originalmente criado justo, mas depois arruinado, nao parcialmente, e sim completamente, acha a totalidade da sua salvacao em Cristo, fora de si mesmo, a quem, unidos pelo Espirito Santo, que nos é dado sem levar em conta obras a serem realizadas por nés, recebemos por imputagdéo uma justica perfeita e também uma santificacéo que comeca nesta vida e se aperfeicoa na ressurreicaéo, de modo que o louvor por tao grande misericérdia seja dado a Deus pelos herdeiros da heranga celestial”. 30 LIVRO I Sobre o Conhecimento de Deus, o Criador 1 HA ESTREITA VINCULAGAO ENTRE O CONHECIMENTO DE DEUS E 0 CONHECIMENTO DE NOS MESMOS A sabedoria verdadeira e substancial consiste quase inteiramente em duas coisas: o conhecimento de Deus e€ 0 co- nhecimento de nés mesmos. Mas, embora estes dois ramos da sabedoria estejam estreitamente ligados entre si, nao é facil ver qual é 0 que precede e qual é 0 que procede. Ninguém pode seriamente considerar-se a si mesmo sem descobrir que esta consideragao volve seus pensamentos em direcéo aquele Deus em quem vive e se movimenta; é dbvio pois, que os poderes que possuimos n4o sao derivados de ndés mesmos, e que nossa propria existéncia é uma existéncia no unico Deus verdadeiro. Através das béngaos que gotejam sobre nés do céu somos guiados a fonte delas; e nossa propria pobreza torna manifesta a riqueza ilimitada de Deus. Acima de tudo a rufna em que a Queda nos afundou nos conclama a olhar para cima, de modo que possamos receber provisées para nossa fome e aprender humildade mediante o temor de Deus. A consciéncia da nossa propria ignorancia, vaidade, pobreza, fraqueza e corrupgao ensina-nos que a verdadeira sabedoria, poder, riqueza e justica somente podem ser 31 achados no Senhor; nem sequer podemos seriamente aspirar ao conhecimento dEle, até que comecemos a ficar descontentes conosco mesmos. Por outro lado, esta certo que ninguém adquire qualquer conhecimento certo de si mesmo até ser trazido face a face com Deus. Tal, pois, é nosso orgulho natural que sempre nos consideramos retos, sabios e santos, até que sejamos convictos do contrario por provas claras; e nao ficamos convictos desta maneira antes de olharmos para o Senhor, cuja perfeigdo é 0 unico padrao pelo qual este assunto deve ser testado. Todos nés temos uma tendéncia natural 4 hipocrisia; e, portanto, ficamos bem satisfeitos com uma demonstracao de justiga falsa ao invés da justiga verdadeira. Tudo ao nosso redor esta contaminado; conseqiientemente aquelas coisas que estao um pouco menos contaminadas do que outras nos agradam como se fossem a prépria pureza. Portanto, um olho que ficou fixo numa parede preta confundira um marrom claro com 0 branco; e a vista que é nitida e forte para as coisas na terra vé-se ofuscada quando se volta para o sol. Até que olhemos mais alto do que a terra, parecemos semi-deuses para ndés mesmos; quando, porém, aprendemos a considerar as perfeigdes de Deus, nossa justiga é vista como iniqtiidade, nossa sabedoria como estulticia, e nossa forga como fraqueza. Surge dai aquele temor e espanto que tem cafdo sobre os santos cada vez que tiveram consciéncia da presenga de Deus. Freqiientemente clamavam: “Morreremos, porque vimos 0 Senhor” (Jui. 13:22; Is. 6:5; Ez. 1:28; 3:14; Dan. 8:18; 10:16,17). Disso infere-se que o homem nunca é corretamente atingido com um senso da sua propria nulidade até que se tenha exa- minado perante a majestade de Deus. As experiéncias de J6, Abraio, Elias ¢ Isaias, todas elas confirmam esta verdade. E 0 que pode fazer o homem, ele que nao passa de ser corrup¢ao e verme, quando os préprios querubins cobrem 0 rosto em reverente temor? Nao obstante, o conhecimento de Deus e 0 conhecimento 32 de nés mesmos estejam intimamente ligados, 0 método correto de ensino requer que falemos primeiramente do conhecimento de Deus, e depois, do de nés mesmos. 2 O QUE SIGNIFICA CONHECER A DEUS Por “conhecimento de Deus” quero dizer nfo o mero conhecimento do fato de que Deus existe, e sim, um conheci- mento dEle tal que seja para o nosso bem e para a gloria dEle; nao podemos, pois, dizer corretamente que Deus é conhecido por aqueles que nao tém piedade. E a esta altura ainda nao menciono 0 conhecimento que o pecador tem do seu Reden- tor, porém o conhecimento tal que naturalmente terfamos se Adao nao tivesse caido. Pois uma coisa é conhecer a Deus como nosso Criador, sustentando-nos pelo Seu poder, governando- -nos pela Sua providéncia, e cumulando-nos com beneficios, todavia coisa bem diferente é abragar a reconciliagéo que é colocada diante de nés em Cristo. Verdadeiramente conhece- mos nosso Criador quando nao somente reconhecemos que Ele criou as coisas pelo Seu poder, que sustenta-as pelo mes- mo poder, que governa a raca humana com sabedoria, justiga e cuidado amoroso, mas também percebemos que nao temos uma gota sequer de sabedoria, justica, poder ou verdade senao aquilo que flui dEle, e assim aprendemos a depender dEle por todas estas coisas e a reconhecé-las com gratidéo como dédivas dEle. Nada menos € que va especulagaéo perguntar 0 que é Deus. £ do nosso interesse ficar sabendo do Seu carater e daqueles atributos dEle que nos importa conhecer. O que, pois, € a utilidade de reconhecer, conforme Epicuro reconhecia, 33 que existe um Deus, mas um Deus que vive despreocupado e deixa 0 mundo cuidar de si mesmo? Um conhecimento correto dEle € 0 que nos leva a reverencié-lO e buscar toda coisa boa da Sua bondosa mao. Como, pois, pode vocé ter em mente qualquer pensamento acerca de Deus, sem ao mesmo tempo ter a consciéncia de que vocé, sendo a obra das Suas miaos,é pela propria lei da criacdo sujeito ao Seu dominio, que sua vida a Ele pertence, e que todas as suas aces devem ser guiadas pela vontade dEle? Sendo esse 0 caso, segue-se imediatamente que sua vida é corrompida e depravada, a nao ser que seja moldada segundo o Seu beneplacito. O homem bom nao é refreado do pecado pelo mero temor do castigo, mas sim por um amor reverente a Deus como seu Pai, a quem teme ofender. Esta é a religiao pura e genuina; e deve- mos lembrar-nos com cuidado que, embora todos os homens prestem a Deus algum tipo de culto, muito poucos O reveren- ciam; ha de todos os lados uma grande demonstracio de observancias cerimoniais, mas a sinceridade de coragio é rara, 3 O CONHECIMENTO DE DEUS £ IMPLANTADO NO CORACAO DO HOMEM DE MODO NATURAL Sustentamos ser fato indisputavel que alguma conscién- cia da existéncia de uma deidade esta naturalmente arraigada na mente humana. O préprio Deus deu ao homem esta con- viccfo, e constantemente a renova, de modo que o homem nao possa pleitear a ignorancia como desculpa pela sua falta de sujeicéo 4 vontade do seu Criador. Um escritor pagao (Cicero) nos contou que nao ha nag&o tao barbara que esteja destitufda da crenca na existéncia de um Deus. Visto, 34 portanto, que nunca houve um pajs, uma cidade ou um lar, sem algum senso de religiéo, temos nisso um tipo de confissao tdcita de que o homem naturalmente sabe que hé um Deus. Até mesmo a idolatria comprova este fato, pois vemos que o homem, por orgulhoso que ele seja, preferiria curvar-se diante de um toro de madeira ou um bloco de pedra do que ser considerado destituido de um Deus. Portanto, é muito absurdo dizer, como dizem alguns, que a religido foi inventada pela asticia e esperteza dalguns poucos, a fim de conservarem em serviddo 0 povo comum. Reconheco que homens astutos tenham inventado muitos dispositivos na religido para fazer isso; mas nunca o teriam conseguido se nao houvesse um instinto religioso profundo nas mentes dos homens. Nem sequer podemos crer que estes enganadores estavam pessoalmente destituidos de uma crenca em Deus. Pois, embora tenha havido, e haja, homens que professam ser ateus, mesmo assim, de vez em quando sao compelidos a sentir aquilo que desejam esquecer. Nao lemos doutro desprezador da Deidade mais ousado do que Caio Caligula; ninguém, porém, tremia de modo mais abjeto do que ele quando aparecia algum sinal da ira divina. Por isso, embora os homens procurem esconder-se da presenga de Deus, so presos como num la¢o, e estao compelidos, queren- do ou n4o, a reconhecer Sua existéncia. Logo, concluimos que esta nao é uma verdade que precisa ser aprendida na escola, e sim, uma que cada homem aprende de si mesmo, e que nao pode erradicar do seu coragao, embora force todos os seus nervos para assim fazer. 35 4 ESTE CONHECIMENTO £ ABAFADO OU CORROMPIDO, PARCIALMENTE PELA IGNORANCIA E PARCIALMENTE ' PELA MALDADE Ainda que a experiéncia testifique que algum germe de religiao foi implantada em todos os homens pelo seu Criador, dificilmente uma pessoa entre cem cuida dele, e nado h4 uma em quem amadurega e frutifique. Alguns se tornam vaos nas suas supersticdes, outros com perversidade deliberada afastam- -se de Deus; entretanto todos desviam-se do verdadeiro conhecimento dEle, de modo que nenhuma verdadeira piedade permanece no mundo. Contudo, a sua estulticia nao os livra da culpa, porque sua cegueira 6 acompanhada pela rebeldia e vaidade arrogante. Isso 6 demonstrado pelo fato de que, na sua busca de Deus, nao sobem acima do seu proprio nivel, em vez disso O avaliam pela medida da sua propria tolice carnal, e se desviam para vas especulacgdes. Nao pensam dEle de acordo com a revelagao que da de Si mesmo, e sim, entendem que Ele é conforme sua prépria presungao precipitada a imagina. Logo, para sua destruigao certa, nao adoram o Deus verdadeiro, pelo contrario, adoram um sonho do seu proprio coragaéo. Conforme Paulo diz expressamente “Inculcando-se por sébios, tornaram-se loucos” (Rom. 1:22). Quando Davi diz (Sal. 14:1), “Diz o insensato no seu coracao: nao ha Deus”, refere-se aqueles que sufocam em si mesmos a luz da natureza e deliberadamente se tornam brutais. Para tornar mais detestavel a loucura deles, represen- ta-os como totalmente negando a existéncia de Deus; pois embora admitam em palavras que ha uma Deidade, roubam- -na da Sua justica e da Sua providéncia, como se Ele Se sentasse desocupado no céu. Davi é o melhor intérprete das suas préprias palavras, quando diz noutro lugar (Sal. 36:2, 10,11) que n4o ha temor de Deus diante dos olhos dos fmpios, 36 e que se lisonjeiam nos seus maus caminhos com a imagina- ¢ao de que Deus nao os vé. Daquele que furta Deus do Seu poder, pode-se dizer verdadeiramente que nega que Ele existe. Deve ser observado, no entanto, que embora os maus lutem contra suas préprias convicgdes e se esforcem para banir Deus dos seus coragdes, e até mesmo gostariam de destron4-1O no céu, mesmo assim, Ele os arrasta de vez em quando para Seu tribunal de justica, mediante a voz da cons- ciéncia, Estas consideragées derrubam a defesa vazia que muitos levantam para sua propria supersticao. Pensam que qualquer tipo de zelo religioso, por mais ridiculo que seja, é suficiente; esquecem-se de que a religiao verdadeira deve tomar por sua regra perpétua a vontade de Deus, e de que Ele é sempre igual a Si mesmo, e nao um ser imagindrio que pode ser alterado segundo o gosto de cada um. A supersti¢ao zomba de Deus com falsidades, enquanto se esforca para agrada-lO. Agarra-se em observancias as quais Deus jd disse que n4o lhes da valor, e despreza ou rejeita aquelas coisas em que Ele disse que Se deleita, Por isso, o apdstolo Paulo disse aos efésios que eles estavam sem Deus, enquanto andavam sem o conhecimento correto do tinico Deus verdadeiro. Realmente, se nao O conhecemos, faz bem pouca diferenca se reconhecemos um Deus ou muitos; nao tendo Ele por nosso Deus, nada mais temos senao um idolo maldito. A culpa dos pecadores também aparece no fato de que nunca pensam em Deus senao quando sao obrigados a fazé-lo; o temor que tém dEle é servil e constrangido, causado pelos terrores do Seu julgamento, o qual, porque é inescapavel, cles temem e odeiam. Estando avessos a justiga de Deus, desejari- am subverter Seu trono de julgamento; no entanto desejando, se possivel, evitar a aparéncia de que a desprezam, praticam alguma amostra externa de religiao, enquanto se poluem com todos os tipos de vicio, e acrescentam crime a crime, até que tenham quebrado a lei santa de Deus em todo ponto, e jogado 37 aos ventos todas as exigéncias da Sua justiga. Ao passo que deve haver um curso regular de obediéncia a Ele na totalidade da vida deles, rebelam-se contra Deus em quase todas as suas obras, e depois procuram aplaca-1O com uns poucos e intteis sacrificios; assim acontece que as trevas da iniqtiidade apagam aquelas centelhas do conhecimento de Deus que naturalmente possuiam. Na prosperidade, zombam de Deus e tagarelam contra Seu poder; quando, porém, um surto de desespero os impulsiona, forga-os a buscar Deus, e os leva a proferir oragdes curtas, que comprovam que no tinham total ignorancia dEle, e sim que presuncosamente abafavam 0 conhecimento dEle que estava implantado nos seus coragées. 5 O CONHECIMENTO DE DEUS RESPLENDE NA ESTRUTURA DO UNIVERSO E NO GOVERNO CONTINUO DO MESMO Deus Se revelou de tal maneira na estrutura do universo e Se manifesta de tal forma nele dia apés dia, que os homens nao podem abrir seus olhos sem vé-IO nas Suas obras, Sua esséncia é, na realidade, incompreensfvel, e est4 oculta da percepcao dos homens; mas em cada uma das Suas obras Ele gravou marcas tao certas e evidentes da Sua gloria que mesmo os mais simples e obtusos da raga humana nao tém nenhuma desculpa pela sua ignorancia dEle. Logo, o salmista, falando da manifestacao da gléria de Deus na criacao, diz com razao: Ele est vestido com a luz como uma roupa; colocou as vigas das Suas cAmaras nas 4guas; as nuvens sao Seu carro; cavalga as asas do vento; 0s ventos e os trovdes sao Seus mensageiros velozes. Na realidade, por onde quer que os olhos se volvam nao encontram uma particula da criacdo que nao brilha com alguns raios da Sua gloria. Por esta razao, o Salmo 19 atribui 38 linguagem as esferas siderais; e de modo semelhante, 0 apés- tolo Paulo nos diz que Deus Se manifestou aos homens pelas obras das Suas maos, de maneira que Suas coisas invisiveis, Seu eterno poder como também a Sua propria divindade, claramente se reconhecem, sendo compreendidas por meio das coisas que foram criadas (Rom. 1:19). Estamos cercados por todos os lados pelas provas da maravilhosa sabedoria do Criador. Algumas delas sao ocultas a observagéo comum, e somente podem ser trazidas a luz pela astronomia e por outras ciéncias; mas outras compelem 4 atenc4o o observador mais simples. Os homens que pos- suem conhecimento cientifico podem penetrar mais detalhadamente nalguns dos segredos da sabedoria divina; todavia a falta deste conhecimento nao impede os homens de verem aquele fino lavor nas obras de Deus que deveria constrangé-los a admirar o Autor delas. E verdade que a observacao exata e cientifica é necess4ria para investigarmos © movimento dos corpos celestes, para determinarmos suas érbitas, para medirmos suas distancias e para observarmos suas propriedades; mesmo assim, os mais incultos que somente tém seus olhos para ajud4-los, nao podem deixar de ver a destreza divina que é revelada no nimero, na varie- dade e na ordem da hoste celeste. Portanto, fica claro que nao ha ninguém a quem Deus nao revelou Sua sabedoria nas obras das Suas m4os. De modo semelhante, embora requeira agudeza para considerar com o cuidado de um anatomista a estrutura, a simetria, a beleza e 0 uso do corpo humano, é universalmente admitido que o arcabougo daquele corpo comprova a pericia admirdvel do seu Arquiteto. Desse modo, alguns dos filésofos antigos corretamente chamavam o homem de um “microcosmo”, um pequeno mundo, porque ele é uma amostra tao maravilhosa do poder, da bondade e da sabedoria de Deus. Verdadeiramente Deus nfo est longe de cada um de nés (Atos 17:27). Mas se nao precisamos ir além do nosso préprio corpo para achar a obra de Deus, quao 39 indesculpavel é nossa preguica se nos recusamos a buscé-la! Nisto aparece a vergonhosa ingratidao dos homens; contém dentro das suas préprias pessoas uma quantidade das obras distintas de Deus e dos Seus beneficios inestimaveis, e ficam inchados de orgulho por causa das dadivas, ao invés de atribuir louvor ao Doador. Sao compelidos, quer queiram ou nao, a reconhecer que estas coisas sao provas da Sua divin- dade, mas, mesmo assim, as suprimem. Nos dias atuais a terra est4 sobrecarregada com muitos monstros que nao hesitam perverter os dons que Deus deu 4 natureza humana, e os usam para extinguir o Seu nome. Nao dirao que o homem difere das feras por mero acidente, porém ao fazer da “natureza” a arti- fice de todas as coisas, poem Deus de lado. Véem a habilidade primorosa que é revelada nos varios membros dos seus préprios corpos, desde seus olhos até as pontas das unhas, e a chamam de “obra da natureza”, ao invés de reconhecer que éa obra de Deus. Acima de todas as coisas, os movimentos rapidos da mente humana, suas faculdades espléndidas, seus dons singulares testificam claramente do Criador: e contudo, os homens, como os gigantes caolhos da antigiiidade, fazem uso destes poderes altaneiros para guerrear contra Deus. Que coisa! Todos os tesouros da sabedoria divina hao de conspirar para dirigir um “verme” de 1,60m de altura, e Deus nao ha de ter voz ativa no governo do universo? Ha um ditado de Aristételes que diz que a alma tem certas faculdades organicas que correspondem aos érgaos do corpo. Se este for 0 caso, nao ofusca a gléria do Criador; pelo contrario, ressalta-a. Algumas pessoas levianas, no entanto, fazem uso desta declaracao para roubar a alma da sua imorta- lidade e para roubar Deus dos Seus direitos. Isto porque, sob 0 pretexto dea alma ter faculdades organicas, ligam-na ao corpo de tal maneira que nao possa existir sem 0 corpo: e ao dedica- rem 4 natureza o seu louvor, suprimem, dentro das suas possibilidades, o nome de Deus. Entretanto, os poderes da alma est4o longe de serem confinados aqueles que servem 40 ao corpo. O que tem isso a ver com seu corpo — que vocé mede a abébada celeste, que enumera os corpos celestes, que averigua seus varios tamanhos, que aprende suas distancias, que estima a sua velocidade, e que determina as variacées das suas 6rbitas? Em pesquisas nobres tais como essas, ndo teria a alma fungées que so independentes do corpo? Além disso, as atividades diversificadas com que a alma atravessa a terrae 0 céu, liga o passado com o futuro, retém na meméria aquilo que uma vez foi ouvido, e retrata para si mesma aquilo que deseja; a destreza com que excogita quest6es incriveis e traz 4 existéncia tantas artes maravilhosas; nao seriam esses sinais seguros da obra de Deus no homem? Até no sono a mente continua em atividade; concebe muitos pensamentos titeis ¢ vislumbra o futuro. O que devemos dizer acerca de tais coisas, senao que as marcas da imortalidade sao indelevelmente impressas sobre a natureza humana? A propria raz4o, portan- to, nao nos compeliria a reconhecer um Criador? O qué? Teremos nés 0 dom de discernir entre 0 certo e 0 errado, eno haveria Juiz no céu? Sobrara para nés algum entendimento até mesmo enquanto dormimos, e nao haveria um Deus desperto para governar o mundo? Aquilo que alguns tagarelas falam acerca de uma inspira- cfo secreta que vivifica o universo inteiro nao é apenas fraco — é totalmente {mpio. Citam com aprovacao as linhas célebres de Virgilio: O céu, a terra, as plantcies aqudticas do oceano, A lua brilhante, e 0 orbe brilhante do dia, Sdo alimentados por um espirito que permeia seus membros, Movimenta sua massa, e se mistura com sua forma. Como pode a piedade ser produzida e nutrida nos coragédes dos homens por esta va especulacio acerca de um intelecto que anima e vivifica 0 universo? Alija o Deus verda- deiro, 0 abjeto correto do nosso temor e adoragao, e coloca algum poder fantasmagérico no Seu lugar. Admito, na 41 realidade, que um homem bom possa dizer com boas inten- gOes que a natureza é Deus; mas tal maneira de falar é 4sperae imprépria. E melhor dizer que a natureza €é uma ordem que Deus estabeleceu. Em questées de tal importancia é um erro malicioso confundir Deus com as obras que fez, e com aquele curso da natureza que esta sujeito 4 Sua vontade, Lembremo- -nos, portanto, todas as vezes que considerarmos nossa propria forma, que ha um s6 Deus que governa todas as coi- sas, cuja vontade é que dependamos dEle, que creiamos nEle, e que O adoremos, pois nada pode ser mais contrario ao bom senso do que desfrutar daquelas dadivas excelentes permeadas pela bondade de Deus, e negligenciar o Autor delas, de cuja bondade depende sua continuidade. Ademais, quantas manifestagdes ilustres do poder de Deus nos compelem a pensar nEle! Ele sustenta pela Sua propria palavra este arcabouco ilimitado do céu e da terra: Ele sacode o céu conforme Seu proprio beneplacito mediante o ribombar do trovao, e o acende com chamas de raios que a tudo consomem; Ele perturba o ar com tempestades e proce- las, e as aquieta num momento; Ele estabelece limites as ondas ameacadoras do mar, chicoteia suas ondas com os ventos turbulentos até se enfurecerem, e novamente as acalma trazendo-as A paz. Estes testemunhos que a natureza fornece do poder de Deus sao freqiientemente referidos nas Escritu- ras, especialmente no livro de Jé e nas profecias de Isaias. E 0 poder de Deus nos leva a pensar na Sua eternidade; porque Aquele de quem todas as coisas procedem deve ser eterno e auto-existente. Mas se procurarmos saber por que Ele realizou toda a obra da criacao, a tinica causa que poderemos achar sera Sua propria bondade. Encontramos provas igualmente claras do poder de Deus naquelas Suas obras que estao fora do curso normal da natureza. No governo da humanidade, Ele exerce Sua provi- déncia de tal maneira que, embora seja bondoso com todos os homens, ainda assim, revela de modo claro e constante Sua 42 bondade aos justos e Sua severidade aos impios. A mao de Deus as vezes é claramente vista no castigo do crime; e, com igual clareza, Ele mostra-Se o protetor e o vingador do ino- cente. Semelhantemente nfo fica obscurecida Sua justica eterna pelo fato de que as vezes permite que os culpados triunfem por algum tempo, enquanto deixa os inocentes sofrerem a adversidade e a serem oprimidos pela malicia dos impios. Pelo contrario, quando Deus castiga um crime, deve- mos aprender disso que Ele odeia todos os crimes; e quando vemos que Ele deixa muitos sem castigo por enquanto, isto deve convencer-nos de que haverd um castigo no futuro. Esta providéncia de Deus é ensinada no Salmo 107. Ali, o salmista nos conta como Deus da ajuda maravilhosa e inesperada aos aflitos, protegendo os desgarrados no ermo e guiando-os no caminho certo, suprindo os famintos com alimento, libertando os presos do cativeiro, trazendo os ndufragos para um porto seguro, curando os enfermos, fertili- zando a terra e levantando os humildes enquanto os soberbos sao derrubados. Com estes casos, 0 salmista mostra que os eventos que muitos atribuem ao acaso realmente sdo indicios eprovas do cuidado providencial de Deus; e acrescenta que os que s4o sdbios, e que atentam para estas coisas, entenderao as misericérdias do Senhor. Aqui, mais uma vez, deve ser observado que somos convidados a chegar a um conhecimento de Deus que nao seja especulativo, vazio e infrutifero, mas sim, que seja subs- tancial e frutifero, deitando raizes profundamente em nosso coragao. Dai percebemos que o método certo de buscar Deus € contempla-IO em Suas obras, e nao inquirir presuncosa- mente quanto ao mistério da Sua esséncia. O conhecimento de Deus que descrevi nos leva, forgosa- mente, a ter esperanca numa vida futura. Quando, pois, percebemos que a atual demonstragao da bondade e da severidade de Deus é somente de natureza inicial, e em certo sentido imperfeito, obrigatoriamente devemos concluir 43 que é apenas um preltidio de uma demonstrac4o mais plena e perfeita de misericérdia e juizo no mundo do porvir. E quando vemos os piedosos sofrerem afligdes, ofensas, caltinias e repreens6es as m4os dos impios, enquanto os impios vivem em prosperidade, conforto, sossego e serenidade, podemos inferir corretamente que haver4 outra vida em que tanto a iniqtiidade quanto a justiga receberao seu devido galardao. Podemos ter certeza de que o Deus que castiga os fiéis nao deixara os impios escaparem aos golpes da Sua vinganga. E apropriado 0 ditado de Agostinho, o qual diz: “Se todos os pecados fossem agora visitados com 0 castigo, poderiamos pensar que nao haveria juizo vindouro; e que se nenhum pecado fosse imediatamente castigado, poderiamos pensar que no existe a providéncia divina”. Contudo, por mais claramente que Deus revele Seu poder imortal nas obras de Suas maos, nossa tolice é tal que nao o percebemos, nem tiramos proveito da licdo. Quao poucos olham para a bela forma da natureza e pensam no Criador da mesma! Quéo comumente os homens fazem refe- réncias aos eventos da vida cotidiana atribuindo-os ao acaso em vez de atribui-los 4 providéncia de Deus! Ora, devemos lembrar-nos de que todos aqueles que corrompem a pura verdade da religiao, como necessariamente farao todos quantos seguem suas préprias opinides, apostatam do unico Deus verdadeiro. Por isso, Paulo disse aos efésios que eles estavam sem Deus até que tivessem aprendido do evangelho o que significa adorar 0 Deus verdadeiro. Em vao, portanto, brilham as obras da criagéo ao nosso redor como muitas lampadas para demonstrar a gloria do seu Autor; elas, com todo o seu brilho nao conseguem, de modo algum, guiar-nos no caminho certo. De fato, deixam-nos sem descul- pa por nossa ignorancia deliberada de Deus; mas precisamos de outro guia, de uma luz mais brilhante, para nos trazer ao verdadeiro conhecimento do nosso Criador. Desse guia passarei agora a falar. 44 6 A FIM DE CHEGAR A UM VERDADEIRO CONHECIMENTO DO SEU CRIADOR, O HOMEM PRECISA DA ORIENTACAO E DO ENSINO DAS SAGRADAS ESCRITURAS Embora 0 esplendor da gléria de Deus revelada na cria- ¢4o nos deixe sem qualquer desculpa para a ingratidao, precisamos de melhor ajuda para conhecermos corretamente nosso Criador. Por conseguinte, Ele deu-nos a luz da Sua Palavra, como privilégio especial outorgado aqueles aos quais deseja tornar-Se mais intimamente conhecido. Um olho com vista defeituosa pode ser totalmente incapaz de ler duas palavras num livro, por mais belamente que seja impresso; no entanto com a ajuda de éculos aquele olho comecard a ler 0 livro com facilidade. Assim também as Escrituras esclarecem © conhecimento confuso que temos sobre Deus em nossas mentes, e O revelam claramente a nds. gq, portanto, um dom peculiarmente precioso que Deus nos deu ao abrir Sua santa boca para nos dar a Sua Palavra, ao invés de nos deixar procurar o conhecimento dEle nas obras das Suas mos. Nao se deve duvidar que Adao, Noé, Abraao e outros filhos de Deus que viveram na antigtiidade, tenham aprendido a conhecer Deus dessa maneira, e que eram assim distinguidos do mundo incrédulo. Ainda nao estou falando da doutrina da f€, pela qual foram iluminados para a vida eterna, mas mera- mente daquilo que lhes ensinou o conhecimento do seu Criador. Realmente tiveram um conhecimento adicional dEle como seu Redentor na Pessoa do Mediador, sem 0 qual n&o poderiam ter passado da morte para a vida; todavia desde que ainda n4o estou tratando da Queda do homem, por enquanto nao entrarei na questao da salvacao. Ora, se Deus Se deu a conhecer aos patriarcas mediante ordculos e visdes, ou se lhes deu mediante a instrumentalidade humana Sua Palavra escrita, ¢ claro que tinham certeza da 45 doutrina que receberam e que foram plenamente persuadidos de que veio de Deus, pois Deus sempre colocou a veracidade da Sua Palavra acima de suspeita. No transcorrer do tempo, no entanto, a fim de que Sua Palavra permanecesse para 0 uso das geracdes vindouras, foi do Seu agrado que as verdades reveladas aos pais fossem constituidas em forma de livro. Portanto, a lei foi dada e depois foram levantados profetas para fazerem exposicéo dela. E embora 0 objetivo principal da lei e dos profetas fosse testificar de Cristo, mesmo assim as Escrituras serviram para distinguir 0 Deus verdadeiro, Criador dos céus e da terra, da multidao inteira de deuses falsos. Por conseguinte, embora seja certo que o homem usasse seus olhos para contemplar a gloria de Deus conforme é demonstrada no espetaculo espléndido apresentado pela criagao, ainda assim deve prestar ouvidos 4 Palavra de Deus para poder fazer bom progresso no conhecimento do seu Criador. Ninguém pode obter 0 minimo gosto da doutrina certa e sadia a nao ser que se torne aluno das Sagradas Escrituras. Quando consideramos quao inclinada esta a mente humana para esquecer-se de Deus, quaéo pronta a todo tipo de erro, quao ansiosa para imaginar religides novas e falsas, vemos claramente como foi necessdrio que a verdade divina fosse registrada por escrito. E visto que Deus nos deu Sua Palavra para ensinar-nos a verdade, é de acordo com ela que devemos andar se realmente desejamos conhecé-la. Se nos desviarmos deste caminho nunca chegaremos ao alvo, nao importa quao rapidamente corramos, visto que estaremos correndo ao longo de uma estrada errada. A gléria da face divina é uma luz 4 qual nenhum homem pode aproximar-se (1 Tim. 6:16); e, portanto, nos acharemos num labirinto inextricdvel a ndo ser que sejamos guiados pelo fio da Palavra de Deus. E melhor manquejar ao longo dessa estrada do que correr com a maxima rapidez em qualquer outra. Por conseguinte, o profeta que nos diz que os céus proclamam a gléria de Deus e que a sucesso constante de dias e noites 46 proclamam Sua majestade, passa depois a falar da Palavra: “A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel e dé sabedoria aos simplices” (Sal.19:7). E, no mesmo sentido, Cristo disse 4 mulher samaritana que o povo dela e os gentios adoravam o que nao conheciam, ao passo que somente os judeus adoravam o Deus verdadeiro. 7 AS ESCRITURAS PRECISAM SER RATIFICADAS PELO TESTEMUNHO DO ESPiRITO A FIM DE QUE SUA AUTORIDADE SEJA INQUESTIONAVEL; E £ UMA FICCAO IMPIA DIZER QUE SUA CREDIBILIDADE DEPENDE DO JUIZO DA IGREJA Visto que Deus nao fala diariamente do céu com uma voz audivel, mas sim achou por bem dar-nos nas Escrituras um registro permanente da Sua verdade, é necessdrio para os crentes saber com certeza que as Escrituras nos vieram do céu. Ora, um erro muito pernicioso tem sido divulgado: que as Sagradas Escrituras devem toda a sua importancia 4 sangao da Igreja; como se a eterna e inviolavel verdade de Deus dependesse do julgamento do homem! E asseverado que a Igreja decide qual reveréncia é devida 4 Biblia e quais livros devem ser inclufdos no cfnon sagrado. O fato é que homens impios, desejando impor um jugo de tirania sobre seu proxi- mo, nao se preocupam com que absurdos se envolvem e aos outros, se apenas puderem fazer as pessoas simples acreditar que a Igreja é toda-poderosa. Contudo, se as promessas do evangelho dependem do julgamento dos homens, o que sera das consciéncias perturbadas que buscam uma esperanca bem fundamentada na vida eterna? 47 As declaragées de tais polemistas sao bem refutadas por uma tnica declaracéo do apdstolo Paulo, que nos diz que a Igreja é edificada sobre o fundamento dos apéstolos e profetas, pois fica evidente que se 0 alicerce da Igreja é a doutrina dos profetas e apdstolos, essa doutrina deve ter sido autenticada antes que se comegasse a edificar a Igreja. Ora, se a Igreja Crista foi originalmente alicergada sobre os escritos dos profetas e sobre a pregaciéo dos apéstolos, o recebimento da doutrina deles, como sendo verdadeira, deve ter precedido a edificacio da Igreja. B, portanto, uma ficgdo vazia asseverar que a Igreja tem o poder de fazer-se juiz das Escrituras, como se a sua exatidao dependesse da decisdo dela. A pergunta, “Como saberemos que vieram da parte de Deus, a nao ser que tenhamos a certeza disso mediante a decisao da Igreja?” é tao estulta quanto a pergunta, “Como discerniremos a luz das trevas, o branco do preto, o doce do amargo?” O argumento mais convincente empregado nas Escritu- ras sempre é que quem fala é Deus. “Assim diz o Senhor.” Os profetas e os apéstolos nao se jactam da sua propria sabedoria, nem se demoram com aqueles raciocinios que geralmente obtém respeito para um orador; eles propdem o nome sagrado de Deus, de modo que possa compelir a obediéncia do mundo inteiro, E se quisermos libertar as consciéncias dos homens de dtividas, incertezas e escriipulos, devemos fundamentar a fé nalguma coisa mais alta do que os argumentos, decisdes e¢ conjecturas dos homens, a saber, no testemunho intrinseco do Espirito de Deus. E verdade que se quiséssemos empregar argumentos, muitos poderiam ser propostos para comprovar inegavelmente que, se ha um Deus no céu, as Escrituras procederam dEle. Mas é coisa absurda procurar estabelecer por argumentos a credibilidade das Escrituras. Da minha propria parte, embora nao possua grande habilidade ou eloqiiéncia, ainda que me fosse necessdrio debater com os mais astutos entre os desprezadores de Deus, com homens que querem demonstrar sua destreza e sabedoria por meio de 48 subverter a autoridade das Escrituras, tenho certeza de que facilmente poderia silenciar suas bocas clamorosas. Todavia, mesmo que alguém defendesse com sucesso a Palavra de Deus contra os ataques dos contraditores, nao estabeleceria com isso no coracao deles aquela fé inabalavel que a piedade exige. Desde que os homens do mundo pensam que a religiao consiste somente de opiniées, querem receber provas pela forga dos argumentos que Moisés e os profetas falaram por inspiracio divina. Respondo, porém, que o testemunho do Espirito é superior a todos os argumentos. Deus na Sua Palavraéa tnica testemunha adequada a respeito de Si mesmo, e, de maneira semelhante, Sua Palavra nao sera verdadeiramente crida nos coragées dos homens até que tenha sido selada pelo teste- munho do Seu Espirito. O mesmo Espirito que falou através dos profetas deve entrar em nosso coragao para convencer-nos que eles entregaram fielmente a mensagem que Deus lhes deu. Esse fato é demonstrado mais apropriadamente pelas palavras de Isaias: “O meu Espirito, que esta sobre ti, e as minhas palavras que pus na tua boca, nao se desviarao da tua boca nem da boca da tua posteridade, nem da boca da posteridade da tua posteridade, diz o Senhor, desde agora e para todo o sempre” (Is. 59:21). Seja esta uma quest4o decidida: que os que sao intima- mente ensinados pelo Espirito Santo ponham firme confianga nas Escrituras; e que as Escrituras tém sua propria evidéncia, e que nao podem licitamente ser sujeitadas a provas e argu- mentos, mas sim obtém mediante 0 testemunho do Espirito aquela confianga que merecem. Pois embora exijam nossa reveréncia pela sua majestade, no entanto, nao nos afeta real- mente até que seja selada em nossos coragées pelo Espirito. Sendo iluminados pelo Seu poder, j4 nao devemos ao nosso proprio juizo, nem ao dos outros, o fato de crermos que as Escrituras vém da parte de Deus; porém, por razdes além do julgamento humano temos perfeita certeza, como se nelas contemplassemos a gléria do préprio Deus, que elas foram 49 transmitidas a nés da propria boca de Deus, pela instrumen- talidade dos homens. Nao procuramos argumentos ou proba- bilidades sobre os quais fundamentar nosso julgamento, mas sim sujeitamos nosso julgamento e nosso intelecto a elas como sendo algo acima e além de toda disputa. Nossa conviccao, portanto, é tal que nao requer argumentos; nosso conhecimento é tal que é consistente com o melhor dos argumentos; porque nelas a mente descansa com mais seguranga e firmeza do que em quaisquer argumentos. Nossos sentimentos neste caso sio tais que somente podem brotar da revelagao divina. Somente falo daquilo que é experimentado por todo crente, a nao ser que as palavras estejam aquém de uma explicacéo justa dessa experiéncia. Devemos, porém, lembrar-nos que Isaias profetizou (Is. 53:1) que o brago do Senhor nao seria revelado a todos. 8 HA PROVAS SOLIDAS E RACIONAIS QUE SERVEM PARA CONFIRMAR A VERACIDADE DAS SAGRADAS ESCRITURAS A n§o ser que os homens possuam a certeza da qual falei, certeza essa que é mais alta e mais forte do que aquela que a raz4o humana possa oferecer, é vao defender a autoridade das Escrituras por argumentos ou estabelecé-la pela aprovacao da Igreja; na verdade, a ndo ser que este fundamento seja posto, a incerteza permanecer4 no corag4o. Por outro lado, uma vez que tenhamos abracado as Escrituras de uma forma que nao fazemos com nenhum outro livro, com uma reveréncia 4 altura da dignidade delas, aquelas consideragées que original- mente eram insuficientes para convencer nossos coracdes agora se tornam muito benéficas 4 nossa fé. Ficamos 50 maravilhosamente consolidados quando consideramos a ordem e 0 arranjo dos seus tesouros de sabedoria divina, a pureza excelsa de suas doutrinas, a bela concordancia de todas as suas partes e outros aspectos que as revestem de majestade. E nossos coragées ficam ainda mais consolidados quando observamos que nossa admiragao é excitada, nao pelas belezas da linguagem, e sim pela dignidade das coisas reveladas. E, pois, uma providéncia singular da sabedoria de Deus que os mistérios sublimes do reino dos céus fossem revelados, na sua maior parte, num estilo simples e humilde. Se tivessem sido adornados com o esplendor da eloqiiéncia, os impios teriam feito a objecio capciosa de que seu poder se devia apenas 4 beleza da linguagem em que foram apresentados. Conforme as coisas sao na realidade, a simplicidade natural e quase corriqueira das Escrituras pede de nés mais reveréncia do que toda a elogiténcia dos oradores; e apenas podemos concluir que as verdades ensinadas séo por demais poderosas para precisarem da ajuda artificial de palavras habilidosas. Assim sendo, 0 apéstolo Paulo argumenta que a fé dos corintios se firmava, nao na sabedoria dos homens, e sim no poder de Deus, porque a pregacao dele fora feita, nao com palavras persua- sivas da sabedoria humana, mas em demonstracao do Espirito e de poder (1 Cor. 2:4). Vé-se que este poder é peculiar as Escrituras, pelo fato de que nenhum escrito humano, por mais bela qué seja sua linguagem, pode afetar-nos da mesma maneira. Leia os escri- tos dos maiores oradores e filésofos do mundo; reconheco que 0 atrairao, deleitarao e comoverao as suas afeigdes de modo maravilhoso; mas se se dedicar, em seguida, a leitura da Pala- vra de Deus, ela o afetara tao poderosamente, entrard tao profundamente no seu coragéo, tomard posse de tal maneira dos seus sentimentos mais intimos, que o poder da oratériaeo da filosofia parecerao como nada em comparagio com ela. Admito que alguns dos profetas usam um estilo literario tao elegante, polido e até mesmo espléndido, que sua 51 elogiiéncia nao é inferior aquela dos grandes escritores do mundo. Mediante tais exemplos o Espirito demonstrou que nao foi falta de elogiiéncia que O induziu a empregar em outros lugares um estilo simples e tosco, No entanto, quer leia a bela diccao de Davi e Isaias, quer a linguagem sem adornos de Jeremias ou Amés, a majestade do Espirito é conspicua em todos os lugares. Todos os profetas ultrapassam em muito os limites da exceléncia humana, e um leitor que nao pode desfrutar dos escritos deles deve estar destitufdo de todo 0 bom gosto. Até mesmo a antigiiidade das Escrituras nao esta sem peso. Todo documento religioso é muito posterior 4 era de Moisés, embora muitas histérias fabulosas tenham sido contadas acerca da teologia do Egito. Nem sequer Moisés apresentou um Deus novo, mas sim o Deus eterno, acerca de quem os israelitas ouviram de seus pais mediante as tradigdes transmitidas de geracéo em geracao; ele simplesmente cha- maz-os de volta a alianga que Deus fizera com Abraao; doutra forma, nao teriam escutado. © modo desinteressado de Moisés comprova sua honesti- dade. Quando, pois, registra a profecia de Jac6, nao procura engrandecer sua propria tribo, a tribo de Levi; pelo contrario, ferreteia-a com a marca da infamia - “Simedo e Levi sao irm§os; as suas espadas s4o instrumentos de violéncia. No seu secreto conselho n4o entre minha alma, com a sua congrega- cao minha gléria nao se ajunte” (Gén. 49:5-6). Certamente poderia ter deixado passar em siléncio esta parte, de tal maneira que salvasse a reputagdo da sua tribo, bem como seu proprio bom nome e o de toda a sua familia. De modo seme- Ihante, registra fielmente as murmuracGes de Arao e Miria (N&m. 12:1). Além disso, embora possuisse a mais alta autori- dade, atribuiu a honra do sacerdécio, nao aos seus proprios filhos, e sim aos filhos de Arao. Os numerosos milagres que ele registra so tantas confir- magées da autoridade das suas leis e da veracidade da sua 52 doutrina; subiu em densas trevas ao monte, e ficou 14 em solidaéo durante quarenta dias; seu rosto brilhou como 0 sol; raios caiam em derredor, e 0 ribombar dos trovées enchia o ar; uma trombeta no tocada por boca humana tornou-se cada vez mais estridente; quando entrava no tabernaculo, uma nuvem ocultava-o dos olhos do povo; sua autoridade foi milagrosamente vindicada pela terrivel destruigao de Coré, Data e Abirao e toda a faccéo deles; a 4gua jorrava da rocha diante do toque da sua vara; o mana chovia do céu diante da oragao dele. Porventura tudo isso nao é o testemunho do proprio Deus 4 inspiragao do Seu servo? Se alguém objetar que estou tomando por certo coisas que s4o discutiveis, a resposta é facil: quando Moisés proclamou todas essas coisas diante da congregacao de Israel, como teria sido possfvel para ele impor um falso relato sobre aqueles que foram testemu- nhas oculares das cenas referidas? Sera provavel que ele veio diante do povo com acusagées de incredulidade, rebeldia, ingratidao e outros crimes, e, a0 mesmo tempo, reivindicou para sua doutrina a sangao de milagres que 0 povo nunca tinha visto? E também digno de nota que os milagres aos quais Moisés se refere sdo freqiientemente ligados com eventos desonrosos ao povo de tal forma que este teria protestado contra suas declaragGes se tivesse sido possivel assim fazer. Fica claro, portanto, que os israelitas somente admitiram a veraci- dade das suas palavras porque estavam plenamente convictos dela pela sua propria experiéncia. Agora aduzirei algumas provas da inspiragao dos demais profetas. Nos tempos de Isafas, 0 reino de Juda estava em paz, e até mesmo confiava na Caldéia como fonte de ajuda; mesmo assim. Isaias previu a destruigéo da cidade pelos caldeus eo exilio do povo para a Babilénia. Mencionou, também, Giro pelo nome, como um libertador que haveria de conquistar os caldeus e restaurar a liberdade aos cativos. Depois dessa profe- cia, passaram-se mais de cem anos até que Giro nascesse. Ninguém poderia entéo prever que haveria um certo Giro, 53 que guerrearia contra a Babilénia, que subjugaria seu pode- roso império, e que poria fim ao cativeiro dos israelitas. Porventura esta simples narrativa, sem qualquer adorno de palavras, nfo nos mostra que os pronunciamentos de Isaias nao eram conjecturas humanas, e sim os ord4culos de Deus? Acaso, quando Jeremias, pouco antes do povo ser levado para o cativeiro, predisse que a duracao do cativeiro seria de setenta anos e previu a volta, no teria sido sua lingua guiada pelo Espirito de Deus? A esta prova Isaias também apela, quando diz: “Eis que as primeiras coisas passaram e novas coisas eu vos anuncio; e, antes que venham 4 luz, vo-las faco ouvir” (Is. 42:9). E Daniel nao teria previsto o futuro seiscentos anos antes € composto suas profecias assim como se estivesse escrevendo uma histéria de eventos passados e bem conhecidos? Estou ciente das objegées feitas por certos homens indig- nos, que desejam demonstrar sua propria esperteza ao assaltar averdade de Deus. Perguntam: quem pode provar que Moisés e os profetas realmente escreveram os livros que levam seus nomes? Ademais, até mesmo ousam levantar a questao da existéncia real de uma pessoa tal como Moisés. Todavia, se perguntassemos: ja existiu um Plataéo, um Aristételes, um Cicero, serfamos considerados culpados da estulticia mais absurda. A lei de Moisés foi milagrosamente preservada pela providéncia de Deus; e embora por algum tempo ficasse soterrada devido a negligéncia dos sacerdotes, nao obstante, desde o dia em que o bom rei Josias a descobriu, ela tem estado nas maos dos homens por sucessivas geragGes, Uma objecaéo tem sido fundamentada na histéria dos Macabeus. Visto que Antioco ordenou a queima de todos os livros sagrados, de onde vieram entao os exemplares que agora possuimos? Podemos facilmente voltar este argumento contra nossos adversdrios e perguntar-lhes: nesse caso, em que oficina poderiam ser tao rapidamente fabricados? Pois é bem conhecido que tao logo a furia da perseguig&o passou, foram 34 achados em existéncia, e foram reconhecidos como genuinos, sem contestacao, por todos os piedosos que foram criados na sua doutrina e que possuiam intimo conhecimento do seu contetido. Quem pode deixar de reconhecer a maravilhosa obra de Deus na preservagao deles naquela época e no suceder de todos os desastres subseqtientes dos judeus? E por qual instrumentalidade Deus conservou para nés a doutrina da salvacao e da revelacao de Cristo contidas na lei e nos profe- tas? Pelos judeus, os inimigos mais figadais do préprio Cristo. Quando chegamos ao Novo Testamento, descobrimos que sua veracidade esté firmada em alicerces igualmente sdlidos. Trés dos evangelistas relatam sua histéria num estilo humilde esem adornos. Os orgulhosos freqiientemente desprezam tal simplicidade; nao observam a substéncia da doutrina, que claramente prova que os escritores est4o tratando de mistérios celestiais que transcendem a capacidade da mente humana. Mesmo assim, os sermées de Cristo, que sao sumarizados de modo breve por estes evangelistas, facilmente erguem Os seus escritos acima do desprezo. Jodo, porém, trovejando das alturas, confunde, como através de um raio, a obstinacao de todos quantos néo conseguem trazer 4 obediéncia da fé. De modo semelhante, os escritos de Paulo e Pedro compelem nossa admiracéo devido sua celestial majestade. E, no entanto, Mateus veio da recebedoria de impostos, e Pedro e Joao dos seus barcos de pesca; enquanto que Paulo, de inimigo aberto e perseguidor sanguinério, foi transformado num novo homem, e ele afirma que foi compelido pelo mandamento celestial a sustentar a doutrina que dantes empenhou-se para destruir. E nfo nos esquegamos que, embora satanés e o mundo tenham procurado de varias maneiras esmagar, transtornar ou obscurecer a Palavra de Déus, entretanto, ela sempre tem- -se saido vitoriosa da luta e permanecido invencivel. Hi outras razdes, ndo poucas nem fracas, que confirmam a dignidade das Escrituras nos coragées dos piedosos e que vindicam a sua autoridade contra as maquinagées dos 55 difamadores; mas tais razdes néo conseguem transmitir a fé até que nosso Pai celestial, ao revelar Seu poder na Sua Palavra, a ergue acima de suspeita. Realmente, é absurdo procurar provar para os incrédulos que as Escrituras sao a Palavra de Deus; porquanto isso somente pode ser percebido mediante a fé. 9 AQUELES QUE NEGLIGENCIAM AS ESCRITURAS, E PROCURAM REVELACOES NOVAS, TRANSTORNAM TODOS OS PRINCIPIOS DA PIEDADE Certos homens tolos surgiram recentemente, os quais orgulhosamente fingem ser guiados pelo Espirito e despre- zam a simplicidade daqueles que ainda se apegam 4 “letra morta — letra que mata”. Gostaria que me dissessem qual é 0 espirito cujo sopro os leva a uma altura tao estonteante para que ousem menosprezar a doutrina das Escrituras como sendo infantil e desprezivel. Se responderem que é 0 Espirito de Cristo, quao absurda é a sua presuncao! Eles mesmos devem reconhecer que os apédstolos e os primeiros crentes foram iluminados por aquele Espirito; no entanto, nenhum deles aprendeu dEle a desprezar a Palavra de Deus; pois todos a consideravam com a mais profunda reveréncia. E isso concorda com a predicao de Isaias: “O meu Espirito, que esta sobre ti e as minhas palavras, que pus na tua boca, nao se desviarao da tua boca nem da boca da tua posteridade, nem da boca da posteridade da tua posteridade, diz o Senhor, desde agora e para todo o sempre” (Is. 59:21). O profeta predisse, portanto, que no reino de Cristo seria a mais alta felicidade da Sua Igreja ser guiada tanto pela Palavra quanto pelo Espirito de Deus. Dai concluirmos que esses 56 zombadores impios separam aquilo que o profeta juntara por um vinculo sagrado. Além disso, embora Paulo tenha sido arrebatado até ao terceiro céu, nao cessou de fazer uso provei- toso da lei e dos profetas, e exortou Timéteo a dar atencao a leitura. Ademais, ele atribui honra singular as Escrituras ao dizer que sao dteis “para o ensino, para a repreensao, para a correcao, para a educacdo na justi¢a, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2 Tim. 3:16,17). Certamente é o maximo da maldade e da loucura atribuir um uso raépido e tempordrio aquelas Escrituras que guiam os filhos de Deus até ao fim da sua via- gem. Aqueles fanaticos teriam bebido de um espirito diferen- te daquele que o Senhor prometeu aos Seus préprios discipu- los? Por mais loucos que sejam, dificilmente ousarao dizer assim. Mas que tipo de Espirito o Senhor prometeu? Um que no falaria de Si mesmo, e sim relembraria 0 que o pré- prio Cristo ensinara verbalmente. Portanto, nao é 0 papel do Espirito prometido dar revelacées estranhas e esquisitas, ou fabricar alguim novo tipo de doutrina para nos desviar do evangelho que recebemos; pelo contrario, a fungdo do Espirito é selar em nossos coragdes aquela mesma doutrina que o evangelho de Cristo nos entregou. E claro, portanto, que os que desejam receber proveito e béncao do Espfrito de Deus devem ser diligentes em ler as Escrituras e em ouvir sua voz. Assim sendo, Pedro recomenda o zelo daqueles que prestam atencio 4 palavra da profecia, embora os escritos dos profetas pudessem ter sido considera- dos ultrapassados pela nova luz do evangelho (2 Ped. 1:19). Se, por outro lado, alguém descarta a sabedoria da Palavra de Deus e impinge sobre nés uma outra doutrina, podemos suspeité-lo, com justica, de ser vaidoso e falso. O préprio satands se transforma em anjo de luz; como, pois, podemos curvar-nos diante da autoridade de qualquer espirito, a ndo ser que seja evidenciado por algum sinal como sendo o Espirito de Deus? Este sinal se manifesta na medida em 57 que concorda com a Palavra do Senhor. Todavia, estes infeli- zes deliberadamente se desviam para sua propria ruina, procurando orientacao do seu préprio espirito ao invés do Espfrito do Senhor. Argumentam que é uma indignidade ao Espirito de Deus que Ele — Ele que esta acima de todas as coisas — seja sujeito 4s Escrituras. Contudo, pergunto, é uma desonra ao Espirito Santo ser em todas as instancias 0 que Ele é— sempre consistente, sempre imutavel? Se, na realidade, procurdsse- mos testar o Espirito por qualquer regra estabelecida pelos homens ou pelos anjos, haveria certa forga nesta acusacao para desonra-la; mas se a compararmos com Ele mesmo, como se pode dizer que a estamos desonrando? A verdade é que o Espirito Se alegra em ser reconhecido pela semelhanga que tem com Sua propria imagem imprimida por Ele sobre as Escrituras. Ele é 0 Autor das Escrituras e no pode mudar; portanto, sempre deve permanecer tal qual Se re- velou ali. Quanto a objecdo capciosa de que estamos escravizados a letra que mata, os que empregam tal linguagem sao culpados de desprezarem a Palavra de Deus. Quando Paulo disse que a letra mata (2 Cor. 3:6), estava se opondo a certos falsos apéstolos que ainda se apegavam 4 lei e que teriam privado 0 povo do beneficio da nova alianga, na qual Deus declara que colocar4 Sua lei nas mentes dos fiéis, e que a escrever4 em seus coragées. Segue-se, portanto, que a lei do Senhor é uma letra morta que mata quando ela é separada da graga de Cristo, e que simplesmente soa ao ouvido sem tocar no coragao; por outro lado, se for poderosamente implantada no coracéo pelo Espirito e se proclama Cristo, é a palavra da vida, a qual converte as almas dos homens e que da sabedoria aos simples. No mesmo capitulo, Paulo chama sua propria pregacio de o ministério do Espirito, significando assim que o Espirito Santo permanece na verdade que revelou nas Escrituras, e somente revela Seu poder aqueles que tratam 58 Sua Palavra com a reveréncia e honra a ela devida. E isso nao esté em desacordo com aquilo que eu disse no capitulo anterior deste livro, que a Palavra de Deus nao ganha nossa confianga, a nao ser que seja confirmada pelo testemunho do Espirito; porque o Senhor ligou juntas, por um tipo de vinculo miituo, a certeza da Sua Palavra e a autoridade do Seu Espirito. Reveréncia verdadeira 4 Palavra domina os nossos coragdes quando a luz do Espirito nos capacita a ver Deus nas Escrituras; e, por outro lado, sem temor de sermos enganados, damos boas-vindas aquele Espirito que reconhe- cemos pela Sua semelhanga a Sua prépria Palavra. Os filhos de Deus sabem que Sua Palavra é 0 instrumento mediante 0 qual Ele comunica ao entendimento deles a luz do Seu Espirito; e nao reconhecem nenhum outro espirito sendo o Espirito que habitava nos apdstolos e falava através deles. 10 AS ESCRITURAS PROVIDENCIAM UM REMEDIO PARA TODA A SUPERSTICAO, AO DISTINGUIREM O DEUS VERDADEIRO DE TODOS OS DEUSES DAS NACOES Ja dissemos que o Deus a quem a criagao da testemunho é ainda mais plena e claramente revelado na Sua Palavra; agora daremos uma breve resposta a pergunta: “Sera que os dois registros concordam entre si?” Noutras palavras, seria o Deus da criagéo 0 mesmo que o Deus das Escrituras? Bastard, para nosso presente propésito, considerar como Ele governa o mundo que criou. Descobrimos que nas Escrituras a bondade paterna é constantemente atribufda a Ele, assim como 0 deleite constante no exercicio da misericérdia. Também achamos que estao registrados exemplos de severidade que demonstram que 59 Ele é um vingador justo do crime, especialmente quando a obstinagao dos malfeitores torna nula Sua longanimidade. Nalgumas partes da Sua Palavra, descricdes tao claras dEle sao dadas que parece que O vemos face a face. Por exemplo, parece que Moisés quis nos contar abreviadamente tudo quan- to € licito ou necessério sabermos: “Jeova” o Senhor Deus misericordioso e piedoso, tardio em iras e grande em benefi- céncia e verdade; que guarda a beneficéncia em milhares; que perdoa a iniqiiidade, a transgressao e 0 pecado; que ao culpado nao tem por inocente; que visita a iniqtiidade dos pais sobre os filhos e sobre os filhos dos filhos até a terceira e quarta geracio” (Ex. 34:6,7). Aqui observamos que Sua eter- nidade e auto-existéncia sao proclamadas pela dupla repeti¢ao do nome magnifico de Jeova. (Os leitores se lembrarao que onde o nome Jeova ocorre na Biblia hebraica, nossos traduto- res chamaram a atencao para o fato por meio de imprimir SENHOR 0u DEUS em letras maitisculas.) Depois, Moisés men- ciona os atributos de Deus, para mostrar-nos, nao aquilo que Deus é em Si mesmo, porém aquilo que ¢ em relacgao a nés; a fim de que nosso conhecimento consistisse em consideragdes corretas e n&o em especulagées vas. Ora, sio mencionados os mesmos atributos que ja ressaltamos estarem brilhando na criacao, isto é, a mansidao, a bondade, a misericérdia, a justiga, o juizo e a verdade. O testemunho dos profetas é 0 mesmo. Por enquanto, baste um s6 salmo, o de nimero cento e quarenta e cinco, no qual Seus atributos sao enumerados com tanta exatidao que parece que nada foi omitido. Mesmo assim, nada é dito ali que nao possa ser encontrado nas obras da criagao. Na realidade, nossa propria experiéncia nos ensina que Deus é tal qual Sua Palavra declara que Ele é. O profeta Jeremias nos dé uma descrigéo nao tao completa, todavia inteiramente da mesma natureza, “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou 0 SENHOR, e faco misericérdia, juizo e justica na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR” (Jer. 9:24). Eis ai trés coisas 60 que é especialmente necess4rio sabermos: a misericérdia, da qual depende a salvagéo de todos nés; 0 juizo, que é diaria- mente executado contra os iniquos, e que os ameaca com a mais severa sentenca da ruina eterna no mundo do porvir; e a justica, através da qual os fiéis sao conservados e cuidados com o maximo amor. Se vocé sabe estas trés coisas, entao, de acordo com o testemunho do profeta, tem razao suficiente para gloriar-se no seu conhecimento de Deus. E também digno de nota que as Escrituras, a fim de nos levar ao Deus verdadeiro, expressamente excluem e rejeitam todos os deuses das nagées, devido 4 adoracéo dos quais a religio tem sido corrompida em quase todas as eras. E verda- de que o nome do tinico Deus verdadeiro tem sido bem conhecido em todos os lugares; pois até mesmo aqueles que adoravam uma multidao de deuses, toda vez que falavam de acordo com os ditames da natureza e da consciéncia, simples- mente usavam a palavra Deus. Isso foi indicado sabiamente por Justino Martir e por Tertuliano. Mas visto que todos os homens, sem exce¢ao, tinham caido no erro e se tornado vaos nas suas imaginagdes, seu conhecimento natural do dnico Deus somente serviu para deix4-los sem desculpas. Por conse- guinte, o profeta Habacuque, condenando toda a idolatria, nos exorta a buscar o Senhor no Seu santo templo (Hab. 2:20), a fim de que os crentes néo reconhecam nenhum outro deus sen4o o verdadeiro, que Se revelou na Sua propria Palavra. 61 11 EILICITO ATRIBUIR A DEUS UMA FORMA VISIVEL; E TODOS AQUELES QUE FABRICAM IDOLOS PARA SI, SEPARAM-SE DO DEUS VERDADEIRO Devemos firmar-nos solidamente neste principio: sem- pre que atribuirmos qualquer forma ou formato a Deus, Sua gloria € maculada por uma falsidade {mpia. Na lei, pois, quando Deus reivindicou para Si mesmo, exclusivamente, a gloria da divindade, acrescenta imediatamente: “Nao fards para ti imagem de escultura, nem semelhanga alguma do que ha em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas 4guas debaixo da terra” (Ex. 20:4). Dessa forma Ele proibe quais- quer tentativas de representé-la por qualquer figura visivel. Ele nao compara varias formas uma com a outra, como se uma fosse mais apropriada, e outra menos, mas sem excecao rejeita a todas elas. Moisés disse: “Guardai, pois, cuidadosamente as vossas almas, pois aparéncia nenhuma vistes no dia em que o Senhor vosso Deus vos falou, em Horebe, no meio do fogo; para que nao vos corrompais e vos facais alguma imagem escul- pida na forma de idolo, semelhanca de homem ou de mulher” (Deut. 4:15,16). Aqui vemos como Deus contrasta Sua voz com todas as formas, para mostrar-nos que todos aqueles que atribuem a Ele uma forma visivel sio culpados de apartar-se dEle. Entre os profetas, basta citarmos Isaias, que freqtiente- mente comprova com muitos pormenores ser uma ofensa a majestade de Deus assemelhar Aquele que é imaterial a uma forma material, Aquele que ¢ invisivel a uma imagem visivel, Aquele que é Espirito 4 matéria morta, Aquele que é infinito a um pedaco finito de madeira, pedra ou ouro. Da mesma mancira, Paulo argumenta: “Sendo, pois, geracao de Deus, nao devemos pensar que a divindade é semelhante ao ouro, a prata 62 ou a pedra, trabalhados pela arte e imaginagao do homem” (Atos 17:29). Por conseguinte, fica claro que qualquer estatua erigida para representara Deus, ou qualquer quadro pintado com aquele propésito, desagrada totalmente a Ele, sendo con- siderado um insulto a Sua majestade. E verdade que Deus as vezes manifestava Sua presenca por certos sinais, de modo que se disse que Ele foi visto face a face; mas todos os sinais usados eram apropriados para trans- mitir instrugao e claramente relembravam aos homens a incompreensibilidade da Sua pessoa. As nuvens, a fumaca e as chamas, embora simbolizassem a Sua gléria, ao mesmo tempo refreavam as mentes de todos os homens de procura- rem penetrar mais profundamente. Até mesmo Moisés nao tinha licenca de ver Sua face, porém a ele foi dito: “Homem nenhum ver4 a minha face, e vivera” (Ex. 33:20). Em tempos posteriores o Espirito Santo apareceu em forma de pomba; mas imediatamente desapareceu, e assim lembrou os fiéis que devem crer que Ele é invisivel, e que devem satisfazer- -se com Seu poder e Sua graga, e nao representa-la por ne nhuma forma externa. As varias manifestagdes de Deus na forma humana nos tempos do Velho Testamento eram prelt- dios de uma revelacdo, entao futura, na pessoa de Cristo. O salmista diz: “Os idolos das nacées sao prata e ouro, obra das maos dos homens” (Sal. 135:15); e argumenta acerca da prépria matéria que aqueles cuja imagem consiste em ouro ou prata sao falsos deuses. Fala do ouro e da prata, ao invés do barro ou da pedra, para mostrar que 0 esplendor ou a preciosidade nao pode conferir as imagens nenhum direito A reveréncia; mas seu argumento é que nenhuma matéria morta pode ser transformada em deuses. Realmente, como pode o homem, que é uma criatura de um sé dia, conferir divindade a um pedaco de metal? Semelhante pensamento é devidamente ridicularizado por um poeta dos pagios: 63 “Toro inttil de figueira fui eu antes. O artifice disse: serd um mével ou um deus? Escolheu fazer um deus.” No entanto isso foi escrito por um epicurista que nao se importava com a religiao; deixemos de lado o humor dele e prestemos ateng&o a repreensao santa do profeta de Deus. “O ferreiro faz o machado, trabalha nas brasas e forma um idoloa martelo, forja-o com a forga do seu brago; ele tem fome, e a sua forca falta, nao bebe gua, e desfalece. Um homem corta para si cedros, toma um cipreste ou um carvalho, fazendo escolha entre as 4rvores do bosque; planta um pinheiro, e a chuva 0 faz crescer. Tais 4rvores servem ao homem para queimar; com parte de sua madeira se aquenta, e coze o pao, e também faz um deus e se prostra diante dele, esculpe uma imagem e se ajoelha diante dela” (Is. 44:12, 14,15). Deve ser observado, além disso, que um idolo pintado é tao proibido quanto uma imagem esculpida. Os membros da igreja grega, pois, consideram-se livres de toda a culpa porque nao tém imagens esculpidas; no entanto, no seu uso de qua- dros vao a excessos maiores do que outros idélatras. O Senhor, porém, nao somente proibe o levantar de uma imagem escul- pida para ser um deus, como também proibe o fabrico de qualquer similitude de Si mesmo; porque os que assim fazem dirigem uma ofensa presunc¢osa a Sua majestade. Eu sei que freqiientemente se diz que as imagens servem de livros para o povo comum. Este foi um dito de Gregorio. Mas o Espirito de Deus fala de modo bem diferente; e se Gregério tivesse aprendido dEle neste assunto, nunca teria pronunciado tais palavras. Jeremias, pois (10:8), assevera que “ensino de vaidades é o madeiro” e Habacuque (2: 18) que “a imagem de fundi¢ao é mestra de mentiras”. Concluimos, dai, que todas as idéias acerca de Deus que os homens possam derivar de imagens sio indteis e falsas. Fica evidente que, com tais palavras, os profetas condenam totalmente o axioma que 64 os papistas supdem ser verdadeiro, que as imagens sao os livros do povo comum. Se, portanto, os papistas tém qualquer senso de vergonha, que nunca mais proponham tal defesa da adoracao as imagens. Esta nao éa maneira de Deus instruir os homens nos locais de culto. A vontade dEle é que sejam ensi- nados pela pregacio da Sua Palavra e pela administracao das Suas ordenangas. A quem os papistas se referem com a expressao “O povo comum?”? A quem consideram tao ignorantes que somente podem aprender através das imagens? Seriam os que o Senhor reconhece como Seus préprios discipulos; dignos de recebe- rem a revelacao da Sua propria sabedoria celestial, aptos para serem instruidos nos mistérios salvificos do Seu reino? Reco- nheco que em nossos dias nao séo poucos os que parecem precisar de imagens como livros; mas de onde vem sua tolice sendo do fato de serem roubados do privilégio de ouvir aquela unica doutrina que os pode tornar sabios? Tolice essa, causada pelos seus lideres que delegaram as imagens mudas a tarefa de pregar ao povo, porque eles mesmos s40 mudos. Paulo, pelo contrario, nos ensina que é mediante a pregacao da Palavra que Jesus Cristo é representado como crucificado. (Ver Gal. 3:1). Que necessidade havia, entao, de existir nas igrejas tantas cruzes de madeira, de pedra, de prata e de ouro, se os homens tivessem sido ensinados fiel e honestamente que Cristo morreu para carregar nossa maldicao na cruz, a fim de que expiasse nossos pecados mediante o sacrificio do Seu préprio corpo, removendo-os pelo Seu préprio sangue e reconcilian- do-nos com Deus Seu Pai? Nao importa se os homens simplesmente adoram uma imagem, ou adoram Deus mediante uma imagem; é idolatria quando honras divinas sao atribuidas a uma imagem sob qual- quer pretexto. Proponho este fato a consideracao daqueles que catam miseraveis desculpas para a idolatria que durante muitas geracdes tém corrompido o culto divino. Até mesmo os pagaos nao eram tao estultos para pensarem que Deus nada 65 mais era senéo um pedaco de madeira ou pedra: defendiam sua idolatria com as mesmas desculpas que agora sAo propos- tas por cristaos professos. Os papistas procuram refutar a acusagao de idolatria dizendo que prestam as imagens “servico” (dulfa), mas nao adorac¢ao (latria); e alegam que tal “servico” pode ser prestado a estdtuas e quadros sem qualquer ofensa contra Deus. Pen- sam que estao inocentes enquanto sao meramente servos de idolos, e nao adoradores deles! Como se 0 servigo nao fosse algo mais que adoracao! Procuram evitar serem descobertos ao usarem uma palavra grega. Mas para um grego, o signifi- cado daquela palavra é tal que a desculpa no passa do seguinte: “Adoramos imagens sem adorda-las.” Entretanto seja qual for a pericia em palavras que tais mestres possuem, a eloqiiéncia deles nunca nos convencerd que uma coisa é igual a duas, Devo fazer aqui alguma referéncia breve ao Sinodo de Nicéia que foi realizado ha oitocentos anos (em 787 d.C.) por ordem da imperatriz Irene, o qual decretou que as imagens nfo somente deveriam ser colocadas nas igrejas, como tam- bém deveriam ser adoradas. Os defensores das imagens abrigam-se sob a autoridade daquele Sinodo. Portanto, chamo a atencao dos meus leitores para alguns dos argumen- tos empregados naquela ocasiao. Joao, um delegado das igrejas orientais, disse: “Deus criou o homem 4a Sua imagem; logo, concluo que é€ correto ter imagens. Deus também recomendou-nos as imagens ao dizer: “Mostra-me o teu rosto... 0 teu rosto é amavel.” Outro preletor comprovou que as imagens deviam ser colocadas nos altares, citando: “Nem se acende uma candeia, para coloca-la debaixo do alqueire.” E outro: “Eu amo, SENHOR, a habitacao da tua casa” (Sal. 26:8). Mas o argumento mais engenhoso de todos foi o seguinte: “Como temos ouvido dizer, assim 0 vimos” (Sal. 48:8). Concluimos, portanto, que aprendemos a conhecer Deus nao somente ao ouvir Sua Palavra mas 66 também ao olhar para as imagens.” Mas estou cansado de referir-me a tais absurdos. Ser4 que os defensores da adoracio de imagens agora procurardo nos silenciar com a autoridade daquele Sinodo? Que confianga pode ser dada as declaracdes dos reverendos pais que manuseiam as Escrituras com tal tolice infantil, ou pervertem seu significado com tamanha impiedade vergonhosa? 12 DEUS E DISTINGUIDO DOS [DOLOS, A FIM DE QUE O CULTO SEJA PRESTADO SOMENTE A ELE JA dissemos que o conhecer a Deus n4o pode consistir em va especulagao, mas sim implica em adoragéo ao Deus a quem conhecemos; e ja mencionei ligeiramente a maneira segundo a qual deve ser adorado, assunto este que terei de expor mais detalhadamente logo a frente. Por enquanto, meramente repito que quando as Escrituras asseveram que ha um sé Deus, e somente um, elas nao estéo argumentando em prol do mero nome, e sim ordenam que nenhuma parte da honra que per- tence a Deus seja dada a outro. Nisso vemos quanto a religiao pura difere da superstigdo. Tem-se reconhecido em todas as eras que a religiao é corrompida e pervertida pela falsidade e pelo erro. Dai, concluimos que qualquer licenga que tomemos no culto devido a um zelo apressado e sem consideracdo, é de natu- reza supersticiosa, nao obstante quaisquer desculpas que possam ser inventadas para justificd-la. Mas embora todos confessem isso prontamente, ao mesmo tempo muita ignoran- cia vergonhosa é manifestada, sendo que os homens, nem se apegam ao tinico Deus verdadeiro, nem se preocupam para adora-l1O corretamente. No entanto, Deus sustenta Seus préprios direitos ao dizer-nos que é um Deus zeloso, um que 67 punira severamente aqueles que O confundem com {dolos; e além disso, Ele dé orientacao para o culto legitimo, de modo que os homens possam ser refreados para nao desobedecerem a Sua vontade. Os usos e os alvos da lei sao mtltiplos, e os examinarei depois, no lugar apropriado; no momento apenas desejo salientar que um dos seus objetivos é refrear os homens de se desviarem para a adoracao corrupta. E agora — que 0 leitor selembre daquilo que eu ja disse, isto é, a nao ser que atribuamos somente a Deus tudo quanto pertence a Deidade, entéo O furtamos de Sua honrae fazemos violéncia sacrilega 4 adoracdo a Ele. Além disso, devemos considerar cuidadosamente os subterftigios adotados pela supersticao a fim de nao serem percebidos, Embora siga deuses estranhos, elao faz de tal maneira que conserva a aparéncia de nao aban- donar o Deus verdadeiro; concede-Lhe o lugar mais alto, e O cerca com uma multidao de deuses menores, entre os quais distribui Suas prerrogativas e atributos; e, assim, com dissi- mulagao astuciosa, a gléria da deidade, que deve ser reservada somente para Deus, é mutilada e dispersada. De modo seme- Ihante, os idélatras antigos, tanto os judeus quanto os gentios, acrescentaram ao pai e maioral dos deuses uma imensa multi- dao de poderes menores que compartilhavam com o Altissimo a administragao do céu e da terra. Assim também, em tem- pos mais proximos dos nossos, os santos que morreram foram exaltados para uma tal comunhao com Deus que, em lugar dEle, fossem adorados, invocados e louvados. Os homens pensam que, mediante tal abominagao, a honra da majestade de Deus nao é sequer ofuscada, embora seja em grande medida suprimida e extinguida, nao obstante retenham uma nogao vazia da Sua supremacia. Para este mesmo propésito os papistas tem empregado os termos latria (adoracio), e dulia (servigo), fazendo uma distingao que os libera para transferir honras divinas a anjos e defuntos. Todavia a adorac&o que oferecem aos santos realmente nao difere em aspecto algum da adoracao que oferecem a 68 Deus. Eles adoram a Deus ¢ aos santos indiscriminadamente; mas quando sao pressionados com a acusacio de idolatria, refutam-na ao dizer que deixam para Deus Sua propria prer- rogativa ao reservar para Ele a latria. No entanto é 0 fato, e no a palavra, que importa; que dircito tém eles de serem frivolos no tocante a uma coisa de tao suprema importancia? Afinal de contas, somente conseguem comprovar que prestam adoragao ao Deus verdadeiro, e servigo aos outros; porque latria signi- fica adoracao, e dulia significa servigo. Apesar disso, nas Escrituras os dois termos s4o freqiientemente usados sem distingao. Ademais, todos devem reconhecer que o servigo é algo mais do que a adoracao; e € uma distincao imprépria prestar aos santos aquilo que é maior, e a Deus aquilo que é menor. Mas voltemo-nos destas distingdes sutis para a propria coisa. Quando Paulo lembra os gélatas daquilo que eles eram. antes de conhecerem a Deus, diz que “servieis aos que por natureza no sao deuses” (Gal. 4:8). Porventura ele desculpaa supersticao deles mediante 0 emprego da palavra “servir”? Nao! Condena-a tao severamente como se a tivesse chamada de adoracao. Cristo nao permitiu tal distingéo quando, respondendo ao tentador, citou como Sua propria regra de acio o mandamento, “Adorards o Senhor teu Deus, e sé a Ele servirds”. De modo semelhante, quando Joao foi reprovado pelo anjo por prostrar-se diante dele, nao devemos supor que Joao fosse tao estulto que quisesse dar ao anjo a honra que pertencia unicamente a Deus; porém desde que a reveréncia feita dessa maneira é necessariamente semelhante ao culto divino, 0 anjo lembrou a Joao que nao podia prostrar-se diante dele sem furtar de Deus aquilo que pertencia somente a Ele. Lemos, de fato, em muitos lugares que certo tipo de reveréncia era dada aos homens; mas era reveréncia civica, ou respeito demonstrado a dignidade civica. Outra vez, no caso de Cornélio (Atos 10:25) nao devemos supor que ele havia progredido tao pouco na religiao que ignorasse pertencer 69 somente a Deus 0 culto supremo. Todavia, Pedro o proibe severamente de prostrar-se diante dos seus pés; evidentemente por esta raz4o o homem nao pode distinguir desse modo entre adoracio a Deus e adoragao a uma criatura, de forma que fique inocente de dar a criatura parte da honra que pertence somente a Deus. Se, portanto, desejamos ter um sé Deus, e somente um, lembremo-nos de que nao deve ser roubado da minima particula da Sua gloria. 13 AS ESCRITURAS ENSINAM QUE A ESSENCIA (OU SEJA, O SER) DE DEUS E UNA, E QUE CONTEM TRES PESSOAS As Escrituras nos informam que Deus é um Ser infinito e que Ele é Espirito. Estas duas verdades devem bastar para derrubar nao apenas os sonhos estultos dos idélatras como também os raciocinios sutis da filosofia profana. Um dos antigos tedlogos pensava demonstrar grande sabedoria ao dizer que tudo quanto vemos e tudo quanto nao vemos é Deus, mas ao falar assim, ele confundiu a Deidade com as varias partes do universo material. Deus, porém, a fim de nos con- servar dentro dos limites da sobriedade, fala pouco acerca da Sua prépria esséncia, e ainda assim, pelas duas caracteristicas da espiritualidade e da grandeza infinita, nado somente refreia a temeridade da mente humana como também derruba as imaginacdes grosseiras dos id6latras. Razéo porque Sua infi- nita grandeza deve impedir-nos de tentar medi-la por nossos sentidos; e o fato de que Deus é Espirito proibe todas as especulag6es terrestres ¢ carnais acerca dEle. Com o mesmo propésito Ele fala que habita no céu, pois embora encha 70 também a terra, com razao eleva nossos pensamentos acima dela, sabendo que nossas mentes preguicosas tendem a fixar- -se na terra. Alguns homens realmente tém o que se pode chamar de pensamentos antropomérficos acerca de Deus; ou seja, atribuem a Ele uma forma humana porque as Escrituras falam dEle como tendo boca, ouvidos, olhos, maos e pés; entretanto tais nogdes podem ser facilmente contraditas. Qual o homem de inteligéncia comum que n4o percebe que Deus nos fala em linguagem de crianga, ou em termos infantis ~ se posso assim falar ~ assim como as amas conversam com criancinhas? Tais métodos de falar de modo algum expressam. aquilo que Deus realmente 6, e estao ajustadas 4 pequenez do nosso conhecimento dEle. Por esta razao é necessdrio que Deus se digne descer das alturas sublimes onde habita. Contudo hé outra caracteristica especial por meio da qual Deus Se faz mais distintamente conhecido a nés. Ele nao somente nos diz que é Uno, mas sim que trés pessoas devem ser conhecidas e distinguidas nEle. Se nao nos apegarmos firmemente a isso, ndo temos nenhum conhecimento do Deus verdadeiro; temos somente o nome de Deus flutuando em nosso cérebro. Além disso, a fim de que ninguém pense num Deus triplice, ou imagine que Deus é destituido da Sua unidade pela existéncia das trés pessoas, precisamos dar aqui uma definicao curta e simples que nos livrara de todo 0 erro. Quando o autor sagrado chama Cristo de a expressa imagem da Pessoa do Pai, sem divida atribui ao Pai uma certa subsis- téncia na qual é diferente do Filho — se posso assim traduzir a palavra grega hypostasis empregada em Heb. 1:3. Acho que é simplesmente absurdo supor que 0 escritor esté falando nesse versiculo da esséncia de Deus. Esta esséncia é simples e indivisivel; e Aquele que tem a totalidade dela em Si mesmo, como Cristo tem, nao pode ser corretamente chamado a “expressa imagem” dela. Mas visto que o Pai Se expressou completamente no Filho, diz-se muito corretamente que o Filho € a expressa imagem da Pessoa do Pai. Logo, 71 acrescenta-se corretamente que Ele é 0 resplendor da Sua gléria. Entendemos na base das palavras do autor de Hebreus que ha no Pai uma hipéstase ou pessoa que resplende no Filho. E nao é€ dificil concluir disso que ha uma hipéstase ou Pessoa do Filho, na qual é distinguido do Pai. O mesmo argu- mento se aplica ao Espirito Santo, que é Deus, porém mesmo assim deve ser distinguido do Pai. Portanto, recebemos o testemunho escrituristico de que ha trés pessoas (hipdstases) em Deus. Algumas pessoas fazem objegao a palavra “pessoa”, como termo inventado pelo homem. Mas se elas sao obrigadas a admitir que existem trés Pessoas, cada uma das quais é, no mais pleno sentido, Deus, e que nao ha trés Deuses, porventura nao sao culpadas de perversidade ao contestarem um termo que simplesmente expressa aquilo que as Escrituras testificam e ratificam? Dizem que é mais s4bio restringir nossas palavras a terminologia das Escrituras do que empregar palavras estra- nhas, as quais tém a probabilidade de provocar disputas e contendas. Se por “palavras estranhas” essas pessoas querem. dizer palavras que nao podem ser achadas, silaba por silaba, nas Sagradas Escrituras, entao elas condenam toda exposi¢ao que nao seja uma colcha de retalhos de textos biblicos. Con- tudo, como pode ser ilicito explicar em palavras mais claras aquelas passagens das Escrituras que, para nossa compreen- s40, sao dificeis e obscuras? Os homens piedosos de tempos passados foram compe- lidos, no seu conflito com as varias formas do erro, a definir sua propria crenca com a maxima preciso e clareza, a fim de negarem aos iniquos os varios subterfiigios mediante os quais escondiam a natureza errénea do seu ensino. Por exemplo, Ario confessava que Cristo era Deus, e 0 Filho de Deus; mas ao mesmo tempo asseverou que Cristo foi criado, e que tinha um inicio como outras criaturas; portanto, os antigos defensores da verdade desmascararam sua hipocrisia ao sustentarem que Cristo era o Filho eterno do Pai, e “da mesma esséncia” (consubstancialis) com o Pai. Este termo “da mesma esséncia” 72 despertou o édio e o furor dos arianos, porém se tivessem sido sinceros ao confessarem que Cristo é Deus, nao teriam negado que era “da mesma esséncia” do Pai. De manecira semelhante, Sabélio empregava os termos Pai, Filho e Espifri- to Santo; mas argumentava que eram meramente expressdes dos atributos de deidade, assim como dizemos que Deus é poderoso, justo e sabio. Ele mantinha, portanto, que o Pai era o Filho, e o Espirito era 0 Pai, sem ordem ou distingéo. Os defensores da verdade enfrentavam seu erro asseverando que havia trés pessoas distintas em um s6 Deus, e declaravam essa verdade de modo simples e claro ao dizer que na unidade da Deidade ha uma trindade de pessoas. Se, portanto, tais termos n4o foram apressadamente inventados, devemos acautelar-nos para nao sermos culpados de precipitacio e altivez ao rejeita-los. Agora, porém, ao invés de disputar acerca de palavras, procurarei falar da propria realidade. Com o termo pessoa, quero dizer quem tem uma subsisténcia na esséncia (0 Ser) de Deus, e com relacao as demais Pessoas, e é distinguida delas por aquilo que é peculiar e inalienavelmente dEle préprio; e com a palavra “subsisténcia” quero dizer alguma coisa diferente da “esséncia” ou do “Ser”. Ora, se o Verbo fosse sim- plesmente Deus, e nada de peculiar tivesse em Si, Joao nao poderia ter dito corretamente “o Verbo estava com Deus”. E quando prossegue dizendo “e 0 Verbo era Deus”, ele chama nossos pensamentos de volta a unidade da esséncia divina. Concluimos, portanto, que quando a palavra “Deus” é usada de modo simples e indefinida, ela pertence ao Filho e ao Espirito tao verdadeiramente quanto pertence ao Pai; mas quando, por exemplo, o Pai é comparado com o Filho (em expressdes tais como “O Pai ama o Filho”, ou “O Pai enviou Seu Filho”) cada pessoa divina é distinguida uma da outra por aquilo que peculiarmente Lhe pertence; ¢ aquilo que é distintamente atribuido ao Pai nao pode ser transferido ao Filho ou ao Espirito. Nao podemos dizer, por exemplo, que 0 Pai Se 73 tornou homem e sofreu, ou que o Espirito disse: “Este € meu Filho amado”.* Agora passarei a dar provas da Deidade do Filho e do Es- pirito Santo. Quando as Escrituras falam da “Palavra de Deus”, nao devemos supor que nada mais é referido do que uma voz transiente, o mero pronunciamento de um oréculo ou de uma profecia. “A Palavra de Deus” também é 0 titulo daquela eterna Sabedoria que est4 com Deus, e é a fonte de todos os demais ordculos e profecias. Aprendemos de Pedro (1 Ped.1:11) que os profetas antigos falavam pelo Espirito de Cristo tao verdadeiramente quanto os apéstolos. E visto que Cristo nao tinha sido manifestado até entao, devemos entender que Pedro queria dizer com o nome “Cristo” aquele Verbo Eterno que foi gerado pelo Pai antes de todos os mundos; e se o Espirito que falava pelos profetas era o Espirito de Cristo, concluimos com certeza que Cristo é Deus. E isso é claramente ensinado por Moisés no seu relato sobre a Criag&o; pois atribui a Pala- vra uma participagao na Criacao ao dizer expressamente que Deus disse em todas as Suas obras, haja isto ou haja aquilo. Moisés escreve dessa forma para que a gloria inescrutavel de Deus possa resplandecer nAquele que é Sua imagem. Certos tagarelas nos dirao que a voz de Deus significa nada mais do que Seu mandamento; mas os apéstolos interpretam as Escri- turas mais sabiamente, ensinando-nos que os mundos foram feitos pelo Filho, e que Ele sustenta todas as coisas pela pala- vra do Seu poder (Heb. 1:2). Salom4o nos ensina, e nao de modo obscuro, a mesma doutrina (Prov. 8:22); e o préprio Cristo diz no mesmo sentido: “Meu Pai trabalha até agora, e “ Tem sido especialmente dificil representar em linguagem simples a declaragao supra da doutrina importante da Trindade. Fizemos nosso melhor esforgo, e sinceramente recomendamos 0 assunto a atengdo dos nossos leitores, e especialmente 4 atengdo dos ministros da Palavra.—J. BW. 74 eu trabalho também” (Joao 5:17). Mas Joao, no infcio do seu Evangelho, fala ainda mais claramente, quando escreve que o Verbo, que desde o principio era Deus com Deus, é junta- mente com Seu Pai a causa primaria de todas as coisas; Joao aqui atribui ao Verbo eternidade de existéncia, e a distincao de Pessoa, e claramente demonstra como Deus, ao falar, criou o mundo. Portanto, embora todas as revelagbes que vieram do céu sejam corretamente chamadas a Palavra de Deus, ao mesmo tempo é€ correto atribuir a mais alta dignidade ao Verbo essencial, a fonte de todos os ordculos, que nao esta sujeito a mudanga alguma, que esta eternamente com Deus, eé Deus. Ha certos falsos mestres que furtivamente roubam o Verbo da Sua eternidade, embora nao ousem abertamente negar Sua deidade. Dizem-nos que 0 Verbo de Deus comegou aexistir quando Deus falou na ocasiao da Criacao. Desse modo, imaginam temerariamente alguma mudanga no Deus imuta- vel. Tiago, porém, nos declara que nao hé em Deus nenhuma mudanca nem sombra de variac4o; logo, nao devemos, nem sequer por um momento, admitir a afirmagao de que houve um inicio para aquele Verbo que era Deus desde a eternidade € que, no devido tempo, criou o mundo. Sustentamos como verdade inegavel que o Verbo foi gerado por Deus antes de comegar 0 tempo, que era eternamente com Ele, e que a este Verbo pertence a eternidade, a auto-existéncia ea Deidade. Seria bom dar aqui uns testemunhos biblicos 4 Deidade de Cristo, No Salmo 45 diz-se ao Messias: “O teu trono, 6 Deus, é para todo o sempre”. Isaias fala dEle como sendo “Deus Forte, Pai da Eternidade, Principe da Paz” e também Lhe da o nome de Emanuel, “Deus conosco”. Jeremias, profetizando do prometido Filho de Davi, diz: “Sera este o seu nome, com que sera chamado: 0 SENHOR JUSTICA NOSSA” (Jer. 23:6). Em varias partes das Escrituras, diz-se queum Anjo apareceu aos pais e que reivindicou para Si mesmo o nome do Deus eterno. O Anjo que apareceu a Manod e sua esposa recusou-Se a 75 comer, e os ordenou que oferecessem um sacrificio a Jeova, e depois provou pela Sua aco que era Jeové. Manod e sua esposa sabiam que 0 Anjo era Jeova, pois Manoa disse: “Certa- mente morreremos, porque vimos a Deus”; e a esposa respon- deu: “Se o SENHOR nos quisera matar, n4o teria aceito de nossas mos 0 holocausto”, confessando, assim, que o Anjo era Deus. Realmente, a resposta do Anjo coloca a questao além de toda a divida: “Por que perguntas assim pelo meu nome, que é maravilhoso?” Serveto realmente asseverou com impie- dade detestavel que Deus nunca foi revelado a Abraao e aos demais patriarcas, porém que um anjo foi adorado ao invés dEle; mas os mestres ortodoxos da Igreja sempre tém susten- tado que o Anjo referido em tais passagens era 0 Verbo de Deus. O Novo Testamento da testemunho abundante 4 Deidade de Cristo. Devo selecionar apenas algumas passagens. E especialmente digno de nota que as predigdes no Velho Testa- mento sobre os atos de Deus sao consideradas pelos apéstolos como tendo sido cumpridas em Cristo. Por exemplo, Isaias disse que o Senhor dos Exércitos seria uma pedra de tropeco para Juda e Israel. Paulo afirma que isso é cumprido em Cristo (Is. 8:14; Rom. 9:33). Da mesma maneira, Paulo diz: “Todos compareceremos ante 0 tribunal de Cristo, pois esté escrito: por minha vida, diz o Senhor, diante de mim se dobraré todo joelho, e toda lingua confessard a Deus” (Rom. 14:10,11). Segue-se daf que Cristo é aquele Deus cuja gloria no pode ser transferida a outro. Assim também Joao testifica que a gloria de Jeova que Isafas viu (Is. 6:1-13) era a gloria de Cristo. E 0 sagrado escritor, escrevendo aos hebreus, atribui a Cristo uma gléria que pertence somentea Deus, dizendo: “No principio, Senhor, langaste os fundamentos da terra, e os céus sao obras das tuas maos”. Finalmente, quando Tomé excla- mou: “Senhor meu e Deus meu!” estava publicamente reco- nhecendo que Cristo era aquele Deus a quem sempre adorara. A Deidade de Cristo é comprovada também pelas obras que Lhe sao atribufdas nas Escrituras. Quando disse: “Meu 76 Pai trabalha até agora, e eu trabalho também”, os judeus, por mais cegos que fossem ao significado de muitos dos Seus ditos, mesmo assim perceberam que com estas palavras Ele estava reivindicando o poder divino, “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam mata-lo, porque nao somente violava 0 sbado, mas também dizia que Deus era seu proprio Pai, fazendo-se igual a Deus” (Joao 5:17,18). Quao cegos, pois, nds somos, se nao percebemos que Ele esta Se declarando ser Deus! Ele assume o poder para perdoar os pecados e discerne os pensamentos dos coragdes dos homens (Mat. 9:4-6). E quao distinta e claramente Sua Deidade aparece nos Seus milagres! Aquilo que os profetas e apéstolos faziam como ministros de Deus, Cristo fazia pelo Seu proprio poder inerente. Nao somente isso, Ele, mediante a Sua prépria autoridade, outorgou a outras pessoas o poder para operar milagres, para ressuscitar os mortos, para curar os leprosos, para expulsar deménios (Mat. 10:8; Mar. 3:15). E elas procla- mavam publicamente que seus poderes milagrosos eram deri- vados exclusivamente de Cristo. “Em nome de Jesus Cristo”, disse Pedro, “levanta-te e anda” (Atos 3:6). Deus nos mandou gloriar-nos somente nisto, que conhecamos o Senhor (Jer.9:24); quem, pois, ousard asseverar que Cristo (o conhecer a quem é toda a nossa gléria) é uma mera criatura? Posso acrescentar que as saudacgées das Epistolas de Paulo invocam a mesma béncao do Filho quanto do Pai, o que demonstra que recebe- mos os beneficios do nosso Pai celeste néo simplesmente através da mediacao do Filho, mas também pelo poder que 0 Filho possui em comum com 0 Pai. E este conhecimento pratico ¢ mais certo e sélido do que toda a especulagao balofa. Nas mesmas fontes documentérias devemos procurar a prova da Deidade do Espirito Santo. Moisés, no registro da Criagao, testifica acerca desta verdade de forma bem clara, quando diz que o Espirito de Deus pairava sobre as 4guas, ou sobre a matéria que ainda estava informe; pois assim nos mos- tra que nao somente o belo mundo ao nosso redor é sustentado 77 pelo poder do Espirito, como também que 0 Espirito, inclu- sive no principio, exercia Sua energia benéfica no meio da confusao do caos. Outro testemunho indisputavel é dado por Isaias (48:16), “Agora 0 SENHOR Deus e 0 seu Espfrito me enviaram”; pois dé ao Espirito uma participacao naquela autoridade suprema mediante a qual os profetas foram envia- dos e, dessa forma, salienta Sua majestade divina da maneira mais clara. Todavia, conforme eu jé disse, recebemos a melhor confirmaga4o desta verdade através da nossa experiéncia cons- tante como crentes. As Escrituras atribuem a Ele atributos inteiramente diferentes daqueles das criaturas, e achamos que assim é naquela experiéncia certa que pertence a piedade. E Ele que, estando presente em todos os lugares, sustenta e vivifica todas as coisas no céu e na terra; e esta onipresenca sozinha basta para distingui-la de todas as criaturas. E, além disso, se 0 poder mediante o qual renascemos para uma vida incorruptivel é muito superior aquele que é empregado no sustento deste mundo presente, 0 que devemos pensar dAquele de quem semelhante poder procede? Ora, as Escritu- ras nos ensinam em muitos lugares que por uma energia que nao Lhe foi emprestada, e sim que pertence a Ele mesmo, Ele é o Autor da regeneragao; e nao somente da regeneracao, mas também da futura imortalidade. Em resumo, todos os atributos peculiares da Deidade sao imputados a Ele, assim como ao Filho. Aquele que “perscruta as coisas profundas de Deus”, nao toma conselho de nenhuma criatura. Outorga a sabedoria e o dom de falar, poder este que Jeovd diz expressa- mente pertencer somentea Ele (Ex. 4:11), Por meio dEle, so- mos feitos participantes de Deus, e sentimos Seu poder vivificante. Justifica-nos pela fé. Vem-nos dEle 0 poder, a santificagéo, a verdade, a graca e toda béncao concebivel. Nesta questao, as palavras de Paulo (1 Cor. 12:11), sao especi- almente dignas de atenc4o, “Mas um sé e o mesmo Espirito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um, individualmente”. Pois se o Espirito nao fosse 78 uma pessoa na Deidade, autoridade e vontade certamente no seriam atribuidas a Ele. Dai, as palavras de Paulo muito claramente atribuem poder divino ao Espirito, e mostram que Ele é uma pessoa na Deidade. Além disso, quando as Escrituras falam do Espirito, nao hesitam em dar-Lhe o nome de Deus. Pelo fato de 0 Espirito habitar em nés, Paulo infere que somos o templo de Deus. E este 6 um testemunho que requer atencao especial, pois, depois de Deus ter prometido repetidas vezes que nos esco- lheria para sermos Seu templo, o cumprimento da promessa se acha inteiramente nisto ~ que Seu Espirito habita em nés. Sobre este ponto ha um dito excelente de Agostinho, “Se tivéssemos sido ordenados a edificar um templo de madeira e de pedra para honrar o Espirito, essa teria sido prova clara da Sua Deidade; quanto mais clara entao a prova que diz que nao devemos edificar, mas sim ser o templo dEle”! E 0 apéstolo Paulo diz num lugar que somos 0 templo de Deus, e noutro que somos 0 templo do Espirito Santo, com o mesmo signifi- cado. Além disso, quando Pedro repreende Ananias por ter mentido ao Espirito Santo, acrescenta: “Nao mentiste aos homens, mas a Deus” (Atos 5:3,4). E onde Isafas representa 0 Senhor dos Exércitos falando, Paulo nos ensina que é 0 Espi- rito Santo quem fala (Is. 6:9; Atos 28:25). Outrossim, em varios lugares onde os profetas dizem que suas palavras sao as palavras do Senhor dos Exércitos, Cristo e Seus apéstolos referem-nas ao Espirito Santo. Segue-se que Aquele que é declarado ser, num sentido especial, o Autor das profecias é verdadeiramente Jeova. Outra vez, onde Deus Se queixa que foi provocado 4 ira pela rebeldia do povo, Isafas nos diz que o Espfrito Santo foi entristecido (Is. 63:10). Finalmente, se a blasfémia contra o Espirito nao tem perdao neste mundo nem no do porvir (Mat. 12:31; Mar. 3:29; Luc. 12:10), ainda que haja perdao para a blasfémia contra 0 Filho de Deus, a majes- tade divina do Espirito é claramente asseverada, visto que uma ofensa contra ela é crime que nao pode ser perdoado. 79 Deliberadamente omito muitas passagens que foram citadas como provas por escritores anteriores. Por exemplo, alguns tém pensado que esta bem dentro do assunto citar as palavras de Davi no Salmo 33:6, “Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo 0 exército deles pelo espirito da sua boca”, Argumentaram que esta passagem demonstra que o Espirito de Deus participou da criacao tao verdadeiramente quanto o Filho. Mas visto que é costume no livro dos Salmos repetir a mesma declaragéo em duas formas diferentes, e visto que em Isaias a expressao: “O espfrito da sua boca” significa “Sua palavra”, considero que tal prova esta sujeita a objegao; € tem sido meu alvo no apresentar prova alguma senao a que possa ser wim esteio sélido para as mentes dos piedosos. Quando Cristo veio ao mundo, Deus Se revelou mais cla- ramente do que nunca e, portanto, tornou-Se mais intimamente conhecido a nés no que diz respeito as Suas trés pessoas. Den- tre muitas passagens relevantes no Novo Testamento, bastar4 uma. Em Efésios 4:5 Paulo escreve: “H4 um sé Senhor, uma s6 fé, um s6 batismo”. Aqui argumenta que, visto haver uma s6 fé, pode haver um s6 Deus; e visto haver um s6 batismo, pode haver uma sé fé. Se, pois, somos batizados na fé num sé Deus, é uma necessidade que Aquele em cujo nome somos batizados deva ser considerado o Deus verdadeiro. Nem se deve duvidar que Cristo, quando nos ordenou batizar em nome do Pai, do Filho e do Espirito Santo, pretendeu demons- trar mediante esta forma solene de palavras que a luz da fé finalmente tinha sido perfeitamente manifestada. Suas palavras significam que o batismo deve ser administrado em nome do tinico Deus verdadeiro, que Se revelou com perfeita clareza como Pai, Filho e Espirito Santo. Logo, fica totalmente claro que ha trés pessoas na esséncia divina, e que, nestas trés, um s6 Deus é revelado. Além disso, as Escrituras distinguem entre o Pai, o Verbo e0 Espirito; mistério esse que é tao grande que deve ser trata- do com a maxima reveréncia e sobriedade. Da minha parte, 80 fico imensamente contente com o dito de Gregorio de Nazianzo: “Logo que contemplo um, estou cercado pela gloria dos trés; logo que meus pensamentos distinguem os trés, sf0 levados de volta ao um.” De modo semelhante, nao tenhamos pensamento algum de qualquer trindade de pes- soas que nao nos leve imediatamente de volta 4 unidade da Deidade. & verdade que as palavras Pai, Filho e Espirito subentendam uma distingao real entre as Pessoas, e nao devem ser considerados meros nomes descritivos dados ao mesmo Deus para indicar Suas varias maneiras de operar; pelo contraério, elas subentendem distingao, porém é distin- ¢ao sem divisdo. O Filho é claramente distinguido do Pai nas passagens as quais ja nos referimos; 0 Verbo no teria estado “com Deus” a nao ser que fosse diferente do Pai; nem teria desfrutado “gléria com o Pai” a nao ser que fosse distinto dEle. De modo semelhante, o Filho distingue o Pai de Si mesmo quando diz: “ha outro que dé testemunho de mim”. Seme- lhantemente, diz-se noutro lugar que o Pai criou todas as coisas pelo Verbo, o que nao poderia ter acontecido se nao fossem, em certo sentido, distintos entre Si. Além disso, 0 Pai nao desceu para o mundo, mas sim Aquele que veio da parte do Pai. Nao foi o Pai quem morreu e ressuscitou, e sim Aquele que fora enviado por Ele. E esta disting&o nao come- gou quandoo Verbo Se fez carne, visto ser claro que o Unigénito estava anteriormente no seio do Pai, e que tinha Sua propria gloria com o Pai. Cristo infere que ha uma distingao entre 0 Espirito e o Pai, ao dizer que o Espirito procede do Pai; e distingue o Espirito de Si mesmo ao chama-lO “outro” — “O Pai vos dard outro Consolador”. Acho que nao seria proveitoso demonstrar este mistério por ilustragées tiradas de coisas naturais. Everdade que certos escritores antigos tenham feito assim; mas ao mesmo tempo confessam que ha uma grande diferenca entre o préprio mistério sagrado e as ilustragdes que empregam para fazer demonstracéo dele. Logo, receio aventurar-me com tais 81 comparacées, pois nao quero dar aos oponentes nenhuma razao para maledicéncia, nem quero dizer coisa alguma que possa confundir os nao instruidos. Ainda assim n4o é correto passar silenciosamente sobre uma distingao que esta clara- mente marcada nas Escrituras. E da seguinte natureza: ao Pai éatribuido o comeco da operagao, a fonte e origem de todas as coisas; ao Filho, a sabedoria e o conselho, e a dispensacao de todo o governo; ao Espirito, o poder ea eficacia demonstrados na acao. E embora a eternidade do Pai também seja a eterni- dade do Filho e do Espirito, e nesta eternidade nao pode ser achada nenhuma prioridade de uma das Pessoas sobre as outras, no entanto, a observancia de uma certa ordem em falar das Pessoas divinas nao é v4 nem supérflua: 0 Pai é assim con- siderado o primeiro, o Filho é da parte do Pai, e o Espirito é da parte de ambos. Nossa mente pensa instintivamente em Deus como sendo primeiro, e depois, da Sua Sabedoria que procede da parte dEle, e finalmente, do poder do Espirito pelo qual os decretos do Seu conselho sao executados. Por isso, diz-se que o Filho é somente da parte do Pai, porém que o Espirito é da parte do Pai e do Filho. Em nenhum lugar isso é mais claramente apresentado do que no capitulo oito de Romanos, onde o mesmo Espirito é primeiramente chamado o Espirito de Cristo, e depois, o Espirito dAquele que ressus- citou Cristo dentre os mortos. Pedro confirma isso ao testificar que os profetas falaram pelo Espirito de Cristo, enquanto que as Escrituras freqiientemente nos dizem que falavam pelo Espfrito de Deus Pai. E esta distingao entre as Pessoas em vez de ser oposta a unidade da esséncia divina fornece uma prova disso. A unicidade do Filho com o Pai aparece nisto: que Eles tém um s6 Espirito; e o Espirito nao pode ser algo diferente do Pai e do Filho por esta mesma raz4o que Ele é 0 Espirito do Pai e do Filho. De fato, em cada Pessoa esté a Deidade inteira, ao mesmo tempo que cada uma tem Sua propria personalidade distinta. Assim Cristo diz: “Eu estou no Pai, e o Pai est4 em 82 mim”. Agostinho diz algures muito bem ecom clareza: “Cris- to, quando considerado somente em relacdo a Si mesmo, é chamado Deus; em relacao ao Pai, é chamado o Filho. E, ou- tra vez, 0 Pai, considerado em Si mesmo, é chamado Deus; com respeito ao Filho, é chamado 0 Pai; 0 Pai nao é 0 Filho, e o Filho nao é 0 Pai, mas 0 Pai eo Filho séo o mesmo Deus.” O quinto livro de Agostinho sobre a Trindade trata inteiramente deste assunto; todavia é muito mais seguro restringir-nos ao relacionamento divino do qual fala, do que esforgar-nos para penetrar por meio de especulagées sutis num mistério tao sublime. Portanto, que todos quantos amam a sobriedade apren- dam em poucas palavras o que convém saber, isto é, quando professamos que cremos num sé Deus, queremos dizer com o termo “Deus” um Ser unico e indiviso, em quem ha trés Pessoas; e, portanto, quando usamos 0 vocébulo “Deus” de modo indefinido, queremos dizer o Filho e o Espirito tanto quanto o Pai. No entanto, visto que a distingao entre os trés necessariamente implica numa certa ordem, quando o Pai é mencionado juntamente com o Filho ou com o Espirito, atribuimos 0 nome “Deus” especialmente ao Pai, dizendo: 0 Filho de Deus, o Espirito de Deus. Assim, apegamo-nos a unidade da esséncia divina, tratamos com respeito a ordem das Pessoas, e em nada depreciamos a Deidade do Filho e do Espirito. 14 AS ESCRITURAS, NO SEU REGISTRO DA CRIACAO, DISTINGUEM O DEUS VERDADEIRO DE TODOS OS DEUSES FALSOS A histéria da Criagao nos é dada nas Escrituras a fim de que os membros da Igreja possam confiar nela e nao procurar 83 nenhum outro Deus senéo o Deus a quem Moisés declara ter sido o Arquiteto e Fundador do universo; e esse conheci- mento que nos é dado acerca do comego do universo coloca numa luz clara a eternidade do seu Autor. Nem sequer preci- samos prestar atenco 4 zombaria profana: “Se Deus viveu desde toda a eternidade, por que Ele nao criou o mundo antes?” Nem é lfcito nem conveniente fazer tal pergunta. Aprendemos de Moisés que Deus completou Sua obra, n4o instantaneamente, mas sim no decurso deseis dias. Nisso podemos perceber o amor paterno de Deus para com Sua criatura, 0 homem, a quem nfo criou antes que o mundo fosse enriquecido com uma abundancia de todas as coisas boas. Toco aqui nesta questao de modo breve; mas considera- -la atentamente nos leva 4 conviccéo de que Moisés era uma testemunha fiel do Deus verdadeiro, do Criador. Antes de falar mais plenamente acerca da natureza do homem, devo dizer alguma coisa a respeito dos anjos. E ver- dade que Moisés nao os menciona no seu relato da Criagao, que trata somente das coisas que podemos ver; mas nao ha razao alguma para nao declararmos expressa e distintamente aquilo que somos ensinados sobre este assunto noutras partes das Escrituras, porque se quisermos conhecer Deus por meio das Suas obras, nao devemos passar em branco uma obra tao gloriosa quanto a criagao dos anjos. Ademais, alguma atengao a este assunto é necesséria para a refutagdo de certas doutrinas erréneas. Algumas mentes, pois, tém sido tao ofuscadas com a exceléncia da natureza angelical que consideraram os anjos como seres divinos; e a heresia maniquéia ensina que ha dois seres originais, Deus e o diabo, considerando Deus como a origem de todo 0 bem, e 0 diabo como a origem de todo o mal. Onde, porém, est4 a onipoténcia de Deus, se admitirmos que o diabo é um ser independente? Os maniqueus argumentam que € ilicito atribuir a Deus a criagéo de qualquer coisa ma; e supdem que a fé ortodoxa assim faz. Mas a verdade é que a maldade dos homens e dos deménios procede, nao da 84 natureza, e sim de uma corrup¢ao da natureza; e que, no inicio, nenhuma criatura existia na qual Deus nao dera provas da Sua prépria sabedoria e justiga. Nao se pode contestar que os anjos, que sao servos de Deus, também sao Suas criaturas; entretanto é ocioso perguntar quando foram criados. Moisés escreve: “Assim, pois, foram acabados os céus e a terra, e todo o seu exército”. Acaso nos compete saber exatamente quando os anjos foram feitos? Para ser breve, quero lembrar aos meus leitores que emtodos os assuntos de doutrina devemos ser regidos pela modéstia e pela sobriedade; e que em tudo que é obscuro nem devemos dizer, nem pensar, nem procurar saber, mais do que nos é revelado na Palavra de Deus. O designio do Senhor é instruir- -nos, néo em questées da curiosidade frivola, mas na verda- deira piedade, no temor do Seu nome, na fé verdadeira e nos caminhos da santidade. Com tal conhecimento, estejamos satisfeitos. O alvo de um teGlogo nao é aticar os ouvidos dos homens com conversas vas, e sim, estabelecer suas conscién- cias mediante o conhecimento itil. Freqiientemente lemos nas Escrituras que os anjos sao espfritos celestes por meio de cujo servigo obediente Deus executa Seus decretos; daf seu nome: anjos, ou seja, mensa- geiros, por intermédio dos quais Deus Se revela aos homens. Também sao chamados “a hoste celestial”, ou exército celestial, porque cercam seu Monarca, aformoseiam Sua Majestade, e ficam prontos para cumprir Suas ordens como soldados pron- tos a obedecer aum comandante. E visto que Deus os usa para demonstrar Seu poder e exercer Sua autoridade, as vezes sao referidos como principados, poderes e tronos.” Ainda mais, os anjos as vezes sao referidos nas Escrituras como sendo “deuses”, pois em seu ministério, como num es- pelho, eles colocam diante de nés alguma fraca imagem de * Milton, portanto, escreveu: Tronos, Dominios, Principados, Virtudes, Poderes. — O Paraiso Perdido, Livro V, linha 772. 85 deidade. Estou bem disposto a concordar com aqueles que consideram que “O Anjo do Senhor” que apareceu a Abraio, a Jacé, a Moisés e a outros, fosse Cristo; mas mesmo quando todos os anjos sao referidos, a palavra “deuses” é usada. E nao precisamos maravilhar-nos disso, visto que também é usada (Sal. 82:6) com respeito aos principes e governadores, porque em seus cargos representam a Deus, 0 supremo Soberano e Juiz. Ha, porém, um conceito deste assunto que tende grande- mente a nos consolar e confirmar nossa fé, e sobre este fato as Escrituras s40 especialmente explicitas. Diz esse conceito que 0s anjos sdo espiritos ministradores cuja obra é transmitir a nés as beneficéncias de Deus. Portanto, somos informados que eles zelam pela nossa seguranga, assumem nossa defesa, diri- gem nossos caminhos e cuidam para que nenhum mal nos aconteca. Nao me aventuraria a asseverar que um anjo é designado para cada cristéo como seu guardiao; porque nao vejo que possa ser provado pelas Escrituras. Contudo, 0 certo é que nao somente um anjo e sim todos eles, vigiam pela nossa segu- rancga de comum acordo; e diz-se acerca deles que mais se regozijam a respeito de um sé pecador que se arrepende do que sobre noventa e nove justos que nao precisam do arrependimento. Aqueles que procuram definir 0 ntiimero dos anjos e suas varias ordens e dignidades nao tém base segura para tal defi- nigao. Mas uma coisa é certa: eles sao espiritos ministradores cujo obediente servigo Deus usa para a protecao do Seu povo, para distribuir Seus beneficios aos homens e para outros trabalhos. Desse modo, vamos tirar bom proveito daquilo que as Escrituras nos dizem acerca do ministério dos anjos ao aprender disso como vencer nossa falta de confianga e como fixar nossa esperanca mais firmemente em Deus. Lembremo- -nos daquela declaragao de Eliseu: “Mais sao aqueles que es- téo conosco do que os que estao contra nés”. Lembremo-nos, 86 entretanto, que Deus no faz dos anjos os ministros do Seu poder e da Sua bondade a fim de compartilhar com eles a Sua gléria, nem promete a nés a assisténcia deles para que em parte confiemos neles e em parte confiemos nEle. Os préprios deménios sao criaturas de Deus; mas nao devemos atribuir sua maldade a sua natureza original, e sim ao fato de que sua natureza tem sido corrompida pelo pecado. A informacao que as Escrituras nos dao a respeito deles pretende principalmente nos deixar de sobreaviso contra seus ataques insidiosos, e levar-nos a revestir-nos de armadura suficientemente forte para resistir ao poder deles. Por exem- plo: satanas é chamado o deus deste mundo, o dominador deste mundo, o valente armado, 0 principe do poder dos ares, o ledo que ruge; todos esses titulos visam tornar-nos mais cui- dadosos, mais vigilantes, mais prontos a entrar na luta. E isso as vezes é expressamente declarado, pois Pedro, apés declarar que 0 diabo “anda em derredor como ledo que ruge, procu- rando alguém para devorar” acrescenta a exortacao: “resisti- lhe firmes na fé”. Assim também Paulo nos lembra que “a nossa luta nao é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mun- do tenebroso, contra as forgas espirituais do mal, nas regides celestes” e depois, imediatamente nos conclama: “tomai toda aarmadura de Deus”, armadura tal que sera de proveito numa luta tao 4rdua e cheia de perigo. Vamos, portanto, utilizar em proveito disso todo 0 conhecimento que possuimos. Temos sido advertidos que estamos constantemente ameagados por um inimigo que é ousado, forte, astuto, diligente, incans4vel, plenamente preparado com todos os instrumentos de guerra e totalmente treinado na arte de guerrear. Nao cedamos, por- tanto, diante da preguica ou da covardia, mas sim fiquemos firmes na batalha e enfrentemos o inimigo com vigor e cora- gem; e visto que a guerra somente terminara com a morte, exortemos uns aos outros a perseverarmos até o fim. Acima de todas as coisas, sejamos conscientes da nossa fraqueza e 87 inexperiéncia; clamemos a Deus por socorro e confiemos nEle em todos os nossos esforcos, visto que somente Ele pode for- necer-nos sabedoria, forca, coragem e armadura. Para nos despertar para este conflito, as Escrituras nos dizem que temos que lutar nao apenas com um s6 inimigo, nem com poucos, e sim com intimeros. Diz-se que Maria Madalena tinha sido possessa de sete deménios, e Cristo nos diz em Mateus 12:43 que tal possessao nao é uma ocorréncia incomum. Pelo contrario, declara-se que uma legiao inteira possuiu um sé homem. Assim somos ensinados que temos de jutar com um ntmero infinito de inimigos, para que nao relaxemos nossa vigilancia por serem eles poucos, nem nos entreguemos a indoléncia sob a ilusao de que abandonaram aluta. Além disso, devemos ser despertados para travar uma guerra incessante contra o diabo, devido ele ser nao somente nosso inimigo, como também ser 0 inimigo de Deus. Pois se a honra de Deus é preciosa para nés, conforme deve ser, deve- mos esforgar-nos com toda a nossa energia contra aquele espirito mau que procura desonrar a Deus. Se estivermos animados como deveriamos estar, com um desejo para pro- mover 0 reino de Cristo, devemos estar irreconciliavelmente em guerra contra 0 espirito maligno que est4 procurando subverter aquele reino; e se realmente tivermos zelo para com nossa propria salvacao, nao poderemos ter paz nem trégua com oinimigo que sempre esta tramando nossa ruina eterna. Pelas suas mentiras, pois, ele luta contra a verdade de Deus, e pelas trevas obscurece a]uz; emaranha os pensamentos dos homens em varios erros, desperta o édio, acende a contenda ea lutae dirige todos os seus esforgos para a subversao do reino de Deus, como também para afundar os homens na rufna eterna juntamente com ele mesmo. Por conseguinte, fica claro que o diabo é por natureza depravado, maligno e malicioso. Todavia, como ja foi dito, visto que ele € uma criatura de Deus, devemos atribuir sua maldade, ndo 4 sua natureza 88 original, mas sim ao fato de que sua natureza foi corrompida pelo pecado. Sua atual condicao execravel é inteiramente o resultado da sua propria apostasia e queda. As Escrituras nos ensinam isso, a fim de nao atribuirmos a Deus aquilo que é mais estranho a Sua natureza santissima. Por isso, Cristo nos diz que quando o diabo “profere a mentira, fala do que lhe é proprio, porque é mentiroso e pai da mentira”; e Cristo também dé a razao, dizendo: “jamais se firmou na verdade”, certamente inferindo que em certa época estava na verdade, ou seja, nao tinha cafdo. O que mais precisarfamos saber acerca dos deménios? Basta isto: pela sua criacdo original eram anjos de Deus, mas pela apostasia se arruinaram e tornaram- -se instrumentos na ruina dos outros. Ja tenho dito que o diabo luta contra Deus; entretanto deve ser lembrado que, sem 0 consentimento de Deus, ele nada pode fazer. Lemos na histéria de J6 que satands se apresenta diante de Deus para receber ordens, e nao ousa passar a execu- cao de qualquer ato de violéncia, sem permissao. De modo semelhante, quando Acabe deve ser enganado, 0 diabo se ofe- rece para ser um espirito de mentira na boca de todos os profetas; e o espirito que perturbava Saul era chamado “um espirito maligno da parte do Senhor”. Assim também Paulo testifica que a cegueira dos que nao créem nfo ésomente obra de satands, e sim obra judicial de Deus. (Ver 2 Tess. 2:9-12.) Ora, visto que Deus é capaz de mudar 0 curso dos espiri- tos imundos de 14 para ca conforme Sua vontade, Ele os governa de tal maneira que lhes é possivel provar os crentes com conflitos, colocar armadilhas no seu caminho, perturba- -los com ataques, lutar contra eles, podem freqiientemente abater, desnortear e aterrorizé-los, e as vezes feri-los; mas nunca Ihes permite que os conquistem ou esmaguem. Paulo confes- sa que no estava isento daquele tipo de conflito, quando diz: “E, para que nao me ensoberbecesse com a grandeza das reve- lagdes, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de satand4s, para me esbofetear, a fim de que nao me exalte”. 89 Aqui devo refutar as nogdes absurdas que os deménios sao apenas as paix6es malignas e os pensamentos perturba- dores que sobem contra nés da parte da nossa propria carne. Isso posso fazer com facilidade, porque as Escrituras falam sobre essa questéo em muitos lugares. Primeiramente, os deménios séo chamados “espiritos imundos” e os “anjos que deixaram seu primeiro estado”, apdstatas; cujos titulos bastam para demonstrar que nao so movimentos ou afecgdes das mentes dos homens, mas sim realmente conforme sao chamados, espiritos dotados com senso e entendimento. Outrossim, quando os filhos de Deus sao comparados com os filhos do diabo, porventura a comparacao nao ficaria sem sentido sea palavra “diabo” nada mais significasse do que maus pensamentos? E, acima de tudo, se nao existissem seres tais como os deménios, qual finalidade haveria nas declaragées de que estao destinados 4 condenagao eterna, que o fogo esta preparado para eles, e que mesmo nos dias em que Cristo vivia na terra ficaram cheios de terror e tormento diante da Sua presenga? Cumpre-nos sentir um santo deleite ao contemplar o belo espetaculo que nos é apresentado pelas obras de Deus no universo ao nosso redor; pois é uma das primeiras provas da existéncia de fé o lembrar-nos de que todas as coisas visiveis s&o obras de Deus, como também o considerar com reveréncia porque as formou. Portanto, é de proveito procurar um conhe- cimento salvifico do Criador ao estudar a histéria da Criagao relatada por Moisés e exposta por homens piedosos tais como Basilio e Ambrésio. Por meio desse registro aprendemos que Deus, pelo poder da Sua palavra e do Seu Espirito, criou do nada o céu e a terra; que os fez trazer 4 existéncia todas as criaturas animadas e inanimadas; que distinguiu uma da ou- tra, em ordem maravilhosa, uma variedade inumeravel de coisas, deu a cada coisa sua propria natureza peculiar, atribuiu- -lhes suas varias fungées e colocou-as nas suas varias posig6es; e, visto que todas sao sujeitas 4 decadéncia, fez provisdo para 90 a preservacao continua de cada espécie até ao dia final. Algumas espécies Ele conserva de modo misterioso, ao instilar nelas novo vigor de tempos em tempos; a outras dé o poder da procriagao, para que, morrendo os individuos, a espécie nao fique extinta. Dessa maneira, adornou o céu e a terra com to- das as coisas em maravilhosa abundancia, variedade e beleza, como uma mansao espacosa e espléndida bem guarnecida com méveis primorosos. Finalmente, ao criar o homem ¢ distingui-lo com tao excelente formosura e tantas grandiosas capacidades, Deus exibiu nele a mais ilustre das Suas obras. Estaria fora de lugar discutir aqui em detalhes a tendén- cia e o objetivo da consideracéo sobre as obras de Deus; bastar4o algumas palavras. Realmente, se eu fosse conclamado para tratar do assunto de uma maneira apropriada a sua digni- dade, e para demonstrar quao inestimavel sabedoria, poder, justiga e bondade brilham no sistema do universo, confesso que nenhum esplendor de estilo, nenhuma beleza de lingua- gem, poderia tratar com justiga tao grande assunto. E 6bvio que é da vontade do Senhor que continuamente empreguemos nossa mente 4 consideracdo deste tema sagra- do. Contemplamos em toda a criagéo como num espelho as infinitas riquezas da Sua sabedoria, justica, bondade e poder; por isso nao devemos ofh4-las apenas de relance, de modo passageiro, mas sim reté-las demoradamente em nossos pen- samentos, consideré-las de modo sério e fiel com nossas mentes e relembré-las repetidas vezes em nossa memoria. Visto, porém, que estou apresentando aos meus leitores um resumo da doutrina crista, devo evitar assuntos que ficam fora do seu escopo e que exigem um tratamento detalhado. Dese- jando, portanto, ser breve direi apenas que cremos verdadei- ramente em Deus como o Criador do céu e da terra se atender- mos as duas regras seguintes: primeira, nao devemos olvidar de modo ingrato e impensado os atributos de Deus conforme sao demonstrados nas Suas obras; segunda, devemos levar em conta a aplicacaéo deles a nds mesmos, de modo que nosso a1

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