Vous êtes sur la page 1sur 16

Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO:


reflexões a partir da experiência da Favela Santa Marta

Bianca Freire-Medeiros*
Márcio Grijó Vilarouca**
Palloma Menezes***

Desde os anos 1990, a Rocinha veio se consolidando como paradigma de favela turística, valendo-se de um
modelo centrado na atuação das empresas privadas externas à favela e na indiferença permissiva do poder
público. Este artigo analisa as inflexões práticas e discursivas que permitiram a quebra desse paradigma e
a emergência de um modelo baseado tanto em parcerias entre poder público e mercado, quanto na mobi-
lização de moradores como empreendedores. A partir de trabalho de campo e entrevistas, examinam-se as
percepções e justificações desses vários atores – poder público, operadoras de turismo, moradores – envol-
vidos na conversão do Santa Marta em atração turística. A hipótese defendida é que o Santa Marta, primeira
favela a receber uma Unidade de Polícia Pacificadora, oferece um ponto privilegiado de observação do novo
campo de forças que define o lugar a ser ocupado pelas favelas em um projeto que toma o Rio de Janeiro
como cidade-cartão-postal.
Palavras-chave: Turismo. Favela. Rio de Janeiro. Pobreza. Pacificação.

INTRODUÇÃO 2007). Localidades as mais diversas buscam,


então, redescobrir sua “vocação” e redefinir
Há pelo menos duas décadas, uma vasta sua “identidade” – atributos variados que, a
literatura no campo das ciências sociais tem partir de operações de city branding, entre ou-
insistido que estamos diante de um processo tras, sejam capazes de bem posicioná-las na
crescente de integração dos sistemas econô- nova competitividade territorial cuja lógica de
mico, social e cultural (King, 1991; Robertson, projeção passa, sobretudo, pelo desenvolvi-
1992; Sasken, 1998). Independentemente do mento de uma economia simbólica da cidade
batismo que se dê a esse processo – globali- (Zukin, 1995).
zação, mundialização, transnacionalização –, O turismo, visto como engenho que per-

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


o turismo pode ser tomado, a um só tempo, mite forjar uma nova imagem urbana, passa a
como causa e efeito dele. O turismo é um dos encontrar cenário em localidades antes tidas
fluxos através dos quais trocas econômicas, como “não turísticas”. Embalados em novas
sociais e culturais acontecem, e o crescente es- premissas históricas, culturais e estéticas, ter-
copo dessas trocas, por sua vez, torna-se um ritórios marginais – slums, favelas, townships
estímulo ao turismo (Richards, 2007; Urry, – adquirem usos e sentidos inesperados. Abre-
se, no processo, a possibilidade de produzir,
*
Universidade de São Paulo (USP). Faculdade de Filosofia promover e consumir uma mercadoria intangí-
Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Departamento de So- vel, isto é, baseada na experiência, a que um de
ciologia. Programa de Pós-Graduação em Sociologia.
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315. Cidade Universitária. nós chamou, em oportunidades prévias, de po-
Cep: 05508-010. Butantã – São Paulo – Brasil. freiremed@
hotmail.com breza turística (Freire-Medeiros, 2009, 2013).
**
Fundação Getulio Vargas. Centro de Pesquisa e Docu- Transformada em commodity com um valor
mentação de História Contemporânea do Brasil.
Praia de Botafogo, 190, 14o andar. Cep: 22253-900. Rio de monetário acordado entre promotores (opera-
Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil. marcio.grijo@fgv.br
***
Fundação Getulio Vargas. Centro de Pesquisa e Documen-
doras de turismo, ONGs, moradores engajados
tação de História Contemporânea do Brasil. no mercado turístico) e consumidores (turis-
Praia de Botafogo, 190, 14o andar. Cep: 22253-900. Rio de Ja-
neiro – Rio de Janeiro – Brasil. pallomamenezes@gmail.com tas de várias partes do mundo, especialmente

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000300010 571
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

aqueles oriundos do chamado rico norte), a ex- tidos em empreendedores turísticos. Este arti-
periência da pobreza é comercializada em lo- go se propõe a oferecer um retrato detalhado
calidades associadas à segregação, desordem, desse processo de emergência da “outra” fave-
insalubridade e violência. Há de se atentar, la turística, partindo de reflexões acumuladas
portanto, para o caráter sociogeográfico que por cada um dos autores em suas pesquisas
singulariza esse produto: slums, townships e (Freire-Medeiros, 2013; Menezes, 2015), bem
favela tours1 prometem um mergulho “[...] em como de um projeto de investigação comum,
territórios que habitam a imaginação interna- intitulado “Turismo em favelas pacificadas”,
cional como uma metonímia e uma metáfora realizado sob encomenda do Ministério do Tu-
para subdesenvolvimento e iniquidade” (Frei- rismo (MTur) em 20112. Nossa intenção aqui
re-Medeiros, 2015, p. 189). é, mais especificamente, examinar as percep-
A pobreza turística, no Brasil, encontra ções e justificações, nos termos de Boltanski e
seu referente simbólico em uma favela imagi- Thévenot (1999), dos principais atores direta-
nária, necessariamente fincada na montanha, mente envolvidos nos primeiros momentos da
entre a mata e o mar, de onde se podem avistar conversão do Santa Marta em atração turística
os bairros mais ricos da cidade. No que se refe- oficial da cidade do Rio de Janeiro.
re à oferta e à demanda comerciais, esse territó- O Santa Marta localiza-se em uma en-
rio da imaginação passa a fazer parte do pacote costa íngreme, na divisa entre os bairros de Bo-
turístico que confere especificidade à cidade tafogo e Laranjeiras, na prestigiosa Zona Sul. A
do Rio de Janeiro, em geral complementando favela, segundo dados da Secretaria de Estado
outros itinerários mais tradicionais ou mesmo de Segurança (Seseg), tem uma área de 54.692
competindo com eles. Seu referente material m2, onde vivem cerca de seis mil moradores.
inconteste, entre início dos anos 1990 até pelo O território está delimitado do lado direito por
menos fins dos anos 2000, foi a Rocinha, co- um plano inclinado, inaugurado em maio de
nhecida no mercado turístico como “a maior 2008, com cinco estações, e do lado esquerdo
favela da América Latina”. Este artigo examina por um grande muro de concreto que, batizado
o momento que marca o fim dessa hegemonia de “ecobarreira”, foi construído em 2009 pelo
e o início de um capítulo inédito na biografia Governo do Estado para conter a expansão da
da favela turística. favela em direção à mata tropical.
Se a Rocinha, ao longo de duas décadas, O trânsito de visitantes pelo Santa Marta
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

representou a vitória de um modelo fundado não constitui exatamente uma novidade: a fave-
tanto no protagonismo das empresas priva- la, ao longo de sua história, atraiu constantemen-
das externas à favela quanto no silêncio (ou te o olhar curioso de anônimos e celebridades.
mesmo oposição) do poder público, nossa hi- No fim da década de 1980, porém, essa curiosi-
pótese é que, no contexto da chamada políti- 2
Este artigo beneficia-se das pesquisas realizadas desde
ca de pacificação (Silva, 2010; Cunha; Mello, 2005 por Freire-Medeiros sobre turismo em áreas de pobre-
za, cuja síntese mais recente encontra-se no livro Touring
2011; Burgos et al., 2012; Cano; Borges; Ribei- Poverty (2013); da etnografia de longa duração realizada
por Palloma Menezes entre 2011 e 2014, nas favelas San-
ro, 2012; Barbosa, 2012; Carvalho, 2012; Ost; ta Marta e Cidade de Deus, e do material produzido pela
equipe coordenada por Freire-Medeiros e Grijó Vilarouca,
Fleury, 2013; Leite, 2014; Menezes, 2015), no contexto do projeto de pesquisa “Turismo em comuni-
pôde ser estabelecido um novo campo de for- dades pacificadas”, financiado pelo MTur e pela Fundação
Getúlio Vargas. Desenvolvido entre os meses de março e
ças que permitiu a gestação e a consolidação junho de 2011, o projeto realizou 40 entrevistas em pro-
fundidade com diversos atores envolvidos nas atividades
de um modelo cujo sustento se encontra tanto turísticas ou por elas afetados diretamente (moradores,
guias locais, comerciantes, agências de turismo e staff da
nas parcerias entre poder público e mercado, UPP) e dois surveys, um com turistas estrangeiros (400
quanto no agenciamento de moradores conver- questionários) e o outro com turistas nacionais e estrangei-
ros no aeroporto internacional do Rio de Janeiro (amostra
de 900 entrevistados). Para outros desdobramentos desse
1
Para um panorama comparativo entre essas três modali- projeto, ver Freire-Medeiros e colaboradores (2012, 2013)
dades de excursões pagas, ver Freire-Medeiros 2013. e Freire-Medeiros e Vilarouca (2015).

572
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

dade não encontraria motivação na vista privi- Para o bem e para o mal, o Santa Marta
legiada para o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar tornou-se um “laboratório” no qual tem sido
e outras paisagens consagradas no repertório tu- testada uma série de intervenções e iniciati-
rístico, mas na espetacularização midiática das vas tanto públicas como privadas (Ost; Fleury,
“guerras” ocorridas no morro.3 Posteriormente, 2013; Menezes, 2015). Serviços diversos foram
reforçaram-se ainda mais as imagens negativas regularizados – energia elétrica, água, televisão
da favela, a partir, sobretudo, de três produtos de a cabo – e 70 dos 976 estabelecimentos comer-
ampla circulação: em 1996, do videoclipe de Mi- ciais existentes em 2011 haviam sido legaliza-
chael Jackson e das polêmicas em torno de sua dos. Um dos principais argumentos utilizados
gravação no morro; em 1999, do documentário pelos agentes da Prefeitura para incentivar os
“Notícias de uma Guerra Particular” – produzi- comerciantes a legalizar seus estabelecimentos
do por João Moreira Salles e Kátia Lund – que foi justamente sinalizar que um “projeto de tu-
retratava o cotidiano compartilhado por trafican- rismo” seria lançado na favela e que o conse-
tes, policiais e moradores; e, em 2003, do livro O quente aumento do fluxo de turistas no morro
Abusado, de Caco Barcellos, que virou best-seller poderia gerar um aumento nas vendas – desde
ao contar as desventuras do “ex-dono do Santa que o comércio local estivesse devidamente re-
Marta”, o traficante Marcinho VP.4 Nesse perío- gularizado. O projeto foi inaugurado em 2010
do, as visitas eram esporádicas e intermediadas e batizado de “Rio Top Tour: o Rio de Janeiro
por representantes de instituições locais – como sob um novo ponto de vista”.7 É dele que tra-
o Grupo Eco5 e a Associação de Moradores –, ta a próxima seção, ou seja, do pacote que os
sem que se estabelecesse um mercado turístico agentes públicos idealizaram para embalar o
propriamente dito. produto Santa Marta e entregá-lo ao mercado
Não se pode negar, portanto, que foi a turístico. Em seguida, ouvimos as agências pri-
inauguração, em dezembro de 2008, da primei- vadas e seus guias, assim como os guias-mora-
ra Unidade de Polícia Pacificadora da cidade do dores que, naquele momento, foram os princi-
Rio de Janeiro a grande responsável pelos novos pais responsáveis por estabelecer um merca-
fluxos de circulação pelo morro. Em um curto do turístico na favela, buscando identificar e
espaço de tempo, foi se tornando corriqueira a compreender as categorias por eles acionadas
presença de jornalistas brasileiros e estrangei- no exercício de legitimação do “produto Santa
ros, estudantes de universidades de diversos Marta”, diante, sobretudo, dos questionamen-

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


países e pesquisadores de diferentes áreas, que tos críticos dos moradores. Abordamos, ainda,
chegavam à favela na tentativa de compreender os desdobramentos recentes das disputas entre
o processo de “pacificação”. Enquanto isso, o esses diversos atores, com foco na proposição,
Santa Marta passava a receber um enorme nú- por parte dos moradores e guias locais, de ou-
mero de empresários, empreendedores, repre- tras embalagens para o produto Santa Marta.
sentantes do poder público, celebridades e, sem 6
A presidente da Associação de Comerciantes nos infor-
dúvida, turistas, muitos turistas. mou que o número de estabelecimentos comerciais cres-
ceu muito após a chegada da UPP, e hoje há cerca de 150
3
Inúmeras matérias foram divulgadas sobre a disputa tra- estabelecimentos.
vada entre os traficantes Zaca e Cabeludo pelo controle
da venda de drogas: “Em outubro de 1987, a guerra entre
7
O projeto foi idealizado pela jornalista e mestre em an-
os dois levou pânico aos moradores da favela e de Botafo- tropologia Mônica Rodrigues. Em 14 de julho de 2011,
go. Para surpreender os rivais, os traficantes atiravam nos Mônica postou, em seu blog pessoal, as premissas do Rio
transformadores, deixando a favela às escuras. Foram 14 Top Tour: “Consiste em uma abordagem que valorize a cul-
dias de tiroteios diários e de mortes” (Zacarias..., 2001). tura e produza uma autoestima no morador da favela, ou
comunidade, como queiram [...]. É um manifesto pela in-
4
Ainda em 2003, Marcinho VP foi assassinado no presídio tegração, pela mistura entre experiências do asfalto e mor-
Bangu 3 por outros integrantes do Comando Vermelho que ro sendo que depois da chegada do projeto, os moradores
o acusaram de ter “falado demais”. O corpo do traficante foi têm que estar prontos a discutir o que querem de igual
encontrado dentro de uma lata de lixo coberto por livros. para igual. Sem vítimas nem vencedores. Nem o turismo
explora o favelado nem o favelado explora o gringo, falan-
5
O Grupo Eco, entidade sem fins lucrativos de caráter do dentro da linguagem que o preconceito gosta de usar”.
educacional e cultural, atua na favela desde 1976. (Rodrigues, 2011).

573
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

É importante lembrar que há uma plura- a UPP poderia ajudar a “civilizar” a ação poli-
lidade de modos de justificação mutuamente cial ou que ela poderia se tornar uma “políti-
incompatíveis sendo acionados pelos atores ca de proteção da população contra a própria
sociais não apenas nas favelas cariocas, mas polícia” (Misse, 2014, p. 682). Outros estudos
no vasto campo do turismo de pobreza mun- documentavam uma drástica redução dos ho-
do afora (ver a coletânea editada por Franzel micídios, dos roubos e da violência armada em
et al. e o número especial do periódico Tou- geral, não só no interior das favelas, mas tam-
rism Geographies, ambos de 2012). Neste ar- bém no seu entorno (Cano, Borges, Ribeiro,
tigo, as incompatibilidades presentes no chão 2012; Zaluar, 2014), ampliando o grau de con-
empírico e cotidiano do Santa Marta turístico senso em torno da política. No entanto, segun-
não são entendidas como simples contradições do a cronologia apontada por Menezes (2015),
ou inconsistências, mas como disputas acerca a partir de 2011, iniciou-se um rearmamento
das regras de justificação aceitas (Boltanski; da crítica às UPPs, com lastro no questiona-
Thévenot, 1999). Não trabalhamos, portanto, mento da frágil provisão de serviços públicos
com as críticas externas ao campo do turismo nas favelas, na identificação de um processo
de pobreza, mas com os acordos e desacordos, de gentrificação ou de “remoção branca”, do
altercações e controvérsias gerados dentro do aumento de crimes não letais e, por fim, do
próprio campo por aqueles que foram respon- incremento da corrupção policial, assim como
sáveis pelos primeiros momentos da conversão da desconfiança e apreensão com o processo
do Santa Marta em atração turística no contex- de reacomodação com o tráfico8.
to da chamada UPP. Porém se muito já foi afirmado, em um
Diversas pesquisas acadêmicas, até hiato de tempo relativamente curto, sobre as
2012, davam conta dos impactos positivos UPPs como “prática interessada”, para usar-
gestados no âmbito daquela “nova” política mos a expressão de Foucault, ainda falta com-
de segurança pública, que inicialmente logrou preender o papel que dispositivos apresen-
êxito na redução das recorrentes e violentas tados como politicamente neutros e tecnica-
incursões policiais e, consequentemente, dos mente legitimados, como é o caso do turismo,
tiroteios, das mortes violentas, da presença os- cumprem de fato. É com esse desafio em men-
tensiva de armas e do domínio dos traficantes te que tomamos os experimentos, disputas e
– ou seja, dos principais elementos em torno justificações em torno do Santa Marta turístico
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

dos quais a representação da violência urba- como exemplo do que estamos chamando aqui
na estava fundada (IBPS, 2009; CECIP, 2010; de prática cotidiana de sustentação de um pro-
Souza e Silva, 2010; Burgos et al., 2011; Cano, jeto mais amplo, voltado para as favelas que
2012). Muitos moradores de favela onde havia compõem a cidade-cartão-postal e que se vale
UPPs, por sua vez, diziam perceber a redução da política de segurança construída em torno
da arbitrariedade e da violência policial, bem da UPPs e de seus braços sociais, mas que não
como a ampliação de sua “liberdade de ir e se limita a eles.
vir”, fatos que estariam relacionados ao “[...]
maior controle social, interno e externo, sobre
a corrupção e o abuso de poder praticados por
policiais” (Musumeci et al., 2013, p. 1). (Ver 8
No momento em que escrevemos este artigo, as denún-
também Oliveira; Abramovay, 2012; Rodri- cias de corrupção e abuso policial têm crescido, assim
como a postura dos grupos armados que controlam a ven-
gues; Siqueira, 2012; Serrano-Berthet, 2013). da de drogas nas favelas tem se tornado mais destemida,
A bem da verdade, a contabilização da queda indicando que os traficantes estão cada vez mais descren-
tes no poder efetivo dessa nova forma de policiamento.
no número de “autos de resistência” (Misse et Há, assim, uma progressiva redução na aposta de que as
UPPs seguirão sendo a solução para o problema da violên-
al., 2013) parecia indicar que, de certo modo, cia urbana no Rio de Janeiro.

574
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

SANTA MARTA NA EMBALAGEM da mobilidade dos cidadãos – e dos turistas, é


OFICIAL: “O Rio de Janeiro sob um claro – por áreas antes vedadas até mesmo ao
outro ponto de vista” poder público. O mandatário justificava a cria-
ção e a inauguração do projeto de turismo na
Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2010. primeira favela “pacificada”, associando o Rio
Uma grande festa na quadra da Escola de Top Tour, portanto, não só a uma tentativa de
Samba do Santa Marta recepciona o prefeito estimular a economia local, mas também a uma
Eduardo Paes, a primeira-dama do Governo do conquista mais ampla do “direito de ir e vir”. A
Estado, Adriana Anselmo, o então presidente mesma ênfase na mobilidade como direito foi,
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, vá- em seguida, reforçada pela Secretária Estadual
rios ministros e o presidente da Associação de de Turismo, Esporte e Lazer, Márcia Lins:
Moradores do Santa Marta, Zé Mário Hilário.
Há mais de um ano a gente vem tratando na Secreta-
Estão todos ali reunidos para o lançamento do ria de Turismo desse programa [...]. Exatamente o que
projeto Rio Top Tour. Em discurso durante a nosso prefeito acabou de falar, que é a celebração do
cerimônia, Paes fez uma pequena digressão direito de ir e vir. Nós estamos inaugurando no Santa
histórica, marcando uma nítida fronteira entre Marta, que é a primeira comunidade pacificada, va-
mos estender para outras comunidades pacificadas.
supostos “antes” e “depois”:
[...] Então eu queria em nome do nosso governador
[...] aqui do lado [bairro de Laranjeiras] fica o Palá- – que a gente não pode falar,9 mas vou falar – agrade-
cio da Cidade. Há cerca de oito anos atrás o prefeito cer ao governo federal por essa importante parceria.
da cidade do Rio de Janeiro, independente de quem Até 2014 a gente vai estar oferecendo para a Copa
era – era o Conde – teve que, para poder trabalhar do Mundo uma cidade totalmente pacificada, uma
com tranquilidade, botar um vidro blindado no cidade de portas abertas e que pode ser visitada, sim,
gabinete dele. [...] Esse momento que a gente tem por todos. Pelos seus moradores, por todo o Brasil e
aqui, do presidente da República estar vindo aqui pelos moradores do mundo inteiro que visitam o Rio
olhar o lançamento de um programa turístico nes- de Janeiro (Secretária Estadual de Turismo, Esporte e
sa comunidade, vale mais para todos os cariocas do Lazer, Márcia Lins, 30 ago. 2010).
que qualquer obra de não sei quantos bilhões que
a cidade pudesse estar recebendo do presidente da As falas dos representantes oficiais aqui
República hoje. [...] O que se conseguiu foi trazer recuperadas deixam claro que o lançamento do
aquilo que era mais fundamental para as pessoas Rio Top Tour estava associado à tentativa de di-
da cidade do Rio de Janeiro, que foi paz. [...] Hojevulgar, nacional e internacionalmente, as mu-
o prefeito da cidade do Rio de Janeiro não precisa

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


danças estruturais que vinham ocorrendo na
mais de vidro blindado. [...] Qualquer cidadão vem
aqui e qualquer turista vem aqui. Não é que virou o
cidade que, àquela data, já tinha sido escolhida
paraíso, aqui tem os mesmos problemas que tem ali como uma das sedes da Copa do Mundo FIFA
embaixo, que tem ali na esquina e é assim que o Rio 2014 e lançado sua candidatura como sede dos
de Janeiro quer ser. Uma cidade pacificada, tranqui-Jogos Olímpicos de 2016. Um dos principais
lizada, e que as pessoas possam caminhar por ela desafios a superar, para que fosse possível se-
com toda liberdade. [...] Essa é uma vitória, uma
diar esses e outros megaeventos previstos, era o
conquista desse Programa que se lança aqui hoje e
acima de tudo dessa celebração. Todo mundo pode
problema da segurança pública, e o projeto Rio
vir, que as portas estão abertas no Dona Marta e em Top Tour representava, sem dúvida, uma opor-
toda a cidade (Prefeito Eduardo Paes, 30 ago. 2010). tunidade estratégica para promover e vender a
nova imagem do Rio. Não surpreende, assim,
As palavras de Eduardo Paes indicavam que o projeto tenha apresentado a chamada
que a “pacificação” do Santa Marta e a inau- “favela modelo” como uma imagem-síntese da
guração do projeto Rio Top Tour pretendiam a
ruptura com um passado de confinamento que nome
9
Sérgio Cabral não pôde participar da cerimônia e seu
não poderia ser citado porque a inauguração do
marcara a cidade como um todo, e a conquista projeto coincidiu com o período de campanha eleitoral e,
naquele momento, ele era candidato à reeleição.

575
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

nova cidade que seria oferecida: uma cidade tinha que ser, onde tinham que entrar as placas. En-
em que moradores e visitantes podem circular fim, tentamos formatar uma coisa que desse certo e
que deu [...]. A ideia é Disney! O cara [turista] tem
livremente e, não menos importante, com opor-
que ficar lá dentro. Ele sobe, desce, vem, tem mais
tunidades de negócios para todos que estejam uma coisa, uma atração, tem uma capoeira, sei lá,
dispostos a nela “empreender”. inventa. A gente ainda encontra alguns problemas,
Tampouco causa surpresa que o projeto óbvio, [...] mas já está muito melhor do que quan-
Rio Top Tour tenha contado não apenas com a do a gente começou. A inserção do governo federal,
parceria entre os três níveis de governo, mas a laje do Michael Jackson, não sei o que da Alicia
Keys, enfim, [com] toda essa coisa que vai apare-
também com apoio do SEBRAE-RJ e de outros
cendo, vai se compondo um produto maior (Sócio-
representantes do setor privado (a fábrica de diretor de empresa de turismo).
tintas Coral, por exemplo). Para os moradores
que desejavam adotar o turismo como uma Ao recordar o processo de instauração
fonte de renda, foi aberta pela Investe Rio, do Rio Top Tour, nosso entrevistado evidencia
agência de fomento do Governo do Estado, o uso estratégico do turismo como prática co-
uma linha de crédito que ia de R$300,00 a R$ tidiana – e supostamente desinteressada – de
6 mil por negócio. A orientação para os mora- sustentação do projeto mais amplo de Pacifi-
dores interessados foi fornecida pelo SEBRAE cação. Valer-se de lógicas e técnicas aparen-
em oficinas de empreendedorismo realizadas temente apolíticas não significa, obviamente,
na própria favela e esteve diretamente vincu- estar blindado contra reflexões críticas e ques-
lada à regularização do comércio local. tionamentos variados por parte de atores cujos
O convênio firmado entre a Secretária princípios de legitimação baseiam-se em ou-
Estadual de Turismo e o MTur permitiu que tras premissas:
fossem mapeados os atrativos turísticos e dis-
Esse projeto Rio Top Tour – Santa Marta é o chama-
tribuídas placas de sinalização bilíngue em do projeto paraquedas. O projeto, como já aconteceu
pontos estratégicos do morro. Foram instala- em outras ocasiões, é elaborado geralmente em ga-
dos, ainda, um grande mapa da favela e um binetes com ar refrigerado, com cafezinho, é meio
estande com informações turísticas na Praça assim ‘toma!’ Então, eu acho que qualquer projeto
deve ser debatido, discutido (Homem, liderança,
Corumbá, na divisa com o asfalto, onde poten-
morador do Santa Marta).
ciais turistas passaram a receber orientações
de estagiários do curso de turismo do Colégio Ainda que o caráter pouco democrático
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

Estadual Antônio Prado Junior e de moradores do Rio Top Tour tenha gerado insatisfações, o
que então cursavam a oficina de monitores de fato é que, a partir de sua implementação, a ro-
turismo local (não se tratava ainda de curso de tina de todos os envolvidos seria irreversivel-
guiamento), também conduzida pelo SEBRAE. mente alterada: os promotores de turismo das
Mas nem só de palco vivem as políticas operadoras privadas, que antes atuavam em
públicas, como bem nos lembra Ervin Gof- outras favelas, tiveram de se adaptar à realida-
fman. A fala abaixo é exemplar do quão ne- de do Santa Marta; alguns moradores tiveram
cessárias foram as tessituras de bastidores na de calçar os sapatos de guias e empreendedo-
construção da “Pacificação” que, como qual- res turísticos; outro tanto se viu ocupando o
quer macropolítica, depende não apenas de papel, no mais das vezes, pouco confortável,
formas institucionalizadas e estruturais de jus- de atração turística. Embora o senso comum
tificação, mas igualmente de agenciamentos e e a mídia, via de regra, percebam de maneira
mediações informais: indiscriminada o “tour em favela”, durante o
Veio a Secretaria [de Turismo] com o projeto Rio Top
trabalho de campo vimos repetir-se, pouco a
Tour. A gente [a operadora de turismo e a SETUR] pouco, aquilo que já sabíamos ser a realidade
foi lá, montou aquele mapa doido, disse como é que empírica da Rocinha: o surgimento de inúme-

576
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

ras formas de conceber e comercializar o pro- Em suas narrativas sobre esses vários in-
duto favela convivendo e disputando entre si. vestimentos, os atores apareciam, naquele mo-
Dependendo do guia, o tour pelo Santa Marta mento, polarizados basicamente entre os “de
pode, por exemplo, começar pela parte de bai- fora” e os “de dentro” do morro. O primeiro
xo da favela ou pelo Pico (parte alta do morro); polo incluía as agências de turismo e os guias
a subida ou a descida do morro pode ser feita independentes que não tinham a base de suas
a pé ou de bondinho; incluir ou não almoço atividades comerciais no Santa Marta. Esses
em um restaurante local; pode ser diurno ou agentes, em sua maioria, atuavam na Rocinha
incluir um pernoite no morro; contar ou não e, a partir de 2010, deslocaram a totalidade ou
com visitas a instituições locais como a As- parte de suas atividades para a primeira favela
sociação de Moradores e o Grupo Eco; incluir “pacificada”. No polo oposto, encontravam-se
ou não atividades especiais, como oficinas de alguns poucos moradores que, há anos, leva-
capoeira, de samba ou de confecção de pipa, vam turistas para visitar a favela e que intensi-
etc. É das práticas situadas de críticas efetivasficaram sua atuação como guias após a chega-
e justificações aceitáveis, das negociações e re-da da UPP, além de vários outros sem qualquer
negociações cotidianas entre os atores envolvi- experiência anterior, mas que começaram a se
dos nessas várias modalidades de turismo que profissionalizar e a atuar no trade com o lança-
circunscreveram a primeira fase de construção mento do Rio Top Tour.
do Santa Marta como destino turístico que tra- Os “de dentro” não eram um grupo ho-
ta a próxima seção. mogêneo, assim como os “de fora” nem sempre
eram reconhecidos ou se reconheciam como
compartilhando princípios e formas de agir co-
MUITAS EMBALAGENS PARA UM muns. No entanto, os “de dentro”, em muitos
MESMO PRODUTO OU VÁRIOS PRO- momentos, organizavam-se como grupo orien-
DUTOS NA MESMA EMBALAGEM? tado por um conjunto de valores definidos,
Negociações entre a favela imagina- no mais das vezes, em oposição aos “de fora”,
da, vendida, fotografada e vivida vistos como um “outro” sem relação identitária
com a favela e, por conseguinte, sem compro-
A transformação do Santa Marta em um misso com sua história e seu desenvolvimento.
ponto turístico deu-se a partir não só da ela- Como afirmou um guia-morador durante even-

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


boração e do lançamento do projeto Rio Top to público realizado no Santa Marta:
Tour, mas também de esforços menos visíveis
Eles vêm, contam um monte de mentira, vêm com
empreendidos pelos que ali passaram a atuar o jipe lá por trás, com um guia que não é da comu-
e que, no processo, ajudaram a estabelecer, na nidade, [que] não sabe a história da comunidade.
favela, fluxos de visitação regulares. São exem- Contam um monte de mentiras... A empresa não
plos desses esforços os investimentos relacio- contrata os monitores locais. [O motorista] deixa
nados: a) à adaptação de antigas e formação de eles [turistas] lá em cima, eles depois descem, dão
a volta com o guia dentro da comunidade; desres-
novas agências de turismo e de guias indepen-
peitam a privacidade dos moradores; fotografam as
dentes, incluindo-se parcerias e arranjos entre pessoas sem pedir permissão; falam um monte de
guias-moradores e operadoras externas; b) ao mentira; não podem ver uma criança que falam que
incremento de um comércio local voltado para aquela criança está passando fome, que está pedin-
os turistas (bares e restaurantes, barraquinhas do esmola. Falam coisas absurdas!10
de artesanato e lojas de suvenires); c) ao de-
Os “de dentro” questionavam a legitimida-
senvolvimento de estratégias de formatação,
divulgação e comercialização do produto “fa- 10
Depoimento de um guia-morador durante o 16° Fórum
vela pacificada”. da UPP Social.

577
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

de das narrativas dos agentes externos que ope- Cartão postal, por exemplo, foi o que eu vi os tu-
ravam o acesso e a intermediação à favela. Hife- ristas comprando. Comer, eu não dou espaço para
comer nada no tour. Não paro para comer, paro em
nizados então como moradores-guias, passaram a
algum lugar para beber e é uma parada rápida, de
reclamar para si o direito de embalar e comercia- cinco minutos. [...]. Tem gente que vai querer saber
lizar a história do Santa Marta. O monopólio des- da higiene, como é que é, que bebida está ali, [mes-
sa narrativa memorial, verdadeira porque vivida, mo] bebida em lata ou engarrafada. (Guia de turis-
garantiria um “produto favela” diferenciado: mo independente).

Pessoas que são de fora do morro, que não moram Para além da dimensão econômica, po-
aqui, não conhecem nada da nossa realidade. Eu rém, o produto “favela pacificada” englobava a
acho errado essas pessoas estarem guiando turistas
disputa em torno de outro aspecto constitutivo
porque elas não conhecem nossa realidade. Eu acho
fundamental: as representações construídas e
que esse turismo tem que ser feito por nós, morado-
res, e que a gente possa escolher o que é que a gente difundidas da favela e de seus moradores. A
quer mostrar, o que é que tem que ser mostrado. (Es- oposição entre os “de fora” e os “de dentro”
tudante, guia-morador do Santa Marta). tornava-se evidente quando os atores avalia-
vam a forma como o produto favela era, no
Por seu lado, o dono de uma das agên-
seu entender, vendido pelos outros e quando
cias privadas severamente criticada pelos “de
se sentiam impelidos a justificar o modo como
dentro” defendia-se, na entrevista que nos foi
eles próprios o formatavam e comercializavam
concedida em maio de 2011, dizendo que “até
cotidianamente. Uma série de convergências e
gostaria” de contratar moradores como guias,
desacordos nada óbvios surgia, por exemplo,
mas que eles não tinham qualificação suficien-
quando perguntávamos a nossos interlocutores
te. Segundo sua lógica de justificação, naque-
sobre as especificidades do Santa Marta como
le momento, o principal impedimento para
produto turístico e lhes pedíamos que elen-
incorporar os moradores como mão de obra
cassem os principais pontos fortes e fracos da
assentava-se em um fator objetivo: os guias-
favela. Se praticamente todos citavam a Laje e
moradores não tinham fluência em outros
a estátua do Michael Jackson como os grandes
idiomas, inviabilizando o trabalho com uma
destaques, alguns guias-moradores questiona-
clientela até então totalmente composta por
vam o fato de o local não ser mais lembrado
estrangeiros.11
como “Laje do ambulatório do Dedé”. A mu-
Outra contenda girava em torno da rela-
dança do nome representaria um descaso com
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

ção entre turismo e comércio local. Enquanto


a história de lutas da favela, já que Dedé foi um
os “de dentro” incluíam bares, restaurantes e lo-
antigo morador que em muito contribuiu para
jinhas em seus roteiros, supostamente incenti-
a melhoria da prestação de serviços no Santa
vando o desenvolvimento econômico da favela,
Marta, não sendo menos importante na traje-
nos tours realizados pelos “de fora”, os turistas
tória da favela do que o pop star. Como resu-
“simplesmente passavam” sem nada consumir.
miu uma guia de turismo nascida na localida-
Os guias “de fora” assumiam que raramente pa-
de: “Matou a história. Sério, porque o cara que
ravam nos estabelecimentos comerciais da fa-
quer entreter só pensa no dinheiro: ‘Next, pró-
vela, mas deslocavam a responsabilidade dessa
ximo, próxima atração’. [...] Eu não acho que
decisão para os próprios turistas que, segundo
a gente está aqui para isso” (guia-moradora).
eles, tinham nojo e desconfiança das condições
Os “de dentro” defendiam, portanto,
de higiene dos produtos oferecidos:
que a memória de lutas do Santa Marta fos-
11
Ao longo dos anos, o número de turistas brasileiros au- se lembrada e celebrada. Seus enunciados de
mentou consideravelmente no Santa Marta. Ainda que justificação apelavam para a importância das
não haja estatísticas oficiais, a percepção dos guias que
atuam na favela é de que o público se diversificou e, atual- histórias locais, de suas próprias experiências
mente, inclui até alguns cariocas.

578
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

de vida na favela e das características pecu- de artesanato, aquela coisa toda... No Santa Marta,
liares do morro que só os ‘nascidos e criados’ você não tem realmente nada, parece o Projac, tudo
limpo, não tem fio, não tem “gato”. Isso era legal na
ali poderiam conhecer. Os guias “de fora”, por
Rocinha, os gatos, enfim, essa falta do poder público
sua vez, não estavam de fato preocupados em é o grande atrativo. No Santa Marta, você perdeu
contar aos turistas uma história específica do um pouco esse encanto, mas continua sendo uma
Santa Marta, mas visavam, outrossim, a tornar favela com outros encantos. (Sócio-diretor de em-
aquela experiência generalizável, como expli- presa de turismo).
cou um de nossos interlocutores:
Por consequência e de maneira con-
O importante para o turista, na minha opinião, é traintuitiva, o trabalho dos guias, no contexto
ele saber como é que o morro funciona. Não espe- da “pacificação”, tornava-se, assim, bem mais
cificamente aquele, ele está visitando um, mas na
desafiador:
verdade, aquele um representa o todo. Eu não me
concentro muito no Santa Marta, eu me concentro Sobe por Laranjeiras, chega lá em cima tem o miran-
em como funciona, desde quanto tempo tem favela, te [...]. Passa na UPP, desce [a favela] toda a pé e o
quantos habitantes moram no Rio de Janeiro em fa- jipe pega eles lá embaixo. [...] Se o guia for um bom
vela, quem são eles, o que fazem. [...] Digamos que guia, ele prende o cara lá o tempo que ele quiser. Se
metade [do tour] dá uma generalizada sobre favela e o guia for um mau guia, o tour dura dez minutos.
a outra metade é sobre o que está trazendo de positi- Depende do quanto de tempo ele fala... É o guia que
vo a UPP. (Guia de turismo independente). faz esse timing: conta, mostra, fotografa, brinca, ri,
para mais tempo na laje. (Sócio-diretor de empresa
De uma maneira geral, os operadores de de turismo).
turismo avaliam os atributos operacionais de
cada favela com intuito de verificar sua viabili- Embora não discordassem que a com-
dade comercial – tamanho, perfil dos morado- petência do guia é fundamental, os “de den-
res, atrativos, acessibilidade, dentre outros fa- tro” apontavam que seu trabalho poderia ser
tores. Isso não quer dizer, porém, que deixasse facilitado se houvesse mais eventos, festas e
de prevalecer a busca pelo produto genérico: atividades culturais na favela. Esses atrativos
ajudariam a “fixar” os turistas no morro e até
[Favela tour] era uma coisa que a gente sempre ven-
fazer com que consumissem mais, gerando
deu. Ainda mais depois que a gente começou a ter
renda para o comércio local. Aqui, a “crítica
outras oportunidades, não vendeu mais o nome,
vendeu um produto. Não é vender ‘favela da Roci- corretiva”, para usarmos a expressão de Bol-
nha’, é vender ‘favela’. Porque aí se tem liberdade tanski e Chiapello (1999), continuava a ter

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


de ir para qualquer favela. (Sócio-diretor de uma como alvo os agentes externos, mas já não se
empresa de turismo). voltava para as operadoras de turismo. A força
de seu argumento é dirigida aos patrocinado-
Se, no plano do discurso, é possível ele-
res, que não apoiavam como eles gostariam a
ger a favela genérica como produto, na prática
promoção de eventos no morro, e, principal-
não há como ignorar as especificidades dos
mente, ao comando da UPP. Como resumiu um
territórios empíricos. Vejamos o que nos diz o
morador-guia:
mesmo entrevistado ao refletir sobre as dife-
renças entre o Santa Marta e a Rocinha, onde A UPP bloqueia isso, bloqueia aquilo, tudo é caso
atuara por mais de uma década: de polícia e não é caso de cultura. Acabou, vai ter
aquele passeio chato: dá a volta e vai embora. Por-
Tirar da Rocinha e jogar para o Santa Marta é uma que o funk não é valorizado; aí começa a vir: jazz
diferença muito grande. Até em tamanho, em tempo para o morro, a “galera não sei o que” para o morro,
de roteiro, o que fazer [...] A Rocinha você anda toda violino para o morro; e a cultura do morro que é o
de carro, o Santa Marta você anda todo a pé. Então, samba, que é o funk, que é o forró, não sei o quê, só
as particularidades foram diferentes. A gente não martelado... (Guia-morador).
tem aquilo que a Rocinha tinha, que era o centro

579
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

Enquanto os “de dentro” associavam a privacidade, ausência de liberdade foram algu-


falta de atrativos à carência de investimentos mas das referências evocadas pelos moradores
públicos e privados, alguns “de fora” pareciam para descrever a situação:
operar na lógica contrária. Como é destacado
O que eles têm que entender é o seguinte: aqui não
nos trechos citados acima, para o dono de uma tem nenhuma celebridade! Outro dia, o turista tirou
agência de turismo externa, o Santa Marta te- foto e algumas pessoas não gostaram, foram lá e pro-
ria perdido “um pouco do encanto” justamente testaram: ‘Não tira foto de mim, eu não gosto’. Aí os
por conta dos investimentos feitos pelo poder turistas apagaram. Eles tiraram foto, assim, como se
público e a partir dos quais os signos associa- fosse um objeto qualquer. E não é um objeto qualquer,
é um ser humano, uma pessoa com todo o respeito!
dos à pobreza e à desordem, como a grande
(Prestador de serviços, morador do Santa Marta).
quantidade de lixo espalhado e os fios emara-
nhados, tornaram-se menos visíveis. Parte significativa dos moradores com
Mesmo que os dejetos, as valas abertas quem conversamos, ao longo da pesquisa, afir-
e outros marcadores pudessem parecer menos mou que não se incomodava em ser fotogra-
ou mais discretos, dependendo do lugar de fala, fada por turistas, desde que – fato destacado
fato é que o foco das câmeras dos turistas con- por todos – a autorização fosse pedida antes.
tinuava a se voltar justamente para esses signos Havia, contudo, uma desconfiança particular
capazes de conferir à experiência da pobreza em relação às fotos de crianças: muitos expres-
(Freire-Medeiros, 2013) sua materialidade, vez savam medo de que um turista fosse pedófilo
que operam como representações da condição ou que pudesse postar a foto de crianças da
de morar em favelas, como marcações limítro- favela em sites pornográficos. Algumas vezes,
fes das diferenças entre o turista e o favelado. a indignação escalou para confrontos abertos:
Os moradores com quem conversamos se di-
Outro dia eu estava descendo e o gringo estava ti-
ziam extremamente desconfortáveis com a pro-
rando foto da criancinha brincando sem a mãe. Ele
dução desse tipo de fotografia, cuja circulação ficou tirando foto dela, e eu voltei e disse que não
ajudaria a reproduzir estigmas seculares: podia, e taquei a máquina dele na água! [...] Eu falei
que não podia e ele sabia que não podia! E ele fez
O que preocupa é o que eles levam daqui de ima-
assim mesmo. Somos nós que somos os animais?
gem. De argumento lá pra fora: ‘Subi na Santa Mar-
Somos nós que somos os não civilizados? [...] Fico
ta, só encontrei...’ o quê? Então essa interrogação é
apavorada quando eu vejo aquelas velhas, loiríssi-
que me preocupa. Hoje eu acho que eles levam a
mas, branquíssimas, que apontam para você como
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

imagem muito negativa do lixo da comunidade. (Li-


se você fizesse parte do cenário. Eu não me confor-
derança, morador do Santa Marta).
mo com isso! (Liderança, moradora do Santa Marta).
Todo dia tem gente nesse morro. Eles querem tirar
foto até do cocô do cachorro que tem no chão! Acho Os “de fora” reconhecem que a privaci-
impressionante! Falei: ‘Será que lá não tem cachorro?’
dade é, de fato, uma questão especialmente pre-
Não sei, eu queria entender. Outro dia eu perguntei
para o guia, ele ficou rindo. Eu falei: ‘Você não pode
ocupante, que precisa ser estudada para “mini-
perguntar para mim por que ele tira foto do cocô, por- mizar impactos”. Muitos moradores reclamam
que eu não entendo, gente!’ Eu falei: ‘Eu acho que eles que não podem mais deixar a porta e janelas de
querem realmente mostrar a pobreza da comunidade. suas casas abertas – o que é um costume local,
Não leva nada de bom, porque só vêm para cá para já que as casas são muito próximas uma das
mostrar o que é feio’. (Moradora do Santa Marta).
outras e há pouca ventilação nos becos mais
As fotografias produzidas durante os apertados. Havia os que, reconhecendo estar na
passeios geravam tanta polêmica, que inclu- “rota turística”, passaram a deixar “a casa mais
ímos, em nossos roteiros de entrevista, uma arrumada”. Um dos entrevistados expressou a
pergunta específica sobre o tema. Invasão, in- confusão de sentimentos vivenciada por grande
tromissão, exposição, falta de respeito, falta de parte dos moradores com quem conversamos:

580
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

Agora a gente está se acostumando [...] Está se adap- ta Marta, Favela Santa Marta Turismo, TouRio
tando a isso, porque antes, como não tinha, a gente New Paths in Rio e Favela Scene), passando
ficava mais à vontade. Hoje a gente sente a presença
por estabelecimentos de hospedagem até uma
de outras pessoas, então a gente fica... Não sei se
acuado, mas a gente fica... Como é essa sensação de
marca de produtos voltados especialmente
receber? É diferente, é diferente, porque a gente não para turistas que evoca em seu nome – Santa
está acostumado. A gente tem que se adaptar. (Estu- Marta We Care –, a já mencionada passagem
dante, morador do Santa Marta). de Michael Jackson pela favela nos anos 1990.
Dois anos depois da implantação da UPP,
Na visão da maioria, os culpados pelo raros eram os dias em que não havia algum tu-
comportamento pouco respeitoso dos turistas rista circulando pelo Santa Marta, câmera foto-
eram as agências e os guias, a quem caberia gráfica em punho, indício claro do sucesso do
orientar melhor os visitantes. Todos os guias – produto “favela pacificada”. Todavia é interes-
“de dentro” e “de fora” – assumiram que lhes sante notar que, na percepção dos atores envol-
cabia alertar seus clientes em relação à foto- vidos, o Santa Marta, para se constituir como
grafia, para evitar pelejas entre eles e os mo- atração turística, seguia dependendo dos mes-
radores, até porque, se deixassem, os “turistas mos atributos básicos que definem a favela tu-
fotografam qualquer coisa, até o interior das rística desde sua origem nos anos 1990: pobre-
casas”. Nesse contexto, todos os guias procura- za, risco e exotismo. A fala a seguir é exemplar:
vam se defender da analogia feita não apenas
por moradores, mas igualmente pela mídia e o Eu acho que as pessoas estão romantizando a miséria
senso comum, entre “turismo na favela” e “zo- da gente, a pobreza da gente... A nossa violência, a
pobreza, os negros, o pobre, o latino, é tudo exóti-
ológico de pobre”. A tensão entre a “condição
co para eles. Aí imagina poder dizer que você pisou
de humanidade” evocada pelos moradores da
naquele local que se vê na televisão! É como se você
favela e a percepção dos turistas de que a fave- fosse um Indiana Jones! […] deve ser muito diferente
la estaria aquém de preceitos jurídicos, inclu- para eles realmente. Então eu acho que as pessoas
sive do direito à privacidade, seria constitutiva vêm querendo dar uma de Indiana Jones. E a miséria
do próprio produto: virou cult para alguns. E eu acho que é chique hoje
em dia poder dizer que você conhece uma favela; e
É normal, você está dentro de um local que tem que você já até subiu em uma favela! ‘Olha que legal’!
muita gente, você não vai conseguir agradar todo (Funcionária pública, moradora do Santa Marta).
mundo. Nunca. É só tentar achar uma forma de não

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


incomodar. E a forma que a gente tem é educando o Obviamente isso não significa dizer que
turista dentro do carro para ele ser o menos agres- nada mudou. A chegada da UPP impôs novas
sivo possível. Não tirar foto de criança, não invadir regras de conduta no morro e a necessidade de
o espaço do cara, não abrir a porta da casa. Mesmo
negociação entre novos atores, que passaram a
que ela esteja escancarada, não fotografar lá dentro.
Mantenha a educação! É simples, não precisa ser
se mover de acordo com uma complexa lógica
muito [...] (Sócio-diretor de empresa de turismo). que um de nós chamou de “lógica de campo
minado” (Menezes, 2015). Durante a pesquisa,
Pouco antes de encerrar nosso trabalho ouvimos recorrentemente que, antes da “pa-
de campo, placas indicativas, que apontavam cificação”, qualquer um que se aventurasse
onde era proibido fotografar, foram distribuí- a visitar o Santa Marta seguia um “código de
das pelo morro – uma resposta do Poder Pú- ética” silencioso, porém encarnado de maneira
blico às inúmeras reclamações de moradores. eloquente nos traficantes ostensivamente ar-
Àquele tempo, já havia, no Santa Marta, uma mados que controlavam o território da favela.
quantidade expressiva de negócios que orbita- Esse controle imposto pelos bandidos impli-
vam em torno da favela turística, desde agên- cava que raramente havia pessoas circulando
cias de turismo (Brazilidade, Favela Tour San- desacompanhados de algum contato que co-

581
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

nhecesse minimamente o morro, assim como Nos últimos anos, o Comitê estabeleceu-
eram raras as fotografias tiradas sem um pedi- se, portanto, como um importante espaço de
do prévio de autorização. Tais práticas, como debate entre os “de dentro” e os “de fora”. E, a
são narradas aqui, tornaram-se corriqueiras partir desses debates e negociações, cresceram
depois da chegada da UPP. as parcerias entre agências externas e guias lo-
A tensão, antes velada, entre os “de cais. Mas, se alguns agentes locais se diziam
dentro” e os “de fora” tornou-se evidente com satisfeitos com as parcerias, outros membros
a criação, em 2010, do Comitê de Turismo do do Comitê estavam menos otimistas. Um guia-
Santa Marta. Idealizado por Sheila Souza – uma morador, por exemplo, argumentava que algu-
das poucas moradoras com formação em turis- mas agências querem apenas “auferir lucro
mo e que já trabalhava na área mesmo antes do com a miséria”; por isso, sugeria que os mora-
Rio Top Tour –, o Comitê passou a reunir re- dores trabalhassem de forma independente e
sidentes não apenas do Santa Marta, mas de organizassem o que ele chama de “turismo de
outras favelas que tiveram o primeiro contato reivindicação” ou “turismo social”:
com turismo a partir dos cursos oferecidos pelo
Eu sugiro fazer um turismo de reivindicação que
projeto Rio Top Tour. Embora existissem e ainda seja divulgado nas redes sociais. Galera que está lá
existam muitas divergências e disputas internas vai me ouvir aí nos rincões mais distantes do plane-
ao grupo, foi possível, a partir da construção do ta. Visitem o Santa Marta, conversem com lideran-
consenso em torno de alguns pontos julgados ças legítimas, que não querem auferir lucro com a
essenciais, criar estratégias que acabaram por miséria. Mas aí eu sugiro, na minha opinião, o tu-
rismo social. Não assistencialista. Eu distingo muito
constranger as empresas externas a fazer parce-
bem o assistencial do social. Assistencial: ‘ah, tadi-
rias com os guias locais. Os moradores narram nho, coitadinho, miserável’. Não! Queremos investi-
que “a batalha foi longa” – durou mais de três mento social. (Liderança, guia-morador).
anos –, porém vitoriosa. Em 2013, um guia-mo-
rador resumiu com empolgação:

Derrotamos o inimigo! A gente fez um vídeo dos mo- CONSIDERAÇÕES FINAIS


radores falando o que achavam da [nome da empre-
sa] e outro de uma reunião do Comitê. [...] Mostra- Ao recuperar os primeiros momentos de
mos os vídeos. Ele abaixou a cabeça [...] Aí a gente conversão da favela Santa Marta em atração
conseguiu uma parceria com eles. Quinze reais por turística, voltamo-nos para os padrões de con-
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

pessoa. Hoje em dia, eles não vendem mais o Favela


duta e argumentação levados a cabo pelos ato-
Tour no Santa Marta. Só vendem se [algum cliente]
disser: ‘Olha só, tenho 100 pessoas que querem o res sociais envolvidos, privilegiando a análise
Santa Marta, você me leva?’ Aí eles fazem. Mas se de suas respectivas justificações, evocadas nos
falar favela eles levam para a Rocinha. Isso foi por conflitos entre os “de dentro” e os “de fora”. O
conta da nossa pressão. Agora ele vem aí de vez em foco, no chão empírico do Santa Marta, contu-
quando com guia local e paga os R$15 [...]. Melhor do, não responderia a demandas de teorização
até que nem venha! As outras agências, a maioria
mais amplas se abstraíssemos as relações entre
tem parceria. Se não [fizer parceria] alguém que fala
inglês vai falar para o turista que isso não está certo, esse “caso particular do possível” e a comple-
que ele está pagando para vir, mas a comunidade não xidade da assim chamada cidade neoliberal
vai ser beneficiada. Causa constrangimento para a ou, para usarmos um termo ainda mais apro-
própria empresa. Eu liguei para uma empresa e falei priado ao Rio de Janeiro dos megaeventos, da
isso tudo. Depois a empresa me ligou querendo par- cidade-cartão-postal. Afinal, como sugere com
ceria, querendo contato, aí levei tudo para o Comitê.
precisão Vera Telles (2015, p. 19), é na falta de
Não quis só para mim. Tem um telefone do Comitê,
que agora está ficando com uma dos guias locais e comunicação entre a abstração teórica e as di-
tem uma sequência [de atendimento aos clientes]. nâmicas urbanas apreendidas etnograficamen-
(Trecho de entrevista com um guia-morador). te que reside o que a autora chama de “ponto

582
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

cego dos estudos urbanos”, onde se camuflam dores da favela foi tomando o lugar do otimis-
ou se tornam invisíveis “[...] os modos pelos mo inicial. Quando encerramos nosso trabalho
quais processos socioespaciais da chamada ci- de campo, ambos os projetos eram vistos como
dade-mercado se territorializam em contextos compartilhando de uma espécie de vício de ori-
situados [...]”. Não foi outra nossa intenção ao gem comum, que poderia minar – e de fato o fez
enfocar essa prática de sustentação cotidiana em alguma medida – sua legitimidade.
das lógicas e circuitos de mercado, com suas
formas de controle e gestão dos espaços e das
Recebido para publicação em 01 de outubro de 2015
populações, que é o turismo. Aceito em 22 de fevereiro de 2016
Ainda que, no debate acerca do turismo
em áreas de pobreza, muito do esforço de refle-
xão se volte para as disputas em torno da dimen- REFERÊNCIAS
são econômica, nossa pesquisa permitiu perce-
BARBOSA, A. R. Considerações introdutórias sobre
ber que a crescente presença de turistas fez com territorialidade e mercado na conformação das Unidades
que agenda extravasasse a questão redistributi- de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro. Revista Brasileira
de Segurança Pública, São Paulo, v. 6, p. 256-265, ago./
va, relativa à repartição dos ganhos econômicos set. 2012.
gerados com o turismo no Santa Marta. Ficou BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. The sociology of critical
capacity. European Journal of Social Theory, v. 2, n. 3, p.
evidente, por exemplo, que, entre os moradores 359-377, 1999.
comuns (aqueles sem envolvimento direto com BURGOS, M. et al. O efeito UPP na percepção dos
moradores das favelas. Desigualdade e diversidade, Rio de
a atividade turística), não havia consenso nem Janeiro, v. 11, p. 49-97, ago./dez. 2012.
em relação ao produto favela turística per se, CANO, I.; BORGES, D.; RIBEIRO, E. Os donos do morro:
nem às várias ‘embalagens’ que se encontravam uma análise exploratória do impacto das Unidades de
Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro. São Paulo: Fórum
então disponíveis. As opiniões eram diversas Brasileiro de Segurança Pública, 2012.
e as demandas, muitas vezes, contraditórias. CARVALHO, M. A experiência da pacificação em um
conjunto de favelas na Tijuca: rupturas e contradições na
A única convergência dava-se justamente em gestão da ordem pública. Comunicações do ISER, [S.n.], v.
67, p. 172-183, 2012.
torno do repúdio aos instantâneos fotográficos
CENTRO DE CRIAÇÃO DE IMAGEM POPULAR (CECIP).
que congelam como suvenires os dejetos de ani- O impacto sobre a primeira infância das políticas
mais, o lixo, a precariedade, e que, pior de tudo, de segurança pública e iniciativas comunitárias em
comunidades urbanas de baixa renda. Rio de Janeiro,
transformam os moradores em meros aspectos 2010.
do cenário, com a respectiva negação do direito CUNHA, N.; MELLO, M. Novos conflitos na cidade: a UPP
e o processo de urbanização na favela. Dilemas: revista de

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


à privacidade. As justificações dos agentes pro- estudos de conflito e controle social, Rio de Janeiro, v. 4, n.
3, p. 371-401, jul./set. 2012..
motores do turismo, “de dentro” ou “de fora”,
FREIRE-MEDEIROS, B. Gringo na laje: produção,
como demonstramos aqui, precisaram dialogar circulação e consumo da favela turística. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2009.
com essas “críticas corretivas” e com elas lidar
______. Touring Poverty. Londres: Nova York: Routledge.
na prática cotidiana. 2013.
Mesmo que a criação da “embalagem ofi- ______. Governamentalidade e mobilização da pobreza
cial” para o produto “favela turística pacificada” urbana no Brasil e na África do Sul: favelas e townships
como atrações turísticas. In: BIRMAN, P. et al. (Org.).
tenha se dado em um momento de consenso po- Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e
resistências. Rio de Janeiro: FGV Editora: Faperj, 2015.
sitivo em torno das UPPs, não foi possível evi-
FREIRE-MEDEIROS, B. VILAROUCA, M. G. ; MENEZES,
tar que moradores criticassem a política pública P. Gringos no Santa Marta: quem são, o que pensam e como
avaliam a experiência turística na favela. In: SANTOS;
de segurança responsável pelo incremento das A. M. S. P.; MARAFON, G. J.; SANT’ANNA (Org.). Rio
atividades turísticas no morro. A percepção de de Janeiro: um território em mutação. Rio de Janeiro:
Gramma, 2012
que tanto a UPP quanto o projeto Rio Top Tour FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Avaliação do impacto do
respondiam a stakeholders externos (aos bair- policiamento comunitário na Cidade de Deus e no Dona
Marta. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2009.
ros do entorno e aos turistas que viriam para Mimeografado.
os grandes eventos) em detrimento dos mora- INSTITUTO BRASILEIRO DE PESQUISA SOCIAL (IBPS).

583
A POBREZA TURÍSTICA NO MERCADO DE PACIFICAÇÃO ...

O impacto das unidades de polícia pacificadora nas favelas OLIVEIRA, F.; ABRAMOVAY, P. As UPPs e o longo
da cidade do Rio de Janeiro. Relatório de pesquisa. Rio de caminho para a cidadania nas favelas do Rio de Janeiro. In:
Janeiro, 2009. OLIVEIRA, F. L. et al. UPPs, direitos e justiça: um estudo de
caso das favelas do Vidigal e do Cantagalo. Rio de Janeiro:
KING, A. Culture, globalization and the world system. FGV, 2012. p. 123-47.
London: Macmillan, 1991.
OST, S.; FLEURY, S. O mercado sobe o morro: a cidadania
LEITE, M. P. Entre a ‘guerra’ e a ‘paz’: unidades de polícia desce? Efeitos socioeconômicos da pacificação no Santa
pacificadora e gestão dos territórios de favela no Rio de Marta. Dados, v. 56, 2013, p. 635-671.
Janeiro. Dilemas: revista de estudos de conflito e controle
social, v. 7, p. 625-642, out./dez. 2014. RODRGUES, M. O método: como fazer o Rio top tour na
favela? Disponível em: http://turismodapaz.blogspot.com.
MACHADO DA SILVA, L. A. Afinal, qual é a das UPPs. br. Acesso em: 2 set. de 2015.
Rio de Janeiro: [S.n.], 2010. Disponível em: www.
observatoriodasmetropoles.ufrj.br. Acesso em: data mar. RODRIGUES, A.; SIQUEIRA, R.; LISSOVSKY, M. Unidades
2010. de polícia pacificadora: debates e reflexões. Comunicações
do ISER, ano 31, n. 67, p. 9-51, 2012.
______. Violência urbana, segurança pública e favelas: o
caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CRH, Salvador, v. 23, SERRANO-BERTHET, R. (Coord.). O retorno do Estado às
p. 283-300, maio/ago. 2010. favelas do Rio de Janeiro: uma análise da transformação do
dia a dia das comunidades após o processo de pacificação
MENEZES, P. ‘Favela Modelo’: a study on housing, das UPPs. Rio de Janeiro: FGV: Banco Mundial, 2013.
belonging and civic engagement in a ‘pacified’ favela in
Rio de Janeiro, Brazil. In; KLAUFUS, C.; OUWENEEL, A. SOUZA E SILVA, J. As unidades de polícia pacificadora e
(Ed.). Housing and belonging in Latin America. New York: os novos desafios para as favelas cariocas. In: SEMINÁRIO
Berghahn Books. 2015. ASPECTOS HUMANOS DA FAVELA CARIOCA.2010,
Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Laboratório de
______. Os rumores da “pacificação”: a chegada da UPP e Etnografia Metropolitana, 2010.
as mudanças nos problemas públicos no Santa Marta e na
Cidade de Deus. Dilemas: revista de estudos de conflito e TELLES, V. Cidade: produção de espaços, formas de
controle social, v. 7, p. 665-683, out./dez. 2014. controle e conflitos. Revista de Ciências sociais, Fortaleza,
v. 46, n. 1, p. 15-41, jan./jun. 2015.
______. Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: uma
etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. URRY, J. Mobilities. Cambridge: Polity, 1990.
2015. 45 f. Tese (doutorado) – Instituto de Estudos Sociais
e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio ZACARIAS travou “guerra” por controle do tráfico em
de Janeiro, 2015. morro do Rio. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 jan.
2001. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/
MISSE, D. Cinco anos de UPP: Um breve balanço. Dilemas: cotidiano/ult95u18957.shtml. Acesso em: 7 mar. 2013.
revista de estudos de conflito e controle social,,v. 7, n. 3,
p. 675-700, 2014. ZALUAR, A. Dilemas, desafios e problemas da UPP no Rio
de Janeiro. XII Annual Internacional Conference of the
MISSE, M. et al. Quando a polícia mata: homicídios por Brazilian Studies Association (BRASA). London, 2014.
“autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio
de Janeiro: Booklink, 2013. ZUKIN, S. The Cultures of Cities. Cambridge MA:
Blackwell, 1995.
MUSUMECI, L. et al. Ser policial de UPP: aproximações e
resistências. Boletim Segurança e Cidadania, v. 14, p. 1-28,
2013.
Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p. 571-585, Set./Dez. 2016

584
Bianca Freire-Medeiros, Márcio Grijó Vilarouca, Palloma Menezes

SLUM TOURISM IN THE PACIFICATION LE TOURISME DE LA PAUVRETÉ AU SEIN DU


MARKET: reflections based on the experience of MARCHÉ DE PACIFICATION: réflexions issues de
Favela Santa Marta l’expérience dans la Favela Santa Marta

Bianca Freire-Medeiros Bianca Freire-Medeiros


Márcio Grijó Vilarouca Márcio Grijó Vilarouca
Palloma Menezes Palloma Menezes

Since the 1990’s, Rocinha has been securing Depuis les années 1990, la “Rocinha” s’est consolidée
itself as a paradigm of touristic favela based on a comme un paradigme de favela touristique. Elle est
model centered in the action of private companies présentée comme un modèle centré sur l’action
outside the favela and in the indifference of the d’entreprises privées n’appartenant pas à la favela
government. This article analyzes the practical et sur l’indifférence permissive des pouvoirs
and the discursive inflections which permitted publics. Cet article analyse les inflexions pratiques
the end of this paradigm and the emergence of a et discursives qui ont permis de rompre avec ce
model based on public and private partnerships paradigme et de permettre l’apparition d’un modèle
as well as in the organization of the local residents basé autant sur un partenariat des pouvoirs publics
as entrepreneurs. Through field research and et des marchés que sur la mobilisation des habitants
interviews, the perceptions and the justifications of en tant qu’entrepreneurs. Grâce à un travail sur
these agents involved in the transformation of Santa le terrain et à des interviews, il a été possible
Marta in a tourist attraction (the public sphere, d’analyser les perceptions et les justifications de ces
tourism agencies, local residents) were examined. différents acteurs – pouvoirs publics, voyagistes,
The hypothesis advocated here is that the Santa habitants – impliqués dans la conversion de Santa
Marta, the first favela with a Pacifying Police Unit, Marta en attraction touristique. L’hypothèse avancée
offers a privileged point to observe the new power est que Santa Marta est la première favela qui a
networks that defines the place to be occupied by été dotée d’une Police Pacificatrice, qu’elle offre
the favelas in a project which makes Rio de Janeiro un point de vue privilégié pour l’observation de
a postcard city. nouvelles forces qui définissent l’endroit destiné à
l’occupation de favelas comme un projet qui donne
à Rio sa caractéristique de carte postale.

Keywords: Tourism. Favela. Rio de Janeiro. Poverty. Mots-clés: Tourisme. Favela. Rio de Janeiro.
Pacification. Pauvreté. Pacification.

Caderno CRH, Salvador, v. 29, n. 78, p.571-585, Set./Dez. 2016


Bianca Freire-Medeiros – Doutora em Historia e Teoria da Arte e da Arquitetura – Binghamton
University. Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
de São Paulo. Coordenadora do UrbanData-Brasil: Banco de dados bibliográfico sobre o Brasil urbano.
Entre suas publicações mais recentes está o livro livro Touring Poverty. London: Routledge (Advances in
Sociology series), 2013; 2015).
Márcio Grijó Vilarouca – Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ (atual IESP). Professor da Escola de
Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e Coordenador do Setor de Pesquisa do CPDOC.
Integra o Núcleo de Pesquisa FGV-Opinião, desenvolvendo pesquisas na área de métodos quantitativos e
qualitativos. Seus mais recentes artigos, em parceria com Freire-Medeiros, e relacionados ao tema favela
e turismo, são: International tourists in a “pacified” favela: profiles and attitudes. The case of Santa Marta
(2013); Would You Be a Favela Tourist? Confronting Expectations and Moral Concerns amongst Brazilian
and Foreign Potential Tourists (2015).
Palloma Menezes – Pós-doutoranda do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea
do Brasil da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV). Pesquisadora do Coletivo de Estudos sobre Violência
e Sociabilidade (CEVIS/UERJ) e integrante do Projeto Temático FAPESP, “A gestão do conflito na produção
da cidade contemporânea: a experiência paulista”. Trabalha com temas relacionados à sociologia e
antropologia urbana, favelas e periferias, violência urbana, crime, segurança e políticas públicas.

585

Vous aimerez peut-être aussi