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O Texto de Lucrécio e os Princípios da Natureza das


Coisas

3.1 Introdução

Toda filosofia, em maior ou menor grau, é programática. Também a filosofia


epicurista contempla sua tarefa de pensar as questões que elabora de acordo com
certos interesses, não por gosto ou por diletantismo mas por necessidade. Na época de
Epicuro o discurso filosófico já havia alcançado uma forma normatizada, repartida
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em três grandes campos: a física, a ética e a canônica. Mesmo hoje em dia muitos
manuais de filosofia adotam essa disposição quando tratam de apresentar a filosofia
epicurista. À canônica compete a determinação das regras que regem o discurso e que
possibilitam uma correta percepção da realidade (a física). O conhecimento da
natureza permite ao homem situar-se no mundo e alcançar a realização plena de sua
“condição humana”. Só o homem sábio conhece a natureza última das coisas e a
felicidade (eudaimonia) é prerrogativa deste tipo de homem. A rigor o que acabamos
de afirmar não compromete em nada a compreensão geral que podemos ter da
programática epicurista; mas desde que não suponhamos que o filosofar esteja
dominado por uma cronologia, por um método que defina uma longa preparação
prévia até que, finalmente, o estudante esteja em condições de filosofar.

No entanto a idéia subjacente segundo a qual os manuais são elaborados é a


de que o epicurismo propõe uma canônica autônoma, uma lógica ou algo como que
uma propedêutica que anteceda o estudo da física e da ética. Não há nenhuma palavra
nos textos do próprio Epicuro, ou no poema de Lucrécio, que sustente essa
interpretação A principal fonte de atribuição aos epicuristas de uma canônica que
servisse como introdução a um sistema doutrinário é um texto de Diógenes Laércio1.

A esse respeito o estudo do pensamento epicurista coloca problemas bastante


singulares. Filosofia dogmática, o epicurismo estabelece um conjunto bastante claro
de princípios a partir dos quais cria sua imagem de mundo. A exposição sumária de
princípios, de máximas e preceitos pertence ao espírito da doutrina, e Epicuro trata de
no-lo lembrar em vários momentos, seja nas três epístolas, seja na própria elaboração
de fórmulas e máximas breves de fácil retenção. Aqui a crueza epicurista mostra-se
em toda sua transparência: o que pode ser dito pode ser dito claramente e de modo
expresso; tudo o mais é deriva. Uma vez estabelecida a verdade do atomismo, nada
mais resta a acrescentar ou subtrair. A partir de então a tarefa do pensamento passa a
ser um esforço constante de orientação nessa verdade, nesse aspecto essencial já e de
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uma vez por todas revelado.

Resumimos a seguir as teses que nos pareceram as mais relevantes para


estabelecer essa imagem essencial que os epicuristas criam para falar do mundo –
sobre o mundo:

Nenhuma exterioridade racional atua na natureza. Isto significa dizer que a


natureza não obedece a nenhum projeto e não abriga nenhuma finalidade.

Apenas o que é tangível – matéria – pode agir e padecer.

Existe o movimento

Existe o vazio (condição necessária e suficiente para que haja movimento)

A matéria é ingênita e imperecível.

O vazio é infinito. A matéria também o é.

O universo, o Todo, é o conjunto infinito (soma não totalizável) da matéria


descontínua no vazio contínuo.

1
D.L. X 29 – 30: A filosofia se divide em três partes: a canônica, a física e a ética.

73
A variedade das formas da matéria, em seu estado fundamental, varia
segundo um número finito.

A matéria, em seu estado último, está sempre movimento.

A velocidade do movimento da matéria, em seu estado último, é uniforme.

As três qualidades fundamentais da matéria são: peso, forma e tamanho.

A matéria, em seu estado fundamental, é capaz de desviar da trajetória


retilínea, não mais que o mínimo, em tempo e lugar indeterminados.

A partir desse conjunto restrito de princípios – dir-se-ia uma física, não fosse
a tese aparentemente metafísica que abre a série – os epicuristas tratam de pensar uma
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filosofia cujo sentido é o de determinar o lugar do homem no mundo e suas


possibilidades de alcançar o prazer mais alto, princípio e fim da vida feliz.

No estudo introdutório que fizemos do pensamento democriteano


procuramos salientar que o desenvolvimento do pensamento atomista obedeceu a um
kanon rigorosamente comprometido com o pensamento eleata: tratava-se de oferecer
uma resposta satisfatória ao problema do devir sem, contudo, deixar de adequar esta
resposta ao rigoroso encadeamento exigido pela dinâmica do discurso. Se aquilo que
se move é em alguma medida, é preciso saber dizer o que é obedecendo a uma lógica
discursiva que tenha no ser o seu solo. Quando se procura desbravar o pensamento
abderiano através das dificuldades que o cercam – aridez filosófica, estado
fragmentado dos textos, doxografia hostil – percebe-se que a discussão filosófica fica
retida nas cercanias do ser, que o logos é capturado dentro dos limites de uma
ontologia (metafísica) severa. É perceptível que um empirismo resvala continuamente
o pensamento abderiano sem jamais conseguir se manifestar como imagem nítida,
sem jamais aparecer, sem se tornar “fenômeno”2. Demócrito, pensador poderoso,

2
A leitura feita por Hegel do atomismo “eleata” – que afirma o átomo como determinação do um
abstrato – parece exemplar: “O princípio do um é totalmente ideal, pertence inteiramente ao
pensamento, mesmo se se quisesse dizer que os átomos existem. O átomo pode ser tomado de modo
material, mas ele é não-sensível, puramente intelectual. [...] O princípio do um é, portanto,
inteiramente ideal, não, porém, como se estivesse apenas na mente, na cabeça, mas assim que o

74
criou para si uma imagem sutil e eficaz quando afirmou que a “verdade jaz no
abismo”. O momento ontológico democriteano antecipa Epicuro, mas não se
confunde com Epicuro nem com aquilo que ele se propõe pensar. O epicurismo –
Lucrécio o atesta – é já uma física. Ele pensa não mais o pensamento; ele pensa a
natureza ou, o que é ainda mais forte, ele pensa a natureza das coisas, dos fenômenos,
das singularidades. No entanto, mesmo aqui é preciso ter cuidado; pois é bem
possível que a distância que separa Epicuro e Lucrécio do pensador de Abdera não
seja nada se comparada com aquela que os separa daquilo que, hoje em dia,
nomeamos como Física. “O texto de Lucrécio é uma exposição de física”, diz Michel
Serres3; mas trata-se de uma física em um outro sentido, pensada e sentida sem o
estranhamento e o distanciamento do corpo, sem a consagração desse divórcio entre o
corpo e o pensamento que se tornou tão comum ao pensar filosófico. Daqui,
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conforme teremos ocasião de ver deriva o prazer de Vênus como índice da vida em
sua plenitude.

Ver-se-á como os epicuristas pensam o corpo não como um mero portador


da alma, mas como o lugar no qual o pensamento se realiza, esse composto entre os
compostos. Os critérios virão do corpo – o que é tangível, sensível, perceptível e
pensável, o que afeta o equilíbrio do corpo e da alma material (o pathos, a afecção): o
corpo é o bastante para sentir, para pensar, para ser. E se é o corpo que sente o que
está em evidência, trata-se de uma física que tem algo a dizer sobre o prazer e a dor,
uma física que tem algo a dizer sobre o homem no mundo. Uma física estranha para
nós. E no entanto ainda uma física.

Vê-se que no pensamento de Epicuro e Lucrécio a ênfase metafísica é posta


alhures. Não se trata de romper o jugo imposto pelo ser parmenídico, seja no que diz

pensamento é a verdadeira essência das coisas. Leucipo também o entendeu assim, e sua filosofia não
é, de maneira alguma, empírica.” in, Leçons sur l’histoire de la philosophie. Essa leitura, no entanto,
abandona furtivamente o drama dos abderianos que viemos de estudar: a impossibilidade de navegar
fora das águas restritas ao regime ontológico, mesmo partindo de uma evidência empírica, isto é, a
realidade do movimento. Segundo nos parece, Nietzsche chegou a formular a questão de modo mais
transparente: “Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é
acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento.”, in O nascimento da
filosofia na época da tragédia grega.
3
Serres, M. O nascimento da física no texto de Lucrécio, pág. 167.

75
respeito à realidade do movimento, seja no que diz respeito às possibilidades mínimas
de constituição de um discurso. Isto seria pensar o que já foi pensado, o que seria o
mesmo que não pensar.

3.2 Os Princípios da Matéria e o Vazio

A afirmação segundo a qual “nada pode ser criado a partir do nada [...]”
inaugura, propriamente, os temas da física epicurista. Mas Lucrécio acrescenta “[...] a
partir de um poder divino”.4 Aqui começa e termina aquilo que os epicuristas
definirão como um naturalismo: opõem-se a toda e qualquer concepção que ponha o
valor de existência do mundo fora do mundo ele mesmo. Não há nenhuma
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necessidade em distinguir uma causa do mundo, um princípio exterior capaz de criar


e conservar a ordem de distribuição dos seres.

Ao argumentar que nada pode ser criado a partir do nada – caso em que seria
forçoso admitir uma intervenção divina – Lucrécio pretende cerrar definitivamente as
portas da natureza para uma sobrenatureza. Ora se não há, efetivamente, criação a
partir tão somente de uma potência divina, isto é, a partir do nada, tampouco será
possível justificar que o divino interceda junto ao mundo para ordená-lo e dirigi-lo. A
compreensão deste princípio em sua radicalidade traz consigo a visibilidade daquilo
que, em última análise, será a imagem da natureza em seu estado global: algo que
existe tal como é desde sempre (visto não ter sido criada em um momento zero) e que
não está submetida ao governo de uma potência transcendente.

Assim, tão logo tenhamos determinado que nada pode ser criado a partir do nada
seremos capazes de ver mais claramente o objeto de nossa investigação e de que
elementos cada coisa pode ser criada e como tudo se realiza sem a intervenção
dos deuses.5

4
De rerum natura I, 149 – 150.
5
De rerum natura I, 155 – 158.

76
Nestes versos Lucrécio sintetiza todo o projeto filosófico a se constituir
através do poema. Para os epicuristas admitir a criação a partir da intervenção de
forças exteriores ao mundo seria o mesmo que admitir uma criação a partir do nada.
Buscar em uma exterioridade as “causas” que engendram o mundo significa nada
explicar. Admitir a intervenção das forças divinas como uma explicação plausível
significa, em última análise, renunciar a uma explicação filosófica e naturalista para
capitular ao impulso religioso, o que em nada difere na admissão de que todas as
coisas possam ter surgido a partir de um nada.

De outra parte, a argumentação de Lucrécio reduz ao absurdo a tese oposta:


se tudo o que existe pudesse ser criado a partir do nada, teríamos de admitir que tudo
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poderia nascer de tudo. A própria observação da ordem e regularidade através da qual


a natureza opera em suas transformações interdita a proposição “tudo pode vir de
tudo”. A apreensão dessa ordem implica o veto ao princípio de anarquia explicitado
na proposição "tudo pode ser criado a partir de tudo" e seu duplo, "tudo pode ser
criado a partir do nada". Cada ser existente na natureza possui suas próprias
possibilidades, sendo estas determinadas pela matéria que o constitui.6

De modo inverso, assim como tudo não pode ser criado a partir do nada, o
que existe não pode ser reduzido a nada.7 Admitir o contrário dessa afirmação seria
propor que qualquer coisa existente pudesse ser aniquilada subitamente diante de
nossa vista. A observação da natureza torna evidente uma outra proposição: tudo o
que existe desfaz-se através da corrupção, ou seja, do desagregamento de seus
elementos. Esses elementos são os corpos simples, partículas eternas que subjazem à
fenomenalidade e que, através dos seus movimentos (choques e composições), dão
forma às transformações naturais. Nos versos seguintes Lucrécio procura provar a
existência destas partículas elementares8. São enumerados fenômenos que nos são
perceptíveis mas dos quais não podemos ter uma apreensão visível, tais como os

6
De rerum natura I, 199 – 207.
7
De rerum natura I, 215 – 216.

77
ventos, o calor, o frio. Notadamente é a natureza material de todas as coisas que as
torna perceptíveis, mesmo que não possamos captá-las visualmente. É da natureza da
matéria impressionar os sentidos9.

São estes os primeiros passos dados por Lucrécio para estabelecer a natureza
da matéria. A matéria percebida, a despeito de seu movimento perpétuo de geração e
corrupção, é composta por partículas indestrutíveis, eternas e invisíveis. Mas para que
esse fluxo contínuo de vir-a-ser – composição e decomposição – seja efetivamente
inteligível, torna-se necessário pensar a existência do vazio. É através da noção de
vazio, como bem já notamos em nosso estudo sobre Demócrito, que as noções de
multiplicidade e movimento, solidárias uma em relação à outra, tornar-se-ão
plausíveis.
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No entanto, nem toda as coisas são, por natureza, plenas de matéria: o vazio
existe nas coisas.10

Inicialmente o vazio aparece como condição necessária para a existência do


movimento. Lucrécio argumenta que se por toda parte houvesse apenas oposição e
resistência – propriedade fundamental da matéria11 – o movimento não poderia nem
mesmo ser iniciado.12 Assim, desde que o movimento é percebido, conclui-se
imediatamente pela existência do vazio.

De maneira mais esquemática:

a) Se o vazio não existe, também o movimento não poderia existir;

b) No entanto, a observação das coisas me faz notar que o movimento existe.

8
De rerum natura I, 265 – 328.
9
De rerum natura I, 298 – 304.
10
De rerum natura I, 329 – 330.
11
De rerum natura I, 336 – 338.
12
De rerum natura, I, 370 – 383. Ver também Epicuro Carta a Heródoto § 40.

78
c) Logo, é preciso admitir a existência do vazio.

Conhecemos este argumento: ele reproduz na íntegra a inversão feita pelos


abderianos no argumento de Melisso. Mas, segundo nos parece, esse não se seria o
passo fundamental para compreendermos a importância da noção de vazio no
pensamento epicurista, coisa que veremos logo a seguir. De todo modo, Lucrécio
retoma nos versos seguintes uma polêmica comum na Antigüidade, ou seja, a
possibilidade do movimento em um espaço cheio. O exemplo dos peixes movendo-se
na água do mar seria o mais clássico: ao se moverem, os peixes deixam atrás de si um
espaço para o qual, instantaneamente as águas confluem, possibilitando o movimento
na direção oposta. Lucrécio diz que essa argumentação assenta-se sobre um
raciocínio falso, ou seja, caso não haja o vazio que os possibilite moverem-se e,
simultaneamente, a confluência da massa de água, o movimento não pode nem
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mesmo ser iniciado13.

Se a argumentação feita por Lucrécio acerca da existência do vazio obedece


inicialmente a um padrão de dedução racional, a seqüência do poema nos indica que
as provas empíricas jogam um papel importante na confirmação da tese. Lucrécio
reúne uma série de evidências sensíveis e inferências provenientes de procedimentos
indutivos que indicam a existência do vazio.14 Ele insiste que, ao contrário do que
uma observação superficial pudesse sugerir, os corpos não poderiam possuir uma
natureza compacta. Uma característica comum a todos os compostos é guardar, em
maior ou menor proporção, espaços vazios em seu interior. Esta regra é inferida a
partir de certas propriedades, como a porosidade de algumas rochas através das quais
as águas conseguem fluir, a assimilação dos alimentos que permite o crescimento dos
seres vivos, a passagem do som através de paredes e as diferentes densidades de
corpos cuja dimensão é a mesma.15

13
Em Aristóteles encontramos uma argumentação favorável ao movimento no interior de um “espaço
pleno”, no qual o tema do movimento dos peixes é retomado: Física 214 7 a-b.
14
De rerum natura I, 346 – 369.
15
O desenvolvimento do argumento relativo às diferenças de densidade remonta a Demócrito. Ver
Aristóteles, De caelo, 309 a; 310 a.

79
A insistência com que são dispostos os argumentos empíricos na
determinação das realidades fundamentais da natureza revela o distanciamento
instaurado entre, de um lado, Leucipo e Demócrito e, de outro lado, os epicuristas.
Estes últimos já não se limitam ao argumento dos primeiros atomistas que privilegia a
racionalidade pura dos eleatas. Os epicuristas não se restringem à máxima eleata que
afirma a identidade entre ser e pensar, máxima da qual os atomistas se apropriaram
oportunamente para afirmar que o não-ser, em alguma medida, é (como espaço).
Como podemos inferir deste particular, os epicuristas não admitem, tout court, a
identidade entre ser e pensamento; não, ao menos, tal como o fizeram os abderianos.

As partículas elementares e o vazio são aquilo a que a natureza pode ser


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reduzida em seu nível mais essencial.

Mas, para continuar com o que dizia, toda natureza é constituída por duas coisas:
existem os corpos e existe o vazio no qual os corpos tomam seu lugar e no qual
se movem em todas as direções.16

Não é possível, argumenta Lucrécio, uma terceira realidade fora da


dimensão espacial e da materialidade. De um ponto de vista estritamente
epistemológico não haveria mecanismos fora da sensação e do pensamento para
estabelecê-la. Se admitíssemos hipoteticamente a existência de uma terceira realidade
ela seria em alguma medida tangível – o que nos forçaria a determiná-la como
matéria – ou não – caso em que seria de uma natureza idêntica a do vazio.

Decreto inexorável, a redução de todas as coisas a átomos e vazio não nos


impede de creditar aos atributos gerados a partir da associação de ambos um caráter
de realidade. Tais atributos podem ser: a) associados (coniuncta), os quais não podem
ser abstraídos das coisas, como por exemplo o calor do fogo, o peso da terra, a
natureza tangível e intangível da matéria e do vazio, respectivamente; b) acidentais

16
De rerum natura I, 418 – 421.

80
(eventa), ou seja, atributos que, estando ou não presente nos corpos, não lhes
modifica a natureza. Exemplos desta categoria seriam a pobreza, a riqueza, a paz, a
guerra17.

Um desenvolvimento importante deste argumento revela a natureza do


tempo para os epicuristas. Este, com efeito, não passa de um atributo acidental,
subordinado ontologicamente às noções de matéria e vazio. A noção do tempo jamais
poderia ser sustentada fora das condições impostas pela natureza, ou seja, sem que a
reconhecêssemos como sucessão de movimentos das coisas no espaço.18 Outro
aspecto importante refere-se inevitavelmente ao papel desempenhado pelo sujeito na
percepção do tempo, alguém capaz de determinar um “antes” e um “depois” na
sucessão de eventos. Eliminado este sujeito, a noção de tempo fica absolutamente
carente de significação, restando apenas o movimento dos átomos no vazio.
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Há aqui um claro indicativo do nivelamento com que os epicuristas


procuram operar no que se refere às produções da natureza. Esta é essencialmente,
átomos e vazio. O mundo, o homem, a história19 – e tudo o mais que é produto desta
natureza essencial – não passam de acidentes, na medida em que não escapam à
noção de temporalidade. Opõe-se a isto a natureza em seu estado fundamental que
não poderia ser outra coisa senão um substrato eterno, idêntico a si mesmo20.

Os versos que se seguem no De rerum natura apresentam uma elaboração


mais ampla e detalhada da noção de matéria. Tudo quanto existe de tangível – isto é
os corpos – é ou de natureza elementar, ou composta. A característica fundamental
destes elementos é sua indestrutibilidade, ou seja, não podem ser fragmentados por
qualquer força. Não obstante, a precariedade da manutenção das estruturas
características do mundo é garantida através da renovação cíclica de suas partes.
Teatro de incessantes transformações, o testemunho da natureza parece obstar a idéia

17
De rerum natura I, 449 - 458. Em Epicuro há notadamente um desenvolvimento mais amplo. Ver,
Carta a Heródoto, 40; 68 - 73.
18
De rerum natura I, 459 - 463.
19
Ver particularmente De rerum natura I, 464 - 470.
20
Cf. Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, pág. 43.

81
de que haja elementos indestrutíveis. Ao retomar a argumentação sobre a eternidade
daquilo que resiste às transformações, Lucrécio tem como objetivo mostrar que esta
noção, longe de opor-se à preeminência do papel desempenhado pela observação na
compreensão do funcionamento das coisas, é decisiva para que se possa indicar a
existência de uma natureza.21

Remontando às origens eleatas do atomismo, vemos que a matéria mantém


as mesmas características do ser. Assim, cada partícula de matéria é uma unidade
fundamental ingênita, imperecível, homogênea e imutável. A discrepância
fundamental da noção de átomo em relação ao ser de Parmênides refere-se ao caráter
múltiplo da realidade. Já o vazio é, como vimos, identificado ao não-ser. A esse
respeito não apenas os primeiros atomistas – em que pese terem desobedecido a
Parmênides e conferido ao não-ser um certo tipo de existência – como, mais tarde,
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Epicuro e Lucrecio, manterão fidelidade ao princípio de que uma coisa não pode “ser
e não ser”, ou seja: identificando o ser à matéria e o não ser ao vazio, os atomistas
estabelecem uma noção de totalidade que comporta dois princípios que se excluem
mutuamente. Ambos coexistem em alguma medida, embora não se possa afirmar que
o estatuto desse existir possua o mesmo significado. Desse modo, aquilo que é da
ordem da matéria não pode conter vazio e, inversamente aquilo que é da ordem do
vazio exclui toda materialidade.

Primeiramente, já que descobrimos ser dupla e diferente a natureza dos dois


elementos – a matéria e o vazio no qual tudo se realiza – segue-se
necessariamente que cada um deles existe por si só.[...]. Portanto, os corpos
primeiros são plenos e sem vazio.22

A matéria em seu estado fundamental deve ser definida de tal modo a vetar
qualquer alternativa de divisibilidade, o que exclui a possibilidade de um vazio

21
De rerum natura I, 497 - 502.
22
De rerum natura, I, 503 - 506; 510).

82
intersticial agregado em sua intimidade. Já os processos de produção e
degenerescência podem ser explicados a partir dos movimentos de composição e
decomposição. Os átomos, ao se reunirem para a formação de um composto, acabam
necessariamente por encerrar espaços vazios nessa nova estrutura, razão pela qual
mesmo sendo eterna a matéria – isto é, reduzida em sua intimidade a partículas
indecomponíveis – o produto de suas combinações é perecível.

Quanto menos cerrada for uma determinada estrutura, quanto maior o vazio
nela contido, maior será sua precariedade na sucessão do tempo, mais ela estará
vulnerável a um rápido desagregamento. Em sentido inverso, na medida em que
alguma materialidade deve subsistir eternamente aos fenômenos, sua definição deve
sublinhar marcadamente o caráter dessa unidade. A matéria deve ser maciça ou
indestrutível.
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De um ponto de vista de sua etimologia o termo "átomo" designa a não


divisibilidade dos elementos primordiais. No entanto, a compreensão filosófica deste
conceito entre os antigos exige uma ampliação desta mera não-divisibilidade, a partir
do que o átomo poderá ser caracterizado como fundamento último da realidade.
Seguindo ainda a interpretação de M. Conche, há três caracteres que definem a
“atomicidade” das partículas elementares. São eles a solidez, a eternidade e a
simplicidade (unidade).23 Em virtude de sua solidez, ou seja, por se tratar de um
fragmento espacial, o átomo deve ser dotado de forma e grandeza, limite de tudo
aquilo que é em relação ao que não é corpo, isto é, o vazio.

Resta saber se, na medida em que possui uma forma qualquer (cúbica,
esférica, triangular, etc.) o átomo perde seu caráter de estrutura simples, fundadora.
Ao ser concebido como dotado de uma figura qualquer não ganha o átomo partes
distribuídas espacialmente?

23
Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, pág. 44.

83
São, por conseguinte, os corpos elementares de uma simplicidade impenetrável,
ligados estreitamente entre si através de partículas mínimas; não são formados
através de uma simples reunião de partes mas, ao contrário, valem-se de uma
eterna simplicidade que a natureza não permite suprimir nem diminuir,
reservando-os como sementes das coisas.24

Dotados de grandeza e forma, inevitavelmente os átomos deverão constituir-


se de partes através das quais poderão unir-se para a formação de compostos. Estas
partes do átomo (partes minimae), embora distribuídas ao longo de sua espacialidade
mesma, estão integradas no todo compacto que o caracterizam como princípio de
todas as coisas. Estas partes jamais poderiam ser concebidas como uma entidade
física particular – o que inviabilizaria totalmente a noção de elemento; sua existência
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permanece condicionada à integração em uma totalidade.

3.3 Um esboço de totalidade

Os epicuristas insistem acerca da inexistência de uma exterioridade que


pudesse intervir na formação e governo do mundo. De outra parte, a determinação
dos princípios "nada pode vir do nada" e "nada pode ser inteiramente aniquilado"
asseguram a imutabilidade do universo epicurista. Estes desenvolvimentos garantem
aos pensadores epicuristas a possibilidade de esboçar uma noção de todo25.

De certo modo esse todo dos epicuristas não pode ser senão esboçado. Ele se
mantém como instância derradeira, mas jamais pode ultrapassar o status de um devir.
Se o todo não possui exterioridade, ele de outra parte, jamais pode ser completado:
trata-se de um fluído, um fluxo perpétuo que jamais se detém e que está em processo
de permanente de atualização. Esta noção, para os epicuristas não indica uma

24
De rerum natura I, 609 - 614.
25
Ao contrário dos estóicos, que distinguiam o Todo (to pan) do Universo (to olon), os epicuristas
utilizavam indistintamente os dois vocábulos. Cf. Duvernoy, J-F. O epicurismo e sua tradição antiga,
nota da página 33.

84
instancia unificadora, superior à soma de suas partes. Um todo superior à soma de
suas partes seria já uma exterioridade em relação às partes elas mesmas o que,
conforme já vimos, é categoricamente recusado pelos epicuristas26.

Epicuro faz duas proposições acerca desse todo: a) em primeiro lugar ele é
composto por átomos e vazio27 e; b) o todo é infinito28. Lucrécio retoma a
argumentação a respeito das noções de vazio e matéria já ao fim do livro I do De
rerum natura29, mas o faz de forma diferenciada: ele estabelece a impossibilidade de
se pensar um espaço finito, cuja fronteira funcionasse como limite de um interior em
relação ao exterior; o problema apresentado por Lucrécio seria da seguinte ordem:
qual seria a natureza desse exterior que envolve o cosmo, senão aquela mesma do
vazio postulado pela doutrina atomista?30
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Indo mais além, Lucrécio argumenta que a existência de um espaço finito


impossibilitaria mesmo o surgimento de qualquer tipo de composto. Isto significa
dizer que em um espaço, tal como apresentado no De rerum natura, dentro do qual a
fenomenalidade surge a partir do movimento dos átomos (choques, combinações,
desagregações), a finitude funcionaria como impeditivo para o surgimento dos
fenômenos, já que por força dos movimentos próprios à matéria, esta logo acabaria
por jazer inerte no fundo do espaço. Deste modo, é necessário admitir um espaço
infinito a partir do qual e para onde os átomos possam mover-se livremente, sem que
haja risco desse movimento cessar.

A evidência racional de um espaço infinito é suficiente pois, para que seja


necessário admitir a infinidade numérica dos elementos31; uma quantidade de matéria

26
Nos versos 520 – 521 do canto I Lucrécio deixa implícita uma certa idéia de Todo ao afirmar que o
estado da totalidade das coisas (omnia) é intermediário entre o pleno e o vazio.
27
Carta a Heródoto, § 39.
28
Carta a Heródoto, § 41.
29
De rerum natura I, 950 - 1050.
30
Cf. Duvernoy, J-F. O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 35.
31
De rerum natura I, 1015 - 1050.

85
finita contida em um espaço infinito acarretaria uma dispersão total cuja implicação
seria a impossibilidade de constituição dos mundos.
Duvernoy estabelece uma distinção entre estes dois infinitos simultâneos
(vazio, matéria) subjacentes ao todo atomista: infinidade (geométrica) do espaço e
infinidade (aritmética) dos elementos materiais, respectivamente. Vale dizer, em
outras palavras, que o estatuto filosófico destes dois infinitos não é o mesmo. A
evidência racional de um espaço infinito (geométrico) antecede a infinidade
(aritmética) do número de átomos32.

Temos então estabelecidos, segundos os termos do De rerum natura, duas


ordens distintas que compõem a “totalidade” das coisas: a) um espaço tal cujas
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propriedades intrínsecas correspondem, em princípio, ao espaço pensado pela


geometria; b) uma matéria dispersa que relativiza e subverte as propriedades do
espaço, na medida em que insere nele um princípio de descontinuidade, contrário ao
estatuto do espaço concebido pela geometria.

Vimos que o espaço para Leucipo e Demócrito possui um significado


bastante diferente33: nele os átomos são concebidos segundo uma infinidade de
grandezas e formas, possíveis e reais. Fica, neste caso, estabelecida uma
correspondência entre espaço e matéria, pois a divisibilidade de ambos pode ser
sobreposta indefinidamente. Desta forma, não seria demais afirmar que grandeza e
forma são pensadas como quantidades, ou melhor, são pensadas geometricamente34.
A grandeza dos átomos estende-se, em ambos os sentidos, através de um contínuo, do
infinitesimal ao infinitamente grande.

Já no De rerum natura o átomo é estabelecido como o elemento que limita


duplamente o espaço geometrizado: neste espaço ele representa a descontinuidade, a

32
Cf. Duvernoy. J-F. O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 36.,: "É porque o vazio é
necessariamente infinito que nele se encontra uma infinidade numérica dos entes (átomos, compostos,
mundos). Já que ocorre que existe alguma coisa, a quantidade-número dessa coisa só pode ser
infinita”.
33
Wolff, F. “Dois destinos possíveis da ontologia: a via categorial e a via física”, pág. 209.

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negação ou contrário do vazio; em outro sentido, o átomo é a fronteira onde a
divisibilidade é interrompida. É por suas qualidades (forma, grandeza e peso), aquilo
que o caracteriza como matéria, que o átomo distingui-se do ponto geométrico.

O estado intermediário entre o cheio e o vazio, ou seja, o excedente que o


vazio apresenta em relação ao cheio faz com que o espaço pensado pelos epicuristas
seja um espaço da dispersão e da descontinuidade. Evidentemente o estado infinito e
fragmentado do todo atomista acarreta conseqüências bastante graves para uma
percepção formada nesse hábito que vê no todo uma exterioridade que subsume as
partes: “o todo é maior que a soma de suas partes” diz a fórmula transformada em
clichê. Mas as condições a partir das quais os epicuristas pensam a natureza não lhes
permite fazê-lo corresponder a uma instância que unifica e responde pela diversidade:
ele segue como uma soma de partes, mas a infinidade dos elementos impede que uma
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tal soma se totalize.

A unificação totalizadora – metafísica, e também lógica –é substituída pelo


atomismo, pela fragmentação. [...] Porque não há unificação, também não há
discurso apto a unificar. A canônica geral, como lógica que reproduzisse a ordem
do Ser, é impossível, porque não há Ser (a totalidade não tem status de Ser) mas
seres elementares.35

3.4 As formas dos corpos elementares

Vimos que para os fundadores do atomismo, a determinação das formas


possíveis dos átomos resta condicionada ao “princípio de indiferença”, ou “lei de
isonomia” – determinada pelo pressuposto de correspondência entre o ser e o
pensamento –, garantia que confere às formas pensáveis igual direito à existência.

Esta discussão marca um novo distanciamento dos epicuristas em relação


aos fundadores do atomismo: o problema das formas dos átomos é pensado tendo em

34
Cf. Duvernoy, O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 39.
35
Duernoy, J. F. O epicurismo e sua tradição antiga., pág. 28.

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vista oferecer a resposta mais justa em relação àquilo que a realidade empírica
permite determinar. As formas dos átomos, ainda que inumeráveis, devem variar de
maneira finita36. A necessidade de se reconhecer limites à variação da forma dos
átomos advém da constatação de duas evidências: a) os átomos são imperceptíveis;
assim, é preciso recusar que as formas dos átomos variem infinitamente já que uma
variação infinita de formas abriria o precedente para a existência de átomos de
quaisquer tamanhos, incluindo aqueles que pudessem ser percebidos pelos sentidos;
b) de outra parte, se as formas dos átomos variassem segundo uma ordem infinita, as
sensações, de modo análogo, teriam de variar infinitamente, o que significaria que a
própria possibilidade de se perceber algo seria da ordem do impossível37.

A equação entre o que pertence à ordem do infinito e aquilo que pertence ao


campo do limite permite aos epicuristas estabelecem uma primeira imagem da
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natureza. São infinitos o vazio e o número de átomos. Quanto às formas, a variação


tem de estar necessariamente restrita a um número finito. Finitas são as possibilidades
de composição, a variação das sensações, a produção de formas e seres, sejam eles
inanimados ou vivos. Infinita é a fluidez da natureza em seu trabalho constante de
atualização das formas visíveis. Sem a potência infinita de matéria em movimento a
natureza não seria nem ao menos pensável. Sem o limite das formas a própria idéia de
“forma” – e, com ela, a natureza – seria impensável. Antecipamos aqui que pensável
e perceptível fazem um. A natureza pensada, ou pensável, não pode ser outra senão
aquela percebida, ou perceptível. O que é a natureza, em primeira análise? Um
conjunto finito de formas viáveis que vem-a-ser em fluxo perpétuo. Assim, uma vez
estabelecidos os princípios dos elementos constituintes do universo, cabe
imediatamente uma pergunta: quais forças presidem esses elementos nos processos de
gênese e corrupção dos vários corpos?

36
De rerum natura II, 478 – 480. Confrontar com Epicuro, Carta a Heródoto, § 42.
37
De rerum natura II, 496 – 521.

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