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3.1 Introdução
em três grandes campos: a física, a ética e a canônica. Mesmo hoje em dia muitos
manuais de filosofia adotam essa disposição quando tratam de apresentar a filosofia
epicurista. À canônica compete a determinação das regras que regem o discurso e que
possibilitam uma correta percepção da realidade (a física). O conhecimento da
natureza permite ao homem situar-se no mundo e alcançar a realização plena de sua
“condição humana”. Só o homem sábio conhece a natureza última das coisas e a
felicidade (eudaimonia) é prerrogativa deste tipo de homem. A rigor o que acabamos
de afirmar não compromete em nada a compreensão geral que podemos ter da
programática epicurista; mas desde que não suponhamos que o filosofar esteja
dominado por uma cronologia, por um método que defina uma longa preparação
prévia até que, finalmente, o estudante esteja em condições de filosofar.
Existe o movimento
1
D.L. X 29 – 30: A filosofia se divide em três partes: a canônica, a física e a ética.
73
A variedade das formas da matéria, em seu estado fundamental, varia
segundo um número finito.
A partir desse conjunto restrito de princípios – dir-se-ia uma física, não fosse
a tese aparentemente metafísica que abre a série – os epicuristas tratam de pensar uma
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2
A leitura feita por Hegel do atomismo “eleata” – que afirma o átomo como determinação do um
abstrato – parece exemplar: “O princípio do um é totalmente ideal, pertence inteiramente ao
pensamento, mesmo se se quisesse dizer que os átomos existem. O átomo pode ser tomado de modo
material, mas ele é não-sensível, puramente intelectual. [...] O princípio do um é, portanto,
inteiramente ideal, não, porém, como se estivesse apenas na mente, na cabeça, mas assim que o
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criou para si uma imagem sutil e eficaz quando afirmou que a “verdade jaz no
abismo”. O momento ontológico democriteano antecipa Epicuro, mas não se
confunde com Epicuro nem com aquilo que ele se propõe pensar. O epicurismo –
Lucrécio o atesta – é já uma física. Ele pensa não mais o pensamento; ele pensa a
natureza ou, o que é ainda mais forte, ele pensa a natureza das coisas, dos fenômenos,
das singularidades. No entanto, mesmo aqui é preciso ter cuidado; pois é bem
possível que a distância que separa Epicuro e Lucrécio do pensador de Abdera não
seja nada se comparada com aquela que os separa daquilo que, hoje em dia,
nomeamos como Física. “O texto de Lucrécio é uma exposição de física”, diz Michel
Serres3; mas trata-se de uma física em um outro sentido, pensada e sentida sem o
estranhamento e o distanciamento do corpo, sem a consagração desse divórcio entre o
corpo e o pensamento que se tornou tão comum ao pensar filosófico. Daqui,
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conforme teremos ocasião de ver deriva o prazer de Vênus como índice da vida em
sua plenitude.
pensamento é a verdadeira essência das coisas. Leucipo também o entendeu assim, e sua filosofia não
é, de maneira alguma, empírica.” in, Leçons sur l’histoire de la philosophie. Essa leitura, no entanto,
abandona furtivamente o drama dos abderianos que viemos de estudar: a impossibilidade de navegar
fora das águas restritas ao regime ontológico, mesmo partindo de uma evidência empírica, isto é, a
realidade do movimento. Segundo nos parece, Nietzsche chegou a formular a questão de modo mais
transparente: “Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é
acreditar na realidade do movimento porque o pensamento é um movimento.”, in O nascimento da
filosofia na época da tragédia grega.
3
Serres, M. O nascimento da física no texto de Lucrécio, pág. 167.
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respeito à realidade do movimento, seja no que diz respeito às possibilidades mínimas
de constituição de um discurso. Isto seria pensar o que já foi pensado, o que seria o
mesmo que não pensar.
A afirmação segundo a qual “nada pode ser criado a partir do nada [...]”
inaugura, propriamente, os temas da física epicurista. Mas Lucrécio acrescenta “[...] a
partir de um poder divino”.4 Aqui começa e termina aquilo que os epicuristas
definirão como um naturalismo: opõem-se a toda e qualquer concepção que ponha o
valor de existência do mundo fora do mundo ele mesmo. Não há nenhuma
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Ao argumentar que nada pode ser criado a partir do nada – caso em que seria
forçoso admitir uma intervenção divina – Lucrécio pretende cerrar definitivamente as
portas da natureza para uma sobrenatureza. Ora se não há, efetivamente, criação a
partir tão somente de uma potência divina, isto é, a partir do nada, tampouco será
possível justificar que o divino interceda junto ao mundo para ordená-lo e dirigi-lo. A
compreensão deste princípio em sua radicalidade traz consigo a visibilidade daquilo
que, em última análise, será a imagem da natureza em seu estado global: algo que
existe tal como é desde sempre (visto não ter sido criada em um momento zero) e que
não está submetida ao governo de uma potência transcendente.
Assim, tão logo tenhamos determinado que nada pode ser criado a partir do nada
seremos capazes de ver mais claramente o objeto de nossa investigação e de que
elementos cada coisa pode ser criada e como tudo se realiza sem a intervenção
dos deuses.5
4
De rerum natura I, 149 – 150.
5
De rerum natura I, 155 – 158.
76
Nestes versos Lucrécio sintetiza todo o projeto filosófico a se constituir
através do poema. Para os epicuristas admitir a criação a partir da intervenção de
forças exteriores ao mundo seria o mesmo que admitir uma criação a partir do nada.
Buscar em uma exterioridade as “causas” que engendram o mundo significa nada
explicar. Admitir a intervenção das forças divinas como uma explicação plausível
significa, em última análise, renunciar a uma explicação filosófica e naturalista para
capitular ao impulso religioso, o que em nada difere na admissão de que todas as
coisas possam ter surgido a partir de um nada.
De modo inverso, assim como tudo não pode ser criado a partir do nada, o
que existe não pode ser reduzido a nada.7 Admitir o contrário dessa afirmação seria
propor que qualquer coisa existente pudesse ser aniquilada subitamente diante de
nossa vista. A observação da natureza torna evidente uma outra proposição: tudo o
que existe desfaz-se através da corrupção, ou seja, do desagregamento de seus
elementos. Esses elementos são os corpos simples, partículas eternas que subjazem à
fenomenalidade e que, através dos seus movimentos (choques e composições), dão
forma às transformações naturais. Nos versos seguintes Lucrécio procura provar a
existência destas partículas elementares8. São enumerados fenômenos que nos são
perceptíveis mas dos quais não podemos ter uma apreensão visível, tais como os
6
De rerum natura I, 199 – 207.
7
De rerum natura I, 215 – 216.
77
ventos, o calor, o frio. Notadamente é a natureza material de todas as coisas que as
torna perceptíveis, mesmo que não possamos captá-las visualmente. É da natureza da
matéria impressionar os sentidos9.
São estes os primeiros passos dados por Lucrécio para estabelecer a natureza
da matéria. A matéria percebida, a despeito de seu movimento perpétuo de geração e
corrupção, é composta por partículas indestrutíveis, eternas e invisíveis. Mas para que
esse fluxo contínuo de vir-a-ser – composição e decomposição – seja efetivamente
inteligível, torna-se necessário pensar a existência do vazio. É através da noção de
vazio, como bem já notamos em nosso estudo sobre Demócrito, que as noções de
multiplicidade e movimento, solidárias uma em relação à outra, tornar-se-ão
plausíveis.
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No entanto, nem toda as coisas são, por natureza, plenas de matéria: o vazio
existe nas coisas.10
8
De rerum natura I, 265 – 328.
9
De rerum natura I, 298 – 304.
10
De rerum natura I, 329 – 330.
11
De rerum natura I, 336 – 338.
12
De rerum natura, I, 370 – 383. Ver também Epicuro Carta a Heródoto § 40.
78
c) Logo, é preciso admitir a existência do vazio.
13
Em Aristóteles encontramos uma argumentação favorável ao movimento no interior de um “espaço
pleno”, no qual o tema do movimento dos peixes é retomado: Física 214 7 a-b.
14
De rerum natura I, 346 – 369.
15
O desenvolvimento do argumento relativo às diferenças de densidade remonta a Demócrito. Ver
Aristóteles, De caelo, 309 a; 310 a.
79
A insistência com que são dispostos os argumentos empíricos na
determinação das realidades fundamentais da natureza revela o distanciamento
instaurado entre, de um lado, Leucipo e Demócrito e, de outro lado, os epicuristas.
Estes últimos já não se limitam ao argumento dos primeiros atomistas que privilegia a
racionalidade pura dos eleatas. Os epicuristas não se restringem à máxima eleata que
afirma a identidade entre ser e pensar, máxima da qual os atomistas se apropriaram
oportunamente para afirmar que o não-ser, em alguma medida, é (como espaço).
Como podemos inferir deste particular, os epicuristas não admitem, tout court, a
identidade entre ser e pensamento; não, ao menos, tal como o fizeram os abderianos.
Mas, para continuar com o que dizia, toda natureza é constituída por duas coisas:
existem os corpos e existe o vazio no qual os corpos tomam seu lugar e no qual
se movem em todas as direções.16
16
De rerum natura I, 418 – 421.
80
(eventa), ou seja, atributos que, estando ou não presente nos corpos, não lhes
modifica a natureza. Exemplos desta categoria seriam a pobreza, a riqueza, a paz, a
guerra17.
17
De rerum natura I, 449 - 458. Em Epicuro há notadamente um desenvolvimento mais amplo. Ver,
Carta a Heródoto, 40; 68 - 73.
18
De rerum natura I, 459 - 463.
19
Ver particularmente De rerum natura I, 464 - 470.
20
Cf. Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, pág. 43.
81
de que haja elementos indestrutíveis. Ao retomar a argumentação sobre a eternidade
daquilo que resiste às transformações, Lucrécio tem como objetivo mostrar que esta
noção, longe de opor-se à preeminência do papel desempenhado pela observação na
compreensão do funcionamento das coisas, é decisiva para que se possa indicar a
existência de uma natureza.21
Epicuro e Lucrecio, manterão fidelidade ao princípio de que uma coisa não pode “ser
e não ser”, ou seja: identificando o ser à matéria e o não ser ao vazio, os atomistas
estabelecem uma noção de totalidade que comporta dois princípios que se excluem
mutuamente. Ambos coexistem em alguma medida, embora não se possa afirmar que
o estatuto desse existir possua o mesmo significado. Desse modo, aquilo que é da
ordem da matéria não pode conter vazio e, inversamente aquilo que é da ordem do
vazio exclui toda materialidade.
A matéria em seu estado fundamental deve ser definida de tal modo a vetar
qualquer alternativa de divisibilidade, o que exclui a possibilidade de um vazio
21
De rerum natura I, 497 - 502.
22
De rerum natura, I, 503 - 506; 510).
82
intersticial agregado em sua intimidade. Já os processos de produção e
degenerescência podem ser explicados a partir dos movimentos de composição e
decomposição. Os átomos, ao se reunirem para a formação de um composto, acabam
necessariamente por encerrar espaços vazios nessa nova estrutura, razão pela qual
mesmo sendo eterna a matéria – isto é, reduzida em sua intimidade a partículas
indecomponíveis – o produto de suas combinações é perecível.
Quanto menos cerrada for uma determinada estrutura, quanto maior o vazio
nela contido, maior será sua precariedade na sucessão do tempo, mais ela estará
vulnerável a um rápido desagregamento. Em sentido inverso, na medida em que
alguma materialidade deve subsistir eternamente aos fenômenos, sua definição deve
sublinhar marcadamente o caráter dessa unidade. A matéria deve ser maciça ou
indestrutível.
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Resta saber se, na medida em que possui uma forma qualquer (cúbica,
esférica, triangular, etc.) o átomo perde seu caráter de estrutura simples, fundadora.
Ao ser concebido como dotado de uma figura qualquer não ganha o átomo partes
distribuídas espacialmente?
23
Conche, M. Lucrèce et l’experiénce, pág. 44.
83
São, por conseguinte, os corpos elementares de uma simplicidade impenetrável,
ligados estreitamente entre si através de partículas mínimas; não são formados
através de uma simples reunião de partes mas, ao contrário, valem-se de uma
eterna simplicidade que a natureza não permite suprimir nem diminuir,
reservando-os como sementes das coisas.24
De certo modo esse todo dos epicuristas não pode ser senão esboçado. Ele se
mantém como instância derradeira, mas jamais pode ultrapassar o status de um devir.
Se o todo não possui exterioridade, ele de outra parte, jamais pode ser completado:
trata-se de um fluído, um fluxo perpétuo que jamais se detém e que está em processo
de permanente de atualização. Esta noção, para os epicuristas não indica uma
24
De rerum natura I, 609 - 614.
25
Ao contrário dos estóicos, que distinguiam o Todo (to pan) do Universo (to olon), os epicuristas
utilizavam indistintamente os dois vocábulos. Cf. Duvernoy, J-F. O epicurismo e sua tradição antiga,
nota da página 33.
84
instancia unificadora, superior à soma de suas partes. Um todo superior à soma de
suas partes seria já uma exterioridade em relação às partes elas mesmas o que,
conforme já vimos, é categoricamente recusado pelos epicuristas26.
Epicuro faz duas proposições acerca desse todo: a) em primeiro lugar ele é
composto por átomos e vazio27 e; b) o todo é infinito28. Lucrécio retoma a
argumentação a respeito das noções de vazio e matéria já ao fim do livro I do De
rerum natura29, mas o faz de forma diferenciada: ele estabelece a impossibilidade de
se pensar um espaço finito, cuja fronteira funcionasse como limite de um interior em
relação ao exterior; o problema apresentado por Lucrécio seria da seguinte ordem:
qual seria a natureza desse exterior que envolve o cosmo, senão aquela mesma do
vazio postulado pela doutrina atomista?30
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26
Nos versos 520 – 521 do canto I Lucrécio deixa implícita uma certa idéia de Todo ao afirmar que o
estado da totalidade das coisas (omnia) é intermediário entre o pleno e o vazio.
27
Carta a Heródoto, § 39.
28
Carta a Heródoto, § 41.
29
De rerum natura I, 950 - 1050.
30
Cf. Duvernoy, J-F. O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 35.
31
De rerum natura I, 1015 - 1050.
85
finita contida em um espaço infinito acarretaria uma dispersão total cuja implicação
seria a impossibilidade de constituição dos mundos.
Duvernoy estabelece uma distinção entre estes dois infinitos simultâneos
(vazio, matéria) subjacentes ao todo atomista: infinidade (geométrica) do espaço e
infinidade (aritmética) dos elementos materiais, respectivamente. Vale dizer, em
outras palavras, que o estatuto filosófico destes dois infinitos não é o mesmo. A
evidência racional de um espaço infinito (geométrico) antecede a infinidade
(aritmética) do número de átomos32.
32
Cf. Duvernoy. J-F. O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 36.,: "É porque o vazio é
necessariamente infinito que nele se encontra uma infinidade numérica dos entes (átomos, compostos,
mundos). Já que ocorre que existe alguma coisa, a quantidade-número dessa coisa só pode ser
infinita”.
33
Wolff, F. “Dois destinos possíveis da ontologia: a via categorial e a via física”, pág. 209.
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negação ou contrário do vazio; em outro sentido, o átomo é a fronteira onde a
divisibilidade é interrompida. É por suas qualidades (forma, grandeza e peso), aquilo
que o caracteriza como matéria, que o átomo distingui-se do ponto geométrico.
34
Cf. Duvernoy, O epicurismo e sua tradição antiga, pág. 39.
35
Duernoy, J. F. O epicurismo e sua tradição antiga., pág. 28.
87
vista oferecer a resposta mais justa em relação àquilo que a realidade empírica
permite determinar. As formas dos átomos, ainda que inumeráveis, devem variar de
maneira finita36. A necessidade de se reconhecer limites à variação da forma dos
átomos advém da constatação de duas evidências: a) os átomos são imperceptíveis;
assim, é preciso recusar que as formas dos átomos variem infinitamente já que uma
variação infinita de formas abriria o precedente para a existência de átomos de
quaisquer tamanhos, incluindo aqueles que pudessem ser percebidos pelos sentidos;
b) de outra parte, se as formas dos átomos variassem segundo uma ordem infinita, as
sensações, de modo análogo, teriam de variar infinitamente, o que significaria que a
própria possibilidade de se perceber algo seria da ordem do impossível37.
36
De rerum natura II, 478 – 480. Confrontar com Epicuro, Carta a Heródoto, § 42.
37
De rerum natura II, 496 – 521.
88