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Título: Pelo Prazer de Amar

Autora: Emma Goldrick.


Dados da Edição: Editora Nova Cultural,
São Paulo, 1986.
Título Original: The road.
Género: Romance.
Classificação: Literatura Inglesa, Século
XX.
Digitalização: Dores Cunha.
Correcção: Deise Fernandes.
Estado da Obra:
Numeração de Página: Rodapé.
Esta obra foi digitalizada sem fins
comerciais e destinada unicamente à
leitura de pessoas portadoras de deficiência
visual. Por força da lei de direitos de autor,
este ficheiro não pode ser distribuído para
outros fins, no todo ou em parte, ainda que
gratuitamente.
O amor poderia florescer em meio à
mentira e à traição?
Emma Goldrick

JULIA 395
11
Kate e Bruce abandonaram-se
cegamente à paixão que os uniu desde o
primeiro olhar. Ávidos por saciar a
necessidade de estarem juntos, levaram
adiante a loucura daquele romance, como
se a vida fosse uma aventura feita só de
prazer.
Casaram-se e viveram noites
alucinantes de amor e entrega, silenciando
os protestos do bom senso. Às vezes o
remorso perturbava Kate. Era odioso
mentir para Bruce, amá-lo enquanto
planejava destruí-lo.
Emma Goldrick
Leitura — a maneira mais econômica de
cultura, lazer e diversão.
Copyright: Emma Goldrick
Título original: The Road
Publicado originalmente em 1984 pela
Mills & Boon Ltd. Londres, Inglaterra
Tradução: Cris Borba
Copyright para a língua portuguesa:
1987
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Av. Brigadeiro Faria Lima, 2000 — 3. —
— ?andar
CEP 01452 — São Paulo — SP — Brasil
Esta obra foi composta na Linoart Ltda.
e impressa na Divisão Gráfica da Editora
Abril S. A.
Foto da capa: RJB
CAPÍTULO I

Lá do alto ele tinha uma boa visão


enquanto o helicóptero se dirigia para o sul
de Boston. "Minha estrada", pensou,
orgulhoso. "Duzentos e trinta ecinco
quilômetros de estrada. Não, diabos!.
Duzentos e trinta e dois!"
— Mas agora eu pego essa bruxa!
— Vamos ver alguma bruxa, pai? Uma
bruxa de verdade? — perguntou a
garotinha em seu colo, animada.
— Sim, uma bruxa velha de verdade! —
Sorriu. Voltando a olhar pela janela, a
irritação estampou-se em seu rosto. Eram
duzentos e trinta e dois quilômetros de
estrada, formando um círculo de oito pistas
em torno de Boston, indo de New
Hampshire a Cape Cod. Só faltavam
aqueles três quilômetros para completar o
círculo. Ali ficava a fazenda com suas vacas
e plantações de milho e feno. Só três
míseros quilômetros! "Mas agora ela vai
ver! ", ele pensou, apalpando a pasta que
parecia estar inchada com o relatório que
carregava.
— Nunca vi nenhuma bruxa! — a
menina disse, alegre.
— Pois hoje vai ver. E vamos pegá-la
pelo rabo, gatinha — disse, rindo. — Oba!
Uma bruxa com rabo e tudo!
— A menina pulava, feliz, no banco. Ele
a observou com prazer. "Ela tem seis
anos", pensou. "Seis anos e quase não a
conheço. Por que usa cabelos tão curtos e
só se veste com macacão e camiseta?" A
sra. Driscoll dizia que esta era a melhor
maneirade enfrentar o calor. Mas não o
convencia. Havia qualquer coisa estranha
no modo como sua filha estava sendo
educada. Ele passara os últimos cinco anos
viajando pelo mundo todo, ampliando os
serviços de sua construtora, enquanto
Mattie crescia na casa dos Driscoll. "Falta
algo a esta menina. Parece tão formal, tão
presa! É a primeira vez que a vejo rir
desde que cheguei."
— O helicóptero inclinou-se para a
esquerda. Aproximavam-se de um
descampado dentro da própria fazenda.
Sobrevoaram a casa-sede, branca como
todas as casas de fazenda da Nova
Inglaterra. Uma trilha descia pela colina,
da casa até a estrada rural. No meio da
trilha havia um tronco enorme. Uma
mulher estava sentada sobre ele. Cobria os
olhos com a mão, protegendo-os do sol
forte de agosto, enquanto acompanhava o
movimento do helicóptero.
— O aparelho pousou, fazendo voar as
plantas secas a seu redor. Ele abriu a porta
e desceu, voltando-se para pegar a garota.
Ela sorriu e pulou. Enquanto as hélices
diminuíam a velocidade, ele se afastou,
abaixado, com Mattie em uma das mãos e
a valise na outra.
— Mattie o fez parar, observando,
encantada, as hélices que ainda giravam.
— O senhor veio em grande estilo,
hoje, sr. Francis!
— A voz atrás dele era firme. Tinha um
torn grave e envolvente. Ele se virou.
— Oh, desculpe! O senhor não é. Aonde
está o sr. Francis? — ela perguntou.
— Está no hospital, com uma úlcera
supurada — respondeu, áspero.
— Precisava amedrontar um pouco
aquela mulherzinha antes de conversarem.
Ela não devia ter mais do que um metro e
cinqüenta. O cabelo cor de mel caía-lhe
sobre as costas em duas tranças largas. Os
olhos... seriam cinzentos? Verdes, talvez. O
rosto redondo, com o nariz cheio de
sardas, era bonito, mesmo sem
maquilagem. Sob a blusa larga e a saia
franzida podia-se adivinhar um corpo bem-
feito. Quantos anos teria? Vinte, vinte e
cinco? com certeza tinha se casado muito
nova!
— Sou Latimore. Bruce Latimore —
disse, apertando a pequena mão da moça.
— Sou a sra. Chase. Mary Chase — ela
respondeu. — O sr. Francis está mesmo
doente? Que pena! Já faz quase três anos
— que negocio com ele. E a esposa?
Como os filhos estão reagindo à doença do
pai? — perguntou, parecendo realmente
preocupada.
— Pelo visto, a senhora conhece bem o
sr. Francis! — ele comentou, franzindo a
testa.
— "Então era isso que andava
acontecendo! Muita conversa fiada, só para
manter o Francis bonzinho! ", pensou.
— Claro que sim — ela respondeu,
irritada. — Ele é um homem correto, muito
considerado por aqui, se quer saber. O
senhor deve ter sobrecarregado o pobre
homem de serviço, para lhe causar uma
úlcera dessas! — Jogou as trancas para
trás e começou a subir a colina, fazendo
sinal para que ele a seguisse.
— Para sua informação, sra. Chase, o
sr. Francis cuidava apenas do seu caso nos
últimos dois anos. Era o seu único
trabalho!
— Logo chegaram ao tronco em que ela
esteve sentada, esperando.
— O caso não é só meu, sr. Latimore.
Olhe este tronco
— disse, apontando-o. — A árvore tinha
duzentos e vinte e cinco anos quando um
raio a derrubou. Era um marco histórico de
Eastboro, nossa Árvore da Liberdade. E
está vendo aquelas ruínas de pedra logo
abaixo? A cidade se desenvolveu ali, até
construírem a Via Postal, por volta de
1795. Foi então que os moradores se
mudaram. Este é um lugar cheio de
tradição e história, sr. Latimore. Já tinha
pensado nisso?
— Realmente não sei muita coisa sobre
a região. Minha família só se estabeleceu
aqui por volta de 1919. Não estou
pretendendo muito, sra. Chase. Quero
apenas construir minha estrada —
respondeu, seco.
— Durante a conversa, Mattie ficava
escondida atrás das pernas do pai, mas
agora saía de mansinho, olhando a mulher
à sua frente com muita curiosidade.
— Você não parece uma bruxa. Nem
um pouquinho — disse, com aquela
sinceridade infantil que faz os adultos
corarem de vergonha. Recebeu do pai uma
sacudidela no braço.
— Ah, então é esse o problema! —
Mary exclamou. — Seu pai lhe disse que eu
era uma bruxa? E você é. um menininho
bonito! Que olhos lindos você tem! — Mary
continuou, ajoelhando-se ao lado da
garota.
— Não sou menino coisa nenhuma! —
Mattie protestou.
— Pois não é mesmo. Agora estou
vendo bem. É uma menina. Que sorte a
sua! — comentou.
— Ouviu o que ela disse, papai? Mas
por que diz que é sorte? — perguntou a
Mary.
— Por quê? Por uma porção de coisas.
É uma grande vantagem ser mulher, sabia?
— Não, não sabia. Lá na casa dos
Driscoll só tem meninos maiores do que
eu. Vivem me dizendo coisas ruins e até
me batem quando ninguém está olhando!
— Viu só? Isso é uma prova. Eles têm é
inveja de você. Repare bem: somos mais
bonitas que seu pai, não é?
— É. somos. Nós duas? — a menina
perguntou, cheia de dúvidas.
— Nós duas. E nem precisamos nos
barbear todo dia como seu pai. Ou você
gostaria de ter barba?
— Eu não! Deve pinicar. Minha mãe
também era mulher.
— Mais uma prova. Ser mãe é a melhor
coisa do mundo, e só as mulheres podem
ser mães. Venha. Vamos lá em casa para
comer biscoitos e tomar leite. Você quer?
— Mary convidou.
— Claro que eu quero. Papai também
pode ir?
— Se ele quiser, pode.
— "Oh, meu Deus! ", ele pensou,
seguindo as duas até a casa. "Em menos
de cinco minutos essa mulher tomou conta
da situação. E o pior é que já me roubou a
filha . Espertinha! E eu que pensava
encontrar uma caipirona! Não devia ter
vindo direto da Venezuela para resolver
este caso. Precisava ter dormido pelo
menos uma noite. Também não tinha nada
que trazer Mattie comigo. Já perdi dois
pontos. O que está acontecendo com o
grande empresário? "
— As duas iam à sua frente
conversando como velhas amigas. Mattie
saltitava, segurando a mão de Mary, e ria
muito. Ele observava aquela mulher sem
compreender direito o que o incomodava.
Tinha quadris bonitos e pernas bem
torneadas. Sobre as costas retas desciam
aquelas tranças estranhas, que chegavam
quase até a cintura. E Mattie parecia outra,
desde que desceram do helicóptero. Como?
"Pense, homem, pense!"
— Quando as duas subiram os degraus
da varanda que rodeava a casa, uma
jovem surgiu à porta.
— Becky, temos visitas. Ponha água no
fogo, por favor
— Mary pediu.
— Já estou indo, Ma — a garota
respondeu, entrando.
— Todos a seguiram.
— As contas dele se embaralharam: a
garota que apareceu devia ter uns catorze
ou quinze anos; os cabelos eram escuros e
cacheados; os olhos negros e a pele um
pouco mais escura do que a da... mãe? E,
fosse qual fosse a idade da garota, ela já
estava uns três dedos mais alta. do que a
mãe. — — ?Mary Chase teria, então, trinta
e cinco? Quarenta? Impossível! Parecia
nova. Não, melhor parar de pensar antes
de ficar maluco.
— Mary adorava conhecer as pessoas,
observando como reagiam diante-de
situações inesperadas. E era com isso que
estava se divertindo agora. Ele viera pronto
para arrasá-la com sua autoridade
masculina, mas ficara totalmente
desnorteado vendo todas as atenções
voltadas para a garotinha. E Becky acabara
de lhe pregar outra peça. "Bem, ele ainda
vai ter que engolir mais um ou dois sapos
antes de ir embora! ", ela pensou.
— A mobília da sala era confortável, e
sólida o bastante para agüentar homens
grandes e fortes como seu marido, o
Coronel. Não deixava de ser engraçado que
continuasse a pensar nele como "o
Coronel", cinco anos depois de sua morte.
Era um homem grande como esse que
agora ocupava a cadeira favorita do
falecido.
— O senhor aceita um café, sr.
Latimore? Mattie, quer ir ajudar Becky na
cozinha?
— A menina pulou do sofá e correu
para onde Mary apontou.
— Que amor de menina, sr. Latimore —
Mary comentou, quando ela saiu.
— Quer me chamar de Bruce, por
favor? É assim que meus amigos me
chamam.
— Interessante — ela respondeu com
frieza.
— A senhora também tem uma filha
muito bonita.
— Rebeca? Ela é mesmo um amor.
Quase uma cópia do meu marido. Ele era
alto e tinha cabelos pretos. Ela está com
quinze anos agora. O Coronel. teria muito
orgulho dela se estivesse vivo.
— O Coronel?
— Meu marido. O nome dele era Henry,
mas nós o chamávamos de Coronel. Era
oficial reformado do Exército.
— Eu não sabia. Pensei que fosse
fazendeiro.
—9
— Também era. Comprou estas terras
quando se aposentou. Conseguiu
transformá-las numa fazenda experimental
modelo. Gostou daqui, sr. Latimore?
— Sim, a fazenda é muito bonita... Será
que podíamos tratar de negócios, sra.
Chase?
— Quando quiser. Mas o café já vem
chegando e é uma pena deixá-lo esfriar,
não acha?
— Becky acabava de entrar com um
carrinho com café, leite e biscoitos. Mattie
vinha atrás, carregando as xícaras. Mary
serviu café com leite para as garotas e café
para Latimore e ela. Mattie a admirava,
surpreendida.
— Papai, Becky disse que ela ali não é
velha. E que nem tem vassoura que voa.
Não acho que possa ser uma bruxa velha.
— Becky, tentando permanecer séria,
comentou:
— Não. Juro que Ma não é uma bruxa
velha. Na verdade, ela só tem vinte e um
anos.
— Bruce sentiu-se atacado por todos os
lados e falou rápido, para impedir que a
filha continuasse:
— Depois a gente fala sobre isso,
Mattie. Desculpe, sra. Chase — resmungou,
vermelho. — Acho que eu estava pensando
alto no helicóptero e... ela não entendeu
bem.
— Não se preocupe. Não estou
ofendida, senhor... Latimore. Todas as
mulheres têm um pouco de bruxa dentro
de si.
— Bem, já que não se ofendeu, talvez
possa lhe fazer uma pergunta. Tem mesmo
vinte e um anos?
— É uma brincadeira de família. Jurei
que nunca passaria dos vinte e um — ela
explicou.
— Mas já comemoramos um porção de
aniversários de vinte e um, não é, Ma? —
Becky interrompeu, rindo.
— Mattie, ainda cheia de dúvidas,
voltou à carga:
— Ela também não tem rabo, pai.
Como é que vamos pegar ela pelo rabo?
Acho que você não sabe de nada.
— Acho que não, mesmo — ele disse e
desconversou. — Os biscoitos estão uma
delícia. São de alguma confeitaria daqui de
perto?
— Não, é Ma quem faz os biscoitos, o
pão e muito mais coisas. Ela sabe fazer de
tudo! — Becky informou.
— A própria Mulher Maravilha! — Mary
riu. — Não se deixe levar pela conversa de
Becky, sr. Latimore. Faço o que qualquer
mulher de fazenda faz. É só uma questão
de prática.
— 10
— Agora, Becky, o que acha de levar
Mattie para um passeio? Aposto que ela
nunca viu de perto vacas, porcos ou
galinhas.
— Becky pegou Mattie pela mão e as
duas saíram.
— Incrível! Ela não reclamou nenhuma
vez! — Bruce comentou, admirado.
— Mary tinha descalçado as sandálias e
sentado sobre os pés.
— Becky é muito obediente. Mas não é
só por minha causa. O Coronel era fanático
por disciplina. Mas ela é uma garota
madura e doce, tem uma conversa
inteligente e se preocupa muito comigo.
Além de tudo, tem iniciativa no trabalho.
Nós nos damos muito bem.
— Coisa rara, na idade dela. Mas agora.
— ele disse, abrindo a valise.
— Antes de tratarmos de negócios,
posso fazer uma pergunta pessoal? — ela
interrompeu.
— Ele parou com o zíper na metade do
caminho, olhando para Mary com
curiosidade. Concordou com a cabeça.
— Por que sua filha não sabe que é
uma garota?
— A pergunta deixou-o pasmado. Não
era o assunto que esperava e precisou
parar e pensar. Na verdade, a mesma
questão o perturbara no helicóptero. "Por
que minha filha não sabe que é uma
garota? De quem é a culpa? "
— Eu. não estou entendendo —
gaguejou. — Bem, ela sabe que não é um
garoto, se é disso que a senhora está
falando.
— Não, não é isso, sr. Latimore. Ela
não sabe o lado positivo de ser. mulher.
Não conhece os segredinhos que as
garotas conhecem e que os garotos nunca
descobrem. Por que ela não sabe nada
disso?
— Não sei do que está falando — ele se
defendeu. — Mattie perdeu a mãe quando
tinha um ano. Eu viajo sempre e ela fica
com uma família, uma família muito
recomendada, por sinal, e... Ora! Não sei,
mas acho que ela precisa de uma mãe.
— Acho que tem razão — Mary disse,
recostando-se na cadeira com o último
biscoito de chocolate na mão.
— A senhora está se candidatando ao
posto? — ele perguntou, com mordacidade.
— Não, senhor. Tenho muito com que
me ocupar.
— Mary achou que já tinha atacado
muito e deixou passar aquela ofensa.
Sorriu para ele com um pouco mais de
suavidade. Bruce acabava de tirar da pasta
um documento de quase quinhentas
páginas.
— 11
— Aqui está o documento que
esperávamos — disse. — "Estudo do Meio
Ambiente para a Auto-estrada 695."
— É bem grandinho. Foi isso que o
senhor levou nove meses preparando?
— Bruce passou-lhe o documento. Era
tão pesado que ela quase o deixou cair
sobre a louça da mesinha.
— Foi sim, senhora — respondeu,
irritado. Mas resolveu se controlar. —
Como a senhora deve se lembrar, o
Tribunal Superior de Justiça mandou parar
a construção da estrada porque não havia
um estudo desse gênero sobre a fazenda
Somerfield. O fato de a senhora ter
mandado prender meus pesquisadores por
invasão de terra também não ajudou
muito. Mas agora está pronto. De acordo
com as instruções do juiz, seu advogado
recebeu uma cópia, duas outras foram
apresentadas à Corte para estudos, e
teremos uma audiência depois de amanhã.
Por certo a senhora não dá atenção a
detalhes, é claro. Espero poder começar o
trabalho já na segunda-feira.
— "Mas que porco chauvinista! ", ela
pensou. "Acha que só porque sou mulher
não tenho capacidade para entender
disso!"
— Logo vi que o senhor está com
pressa — riu. — Todo seu equipamento
pesado chegou aqui às seis da manhã,
hoje. Não foi nada agradável. Vai nos
avisar antes de derrubar a casa, pelo
menos?
— Parecia que apenas folheava as
páginas do enorme relatório, mas estava
atenta ao índice.
— com certeza — ele respondeu,
confiante.
— Mary percebeu que Bruce falava
como um ator. Reforçava a voz aqui e ali,
fazia pausas de efeito. com algum esforço,
conteve o riso. com o cigarro aceso na
mão, ele olhava em volta, agitado. "Pode
ser importantíssimo", ela pensou, irônica,
"mas também se perde."
— Desculpe. Mas não acho nenhum
cinzeiro. Sentindo que a sala ficava cada
vez mais quente, ele tentavaafrouxar o nó
da gravata, segurando o cigarro como se
este tivesse se transformado numa
cascavel.
— Não temos nenhum — ela informou,
com calma. — Ninguém aqui fuma.
— Deixou que ele padecesse um pouco
mais, até estar prestes a apagar o cigarro
na própria mão. Então, estendeu-lhe um
pratinho vazio, voltando a folhear o
documento, com calma.
— 12
— Já mandou uma cópia ao meu
advogado? — perguntou. O dr. Momson?
Sim, já mandamos. Sujeito engraçado,
aquele.
— Engraçado? Se o senhor dissesse
"diferente", eu concordaria — ela disse,
ainda lendo o relatório. — Não deve se
esquecer de que o dr. Momson está com
oitenta e dois anos.
— Não compreendo seu advogado —
ele comentou. — Momson parece incapaz
de defender um cliente até em multa de
trânsito, mas, contra nós, apresentou
argumentos legais como nunca tinha visto
antes!
— Ele não tem o mesmo vigor de um
jovem, é verdade. Sou sua única cliente,
no momento. Aposentou-se há uns dez
anos e só concordou em me ajudar por ser
muito amigo do Coronel.
— O Coronel?. Ah, sim. Seu marido.
— Sinto muita falta dele, sr. Latimore.
Fomos casados por pouco tempo, mas
sinto muita falta dele. O senhor tem sorte.
Se o Coronel estivesse aqui, enfrentaria
seus tratores com um tanque de guerra,
sem dúvida. Tinha pavio curto, como se
diz.
— Devia cuidar de tudo com mão de
ferro.
— Claro que sim — ela disse,
emocionando-se. — Cada um de nós tinha
um papel definido. O lema dele era amor,
respeito e obediência. Era.
— Mary não conseguiu conter as
lágrimas. Ele se debruçou por cima da
mesa, oferecendo um lenço. Ela enxugou
as lágrimas, observando que não lhe
faltava diplomacia.
— É sempre assim — ela informou, —
Sempre choro. Sou muito sensível. O
senhor deve conhecer o tipo. com o
Coronel era amor, respeito e obediência, e
eu adorei cada minuto que estive com ele.
Cada minuto!
— Tenho inveja desse homem — Bruce
falou.
— Mary percebeu sua sinceridade e
agradeceu. Fechou o relatório e o colocou
sobre a mesa.
— É grande demais. E o senhor não
espera que eu conpreenda tudo, não é? —
disse, rindo.
— Claro que não — ele riu, também. —
Está escrito em linguagem técnica, para o
juiz. Mas, acredite: é um relatório profundo
e completo.
— Mary achou-o confiante demais.
Recostando-se outra vez, pôs-se a
observá-lo. Era alto, forte. Não, não era
gordo; ao contrário, nada sobrava. Havia
uma certa elegância em seus movimentos.
Rosto másculo, lábios que marcavam uma
boca
— 15
— firme, sorriso fantástico. O nariz
seguia o padrão romano. Os olhos eram
escuros, as sobrancelhas grossas.
Devastador: esta era uma boa palavra para
defini-lo. Qual seria a posição de sua
firma? Latimore Construction Corporation!
Tentando disfarçar um arrepio, Mary disse:
— Acho que vou ter que acreditar no
senhor. Já estudou as alternativas que
propusemos?
— Alternativas? Não, acho que não. Até
que o sr. Francis fosse parar no hospital,
eu só lia os relatórios dele; não fiquei a par
desse caso. Talvez não seja preciso.
Quando a Justiça nos der ganho de causa,
vamos terminar esta estrada em menos de
quatro semanas.
— E arruinar uma das melhores
fazendas experimentais da região — ela
completou, ácida.
— Não tinha pensado nisso — ele
admitiu, baixando a cabeça. — Mas a
estrada vai beneficiar a comunidade, a
senhora sabe, e por isso o Estado
promoverá a desapropriação. Qual é o seu
problema, na verdade?
— Ora, não há problemas — ela
ironizou. — Sua estrada vai rasgar nossa
fazenda pelo meio, estragando o melhor
pedaço de terra que temos e separando as
partes que sobrarem. O pior é que
precisaremos andar uns dez quilômetros
para alcançar o retorno que nos permite
chegar ao outro lado. E já pensou como o
barulho vai, perturbar as vacas? Olhe este
mapa aqui. Se o senhor desviar sua
estrada um. pouco mais para o sul, poderá
ficar com o trecho rochoso dos limites da
fazenda, deixando a área produtiva para
nós. Seria um ótimo acerto para ambas as
partes.
— Sinto muito, sra. Chase, mas acho
que é um pouco tarde. Os planos já estão
traçados pelo governo e temos que
obedecer, a senhora sabe.
— "Sim, senhor! Você e seus amigos do
governo! ", ela pensou. "Tudo se compra
com dinheiro. Cada um fica com sua parte.
Duvido que fizesse o mesmo se fosse com
um parente seu!" Cruzou os braços e fitou-
o com raiva. "Espere só. O senhor vai
receber o troco, seu Grande Coisa!" Estava
preparada para dizer-lhe umas boas,
quando Mattie e Becky entraram na sala.
Mattie correu e pegou as mãos do pai:
— Paizinho, as galinhas estão correndo
como loucas. As vacas estavam deitadas,
comendo. Tinha um bode com sino no
pescoço e...
— 14
— Bruce pegou a filha no colo e deu-lhe
um beijo e um abraço carinhoso.
— Precisamos voltar a Boston, querida.
já terminei a conversa com a sra. Chase e
acho que ela precisa retomar o trabalho da
fazenda.
— Mary levantou-se e calçou as
sandálias.
— O senhor precisa ir tão cedo, sr.
Latimore? O sr. Francis sempre ficava para
o jantar.
— Preciso — ele respondeu. — vou
jantar com uma pessoa esta noite e ainda
tenho que levar Mathilda de volta à casa
dos Driscoll.
— Ah, não, pai! Você disse que ia ficar
comigo! — a garota protestou, batendo o
pé no chão.
— Eu sei, querida, mas tinha me
esquecido do jantar com a Helena. Você
gosta da Helena.
— Não, não gosto mais! Gosto daqui.
Quero ficar com a Becky e dona Mary!
— Um barulho na cozinha atraiu a
atenção de todos. Mary sorriu, pensando
na sorte de Bruce. O ruído interrompeu a
birra da garota. A porta da cozinha se
abriu.
— Oi, Ma. A Ana quer aquela receita de
geléia — uma voz grave pediu.
— Está na gaveta de receitas, Henry.
Vem aqui um pouco. O homem que entrou
devia ter uns trinta anos. Era alto, de
— cabelos pretos e vestia um jeans
surrado e uma camisa xadrez.
— Este é meu filho Henry, sr. Latimore.
Henry, este cavalheiro é da companhia da
estrada.
— Ela se deliciava com o ar de espanto
de Bruce que, de olhos arregalados,
tentava recalcular sua idade. Os dois
homens se apertaram as mãos,
desconfiados. Henry não participava muito,
do jogo que tanto divertia Mary e Becky.
Permaneceu calado.
— Henry é o verdadeiro fazendeiro da
família — Mary explicou. — Ele e a esposa
moram na casa que fica mais abaixo.
— Indicando a menina, completou as
apresentações. — E esta é Mattie, filha do
sr. Latimore.
— Henry, que adorava crianças, sorriu
com prazer.
— Olá, Mattie. Que bom ter vindo nos
ver.
— Quero ficar na sua casa — a menina
disse, séria.
— Mas não pode. já vamos embora — o
pai respondeu.
— Foi um prazer conhecer vocês, Henry
e Becky. Até logo, sra. Chase.
— 15
— Ele saiu, puxando Mattie pela mão.
Mary acompanhou-os até a porta e esperou
que entrassem no helicóptero.
— Eles não vão voltar? — Henry
perguntou, ansioso.
— Vão, sim — Mary riu. — Talvez na
sexta ou no sábado, acho. Que homem
durão, decidido! O sr. Francis está no
hospital. Não é uma pena?
— Henry sorriu e passou o braço por
trás dos ombros de Mary.
— Você não tem jeito, Ma. Se fosse eu,
acho que preferia plantar batatas no
deserto do Saara a brigar com você. Estava
brincando de "Madrasta Má" outra vez?
— Não faço por maldade — ela riu. — O
Coronel queria que vocês ficassem com a
fazenda e eu prometi a ele que isso
aconteceria. Becky, ligue para o dr.
Momson. Diga-lhe que o estudo sobre o
meio ambiente não diz uma palavra sobreo
banhado. Ele já sabe do que se trata. Tem
uma nova lei estadual que proíbe qualquer
construção que ameace o equilíbrio
ecológico. E você, Henry, fez o que eu
pedi?
— Claro. Vasculhei tudo lá no lado
esquerdo e achei artefatos índios, como
você disse. Sabe, estou me divertindo com
isso!
— Mas não contem com os ovos antes
de a galinha botar
— Mary alertou. — O homem quer ver a
estrada construída de qualquer jeito. Faria
tudo para terminar a obra. Mas coitada da
menina! Ela conversou com você, Becky?
— Só um pouco, Ma. Ela se sente
sozinha. Adora o pai, mas quase nunca ele
pára em casa. Acho que eu também ficaria
assim se o Coronel não tivesse se casado
com você. Nós tivemos sorte, não é,
Henry?
— Isso mesmo, Becky. Tem razão —
Henry respondeu, abraçando a madrasta.
— Eu também tive sorte — Mary disse.
— Foi maravilhoso ter me casado com seu
pai.
— Começou a recolher a louça usada,
pensando no passado. Becky logo se
encarregou de terminar a tarefa. Mary
ficou observando os cabelos negros da
garota, que caíam por cima dos ombros, o
corpo de mocinha escondido pela blusa e
as calças de brim azul. Quinze anos. Mary
Kate fora morar na fazenda dois dias
depois do nascimento de Becky. Tinha
apenas doze anos, então. com a morte da
primeira esposa do Coronel, logo após o
parto, ela e a mãe foram contratadas para
cuidar da
— 16
— casa. Quatro anos depois, por um
ataque de coração roubou-lhe a mãe. Viu-a
rindo, num instante; no outro, morta.
Naquela hora difícil, afeiçoou-se ainda mais
à pequena Becky. Um ano mais tarde,
casou-se com o Coronel, um homem que
conhecia as virtudes do mundo e
respeitava a honestidade. Tinha apenas
vinte e dois anos, e cinco de casamento,
quando assistiu à vez do Coronel. Antes de
morrer, porém, ele a fez prometer uma
coisa que agora, aos vinte e sete, ainda
estava disposta a cumprir.
— Esse tal de Bruce Latimore é um
pedaço de homem!
— Becky comentou, interrompendo os
pensamentos de Mary.
— Como? Ora, Becky! Sabe que ele
parece ter aquela força interior de seu pai?
Não sei por quê, mas acho que é o tipo de
homem que tem muito a dar. Só precisa se
organizar melhor.
— Ma! Na sua idade! Que idéias andam
passando por sua cabeça? — Becky riu.
— Mary, vermelha, sentou-se.
Precisava pensar.
— 17
— CAPÍTULO II
— Ao contrário do que esperava, Bruce
não apareceu na sextafeira, mas Mary
tinha mais com que se preocupar. Na
quinta, passou o dia todo junto ao fogão,
assando biscoitos e tortas para a
quermesse da igreja. Na sexta, estudou de
manhã e, à tarde, cuidou da casa. Depois,
como em todas as terças e sextas, foi
assistir aulas em Boston.
— Naquela noite, voltou para casa
cansada e irritada com as bobagens que o
professor dissera durante a aula. Estranhou
que ainda houvesse luz acesa. Becky
esperava por ela, inquieta. Enquanto
tomavam chá, a garota falou sobre a festa
à qual fora com o irmão e a cunhada.
Depois de ouvir todos os detalhes, Mary
tomou um banho e foi para o quarto.
Deitou-se, mas não dormiu: sabia que
alguma coisa estava incomodando Becky.
Dez minutos depois, a moça entrou, sem
jeito. Mary fez sinal para que sentasse a
seu lado.
— Tudo bem, Becky? Conte de uma vez
o que houve de especial esta noite.
— Ih, Ma. Você é mesmo uma bruxa,
hein? Sabe, eu encontrei. conheci o Harold,
Ma, filho do dr. Everest.
— Ah! Então se trata da mesma velha
estória.
— Ele é simpático demais, Ma.
Dançamos quase todo o tempo. Depois
saímos um pouco.
— E daí? Ficaram olhando as estrelas?
— Mary provocou.
— 18
— Becky encostou a cabeça no ombro
da madrasta e começou a contar como foi
seu primeiro "beijo de verdade", a emoção
que sentiu. Mary ouvia, sorrindo, mesmo
quando Becky repetia algumas cenas.
— Não está zangada comigo, Ma?
— Claro que não, Becky. É natural que
uma garota da sua idade se sinta atraída
por um rapaz, que sinta o sangue
esquentar por causa dele. O jogo do sexo
garante que a raça humana continue
existindo. E, talvez, isso contribua para
fazer dele o jogo mais gostoso do mundo...
desde que os dois parceiros conheçam as
regras!
— Sem esconder seu entusiasmo, Mary
explicou à filha os detalhes do jogo, suas
regras e o efeito que tem sobre as
emoções da mulher. A conversa estendeu-
se até as duas da manhã, com mais
algumas xícaras de chá. Becky fazia muitas
perguntas e, às vezes, se divertia com as
respostas. Mas já não conseguia vencer o
sono.
— Mary ficou olhando a garota que
dormia com os lábios entreabertos e os
cabelos negros espalhados sobre o
travesseiro, como fios de seda. Depois
apagou a luz, cobriu-se e também
adormeceu. Enquanto Becky sorria,
certamente por causa de Harold, Mary, por
algum motivo sem explicação, via o rosto
de Bruce surgir em seus sonhos.
— Embora fosse sábado, dia de se
levantar mais tarde, Mary acordou às sete
da manhã, com o barulho de máquinas. Por
trás das cortinas brancas da janela de seu
quarto, viu que cinco enormes caminhões
levavam embora a escavadeira e os quatro
tratores que tinham ficado na fazenda a
semana inteira. Como uma esquadra de
guerra em retirada, sumiram pela estrada
inacabada.
— Becky ainda dormia tranqüila, cem o
travesseiro sobre a cabeça, Mary vestiu-se
e desceu para tomar café. Da pilha de
livros que deixara sobre uma cadeira da
cozinha, na noite anterior, pegou o volume
mais grosso: "Delitos", um estudo sobre os
ritos de iniciação no sistema tribal. Fez
uma careta. Era um livro maçante, que o
autor — um de seus professores, é claro
impusera aos alunos para que discutissem
pelo curso afora. Irritava-a constatar que,
na carreira universitária, muitas vezes valia
mais a importância que cada qual se dava
do que a própria competência. E ainda
faltava tanto para se formar!
— Ao tomar a segunda xícara de café,
uma pergunta a inquietava. Por que
levaram embora os tratores? Talvez o caso
do banhado
— 19
— tivesse influenciado Bruce, mas ele
não se deixaria dobrar por muito tempo. O
que estaria planejando? Era inconcebível
que desistisse da briga. Afinal, mostrava-se
decidido a terminar aquela estrada a
qualquer custo. Ainda pensando no
assunto, arrumou a louça na lavadora e
subiu para pegar a bolsa. Vinte minutos
mais tarde chegava à cidade.
— O Mustang branco tinha já catorze
anos e deu trabalho na subida do morro. O
velho motor morreu duas vezes no sinal
vermelho. Quando, enfim, conseguiu
estacionar diante do supermercado para a
compra semanal, encontrou seu advogado.
— Ele esperou que ela parasse e entrou
no carro. Estava bem elegante para uma
manhã de sábado: vestia terno cinza,
camisa azul escura e uma gravata
imaculada de tão branca. O chapéu,
também branco, quase encostava nos
óculos, e escondia os poucos fios de cabelo
branco que lhe restavam.
— Entra o segundo conspirador pela ala
direita — ele disse, com sua voz
empostada de advogado.
— Será que estou enganada, Charles.
ou você andou "comemorando" logo cedo?
— Mary perguntou.
— Um brinde, minha querida. Foi só um
brinde — ele riu. Dois azulões vieram
namorar na minha janela esta manhã.
Precisava brindar a ocasião e o conhaque
estava bem à mão.
— E daí?
— Daí a garrafa acabou e eu lancei-a
contra eles. Aqueles dois barulhentos
estavam pensando que minha janela era
um bordel! Odeio pássaros! Por falar nisso.
já deve ter ouvido dizer que seu passarinho
caiu na armadilha lá no tribunal.
— Tudo graças à sua habilidade,
Charles.
— Ela apertou o ossudo braço dele com
carinho. Charles Momson tinha sido um
homem forte, sempre disposto a pescar e
passear pela fazenda com o Coronel. O
tempo o transformara num saco de ossos.
— Ele lhe deu trabalho? Houve algum
problema? — ela perguntou.
— Devo reconhecer que este é dos mais
espertos que já vi. Também, cometi um
erro clássico. Apontei a omissão para a
Corte bem mais rápido do que seria
recomendável.
— E o que aconteceu, então?
— Nada. Mas é isso que me preocupa.
Imagine, Mary, que ele veio apertar minha
mão! Não estava zangado, quando devia
estar. Foi um golpe baixo. Depois voltou
para seu lugar e pediu
— 20
— licença ao tribunal para mandar um
pessoal inspecionar a área do banhado.
Aleguei que estranhos na fazenda podiam
perturbar as vacas, mas ele já conhecia
esse truque. Em resumo: acabou
conseguindo a permissão e acho que logo
vai aparecer por lá. Que argumento vamos
usar da próxima vez?
— Que tal aquele do cemitério, Charles?
Você tem todos os dados, não é?
— Sim, claro, Mary. Bem, é melhor
você fazer suas compras. Preciso dar uma
passada no clube e... sabe como é...
— Para ver se encontra mais
passarinhos para brindar?
— Os dois riram e o velho se despediu,
tirando o chapéu. Enquanto procurava o
sabão, pedia a carne e relia a lista para ver
se não tinha esquecido nada, Mary duelava
mentalmente com Bruce Latimore. Até na
hora de pagar a conta continuava a pensar
nele.
— Deixou o estacionamento. O carro
parecia se arrastar pela avenida principal,
mas logo ela entrou por uma rua estreita e
estacionou em frente à igreja. Era uma
construção antiga, de madeira branca. Foi
até o salão paroquial e voltou trazendo as
latas nas quais mandara os biscoitos para a
quermesse. Depois, como de hábito, abriu,
ao lado da igreja, o pesado portão de ferro
que dava acesso ao cemitério.
— O sol estava agradável e Mary
aproveitou para arrancar as ervas daninhas
entre as plantas que cercavam o túmulo do
Coronel. A placa, em mármore negro,
ainda brilhava. Só há alguns meses Mary
conseguira juntar dinheiro para mandar
fazê-la. Ao lado de uma pequena bandeira,
trocada todos os anos pela Legião dos
Veteranos de Guerra, uma inscrição dizia:
"Coronel Henry Edison Chase, Exército dos
Estados Unidos, falecido em seu
sexagésimo aniversário. Descanse em
paz".
— Depois de visitar também a sepultura
da mãe, Mary sentou-se num banco, à
sombra das árvores. Fechou os olhos para
meditar, mas logo ouviu uma voz atrás de
si.
— Não disse, pai? É. ela, sim. Fale com
ela! Mary virou-se sorrindo.
— Mattie! Que bom ver você outra vez!
Como está bonita com esse vestido!
— Atrás da garota vinha a figura alta e
imponente de seu pai, mas Mary evitou
olhá-lo. Abriu os braços para Mattie, que se
aninhou em seus braços. Mary voltou a
fechar os olhos, sentindo em seu rosto o
cabelo macio da garota. Parecia que Becky
era
— 21
— criança outra vez, que a figura
protetora do Coronel ainda permanecia
entre eles e que o mundo inteiro estava em
paz.
— E para mim, nada? — Bruce
perguntou, com sua voz grave.
— Desculpe, mas não posso pegar o
senhor no colo — ela respondeu com
frieza.
— Ele chegava num mau momento,
encontrando-a sem defesas e com a
sensibilidade à flor da pele. Mary corou e
contraiu os lábios. Seus olhos ameaçaram
encher-se de lágrimas. Pôs Mattie no chão
com cuidado, respirou fundo, tentando se
recompor, e fitou-o.
— Não esperava encontrá-lo num lugar
como este. O senhor esteve na audiência
da Corte?
— Estive, sim. E devo confessar que
seu advogado nos fez passar um certo
apuro. Mas como poderíamos saber que
havia um banhado em sua propriedade, se
nunca deixou meus homens entrarem lá?
— Foi a conselho de meu advogado —
mentiu. — Ficou zangado?
— Não, claro que não — ele riu. — Mas
quero chamar sua atenção para um
detalhe: posso ser passado para trás uma,
ou até duas vezes, mas eu vou construir
aquela estrada, sra. Chase.
— Não duvido. Mas o que o traz aqui?
— Estávamos passando e a vimos pela
grade — respondeu.
— O sorriso nos lábios de Bruce fez
Mary sentir-se como um coelhinho sendo
caçado por um gavião. Encolheu-se. Ele
riu. "Será que ele lê tudo em meu rosto? ",
ela pensou, esforçando-se para compor
uma expressão neutra.
— Bem, só estava imaginando o que o
senhor veio fazer aqui em Eastboro.
— Já alerta, sentia-se preparada para
ouvir o que quer que'ele dissesse.
— Pensei que já soubesse, sra. Chase.
As novidades costumam voar numa
cidadezinha como esta.
— Nós nos mudamos! — Mattie
interrompeu. — Não moramos mais em
Boston, dona Mary. Agora peça para ela,
papai.
— Não se apresse, princesa. Uma coisa
de cada vez, minha filha.
— Vai me pedir o quê? — Mary
perguntou.
— Nós. Mattie e eu... achamos que
passar o resto do verão no campo seria.
saudável, se é que me entende.
— 22
— Ele mandou embora a sra. Driscoll e
comprou uma casa
— para nós, perto da igreja. Vamos
morar aqui no verão, só nós dois! Mas tem
um problema, dona Mary.
— A menina parou para recuperar o
fôlego, fitando Mary com os olhos
suplicantes. Era difícil ignorar aquela
figurinha que se apoiava em seus joelhos,
mas a cabeça de Mary trabalhava em ritmo
acelerado. Ele tinha comprado uma casa e
se mudado para Eastboro! Por quê? Para
ter certeza de que a estrada seria
construída? Para cuidar pessoalmente dos
problemas que estavam atrasando a
construção? Que outra razão teria?
Enquanto ela se interrogava, sem
encontrar respostas, Bruce caminhava
entre os túmulos.
— Deve vir aqui sempre, não é? É uma
coisa que não se vê muito na cidade
grande, hoje em dia — ele comentou.
— Tento vir toda semana. Aquele
túmulo ali no canto é o de minha mãe —
ela explicou.
— Ah, faz onze anos que ela morreu! —
Voltava-se para Mary quando a placa lhe
chamou a atenção. — Pelo menos você não
ficou sozinha no mundo — prosseguiu. —
Seu avô só morreu há cinco anos.
— Meu avô?
— Foi o mesmo que receber uma
bofetada. Lá estava Bruce, ao lado do
túmulo de seu marido, pensando tratar-se
de seu avô! Na cidadezinha, todos sabiam
de seu amor pelo Coronel e nunca fizeram
um só comentário maldoso, nunca
disseram nada que a magoasse. E agora
aquele. estranho. a feria daquela maneira!
— Tentando enxergar através das
lágrimas, Mary negou a sacola e as latas e
correu para o portão. Pela primeira vez, em
três anos, chorava copiosamente pelo
Coronel. Apressou o passo, ao perceber
que Bruce vinha atrás de si.
— O que aconteceu, papai? O que você
disse para ela? Mattie perguntava,
correndo atrás dele.
— Não sei! Não sei! — disse,
alcançando Mary. Ela chegou a abaixar o
trinco, mas ele impediu que abrisse o velho
portão de ferro.
— Me deixe em paz! — pediu,
soluçando.
— O que foi que eu disse? — ele insistiu
— Eu não. Ela deu-lhe as costas e começou
a procurar um lenço na bolsa.
— Mattie veio correndo e abraçou-a
pela cintura, tentando confortá-la sem
palavras. Mary passou a mão nos cabelos
sedosos da
— 23
— menina e parou de chorar. Enxugou
as duas últimas lágrimas com o lenço e
assoou o nariz. Esforçou-se para sorrir.
— O que queriam me pedir? —
perguntou.
— Depois a gente pede — ele
respondeu. — Aquele não era seu avô?
— Não.
— Que idade tinha quando se casou?
— Ela levantou a cabeça e o encarou.
Não via nada naquele rosto, além do brilho
predador nos olhos azuis.
— Dezessete anos. E o senhor? Que
idade tinha quando se casou, sr. Latimore?
— Eu. Ah, agora entendi. Desculpe.
Pelo visto, não estou me saindo muito
bem. hoje.
— Ele não parecia envergonhado com o
fato. O que estaria querendo? Mary não
conseguia pensar com clareza, mas tentou
se concentrar. Havia muita coisa em jogo;
não era hora de deixar que as emoções
interferissem. Precisava pensar em Becky e
Henry,
— O que queriam me pedir? — repetiu.
— Encostou-se na grade de ferro.
Precisava de apoio, pois suas pernas
tremiam.
— Bruce ajudou-a a se sentar no banco
junto ao portão, comentando:
— Está tão pálida! É melhor sentar para
não cair.
— Estou bem, obrigada. Mas o que
queriam?
— Ele sentou-se ao lado dela. Mas o
banco parecia pequeno demais para os
dois. A perna de Bruce roçava a de Mary,
trazendo uma sensação que ela há muito
tinha esquecido, despertando instintos que
não queria lembrar naquele momento!
Bruce passou o braço por trás dela, sobre o
encosto do banco. Em meio a toda a
perturbação, ela não deixou de observar
que sua cabeça mal chegava ao ombro
dele. Precisaria de uma escada se quisesse
se aconchegar ali... Se quisesse? Mary
tentou não pensar mais e controlar suas
emoções. Cruzou as mãos sobre o colo e
fixou os olhos nas pedras do chão, quando
Bruce voltou a falar.
— Sobre aquele pedido. Mattie e eu já
estamos instalados na casa, mas nossa
governanta só poderá vir na próxima
quartafeira. Amanhã eu preciso pegar um
avião para a Venezuela. vou inspecionar a
construção de uma represa e estou sem
saber o que fazer com Mattie. Ela se recusa
a voltar para a casa dos Driscoll. Só fala de
Becky e dona Mary. Então eu pensei.
— Que ela poderia ficar conosco por
alguns dias.
— 24
— Bem, talvez vocês pudessem vir para
a minha casa.
— Não seria possível. Somerfield é meu
lar. Em todo o
— caso, Mattie seria bem-vinda na
fazenda. O único problema é que vou a
Boston todas as terças e sextas à noite,
para assistir aulas. Mas, se Becky não
estiver livre, posso pedir a Anna e Henry
que cuidem de Mattie. Sim, ela pode ir e
ficar o tempo que quiser.
— A menina se pós a dançar de alegria,
saltitando em volta do banco.
— Pare com isso, Mattie! Lembre-se de
onde estamos Bruce falou.
— Mattie continuou a dançar e cantar.
Mary, então, segurou-a pelo pulso e disse,
com voz firme mas carinhosa:
— Agora chega, mocinha.
— A menina parou no mesmo instante.
Admirado, Bruce perguntou:
— Como conseguiu? A sra. Driscoll
nunca pôde controlar Mattie!
— Foi o senhor mesmo quem disse, não
lembra? Sou uma bruxa. Quando vai levá-
la para a fazenda?
— Pode ser esta noite? Meu avião sai
do aeroporto de Logan à meia-noite.
— Está bem. Mas venham cedo. Lá
pelas seis. Vamos jantar juntos. O senhor,
eu, Becky e Mattie.
— Ora, ótimo. Além de babás, ainda
vou ganhar uma refeição caseira gratuita!
— Não sou bebê, papai! — Mattie
protestou.
— Claro que não, minha filha. Só de
olhar para você já se vê que tem mais de
seis anos. Gostaria de saber a idade das
outras mulheres só de olhar para elas,
também?
— Se está falando de mim, acho que
posso lhe poupar o trabalho — Mary riu. —
Já passei dos seis, também.
— Pela expressão de Bruce, era fácil
perceber que não, gostara da brincadeira.
Mary sorriu e, chegando mais perto de
Mattie, cochichou:
— Vá bem bonita para o jantar. Becky e
eu gostamos de nos arrumar no sábado à
noite. Combinado?
— Claro! É um segredo? — Mattie
perguntou.
— Isso mesmo. Segredo de mulher.
Bem, até às seis horas. Não se esqueça de
trazer seu pai.
— O que vocês estão tramando? —
Bruce perguntou.
— 25
— É conversa de mulher, e homem não
pode ouvir — Mattie respondeu.
— Antes que ele pudesse se zangar,
Mary beijou Mattie e "e afastou
rapidamente.
— Becky entusiasmou-se com a idéia
do jantar.
— Puxa, que bon! Faz tempo que não
recebemos ninguém. Será que eu... que
nós podíamos.
— Mary estava temperando o lombo e
logo adivinhou.
— Quer convidar o Harold? Pode, sim.
Será um jantar e tanto. Vá telefonar para
ele e volte logo. A salada ficará por sua
conta.
— Depois do telefonema, Becky parecia
radiante.
— Ele disse que vem. vou caprichar na
salada. Dê uma sugestão, Ma...
— Que tal uma salada Waldorf? É só
cortar a maçã em cubinhos, temperar com
limão e maionese, misturar salsão
picadinho e enfeitar com nozes. Depois
deixe na geladeira.
— Enquanto falava, Mary preparava um
molho de cogumelos, para o lombo. Faltava
apenas cortar os legumes já cozidos, dispor
as entradas nos pratos de servir e fazer o
sorvete de limão.
— Já eram quatro horas quando elas
terminaram os preparativos. Tomaram uma
xícara de café e foram descansar um pouco
na sala. Depois tomaram banho e se
vestiram.
— Diante do espelho, Mary deixou
escapar a pergunta que a preocupava.
— Por que estou fazendo tudo isso?
— Você sabe por quê, Ma! — Becky
gritou de seu quarto.
— Ah, sei, é?
— A garota apareceu na porta, ainda de
calcinha.
— Porque ele é da cidade grande e
pensa que somos um bando de caipiras. E
você quer dar-lhe uma lição. atingindo
primeiro o estômago. Você não me engana,
Ma.
— Ih, estou roubada!
— Antes você conseguia, mas estou
ficando mais esperta. Posso até lhe contar
uma coisa que nem você sabe. Quer
apostar?
— Apostar o quê?
— Aposto como você gosta muito desse
homem!
— Que idéia, Becky! — Mary riu. — Ele
não gosta de mim. Primeiro: ele acha que
eu não passo de uma mulher; segundo:
sou um obstáculo para a estrada dele.
Droga de estrada!
— 26
— Só uma mulher? Ora, Ma.
— As duas desceram às cinco e meia.
Mary estava com um vestido azul com
fendas laterais que destacavam suas
pernas. Becky usava um vestido vermelho,
bem decotado. Enquanto a garota
arrumava a mesa, Mary voltou à cozinha,
vestiu um avental comprido, despejou o
molho sobre o lombo e arranjou os
legumes em volta. Quando levava a
travessa de volta ao forno, ouviu a
campainha tocar. Pôs a panela de arroz no
fogo, tirou ligeiro o avental E foi receber os
convidados.
— Todos tinham chegado ao mesmo
tempo. Mattie parecia uma boneca, com
um vestido de organdi amarelo. O pai
estava muito elegante, com calça marrom
e paletó em ton mais claro. Harold quase
se escondia a um canto, vestindo um jeans
e camisa esporte de mangas curtas.
— Mary sabia manter uma conversa.
Era uma das qualidades que o Coronel
mais apreciava nela. Durante quase uma
hora estiveram entretidos, conversando à
vontade. Um pouco antes das sete, Becky
serviu a entrada, que ela mesma tinha
preparado. Pãezinhos quentes de queijo e
creme de camarão. Sentando-se na
cabeceira da mesa, Mary mal pôde
esconder o riso. Harold e Latimore estavam
boquiabertos, visivelmente surpresos.
Atendendo a um apelo perverso,
perguntou:
— Não esperavam por isso?
— Bem. não exatamente — Bruce
respondeu, sem jeito,
— Mas está uma delícia. Cozinha muito
bem, sra. Chase.
— Eu, não. Foi Becky quem preparou
isto. Ela é uma ótima cozinheira.
— Não sabia que você cozinhava, Becky
— comentou Harold, mais surpreso ainda.
— Ora, foi Ma quem me ensinou.
— E agora vamos trazer o prato
principal. Mattie, quer ajudar? — Mary
perguntou.
— Enquanto as meninas tiravam a
entrada, Mary arrumou o lombo em
porções individuais nos pratos. Mattie levou
a salada e Becky os legumes.
— Nossa! Pensei que fosse a vez da
sobremesa. Que cheiro delicioso! — Harold
exclamou.
— Não como tão bem desde que estive
em Paris. Onde aprendeu a cozinhar? —
Bruce perguntou.
— Mary não resistiu ao impulso de
acabar com aquela pose.
— 27
— Quer saber como uma mulher do
campo aprende a cozinhar?
— Bruce franziu a testa, intrigado, e
Mary se arrependeu.
— Desculpe. Sei que fui grosseira. Meu
marido era oficial do Exército e acreditava
que todos deviam ser treinados para
exercer suas funções, Quando ficou
decidido que eu cozinharia para a família,
ele me mandou para uma escola de
culinária, em Boston. O Coronel era um
homem muito metódico. Mas eu também
apelo para os hambúrgueres, de vez em
quando!
— Sorriu para ele e foi recompensada
com um olhar carinhoso e um sorriso
aberto. Mary deixou cair as mãos sobre o
colo. "Como ele é bonito quando sorri! ",
pensou.
— Ma, está se esquecendo da
sobremesa!
— Do outro lado da mesa, Becky
tentava atrair sua atenção. Levantando-se,
Mary se desculpou:
— Eu... eu estava pensando em outra
coisa.
— Enquanto tomavam o sorvete, Bruce
contava passagens de sua viagem à
Venezuela. Fez todos rirem muito com a
história de um macaco que invadiu o
alojamento de uma das obras, Mattie
achara tanta graça que, ao sair da mesa
com Mary para preparar o café, ainda tinha
lágrimas nos olhos. No corredor, as duas
cruzaram com Becky, que voltava da
cozinha.
— Meu pai é um homem e tanto! — a
menina disse, ao passar por ela.
— Becky não deixou por menos:
— Minha mãe também é maravilhosa!
— As meninas se olharam, como se
tivessem um segredo que Mary não
conhecia. Depois começaram a rir e cada
uma seguiu seu caminho.
— Assim que soube que Becky estava
encarregada da louça, Harold se ofereceu
para ajudar, sumindo com ela na cozinha.
Bruce, por sua vez, foi acomodar-se na
sala, na cadeira favorita do Coronel.
Comentou:
— Cadeira boa, esta. Forte. E o braço
comporta bem uma xícara de café. Não
gosto de segurar essas coisas em cima das
pernas.
— Ela concordou e riu, feliz. De repente
tudo estava tão... agradável. Era uma noite
quente de agosto e uma brisa fresca e
perfumada entrava pelas janelas abertas.
Lá estava ela, descansando erri sua velha
sala de estar, com um homem muito
— 28
— simpático, duas meninas
maravilhosas, tudo tão. gostoso. Mas o
relógio bateu nove horas e Mattie fazia
força para não bocejar. Mary chamou-a
para um banho.
— Olhando a menina que brincava,
contente, na banheira, escondendo-se sob
a espuma, pensava: "Como é magrinha.
Está precisando comer um pouco mais. e
ser amada, muito amada".
— Logo depois, Mattie estava' pronta,
com sua camisola conprida de seda branca.
Mary levou-a para o quarto que tinha
arrumado, pôs alguns livros sobre a mesa-
de-cabeceira, beijou a garota e desceu.
— Pode ir contar estória para ela dormir
— disse a Bruce. Ele pareceu surpreso com
a sugestão, mas subiu as escadas.
— Mary voltou à sala, tirou os sapatos
de saltos altos e sentou-se na poltrona.
Quando Bruce voltou, ela estava quase
dormindo, com os longos cabelos louros
quase escondendo seu rosto. Assustou-se
quando ele entrou.
— E Becky? — ele perguntou.
— Está lá fora com Harold. Gostaria de
ser jovem outra vez. Meus pés estão
doendo.
— Ê por causa dos sapatos. Não devia
usar saltos tão altos ele disse, servindo-se
de mais uma xícara de café.
— Eu sei, mas é preciso.
— Podia usar pernas de pau e também
não ia adiantar. É melhor se acostumar a
ser baixinha, querida.
— "Querida"? Não, ele devia ter
deixado escapar, um acidente, por assim
dizer. Mas soava tão bem.
— É melhor eu ir embora — ele disse.
— Já são dez horas. vou levar mais ou
menos uma hora até o aeroporto e é
preciso chegar uma hora antes do vôo.
— Que pena — ela disse, levantando-
se.
— Ainda estava um tanto sonolenta?
Não, não era bem isso. Encantada? Era
melhor pensar no assunto mais tarde.
— Foi uma noite maravilhosa! Só que
vai ser difícil continuar chamando-a de sra.
Chase — ele disse, com sua voz grave e
sonora.
— Bem. já faz tanto tempo que me
chamam de Ma. Antes me chamavam de
Mary Kate — ela disse, vermelha.
— Assim é melhor, Mary Kate.
— Quando o acompanhava até a porta,
ele, de repente, segurou-a pelos braços,
puxando-a para si.
— 29
— Nem sei como dizer o quanto
agradeço por ficar com Mattie — disse.
— Estavam tão próximos que ela podia
sentir o cheiro másculo de Bruce. Tentou
se afastar um pouco e pensar rápido.
Precisava dizer alguma coisa, logo.
— Mattie ficar comigo. não significa um
cavalo de Tróia, sr. Latimore? É isso
mesmo o que o senhor quer?
— Não, não é o que eu quero, na
verdade — ele riu. — O que eu quero agora
é beijar você.
— E foi o que fez.
— 30
— CAPÍTULO iv
— Depois que as luzes do enorme
Cadillac desapareceram na noite, Mary
permaneceu à porta por mais um tempo.
Estava confusa. De vez em quando, tocava
os lábios com a ponta dos dedos, de leve,
sem tirar os olhos da escuridão, sonhando.
Finalmente, fechou a porta. Achando que já
era tempo de voltar à realidade, acendeu
as luzes de trás para lembrar a Becky que
sua liberdade tinha limites. Só então subiu
devagar para seu quarto.
— Tinha pensado em passar creme no
rosto e escovar os cabelos. Em vez disso,
ficou sentada junto à penteadeira, com a
cabeça apoiada nas mãos. Demorou,
olhando-se no espelho. Mas'o que havia
para ver? Sardas? Se fossem sinal de
beleza, ela podia candidatar-se a Miss
Universo. Pequenas, de todas as formas,
espalhavam-se por seu nariz e faces.
Apareciam até nos ombros. Sua pele tinha
um leve torn bronzeado; o rosto, saudável,
não precisava de maquilagem. Os olhos,
vivos e verdes, se acinzentavam em dias
de chuva ou de raiva. E o cabelo era
castanhoclaro, quase louro. Não, não podia
se considerar um tipo muito atraente para
os homens! Sacudiu a cabeça e
repreendeu-se:
— Olhe-se bem, Mary Chase. Você tem
vinte e sete anos. É viúva. Tem dois filhos
adotivos. Um futuro assegurado. Teve um
marido a quem amou muito. Para que
outro homem?
— Ouviu passos rápidos na escada e
Becky apareceu na porta:
— Falando sozinha outra vez, Ma?
— 31
— Claro. Não tinha ninguém com quem
conversar. O Harold já foi, Becky?
— Já. Você tinha razão.
— Por quê?
— Ele parece um polvo! Acho que
prefiro nadar mais um pouco sozinha.
— Muito bem, menina. Faça como achar
melhor.
— Vamos à igreja amanhã?
— Como sempre, querida. Por quê?
Está muito cansada?
— Não, não se preocupe, Ma. Acho que
posso enfrentar um polvo desses umas três
vezes por dia! Agora, se fosse o tal
Latimore. bem, daí seria diferente. Precisou
lutar com ele, também?
— O que é isso, Becky?
— Tá bon. tá bom. Mas bem que seria
divertido! Becky abaixou-se, desviando-se
de um travesseiro que veio
— voando em sua direção. Foi para o
quarto; pela porta aberta. Mary escutava
sua risada.
— Ora essa! Lutar com ele! Mas talvez.
Despedindo-se do espelho, olhou mais uma
vez sua imagem refletida, sem disfarce. A
mão direita subiu devagar, desde a coxa
macia até o bico do seio, firme e farto. Mas
mesmo o toque de sua própria mão a
incomodava. trazia de volta desejos e
sensações que há muito enterrara. Parou
de se tocar, agarrou a toalha e foi tomar
uma ducha fria.
— Mary acordou bem disposta na
segunda-feira, apesar da noite
maldormida. Mattie levantou-se cedo.
Becky permaneceu na cama até mais
tarde. Às dez horas da manhã, dois
homens bateram à porta. Apresentaram-
se:
— Somos da Corporação Latimore.
Temos permissão da Corte para dar uma
olhada no tal banhado da fazenda
Somerfield. Podemos ir até lá?
— Mary saiu na varanda e apontou para
o morro atrás da casa.
— Pois não. Atrás daquele morro fica a
fonte. Se seguirem o ribeirão morro
abaixo, chegarão à área onde fica o tal
banhado. E, por favor, tenham cuidado.
Pois se caírem no tal banhado vão se
molhar de verdade.
— Não se preocupe, dona — o chefe
deles respondeu. Tivemos uma conversa
bem longa com o sr. Latimore antes de
virmos para cá. Já entendemos bem.
— 32
— Entenderam também que a ordem da
Corte só lhes permite explorar a área do
banhado e mais nenhuma outra?
— Sim, senhora. Está bem entendido.
Nada de espionagem.
— Então está bem, senhores. Não
temos mais o que falar, por enquanto. O
almoço é ao meio-dia e meia.
— Trouxemos nossas marmitas, dona.
— Almoço às doze e trinta. Ninguém
come de marmita aqui na "minha" fazenda.
— Por três dias os homens examinaram
o local palmo a palma. Apareciam cansados
e empoeirados para o almoço e saíam
sempre às cinco horas em ponto. No último
dia, trouxeram equipamento de pesquisa.
Tocada pela curiosidade, Mary convidou as
meninas para um banho. Becky recusou o
convite:
— Não, não estou com vontade de virar
sorvete. De qualquer modo, tenho que ir à
auto-escola, hoje.
— É mesmo. ]já tinha me esquecido.
Claro que para você é a coisa mais
importante do mundo. Vêm buscá-la aqui?
— Sim. vou ficar rodando por aí quase
a tarde toda. Sabe que só faltam mais três
aulas antes do meu exame?
— Ih! Então precisamos avisar os
postes para tomarem cuidado — Mary
brincou. — E você, Mattie, está aprendendo
a dirigir, também?
— Eu não. Estava aprendendo a tocar
piano, mas o professor era muito nervoso.
Ele disse que era mais fácil eu ser
carpinteira do que pianista. Não imagina
como ele era bravo! Precisava ver como
gritava comigo. Gritou até com a sra.
Driscoll! Mas duvido que tivesse gritado
com o papai.
— Quem se atreveria? Bem, Mattie, vá
buscar seu maio e vamos ver se sabe
nadar.
— Levaram dez minutos a pé para
chegar à piscina de água natural. Mattie
falou o tempo todo, maravilhada com as
novidades que ia descobrindo.
— Surgira uma pequena represa logo
abaixo da nascente do ribeirão Selby, num
declive entre dois morros. A água ali
estava sempre gelada. Apesar de Mary ter
avisado, Mattie mergulhou, mas logo saiu,
pulando.
— Depois que a gente nada um pouco o
frio passa, Mattie. Mary tirou o roupão,
subiu numa pedra e mergulhou. Mattie
— seguiu-a, após um instante de
hesitação. Nadaram e brincaram juntas e,
em seguida, foram descansar no gramado
verde ao lado da represa.
— V)
— JÜ
— Você nada como um peixe, Mattie.
Teve aulas de natação? — Mary perguntou.
— Tive, sim. Sabe. faziam de tudo para
me deixar ocupada. Diziam sempre que era
para eu não me aborrecer. Conversa fiada!
Mas eu gosto de nadar. Não é como tocar
piano com aquele professor enjoado.
— Mattie estava sentada entre as
pernas de Mary, que lhe enxugava os
cabelos com uma toalha felpuda. Observou
que já estavam um pouco mais compridos
do que da primeira vez que se
encontraram. Penteou a menina
cuidadosamente.
— Assim que é bon. A sra. Driscoll
nunca penteava meu cabelo. Dizia que as
crianças têm que se virar sozinhas Mattie
declarou.
— É? O que mais ela dizia? — Mary
perguntou, fingindo seriedade.
— Ah, um monte de coisas, nem me
lembro. Mas tudo o que ela ia dizer
começava com "não". Nunca ouvi você
falar "não" para Becky. —
— Agora já não preciso — Mary disse,
rindo. — Mas, quando ela tinha a sua
idade, às vezes precisava. Há coisas que
uma garota não deve fazer e nem sempre
é fácil explicar. Acho que a sra. Driscoll
tinha algum motivo para dizer "não".
— Pois eu não acho. Para mim, ela dizia
só porque gostava de dizer. Gostava de
implicar. Não era nem um pouco como
você.
— Ora, Mattie. Duvido que ela não.
gostasse de você. Agora sente-se aqui do
meu lado e deixe que o sol seque você.
isto, assim está bon!
— Sabe que você é bem macia?
— Está querendo dizer que estou
gorda?
— Não, nada disso! Papai disse. bem,
primeiro ele disse que não era para eu
contar para você.
— Ah, segredo de família, então? —
Mary riu.
— Acho que sim. Sabe que a Glenda
Hats me abraçou uma vez? Ela não estava
com vontade, mas o papai estava olhando,
por isso ela me abraçou. Ela é puro osso! Ê
bem maior que você, mas só tem osso,
juro. Não gostei do abraço dela. Ela e o
papai tiveram uma briga que você devia
ver! Ela ficou gritando e atirou o cachimbo
dele na parede, daí.
34
— Bem. acho que você não devia me
contar essas coisas. Seu apelido é Mattie,
mas seu nome é Mathilda, não é? Bonito
nome.
— Ê igual ao da minha avó. Ela mora
em Newport. )á morou Km Newport? —
Eu? Não. Só estive lá a passeio.
— Depois disso, ficaram em silêncio.
Mary observava os homens trabalhando e
Mattie acabou se deitando em seu colo.
Afinal, disse:
— Sabe de uma coisa? Posso fazer um
favor para você.
— Humm, ótimo. Mas que favor? —
Mary perguntou.
— Bem, você tem uma filha bonita, que
é amiga e tal, só que ela está ficando
velha, sabia?
— Becky, velha? Bem, quinze anos é
um bocado de tempo, mas acho que ela é
bem jovem ainda, Mattie.
— Não sei como acha isso. Ela é maior
que você, até. Está ficando velha.
— Está bem. Becky está ficando velha,
então. E daí?
— Daí que eu não sou velha. Sou bem
nova, até. Não acha? Mary não conseguia
mais acompanhar o trabalho dos dois
— homens. Abraçou a garotinha com
carinho e disse:
— Tem razão, você é um modelo
novíssimo.
— Eu não tenho mãe. E logo você não
vai mais ter filha. Por que não fica minha
mãe de uma vez? Daí, quando a Becky for
muito velha para ser filha, você ainda vai
ter sua Mattie e eu vou ter você: Vai ser
bom para nós duas, não é? — disse, numa
avalanche de palavras.
— Nossa!... É. seria uma boa idéia, mas
é melhor pensar mais no caso. De qualquer
maneira, você tem razão. Já me acostumei
a ter uma filha e Becky está crescendo.
Mas tem outras coisas para se considerar.
Seu pai, por exemplo, princesa.
— A gente podia ficar com ele,
também. Ê bom ter o papai em casa, sabe?
Ele pode consertar coisas, levantar o que a
gente não consegue, levar o lixo para fora,
coisas assim.
— Mary não pôde deixar de rir. Mattie
também começou a rir e a conversa virou
brincadeira. Mas já era hora de voltar para
casa.
— Você vai pensar no que eu disse, não
é? — a menina ainda insistiu, quando se
levantaram.
— Prometo! — Mary respondeu, solene.
— 35
— Na verdade, pensou a noite toda.
Imaginava Bruce Latimore trocando as
lâmpadas queimadas, saindo da cozinha
com sacos de lixo, carregando malas
escada abaixo. "Carregando minhas malas
escada abaixo? Aonde eu poderia estar
indo. com ele?" Mergulhada em todas
essas fantasias, acabou adormecendo.
— Bruce chegou na manhã seguinte, às
seis e meia, no momento em que Mary
abria a porta para pegar o leite que Henry
sempre deixava cedo. Estava cansado, a
barba por fazer, a gravata frouxa e o
paletó jogado por cima do ombro. Ela
vestia só um robe sobre a camisola curta, e
ainda não prendera os cabelos.
— Será que cheguei cedo demais? —
ele perguntou, quando se aproximou.
— Ela sentiu um arrepio percorrer suas
costas.
— Depende dos seus motivos —
respondeu. — Se quer tomar café, está
bem na hora, mas, se veio para o Natal,
chegou cedo demais. Agora, se seu
objetivo é falar da construção da estrada, é
bom saber que seus homens ainda não
terminaram a pesquisa!
— Café é uma ótima idéia, mas eu
estava falando da hora de buscar minha
filha. Não é cedo demais?
— Acho que sim. Ela tem brincado
tanto que é difícil acordar antes das oito e
rneia, Como andam suas obras?
— Enquanto a seguia até a cozinha,
respondeu:
— As construções da represa na
Venezuela vão muito bem. Mas por aqui
não vão tão bem. — Colocou o paletó no
encosto da cadeira.
— Sem querer tocar naquele assunto
tão cedo, Mary perguntou:
— O que vai querer? Ovos mexidos,
torrada, bacon, café ou suco de laranja?
— Um pouco de cada, por favor. E
bastante café.
— Vai querer tudo? — ela se admirou.
— Claro. Acho que estou em fase de
crescimento — ironizou, enquanto pegava
o jornal.
— Mary olhava-o de canto de olho
enquanto trabalhava, mexendo os ovos.
Bruce estava tendo um comportamento
típico machista: pediu café, pegou o jornal
e foi direto para a página de esportes.
Devia se imaginar muito importante! Ela
pôs o bacon na grelha e as fatias de pão de
forma na torradeira. Era estranho estar
aceitando ordens em sua própria casa.
"Será que ele pensa que está num
restaurante? ", pensou.
— Sabe que achei engraçado ver você
pegar o leite na porta?
— ele disse, interrompendo suas
reflexões.
36
— Por que acha tão engraçado? Para
começar, vacas não vêm à nossa porta
quando a gente assobia, como os cães.
Além do mais, elas são do Henry, não
minhas. Ele vende o leite. Sou apenas uma
freguesa.
— Ah, é? Pensei que fosse a dona de
tudo.
— Pensou que eu era a rica sra. Chase?
Foi por isso que me deu atenção?.
Desculpe, não quis ofender, foi só uma
brincadeira. Na verdade, metade da
fazenda é de Becky e metade do Henry. A
parte de Becky está sob meus cuidados até
que ela faça dezoito anos ou se case.
— Bruce já se voltara para o jornal.
Disse, com um ar distraído.
— Ah, sim. Não vá se esquecer de ligar
a cafeteira.
— Mary ia lhe dar uma boa resposta,
mas as torradas saltaram naquele instante
e ela não teve coragem de deixar que
esfriassem antes de servi-las. A ocasião
passou, mas ela não se esqueceu. Ainda
estava zangada quando colocou o prato
cheio diante dele, e quase derrubou o café
sobre sua camisa. Bruce dobrou o jornal e
colocou-o ao lado do prato.
— Hutnm, nada mau! Mas você quase
quebra o prato! comentou.
— "E bem na sua cabeça! ", ela pensou.
Pegou o vidro de catchup da geladeira e
deixou-o na mesa. Ele ergueu o rosto, com
um sorriso aberto nos lábios.
— Obrigado. Mas só costumo usar
catchup quando acho que é preciso
disfarçar o gosto ruim da comida.
— Era exatamente o que Mary pensava.
Acabou rindo. Pegou uma xícara de café
para si, sentou-se e ficou observando-o dar
conta da comida. Sim, não deixava de ser
agradável estar ali com ele, com uma
xícara de café na mão, e acompanhou as
mudanças de expressão em seu rosto.
— Mattie não lhe deu trabalho? — ele
perguntou, mais uma vez.
— Claro que não. Ela se deu muito bem
com Becky e se divertiram juntas. Podia
até ser sócia de Becky.
— Sócia?
— Pois é. Criamos galinhas, aqui. São
todas de Becky. Ê ela quem cuida,
alimenta, recolhe os ovos, vende.
— Ela gosta de galinhas?
— Não. Odeia galinhas. Mas gosta do
dinheiro e da independência que o negócio
traz. Logo vai tirar a carta de motorista e
já está economizando para comprar um
carro.
— 37
— Acho que aí está o segredo de tudo:
o modo como você a educou. com
responsabilidade, respeito, independência.
— É. pode-se dizer que sim. Todos
precisam disso, concorda? Mas não é só.
Existem também amor e compreensão.
Mas. ecomo vai a construção por aqui? —
perguntou, resolvendo finalmente enfrentar
o assunto.
— Bem, nossas máquinas pesadas
estão agora numa estrada em Fitchburg —
ele disse, tomando a segunda xícara de
café.
— Não vai ser possível começar o
trabalho em Massachusets depois da
segunda quinzena de outubro: é tudo uma
questão de prioridades e, também, das
condições do tempo. Assim, se não
pudermos começar os trabalhos aqui até
primeiro de outubro, vamos ter que
esperar a primavera. É por isso que estou
apertando os homens na pesquisa do
banhado. Espero poder entregar o relatório
para a Corte até primeiro de setembro.
Depois deve levar uns dez dias... o que
ainda nos dá uns trinta para colocar as
coisas em ordem.
— Está com tanta pressa assim? Não
podemos colher nosso milho antes de
setembro. Vocês podem arruinar nossas
colheitas! — ela exclamou.
— Não há de ser tão ruim assim! —
respondeu rindo, com um ar zombeteiro.
— Ora, ele estava sentado em sua
cozinha, de estômago cheio com a comida
que ela própria fizera, e falava, com toda a
calma, em arruinar o trabalho de um ano
todo numa questão de dias! E ainda ria,
como se fosse piada! O Coronel tinha
razão. Para entrar numa briga só era
preciso ter um inimigo. Apesar disso, lá
estava ela, sentada e conversando com seu
arquiinimigo!
— Espero que não se ofenda, sr.
Latímore, mas lhe desejo má sorte em seus
planos — disse, seca.
— Sorrindo, ele respondeu:
— Eu compreendo. Ah, aquele seu
advogado. gostaria de...
— Está falando do dr. Momson?
— Ele mesmo. Acho que você tem
facilitado neste caso. Momson está tão
velho que mal consegue ficar acordado na
Corte. E bebe, também. Sabia disso?
— Ela tentou fingir surpresa,
controlando a vontade de rir.
— Está falando sério? Quer dizer que
ele bebe?
— É melhor acreditar. Na última
audiência ele cochilou vá38 rias vezes no
tribunal. Acho melhor ir procurando outro
advogado. "Ora, quanta gentileza em se
preocupar conosco! ", ela pensou. Então
Momson bebia? Podia fazer com que
perdessem a causa no Tribunal? Tudo
aquilo lhe soava como uma tremenda
ironia. Ainda se lembrava dos dias em que
Charles e o Coronel se encontravam a
pretexto de qualquer celebração e bebiam
até a última gota do que havia em casa.
Depois disso, Charles arrumava a gravata,
vestia o paletó e passava o resto do dia
trabalhando no Tribunal.
— Estou sabendo do. problema de
Charles — ela disse. Estamos apenas
esperando que apareça a pessoa certa para
substituí-lo. Alguém mais jovem, é claro.
— "Eu, por exemplo! ", ela teve
vontade de gritar. Iria se íormar em direito
em junho e faria o exame da Ordem dos
Advogados em julho. "Se o pobre Charles,
com seu coração fraco e a memória falha,
conseguir agüentar até lá, vamos lhe dar
uma boa lição, sr. Bruce Grande Coisa
Latimore."
— Ele ainda ria dela. Seus olhos
brilhavam como se...
— Não me leve a mal, Mary Kate. Andei
observando o dr. Momson desempenhar
suas funções no mais perfeito estilo
jurídico. Nunca vai ao Tribunal sem alguns
coringas na manga, como se diz. Não, não
estou criticando seu advogado por beber.
Pelo contrário, gostaria de saber que marca
de uísque ele toma, para oferecê-la aos
meus advogados! Agora, se não se
importa, tenho uma porção de coisas para
fazer. Podia chamar minha filha, por favor?
— Mattie ficou muito feliz ao ver o pai.
Desceu as escadas pulando os degraus de
três em três e se atirou em seus braços
com tanto entusiasmo que ele ficou
surpreso. Durante o café, Mattie fez um
relatório completo de suas aventuras e,
depois, foram de mãos dadas até o carro.
Mary Kate ficou à porta, acompanhada de
Becky, e esperou que o carro
desaparecesse na estrada. Então, disse:
— Depressa, querida. á para o telefone.
Precisamos marcar uma reunião de cúpula
de emergência. Precisamos do Henry e do
dr. Momson. Quanto mais cedo, melhor!
— Estamos em apuros outra vez, Ma?
— Acho que a situação não mudou, mas
esse homem me parece muito esperto.
Andou falando sobre a construção. Queria
— 39
— que eu soubesse uma coisa. só não
descobri por qiíêl O que me incomoda é O
que ele não revela. Agora, voe, Becky!
— Enquanto Becky telefonava, Mary
começou a fazer o serviço de casa. com as
mãos ocupadas na rotina, as idéias se
organizavam melhor e fluíam mais livres.
— Henry e Charles chegaram às onze.
Ela acabava de arrumar o quarto que
Mattie tinha ocupado. Quando desceu, os
três a esperavam silenciosos, com a
cafeteira automática já ligada. Mary
sentou-se em sua poltrona favorita. Sentia-
se um pouco cansada, pequena, mesmo,
diante de pessoas tão fortes. "Se Henry
caísse por cima de mim", pensava,
enquanto Becky servia o café, eu viraria
mingau! E se Bruce Latimore caísse por
cima de mim. se caísse por cima. Bruce?
Que bobagem!"
— Ma! Não vai começar a reunião? —
Henry perguntou, ansioso.
— Ela está sonhando outra vez, Henry.
Não disse? — Becky falou. — Desde que
aquele sujeito.
— Ele tem nome, Becky — Mary
interrompeu.
— Está bem. Desde que o tal Latimore
apareceu. E agora ele está morando na
cidade. Já sabiam disso? Por que um
homem importante como o sr. Latimore
viria morar numa cidadezinha? E você
gosta dele, não é, Ma?
— Henry parecia ter chegado a uma
conclusão importante. Cocando o queixo,
disse:
— Pois é. Foi o que Anna disse. Você
gosta desse homem, então, Ma?
— Ei! O que vocês dois estão querendo?
Gosto da menina, muito mesmo. Mas o pai
dela é um homem arrogante, sarcástico.
dominador!
— Ah, então se parece com o Coronel!
— Charles-brincou.
— Não! De jeito nenhum! — ela
protestou, vermelha. — Por trás de todo o
barulho que fazia, o Coronel era um
homem bon, sincero, carinhoso.
— Anna e eu andamos falando no
assunto — Henry disse. Becky já está com
quinze anos, a fazenda vai bem e você só
tem vinte e sete anos. Está na flor da
idade, ainda. Já fez muito por nós e não
podemos ser contra a idéia de você se
casar de novo. Ele parece um bom sujeito.
— Ele não passa de um construtor de
estradas. Agora, vamos tratar de negócios
— disse Mary com firmeza.
— Todos olhavam para ela, esperando.
"Até parece que estou
— 40
— passando a tropa em revista! Não
devia fazer isso. Não sou o Coronel e eles
não são minha tropa", pensou. Cruzou as
mãos no colo e começou a falar.
— Por alguma razão que ainda não
entendi, Bruce Latimore resolveu me
revelar alguns fatos. Não sei o motivo, mas
sei que não foi por acaso. Ouçam tudo,
depois discutiremos. Primeiro, ele mandou
o equipamento pesado para uma outra
obra, em Fitchburg. Segundo, disse que
está apressando a pesquisa no banhado,
esperando apresentar o resultado ao
Tribunal até primeiro de setembro. Depois,
falou que toda a construção desta área vai
ser paralisada pelo meio de outubro, por
causa do inverno. Disse, também, que
espera uma ordem da Corte para começar
os trabalhos e que pretende encerrá-los
até o fim de setembro. Por que ele me diria
tudo isso? O que acha, Becky?
— Não tenho certeza, Ma. Não acha que
ele quis dizer que, se não começar os
trabalhos até setembro, podemos ficar
sossegados até a primavera?
— Talvez. Só acho que ele é uma
pessoa um tanto traiçoeira. Será que não
quer nos fazer sentir seguros, só para
amolecermos a luta pelo que é nosso?
Assim, só levaríamos a briga até o meio de
setembro, mais ou menos; depois,
ficaríamos esperando, folgados, até que.
bum! Ele acabaria com a gente de repente.
Estou muito desconfiada. O que acha,
Henry?
— Pode ser que esteja nos
aconselhando a começar logo a colheita.
Até dava para começar, O milho estará no
ponto daqui a uma semana, O feno vai
demorar um pouco mais, mas podemos
começar logo, se for o caso.
— Não sei se ele queria dizer isso, mas
é uma hipótese. Pelo que entendi, você
acha que ele está bem-intencionado
conosco. Gostaria de ter a mesma opinião,
mas não consigo! E você, Charles, o que
acha?
— É um homem de muitos méritos,
Mary. Sabe, fazia tempo que não me
divertia tanto com um caso. Agora, é bom
que saiba que não precisa se preocupar
com a colheita. Há uma lei estadual que
proíbe a desapropriação de terras em
época de colheita. A indenização é bem
pesada, no caso de descumprimento.
— Não confio nisso. Acho que ele
pagaria sem pestanejar Mary disse,
desconsolada.
— Bem, talvez — o advogado
respondeu. — Deixe eu ver. Ele está
apressando a pesquisa, o que me leva a
pensar uma coisa: o que se faz às pressas
nunca é bem-feito, pode deixar
— 41
— alguma coisa para trás. O que
poderia ser? Alguma coisa no banhado?
Mas por que ele nos contaria? Só se Becky
estiver com a razão.
— Bobagem, Charles — Mary falou. —
Por que não faria isso? Não consigo ver o
motivo. Têm alguma recomendação?
— Ora, Ma! — Henry interrompeu. —
Desde que começou a estudar direito, fala
como um deputado, como um chefão. Nós
já sabemos que quem dá as ordens aqui é
você. Pode falar! Estamos prontos para
apoiá-la.
— Assim eu fico constrangida, Henry.
Não sou seu pai e não quero tomar o lugar
dele. Em todo o caso, vamos falar de
datas. Podemos cozinhar a questão em
fogo lento até o fim de setembro, mais ou
menos, e ter um inverno tranqüilo. Seria
bom começar logo a colheita, se é possível.
E você, Charles, podia preparar um
relatório sobre o cemitério. Ah, sim! Ele
achou muito engraçado dizer que meu
advogado estava muito velho, cansado e
que bebia demais para cuidar dos meus
interesses. Será que ele sabe que você foi
juiz da Suprema Corte Estadual antes de se
aposentar?
— Ah, não sei — Charles riu. — Só sei
que anda virando a cidade de cabeça para
baixo, ouvindo comentários e fazendo
muitas perguntas, Mary.
— Oh, meu Deus! Que tipo de
perguntas? — ela quis saber.
— Sobre você e o Coronel, sobre seu
relacionamento com Becky e Henry. Sei
também que esteve no jornal, revirando os
arquivos dos últimos dez anos.
— Ai, ai, ai! Será que está planejando
alguma coisa, ou só quer conhecer melhor
o inimigo? — ela perguntou, antes de ter
uma idéia: — Aqueles peixinhos de nome
estranho! Henry, acha que pode conseguir
um. não sei o nome. alguém que estude
peixes, insetos e coisas do gênero?
— Claro, Ma. Posso chamar uns cinco
ou seis estudantes e um professor da
Universidade Estadual de Bridgewater. O
que quer que façam?
— Quero que investiguem a flora e a
fauna do banhado Quero que descubram
todo o tipo de criatura viva que habite oi
lugar. Podemos vencer o diabo, desta vez!
— Não sei do que está falando, Ma! O
que têm os peixes a ver com a nossa
causa? — Henry perguntou.
— O dr. Momson sorria, orgulhoso de
Mary: "
— Ela está procurando um precedente
legal. Os peixinhos de
— 42
— que fala são de uma espécie rara que
só vive em uma parte do mundo. Foi
justamente onde decidiram fazer uma
represa. A Corte Suprema concluiu que, se
a represa fosse construída, os tais
peixinhos desapareceriam da face da terra.
Por isso, impediu a construção. bom
trabalho, Mary!
— Quando a reunião acabou, ela voltou
ao serviço de casa. Às três, de acordo com
sua rígida rotina, sentou-se para estudar.
— Na quinta-feira, Mary acordou cedo.
As framboesas estavam maduras e,
enquanto dois empregados as colhiam nos
arbustos, ela fervia os vidros de compota.
Depois, dedicou-se a preparar os doces
que, no inverno, recheariam tortas e
pãezinhos. O trabalho durou até sexta-
feira, tomando uma parte do sábado.
Quando o domingo chegou, fez questão de
dormir até mais tarde. Depois, com um
vestido rosa, bem leve, foi para a igreja
com Becky, Anna e Henry.
— Chegaram cedo, e ficaram à porta,
conversando com amigos. O padre,
desculpando-se pelo calor, fez um sermão
mais curto do que de costume. Mary achou
ótimo, pois não poderia suportar nem mais
um minuto naquela igreja. Logo antes do
sermão, percebera que Mattie e Bruce
estavam sentados na mesma fila, do outro
lado do corredor. Não assistiam à missa:
olhavam para ela sem parar.
— Aquela atenção indesejada fez com
que Mary se encolhesse no banco. Becky,
preocupada, perguntou:
— O que está acontecendo, Ma?
— A esta altura, ela sentia que todos a
olhavam, acusadores! Sentiu vontade de
sumir, mas não tinha como. Depois que o
padre deu a bênção final, levantou-se com
Henry, Becky e Anna. Pai e filha
levantaram-se do outro lado.
— Encontraram-se no corredor e foram
juntos para a saída. Becky e Mattie
conversavam, baixinho, mas Bruce, de
testa franzida, nem os cumprimentou.
Quase na porta, Mattie pôs sua mãozinha
suada na mão de Mary. Becky abafou o
riso. Quando cruzaram a porta, afinal,
Bruce pegou Mattie pelo braço,
cumprimentou Mary com frieza e se foi.
tinham se afastado um pouco, quando
Mattie, ainda sendo puxada pelo pai, olhou
para trás e piscou para Mary.
— O que significa isso? — ela perguntou
a Becky.
— Mattie não parou de dizer ao pai o
quanto você é maravilhosa. Disse também
que, a qualquer hora, algum sortudo vai se
casar com você.
— 43
— CAPÍTULO IV
— A semana seguinte foi terrível para
Mary Kate. Nada deu certo. As quatro
tortas de maçã que fez para congelar na
segunda-feira à noite ficaram horríveis,
pois tinha se esquecido de pôr açúcar. Na
terça, durante a aula, quando o professor
pediu citações de legisladores, saiu-se com
uma frase de Shakespeare, provocando
uma convulsão de gargalhadas que pôs fim
à aula. Na quarta-feira, depois do exame
da auto-escola, Becky chegou em casa com
lágrimas nos olhos e Mary ainda lhe passou
um pito. Na quinta, os estudantes
terminaram o levantamento ecológico da
fazenda e lhe entregaram um relatório,
mas ela estava cansada demais para ler.
No mesmo dia, à noite, sentia-se tão
deprimida que resolveu tomar uma atitude.
Precisava descobrir por que se comportava
de modo tão estranho.
— Não demorou a achar o motivo: a
frieza de Bruce na igreja. Afinal, quem
tinha cuidado de sua filha durante quatro
dias? Quem lhe servira um café da manhã
capaz de alimentar três? E ele respondia
com indiferença. "Aposto que a cidade
inteira comentou o fato", pensou. Não
devia se aborrecer com uma coisa dessas.
Mas a verdade é que a notícia corria solta.
Ela mesma já ouvira duas versões, fora as
que Becky trouxera. "Só por causa de uma
bobagem dessas, transformo minha
semana num inferno!"
— 44
— Mary suspirou. Ele era arrogante. E o
pior íoi ter descontado sua frustração em
Becky. "Até parece que estou. não é
possível!... me apaixonando? Bobagem!"
— Quando Becky voltou do cinema
naquela noite, até levou um susto ao
encontrar a madrasta esperando por ela
com bolinhos e refresco, além de carinho e
compreensão por não ter passado no
exame de motorista.
— Ora, Ma! ]á nem estava mais
pensando no exame! Fiquei chateada, é
claro, mas passou. Imagine que o
examinador me reprovou só porque
esqueci de dar o sinal para sair do meio-
fio. Como podia adivinhar que outro carro
ia aparecer?
— Mary confortou a garota com
ternura. Becky, muito observadora,
percebeu sua ansiedade, mas não disse
nada.
— Na manhã seguinte, a última sexta-
feira das férias escolares, Mary descia a
escada quando viu que Becky falava ao
telefone, agitada. Estava, porém, tão
alheia, pensando... em outra pessoa... Não
se deu conta de que sua aparição
interrompeu a conversa. Registrou apenas
as últimas palavras da menina:
— Opa! Preciso desligar. Não se
esqueça.
— Desculpe perguntar. Mas com quem
estava falando, Becky?
— com Mattie. Eles já conseguiram
instalar um telefone em casa e ela queria
falar comigo sobre. sobre um trabalho da
escola.
— Da escola? Mas as aulas só começam
na próxima quarta-feira. Esqueceu?
— Não. não. É que Mattie quer estar
em dia com tudo. Mary não entendeu nada,
mas achou melhor não continuar
— com as perguntas. Foi para a
cozinha, ainda distraída.
— A aula de sexta-feira foi uma perda
de tempo. Mary não conseguiu prestar o
mínimo de atenção. Chegou em casa
esgotada. Becky já estava deitada, mas
tinha deixado um bilhete ao lado do
telefone. Mary preparou um chá e, então,
pegou o bilhete.
— "Bruce Latimore ligou. Disse que
viria amanhã às oito da noite para tratar de
assunto pessoal."
— Tomou o chá devagar, sem tirar os
olhos do papel. O que ele podia querer?
Assunto pessoal? Droga de homem! Não
podia ser mais claro? Consultou o relógio e
viu que já era tarde demais para telefonar
e perguntar o que ele queria dizer com
"assunto pessoal".
— Subiu para tomar banho.
Enxugando-se diante do espelho,
espantou-se com a própria imagem. Não só
seu rosto, mas
— 45
— também sua postura, tudo
denunciava cansaço. Até os ombros
estavam caídos.
— Você já está sentindo o peso da
idade — disse a si mesma, baixinho.
— Só os seios, firmes e cheios,
pareciam resistir ao teste do tempo. Mary
sentou-se no banquinho da penteadeira,
desconsolada, mas acabou rindo. Alguém
— Becky, por certo — tinha colocado um
recorte de revista no canto do espelho:
"Espelho, espelho, que não cansa de me
refletir, será que não aprende a mentir?"
Ainda rindo, foi se deitar.
— Dormiu até mais tarde, no sábado.
Eram oito e meia quando apareceu na
cozinha, com os olhos ainda inchados,
bocejando. Mal conseguindo abrir os olhos,
procurou a cafeteira. Admirou-se ao
encontrá-la já ligada. Afastando dos olhos
uma mecha de cabelos, sacudiu a cabeça,
tentando afastar a sonolência. Becky
apareceu e comentou:
— Ma, você está com cara de bicho-
papão! Conhecendo-a bem, acho melhor
esperar que tome o café, antes de começar
a conversa.
— Você ainda me paga, Becky! — Mary
ameaçou, esboçando um sorriso!
— Nem o Coronel se atrevia a falar com
ela antes que tomasse o café. Era uma
espécie de ritual: servia-se de açúcar,
colocava meia xícara de café e completava-
a com leite. A rotina só se alterava quando
tinha alguma visita.
— Está bem, Becky. Agora me conte
por que já está de pé e o que tem para me
dizer.
— Arrumei um serviço. Todos os
sábados. Não acha bon?
— Ótimo. Onde vai trabalhar, para
quem, por quê?
— Não confia mais em mim, Ma? —
Becky brincou. — vou ser babá na cidade,
das nove às quatro, todos os sábados. O
que acha?
— Humm! E para quem vai trabalhar?
— Para Bruce Latimore.
— Vai cuidar de Mattie?
— É a única filha que ele tem.
— Bem. estou contente com o trabalho.
Só que. não queria que aceitasse dinheiro
dele, Becky. Ele... eu... você sabe que
somos inimigos.
— 46
— X— Deixe disso, Ma. Estão em lados
diferentes, sim, mas não são inimigos —
Becky respondeu e saiu correndo para
pegar sua bicicleta.
— Mary preparou mais uma xícara de
café com leite. Ficou remoendo seus
pensamentos até as nove e meia. Seu
humor variou o dia inteiro: ora estava
alegre, cantando, ora mergulhava em
inquietante depressão. À uma da tarde já
se cansara de ficar sozinha. Vestiu o jeans
mais velho que encontrou, uma camiseta
desbotada e foi lidar com a horta. Remexeu
a terra, transplantou mudas e, pouco a
pouco, foi se acalmando. Sem coragem de
pensar em jantar, preparou sanduíches.
Becky, que chegou animada, não reclamou
do cardápio.
— Precisa ver a casa deles, Ma! E a
mobília! Acho que você nunca viu nada
igual. Mattie tem um quarto só para ela no
terceiro andar, com banheiro privativo.
Ainda tem mais seis quartos no primeiro e
no segundo andar. A cozinha é incrível e...
— Está bem, já chega. Sei que a casa
deve ser uma maravilha, mas não podemos
falar de outra coisa?
— Becky mordeu o sanduíche, olhando
desconfiada para a madrasta. Depois
perguntou:
— Ma, tem certeza de que não há nada
errado com você?
— Errado? Não, nada.
— Ah, então deve estar apaixonada!
— O quê? Onde. onde arranjou essa
idéia? Que coisa mais boba para dizer. logo
para mim!
— 1 — Ma, não faz drama. Vi um filme
na semana passada sobre uma mulher de
meia-idade que se apaixonou. Foi ótimo!
— Meia-idade? Ora, Becky, só tenho
doze anos mais que você c. aonde quer
chegar com essa conversa?
— Prometi que ia à casa de Anna hoje à
noite. Henry tem uma reunião com
pecuaristas e ela vai me ensinar crochê.
Não se esqueça de que Bruce vem daqui a
pouco.
— Bruce? Não se deve ter tanta
intimidade com patrões, Becky. — E,
mudando rapidamente de assunto,
observou: — Fico contente em saber que
vai aprender crochê. E mais ainda em ver
que você e Anna estão se dando bem. Não
sei, mas acho que. ela não gosta de mim.
— Ela tem medo de você, Ma. Henry
não pára de elogiá-la. Além disso, já faz
mais de um mês que eles se casaram e
você ainda não foi visitá-la.
— 47
— Ela tem medo de mim? Não, não
posso acreditar!
— Ora, para ela você é a rainha da
perfeição. Por que não vai visitá-la?
— Ora, Becky! Existe um costume. Não
se-deve atrapalhar a lua-de-mel de um
casal. Ó fato de eles já terem voltado para
casa não significa que estejam prontos
para receber o mundo. Deve-se esperar
por um convite.
— Que bobagem! Aposto que Anna
nunca ouviu falar nesse costume, nem
Henry. Em todo o caso, vou falar para ela.
— com jeito, por favor, Becky.
— Não se preocupe. Você gosta da
Anna?
— Claro que sim! É perfeita para o
Henry. Agora só me falta achar o homem
certo para você.
— As duas riram. Depois, Becky disse:
v — Não pense que vai se livrar de mim
tão cedo! Mary abraçou-a com carinho.
— Não, Becky, não quero me ver livre
de você tão cedo. Quero que fiquemos
juntas até.
— Até que "eu" ache um homem para
você! Trate bem do Bruce. do sr. Latimore!
— Becky disse, e saiu correndo para a casa
de Henry.
— Mary olhou para a mesa e riu.
— Ora, essa bandida não está só
querendo me arranjar um casamento.
Ainda escapou de ajudar a lavar a louça!
— Deixou tudo limpo na cozinha. Subiu
para tomar um banho. Voltou para o
quarto com a toalha na cintura, como
sempre. Abriu o armário.
— Frustrante! Faz quatro anos que não
compro um vestido para mim. Nossa!
Ainda tem terra embaixo das minhas
unhas. Não sei por que resolvi replantar
aquilo logo hoje!
— Decidiu que usaria uma roupa
formal, mas elegante. Estava tentando
prender o cabelo quando ouviu a
campainha. Saiu correndo para a escada,
mas parou ao reparar que ainda não se
vestira. Voltou para o quarto. Em segundos
estava de volta à escada, com os cabelos
soltos, a blusa mal abotoada e a saia fora
do lugar. Bruce batia com força na porta.
— Já vou, já vou! — gritou, arrumando
a saia e acabando de abotoar a blusa.
Quando abriu a porta viu-o apoiado na
parede, rindo. Nervosa, fez sinal para que
entrasse.
48
— Como. como conseguiu ficar mais
alto, hoje? — ela perguntou, sem conseguir
pensar em nada melhor para dizer.
— Não estou mais alto. Você é que não
está usando aqueles saltos enormes. Posso
sentar? Você parece agitada.
— É. acho que estou, mesmo.
Por que se importava tanto? Por que se
sentia tão embaraçada por não estar
preparada como queria? Preferiu não
pensar mais no assunte e seguiu-o até a
sala. Ele se deixou cair sobre o sofá.
— Quer beber alguma coisa? Quem
sabe um café, um chá. ou prefere algo
mais forte? — perguntou, ainda insegura.
— Acho que preciso é de uma boa dose
de coragem — ele respondeu.
— Bem, isso eu não tenho para servir,
mas que tal uísque?
— Ótimo. com gelo, por favor.
— Ele já não parecia tão à vontade
como quando chegara. Mary se perguntou
o que poderia ter feito de errado. Teria dito
algo desagradável? Talvez estivesse
perdendo a prática de lidar com homens
maduros.
— Foi até a cozinha buscar gelo e
pegou um refrigerante para si. Voltando à
sala, serviu Bruce. Ele bebeu como se
estivesse morrendo de sede. Mary sentou-
se na poltrona em frente a ele e levantou
seu copo num brinde. Bruce já esvaziara o
seu.
— Não pensei que. estivesse com tanta
sede. Quer mais um? —" ela perguntou.
— Quero. Mas não se incomode, eu
mesmo me sirvo. Quando voltou a se
sentar, olhou para ela, mas não falou nada.
— Em seu recado, disse que queria
tratar de um assunto pessoal, sr. Latimore?
— Pois é. Quis dizer que não tem nada
a ver com a estrada. Sem saber o que
responder, Mary tomou um gole do
refrigerante e pôs o copo sobre a mesa.
— "Pessoal" quer dizer eu e você — ele
completou.
— A cabeça de Mary disparou. "Eu e
você. parece aula de gramática. Pronomes
pessoais do caso reto. Reto? A linha reta é
a menor distância entre dois pontos. Que
loucura! Preciso pôr minha cabeça em
ordem. Eu e você. motivo da visita? Ai,
meu Deus, preciso pensar com mais
clareza!"
— Faz um mês que nos conhecemos e
cada dia descubro um pouco mais sobre
você — ele disse, tirando um caderninho do
bolso.
— 49
— "Ai, nossa! Além de andar ouvindo
fofocas ele anota tudo! ", ela pensou.
— Não sei se devo ficar contente com
tanta atenção — ela disse, com voz
cortante.
— Ora, não foi difícil — Bruce riu. —
Todos na cidade adoram falar sobre a viúva
Chase.
— Não é de admirar. Este é um dos
problemas que se enfrenta, morando num
lugar pequeno. Mas nunca pensei que um
homem de sua. posição fosse perder tempo
ouvindo boatos. Ainda mais sobre mim!
Pelo jeito, não mede limites para ver sua
estrada construída.
— Já lhe disse que não vim aqui para
falar da estrada. Droga de estrada! — ele
disse, zangado.
— Se não tinha vindo por causa da
estrada, talvez quisesse apenas torcer seu
pescoço ou coisa parecida! E agora ela
estava sozinha com aquele. homem
maravilhoso e. Gomo um homem tão
maravilhoso podia fazer-lhe algum mal?
Mary riu, antes que tivesse tempo de se
controlar.
— Pode rir à vontade. Acho que estou
mesmo sem prática ele falou, ofendido.
— — ?Está bem. Talvez eu não esteja me
comportando bem. Vamos começar tudo
outra vez. Bem, você dizia que me conhece
há um mês. E então?
— Bruce sorriu, sem jeito. Isso já era
um bom sinal. Tirando outra vez o
caderninho do bolso, disse:
— Acho que não está acreditando em
mim. Ouça só: Mary Kate Flanningan, vinte
e sete anos, passou quase toda sua vida
em Eastboro, a maior parte aqui nesta
casa. Você veio para cá com sua mãe,
quando tinha doze anos. Sua mãe era
governanta do Coronel Chase. A mulher
dele morreu no parto. De Rebeca,
suponho?
— Sim. Becky não estava no programa.
A mulher do Coronel tinha quarenta e dois
anos na época.
— E, então, você e sua mãe
continuaram a viver aqui. Sua mãe morreu
quando Becky tinha quatro anos. E você
ficou sendo a governanta até o casamento
com o Coronel. Tinha dezessete anos, e ele
cinqüenta e cinco!
Bruce pronunciou a úkima frase como
se fosse algo de extremo mau gosto, ou
um pecado mortal. Ela olhou para ele com
raiva, esperando o que viria a seguir. Bruce
fechou o caderninho e fitou-a.
íO
fj
— Deve ter sido um casamento de
conveniência. Pelo menos, é o que todo
mundo diz — comentou.
— O que só mostra o quanto as
pessoas erram quando dão ouvido a
fofocas! Para sua informação, o Coronel e
eu nos casamos por amor!
Levantou-se da poltrona e se
aproximou dele. Nunca tinha se importado
com o que diziam sobre seu casamento,
mas, por algum motivo, era importante
que aquele homem compreendesse a
verdade:
— Nós nos casamos por amor! —
repetiu. — Só assim eu aceitaria me casar.
Por amor. O Coronel e eu fomos casados
no sentido espiritual e físico, de modo
completo! Compreendeu agora, sr.
Latimore?
— Ele parecia profundamente atingido
por aquelas palavras. Mary olhou-o por
mais um instante, desafiadora, e voltou
para sua poltrona. Bruce esvaziou o copo,
recompondo-se.
— Obrigado. Agora, sim, sinto que a
conheço melhor disse.
— Não, acho que não me conhece.
Sabe coisas "sobre" mim, mas não me
conhece. Não acha melhor fazer esta
anotação em seu caderninho, também?
— Não seja boba. Não tem nada escrito
aqui, além de uma outra coisa que anotei
para não me esquecer. Mas não pense que
não a conheço de verdade. Sei de mais
coisas além de seu casamento. Sei, por
exemplo, que você é diplomada em
técnicas agrícolas e que ainda freqüenta a
escola.
— Todo mundo sabe — ela retrucou,
dando de ombros.
— Também sei que tem um coração
grande, que é leal e que ama de verdade
quando ama. Sei também que costuma
andar sem blusa pela casa depois do banho
e que só usa sutiã em ocasiões especiais. O
que acha?
— O que acho? Ora, seu velho sujo!
Onde é que...
— Sujo, talvez, mas não tão velho. Para
ser exato, tenho trinta e seis anos, sou
saudável, tenho dinheiro e... bem, é
melhor deixar o resto para depois.
— Só pode ter sido Becky! Becky e sua
filha! O que elas estão querendo fazer
comigo?
— Posso garantir que têm as melhores
intenções — ele informou. — Estão
querendo que se case e eu sou o primeiro
da fila!
— 51
— Você! Mas. é uma bobagem, é claro.
Só porque veio morar na cidade. para
construir sua estrada, claro. Elas são duas.
crianças sonham demais, não é?
— Desta vez foi ele quem não
respondeu. Levantou-se e foi pegar mais
uma dose de uísque. Depois, parou ao lado
da poltrona dela. Mary não conseguia
encará-lo.
— Se pensar melhor, verá que a idéia
não é má como parece — disse. — Mattie
acha que você seria uma ótima mãe. Becky
acredita piamente que você é a melhor
mulher do mundo. Gastar todo seu talento
com uma garota só, quando poderia cuidar
de duas, parece-me um desperdício. O
casamento seria uma boa solução para o
caso.
— Bruce voltou a se sentar no sofá,
com o copo mais uma vez vazio.
— Por outro lado — continuou — sou
um homem com compromissos sociais,
preciso de uma esposa e estou cansado do
tipo de mulheres que encontro em minhas
andanças pelo mundo. Então, conheço
você. É bonita, cozinha bem, recebe com
perfeição, tem ambições e está
desperdiçando seu talento. Repito: o
casamento é o melhor remédio.
— Mary balançou a cabeça, tentando
pensar com clareza. — Lá estava ele,
sentado em sua sala, tomando seu uísque
e falando aquele monte de asneiras! Mas
não podia se esquecer de que era um
homem com uma vontade de ferro.
Enquanto ele passara o tempo ouvindo
fofocas em Eastboro, ela fizera o mesmo
em Boston. E, entre outras coisas, ficara
sabendo que, além da vontade de ferro,
Bruce tinha um coração de ferro, também.
— Bem. não sei, Acho que o
casamento. poderia ser bom para Mattie.
Você não sabe mesmo educá-la. Também
poderia ser bom para Becky. Ela está numa
idade em que convém ter um pai por perto.
Por outro lado, sei as vantagens que esse
casamento ofereceria para você. Mas já
imaginou que eu também possa querer
alguma coisa desse casamento? — Mary
perguntou.
— Tem todo o direito — ele concordou.
— Quer carinho, companhia, afeto, a
segurança que o dinheiro pode trazer,
roupas novas. Será que me esqueci de
alguma coisa?
— Acho que não! Pensou em tudo.
menos em mim, em meus verdadeiros
problemas. Deve ter enlouquecido para vir
aqui me fazer este tipo de proposta! O que
está pensando?
— 52
— Eu e você somos inimigos! Há mais
razões para litígio do que para amizade,
entre nós. Será que já pensou nisso?
— Bruce foi até Mary e, gentil, mas
firme, a fez levantar-se da cadeira.
Deslizou uma das mãos sobre as costas
dela, puxando-a para si, enquanto
acariciava seus cabelos com a outra mão.
Depois, levantou seu rosto e a beijou. Mary
não sentiu nenhum arrepio ou inquietação;
apenas uma sensação agradável e
relaxante. Escorregou as mãos pequenas
pelas costas enormes de Bruce e deixou
que aquela sensação de paz a invadisse.
— Quando ele a fez sentar-se outra
vez, ela sorriu.
— Então? Você não me odeia, não é? —
a voz de Bruce parecia vir de muito longe.
— N... não... não te odeio.
— E gostou de ser beijada por mim?
— sim... gostei muito — ela admitiu.
— Era esse o assunto pessoal que eu
tinha para tratar com você. Quero que se
case comigo, sra. Chase. Não vai ser já,
você ainda não está preparada. Isto foi só
uma declaração, espero que compreenda.
vou me casar com você um dia desses,
quando ambos estivermos prontos.
— E não devo dar minha opinião sobre
nada disso? — ela perguntou.
— Bem, não há muito o que dizer. não
pretendo forçá-la até que esteja
encurralada, isto é, até que não tenha mais
saída,
— Isso está me parecendo um abuso.
— Sua voz soava firme e decidida mas, no
fundo, desejava que ele a beijasse outra
vez.
— Em vez de beijá-la, porém, Bruce
deixou o copo vazio sobre o bar e se
preparou para ir embora.
— T... tão cedo? — ela gaguejou.
— Ê por causa de Mattie, a babá só fica
até as dez. Ah, sim, só mais uma coisa. Já
me declarei e a beijei. Não acha que agora
pode me chamar de Bruce?
— Claro. B. Bruce.
— Ele sorriu satisfeito e se dirigiu à
saída. Ela o seguiu, sem saber o que
pensar de tudo aquilo. Na varanda, ele
parou e encostou o dedo, de leve, na ponta
do nariz de Mary.
— Não leve as coisas muito a sério.
Ainda temos muito caminho pela frente. A
caçada mal começou — anunciou.
— Mas você não falou. não disse nada.
Nem tocou em amor. 53
— Não, claro que não. Porque nós dois
sabemos que você ainda ama o Coronel —
ele respondeu e se foi.
— Mary levou os copos para a cozinha.
Olhou para as estrelas. Orion, o Caçador,
estava ao sul de Polaris. "Até as estrelas
favorecem o caçador", pensou, com certa
amargura. "Porque você ainda ama o
Coronel. Bolas!"
— Decidida, voltou à sala com um copo
e serviu-se de conhaque. Bebeu tudo de
um gole só. Tossindo, sentou-se na
poltrona. Viu-se às voltas com algo que
jamais enfrentara. "Você ainda ama o
Coronel." Tomou mais uma dose de
conhaque. Uma hora depois, subiu devagar
para o quarto. Passou uma noite agitada,
cheia de sonhos perturbadores.
54
CAPÍTULO V
Mary acordou sem muita disposição. A
casa e a mobília pareciam estar fora de
foco. Mas ela sabia com certeza que sua
vida tinha mudado.
— Quando Becky apareceu, ansiosa
para ouvir o que tinha acontecido na noite
anterior, Mary nem sabia o que dizer.
— Bem, o sr. Latimore. Bruce. e eu
tivemos uma conversa e, no fim, decidimos
ter um relacionamento mais. amistoso, por
assim dizer.
— Isso quer dizer que estão fazendo
progressos? — Becky perguntou, curiosa.
— Não é bem assim. Acho que vamos
dedicar mais tempo um ao outro, se é que
me entende.
— Vai começar a namorar Bruce
Latimore?
— Não sei... acho que as coisas não
ficaram tão bem definidas assim. Ele não
chegou e disse... Não sei. Não ficou nada
claro.
— Mary estava mentindo e isso a
incomodava. Sempre tinha sido sincera e
clara com Becky e, agora, por causa de um
homem surpreendia-se dizendo mentiras!
— Bem, Becky, acho que já chega
dessa conversa. Como foram as coisas. o
que aconteceu na casa de Anna?
— Becky estava rindo do embaraço de
Mary, mas se recompôs para responder:
— 55
— Foi tudo bem. Falei que você estava
com vontade de visitá-la e ela marcou um
jantar para amanhã à noite. Só tem uma
coisa: ela está morta de medo; diz que não
sabe cozinhar como você, que a casa é
muito pequena, essas coisas. Estava quase
chorando quando eu saí. O que você acha?
— Ora, tudo isso é ridículo. Pensa que
já sabia cozinhar quando comecei a
trabalhar para o Coronel? Fui aprendendo
tudo devagar, aos poucos. Qual é a
previsão do tempo para amanhã?
— Ouvi pelo rádio que vai ser quente e
sem chuvas.
— Ótimo. O quintal de Anna é excelente
e, com bom tempo, o que pode sair de
errado num churrasco? Telefone ou
apareça por lá e dê essa sugestão, está
bem?
— Ma, você é um gênio! vou correndo
falar com ela! Becky beijou-a e sumiu pela
porta.
— Mary ficou parada ao pé da escada e
balançou a cabeça.
— Talvez eu seja mesmo — disse com
ironia, e voltou à cozinha.
— Depois do churrasco, seu
relacionamento com a nora melhorou
bastante. com Bruce Latimore, o
envolvimento cresceu. As aulas
recomeçaram e, como Mattie não tinha
com quem ficar depois que voltava da
escola, passou a ser deixada na fazenda,
pelo ônibus escolar, todos os dias. Das três
horas, quando chegava, até às cinco e
meia, quando seu pai voltava do escritório
em Boston, ficava brincando ou estudando.
— Bruce ia não só para buscá-la. Às
quartas-feiras, sempre saía com Mary.
Levava-a a restaurantes caros ou, às
vezes, a alguma lanchonete no caminho de
Boston. Ele era fanático por esportes e a
levava às corridas de cachorros. Mary só
sabia a diferença entre um cachorro e
outro por causa dos números. Também
costumavam ver jogos de futebol
americano, outro esporte sobre o qual
Mary nada entendia.
— Mas nem só os esportes preenchiam
suas saídas. Ouviram a Sinfônica de Boston
e assistiram ao "Lago dos Cisnes". Uma
noite, Mary pediu a Bruce que passasse
pela "Boca do Lixo" de Boston, pois tinha
muita curiosidade de ver como era. Diante
dos cartazes anunciando shows eróticos,
perguntou: — Vai me levar, uma noite
dessas? Vi muitas mulheres entrando lá.
— Talvez eu a leve. Tem energia de
sobra, ainda está em forma... Na certa vai
tirar um bom dinheiro por uma noite de.
"trabalho" — disse rindo, enquanto ela
ficava vermelha.
56
— Num desses passeios, foram ver uma
encenação de Madame Butterfly, a ópera
favorita de Mary. Mas dez minutos depois
do início do espetáculo, quando a Butterfly
acabava de aparecer diante do Tenente,
Bruce pegou Mary pela mão e levou-a para
fora do teatro. Ela mal teve tempo para
pensar e já estava debaixo da chuva que
desabava sobre a cidade.
— O que está acontecendo? Eu gosto
da Madame Butterfly
— protestou.
— Eu também — ele respondeu,
abrindo a porta do carro. Mary entrou,
emburrada, e não abriu a porta para ele,
— deixando-o mais algum tempo na
chuva. Quando, afinal, ele entrou, pôs as
mãos no volante e perguntou: — Posso
saber a razão dessa pirraça?
— E você não sabe? Vim para ouvir a
Butterfly e você me carrega para fora. O
que houve? Não assisti ao seu jogo de
futebol do começo ao fim? Por que não quis
ver a Butterfly?
— Não é a Butterfly. Fiquei com pena
do tenente Pinkerton. Como acha que eu
podia suportar ver um sujeito interessante
como ele enamorado por uma Butterfly de
duzentos quilos? Se a pegasse no colo,
acabaria com uma hérnia dupla! Ã ópera é
um espetáculo visual, além de sonoro, e
este me frustrou logo no primeiro ato!
— Desmancha-prazeres! — ela
resmungou.
— Mas o aborrecimento não durou
muito tempo. A caminho de casa,
passaram por um ginásio onde anunciavam
um espetáculo de luta livre. Bastou um
olhar para que concordassem em entrar
juntos. Passaram o resto da noite rindo e
torcendo pelos lutadores que se revezavam
no rinque. Depois da última luta, voltaram
ao carro e ela se desculpou. Afinal, muitos
dos lutadores eram menores que a cantora
que fazia o papel de Butterfly, e não
custava nada alimentar um pouco o ego de
Bruce.
— No último dia de setembro, Mary
recebeu um telefonema de Charles
Momson que a encheu de alegria.
— Acho que vencemos a luta contra o
calendário da Corte o advogado anunciou,
alegre. — Apresentaram o relatório sobre o
banhado esta manhã, mas o juiz Harris não
tem mais data vaga até vinte de fevereiro.
Deixaram os papéis com Addie e, talvez,
consigam uma audiência no fim de
fevereiro.
— Mas será que o juiz não vai ler o
processo e dar um parecer, pelo menos?
— 57
— Não se preocupe. Addie e eu fomos
colegas de escola Garanto que ele não vai
apresentar os papéis ao juiz antes de
fevereiro! — Charles riu.
— Podemos passar o inverno
tranqüilos, Charlie? — Tranqüilos e sob a
proteção da lei, Mary. Bem. na verdade,
ele pode querer apelar para a Corte
Suprema e usar amizades influentes.
— É verdade — ela concordou,
desanimada.
— Ora, não pense no pior, Mary Kate.
Para tudo há um jeito. Além disso, não
acredito que ele vá recorrer.
— Mary não cabia em si de
contentamento. Henry trabalhara em dobro
no último mês para terminar a colheita,
mas o feno estava dando trabalho. A
plantação ficava do outro lado da fazenda,
e era preciso cruzar o ribeirão três vezes
para encher as carrocerias dos caminhões
e transportar o produto para o celeiro.
Além do mais, tinha agora uma nova
desculpa para ir à casa de Henry. O
relacionamento de Mary com Anna
melhorara, mas a garota ainda a chamava
de "sra. Chase" e não ficava nem um pouco
à vontade em sua presença. O que era
uma boa desculpa para visitá-la com mais
freqüência.
— Saiu em direção à casa do enteado.
Esta tinha sido sede de outra fazenda mas,
quando o Coronel comprou as terras,
resolveu mantê-la para quando Henry se
casasse. Lá estava Anna, alta e imponente,
com seu cabelo loiro. Tinha quase o
tamanho de Henry e trabalhava tanto
quanto ele. Ao ver a sogra, logo perguntou.
— O que foi? Aconteceu algo errado?
— Ao contrário, trago uma notícia que
deixará vocês muito contentes. Onde está
Henry?
— Deve estar chegando para o almoço.
— Mary aproveitou a ocasião para
elogiar o cheiro que vinha do fogão. A
nora, constrangida, convidou-a para
almoçar.
— Ótimo! — disse Mary, prontamente.
— Hoje eu não estava com a menor
inspiração para cozinhar. Já tinha me
conformado em comer um sanduíche.
— Quando Henry chegou, Anna parecia
mais relaxada. Afinal, nunca se vira
sozinha diante da sogra. Assim, de perto,
ela lhe parecia bem mais "humana" do que
costumava ouvir do marido e da cunhada,
que lhe passavam a própria imagem da
perfeição.
— Enquanto almoçavam, Mary contou-
lhes tudo o que acabara de saber sobre o
processo na Corte. Henry comentou:
— "8
— ... ".
— Isso é muito boml Agora podemos
descansar um pouco. Ainda temos bastante
feno para colher e o milho ainda tem de
esperar uma semana. Mas não
precisaremos mais nos preocupar com o
inverno.
— Pois é. Mas a batalha ainda não
acabou. Posso jurar que Bruce não desistiu
de sua estrada. Na primavera, certamente,
enfrentaremos outro ataque.
— Em outubro, as folhas passaram do
verde para o dourado e o vermelho.
Novembro chegou, frio e com chuvas. Só
as abóboras ainda resistiam, no campo.
Nada mudara. Nada importante, pelo
menos.
— Mary tinha se acostumado a sair às
quartas-feiras à noite
— ícom Bruce e, na segunda quarta-
feira de novembro, quando
— ele não apareceu, sentou-se ao lado
do telefone, ansiosa. Ele ligou de Boston,
onde estava numa reunião de emergência
por
— icausa de um acidente em uma obra.
Ela conversou sem se alterar
— mas, quando desligou, começou a
chorar.
— Havia uma coisa mudando, sim.
Cada vez mais ela sentia a presença de
Bruce quando ele entrava numa sala,
mesmo que estivesse rodeada por outras
pessoas; nem era preciso olhar. Sua
chegada lhe trazia uma sensação de calma,
como se um vazio tivesse sido preenchido
em seu coração. Quando ele partia, o vazio
voltava. Mary ficava rude com as pessoas,
distraída, esperando. por sua volta. Não
era preciso que ele a tocasse ou falasse
com ela. Bastava que estivesse lá. Era uma
presença amiga e Mary concluiu que
tinham se tornado bons companheiros,
aprofundando a amizade. Mas, no fundo,
algo a incomodava, pois sabia que havia
mais que amizade entre eles. Pensar nisso
lhe gelava o sangue.
— O jantar do Dia de Ação de Graças,
no fim de novembro, foi muito agradável.
Todos estavam presentes: Henry, Anna,
Becky com o novo namorado, um tal de
Alfred, Mattie, Bruce e Mary Kate. Anna,
agora já totalmente integrada à família, e
Becky foram cedo para a cozinha.
Ajudaram Mary a assar o peru e a preparar
tortas e acompanhamentos. Depois do
almoço, satisfeitos, os homens foram ver o
jogo de rúgbi pela tevê e as mulheres
sentaram-se para conversar. Em menos de
dez minutos, Bruce reapareceu e pôs a
mão no ombro de Mary. Ela ergueu o rosto,
sorrindo, e todos, menos ela, perceberam o
quanto era especial aquele sorriso.
— Vamos dar um passeio — ele
convidou.
59
— Ela se levantou e o seguiu. Vestiram
seus casacos e saíram, caminhando até o
que restava da Árvore da Liberdade. O sol
já se tinha posto e a lua cheia subia no
céu, dourada. Sentaram-se sobre o tronco,
abraçados. Ao longe, uma coruja solitária
piava. O vento soprava os cabelos de Mary
que tinham escapado do gorro de lã. As
árvores já estavam sem folhas. Mary
aninhou a cabeça no ombro forte e quente
de Bruce.
— Árvore da Liberdade — ele disse.
— O que foi?
— A Árvore da Liberdade. Disse que um
dia me falaria sobre ela.
— Mary levou alguns segundos para se
concentrar no assunto. Estava pensando no
calor daqueles braços, na doçura dos lábios
de Bruce.
— Toda cidade tinha uma. Isso foi
antes da Independência dos Estados
Unidos. Era sempre uma árvore grande,
que pudesse abrigar uma reunião. Os
americanos tinham Comitês de
Correspondência. Homens de uma cidade
escreviam as novidades revolucionárias
para as pessoas de outra cidade. Tudo
viajava no correio do rei inglês, é claro. Se
o Rei Jorge tivesse fechado os correios,
teria acabado com a revolução. O povo da
cidade se reunia sob a Árvore da Liberdade
para ouvir as notícias e para fazer planos.
Foi assim que elas se tornaram uma parte
importante da luta pela Independência.
— E no frio do inverno? Por que não
arranjavam um salão?
— Você seria um péssimo conspirador,
Bruce. A árvore sempre ficava em um lugar
distante, para que só os revolucionários
ouvissem o que se passava!
— Pelo jeito, sua família participou
intensamente disso.
— Enganou-se. Minha família só veio da
Irlanda na época da Guerra Civil
Americana. Meu avô participou dela. Mas
os Chase, a família do Coronel, vieram no
Mayflower, o primeiro navio dos imigrantes
que fugiam da perseguição religiosa na
Inglaterra!
— Logo depois, ele a abraçou e beijou
de leve. Era assim que Mary estava
acostumada: um beijo leve e amigo, que a
fazia se sentir bem. Mas o abraço de Bruce
se estreitou e seus lábios pediram algo
mais. Perturbada, ela não correspondeu.
Ele a soltou, rindo.
— Por que está rindo? — ela perguntou.
— 60
— {' O riso a perturbava ainda mais do
que o beijo, sobretudo porque a obrigava a
reconhecer que estava totalmente
vulnerável às reações dele.
— Só estava testando — ele explicou.
— Quando se prepara um molho, deve-se
experimentar de vez em quando para ver
como está, não é?
— Não sei do que está falando. Olhei
Estrelas cadentes ali'. Está vendo?
— Já fez seu pedido? — ele perguntou.
— Não. Não acredito nessas coisas.
— Pois eu não sei se acredito. Só sei
que se for pela intensidade do desejo, meu
pedido será atendido — ele disse, puxando-
a para si.
— Mary se aninhou junto ao seu peito e
assim ficaram até que o frio da noite
começasse a se infiltrar pelas roupas.
Voltaram para casa, em silêncio.
— Pouco antes do Natal, numa manhã
muito fria de sábado, ele veio buscá-la
para irem até a costa. Estava tão gelado lá
fora que era difícil acreditar que ele
estivesse falando sério. Calçou botas de
cano alto, forradas, vestiu suas calças mais
grossas, dois pulôveres e um casaco
pesado com capuz. Bruce a levou a
Plymouthy, a velha cidade onde tinham
desembarcado os imigrantes do Mayflower.
O termômetro marcava dois graus
positivos.
— Ele levou-a para ver os Edifícios
Plymouth, uma reconstrução fiel da vila dos
imigrantes. Era um conjunto de casas
feitas de troncos, cercado por uma
paliçada, para proteger o povoado contra
os índios. Alguns atores andavam pelas
ruas, reproduzindo o cotidiano de seus
primeiros moradores. No cais, uma réplica
idêntica ao Mayflower estava à disposição
dos visitantes.
— Estou congelando — ela protestou,
em vão. Entraram no barco. Bruce subiu a
escada de cordas, examinando todo o
convés.
— Não é tão grande quanto eu pensava
— comentou. Afinal, carregou dez mil
pessoas, de acordo com os documentos da
época.
— Mary estava com as mãos enfiadas
nos bolsos e parecia que suas orelhas iam
se quebrar, de tão geladas.
— Gostaria de saber o que está
tentando provar — disse, aborrecida.
— Provar? Preciso provar alguma coisa?
— ele riu.
— 6í
— Mas, finalmente, ele se dobrou ao
frio e levou-a até uma cafeteria. O calor
provocou uma enorme sensação de prazer
em Mary. Sentaram-se perto da janela e
não se falaram até terem esvaziado a
xícara de café quente. Ela já começava a
sentir a circulação voltar aos dedos gelados
e à ponta das orelhas. Ia falar, mas parou,
porque ele também tinha algo a dizer:
— Mary Kate, trouxe você aqui porque
queria conversar longe daquele monte de
gente que sempre está à sua volta.
— Não seja injusto. Não esqueça de
que uma dessas pessoas é sua filha — ela
riu.
— Nem precisa me lembrar. Ela tem me
dado trabalho em casa e você deve saber.
— Trabalho? Pois tem se comportado
muito bem na fazenda!
— É porque lá tem uma coisa que ela
quer: você. Eu também quero você, Mary.
Já decidiu se apaixonar por mim?
— Irritada com o frio e com a hora que
ele escolheu para abordar o assunto, ela
esbravejou:
— Que coisa mais boba! Nunca vi um
lugar menos romântico para falar de amor.
Foi para isso que me fez levantar tão cedo?
Deve estar a zero grau lá fora e você quer
falar de amor?
— Quer dizer que a resposta é não? —
ele perguntou, com a testa franzida.
— Bruce, por favor! — ela disse, pondo
a mão sobre o braço dele. — Não sei qual é
a resposta. com o Coronel foi diferente.
Nós nos conhecíamos bem, morávamos na
mesma casa e. tudo aconteceu de modo
bem simples.
— Bruce levantou-se, zangado, e quase
derrubou a cadeira:
— Diabos! O pior não é ser recusado, é
ter de ouvir falar no maldito Coronel! Como
posso pensar em fazer você gostar de
mim, quando carrega o peso da memória
de seu marido nas costas, o tempo todo?
— Não fale assim do Coronel! — ela
disse, levantando-se, vermelha.
— Ora, vamos embora!
— Voltaram para casa num silêncio
absoluto e carregado de ressentimento.
Quando ele parou o carro em frente à
porta, ela sabia que aquilo significava
adeus. Não estava preparada para aquela
situação, assim como não se sentia
preparada para uma confissão de amor.
— Você e Mattie vêm passar o Natal
conosco? — perguntou, de cabeça baixa.
62
— Não. vou estar na Arábia Saudita e
Mattie vai passar o Natal com a avó, em
Newport.
— Então. Não tem mais nada para me
dizer?
— Não. Adeus, Mary Kate.
— Ela desceu do carro e beijou-lhe o
rosto, pela janela. Ele não se mexeu. Deu a
partida no carro e sumiu.
— Na manhã seguinte, ele e Mattie
tinham desaparecido. Becky trouxe as
novidades.
— A casa está toda trancada, Ma. A
governanta disse que ele deixou o
pagamento adiantado para todos os
empregados e avisaria quando precisasse
deles outra vez. Ouvi dizer que Mattie teve
que ser arrastada até o carro, aos berros'.
— Pobre garota! — Mary comentou,
tentando conter as lágrimas. Como era
possível explicar a vida, o mundo, para
Mattie?
— O tempo andava tão fechado quanto
o humor de Mary. O Natal seria na sexta-
feira; na segunda, uma onda de frio e neve
veio da costa. Ao meio-dia, as nuvens
cobriram o sol, Na terça, começaram a cair
os primeiros flocos de neve. Na quarta-
feira começou uma nevasca. Henry
apareceu, preocupado.
— A previsão do tempo não está nada
boa, Ma. Já preparei tudo. Até as galinhas
de Becky estão recolhidas. Mas estou
preocupado com você, sozinha aqui. Becky
vai lá para casa, à noite, ajudar Anna a
preparar os biscoitos de Natal e deve ficar
até amanhã. Não quer vir conosco
também?
— Desculpe, Henry. Não posso. Acho
até que prefiro ficar sozinha. Tenho
bastante combustível, lenha, água e o
telefone. De que mais posso precisar?
— Um telefonema, era tudo o que ela
precisava e Mary sabia disso. Mas como
dizer a Henry que queria ficar sozinha
porque talvez. Bruce telefonasse?
— Não queremos que passe nenhum
aperto — Henry disse, com carinho. —
Sabe o que vou fazer? vou trazer meu
trator novo para cá e deixar na frente da
casa. É como se fosse um tanque de
guerra: com aquelas esteiras, passa em
cima de qualquer coisa. Ah, e a cabine tem
aquecimento. Se ficar desesperada, é só
descer o morro. Está bem?
— Está bem, está bem. Cada dia você
se parece mais com seu pai — Mary riu.
— E você parece mais minha mãe do
que nunca. Boa-noite, Ma — disse,
acariciando os cabelos de Mary.
— 63
— Boa-noite, filho,
— Henry parou na porta aberta.
— Foram as palavras mais bonitas que
já ouvi — declarou.
— É o melhor presente de Natal que eu
podia querer.
— O vento começou a soprar forte às
sete horas daquela noite, uivando em volta
da casa. Só as janelas da varanda não
estavam com as venezianas de madeira
fechadas; eram o único contato de Mary
com o mundo lá fora. Ela verificou todos os
aquecedores da casa, abriu um pouco as
torneiras para que a água não congelasse
nos canos e pegou mais um cobertor.
— Às dez da noite, caía uma violenta
nevasca. com o cobertor sobre as pernas,
Mary ouvia rádio na sala. A televisão não
estava funcionando, pois a antena tinha
sido arrancada do telhado. Ligou para a
casa de Henry, só para se certificar de que
não estava sozinha no mundo. Ao ouvir as
risadas ao fundo, ficou contente em saber
que eles estavam felizes. Depois, recostou-
se na cadeira e se deixou invadir pela
tristeza. Onde estaria Bruce naquela hora?
Pensaria na mulher que deixara para trás?
Ou estaria pensando na estrada? Mary
sentia falta da presença dele, de sua
amizade, de seu calor. do seu amor.
— Tomara que ele volte para mim! —
murmurou. Levantou-se e foi até a
cozinha. Um chocolate quente não
— aliviaria seu coração, mas seria bem
reconfortante. Quando voltava com a
xícara para a sala, o telefone tocou. Não
era um barulho regular e logo parou. Mary
pensou em Becky, Henry e Anna, na casa
de baixo. Olhou pela janela: não era
possível ver nada. O vento estava mais
fraco, mas a neve caía em grandes flocos.
O telefone voltou a tocar. Mary deixou a
xícara sobre a mesinha e foi atender.
— Primeiro ouviu um zunido estridente,
depois um som arranhado, como se a outra
pessoa estivesse muito, muito longe. Lr do
fundo vinha uma vozinha:
— Alô! Ma? Me ajude, Ma. Preciso. de
você!
— Quem. Onde você está? — Mary
perguntou.
— É Mattíe. Eu fugi. Estou na estação
rodoviária de Tauton e não tem mais
ninguém aqui, não tem mais ônibus e
estou com frio. Você me ajuda, Ma?
— A ligação caiu. Por um instante, Mary
ficou paralisada, mas logo se pôs a pensar
no que fazer. A estação de Tauton ficava a
dezesseis quilômetros dali, num lugar
descampado, e não tinha aquecimento. O
melhor a fazer era pedir ajuda à polícia
?64
de Tauton. Mas o telefone não
funcionava, estava mudo. Mary correu para
o quarto e vestiu suas roupas mais
grossas. Voltou à cozinha e encheu uma
garrafa térmica com chocolate quente.
Depois, lutou com a porta da frente e com
o vento e entrou na cabine do trator.
Respirando fundo depois do esforço, ligou o
motor barulhento. As luzes do painel se
acenderam; ela ligou o farol e o limpador
de pára-brisa, antes de começar a descer a
colina, onde meio metro de neve já se
tinha acumulado. Parou perto da estrada.
Seria bom avisar Henry, mas não... não
seria justo tirá-lo de perto de Anna numa
noite horrível daquelas. Pensou por mais
um minuto, só o suficiente para que o
aquecimento da cabine começasse a fazer
efeito, e tomou sua decisão. Engatou a
marcha e rumou para a estrada, dirigindo-
se
— para o sul.
— O vento uivava, ameaçador. Precisou
parar duas vezes para tirar o excesso de
neve do pára-brisa. Não havia nada na
estrada além dela e o trator. O resto eram
árvores e neve. Agradeceu à boa
sinalização da estrada, que a ajudava, O
trator não ia além dos oito quilômetros por
hora. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que a
máquina poderia parar. E se acabasse o
combustível? Olhando para o marcador, viu
que ainda contava com meio tanque.
Felizmente já estava chegando a Touton e
haveria combustível suficiente para a volta!
— Os prédios seguravam um pouco o
vento que ficou mais fraco dentro da
cidade. Não havia mais nem uma trilha na
neve, além da deixada pelo trator. Nada se
movia nas ruas desertas. As luzes dos
postes estavam apagadas e a neve se
acumulava nas calçadas, Foi preciso parar
mais uma vez para limpar o pára-brisa
antes de chegar à estação rodoviária. Ao se
ver diante dela, Mary desligou o motor e
olhou ansiosa para o prédio de
— madeira,
— Era uma construção de um só
pavimento, com lojas de um lado e uma
pequena sala de espera de outro. Uma luz
brilhava lá dentro, mas Mary não via nada.
E se a polícia tivesse aparecido e levado
Mattie embora? Mas no pátio da delegacia,
do outro lado da rua, também não se
percebia movimento algum. Não havia o
menor sinal de vida sobre a neve branca.
— Cansada pela tensão de dirigir o
enorme trator, desceu da cabine. O vento
arrancou a porta de suas mãos, abrindo-a
por completo. Foi um esforço tremendo
conseguir fechá-la outra vez.
65
As botas afundavam na neve.
Encolhida e de cabeça baixa, para se
proteger do vento, Mary tentou abrir a
porta da sala de espera. Estava emperrada.
O vento voltou a soprar com força e,
desesperada, Mary jogou todo o peso de
seu corpo contra a porta, que finalmente se
abriu, rangendo. Mary quase caiu para
dentro.
— Tirando a neve do rosto, olhou em
volta. Ninguém. Os quatro bancos estavam
vazios.
— Ai, ai, ai! Onde ela pode estar? —
Mary murmurou.
— Aqui, Ma! Aqui! — Mattie disse,
debaixo de uma máquina de jogo
eletrônico.
— Mary se ajoelhou para olhar e
recebeu um sorriso. com o rosto quase
escondido por trás do cachecol, a menina
falou:
— Sabia que ia vir, Ma. Não está
zangada comigo? Mary abraçou com força
aquele corpinho frágil, lutando contra as
lágrimas que ameaçavam rolar.
— Zangada com você? Como posso
ficar zangada quando fez uma longa
viagem para passar o Natal comigo?
Vamos, querida, vamos para casa.
66
Capítulo VI
— Na véspera do Natal, a família estava
reunida na casa de Mary. A neve
continuava a cair. Ficara decidido que Anna
e Henry dormiriam no quarto do canto,
sem uso, desde a morte do Coronel. Mattie
já estava acomodada no quarto de Becky.
— Não me conformo, Ma. Por que fez a
loucura de sair dirigindo sozinha até
Tauton? Podia ter me chamado! — Henry
protestou.
— Não sei o que me deu, Henry. Pensei
que. achei que estava fazendo o melhor.
— E quase se matou! Devia ter ficado
em algum lugar em Tauton, em vez de
voltar, Ma. Parece que está perdendo o
juízo — Henry censurou.
— Acho que sim — ela riu. — Eu não
conhecia ninguém em Tauton e nem a
polícia estava na rua para dar informações.
Achei melhor voltar e passar na casa do
doutor Geddes, no caminho. Depois de ter
certeza de que ela estava bem, o que
poderia ser melhor do que voltar para
Casa? Faltava pouco!
— Ma, foi a pior nevasca em setenta
anos. Pare de se julgar uma fortaleza!
— Que conversa boba, Henry!
— Mary foi para a cozinha, onde Becky
e Anna preparavam a massa das tortas.
— Esses homens! — ela esbravejou.
67
— São terríveis, mesmo. O que foi que
o Henry fez agora?
— Anna perguntou.
— Ora, esses homens acham que têm a
melhor solução para tudo. Não conseguem
nem se organizar em casa! Seu marido
está se tornando um porco chauvinista,
Anna. Precisa dar um jeito nele.
— Pode deixar comigo — Anna
respondeu, séria.
— Becky estragou tudo, caindo na
risada, no que logo foi seguida por Mary e
Anna.
— Mary Kate olhou para o relógio, pôs
o caldo de carne numa tigela e subiu.
Mattie estava acordada, mas nem se mexia
na cama. Mary pegou um travesseiro e
ajudou-a a se recostaf.
— Tome um pouco desse caldo — Mary
disse. — Está quente e vai lhe fazer bem.
— Pensei que nunca mais ia me
esquentar. Precisava ver como estava frio,
lá! — Mattie comentou.
— Na verdade, você não escolheu uma
época muito boa para fugir. Quer me
contar o que aconteceu?
— Não. Se eu contar, você vai ficar
brava comigo e me mandar de volta.
— Mary puxou uma cadeira para perto
da cama, sentou-se e acariciou o braço da
garota.
— Já devia saber que sou sua amiga. E
como posso mandar você para algum
lugar? Tem quase um metro de neve lá
fora, as estradas não foram desimpedidas
e ainda estão consertando a linha
telefônica. Não temos como sair daqui;
portanto, pode começar a falar!
— Está bem. Minha avó e minha tia não
gostam de mim. Só meu pai é que gosta...
e você e a Becky. Minha avó acha que é
uma grande dama. Gosta de se arrumar e
ir na casa das amigas. Elas ficam sentadas,
jogando cartas e falando dos outros. Eu
tinha que ir com ela, todo dia! "Ponha um
vestido limpo, Matilda. Ponha uma fita no
cabelo. Fique quietinha para a vovó
conversar com estas senhoras" e dizia mais
um monte de coisas chatas. Imagine que
não me deixava comer na mesa com elas!
Dizia que eu era muito pequena. Bem que
eu ouvi quando elas disseram que eu era
uma boba.
— O que você ouviu?
— Ah, foi um dia que eu estava com
sede e desci para tomar água. Elas não me
viram, mas eu ouvi elas falarem mal de
mim
68
— EL
e do papai. Sabe que é ele quem dá
dinheiro para elas? Estavam rindo e
chamando papai de bárbaro e eu de boba.
Foi daí que eu decidi sumir de lá, Ma.
Detesto aquelas duas.
— Mary não sabia o que fazer. Mattie
não voltaria para a casa da avó em
Newport. O pai estava na Arábia Saudita.
Ela teria que ficar em Eastboro. Pelo menos
até alguém entrar em contato com seu pai.
Mas havia algo mais.
— É melhor você dormir um pouco. Vai
ficar conosco até eu falar com seu pai, é
claro. Está bon?
— Tá bon, sim. Mas tudo ia ser bem
mais fácil se você casasse com meu pai —
a menina suspirou.
— Mary ficou acariciando a mão de
Mattie até ela adormecer; depois ajeitou as
cobertas. Ao sair do quarto, sussurrou:
— Talvez você tenha razão, querida.
— Henry estava na sala quando Mary
desceu. Falava com alguém ao telefone.
— Já está funcionando? — perguntou,
distraída.
— Não, estou só treinando — Henry
disse, rindo. — Estava falando com o
xerife. Ele disse que estão tirando a neve
das ruas principais e que dentro de mais
dois dias as estradas estarão
desimpedidas. Não há feridos. Parece que
todos tiveram o bom senso de ficar em
casa durante a tempestade.
— Não queira bancar o "sabe-tudo".
Preciso avisar a avó de Mattie e depois.
achar o pai dela. Nem sei o nome da avó e
Mattie não quer me contar. Está com medo
de que a mande de volta.
— Mas é claro! É isso que precisamos
fazer, Ma. Quando as estradas estiverem
limpas, vamos ter que mandar a menina de
volta.
— De jeito nenhum, Henry! Não
mandaremos Mattie de volta. Se aquele
tonto do pai dela quer que ela fique em
Newport, que venha buscá-la. Nós não
vamos mandar a menina a parte alguma!
Para lugar nenhum, entendeu? — Mary
esbravejou, com os olhos brilhando.
— Ora, Ma. Não precisa criar confusão
por causa disso. Você é quem manda. Se
quer que ela fique, ela fica — Henry
respondeu, pondo as mãos nos ombros de
Mary.
— Ai. Henry! Não sei mais o que fazer.
Estou tão confusa!
— Encostou a cabeça no ombro do
enteado e chorou, soluçando.
— Ele esperou que ela desabafasse e
depois lhe deu um lenço enorme para
enxugar os olhos.
69
— Tudo vai dar certo, Ma, não se
preocupe. Deve estar nevando tanto em
Newport quanto aqui. As estradas também
devem continuar bloqueadas. Acho que o
melhor a fazer é telefonar para a polícia de
Newport e avisar que Mattie está conosco.
É isto que a preocupa, não é?
— Mary ia concordar, o que seria uma
mentira, mas conseguiu se conter a tempo.
Olhando firme nos olhos de Henry,
respondeu:
— Não, Henry. Não é isso.
— Sem poder explicar o que sentia, foi
se refugiar na cozinha. Precisava fazer um
pão. Pegou a lata de farinha, sob os
olhares espantados de Becky e Anna. Isso
mesmo, precisava fazer um pão: dissolver
o fermento na água morna, misturar a
farinha e os outros ingredientes e, então,
amassar, esticar, bater e sovar a massa,
até colocar para fora todas as suas
frustrações.
— O jantar foi leve. Henry trouxe Mattie
para baixo e instalou-a numa poltrona
grande, bem coberta. Tomaram uma canja
nutritiva e saborosa e, então, foram
decorar a árvore de Natal. A neve
recomeçou a cair em flocos enormes, mas
já não ventava tanto.
— Como não faltavam mãos para
ajudar, Mary voltou à sala de estar,
sozinha. Precisava pensar.
— Acomodou-se no sofá, sentando-se
sobre os pés, e soltou a imaginação.
"Vamos supor, só supor, que ele estivesse
falando sério e me pedisse em casamento
outra vez? Ou será verdade o que ele
disse. que estou sempre carregando o
Coronel nos ombros? "
— Mary olhou à sua volta, observando
cada detalhe daquela sala confortável e
protetora. Seria isso mesmo? Protetora?
Tinha se envolvido com as vidas de Becky
e Henry, sem dúvida. E, nos últimos anos,
não precisava se preocupar com mais nada
além do casamento de Becky. Quando
Becky saísse da igreja nos braços de um
homem de sorte e —fosse seguir seu
próprio caminho, o que aconteceria com
Mary Chase? Estaria preparada para
suportar a casa vazia, dormir noite após
noite numa cama solitária e esperar a
visita dos filhos de Becky e de Henry?
Todos a julgavam uma mulher assentada,
com a vida definida. O que o Coronel diria
daquilo tudo? Sabia a resposta sem
precisar perguntar. O Coronel gostava de
lembrar: "Nunca olhe para trás. É o futuro
que conta".
— O velho e querido Coronel. Mary
deixou que as lembranças invadissem sua
mente; repassou os momentos felizes, as
alegrias e problemas que enfrentaram
juntos, o amor que sempre reinou
— 70
— naquela casa. Compreendeu, depois,
que já podia guardar essas lembranças em
um canto remoto de seu coração. O coronel
poderia, finalmente, descansar em paz.
— Ouviu o riso que vinha da outra sala.
Tentou se levantar. Alguém precisava
contar a Bruce. Contar o quê? Que Mattie
estava bem, é claro! Contar-lhe que. mas
ela aíastou a idéia. Ainda não era hora.
Uma mulher devia esperar pelo pedido.
Precisava, também, pensar em Becky. Foi
devagar até o telefone. O relógio da parede
não estava funcionando. Quantas horas
ainda faltavam para a meia-noite? Dando
de ombros, pegou sua agenda e ligou para
o escritório em Boston.
— O telefone pareceu tocar uma
eternidade. Mary ia desistir quando uma
voz masculina e mal-humorada atendeu.
— Sala de emergência da Corporação
Latimore.
— Mary sentiu todas as vibrações de
irritação que lhe chegaram
— Pelo telefone, o que ajudou a lhe
tirar um pouco a coragem.
— Aqui é. Eu. eu preciso falar com o sr.
Latimore.
— Ora, dona! É véspera de Natal. Ele
não está.
— Estou com um problema.
— Eu também — ele rugiu. — Estamos
com setenta e cinco peças do nosso
equipamento espalhadas pela Nova
Inglaterra e o governador acaba de
requisitar esse equipamento para limpar as
estradas.
— Aquilo foi demais para ela. Já estava
cansada de lidar com Latimore, o
construtor de estradas, sem precisar ter
problemas com o Grande Latimore, o dono
de um império. E agora ainda vinha aquele
chauvinista de boca grande lhe dizer
desaforos! Explodiu:
— Escute aqui, espertinho. Não me
interessa que tenha perdido todos os seus
"brinquedinhos" na neve. Coitadinho!
Agora escute. Estou com um problema. É
uma garota perdida que se chama Mattie
Latimore! E agora, o que tem para dizer?
— Santa mãe!. Está falando da filha do
patrão? — ele perguntou, mudando o ton
de voz.
— Isso mesmo, a filha do patrão. —
Ouviu que ele falava com outra pessoa no
escritório e voltou ao telefone
— Dona, sabe onde a menina está
agora?
— Está comigo.
— Dona, não vá me dizer que seu nome
é Mary Chase.
— O tigre deixou-se domar em questão
de minutos! Mary não pôde deixar de sentir
o gostinho da vitória.
— 71
— Se isto significa muito para o senhor,
gostaria de lhe dizer que não sou Mary
Chase. Mas, infelizmente, sou — riu,
percebendo o constrangimento do homem.
— Mas que diferença faz?
— Que diferença? Faz trinta anos que
trabalho para os Latimore, dona. Ganho
bem, aqui. Tem uma mensagem enorme
no quadro cie avisos que o próprio patrão
escreveu: "Qualquer contato com ou sobre
Mary Chase são da máxima importância.
Sem exceção". Isto pode significar que
acabo de perder meu emprego, dona Mary.
— Não se preocupe. Não é preciso se
culpar por estar cansado na véspera do
Natal. Bem, a menina fugiu da casa da avó
em Newport. Está comigo e está bem.
Outra coisa: preciso muito falar com Bruce.
com o senhor Latimore, e não sei como.
Aliás, não sei o seu nome. Pode me dizer
como localizar seu patrão?
— Puxa! Bem... já tinha ouvido falar da
senhora, dona Mary, e da estrada e. bolas!
Quer me dar o número do seu telefone?
Peço para ele ligar para a senhora. Vai
demorar um pouco, sabe como é. Ele está
num lugar e. são seis horas da manhã
onde ele está. Ele liga para a senhora.
— Obrigada, senhor.
— Riley.
— Não se preocupe — voltou a
tranqüilizá-lo. — Feliz Natal, senhor. Smith.
— Já era quase meia-noite quando a
decoração da árvore ficou pronta. Depois
de comerem bolachas de mel, Mary
mandou as garotas para a cama, enquanto
Henry e Anna arrumavam os presentes em
baixo da árvore. Quando terminaram, os
três adultos tomaram chocolate quente
com licor. Em seguida, Henry e Anna foram
se deitar.
— Mary sabia que Becky se levantaria
cedo para ver o que ganhara. Embora não
acreditasse em Papai Noel desde os seis
anos, a garota ainda vibrava com a
surpresa das manhãs de Natal. Mary
estava cansada e precisaria estar de pé
cedo, com as meninas, mas não conseguiu
ir se deitar. Bruce iria ligar. Estava certa de
que ele ligaria! Acomodou-se na cadeira ao
lado do telefone e tricotou até dormir.
— O toque do telefone despertou-a às
duas da manhã. A telefonista, com voz
agradável e sotaque carregado, completou
a ligação. A voz de Bruce surgiu, depois de
uma série de ruídos.
— O que está errado agora? — foi logo
perguntando.
72
— Vou bem, obrigada — ela respondeu,
com secura. Espero que também esteja
bem,
— Mary — disse, um pouco menos
agressivo, — estou muito ocupado.
Estamos enfrentando uma tempestade de
areia terrível por aqui e perdemos quatro
máquinas.
— Sinto que tenha perdido seus
"brinquedinhos" — ela retrucou e levantou
a voz. — Perderam máquinas por aqui,
também. Nós estamos enfrentando a pior
nevasca dos últimos setenta anos, se quer
saber
— lá me disseram. Era isso o que
queria contar?
— Não. Sua filha fugiu no meio da
tempestade.
— "Vamos ver se agora presta atenção
no que eu digo, Bruce Latimore", ela
pensou.
— Mattie? Fugiu durante a tempestade
de neve? O que aconteceu? — ele
perguntou, perdendo toda a arrogância.
— Ela fugiu da casa da avó, mas me
procurou. Está comigo. Ficou um pouco
resfriada, mas já está melhor. Diz que a
avó não gosta dela e não quer voltar.
— Como não quer voltar? Vai voltar,
sim. Olhe o que está fazendo comigo, Mary
Kate: encorajando a menina a
desobedecer, Ela vai voltar1. E já!
— — ]á, já! Sim, senhor. As estradas
estão bloqueadas com a neve. Quer que eu
puxe um trenó até Newport? Ou que
amarre a menina num passarinho que
esteja voando para lá? Só que, com este
tempo, nem os urubus querem voar'.
— Desculpe... Eu não imaginava...
— Claro que não'. — ela gritou. —
Nunca desconfia de nada! Pensa que é só
bater com sua varinha mágica e tudo sai
como você quer, o sol brilha e derrete a
neve e nós, que te amamos tanto, ficamos
sentadinhos, esperando que perceba que
existimos, não é seu. seu mandachuva sem
coração?
— O que foi que você disse? — ele
perguntou.
— Sem coração! — ela rugiu.
— Não foi isso — ele riu. — O que disse
antes?
— Eu disse...
— Quando percebeu o que tinha dito,
começou a rir entre lágrimas. Estava feliz
porque conseguira dizer e porque tudo
indicava que ele esperava ouvir aquilo.
Teve raiva de sua estupidez por ter levado
tanto tempo para perceber.
— Não me lembro do que disse —
mentiu. — Mas é melhor você. Se quer que
Mattie volte a Newport, vai ter de levar
— 73
— você mesmo. E é bom que venha
logo, ela está bem chateada. Nenhum filho
gosta de passar o Natal sem o pai. Parece
que tem vento na cabeça, Bruce Latimore!
É melhor vir correndo para cá, está me
ouvindo?
— Claro que estou! — ele riu. — Foi o
melhor presente de Natal que eu podia
ganhar!
— Não se esqueça de trazer uma pá
quando vier. Nem todas as estradas estão
livres e...
— E vou fazer toda essa longa viagem
só porque Mattie precisa de mim? — ele a
interrompeu.
— O que está querendo de mim? Está
bem, também preciso de você. Satisfeito?
— Ainda não. Prefiro ouvir
pessoalmente. Já estou pronto para voltar.
Mande minhas saudações ao Coronel — ele
disse. E desligou.
— Saudações ao Coronel? O que ele
queria dizer com aquilo? Mas ia voltar!
Bem, isso se conseguisse decolar com uma
tempestade de areia e aterrissar numa de
neve! Mary foi até a janela e afastou a
cortina. A neve já não caía e, por entre as
nuvens, podia-se ver algumas estrelas.
Aquilo era um bom presságio. Subiu as
escadas rindo sozinha. Sim, ele viria. Ele
era capaz de qualquer coisa.
— Era, de fato. Mas a viagem levou
mais de vinte e quatro horas. Enquanto
isso, a família levantou-se cedo. Depois de
abrirem os presentes e tomarem café,
foram todos para fora, fazer uma batalha
de bolas de neve. Como para as vacas
nunca é feriado, Henry desbloqueou o
caminho entre a estrada principal e o
curral, para que os caminhões da coleta de
leite pudessem fazer seu serviço. Anna
logo voltou para casa; Becky e Mattie
brincaram na neve até cansar.
— Jantaram as sobras do almoço. O
presunto assado com abacaxi parecia
suficiente para alimentá-los até o Ano
Novo. As duas meninas, mortas de
cansaço, tomaram um banho e foram
contentes para a cama. Às dez horas, a
casa estava no mais absoluto silêncio. Lá
fora já não ventava. A temperatura devia
estar por volta dos cinco graus e muitas
estrelas brilhavam no céu.
— Mary sentou-se na sala, esperando.
Seus nervos estavam à flor da pele.
Qualquer barulho a assustava. Corria à
janela cada vez que ouvia o ruído de um
carro passando na estrada. Mas nenhum
deles entrava na Fazenda Somerfield. À
meia-noite, ela já não suportava. mais
aquela espera. Para se distrair, começou
— 74
— a limpar a casa. Às duas horas, subiu
para tomar banho. Ao sair da ducha, o
silêncio da madrugada fria voltou a
envolvê-la. Enxugou-se com vigor e estava
começando a secar o cabelo quando um
ruído a assustou. Parecia uma porta
batendo." Teria deixado a porta da frente
aberta? Quase impossível. Mas como não
estava agindo muito dentro do normal nos
últimos três dias, era melhor descer e
verificar. Enrolou uma toalha na cintura e
já quase nos últimos degraus, percebeu
que não estava sozinha. Vindo da cozinha,
com um copo na mão, surgiu Bruce
Latimore.
— Pensei que não tinha ninguém em
casa — disse, de um modo estranho. —
Como está Mattie?
— Mary estava imaginando por que ele
não a tomava nos braços, não a beijava?
Não tirava os olhos dela, mas parecia mais
distante do que... a Arábia Saudita!
— Está lá em cima, dormindo — disse,
afinal. — No quarto à direita da escada.
— Bruce se aproximou. Parou no
mesmo degrau que ela, devorando-a com
os olhos.
— Volto daqui a pouco — ele murmurou
e subiu os degraus de dois em dois. Entrou
no quarto na ponta dos pés e não ficou lá
mais que um minuto. Quando voltou, a
expressão de seu rosto estava diferente.
Ele sorria.
— Parece que ela está bem —
comentou.
— "Está" bem.
— Ótimo. Agora vamos falar de você.
— De mim? O que há de errado
comigo?
— Primeiro, Mary Chase, quero "jantar"
com você. Segundo: não vou conseguir
conversar com você quase nua na minha
frente. Dou um minuto para resolver: ou se
veste ou vai para a cama comigo.
— Só então ela percebeu que estava
usando apenas uma toalha mal presa à
cintura. com um grito abafado, cobriu os
seios com as mãos, o que só fez o sorriso
dele aumentar.
— Sua mão é muito pequena para
esconder tudo. Não acha que a minha é
melhor? — ele perguntou, cobrindo um dos
seios com sua mão grande e quente.
— Não. Não!
— Mary se afastou até bater com as
costas no corrimão. Saiu correndo escada
acima e fechou a porta do quarto. Confusa,
ficou andando de um lado para outro até se
acalmar um pouco. Abriu
— 75
— a porta do armário, procurando algo
para vestir. Algo solto, largo, que a
cobrisse dos pés à cabeça; que a
escondesse, enfim. Resolveu colocar um
macacão inteiriço, de mangas compridas,
fechado com um zíper, que subia até o
pescoço. Antes, porém, fugindo ao hábito,
vestiu o sutiã e uma calcinha até a cintura.
O cabelo ainda estava molhado e ela o
deixou solto.
— Desceu a escada com a cabeça
erguida. Repetia para si mesma que era
preciso manter a aparência fria e distante.
Entrou na sala com um ar de vitória mas,
por dentro, estava ansiosa como uma
garotinha em seu primeiro encontro com o
namorado. Ele continuava na sala e girava
o gelo no copo.
— Já estou no segundo — disse,
erguendo o copo em saudação. — Espero
que não se zangue. Foi uma viagem
terrível.
— Fazendo sinal de que não tinha
importância, ela dirigiu-se para uma
poltrona. Mas ele a puxou, obrigando-a a
sentar-se ao seu lado, no sofá.
— Conte tudo — pediu.
— Bem, já era tarde da noite. Nevava
muito quando recebi o telefonema de
Mattie e...
— Não, não é nada disso. já vi que ela
está bem, Mary. Quero saber da parte mais
importante.
— Parte mais importante? Não estou
entendendo.
— Ora, ora — ele riu. — Parece que
tem só dezesseis anos com esse cabelo
solto. Tem certeza de que Becky é mais
nova que você?
— Deixe de ser bobo! Ei... o que está
fazendo?
— Ele a envolveu com os braços e
colocou-a em seu colo. Depois do susto
inicial, não parecia uma má idéia. Ela se
afastou um pouco para observar aquele
rosto indecifrável. Depois, encostou a
cabeça no peito de Bruce, ouvindo as
batidas de seu coração.
— Estou esperando — ele disse.
— Esperando o que?
— Esperando que me diga por que
sentiu falta de mim.
— Ah, isso. Bem... estive. estive
pensando.
— E daí?
— Pensei que... Mattie disse que... tudo
seria bem mais fácil para nós todos se eu...
nós dois nos casássemos.
— Essa menina é mesmo inteligente.
Deve ter puxado ao pai. E você, o que
acha?
— Depois de pensar muito no assunto,
achei que Mattie precisa de uma mãe.
Também acho que não seria mau para você
— 76
— ter uma esposa... mas também
preciso pensar em Becky. Ela é muito nova
para ficar sozinha, mas também já está
muito grande para obedecer sem discutir.
Preciso falar com ela e...
— Ele a interrompeu com um beijo
suave, mas profundo. Quando a soltou, ela
estava sem ar. Então ele sussurrou junto
ao seu ouvido:
— Concordo com tudo o que você disse.
Mas e o Coronel?
— O Coronel sempre foi uma pessoa
maravilhosa. Mas agora está morto.
— Tem certeza?
— Absoluta — ela respondeu. — Você
tinha razão. Eu estava investindo a minha
vida nos objetivos dele. Sempre fiz tudo
pensando em Becky e Henry. Continuo
amando os dois, mas o Coronel está morto.
— E assim posso ter você só para mim?
— Acertou — ela murmurou. — Eu te
amo.
— E assim termina a estória da
Madrasta Má — ele riu, abraçando-a com
força.
— Voltou a beijá-la, desta vez com
mais paixão, acariciando seus longos
cabelos. Ocorreu a Mary que talvez os
livros mentissem, pois não sentia o fogo da
paixão. Só conforto, um doce prazer, paz.
Deixou suas mãos correrem pelas costas
dele, contente por estar assim. Então,
como que por acaso, a mão de Bruce subiu
da linha dos quadris até os seios,
incendiando todo o seu corpo. As mãos de
Mary deslizaram por baixo da camisa dele,
ansiosas por sentir o calor de sua pele. Mal
percebeu quando ele abriu o zíper do
macacão, que escorregou pelos ombros e
caiu até a cintura. Afagando os pêlos do
peito de Bruce, Mary tremia.
— Quando ele, impaciente, arrancou-
lhe o sutiã e se curvou para prender o bico
de seu seio nos lábios, passeando a língua
quente sobre ele, Mary correu os dedos
para os cabelos e a nuca de Bruce,
abandonando-se ao prazer que a invadia.
Repetia seu nome, sussurrando, e gemeu
quando sentiu aquelas mãos ávidas
escorregarem do estômago para os
quadris. O abajur caiu, fazendo um barulho
alto, mas Mary mal se deu conta do que
aconteceu. Estava com as pernas sobre o
colo de Bruce, os ombros sobre o sofá,
quando a mão dele deslizou, suave, para
dentro da calcinha. Mary deixou escapar
um grito abafado, esperando o que vinha a
seguir, mas uma vozinha veio quebrar a
atmosfera de encanto:
— Papai! Você chegou!
77
— Mattie estava na porta. Bruce
levantou-se abruptamente derru bando
Mary no chão. Como um lutador que cai na
lona depoide um golpe forte, ela sacudiu a
cabeça e viu a menina entrar correndo e se
atirar nos braços do pai. Só então percebeu
o qu estava acontecendo! Vermelha dos
pés à cabeça, tratou de vestir e fechar o
macacão o mais depressa que pôde.
— O que está fazendo no chão, Ma? —
a menina perguntou.
— Mary sacudiu a cabeça, sem saber o
que dizer, mas Brucc salvou a situação com
uma mentira:
— Está procurando minha caneta que
caiu.
— Deixa para lá, Ma. De manhã eu
ajudo a procurar. Mas o que aconteceu?
Parece que você está sem ar, Ma.
— Deve estar, deve estar — Bruce
disse, rindo para Mary.
— Mas agora é melhor voltar para a
cama, princesa.
— Para surpresa de ambos, a garota
sorriu e subiu as escadas como um
foguete. Mary e Bruce ficaram de mãos
dadas, esperando que a porta do quarto se
fechasse.
— Acho que é melhor nos casarmos —
ele murmurou. É
— E logo! — ela respondeu, abraçando-
o.
78
CAPÍTULO Vii
Mas dizer era uma coisa e fazer, outra.
O primeiro problema, pela ordem, era
Becky, sem dúvida, Quando Bruce e Mattie
foram passar um dia em Newport, para
serenar os ânimos da avó ofendida, Mary
resolveu atacar o assunto. Às nove horas,
entrou no quarto de Becky, com duas
xícaras de café.
— Parecia que um furacão tinha varrido
o pequeno cômodo. Havia roupas das duas
garotas sobre as cadeiras, pelo chão e por
cima do camiseiro. Não se via Becky, que
estava sob um monte de cobertores sobre
a cama, com a cabeça debaixo do
travesseiro.
— Que horror'. — Mary exclamou.
— O travesseiro se afastou um pouco e
o rosto da garota apareceu.
— Ma? Ah, está falando do quarto?
— Não mudou muito desde o tempo em
que eu dormia aqui, só que uma cama
ficava desocupada para eu ter mais espaço
para espalhar minhas coisas — Mary riu.
— Será que estou doente? Por que me
trouxe café na cama?
— Becky perguntou, livrando-se dos
cobertores e sentando-se na cama.
— Tinha abandonado as camisolas com
renda e agora usava uma camiseta com o
nome de um time de basquete. Só que
aquela camiseta jamais tinha passado pelo
corpo de um jogador. Cola-' va-se ao corpo
bem feito da garota como uma segunda
pele.
— 79
— Mary ficou imaginando se Bruce
dormia de pijama, com camiseta. ou nada.
— Ma, não vai me dar o café?
— Claro, claro. Acho que eu estava
sonhando —Mary riu. Pus pouco açúcar,
como você gosta.
— O que ia dizer, Ma?
— Eu? Não sei, acho que não ia dizer
nada. Não sei o que está acontecendo
comigo.
— Não sabe, é? Por que não pára de
fazer rodeios e se casa com ele?
— Acha mesmo que eu devo? — Mary
perguntou, com um fio de voz.
— Deixe de bobagem! Naquela noite,
quando o abajur caiu, eu desci a escada
com Mattie. Só que tive o bom senso de
subir correndo outra vez. Ele já estava com
a faca e o garfo na mão!
— Vermelha, Mary balançou a cabeça.
Quando se recompôs, perguntou:
— Acha que o casamento é uma boa
idéia?
— A melhor que podia acontecer neste
ano novo. Henry também acha.
— Henry? Você contou a ele?
— Claro! Quem mais está preocupado
com você além dele e eu? Sem deixar
Mattie de lado, é claro. É genial. Quando
vai ser?
— Nós... ainda não marcamos uma
data. Só que tem um problema, Becky. Eu
quero me casar com ele. E você, meu
bem?
— Eu? Qual é o problema comigo? Você
é minha mãe desde que eu tinha cinco
anos. Não está querendo me deixar para
trás agora, está?
— Claro que não, Becky. Só acho que
tem idade suficiente para saber o que quer
e merece escolher o que é melhor para
você. Antes de qualquer coisa, se não
quiser que eu me case com Bruce, desisto
agora mesmo.
— Que bobagem, Ma. É melhor casar
que morrer de vontade. Quais são as suas
opções?
— Bem, se concordar com o
casamento, pode ir morar com Henry e
Anna, ficar aqui com uma governanta ou se
juntar a Bruce, Mattie e eu.
— Ora, Ma. Não tem escolha nenhuma.
É em volta de você que o mundo gira e eu
quero ficar perto do movimento. Claro que
prefiro ir com você. se ele não for contra.
— 80
— "fc.
— Nem pode ser — Mary respondeu,
sorrindo. — Ele sabe muito bem que, desde
que você queira, só viverei com ele se
puder levá-la junto.
— A garota abraçou Mary com força,
fazendo com que ela derramasse o café, já
frio, no chão. A cena terminou com risos.
— Naquela noite, quando contou o que
tinha acontecido a Bruce, observou-lhe
bem o rosto, estudando sua reação. Como
recompensa, recebeu um sorriso satisfeito.
— Claro que Becky vem conosco1.
Vamos ter uma babá morando em nossa
casa! — ele riu. — E, então, quando nos
casamos?
— Mary queria que fosse o mais rápido
possível. Mas no primeiro dia do ano,
quando reuniu a família para conversar
sobre o assunto, ninguém parecia ter a
mesma pressa.
— Queria uma coisa bem simples.
Pensei numa reunião íntima, depois da
cerimônia no cartório — disse Mary.
— Não, não. Nada disso! — Becky
protestou, logo imitada por Mattie.
— Também não concordo — Anna
disse. — Assim fica parecendo que tem
algo a esconder, Ma. Afinal, sempre
freqüentamos a igreja. Além do mais,
sempre quis ser dama de honra e
— não é todo dia que se tem a
oportunidade.
— Apoiado! Ainda mais ser dama de
honra no casamento da própria mãe! —
Becky disse, animada.
— E eu que vou levar minha mãe ao
altar! — Henry cornpletou. — Também
gosto de casamento na igreja.
— Isto é uma democracia. Vamos
votar! Votar! — Becky gritou. — Quem for
a favor de um casamento na igreja que
levante a mão!
— Cinco mãos se levantaram no mesmo
instante. Mary olhou para Bruce, esperando
uma instrução, uma ajuda. Ele sorria, com
a mão também levantada. Vendo sua idéia
rejeitada, Mary não quis ceder.
— Ora, é meu casamento! Será que não
tenho direito a dizer o que penso?
— Claro que tem, querida. Ê só votar —
Bruce respondeu. O sorriso de Bruce e os
rostos animados daquelas pessoas
queridas fizeram Mary tomar sua
decisão. Levantou a mão, devagar,
disposta a enfrentar as dificuldades que até
então pretendera evitar.
E elas não tardaram a aparecer.
81
— Janeiro não é um bom mês para
casamentos — o padre afirmou. — Sempre
há problemas com o tempo, o que dificulta
o transporte da noiva e dos convidados.
Além do mais, o organista viaja nas duas
primeiras semanas do mês e eu tenho um
congresso nas duas últimas. Sabe qual é o
melhor dia para você se casar, Mary?
Ela olhou-o, surpresa. Tinha sido
batizada por ele e recebido a primeira
comunhão de suas mãos. Não mudara
quase nada em todos aqueles anos.
Continuava o mesmo homem alto, magro e
distraído, com o colarinho engomado
sempre um pouco fora do lugar. E agora
iria determinar o dia do seu casamento.
— Sabe, Mary Kate?
— Não faço idéia.
— Dia de São Valentim, 14 de
fevereiro. O dia dos namorados aqui nos
Estados Unidos. O que acha?
— Mas. ainda está tão longe! — ela
protestou.
— Não vá me dizer que "precisa" se
casar depressa, Mary Kate! — o padre
disse, arrumando os óculos e franzindo a
testa.
— Não, não é isso — ela riu.
— Então já vou anotar.
— Os dedos compridos do padre,
deformados pela artrite, escreviam o que
ele dizia alto e devagar: "Casamento de
Mary Katherine Chase e Bruce P. Latimore,
dia catorze de fevereiro".
— Naquela noite, Mary perguntou a
Bruce qual o significado daquele "P", mas
ele também tinha perguntas a fazer e ela
acabou sem a resposta que queria. Era
sexta-feira e não podia deixar de ir à aula
em Boston. Nunca falara claramente a
Bruce a respeito de seu curso. Sem saber o
que ela estudava, seria bem mais difícil
que ele descobrisse "quem" estava por trás
do atraso da construção da estrada. E a
defesa dos interesses de Henry e Becky era
algo de que não pretendia abrir mão.
— Mary quase teve um ataque na noite
em que a família se reuniu para decidir
quem convidar. Não que fosse contra
alguém da lista mas, no final, eram
duzentos e dezesseis convidados! E ela
queria um casamento simples, íntimo. Mas
contrariar a todos era o mesmo que
enfrentar os leões do circo romano e Mary
foi dormir cansada e emburrada naquela
noite.
— Depois da lista de convidados foi a
vez de tratar da igreja, do bufê para a
recepção e do fotógrafo. Havia detalhes
menores, mas não menos trabalhosos,
como mandar remover a neve da frente da
igreja. O que mais preocupava Mary,
porém, era
— 82
— o vestido, e ela falou sobre isso com
Bruce. Três dias depois, de manhã, uma
senhora e três moças bateram à porta.
Envolvida nos trabalhos da casa, Mary
atendeu-as com um ar cansado.
— Bom-dia. Trabalho com vestidos — a
mulher disse. Mary olhou-a sem
compreender.
— Vestidos — a senhora repetiu. — Foi
o sr. Latimore quem me mandou vir aqui.
Será que me enganei?
— Vocês... vendem vestidos? — Mary
gaguejou.
— Nós fazemos vestidos — a mulher
corrigiu, como se a palavra vender fosse de
mau gosto.
— Mary convidou-as a entrar. Enquanto
as acompanhava até a sala, sua cabeça
disparou a pensar. Nunca aceitou e não
aceitaria, depois do casamento,
transformar-se em uma sombra do marido,
só abrindo a boca para dizer "sim, senhor"
ou "não, senhor". Ainda não compreendia
por que Bruce a escolhera para sua
mulher, já que parecia ter tanta vocação
para mandar.
— A sra. Frangini orientou-a na escolha'
do modelo e encarregou as ajudantes de
tirarem as medidas. Despediu-se,
prometendo voltar em uma semana. Não
faltou com a palavra.
— O vestido de noiva deixou Mary sem
fala. Era em veludo cor de pérola. Afinal,
como dissera a sra, Frangini, uma noiva
não deve tremer de frio durante a
cerimônia. A saia era ampla e longa. Não
tinha gola, mas o decote, rende ao
pescoço, era adornado com pele branca e
macia, assim como os punhos. O véu
deveria cobrir o rosto de Mary e cair até
pouco atrás dos ombros, preso por uma
tiara de ouro quase invisível. Os vestidos
de Becky, Anna e Mattie eram brancos,
com detalhes de renda no pescoço e
punhos, abotoados com delicados botões
de sírass.
— Mary estava maravilhada com os
trajes, mas não conseguiu compartilhar seu
entusiasmo com Bruce, naquele primeiro
dia de fevereiro. Ele não parecia muito
interessado. Nos vestidos, pelo menos.
Sempre que ela tentava lhe contar alguma
coisa, ele a beijava. Seus beijos já não
eram calmos e contidos. E quando tocava
em Mary, mesmo que apenas com o dedo
em seu queixo, fazia-a sentir um arrepio
dos pés à cabeça. E ele sabia disso!
— Tem certeza de que quer esperar até
o dia do casamento?
— sussurrou no ouvido de Mary.
— Absoluta! Calma, tigre. Seja
bonzinho e volte para a jaula
— ela respondeu.
— Isso vai me deixando curioso e
ansioso. Vai ver só o que acontece no dia
do casamento! — ele provocou, rindo.
— 83
— Pois espere para ver quem faz o que
em quem — ela desafiou.
— Sabe o que eu acho? Você está com
medo de mim.
— Eu? Imagine! — ela respondeu,
sabendo muito bem que, lá no fundo, tinha
um pouco, mas só um pouquinho, de medo
dele.
— Chegou o dia do casamento.
— O tempo era a maior preocupação de
Mary: dele dependiam a vinda dos
convidados e a festa. Se bem que sorte
talvez fosse mais importante que tudo isso.
A mãe de Anna afirmava que chuva traz
felicidade à noiva, mas a irmã do padre
dissera que "feliz é a noiva sobre a qual
brilha o sol". Quando chegou à igreja,
estava nevando outra vez. Quando Mary
reclamou, Henry riu.
— Não se preocupe, Ma, tudo vai dar
certo.
— Tinham chegado à igreja em
limusines, atrás do limpador de neve, tudo
providenciado por Bruce.
— Esse homem não se esquece de
nada! — Henry comentou, & olhando o
logotipo da Corporação Latimore pintado
no limpadorl de neve.
— Quando, o cortejo se formou na
porta principal, Mary estava uma pilha de
nervos. "O que estou fazendo? vou me
casar com o dono da Corporação Latimore!
Oh, Deus, por que ele quer se casar
comigo? ", perguntou-se. Henry deu-lhe o
braço naquele instante. O bom e fiel Henry!
As portas se abriram e lá estava ela, com
Mattie, Anna e Becky à sua frente. Seus
joelhos tremiam e não conseguia mexer os
pés. Henry murmurou:
— É sua última chance. Se quer sair
correndo, tem que ser agora!
— A vontade de rir aliviou os nervos de
Mary, que se pôs a caminhar ao ritmo da
marcha nupcial tocada pelo órgão.
— No altar, Henry levantou o véu,
beijou o rosto da noiva e a entregou a
Bruce.
— A cerimônia transcorreu sem
surpresas. Mary repetia as palavras rituais,
sem conseguir prestar muita atenção ao
que estava se passando... honrar... na
saúde, na doença... com este anel. Mary só
tinha olhos para Bruce. Sorria quando ele a
fitava e sentiu uma indescritível alegria
quando recebeu a aliança em seu dedo.
Um beijo quente indicou-lhe o fim da
cerimônia.
— Deixaram o altar de mãos dadas, sob
a música envolvente do órgão. Mary
sentia-se feliz e, sem perceber, apressou o
passo
— 84
— enquanto se dirigia para a saída.
Bruce apertou levemente seu braço,
fazendo-a andar mais devagar. Então
sussurrou em seu ouvido:
— Quando cruzarmos a porta, Deus
lançará um raio sobre minha cabeça.
— Por que faria uma coisa dessas? —
ela perguntou:
— Porque roubei um de seus anjos, só
que ele ainda não sabe. Enquanto recebiam
os cumprimentos, Bruce apresentou um
— homem pouco mais baixo e mais
forte do que ele:
— Mary, este é Charles Riley, meu
braço direito na firma. Aproveitando que
Bruce conversava com outra pessoa, Mary
— perguntou baixinho:
— Já consegue se sair melhor ao
telefone, senhor Riley? Charles balançou a
cabeça e riu, afastando-se.
— As limusines foram usadas outra vez
para transportá-los da Igreja ao clube,
onde seria a recepção. Um trator da
construtora de Bruce já removera toda a
neve do caminho, como já era de se
esperar. Para Mary, parecia haver uma
cidade inteira reunida na recepção. Os
convidados foram servidos, ergueram-se
brindes, o bolo foi cortado e flashes de
câmeras fotográficas não paravam de
espocar. Logo que pôde, Mary retirou-se
para uma saleta reservada. Tinha mil
recomendações a dar a Anna, Becky e
Mattie, que a ajudavam a trocar de roupa.
— Não deixe de cuidar bem de Mattie,
Becky. E vocês duas têm que obedecer à
Anna. Não vão dar trabalho a ela e... pena
que eu não possa levar todo mundo junto!
— As últimas palavras trouxeram
lágrimas aos olhos de todas, que se
abraçaram. Despediram-se e desceram
para encontrar Bruce, que já estava
impaciente.
— Eu estava me arrumando e elas me
ajudaram. — Mary começou a se desculpar.
— Precisávamos chorar um pouquinho
juntas. Não se zangue, por favor.
— Não estou zangado com você — ele
declarou. — O que me preocupa é a droga
do tempo. Estão prevendo uma bela
nevasca que pode obstruir as estradas.
com todo avanço científico, ainda não
descobrimos como controlar o tempo!
— As últimas palavras soaram tão
arrogantes que Mary olhou para ele,
surpresa, esperando ver um sorriso
naquele rosto amado. Mas Bruce se virou e
abriu a porta do carro, sério. Os
convidados gritaram vivas, fizeram as
brincadeiras de costume, e os noivos
partiram.
— 85
— O que se deve dizer a alguém que
acaba de se tornar seu marido e que está
dirigindo quando começa a nevar? "Dirija
mais rápido. Ouvi dizer que este lugar para
onde vamos é magnífico."
— Não foi uma cerimônia linda? — ela
disse, afinal.
— Foi, sim.
— Muitos quilômetros se passaram até
que ela arriscou:
— Carro novo?
— É — ele respondeu, sem dizer mais
nenhuma palavra por mais tantos outros
quilômetros.
— Não está com vontade de conversar?
— ela perguntou, aborrecida.
— Claro que estou! Gostaria de
pararmos aqui mesmo, mas esta
tempestade de neve está me deixapdo
louco. Na verdade, acho que é você quem
está me deixando louco. Sabe, estou
achando difícil chegar a Berkshires com
este tempo. Sei de um ótimo hotel logo
adiante, em Stockbridge. O que acha de
pararmos lá?
— Para mim, tanto faz — ela
respondeu, nervosa. Chegando ao hotel,
Bruce se encarregou das formalidades.
— Foram levados até um apartamento
amplo e claro, com uma vista bonita para
as montanhas, no terceiro andar. No
quarto, havia uma janela que ia do chão ao
teto, ao lado da porta que levava à escada,
coberta de neve.
— Enquanto Bruce dava uma gorjeta ao
carregador, Mary o observava. Sentiu um
arrepio lhe subir pelas costas. Algo
mudara, de repente. Até ali, ele tinha sido
um amigo, um companheiro, um
confidente mas, agora, era seu marido!
— Piscina aquecida e coberta — ele riu,
lendo o folheto de propaganda. — Ei, o que
há com você, meu bem?
— N-não sei — ela gaguejou. — Até
parece que sou uma virgem raptada! É
que. ontem eu me sentia à vontade para
falar com você. Só que hoje. Não sei,
parece que há um muro entre nós.
— Já sei. É esse muro aí — ele disse,
apontando para a cama entre eles. — Mas
é preciso pôr esse muro abaixo, Mary. É
para isso que se faz lua-de-mel.
— Sei que prometi te amar e honrar lá
na igreja, mas não queria que fosse. algo
imposto, mecânico...
— Está bem. São quatro horas, agora
— ele disse, consultando o relógio. — O
jantar é servido das sete às nove. Por que
— 86
— não aproveita para tomar um banho
e descansar um pouco? vou comprar o
jornal, que nem tive tempo de ler hoje.
— Antes que ela pudesse responder, ele
já tinha saído. Mary pegou o xampu e o
sabonete na bolsa de toalete. Quando
Bruce voltou, ela já estava deitada, coberta
apenas pelo lençol.
— Já venho ficar com você — ele disse,
e fechou-se no banheiro.
— Em menos de cinco minutos estava
de volta, com os cabelos ainda molhados e
uma toalha presa nos quadris. Ela o
observava, apreensiva.
— Ei, o que é isso? Relaxe! — Bruce
disse, deitando-se ao lado dela.
— Hum... fácil falar — ela protestou,
engolindo em seco. Num movimento
rápido, Bruce livrou-se da toalha e retirou
o
— lençol que a cobria. Estavam
deitados lado a lado, nus. A respiração de
Bruce se acelerou. Ele a olhava,
visivelmente ansioso. Um frio de puro
medo percorreu a espinha de Mary.
— Qual é o problema? — ele murmurou
junto ao ouvido de Mary, enquanto lhe
acariciava seus cabelos.
— Não sei... acho que é porque nunca
fiz amor à luz do dia. Posso fechar as
cortinas?
— Não, senhora — ele riu. — Quero
admirar você por inteiro.
— Ágil, colocou-se do outro lado da
cama e tomou os pés de Mary entre as
mãos. Começou a beijar-lhe cada dedo.
Mary riu, sentindo cócegas.
— Ah, assim é melhor. Está começando
a relaxar. Sabe que tem pés muito bonitos?
— Claro — ela respondeu, brincando. —
São únicos!
— Únicos por quê?
— Entre bilhões de pessoas que
existem no mundo, sou a única que pode
caminhar com eles.
— Isso é lógica feminina? E olhe que
joelhos! Magníficos ele disse, beijando um
de cada vez, enquanto sua mão corria pela
barriga da perna. — Só dobram para um
lado?
— Sim, e só para você, meu senhor.
— E amo — ele completou. — Isso é
muito bon. Acho que você vai ser uma boa
esposa, se eu lembrar de lhe dar uma
surra de vez em quando. Ei, por que está
se mexendo desse jeito?
87
— A sua mão! — ela disse, olhando
para os dedos que lhe subiam pela coxa. —
Não brinque com fogo, a não ser que
queira se queimar!
— Ora, e como quero!
— Brincando e provocando-a com
toques suaves e delicados, Bruce
conseguiu deixá-la à vontade, para
corresponder e participar daquele
momento há tanto aguardado.
— O medo cedeu lugar ao desejo e se
amaram intensamente, compartilhando o
delicioso prazer dos amantes.
— A viagem para Berkshires e os
passeios foram esquecidos. Permaneceram
no mesmo hotel, satisfeitos em apenas
estarem um com o outro, a intimidade
entre eles crescendo, aproximando-os.
— Apesar da saudade dos filhos, foi
com tristeza que viram os dias passarem
com rapidez e o domingo se aproximar-,
Era hora de partir e enfrentar o dia-a-dia.
— Já escurecia quando chegaram ao
centro de Eastboro. Não havia ninguém nas
ruas. O vento úmido soprava naquela noite
típica do inverno da Nova Inglaterra.
— Estacionaram em frente à casa que
agora seria o novo lar de Mary. Assim que
o carro parou, a porta da frente se abriu,
iluminando a varanda. Mary mal tinha
aberto a porta do carro, quando Mattie
desceu os degraus correndo e se atirou nos
braços dela, que a abraçou com muito
carinho. Becky vinha atrás, sorridente.
Beijou Mary e parou um tanto hesitante à
frente de Bruce.
— Seja bem-vindo — ensaiou e recebeu
um caloroso abraço. Mary suspirou,
aliviada. Agora, sim, tinha certeza de que
— tudo daria certo.
— 88
— CAPÍTULO VIII
— A vida nova foi um desafio para
Mary. Acostumara-se, durante anos, a
tomar decisões sozinhas. Agora,
experimentava novamente dividir tarefas e
emoções com um companheiro.
— Além disso, sua nova casa era muito
grande, contava com a ajuda de
empregados, e assumia a responsabilidade
de cuidar e orientar mais uma filha.
— Habituada à independência de Becky,
que nunca solicitara sua presença nas
atividades escolares, Mary ficou surpresa
quando Mattie apareceu, sorridente, com
um convite.
— É para a peça de teatro, na segunda-
feira — Mattie foi dizendo, antes mesmo de
Mary abrir o envelope. — Você vai. não é?
— Eu tenho que ir?
— Claro! Eu era a única menina da
classe que não tinha mãe. Agora que
tenho, é claro que você vai!
— Isso mesmo! Obrigação de mãe!
Becky confirmou, rindo. Na segunda-feira,
Mary saiu com seu velho Mustang e foi
— até a escola. Mal-acomodada numa
cadeirinha de criança, assistiu a uma peça
em doze atos, dos quais Mattie só aparecia
em dois.
— Depois do espetáculo, as coleguinhas
de Mattie a cercaram, bombardeando-a
com perguntas como: "É verdade que
Mattie carregou as alianças no seu
casamento? ". "Você é a mãe dela agora? "
89
— Às quatro horas já voltavam para
casa. Ainda faltavam alguns quilômetros
para chegarem, quando o carro se recusou
a ir adiante.
— Aborrecida, Mary pensou no que
fazer. Havia um telefone público do outro
lado da rua, e poderia telefonar para Bill, o
mecânico, ou, então, para Henry. Mas,
àquela hora, ele devia estar muito
ocupado. Também podia ir a pé para casa
ou... Riu, ao pensar nessa última
alternativa. Já eram quase cinco horas!
Procurou uma ficha telefônica na bolsa e
decidiu-se:
— Mattie! Vá até o telefone e ligue para
seu pai.
— Certo. O que é para dizer?
— Diga que o carro pifou e que
precisamos de uma carona! Ele chegou
vinte minutos depois. Balançava a cabeça,
olhando para o velho Mustang.
— O que vamos fazer com seu carro,
Ma? — Mattie perguntou.
— Não sei — Mary riu. — Isso agora é
com o papai. Ele riu e abraçou a mulher.
— Não exagere, madame — ele
brincou. — Não sou "seu" pai. Quanto ao
seu carro, acho que um depósito de ferro-
velho o aceita. Tinha esquecido dessa sua
relíquia.
— Mas eu preciso de um carro para ir a
Boston — ela se apressou em protestar,
temendo que a brincadeira se voltasse
contra ela.
— Não se preocupe. Não é para
resolver problemas que os maridos são
preciosos? Parece que ainda não se
acostumou com sua nova situação.
— "Claro que não." "Continuo tão
independente como sempre fui. Se bem
que uma ajuda é sempre bem-vinda",
pensou, recostando-se no banco macio do
Mercedes.
— Na terça-feira, ele fez questão de
levá-la pessoalmente a Boston, indo buscá-
la depois da aula. Mary ainda não queria
contar-lhe que estudava na Faculdade de
Direito da Nova Inglaterra. Conseguiu
convencê-lo a deixá-la em frente à
prefeitura, de onde pegou um táxi.
— Na quarta-feira de manhã, enquanto
se via dividida entre orientar Jennie na
arrumação da casa e acompanhar Pamela
na preparação do almoço, o rapaz da
revendedora de carros chegou com uma
perua novinha, desculpando-se por não ter
vindo no dia anterior.
— 90
— Não tínhamos este modelo na loja.
Quer dizer, tínhamos
— o modelo, mas seu marido foi muito
exigente quanto aos equipamentos de
segurança e tivemos que fazer uma troca
com outro revendedor.
— Quando Bruce voltou naquela noite,
ela sentou-se com ele em frente à lareira,
na sala, enquanto as meninas terminavam
as lições na sala de estudos. Mary
acomodou-se sobre uma almofada no chão,
repousando a cabeça sobre os joelhos do
marido. Aquele momento de relaxamento
tinha se tornado parte da rotina familiar.
— Não devia ter comprado um carro tão
grande para mim
— ela comentou.
— Quero que esteja bem protegida,
mocinha. Ou não sabe o quanto é
importante para mim?
— E você para mim — ela respondeu,
beijando-lhe a mão com ternura.
— A manhã seguinte marcou o início de
uma série de fatos que vieram perturbar a
felicidade de Mary. Charlie Mamson, o
advogado, telefonou.
— Mary Kate, tenho novidades que não
sei se são boas ou más.
— Tudo bem, Charlie. Pode falar.
— Bem, acontece que nossa audiência
na Corte foi adiada, desta vez para o dia
dez de março. Ouvi dizer que o juiz Harris
está muito doente. Disseram também que
vão mandar vir um outro juiz, de
Worcester, parece.
— Não vejo nada errado. Qual é o
problema, Charlie?
— Quem deve vir é a juíza Katherine
Osmond. Essa mulher é fogo, segundo
contam por aí.
— Ora, não acho que seja tão ruim
assim. Mais alguma coisa?
— Soube que a Latimore Corporation já
requisitou o envio de equipamento pesado
para Eastboro. Deve chegar dia quinze de
março. Já sabia disso?
— Não, Charlie. Não me casei com a
Latimore Corporation
— ela respondeu de mau humor.
— Pois devia saber. Deixe a munição
preparada!
— Mary planejou conversar
francamente com o marido naquela noite.
Mas, às três da tarde, a vontade começou
a fraquejar. Estava casada só há três
semanas, e não queria uma discussão com
Bruce. Talvez fosse melhor esperar uma
outra ocasião.
— 91
— Ainda estava indecisa, quando saiu
do banho no final da tarde e ouviu o carro
dele estacionando. Apressou-se em vestir
um suéter e uma saia e desceu correndo.
Ele já esperava por ela na sala, com um
copo de seu uísque favorito na mão.
Serviu-lhe, como sempre, uma taça de
vinho e sentou-se na poltrona com um
suspiro de alívio. Mary puxou a almofada, e
acomodou-se junto dele.
— Não está com uma carinha boa, hoje.
Algum problema?
— perguntou.
— Não, não é nada.
— Não, senhora. Vamos lá. Conte a
verdade, toda a verdade. Vai ser melhor
assim.
— Eu sei, mas você está cansado.
— Bruce puxou de leve a trança de
Mary e pediu:
— É melhor me contar o que está
acontecendo.
— Tudo bem. Estou cansada, Bruce.
Acho que é porque não tenho nada para
fazer. }ennie me olhou feio como se eu
estivesse roubando seu emprego, hoje de
manhã, só porque eu estava arrumando
nossa cama. E toda vez que eu entro na
cozinha, Pamela só falta me pôr para fora.
Não queria te aborrecer com isso, sei que
tem problemas maiores que os meus.
Estou tentando me adaptar, mas.
— já imaginava que isso seria um
problema — ele comentou.
— O que acha que podemos fazer?
— Bruce. E se mudássemos para a
fazenda? Posso dar conta de tudo sem
essas moças em volta. Não faltaria nada
para você e.
— Bruce a interrompeu com um beijo
leve nos lábios:
— Não, Mary. Há muitos fantasmas na
Fazenda Somerfield. Vamos continuar aqui,
na "minha" casa. Logo você terá muito o
que fazer, estou certo. Bem que eu queria
falar sobre a fazenda com você, mas achei
melhor esperar um mês, um mês e meio,
até que tivéssemos nos acostumado um ao
outro. Mas acho que precisamos tomar
uma decisão agora. Na minha opinião,
devemos vendê-la.
— As coisas estavam saindo pior do que
ela esperava. Bruce parecia calmo, mas
continuava com aquela postura autoritária.
Na certa, esperava que ela concordasse
passivamente. Mary afastou-se dele e
murmurou:
— Não, não posso fazer isso.
— Qual é o problema? O que a impede
de vender?
— 92
— Somerfield não é minha. Pertence a
Becky, e não a mim.
— A casa e metade da fazenda são
dela. A outra metade e a outra casa são de
Henry.
— Você não tem direito a nada? Como
esperava viver depois
— que Becky se casasse? Você é, a
responsável por ela, certo?
— Eu... eu recebo uma pensão do
Exército. É o suficiente
— para mim. E sou responsável por
Becky e seus bens até ela completar
dezoito anos.
— Que tempão! — ele ironizou. — O
mercado imobiliário
— anda muito bon, no momento. Até
para uma casa cujo destino é a demolição.
— Bruce tomou o resto de seu drinque,
como se o assunto estivesse encerrado.
Mary não se mexia, tentando controlar a
raiva que fervia dentro de si. Ele não podia
ou não. queria entender!
— Não, não posso vender a casa de
Becky — disse com firmeza.
— Bruce fechou o jornal que acabara de
abrir.
— Não? Quer dizer que não vai vender
a casa? — perguntou, calmo.
— Ela sacudiu a cabeça, esperando uma
explosão, mas, ao contrário, ele se limitou
a pegar seu rosto entre as mãos e beijar-
lhe a boca com carinho. Então, como se
nada tivesse acontecido, voltou a abrir o
jornal. Zangada, Mary se aprumou e puxou
de leve o jornal.
— não vou deixar que me força a
vender a fazenda. Não pode me obrigar a
vendê-la — Mary disse, com uma lágrima
rolando pela face.
— Não, acho que não posso — ele
respondeu, tranqüilo.
— O jantar daquela noite começou
tenso. Mas com as piadinhas de Becky e
Mattie sobre a seriedade dos dois adultos,
o mal-estar logo se dissipou.
— Mais tarde, quando estava entrando
no quarto, Bruce disse:
— Ah, já ia me esquecendo. Tem uma
porção de papéis para você assinar, agora
que é minha esposa. Quero que vá ao
escritório comigo amanhã de manhã. O
advogado da firma disse que vai deixar
tudo pronto. Quero que participe de uma
reunião da diretoria comigo. Depois,
podemos voltar juntos para casa.
— Estava sendo tão atencioso, que
Mary achou melhor esquecer o que a afligia
e aproveitar a noite, quando não havia
lugar para problemas. Só para o amor.
— 93
— Quando ia sozinha a Boston, Mary
perdia um bom tempo tentando achar uma
vaga para estacionar. Na volta, em geral,
não conseguia sair, por causa dos carros
parados em fila dupla. Mas Bruce, sem se
incomodar, parou em frente ao prédio de
escritórios, num local de estacionamento
proibido, onde um manobrista já o
esperava para levar o carro ao
estacionamento.
— Ah, então é esse o tratamento dos
nobres! — ela comentou.
— Bruce riu e, pegando-a pelo braço,
levou-a para dentro do prédio.
— Pois é. Agora veja isso.
— Os elevadores subiam e desciam
cheios àquela hora do dia, mas um
esperava por ele.
— Isso é que é ter privilégios — ele
disse, solene. Desceram no décimo quarto
andar. Ela o seguiu por um
— longo corredor forrado com um
carpete alto, bege. Ele a conduziu por uma
sala ampla, repleta de pranchetas e
escrivaninhas de ponta a ponta, todas já
ocupadas. Entraram por outra porta e ele a
fez sentar-se numa poltrona junto a
enormes janelas. Ia saindo, quando ela
chamou:
— Querido! — E, batendo continência,
ironizou: — Sim, senhor. Espero aqui e
aguardo novas ordens!
— Ele riu e desapareceu por outra
porta. Nos dez minutos seguintes, Mary
dedicou-se a examinar a sala. Para um
escritório, tinha bastante bom gosto. Os
estofados em verde e os móveis claros
davam leveza ao ambiente. Das janelas,
via-se o centro da cidade. O movimento
era grande lá embaixo e Mary sentiu-se
feliz por estar catorze andares acima
daquela confusão. Uma porta se abriu atrás
dela. Uma senhora de meia-idade,
elegante, se apresentou.
— Senhora Latimore? Sou Emma
Reines, secretária de seu marido. Queira
desculpar, mas o doutor Sanders, o
advogado, vai se atrasar um pouco. Seu
marido pediu que eu a levasse à sala da
diretoria, para que acompanhe a reunião
até que o advogado chegue.
— Reunião da diretoria? Nunca estive
em uma. — Mary comentou, pensando que
Emma era a secretária perfeita para um
homem bonito casado com uma esposa
ciumenta.
— Seis homens sentavam-se à mesa de
reunião. Bruce ocupava a cabeceira, e
Emma encaminhou Mary à outra
extremidade.
— 94
— Senhores — Bruce começou. — Esta
é Mary Kate, minha esposa. A partir de
hoje, é dona de dez por cento da
companhia. Ela é especialista em.
construções agrícolas — completou, com
um sorriso maroto nos lábios.
— Como todos olhavam para Bruce,
Mary aproveitou para lhe fazer uma careta.
Tinha vontade de sumir naquele momento.
— Tudo o que se falava na reunião era
novidade para Mary. Novos projetos,
diferentes países onde seriam implantadas
obras em andamento, custos, lucros,
despesas. Mary começou a divagar e
deixou de prestar atenção, até perceber
que se instalara uma discussão. Um dos
homens do meio batia o punho na mesa e
outros três falavam ao mesmo tempo. Ao
ouvir "estrada 695", Mary ficou alerta.
— Há seis anos que trabalhamos nesse
projeto — um deles reclamava. — Não
conseguimos receber nem metade das
faturas até agora, o que mal deu para
cobrir custos de pagamento de pessoal.
Espero que não se esqueçam dos custos de
uso das máquinas e equipamentos que se
desgastam. O Estado não vai nos dar mais
nem um tostão, até que terminemos
aquela maldita milha que falta. São seis
milhões de dólares em jogo! Se não
recebermos logo, o prejuízo vai comer
todos os lucros. Já está mais do que na
hora de irmos lá e falarmos grosso com
aquela mulherzinha!
— Bruce levantou-se, vermelho, e
quase gritou:
— Essa estrada é um projeto "meu".
vou cuidar dela de "meu" modo!
— Mas que diabos, não podemos deixar
que uma dona qualquer...
— Chega, por favor!
— Mary percebeu que o homem ao lado
do que aparteava tocou-o com o cotovelo e
segredou qualquer coisa em seu ouvido. O
outro calou-se no mesmo instante e olhou
para ela desconfiado.
— Emma pegou o braço de Mary.
— Vamos, o doutor Sanders já deve ter
chegado.
— Mary percebeu logo que a saída
estratégica tinha sido idéia do marido que
fizera um sinal para a secretária.
— Mais quinze minutos se passaram
antes que Sanders chegasse. Enquanto
isso, Emma tinha trazido café e sumido.
Sozinha, Mary pensava no que acabara de
acontecer. Na noite anterior, Bruce tinha
lhe dito para vender a fazenda. Agora,
anunciava
— 95
— que dez por cento da companhia
pertenciam a ela. Seis milhões de dólares
entrariam em caixa, assim terminassem a
estrada que devia atravessar a Fazenda
Somerfield. Seis milhões de dólares? E
Bruce dissera que aquilo era apenas um
"projeto pessoal". Seis milhões de
dólares...
— torn Sanders finalmente apareceu,
interrompendo suas divagações.
— Por aqui, por favor — o advogado
disse, levando-a para a sala do marido. —
Há uma porção de papéis que seu marido
quer que assine. É melhor usarmos a
escrivaninha dele.
— O advogado pôs uma pilha de papel
à sua frente e estendeu-lhe uma caneta de
ouro.
— Faz tempo que não uso esse tipo de
caneta — ela se desculpou.
— Depois pensou: "Por que devo me
desculpar? Sou dona dessa firma. Ele é
apenas um funcionário. Por que estou
tremendo tanto? "
— A senhora deve assinar aqui, aqui e
aqui — Sanders indicou os espaços nos
documentos.
— Mas o que é isso? — Mary perguntou,
olhando as páginas datilografadas.
— Nada especial. Este aqui é seu recibo
pela cota da firma e uma procuração para
que seu marido vote em seu nome.
— Isso quer dizer que eu não voto?
— Claro que não — ele riu. — Mas
recebe os dividendos, não se preocupe.
— Mary balançou a cabeça, tentando
clarear as idéias. Pensava em como teria
sido melhor ficar na calma da fazenda.
— Isso. Agora, aqui e aqui, por favor,
senhora Latimore. São as ações em nome
de sua filha, Rebecca, não é?
— E a procuração para que meu marido
vote por ela?
— Mary perguntou, com ironia.
— Isso mesmo.
— "Mas que maravilha. Bruce não
precisava ter feito isso", Mary pensou.
"Becky não precisa do dinheiro. Mas vai
ficar entusiasmada quando souber o que
Bruce fez por ela!"
— Recostando-se na enorme cadeira
giratória, perguntou:
— Mais alguma coisa?
— Sim, sim. Agora são seis cópias.
— Mary leu: "Ao Tribunal Superior do
Estado de Massachusetts, sobre a adoção
de Rebeca Elizabeth Chase, menor, por
Bruce
— 96
— P. Latimore, enteada de Mary
Katherine Chase, agora senhora Mary
Katherine Latimore". Junto havia um
bilhete: "Mary, Becky e eu achamos que
gostaria deste presente". Ela guardou o
bilhete no bolso do casaco e sorriu,
enquanto assinava.
— Agora, chegamos ao final, senhora
Latimore.
— Mary estava feliz. Tinha se casado
com um homem fantástico! Já começara a
assinar o nome no último documento
quando algo chamou sua atenção:
"Desistência". Parou e pôs a caneta de
lado.
— Dr. Sanders, o que meu marido
disse... sobre isto aqui?
— Disse que era para a senhora
assinar.
— Os olhos dela se encheram de
lágrimas quando começou a ler. "A abaixo
assinada, Mary Katherine Latimore, ex-
Mary Katherine Chase, pede permissão à
Corte para retirar a apelação de n. 19872,
contra a construção da estrada 695 pela
Latimore Construction Corporation."
— Ele quer que eu assine isto? —
insistiu, sentindo o coração apertar.
— Sim, disse que este era especial — o
advogado respondeu. "Então é isto que
valemos eu, Becky, Anna, Henry e o resto
— da fazenda! Seis milhões de dólares!
Se não podemos vencê-los, junte-se a
eles!" Mary pensou com amargura.
— Agora compreendia o porquê do
casamento: a realização de um objetivo, o
término da estrada! Depois, Bruce não
precisaria mais dela, e a paixão fulminante
terminaria tão rapidamente quanto havia
começado.
— Apesar das lágrimas que lhe
inundavam os olhos, ela segurou firme a
caneta e, com letras grandes, escreveu
"NÃO" sobre o documento. Empurrou a
cadeira para trás, pôs-se de pé e saiu da
sala.
— Senhora Latimore! — o advogado
chamou-a.
— Cega pelas lágrimas, Mary passou
pela mesa de Emma e agarrou sua bolsa.
— Senhora Latimore! — chamou a
secretária, tentando impedi-la de sair.
— Mary se desvencilhou e foi depressa
em direção ao elevador. Chegando ao
térreo, ainda olhou mais uma vez para o
saguão de entrada e saiu para a rua.
— 97
— CAPITULO IX
— Anna estava na cozinha quando
ouviu o táxi parar em frente à sua casa.
Correu à janela e viu a sogra, pálida e
chorosa, saindo do carro. Imediatamente,
pediu que chamassem Henry o mais rápido
possível.
— Vinte minutos depois, o marido
entrava pela porta da cozinha, aflito.
— O que aconteceu? Você está bem,
Anna?
— É a Ma — ela respondeu, baixinho. —
Não disse uma palavra desde que chegou.
Está lá na cadeira de balanço. Dei-lhe uma
xícara de café, mas ela nem tocou. Acho
melhor você ir sozinho falar com ela. Deixe
a porta aberta; pode precisar de mim.
— O rapaz espiou pela porta da sala,
sem ser visto. A madrasta continuava a se
balançar na cadeira, pálida, como se
tivesse visto um fantasma. Mal piscava.
Henry passou a mão nos cabelos, ensaiou
um sorriso e entrou na sala.
— Oi, Ma. O que traz você à casa dos
caipiras a esta hora do dia?
— Mary parou de se balançar e olhou
para Henry como se fosse um estranho.
Levantou-se e disse, num fio de voz:
— Henry, ele quis me comprar por três
quilômetros de estrada! Eu o abandonei.
Anna derrubou os pratos que enxugava,
na cozinha, o que distraiu Henry por uma
fração de segundo. No instante —seguinte,
viu Mary lentamente tombando no chão.
98
Akiff
— Anna! Venha aqui! — ele gritou,
ajoelhando-se ao lado de Mary. Ela estava
com a respiração fraca, os olhos cerrados e
o batom parecia uma mancha vermelha no
rosto branco. Anna entrou correndo e se
ajoelhou também. Henry pegou a pequena
mão de Mary e começou a massageá-la,
para restaurar a circulação. Sentia-se
perdido. Aquela era a mulher que tinha
estabilizado a vida da família, devolvido a
alegria ao Coronel e reorganizado a
fazenda, ajudando-os a olhar para o futuro.
— Não tinha reparado que ela era tão
pequena — murmurou para a esposa.
— Coloque-a no sofá e chame o médico
— Anna recomendou.
— O médico já não vem para estes
lados faz muito tempo.
Anna foi buscar sais de cheiro, o que
ajudou Mary a se recuperar. Depois de
recuperar os sentidos, sentou-se e tomou o
chá quente e forte que Anna lhe preparou.
Henry não parava de rodeá-la, arrumando
as almofadas por trás de suas costas,
cobrindo suas pernas com uma manta e
enxugando-lhe a testa com seu lenço
enorme.
— Estou bem, Henry. Chega! — ela
disse, com a voz quase normal.
— Henry ajoelhou-se diante dela.
— O que é que aquele safado fez? Vai
virar saco de pancadas! Bateu em você?
— Não, nada disso — ela respondeu,
tomando a mão de Henry. — É tudo muito
sofisticado na Corporação Latimore.
Aqueles três quilômetros de estrada que
faltam significam seis mil dólares para a
firma. Ele achou que valeria a pena casar
comigo por causa disso. Devia estar
planejando o divórcio assim que a estrada
estivesse pronta. Eu nunca pensei. nunca
me passou pela cabeça. Ele foi bem
esperto. Enquanto eu defendia a porta da
frente, ele entrou pela porta dos fundos e
conseguiu enganar esta caipirona.
— Não diga isso, Ma — Henry
protestou. — Você é a mulher mais esperta
que conheço. vou dar o troco que esse
sujeito merece! — declarou, levantando-se.
— Não, Henry, não vá! — Mary pediu,
segurando-o pelo braço. Sua voz parecia
vir de muito longe.
— Perguntou-se, depois, por que não?
Mesmo que não conseguisse evitar a
desapropriação da fazenda, pelo menos
Henry poderia desabafar sua indignação.
Mas. poderiam se machucar numa briga.
Oh, não!
— 99
— Está bem. Você é quem manda, Ma.
O que quer que eu faça? Que traga as
meninas para cá?
— Mary tomou mais um gole do chá e
pôs-se a pensar. Logo já tinha pronto seu
plano de guerra.
— Henry, a audiência na Corte é
amanhã. Acho que as meninas podem ficar
lá mais um dia ou dois, até que os ânimos
se acalmem. Posso passar alguns dias com
vocês?
— Claro, Ma — Anna respondeu.
— Mary sorriu, agradecida. Um outro
pensamento lhe ocorreu e ela mordeu o
lábio, antes de dizer:
— Ele pode vir atrás de mim. Não é
difícil imaginar onde eu possa estar e
aquele diabo não vai desistir de sua
estrada.
— Ele que venha! — Henry rugiu. — E
eu pensava que ele era um sujeito
decente! Se aparecer por aqui, vai ganhar
uma bela demonstração da minha força.
— Não. não quero que briguem — Mary
pediu. — Não há motivo para piorar a
situação. Posso até resolver todo esse
problema com ele. não sei. Mas preciso de
alguns dias para pensar, para definir minha
vida.
— Não deve voltar para ele! Não vê que
ele só está usando você, Ma? — Henry
explodiu, zangado.
— Não são as promessas que fiz na
igreja, Henry, que me prendem, mas as
que fiz ao meu coração. Não é fácil renegar
o que se sente.
— Não entendo seu ponto de vista, Ma.
Mas faça o que achar melhor. Agora, vá se
deitar um pouco lá em cima.
— Está bem. Estou precisando de
conforto e um pouco de descanso. Me
ajude a levantar.
— Não vou ajudar, coisa nenhuma!
Agora é minha vez de mandar, pelo menos
um pouco!
— Dizendo isso, Henry pegou-a nos
braços e a levou para o quarto no andar de
cima. Lá, Mary dormiu por mais de uma
hora.
— Eram quatro horas quando Bruce
apareceu e Mary ouviu ele e Henry
discutindo logo abaixo de sua janela.
— Ela está aqui? — Bruce perguntou.
— Era como se os sabres se tocassem
antes do início de uma luta.
— Está — Henry respondeu, seco.
— Quero que ela venha comigo. É
minha esposa!
— 100
— E minha mãe! O que você fez para
ela, seu cretino? Conheço a Ma faz muito
tempo e nunca a vi desse jeito!
— Foi tudo um mal-entendido — Bruce
explicou. — Me deixe entrar. Preciso falar
com ela.
— Ela não quer falar com você. E não
tente me desafiar, Latimore. Ela desmaiou
agora há pouco, seu miserável. O que você
fez para ela? — Henry gritou.
— Foi um mal-entendido, já disse.
Preciso falar com Mary.
— Mal-entendido? Acha que só isso
deixaria Ma andando por aí como uma
morta-viva? vou ser bem claro. Você não
vai entrar na minha casa enquanto ela não
quiser. E nem pode querer nada, agora.
Está passando mal.
— Oh, meu Deus! Preciso ir.
— É bom pensar em Deus, mesmo, e
começar a rezar. E tire a mão do meu
braço, seu pulha!
— Preciso vê-la! Se tentar me impedir,
entro à força. Você não é tão forte quanto
pensa, Henry!
— Ah, quer experimentar, é? — Henry
desafiou. — Posso acabar com você. E
mesmo que passasse por mim, ainda teria
que enfrentar a Anna.
— Ora, vá para o inferno, Henry!
— Vá você, Latimore. Éramos uma
família feliz até você vir atrapalhar. E tudo
por causa de uma droga de estrada! Por
que não dá o fora? Depois eu combino com
as meninas como vai ser daqui para a
frente.
— Diga a Mary para me telefonar,
Henry. Por favor. Preciso saber como ela
está, o que quer que eu faça.
— vou falar. Só não sei se ela vai
telefonar. Adeus.
— Por favor. não esqueça, Henry.
— Não pense que esqueço fácil. Não
depois do que você fez com ela.
— Mary acordou cedo na manhã
seguinte e telefonou para casa antes que
as meninas saíssem para a escola. Becky
atendeu o telefone e Mattie pegou a
extensão. Mary nem sabia como começar.
Sabia apenas que precisava esclarecer a
situação para que as garotas pudessem
fazer sua escolha. Foi Mattie quem facilitou
o começo.
— Papai contou que você e ele andaram
brigando — disse, achando graça da
situação. — Ele falou também que gente
grande faz essas bobagens de vez em
quando.
— 101
— É verdade — Mary admitiu. —
Preciso ficar fora de casa alguns dias.
Depois eu volto.
— Ah, que bom — Becky comentou. —
O papai disse que você estava tão zangada
com ele que talvez não voltasse. Vai
voltar?
— Sim, queridas. Daqui a algum tempo.
Vocês estão —bem? Não vai haver
problemas com vocês?
— Não, Ma. Pode deixar que eu cuido
de tudo. E você, Ma, está bem? Se resolver
não voltar, quero ficar com você.
— Eu também — Mattie disse. — Ei, o
ônibus está lá na frente!
— Só mais uma coisa, Ma — Becky
tentava falar o mais rápido que podia. —
Consegui tirar minha carteira de motorista
ontem. Bruce foi comigo e me deu a maior
força.
— Mary refletia sobre a fragilidade
feminina, quando Anna a chamou para o
café. Tomou-o, e comeu a contragosto
duas fatias de torrada só para fazer a
vontade de Anna. Quando o telefone tocou,
pensou que era Bruce.
— Por favor, atende você, Anna. Não
quero falar com ele. Ainda não.
— Mas não era ele. Era a secretária de
Charles Momson. Mary ouviu o que ela
tinha a dizer e exclamou:
— Amanhã!
— Sim, amanhã. Mas o dr. Momson
está internado no Hospital dos Veteranos.
— Não estou entendendo — Mary
gaguejou.
— Pois é. O nome dela é juíza Katherine
Osmond. Leu os prontuários de seu caso
esta manhã e ficou ouca da vida. Acusou o
juiz Harris de estar pretendendo fazer
carreira com esse processo, mas disse que
ia pôr tudo nos eixos. O pobre dr. Momson
se sentiu mal depois disso e foi parar no
hospital. Mas a juíza não voltou atrás.
Disse que as duas partes têm de estar na
Corte amanhã de manhã, às nove. Esteja
preparada!
— Está bem. vou estar lá. E como está
Charlie? — Mary perguntou, preocupada.
— Não é nada grave. O médico, que é
um velho amigo, achou melhor interná-lo,
apesar de ser só uma colite, por causa da
idade.
— Algum problema, Ma? — Anna
perguntou, assim que Mary desligou.
— 102
— Não. só um caso de ratos
abandonando um navio que está
afundando. Mas, no fim, tudo vai dar certo.
espero.
— Mary não estava muito confiante
quando, na manhã seguinte, estacionou o
caminhão de Henry no único espaço
disponível diante da Corte Superior de New
Bedford. Nesse espaço, havia uma placa:
"Reservado para o Juiz Harris".
— Esse juiz que se dane! — murmurou
entre dentes, e desceu.
— O prédio tinha um ar carregado com
o cheiro de tapetes e papéis velhos. Mary
lembrou-se de uma certa Lizzie Brown,
julgada naquele Tribunal por ter
assassinado alguém com um machado.
Sentiu um certo alívio. Afinal, Lizzie tinha
sido considerada inocente.
— Lá em cima, numa sala menor, a
juíza Katherine Osmond vestia sua toga,
alisando o tec-ido em cima do corpo. Deu
uma olhada no espelho. Tinha sido um
incômodo viajar de Worcester até ali e
descobrir depois que a cidade não tinha
hotel. Acabou se hospedando numa pensão
perto da ponte, onde o mau cheiro da maré
baixa e a falta de café fresco lhe
arruinaram por cornpleto o humor. Odiava
café solúvel. Arrumou mais uma vez o
cabelo grisalho e entrou na sala do
Tribunal. Sentou-se na cadeira enorme e
olhou em torno.
— Duas coisas a irritavam no exercício
do dever: homens dominadores e atrasos.
E nesse primeiro caso da manhã, precisou
enfrentar os dois. O homem sentado na
cadeira do reclamante estava com a testa e
as sobrancelhas grossas tão franzidas que
parecia ter saído de um cartaz de "procura-
se" das páginas policiais. A outra mesa
ainda permanecia vazia. No fim do corredor
ouviu-se um ruído e, uma mulher miúda,
aparentando menos de vinte anos, surgiu,
abrindo caminho entre a multidão de
ouvintes e curiosos, com uma pilha de
documentos nos braços. Katherine Osmond
suspirou, imaginando que surpresas ainda
teria, naquele dia que já começara todo ao
avesso. A representante da segunda parte,
atrasada, espalhou os papéis sobre a mesa
e sentou-se, com ar de cansada. O caso foi
anunciado: Fazenda Somerfield versus
Latimore Construction Corporation. A juíza
mal tinha pregado os olhos na noite
anterior e não tivera tempo para se inteirar
de todo o processo, principalmente de seus
últimos desdobramentos. Bateu o martelo
para chamar a atenção dos presentes.
— Agora, então. — começou a dizer,
mas interrompeu.
— O homem sisudo que conversava
com seu advogado quando a moça entrou
tinha se levantado e se aproximava
intempestivamente.
— 103
—d
— da outra mesa. A moça levantou-se,
ao percebê-lo, e se encostou na parede,
com o rosto tomado pelo medo. A juíza
voltou a bater seu martelo.
— O senhor. seja lá qual for seu nome.
por favor.
— Mary Kate, preciso falar com você
antes que essa loucura comece — ele falou
desesperado.
— Tirem esse homem de perto de mim!
— ela pediu. — Não se atreva a tocar em
mim! Oh, meu Deus, não se acha um
policial quando é preciso.
— Já chega, senhor. — a juíza ordenou,
zangada. — Volte para seu lugar. Senhor
Oficial, ponha esse homem em seu lugar!
— O oficial pôs-se entre o casal, e a
juíza bateu seu martelo outra vez.
— Volte para seu lugar e sente-se,
senhor!
— Preciso falar com ela!
— Espere chegar sua vez! — a juíza
respondeu, irritada. Dois policiais entraram
naquele momento e a juíza fez sinal
— para que ajudassem a manter a
ordem. Vendo que eles se aproximavam,
Bruce praguejou baixinho e voltou para seu
lugar.
— Mary Kate, espere só — ameaçou.
— Mais uma palavra, meu senhor — a
juíza disse, de dedo em riste — e vou
acusá-lo de desrespeito à Corte. Sente-se e
fique quieto! Agora vamos iniciar a sessão.
O queixoso está representado?
— Sim, Meritíssima — o advogado
respondeu. — A Corporação Latimore esíá
representada pelo seu presidente, sr. Bruce
Latimore.
— Bruce Latimore — a juíza repetiu,
pensando: "É um ho— mem enorme. Não
gostei do nome, também. E que cara!
Quem me dera poder tomar uma xícara de
café bem forte!" — O senhor não está
representado pelo mesmo advogado de
ontem
— comentou.
— Claro que não! — Bruce respondeu,
nervoso. — Despedi aquele cretino.
— A juíza bateu mais duas vezes na
mesa e avisou:
— Cuide de sua linguagem, senhor
Latimore. E a defesa? Já é advogada
formada, mocinha?
— Não, não sou.
— Tinha uma voz bonita. Não era tão
jovem quanto parecia à primeira vista. A
juíza só achava que ela devia ter dado um
jeito naquela cabeleira. Adoçando o torn de
voz, perguntou:
— 104
— Então, o que veio fazer aqui,
mocinha?
— Sou a defesa. A representante da
Fazenda Somerfield. S"u a. presidente da
companhia. Meu nome é Mary Kate Latiw?
rei
— Não tem advogado, srta. Latimore?
— Sra. Latimore, Meritíssima. Meu
advogado passou mal na Corte, ontem, e
está internado no Hospital dos
VeteranosNão houve tempo hábil para
contratar outro advogado.
— E acha que pode sustentar suas
posições sem apoio de um profissional?
— Acho que é o único jeito, Meritíssima.
— Está bem, sra. Latimore. A Corte fará
o possível para resguardar seus interesses.
Sra. Latimore, hem? Por acaso é Parente
do sr. Latimore, o queixoso?
— Ela é minha esposa, Meritíssima! —
Bruce declarou.
— Deixe que ela fale por si! — a juíza
respondeu, franzindo a testa. — Agora,
para não perdermos tempo, queira explicar
sua posição, sra. Latimore. Seja breve.
— Sim, a situação da juíza era bem
mais confortável que a sua. Mary pensou.
Só precisava ficar ali, sentada, batendo no
ar de vez em quando, enquanto Mary tinha
que ficar suportando o olhar furioso de
Bruce.
— Que seja antes do meio-dia — a juíza
apressou. — Tenho compromissos para a
hora do almoço.
— O ton de sarcasmo fez Mary voltar à
realidade. Tirou os olhos do homem na
outra mesa e começou seu relato, breve e
preciso" sobre a estrada e os problemas
que causaria à fazenda. Tinha " zido a
planta de um projeto alternativo para a
estrada. A }iza parecia interessada.
Quando Mary voltou à sua mesa para pegar
outro documento, viu que a audiência
estava aumentando cada vez mais. Várias
pessoas faziam anotações e três fotógrafos
Prü curavam se posicionar nos melhores
ângulos. Pôs-se a imaginar o que teria
atraído tanta gente. 7
— Sr. Latimore, tem algo a dizer até o
presente momento— a juíza perguntou.
— E como tenho, Meritíssima.
— Bruce levantou-se, arrastando a
cadeira, e se aproximou da juíza, ficando a
dois passos de onde Mary estava. Olhava
Para ela com raiva.
— Para variar — Bruce continuou —,
essa mulher entendeu tudo errado. Não sei
porque permitem que mulher entre na
corte.

— O martelo soou com força sobre a
mesa da juíza.
— O seu machismo pode não alterar o
lucro de suas empresas sr. Latimore —"a
juíza disse, num ton suave e irônico. Mas
suas considerações não surtem bom efeito
sobre as mulheres desta" Corte. É melhor o
senhor se sentar.
— Mas que diabos, Meritíssima! — ele
rugiu. — Não vê que ela não passa de uma
mulher perturbada? O que ela precisa é...
— Mas Mary não queria saber do que
precisava. Quando ele lhe estendeu o
braço, mais do que depressa, saltou por
cima da grade de madeira que os separava
do público. Implorou:
— Por favor, não deixem que ele ponha
as mãos em mim! Imediatamente a juíza
falou, enraivecida:
— Oficial, faça esse homem sentar-se e
permanecer sentado! Depois fez um sinal
para Mary que cruzou o portãozinho de
— madeira e se aproximou.
— Só para satisfazer minha curiosidade
— a juíza falou, com as mãos sobre a
mesa. — Há quanto tempo estão casados?
— Mary olhou para o marido com o
canto dos olhos. Ele esmurrava a mesa,
furioso, e ela se apressou em responder:
— Três. três semanas, Meritíssima.
— Três semanas? E já chegaram a esse
ponto? Pena que não compete ao caso em
questão, pois gostaria muito de saber o
que está acontecendo.
— Acho que tem a ver com o caso, sim!
— Mary contestou, sem parar para pensar.
— Ele queria a estrada. Três quilômetros
de estrada. Mas não estava conseguindo e,
então, casou-se comigo esperando que eu
assinasse uma desistência do caso. Eu não
quis assinar, ele ficou louco da vida e eu
estou com medo de que. Nem sei do que,
mas estou morta de medo!
— É verdade o que ela disse, sr.
Latimore? Tentou fazer com que ela
desistisse do caso? — a juíza perguntou,
com a voz cada vez mais alta, e segurando
o martelo como se fosse atirá-lo em Bruce
no próximo instante.
— Claro que não, ora essa! — ele
esbravejou, levantando-se, o que fez Mary
se encolher.
— O advogado! — Mary gritou. — Peça
a ele que conte sobre o advogado!
— Bruce voltou a falar e, num ton
magoado, carregava cada palavra.
— 106
— Meu advogado apresentou mesmo
uma desistência para ela assinar. Foi por
isso que despedi aquele incompetente.
Deus me livre desses advogados!
— Ê bom pensar em Deus. Vai precisar
dele, sr. Latimore
— a juíza interrompeu. — A senhora
quer me contar mais alguma coisa que seja
de importância para o caso?
— Sim, senhor. senhora. Sim,
Meritíssima. Meu advogado ia apresentar
mais um fato importante. Será que posso
falar, já que ele não está presente?
— Sim, claro.
— Mary enxugou as lágrimas dos olhos
e respirou fundo antes de começar.
— O problema é o cemitério.
— Que cemitério? — Bruce perguntou,
em pé outra vez, fazendo a juíza soar mais
uma vez o martelo.
— Sente-se, sr. Latimore! Deixe que a
sra. Latimore nos fale do cemitério — ela
ordenou.
— A fazenda está situada no antigo
centro de Eastboro. Em
— 1830, construíram uma nova
estrada, de Boston a New Bedford, o que
fez com que a cidade se mudasse para
onde está agora. Mas o cemitério ficou
para trás. Se a estrada passar pela
fazenda, vai atravessar o cemitério.
— Ah, e há uma lei estadual que proíbe
isso. Sabia desse fato, sra. Latimore?
— S-sim, Meritíssima, eu sabia e pensei
que...
— Ela nunca conseguiu ter um
pensamento ajuizado! — Bruce vociferou.
— Eu pensava que tudo era armação
daquele velho esquisito que lhe serve de
advogado! Mas foi você quem arrumou
tudo isso sozinha, não é, Mary Kate?
— Bruce agarrou-a pelos ombros e a
sacudiu com força. O martelo da juíza
soava como uma metralhadora, enquanto o
oficial tentava apartá-los. Bruce soltou
Mary e disse:
— Você mereceu, mocinha. Meritíssima,
isso foi uma surpresa, mas.
— Ora, se foi! — a juíza interrompeu. —
E isso vai lhe custar quinhentos dólares por
desrespeito à Corte, sr. Latimore! A
senhora está bem, sra. Latimore?
— Apoiada na mesa, Mary limitou-se a
concordar com um aceno, pois tremia dos
pés à cabeça.
— Bruce deu de ombros, como se não
se importasse com a sentença que acabava
de receber. Afinal, o que eram quinhentos
107
— dólares para ele, Mary pensava,
sentindo ainda o peso daquelas mãos
enormes sobre si. Tentou movimentar o
pescoço para aliviar a tensão. Sua cabeça
começava a doer.
— Pelo que me consta — Bruce
continuou —, a lei permite que se mude
um cemitério, desde que se notifiquem as
famílias das pessoas lá enterradas. Meus
homens podem cuidar disso agora mesmo.
Tem mais alguma carta na manga, Mary
Kate?
— Não vai ser muito fácil — ela
respondeu. — O último sepultamento foi
em 5 de junho de 1826. Aliás uma das
pessoas enterradas lá era. Peamaquot,
chefe de uma tribo indígena, gente
nômade, como se sabe. Ele morreu em
1686, e duvido que seja fácil encontrar um
remanescente da família. Isto para não
falar de Tobias Black, ex-escravo libertado
para lutar no Regimento de Gloucester,
durante a Revoluôão. É provável que sua
família ainda viva na África e...
— Ora, tudo isso não passa de
tempestade em copo de água!
— ele argumentou.
— Mary estava com medo, mas
aprumou-se, disposta a não entregar os
pontos.
— Deixe que eu decida sobre a questão
— a juíza protestou.
— Mais alguma coisa, Mary Kate? Posso
chamá-la assim?
— Sim, senhora —r Mary respondeu. —
No ano passado, convidamos estudantes de
arqueologia da Universidade de
Massachusetts para visitarem a região e
eles acharam estas pontas de lanças e
pedaços de cerâmica — Mary disse,
espalhando alguns desses objetos sobre a
mesa. — Os professores da Universidade
acreditam que houve um sítio indígena
naquela área e se mostraram interessados.
Achei que.
— Isto se encaixa na lei que proíbe a
modificação de um sítio arqueológico antes
que tenha sido totalmente explorado, não
é?
— a juíza disse, sorrindo.
— Mary concordou com a cabeça.
Estava começando a gostar daquela
representante da justiça.
— Tem algum documento que
comprove isto? — a juíza perguntou,
recebendo uma pasta das mãos de Mary.
— Para o diabo com tudo isso! — Bruce
rosnou. — Não passa de um monte de
bobagens, Meritíssima. Posso afirmar que.
— Melhor não afirmar nada — a juíza o
interrompeu. — O senhor está à beira de
uma grande encrenca, sr. Latimore. E
então, Mary Kate, mais alguma coisa que
queira nos contar?
108
— Talvez não seja importante — ela
declarou. — Foi algo que
— me chamou a atenção hoje.
— Tirou da bolsa duas fotografias que
tinham sido enviadas pelos naturalistas que
exploraram o ribeirão.
— E o que é isto? Um sapo? — a juíza
perguntou.
— Sim, Meritíssima, um sapo. Foi
encontrado no banhado de nossa fazenda.
A carta que acompanha as fotos revela que
esta espécie não está incluída na lista de
sapos existentes nos Estados Unidos.
— Então, Mary Kate, não se esqueceu
nem da preservação ecológica? — a juíza
disse e começou a rir, até ficar com
lágrimas nos olhos. — Sabe o que significa
isso, sr. Latimore?
— Não sei e não me faz diferença
saber. Poderia esclarecer tudo, se me
deixasse falar um minuto! — ele disse.
— Espere sua vez, sr. Latimore. Sua
esposa devia ser advo— Mas, Meritíssima,
já lhe disse que tudo isso não passa de
tempestade em copo de água! Afirmo e
repito que nada que a Corporação Latimore
possa fazer vai afetar essas coisas,
especialmente este sapo! — Bruce disse,
cada vez mais furioso.
— Nada, a não ser a casa de Becky, a
fazenda de Henry e toda a minha vida! —
Mary respondeu, encarando-o.
— Era visível que a paciência dele
estava se esgotando. Primeiro franziu a
testa; depois, respirou fundo, os cantos
dos lábios começaram a tremer e o rosto
todo ficou vermelho. Mary sabia que estava
em perigo, mas não conseguia sair do
lugar.
— Isto já é demais, Mary Kate! Para
você, tudo não passa de brincadeira.
Armou esse circo todo só para que esses
repórteres possam encher suas páginas
com essa história!
Mary espantou-se com aquela acusação
injusta, mas, ao olhar para a platéia, viu
pelo menos uma dúzia de repórteres e
outros tantos fotógrafos. Nem por isso a
acusação deixava de ser cruel. Ia dar-lhe
uma resposta quando ele avançou em sua
direção e começou a sacudi-la pelos
ombros outra vez. Não conseguia entender
o que ele dizia. Também não ouviu as
marteladas ou o grito agudo da juíza.
Alguém conseguiu afastá-lo.
Mary tinha perdido a noção de tempo e
espaço. Restava-lhe apenas a sensação de
medo. Enxugou as lágrimas que
embaçavam seus olhos e saiu correndo.
Atravessou o portãozinho, o corredor que
separava as cadeiras de espectadores e o
batalhão de repórteres que seguiam cada
um de seus passos, enquanto flashes
es109
pocavam sem parar. Passou pela porta
principal e chegou à rua, onde o sol lhe
renovou as forças.
Ouvia os passos de Bruce atrás de si.
Voltando-se, ainda viu dois guardas
agarrarem seu marido, carregando-o de
volta para dentro do Tribunal. Mal podia
enxergar com as luzes dos flashes à sua
frente. Exausta, subiu no caminhão de
Henry e saiu o mais rápido que pôde.
110
CAPITULO
Naquela noite, durante o jantar, Mary
relatou os acontecimentos.
— Foi terrível. Eu me senti uma perfeita
idiota! Tinha certeza de que ele ia me
bater. Estava furioso. Ainda bem que não
conseguiu me alcançar quando saí do
Tribunal.
— . Ei, que história é essa? — Anna
perguntou. — Ouvi no rádio que. Oh,
esqueci os biscoitos no forno!
Anna saiu correndo da sala de jantar e
Henry negou que tivesse ouvido qualquer
coisa sobre o caso no rádio.
— Já nem presto atenção no rádio.
Estou preocupado com a produção de leite
que diminuiu, este mês, e com o milho que
não está muito normal.
— Mary tentava se interessar pelo novo
assunto, quando o telefone tocou. Era
Becky.
— Ma? Ele não voltou para casa esta
noite. Para mim não faz diferença, mas a
Mattie está chateada. Acho que precisa de
você.
— São sete horas, Beck. Saímos do
Tribunal antes do meiodia.
— Você saiu, Ma. Só você. O noticiário
das seis e meia mostrou tudo. Vi você
sacudindo o punho no nariz dele e sair
correndo de lá. Foi muito engraçado.
— Muito estranho o seu conceito de
engraçado, mocinha
— Mary disse, com a voz carregada de
tristeza. — Mas podem
— 111
— me esperar, chego já. Só que, se ele
estiver aí. não vou podei ficar, Becky. Acho
que ele quer acabar comigo.
— Mas ele não vai estar aqui.
— Alguma coisa na voz de Becky deixou
Mary em alerta. Como ela podia ter tanta
certeza? Mas, fosse como fosse, Mattie
precisava de sua presença.
— Apesar de toda a determinação, Mary
ainda ficou no carro uns dez minutos
depois de estacionar diante da casa,
criando coragem e observando se não
havia algum sinal dele por ali.
— Encontrou Mattie muito aborrecida e
levou um bom tempo para conseguir
consolá-la. Às nove horas, quando a
menina estava pronta para ir dormir,
depois de um banho morno, Mary pediu a
Becky que fosse dormir em outro quarto.
— vou dormir com você, Mattie, o que
acha?
— Oba, que bon! Você inventa uma
história que nem da outra vez?
— Assim, as duas se isolaram do
mundo, no quarto do último andar. Mattie
dormiu logo, mas Mary só conseguiu pegar
no sono quando os primeiros raios de sol
começaram a entrar pela janela.
— Eram onze horas da manhã quando
Pamela bateu na porta.
— Que trabalho eu tive para encontrar
a senhora! — a cozinheira reclamou. —
Este é o último quarto em que a
procuraria. É o telefone. Ele quer a
senhora... e disse para a senhora ir logo!
— "Quer a senhora. Disse para ir logo-"
Aquelas palavras fizeram Mary levantar-se
de um salto. Vestiu o quimono e correu
escada abaixo, mas logo descobriu que
estava falando com o homem errado.
— Charles Mamson! Depois do fiasco de
ontem, estou com vontade de assá-lo na
brasa!
— Acalme-se, Mary. Você já me abalou
a saúde, não se esqueça. De qualquer
forma, sinto-me pronto para outra.
— Ê... estou achando que sua doença
não passou de medo, Charlie! — Mary
provocou.
— Ache o que quiser — ele riu. — Na
minha idade, o melhor é se cuidar.
Principalmente dos nervos! O que vai fazer
agora?
— Como assim? Bem, talvez saia e
arrume um advogado que não fuja na hora
em que as coisas esquentam. Fora isso,
não planejei mais nada.
— Kate. Essa aventura vai deixar a
Corporação Latimore sem seu presidente
por um bom tempo, pelo jeito. Será que
Mary Kate vai ou não libertá-lo? "
— Mary estava surpresa demais para
chorar e com medo demais para rir.
Balançava a cabeça, sem conseguir dizer
uma palavra. Pamela se aproximou,
olhando por cima do ombro de Mary e
comentou:
— Saiu bem na foto, dona.
— Ele vai me matar! — Mary disse,
olhando outra vez para a fotografia.
— A senhora vai querer ovos para o
café?
— Mary negou com a cabeça. Não
queria nada. Será que Maria Antonieta
sentiu a mesma coisa no dia em que foi
para a guilhotina? Seus braços e pernas
estavam pesados, amortecidos. Sua cabeça
se recusava a funcionar, girando em torno
de um só pensamento:
— Bruce estava na cadeia e "ela" o
tinha posto lá. Mas ficar ali parada não
ajudava em nada. com muito esforço,
reuniu coragem para se levantar e ir até o
telefone. Charles atendeu.
— Eu já estava de saída — ele declarou.
— Um funcionário do Tribunal me chamou
para ouvir a decisão da juíza. Vamos ver o
que vai ser. Posso fazer alguma coisa por
você, Mary?
— Charlie, acabei de ler os jornais.
Como tiro Bruce de lá? O que será que ele
vai fazer comigo?
— Calma, Mary. não chore. Não é culpa
sua ele ter perdido a cabeça. Você só
precisa ir ao Tribunal. O funcionário
encarregado vai estar com o documento
pronto para você assinar. Tão logo o faça,
soltam seu garotão. Você o identifica e
podem sair juntinhos.
— Então. eu tenho que... que ficar
perto dele, cara a cara? Prefiro ser jogada
aos leões. Ele vai acabar comigo assim que
me avistar.
— Não sabe o que está dizendo, Mary
Kate. Ele não pode fazer nada contra você,
ou a juíza se encarrega dele. Só mais uma
coisa, querida. A comida da cadeia é
horrível. Se eu fosse você, tiraria Bruce de
lá antes do jantar. Ele vai lhe agradecer
por isso!
— Mary ficou andando de um lado para
outro, por mais de uma hora, tentando
montar um plano para tirá-lo da cadeia e
salvar sua pele ao mesmo tempo.
— 114
— Não foi difícil conseguir que Becky
saísse mais cedo, mas a diretora da escola
de Mattie fez mil objeções, forçando Mary a
revelar, irritada, que precisava da menina
para tirar o pai da prisão. As três chegaram
a New Bedford às duas horas. Como
sempre, não havia lugar para estacionar.
Mary viu-se obrigada a andar mais dois
quarteirões. Parou numa vaga reservada
aos sócios de um clube exclusivo para
homens.
— Eles que aprendam a não ser tão
chauvinistas! Vamos, meninas!
— Ao se aproximarem da cadeia local,
Mattie perguntou:
— Você está bem, Ma?
— Claro que estou, querida. Mas seria
tão bom se surgisse um pássaro enorme e
nos levasse para... a África!
— Se vai mesmo tirá-lo daí, é melhor ir
de uma vez — Becky aconselhou. — Acho
que demorar não vai ajudar em nada.
— Eu sei, mas...
— Ele não vai engolir você, Ma!
— Está bem. Mas lembrem-se de tudo o
que recomendei.
— Não vamos esquecer — Mattie
afirmou. — Vamos ficar perto de você o
tempo todo. Não vamos deixar o papai se
aproximar, nem sentar do seu lado. Ê para
a gente ficar entre você e ele. Viu como eu
sei?
— Aqueles repórteres estão nos
esperando, Ma? — Becky perguntou.
— Ih, não sei. Mas não diga uma
palavra. Vão sempre em frente!
— Foram tão rápido quanto as pernas
de Mattie permitiram. Meia dúzia de
repórteres e dois fotógrafos bloqueavam a
porta e as perguntas começaram a chover:
— Vai soltá-lo, sra. Latimore?
— Meu jornal paga cem dólares pela
exclusividade da história!
— Sob os flashes, Mary começou a ficar
vermelha. Henry costumava dizer que
aquela era sua pintura de guerra. com a
cabeça baixa e uma menina em cada mão,
enfrentava a barreira humana. Um
fotógrafo gritou e largou a câmera.
— Ele não queria sair da frente e chutei
a canela dele!
— Mattie explicou.
— Um policial, vendo a dificuldade das
três, ajudou-as a chegar até a porta e
conseguiu que entrassem sem serem
seguidas.
— 115
— Mary respirou fundo, enquanto as
duas meninas sorriam, como se vivessem
uma excitante aventura.
— Pode me informar onde... — Mary
começou a perguntar ao policial.
— Segunda porta à direita. Ele esteve
esperando pela senhora a manhã toda.
— O oficial de justiça?
— E seu marido também. Melhor se
apressar, madame.
— Ao chegarem à porta indicada, Mary
girou a maçaneta e entrou com as garotas.
— Pensei que ia apodrecer aqui! — ele
exclamou.
— Eu não sabia. Não soube de nada...
até esta manhã.
— Mary explicou, pondo as meninas a
sua frente.
— E por que não veio de manhã?
— Eu estava.
— Ela estava com medo, papai — Becky
interrompeu.
— Você está bem?
— Estou. bem, o que você acha? Olá,
meninas. Estão muito bonitas — Bruce
disse.
— A Ma também — Mattie emendou.
— Esperem só até eu me livrar dessas
algemas! Só então Mary percebeu que ele
estava algemado.
— Aqui, sra. Latimore. Precisa assinar
isto — disse o oficial de justiça.
— Mary foi até a mesa, mantendo as
meninas entre ela e o marido. Quando viu
que ele se levantava, encostou-se na
parede.
— Mande ele ficar no lugar! — pediu.
— O oficial de justiça sorriu e fez sinal
para que Bruce se sentasse. Depois, falou:
— Não se esqueça de assinar as três
cópias.
— Mary pegou a caneta sem tirar os
olhos de Bruce, e começou a, assinar os
papéis.
— Agora já podem ir — o oficial
anunciou. — Se quiserem saber a decisão
da juíza, a sessão começa em dez minutos.
— Não, obrigada — Mary respondeu. —
Só quero.
— Só um instante sra. Latimore — o
oficial chamou. — Está esquecendo uma
coisa.
— Como? — Mary perguntou, num fio
de voz.
— A senhora se esqueceu dele — o
oficial respondeu, caminhando em direção
a Bruce, enquanto vasculhava os bolsos à
— 116
— procura da chave das algemas. — Ele
vai sair sob sua custódia, madame. Precisa
levá-lo com a senhora. Agora é
responsável pelo bom comportamento dele
e por sua apresentação diante da juíza
Osmond no dia. vinte, me parece. Pronto,
sr. Latimore. Pode ir com sua esposa.
— Formavam um quarteto estranho ao
atravessarem o corredor de saída. Becky
tinha se agarrado ao braço de Mary, e
Mattie segurava a mão do pai. Passaram
pelo bando de repórteres que não
desistiam das perguntas. Mary manteve a
cabeça baixa e não disse nada. Bruce
limitou-se a um breve "Sem comentários".
Os repórteres não ficaram satisfeitos com a
resposta, mas a expressão carregada de
Bruce foi suficiente para afastá-los. Os
Latimore chegaram ao carro, em silêncio, e
entraram.
— Becky apressou-se em sentar ao lado
de Mary, no banco da frente, enquanto
Mattie puxava o pai para o banco de trás.
O clima não podia estar mais pesado.
Mattie tentou puxar conversa com o pai,
mas ele não quis responder. Mary olhava
para ele, de quando em quando, pelo
espelho retrovisor. Bruce se inclinou para a
frente e Mary sentiu a respiração dele em
seu pescoço. Começou a tremer. Como
seria quando chegassem em casa?
— Procurando algo que aliviasse a
tensão, Mary ligou o rádio, bem no instante
em que as notícias locais começavam a ser
transmitidas. Um repórter, falando
diretamente da delegacia, comentou a
soltura de Bruce. Ao terminar, o locutor do
estúdio entrou no ar:
— "E atenção, senhoras e sonhores!
Acabamos de receber o resultado do caso
da Corporação Latimore contra a Fazenda
Somerfield. A juíza Katherine Osmond
acaba de determinar, baseando-se nos
últimos documentos, que seja autorizada a
construção da estrada. Representantes da
Corporação Latimore anunciaram que as
obras serão iniciadas ainda hoje."
— Viu, sua bruxa? A Justiça tarda mas
não falha. O que me diz disso agora? Você
vai me pagar!
— Aquilo foi demais para os nervos
abalados de Mary. Parou o carro no
cruzamento da avenida principal e, ao som
das buzinas que vinham de todos os lados,
abriu a porta do carro e saiu correndo. Um
engarrafamento logo se formou. Olhando
rapidamente para trás, Mary ainda viu
Bruce falando com um policial de trânsito.
Desceu a rua o mais depressa que pôde.
— 117
— "A estrada vai ser aberta! Hoje!
Planejei tanto, sofri tanto. e agora eles vão
atravessar as cercas, subir o morro,
destruir parte do pasto e da plantação de
milho. Vão derrubar a casa de Becky. E eu
prometi ao Coronel que jamais deixaria
isso acontecer!"
— com a cabeça baixa e as tranças
balançando, subiu a colina que levava até a
velha sede da fazenda. As lágrimas corriam
soltas e seu coração estava destroçado.
Abriu a porta da frente e tornou a trancá-
la. Precisava pensar e por mais que se
esforçasse não conseguia. Se não fosse por
Becky e Henry já teria comprado uma
passagem para bem longe; queria fugir!
— Transtornada, andou de um lado
para outro na sala, sentindo-se impotente
e frágil. Até as paredes pareciam sufocá-la.
Num impulso desesperado, abandonou a
casa e seguiu por um atalho que levava ao
riacho.
— A natureza parecia acompanhar a
fúria de seus sentimentos e pouco depois
as nuvens escuras que cobriam o céu
foram se desmanchando, banhando a terra
com um forte temporal.
— O vento soprava ameaçadoramente,
mas Mary seguia em frente, a roupa
colando-se ao corpo, os pingos de chuva
misturando-se às suas lágrimas.
— Exausta, sentou-se numa pedra e
ficou olhando a água correr mais rápido em
seu leito. Já não sabia se tremia de frio ou
desespero. Sentia-se estranhamente vazia,
alheia.
— Isso não é justo! — gritou com todas
as forças que lhe restavam. — Onde foi
que eu errei?
— Errou quando não confiou em mim.
— Ela se virou bruscamente, certa de
que aquela voz era produto de sua
imaginação. Mas a figura em sua frente era
real, embora nunca tivesse visto Bruce tão
transtornado, molhado até os ossos e com
uma expressão que refletia emoções
contraditórias: preocupação, raiva, aflição.
— Venha! — foi tudo que ele disse e
não encontrou resistência quando a
envolveu em seus braços. Mary deixou-se
arrastar até a casa, em silêncio, ainda
imersa num forte torpor.
— Ela não saberia dizer o que
aconteceu depois. Quando acor. dou,
estava envolta em um cobertor, perto da
lareira. Abriu os olhos lentamente e viu
Bruce de pé, perto da janela, observando a
chuva que continuava a castigar
impiedosamente a região.
— 118
— Agora já havia se acalmado, os
pensamentos começaram a se formar com
lógica e não levou muito tempo para que a
raiva despontasse novamente, fazendo-a
saltar do sofá.
— Fora daqui! Fora daqui! — ela gritou
assustando-o. — Já destruiu minha vida,
agora deixe-me em paz.
— Preparado para aquele ataque, Bruce
encaminhou-se lentamente até ela e, com
gestos calmos mas decididos, obrigou-a a
sentar-se.
— Não ouse dizer nada até que eu
termine de falar. Estou tentando há dias
fazer você enxergar a realidade, mas você
parece cega, surda e muda!
— O que mais você quer.
— Chega, Mary! Já me fez de bobo
durante meses, ocultando seu curso de
Direito, me humilhando publicamente e
fazendo todos acreditarem que eu não te
amo. Posso até aceitar que me ache
machista, mas duvido que outro homem
conseguiria suportar tudo isso e ainda
correr atrás de você. — interrompeuse e
Mary não conseguiu encará-lo. O
pressentimento de que havia cometido um
grande engano a faz estremecer. Em
silêncio, aguardou que ele continuasse. —
Mary, ouça bem: eu vou construir a
estrada — declarou, e um sorriso amargo
curvou-lhe os lábios ao ver a indignação no
rosto da mulher. — vou construí-la sim,
seguindo a alternativa que você sugeriu. Já
tinha tomado essa decisão antes do dia de
Ação de Graças. Ouviu bem? Antes do dia
de Ação de Graças! Se você e seu
advogado tivessem se inteirado do
andamento do processo, já saberiam disso
há muito tempo. E se o meu advogado
tivesse sabido explicar tudo a você, não
teríamos feito a alegria dos repórteres
naquela maldita audiência.
— Chocada e envergonhada com a
revelação, Mary ensaiou dizer uma coisa
qualquer, mas Bruce ainda não havia
terminado.
— Só mais uma coisa, Mary, uma
coisinha insignificante disse com ironia. —
Se me casei com você foi por amor.
Ele se levantou e não deu chance para
Mary se recompor. Saiu rapidamente e logo
o Mercedes se afastava da fazenda.
"É o fim", Mary pensou, caindo
novamente em prantos.
No dia seguinte, o céu havia clareado e
a forte luminosidade da manhã a
despertou. Decidida, ela foi até o banheiro,
tomou um banho rápido e depois dirigiu-se
ao escritório. Nunca mais teria coragem de
encarar Bruce, mas não conseguiria viver
se, pelo menos, não conseguisse que ele a
perdoasse.
119
Achou papel de carta na gaveta da
escrivaninha e se pôs a
escrever:
"Bruce,
Me perdoe por não te procurar. Fui a
mais tola das mulheres e mereço perder a
felicidade que você poderia ter me dado.
Te amo muito, mas não ouso querer mais
que o seu perdão. vou me comunicar com
Becky para tratarmos de nossa mudança.
Um beijo,
Mary'
Dobrou o papel cuidadosamente e foi
pedir a Henry que o entregasse a Bruce,
em mãos, o mais rápido possível.
Talvez um dia encontrasse uma forma
melhor de se desculpar. Agora era preciso
recomeçar a vida, assimilando as lições
que havia aprendido nos últimos meses.
No final da tarde, estava aparando as
hortênsias que cobriam as amuradas do
terraço, quando um movimento lhe
chamou a atenção. Era um rapazinho de
uns quinze anos que se aproximou dela a
passos rápidos. Entregou-lhe uma carta e
desapareceu morro abaixo onde uma perua
o aguardava.
com mãos trêmulas, Mary abriu o
envelope. Quando seus olhos correram
pelo papel, sentiu o coração querer saltar
do peito e os olhos se encheram de
lágrimas.
"Mary Kate Latimore.
Uma vez me disseram que quando se
ama nunca é preciso pedir perdão. Não me
interessa se isso está certo ou não. Mas se
quiser saber o que um homem apaixonado
tem a oferecer à mulher que escolheu para
ser sua, vá até aquele riacho para onde
você foi ontem. A tempestade acabou e
não há nenhuma nuvem que impeça o sol
de brilhar.
Bruce"
Mary não pensou duas vezes antes de
sair em desabalada corrida.
120
mi
Um romance que você não pode
perder!
Edição 396
Naomi Horton
Robyn e Jarrett saíram juntos, após
longos anos de separação. A lembrança do
beijo trocado no calor de uma paixão
adolescente ficara gravada apenas na
memória romântica de Robyn.
Surpresa, recebia agora a proposta
direta e inconseqüente: "Vamos morar
juntos por uns tempos? ", disse-lhe Jarrett,
sem esconder suas intenções. Não era o
mesmo homem que havia povoado seus
sonhos desde os catorze anos. Frio e
oportunista, Jarrett agora era cínico em
relação ao amor!
Uma história inesquecível de amor!
Edição 397
KÜ (Ikl Jiídjí
Christíne Hynn
O homem se aproximou e Britt, como
que presa a um encanto, abandonou-se
aos braços que ele lhe oferecia. Fechou os
olhos, afastando de vez a realidade.
Entregava-se totalmente às sensações, à
sensualidade, à paixão...
Mas aquilo era loucura! Talvez o
primeiro sinal de que o desespero lhe
roubava todo o bom senso. Britt respondia
a um crime de roubo, cumpria prisão
domiciliar, e o moreno que a subjugava
com suas carícias era um arrogante e
impiedoso policial!

Fim

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