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Maria da Concei¢ao Silva « Sonia Maria de Magalhaes organizadoras ey prey UFG co AS FUNGOES DA TEORIA DA HISTORIA NA CONSTRUGAO DO LIVRO DIDATICO DE HISTORIA REGIONAL Cristiano Alencar Arrais Eliezer Cardoso de Oliveira Nao imagino, para um escritor, elogio mais belo do que saber falar, no mesmo tom, aos doutos ¢ aos escolares. (Mare Bloch, Apologia da Histéria, 2001) INTRODUGAO: DIDATICA, UM PROBLEMA TEORICO eee da histéria é capaz de responder as demandas existen- Giais geradas pela Didatica da Histéria? Come, para além de qualquer tipo de discussio tedrica sobre © ‘fazer’, a teoria da histéria pode demonstrar sua aplicabilidade e, portanto, sua validade didatica de orientagio no tempo? Escas foram algumas das perguntas que orientaram a experiéncia de pesquisa que tem neste artigo um de seus desdobramentos extemporancos. O campo de realizagao deste projeto se constituiu na produgao de um livro didético de histéria regional (ARRAIS; OLIVEIRA, 2008), tomando como recorte espaco-temporal o Distrito Federal. © mote subjetivo que impeliu seus participantes a esta jornada surgiu de um inquietante exerc{cio ima- ginativo proposto por Jérn Riisen (2001, p, 49), qual seja: Imagine-se, um momento, o que haveria em livros didsticos escritos por especialistas; seriam uma catdstrofe diddrica —apesar do assenti- mento cordial de todos os que sé julgam os livros didaticos a partir da presenga dos iltimos resultados da pesquisa, infelizmente, no sexo poucos a assentir (grifo nosso). Essa conclusio de que os pesquisadores de histdria nao so as pessoas mais adequadas pata escrever livros didsticos da disciplina, vindo de um dos autores que mais se esforsou por englobar a Didética da Histéria na 119 Cristiano AveNcar Annats, ELigzer Carposo DE OLVERA reflexdo sobre a teoria da histéria, causa certo estupor num primeiro mo- mento, como ocorria aos profetas do Antigo Testamento que, a0 mesmo tempo, em que profetizavam a cardstrofe contra 0 seu povo, torciam, no intimo, para que a profecia nao se concretizasse. Passado o susto inicial, a colocagao de Riisen alerta-nos sobre a especificidade dos livros diddticos de histéria. O seu ceticismo deriva do fato de que os especialistas em histéria tém a tendéncia de produzir uma “diddtica da cépia”, ou seja, considera as obras didaticas “miniaturas” das obras académicas, considerando-se apenas a capacidade de absorgo reduzida desse puiblico mais amplo (RUSEN, 2007, p. 89). No entanto, a Didética da Histéria nao é uma cépia reduzida da ciéncia histérica, mas possui as suas especificidades, que podem set apreendidas a partir da reflexao tedrica. Aespecificidade da Didatica da Histéria € possibilitar aprendizado hist6rico. Isso envolve, logicamente, uma aproximagao com a pedagogia para uma reflexio sobre ‘como ensinar’ ‘como aprender’, mas também. envolve uma aproximagao com a teoria da histéria para uma reflexao sobre o ‘por que ensinar’ e sobre ‘o que ensinar’, Nesse caso, a teoria da histéria mostra que a Didatica da Histéria visa a responder as caréncias de orientagio na vida pritica dos homens e das mulheres. Mas em que sentido o ensino da histéria contribui como orientagéo? E importante notar que, antes mesmo de sua metodizacdo, a pre- ocupacio fundamental da histéria jé estava voltada para a didética, sob a famosa alcunha de Histéria Magistra Vitae: a tarefa de orientagao moral para os problemas praticos da vida, neste sentido, nunca esteve afastada da histéria, mesmo quando de sua racionalizacdo, muito embora eclipsada pelas questées relacionadas ao método ¢ as formas de cognicao histérica. Nesse sentido, tanto no passado, quanto no momento em que escrevemos este texto, o ensino da histéria contribui para suprir demandas de orientagao na medida em que possibilita a formagao histérica, Neste caso, o aprendizado histérico dé-se entre dois pontos de referencia: a experiéncia empirica do passado ¢ o sujeito do presente que precisa orientar-se no tempo. Quando acontece o aprendizado, ha um movimento em duas diregdes: primeiro, a experigncia objetiva do passado torna-se subjetiva na medida em que é apreendida pelo sujeito; segundo, a subjetividade do sujeito (suas caréncias) se objetiva nesta experiéncia do passado (RUSEN, 2007, p. 107). ‘As pessoas do presente entram em contato coma experiéncia objetiva dahistéria por dois modos: primeiro, pela consciéncia de que fazem parte 120 As Funcors pa Teoria pa Histonta na Construcdo po Livro Dinsrice de um momento da histéria, o que ¢ facilmente visualizado pelo calendério; segundo, pelo contato com as “coisas do passado”, tais como: os documen- tos € os monumentos histéricos, © aprendizado histérico nao se resume 2 esta histéria objetiva, ou seja, aprender datas, conhecer documentos € monumentos histéricos. O aprendizado historico s6 acontece quando essa experiéncia objetiva passa a fazer sentido para a vida do sujeito, ou seja, contribuir para a sua formagio de identidade. Segundo Ritsen, Sends pudermos considerar a educacao historica como um processo intencional e organizado da formagio de identidade que rememora o passado para poder entender o presence ¢ antecipar 0 futuro, en- tao a Didatica da Histéria nfo pode ser posta de lado como sendo scoriadores profissionais (RUSEN, alheia ao que diz respeito aos 2006b, p. 15). O ensino da histéria nao tem 0 monopélio da formacio histérica, uma vez que ela pode vir por meio de filmes, novelas, livros literérios, etc. No entanto, a formagao histdrica possibilirada pelo ensino da histéria pos- sui algumas vantagens: permite visualizar as diferengas entre as tradigées do presente e as do pasado; contribui para flexibilizar os pontos de vista do sujeito, ao conhecer outros, no passado, diferentes do seu; fornece um amplitude ben maior de experiéncia do pasado ao sujeito do que ele dispGe pela sua experiencia de vida. Desse modo, © aprendizado hiscérico sé vai ampliar a consciéncia histérica dos individuos, quando contribuir para “ampliagao da experiéncia do passado humano, aumento da competéncia para a inrerpretacéo histérica dessa experincia e reforgo da capacidade de inserir e utilizar interpretagoes histdricas no quadro da orientacao da vida prética” (RUSEN, 2006, p. 110). Essas trés competéncias indicadas pelo auror sao titeis para se pensar uma proposta de livro didético de historia, ‘Aumentar a experiéncia do pasado significa fornecer aos alunos elementos que possibilitem perceber a diferenca e a mudanga no tempo, tais como: monumentos e documentos histéricos; ampliar a competéncia interpretativa significa fornecer elementos para dotar os acontecimentos do pasado de algum sentido explicativo; reforgar a orientagio significa a capacidade de a interpretacio histérica ser relevante para a vida pritica das pessoas no seu relacionamento entre si, 121 (Caistiaso Atmycar Amrals, Enuezer Carboso DE OuvEIRA Enfim, essas considetagdes iniciais de Riisen sobre a Diditica da Hist6ria, inserindo-a como um componente da teoria da hist6ria serviram como parimetros para fundamentara construgao de um livro didtico para © Ensino Fundamental do Districo Federal. PROPOSTA DIDATICA Partindo do pressuposto de que a contribuicao maior da histéria ¢ fornecer elementos para suprir as caréncias de sentido, os livras diddticos de histéria regional nao devem seguir um modelo tinico, mas levar em conta as especificidades histérico-culturais de cada unidade da federagao. Cada lugar tem as suas proprias caréncias ¢ demandas em relagio ao estudo do passado, o que implica construgées histéricas especificas por parte dos historiadores. Portanto, um livro didatico de histéria regional de um Estado como, por exemplo, o Rio Grande do Sul, com tradigées bem consolidadas, sera bem diferente de um livro de historia regional de um Estado politicamente mais recente, como o Tocantins. Desse modo, ao elaborarmos uma justificativa tedrica para a constru- go de um livro didético sobre © Distrito Federal, 0 primeiro pressuposto que consideramos foi a especificidade sociocultural desta unidade da fede- racdo e como 0 livro diddtico de histéria iria concribuir para satisfazer as caréncias de orientagao da populagao. O Distrito Federal € caracterizado por muitas especificidades geo- graficas ¢ sociais. Possui a menor area territorial entre as unidades federa- tivas do Brasil com apenas 5.801.937km?, quatro vezes menor que a de Sergipe, o pentiltimo colocado. Possui a maior densidade demogréfica do pais, sendo que 449 pessoas teriam que viver em Ikm’, caso fosse feita uma absoluta e equitativa divisdéo do territério. Possui o maior PIB per capita do pals, com mais de 40 mil Reais para cada habitante — quase 0 dobro de Sao Paulo, o segundo colocado. £0 primeiro colocado em varios populacio alfaberizada, longevidade, qualidade indices sociais, rais como: da educagio, entre outros", Esses indices sociais positivos néo devem obscurecer os pro- blemas sociais prementes: alta criminalidade e enorme desigualdade social. © Distrito Federal € 0 lugar dos antagonismos; 0 antagonismo entre goianos ¢ candangos, que marcou a construcio de Brasilia; o antagonismo entre Plano Piloto cidades satélites, que distribui es- 122 As FUNGOES Da TrORIA Da EListORtA WA ConstRucaO Do Livro Dipstic0... pacialmente as desigualdades sociais; o antagonismo entre o velho ¢ 0 novo, que emergiu da construgéo de uma cidade moderna num lugar de tradigoes histéricas seculares; 0 antagonismo entre termos como ‘Brasilia’ eo ‘Distrito Federal’, que funciona como discurso segrega- dor entre a cidade-capital e patriménio histérico da humanidade e as cidades-satélites ‘a-histéricas’. Diante de tantas especificidades, wirias questées sao levantadas quando se prope a pensar um modelo de histéria regional para o Distrito Federal: como esctever a histéria de uma unidade da federagao que é menor do que vdtios municipios brasileiros? Como escrever uma historia de um lugar majoti- tatiamente dominado por valores urbanos? Como escrever uma histéria de um lugar em que enorme riqueza e enorme pobreza convivem lado a lado? Como escrever a historia de um lugar hierarquicamente dividido entre os moradores Jo ‘plano-piloto’ e os moradozes dos ‘satlites'? Como escrevera historia de um lugar em que houve uma desvalorizagao do passado histdtico em detrimento «le uma ut6pica valorizagao do futuro? ‘Ao nfo considerar essas questées que mapeiam a especificidade do Distrito Federal, o historiador corre o tisco de pensar a histéria de modo re- Jucionista, focada na constzugio de Brasilia: la é tornada um dado, no um problema de cunho histérico, Ao contzirio, na medida em que tais questoes so petcebidas e consideradas em sua historicidade, as demandas sociopoliticas suscitadas pelos intctesses ¢ ideias do presente sfo teoricamente inflacionadas © ctiam demandas de orientago que podem ser atendidas pela educagio his- totica, Foi essa proposta de unir tcoria da histéria e Didética da Histétia que nos legitimou na confecsao do livro Historia do Distrito Federal, destinado a0 Ensino Fundamental. Para fins de apresentacio textual, elegemos, neste artigo, quatro pares le conceitos que nos auxiliaram a tecer uma narrativa histérica sobre o Distrito Federal, cocrentes com as demandas locais. Esses pares foram: identidade ¢ dife- renga, passado e fururo, natureza e cultura e narrativa e pesquisa. Identidade e Diferenga A temdtica da identidade ou, mais especificamente, a crise das identidades, esta na ordem do dia no debate das ciéncias humanas. Stuart Hall, num livro bastante conhecido, resumiu bem 0 aspecto central dessa discussa¢ 123 Custiano ALeNcan Arkas, Euinzer Carposo pr Quvetna. As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mun- do social, estio em declnio, fazendo surgir novas identidades ¢ fragmentando 0 individuo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado (HALL, 2006, p. 7). No mundo contemporaneo, nfo séo mais suficientes as cate- gorias genéricas que circunscreveram as identidades individuais em épocas anteriores: grego € bairbaro, judeu ¢ gentio, cristo e pagio, catélico e protestante, burguesia e proletariado, Ocidente ¢ Oriente, nacional ¢ local. Num ambiente de reflexividade, em que as tradi6es nao moldam automaticamente os individuos, a construgao da iden- tidade tornou-se mais complexa, gerando ansiedade, inseguranca e tiscos, mas também novas possibilidades de didlogo, interatividade ¢ de uma vida mais feliz (GIDDENS, 2002). Viverfamos, segundo essa perspectiva, em “tempos liquidos”, marcados pela dissolucao das organizacées sociais que limitavam as escolhas e as agdes dos individuos (BAUMAN, 2007, p. 7). No entanto, essas novas possibilidades identitérias ainda nao teriam abolido totalmente as tradicionais (GIDDENS, 2002) e sélidas (BAUMAN, 2007) estruturas que moldavam os individuos, Novos cultos ¢ novas seitas religiosas surgiram, mas ainda nao suplantaram a influéncia das religides tradicionais; a globalicagio enfraqueceu 0 Estado-Nagao, mas 0 nacionalismo permanece bastante presente no cotidiano das pessoas; a diviséo dieita-esquerda parece anacrénica, mas os partidos politicos ocidentais ainda se baseiam nela quando da formulagio de suas propostas. Enfim, é inegdvel que surgiram novas possibilidades de identidades; no, entanto as velhas identidades nao desapareceram e parece que itéo continuar por um bom tempo. Desse modo, ao utilizarmos a identidade como categoria con- ceitual central no livro didatico, tivemos uma atitude precavida: nao supervalorizamos as identidades ‘tradicionais’, nem subestimamos as ‘novas, em que pese a dificil definicao entre estes termos, conforme demonstraram Hobsbawm e Ranger (1997). A relevancia que a nocio de identidade adquire esté relacionada 40 prdprio momento histérico em que vivemos, caracterizado pela desarticulagao das formas tradicionais de relagGes sociais e pela acelera- $40 do processo de massificacao cultural, que interfere diretamente no 124 _As Fungors ba Teoma A Historia Ns ConsTaugao Do Livro Dinétice reconhecimento dos lacos sécio-histéricos que vinculam os individuos do presente ao seu prdprio pasado’. Essa necessidade de autorreconhecimento nao ¢ evidentemente um problema gerado pelo mundo contemporineo, mas o resultado de uma caréncia estrutural inerente ao ser humano desde suas origens. E que as pessoas 56 conseguem viver no mundo e relacionar-se com a natureza e com 0 outros seres humanos na medida em que reconhecem um sentido para suas ages, seus interesses e expectativas. Ou seja, 0 individuo interpreta mundo ao seu redor em fungao de seus medos e paixGes. F esse ‘sentido para que garante aos individuos reconhecerem-se em suas agbes ¢ sentimentos. Segundo Rusen (2001, p. 58), © homem necesita estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta como mudanga de si mesmo ¢ de seu mundo, a0 longo do tempo, a fim de poder agir nesse decurso temporal, ou seja, assenhotear-se dele de forma tal que possa realizar as intengGes de seu agir. Nesse sentido, a formagao da identidade torna-se o cerne de uma série de questdes que orientam a vida pritica dos individuos na sociedade. Ela nao est restrita ao tema do estabelecimento das identidades nacionais ‘ou regionais — um subproduto do processo de formagio do Estado-Nagao, oriundo do século XIX —, mas amplia seu espectro em diregéo a outras dimensées da consciéncia histérica. ‘Ao mesmo tempo, embora sejam amplamente conhecidas as ma- nipulagoes ideolégicas a que foi submetido o ensino da histéria no século XIX visando & construgio de uma identidade nacional, nao acreditamos ser possivel descartar essa questio no ensino de histéria. A prépria existéncia de um livro de histéria regional, por exemplo, s6 tem sentido se acoplada Aaceitagaio de uma histéria nacional. E evidente que precisamos rejeitar a ingénua crenga de que as histérias nacionais seriam a somatéria das historias regionais, do mesmo modo que os historicistas do século XIX acreditavam que a histéria universal seria a somat6ria das histérias nacionais. Nessa ética, a somatéria das histérias produzidas nos Estados brasileiros e no Distrito Federal resultaria numa espécie de frankenstein da histéria do Brasil. Nesse sentido, partimios do principio de que estudar 0 processo de consti tuiggo do Distrito Federal nao poderia ser confundido com um estudo histérico 12! a Cristiano ALeNcar Annals, Eiiezir Carposo pe Ouveina de cunho localista, isolado dos processos que extrapolam suas fronteiras, Pelo contrétio, uma hist6ria de cunho regional dirige-se, ao mesmo tempo, para as inter-relagGes entre os fendmenos macro-histéricos — em tiltima andlise, a his- téria da humanidade (entendida como um conceito cultural) ~ sua recepgio no interior da experiencia coletiva da regio. E por meio da histéria regional que a questo da identidade pode ser vislumbrada de maneira mais clara, visto que a especificidade local dialoga constantemente com as caracteristicas universais da sociedade contemporinea, Nesse sentido, optamos por abordar a histéria regional a partir de demandas que nos pareciam caras naquele momento ¢ inserir a regido no contexto da hist6ria nacional, a0 mesmo tempo em que enfatizévamos a especificidade do “saber local” (GEERTZ, 1997, p. 249-356) Por outro lado, faz-se necessfrio notar que ainda que as pessoas uti- lizem as novas possibilidades identitétias no seu dia-a-dia, identificando-se com um género sexual, com um estilo de vida, com uma ou nenhuma crenga religiosa, com uma etnia; elas ainda estio inseridas dentro das fronteitas politico-administrativas da nagao e da regio. Essa identidade nacional ou regional, desde que depurada de suas versdes chauvinistas ¢ xendfobas, é imprescindfvel para a construgio de projetos coletivos, para a convivéncia entre os diferentes € para a solidariedade social — importantes priticas a serem assimiladas na vida escolar da crianga. No caso do Distrito Federal, esse reforgo & identidade regional assume um cardter mais urgente do que em outras unidades da federacio, em virtude de seu recente aparecimento como unidade politica (pouco mais de cinquenta anos) ¢ de possuir uma populagdo majoritariamente de imigrantes, A auséncia de cradig6es tipicas do Distrito Federal faz com que a populagao passea utilizar as cradigdes de outros lugares, dificultando uma identificacao da populagio com o lugar em que vive. Além disso, conforme lembrou Halbwachs, a relagao entre o individuo e 0 lugar onde habita possui uma relacéo direta com 0 quadro de lembrangas produzido por seus habirantes, garantindo equilibrio ¢ estabilidade aos mesmos. Por isso, E sobre o espago, sobre 0 nosso espaco —aquele que ocupamos, por onde sempre passamos, 20 qual sempre temos acesso, e que em todo © caso, nossa imaginagio ou nosso pensamento €a cada momento capaz de reconstrair - que deyemos voltar nossa atengiio; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reaparesa esta ott aquela categoria de lembranga (HALBWACHS, 1990, p. 143). 126 As FuNgoes D4 TRoRIA DA Historia NA CoNsTRUGAO DO Livro DIpAtICO... Foi entao sobre essa relacio entre individuo ¢ espago que nos con- centramos. Ou seja, sobre a constatacio da auséncia de ocupacao humana na regido, ou melhor, sobre esse incmodo siléncio sobre a ocupacao hu- mana da regio do atual Distrito Federal. Um silencio que, utilizando-se da metéfora de Paul Ricocur sobre o tratamento da nasrativa por parte da escola de Annales, foi eclipsado pela ideologia do progresso, oriundo do ambiente de construgao da nova Capital Federal, Para escaparmos desse eclipse, enfatizamos entao os varios deslo- camentos populacionais ao longo do tempo: populagées pré-histéricas, tribos indigenas, bandeirantes, escravos africanos, trabalhadores nordes- tinos, fanciondrios puiblicos cariocas etc, Com isso, procuramos mostrar aos brasilienses que a diversidade de origens e de costumes, longe de ser um impedimento, é um elemento constituinte da identidade do Distrito Federal. No entanto, para isso ¢ preciso pensar sua histéria aberta o sufi- ciente para englobar essa diversidade de tradigées. O reconhecimento da diferenca possibilita o surgimento de uma identidade salurar 4 populagao distrieal Passado ¢ Futuro Surgida sob bases iluministas, a historiografia moderna mante- ye uma atitude critica em relagdo ao passado e procurou legitimar a construgéo de um fururo que fosse substancialmente melhor do que presente. O texto de Kant Mdeia de uma histéria universal sob 0 ponto de vista cosmopolira (1784), prevendo um futuro sem guerras entre os estados, foi seguido, no século XIX, de varios outros prevendo um pro- gresso significativo para a humanidade: o aumento da liberdade (Hegel), desenvolvimento cientifico ¢ industrial (Comte), fim da desigualdade social (Marx). No século XX, guerras mundiais ¢ outras catistrofes levaram os tedricos 2 terem uma visio mais resignada com o presente (Weber) ou pessimista com o futuro (Walter Benjamia), Essa mudanga de foco afetou a historiografia, tornando os historiadores mais criticos em relagio a categorias como ‘progresso’, ‘desenvolvimento’, ‘moder- nizagiio’, ‘modernismo’, ‘industrializagao’. Acontece que essas palavras foram a base teérica da legitimagao de ctiagio do Distrito Federal e da construgio de Brasilia. Desse modo, a construcao simbdlica da nova capital esteve conectada a varias utopias: 127 Cristiano Atecan Annals, Euiezer Cardoso Dz OLIVEIRA Dependendo da referéncia, a idéia da nova capital ganha contetidos os mais diversos: nacionalistas (centro politico conctetizador e itra- diador da nacionalidade como poténcia); modernistas (modelo de beleza ¢ sociabilidace), milenaristas (simbolo da plenitude). Mate- rializava utopias de esquerda (prova da capacidade de planejamento da sociedade brasileira) ¢ de direita (materializagéo da integridade nacional) (SILVA, 1997, p. 55). Cinquenta anos apés a sua inauguragdo, as representagées popu- lates sobre a cidade mesclam imagens de uma cidade moderna (lugar rico e diferente) com cidade doente (covil de politicos corruptos e com alta ctiminalidade). Essas duas representagées partem do pressuposto metonimico de que a histéria do Distrito Federal se resume a histéria de Brasilia, Aescolha de uma regio interiorana para a instalagéo de Brasilia e a rapidez com que foi construfda podem suscitar a impressio de que a cida- de é uma espécie de ‘artefato alienfgena’ que pousou no solo do Planalto Central entre 1956 ¢ 1960. Desse ponto de vista, Brasilia néo pertenceria ao lugar, sendo desvinculada de suas tradig6es, de sua histéria e até de seu povo. Brasilia seria o marco zero de um novo tempo, de um novo modelo de organizacio social. No entanto, tedricos da histéria contemporaneos nos alertam sobre 0 perigo desse embasbacamento em relagdo ao tempo da mo- dernidade. Reinhart Koselleck, por exemplo, critica a modernidade por valorizar o horizonce das expectatiyas (as utopias) em detrimento da experiéncia (as tradigées), acarretando uma aceleracao perigosa do tempo histérico. Ele alerta que “a histéria s6 poderé reconhecer 0 que estd em contfnua mudanga eo que é novo se souber qual é a fonte onde as estruturas duradouras se ocultam” (KOSELLECK, 2006, p. 327). © tempo da modernidade e da utopia vé a histéria apenas como transformagio, todavia, como afirmou Gadamer (1997, p. 403), Inclusive quando a vida softe suas transformages mais tumul- tuadas, como em tempos revolucionérios, em meio & suposta mudanga de todas as coisas, conserva-se mais do que era antigo do que se poderia crer, integrando-se com o novo numa forma de validez 128 ‘As Funcoss pa Troma Da Historia wa Constrocso po Livro Diparics O discurso do novo geralmente esconde a presenga do velho: ‘Nova Repiblica, ‘Estado Novo’ e ‘Nova Histéria’ sio nogées que contém muito daquilo de que se procurou superar: No caso do Distrito Federal, iso fica vistvel quando se nota o esquecimento em relagao ao tempo anterior & construgéo de Brasilia, que eclipsou as tradigées centendirias dos antigos habitances do lugar. No entanto, essas tradigGes ainda sao visiveis nos nomes de lugares, nos costumes, nas marcas deixadas pelos humanos na paisagem e, sobretudlo, nos niicleos urbanos que foram incorporados ao Distrito Federal. Por exemplo, 0 nome de uma das cidades-satélites, Taguatinga, € indigena, significando “barro branco”, remetendo 4 ocupagao indigena do lugar. O nome do io Desco- berto remete ao passado bandeirante, caracterizado pela busca de descobrir ouro, velhas mangueiras sao vestigios das antigas Fazendas do século XIX etc. Esses indicios comprovam que a histéria do Distrito Federal nao se confunde meramente com oadvento de Brasilia. Vestigios demonstram a pre- senga humana no lugar que remonta hé mais dez.mil anos; grupos indigenas percorriam a regio em busca de alimentos; os bandeitantes, com escravos negros, procuravam ouro no Planalto Central desde o século XVIII, quando foram distribuidas as ptimeitas sesmarias e fundaclos os primeiros nticleos turbanos, como Mestre das Armas; viajantes estrangeiros, no século XIX, deixaram descrigdes sobre o higat. Tudo isso demonstra a riqueza do pasado do Distrito Federal anterior construgéo de Brasilia, Por isso, tratamos desses temas procurando ressaltar a antiguidade da ocupagéo humana no lugar. ‘Ao mesmo tempo, 20 mostrar a antiguidade das tradigGes histéricas do lugar em que foi ctiado o Distrito Fedleral, nao subestimamos 0 impacto da construcio de Brasilia ¢ © surgimento das cidades-satélites. A proposta foi apenas mostrar, com Gadamer, que nfo existe transformagées sem per- manéncia, e, com Koselleck, que ¢ preciso manter um equilibrio entre as experiéncia e expectativas. Desse modo, o pasado ampliado, que engloba varias tradigGes (indigenas, negras, europeias, goianas etc.), possibilita uma base mais sdlida e realista &s utopias surgidas com a construgio de Brasilia, depurando os excessos de uma ingénua utopia moderna, Histéria e Nacureza De acordo com Jérn Riiscn, a fungao existencial do conhecimento histérico procura fazer uma reflexao sobre o passado, auxiliando os indi- viduos 2 suportar as agruras do presente e agir diante de novos desafios. F 129 Cristiano ALeNcaR Annals, Ettezen CarDoso DE OLtvetra, um dos desafios urgentes de nossa épocaé a questo ambiental, Boavencura Santos (2001, p. 43-4) afirma que a ecologia, juntamente com a democracia, € uma das “utopias realistas” do mundo atual: Esse principio de realidade consiste na contradigio crescente entre 0 ecossistema do planeta Terra, que é finito, ea acumulagio de capital que é tendencialmente infinita. Por outro lado, a utopia ecoldgica é utdpica, porque a sua realizagio pressupde a transformacao global, no s6 dos modos de produgéo, mas também do conhecimento cientifico, dos quadros da vida, das formas de sociabilidade e dos universos simbilicos [...]. Portanto, ao trabalharmos um capitulo especifico no livro sobre ecologia, nao estévamos nos capitulando diante de um modismo pés- -moderno, mas sim procurévamos inserir no conhecimento histérico uma problematizagao relevante para a sociedade atual. Por isso, consideramos que mostrar aos alunos as maneiras como as sociedades do pasado se re- lacionavam com a natureza é uma forma de faré-los refletirem com mais propriedade sobre essa relagao no presente’, Um dos historiadores pioneiros no estudo das relagdes entre histéria e natureza foi um pesquisador da histéria do Distrito Federal: Paulo Ber- tran, autor da obra com o sugestivo titulo de Histéria da terra ¢ do homem no Planalto Central. Um exemplo do método do autor ¢ a sua andlise da “eco-histéria da alimentagao”, em que mostra a influéncia do meio am- biente na criacao, pelos colonizadores, de uma culindria prdpria, resultante da exploracéo de alimentos nativos e a introducao de alimentos exdticos, da regido do Planalto Central, onde Aos poucos, na mesologia do cerrado, ia brotar uma culindria prépria adaptada, estribada em idiossincrasias de um meio ambiente que, sob muitos aspectos, era novo ao colonizador ¢ que encaminharia a0 consumo de alimentos cuja produgio adaptava-se & regiao (BERTRAN, 2000, p. 176). No entanto, essa relagéo entre natureza e cultura, que, por milénios, era marcada por uma supremacia do mundo natural sobre o mundo hu- mano, agora tornou-se diferenciada, jé que 130 pa Teoria Da Historea Na ConsTRUgao Do Livro Dipartco.. ‘Nas condigdes da modernidade, as pessoas vivem em ambientes artificiais num duplo sentido. Primeiro, por causa da difusio do ambiente construido, em que vive a maioria da populagio, o habitat humano se torna separado da natureza, agora representade sé na forma de “campo” ou “selva”, Segundo, num sentido profundo, a natureza deixa literalmente de existir quando eventos que ocorrem naturalmente fazem cada ver mais parte dos sistemas determinados, por influéncias socializadas (GIDDENS, 2002, p. 154). Esses dois sentidos indicados por Giddens sobre a mudanga que a modernidade acarretou na relacéo dos humanos com a natureza reforgam a necessidade de se trabalhar essa temitica no ensino de histéria: primeiro, a0 viverem num ambiente artificializado, as criangas ndo conhecem a natureza ‘natural’, acarretando a necessidade de conhecer essa relaso em ambientes pré-modernos'; segundo, ao se tornar ‘socializada’, a natureza depende dos humanos para sobreviver, 0 que implica a conscientizagao ecolbgica. Nesse sentido, aabordagem eco-histérica conttibui para desenvolver uma atitude mais equilibrada entre 0s eixos natureza e cultura, fugindo de uma visio irracionalista de negar a culeura em favor da natureza® ou da visdo inversa, devedora de um instrumentalismo economicista. ENSINO E PESQUISA Desde as eriticas de Tucidides a Herddoto’, 0 debate sobre o que era mais importante no conhecimento histérico — a narrativa ou a pesqui- sa — foi intenso entre os historiadores. De modo geral, os protagonistas dessa discussfo privilegiavam um dos aspectos, até Jérn Riisen propor, em sua matriz disciplinat, uma relacio equilibrada entre a pesquisa ¢ a narrativa, sendo ambas igualmente importantes para a racionalidade do trabalho histérico. Nao é nosso interesse reconstituir esse debate, ainda atual, mas ape- nas mostrar que, mesmo em livros didéticos, inegavelmente uma nartativa, 6 estimulo & pesquisa é fundamental para a formagéo historica. Nestes termos, a relagao entre os elementos tdpicos ¢ metédicos pode sez mais conyenientemente expressa pela relacio entre pesquisa ¢ ensino, no qual os alunos nao aprendem apenas contetido, mas também os rudimentos bisicos da metodologia 131 Chisttano ALeNcaR Anrats, ELttzEr Cardoso Dz OLVERA Para Marc Bloch (2001, p. 51-68), a histéria éa ciéncia que estuda os homens inseridos no tempo. Desta afirmacao, deriva uma associacio que procuramos privilegiar em Histdria do Distrito Federal. a ideia de que historia nao € somente o estudo do pasado, mas fundamentalmente uma reflexio sobre 0 nosso presente. Isso pode ser percebido no privilégio dado & atividade de pesquisa como um elemento essencial ao ensino. A indissociabilidade entre ensino ¢ pesquisa procura desconsttuir a nogéo de que 0 estudo da hist6ria ocorre de maneira passiva, como se aqueles que a ensinam e que 2 aprendem nao contribufssem para a constituicso da consciéncia histérica, que seria privilégio exclusivo das instituig6es de pesquisa, De maneira diversa, entendemos a pesquisa como um momento de aprendizagem que supera os limites fisicos da sala de aula e agrega novas questSes aos saberes formais ¢ contribui para a constituigdo da consciéncia histérica. Além disso, os PCN indicam outro aspecto fundamental, a saber: Os procedimentos de pesquisa devem ser ensinados pelo professor Amedida que favoregam, de um modo ou de outro, uma ampliacio do conhecimento ¢ das capacidades das criangas: trocas de informa- $6es, socializacio das ideias, autonomia de decisio, percepgio de contradig6es, construgbes de relagées, atitudes ¢ confrontamento, dominios linguisticos, escritos, orais, iconogtéficos, cartogréficos € pictéricos (MEC, 1997, p. 77). As atividades de pesquisa agregaram ainda outros dois farores que consideramos essenciais na concepgio de Histéria: estimular a atividade em grupo, a socializacao das opiniGes e a ideia de conhecimento como constru- so coletiva, além de estabelecer ¢/ou reforcar os vinculos entre os alunos € a comunidade em que vive, por meio da compreensio da realidade local € das possiveis solugGes para seus principais problemas, Além disso, em associagéo a esta leitura engajada da relagéo entre © ensino ea pesquisa, assumimos uma concepgio de que o conhecimento histérico implica, necessariamente, problematizaz, Ou seja, 0 passado pode servir como fonte de inspiragio para visualizagio de questoes que sao constantemente langadas em nossa vida cotidiana. O passado, neste caso, no € um objeto distante, sem vida ou expresso, Por meio dos questionamentos feitos pelo presente, a condigio pretérita demonstra sua Vitalidade e valor pata o mundo atual, Isso nao quer dizer que o pasado 132 ‘As FuNGO#S DA TroRIA DA Historia na Construcéo bo Livro Dinsttco.. estd no presente. Quer dizer sim que existe uma funcéo relacional que orienta nosso interesse pelo passado: é que os interesses que temos no presente (nossas brincadeiras, nossas preferéncias, nossas comidas etc) possuem uma dimensao histérica a ser revelada. Quem, entre as ctiangas que estio iniciando sua vida escolar, saberia o significado ¢ a fungao de um instrumento to comum hd poucas décadas, como um selo postal? Quantos deles conheceriam brincadeiras que nos foram transmitidas de geragao em geragao, numa linha de continuidade com perfodos que precederam a prdpria descoberta da América, como mostra 0 quadro de Pieter Brueghel, de 15602 Estes questionamentos foram levados 20 texto de maneita a impor um efetivo estranhamento a0 leitor: apesar de distante, o passado ¢ capaz de revelar sua vitalidade na medida em que haja o interesse e a disposicio do presente em se comunicar, Essa comunicagio, como bem sabemos, nao se processa no vié- cuo, mas com o atixflio de documentos, nao apenas os registros esctitos yoluntétios, mas também as imagens, as construgdes arquiterdnicas, as marcas humanas nas paisagens, as 4rvores plantadas pelos humanos, além de lendas, mitos, poemas, misicas, didrios de viagens, cartas, roteiros, leis etc. A contextualizagéo de cada uma dessas fontes foi pensada de maneira a levar as criangas a descobrirem o seu caréter hermenéutico. Ou seja, se por um lado os documentos sio produtos da prdpria condigio humana de interpretar 0 mundo ao seu redor (baseada em seus préprios yalores e, portanto, passiveis de inimeras leituras no presente), por outro, a interpretacao do presente nao pode ser feita de maneira totalmente livre. Em suma, deve-se considerat ao mesmo tempo (visto que o préprio carter hermenéutico implica em considerar 20 mesmo tempo) a mensagem do documento ¢ 0s valores do sujeito que o interpreta, a prépria crianga, CONSIDERAGOES FINAIS: TEORIA E DIDATICA DA HISTORIA, O QUE FICA? Potencializar 0 saber tedrico, tornando os sistemas de categorias da ciéncia da histétia mais acessiveis para as criangas e, a0 mesmo tempo, heuristicamente mais titeis para os professores. Essas eram duas preocupa- gGes constantes ao longo de nossa pesquisa. Isso significava compreender 6 livto didético e, como pano de fundo, a prépria teoria da histéria como instrumento, como serva no processo de formagdo hist6rica. Por esta no- 133 Caismiano AteNcan Artals, ELIEZER CARDOSO DE OLIVEIRA, do entendemos a capacidade que o individuo desenvolve de apreender os contextos abrangentes ¢ mobilizé-los em fungio da vida prética. Neste caso, ela articula as certas comperéncias a niveis cognitivos ¢ articula contetidos a dimensio do agit. Esse agir orientado ~ 0 dominio do contexto de suas circunstancias e condig6es que habilitam os individuos a resolver problemas de maneira reflexiya e interpretativa — € 0 critério de eficdcia, didaticamente sintetizado no conceito de aprendizagem (RUSEN, 2007, p. 95). Algm disso, esse agir orientado conduziria, por sua vez, 0 estudo da historia - segundo pensdvamos & época —as formas de constituigéo de um pensamento engajado sobre o presente (um dos objetives bésicos da educagao histérica). O individuo engajado é aquele que se percebe rela- cionado com as circunstancias histérico-sociais em que vive e que em sua praxis social reflete sobre o significado moral de suas ages. Engajamento é portanto, uma condigao para a existéncia humana coletiva, muito em- bora este conceito tenha cafdo em desuso em virtude do esvaziamento de sentido provocado pela fragmentagao dos discursos politico-partidérios nos tiltimos anos, no Brasil. Como condigao ¢ nao como determinagao, © engajamento esta associado ao mundo da vida e da a¢3o comunitéria. Daj a retomada das quest6es colocadas no inicio da obra (a articulagéo narrativa da experiéncia humana com a finalidade de orientar a vida prética no tempo), mas agora robustecido pelas mediagbes conceituais construidas ao longo da obra. A pergunta geradora que inaugura as primeiras paginas do Histdria do Distrito Federal (Quem ¢ Vocé?), nesse sentido, n&o possui uma fungio meramente figurativa, conforme ponderou o PNLD. Ela parte do pressu- posto ricoeuriano de que a busca pela identidade, seja individual ou coletiva, ultrapassa os limites de um suporte formal como “brasileiro”, “brasiliense”, “Carlos” ou “Alice” e o conduz & uma reflexéo sobre os eventos e circuns- tincias que identificam as pessoas & seus nomes. Afinal, como nos ensinou Ricoeur (1991; 1997), identificamo-nos nas histérias que contamos sobre nés mesmos, em nossas fotos antigas etc. porque reconhecemos que existe algo mais que um simples nome, que vincula o José de hoje, com aquele que sorti ao brincar no terreiro, numa fotografia antiga retirada do dlbum de familia. Enfim, foram estas as contribuigdes que, neste exercfcio reflexivo, a teoria da histéria péde elaborar quando chamadaa a contribuir com as demandas propostas pela Diditica da Histéria e, mais especificamente, sobre a construgao do livro didatico sobre o Distrito Federal. 134 As Funcors pa Trorta Da Eisronta Na Constructo bo Livro Dinarico... NOTAS Este texto foi desenvolvido a partir das reflexes iniciais produzidas no ambito da As- sessoria Pedagdgica do livro Histéria do Distrito Federal (ARRAIS; OLIVEIRA, 2008). Esses dadas sobre o Distrito Federal foram retirados do site: (2010). ‘Um diagnéstico cerecito sobre essa situagio foi apresentado por Hobsbawm (1995, p. 13): “Quase todos os jovens de hoje cresvem numa especie de presente continuo, sem qualquer relagao organica com passado piiblico da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo oficio é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais impor rantes do que nunca no fim do segundo milénio” Além disso, & preciso notar que, em termos epistemolégicos, a prépria conscrugdo do conhecimento histérico é, entre coisas, um ato de transformagao da natureza em cultura, conforme a opinio de Michel de Certeau (2000, p. 80): “O historiador pode transformar em culeura os elementos que extrai de campos naturais. Desde a sua docu- mentagio (onde ele introduz pedras, sons etc.) até o seu livro (onde plantas, mierdbios, geleitas, adquirem o estatuto de objetos simbélicos), ele procede a um deslocamento de arriculagao natureza-cultura” E preciso cautela para nio cometer anacronismo, imputando as sociedades tradicionais uma ideologia ecoldgica que elas nao possuiam. Keith Thomas (2010) mostrou bem que na Inglaterra pré-capitalista predominaya a tese de que a natureza foi concedida por Deus para o uso e fruto dos humanos, Alem disso, pesquisas recentes tém mostrado priticas dos indigenas que provocaram sérios danos 2 natureza no tertitério brasileiro (NARLOCH, 2009, p. 51-5). ‘Arthur Herman denomina de “ecopessimismo” os movimentos ecolégicos que acteditam erorcem pata uma destruigio da tecnologia eo retorno as condigées sociais das socie- dadcs aborigines. Desse modo, alguns desses grupos ecolégicos, como “o movimento da Ecologia Profiunda tem enfaticamente rejeitado qualquer idéia de que os seres humanos possucm mais direitos que qualquer outra espécie no planera, Desde que a civilizagéo humana assumiu o oposto, isso constitui um crime continuo contra os dircitos da ter- ra (HERMAN, 1999, p. 454). Outros vao ainda mais longe: “alguns radicais tém acé ‘mesmo levantado seriamente a hipsteses cle que a humanidade ¢ um virus na biosfera que requer um antivirus. Esteé a AIDS; Chistopher Manes, em 1987, chamou o HIV dea 'solugio necesstria’ para a destruicio humana do planeta’ (HERMAN, 1999, p. 457). Para a maioria dos estudiosos, esta critica de Tuctdides ¢ uma referéncia ao metodo, de Herddoto: “A cal ponto chega a aversio de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade, ¢ tio grande ¢ a disposicdo para valer-se apenas do que estd ao alcance da mio” (TUCIDIDES, 1999, Livro I, p. 20). Avaliaggo do PNLD: “Por outro lado, o livro raz também atividades insti- gadoras, algumas delas em forma de jogos, outras apresentando leituras de 135 Cristiano ALENCAR Annals, BuEZER CARDOSO DE OLIVEIRA imagens. Uma das principais caracteristicas das atividades propostas éa énfase na localizagzo do aluno no tempo € no espago em relacio a sua ¢ 3s outras sociedades, a partir da pergunta inicial Quem ¢ vocé?” (BRASIL, 2010). REFERENCIAS ARRAIS, Cristiano Alencar; OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. Histéria lo Distrito Federal, 4° ou 5° do Ensino Fundamental. So Paulo: Scipione, 2008, BAUMAN, Zygmunt. Témpas lguidos. Jorge Zahar Editor, 2007. BERTRAN, Paulo. Histdria da terme e do bomem no Planalto Central. Brasilia: Verano, 2000. BLOCH, Mare. Apologia dia Histévia on 0 oftcio de bistoriador. Rio de Janeito: Zahar, 2001. BRASIL. Programa Nacional do Livro Didético. Disponivel em: . Acesso em: 25. ago. 2010. DE CERTEAU, Michel. 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