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Passando na frente de uma casa, um andarilho sente um cheirinho delicioso vindo da cozinha. O
sujeito é pobre e está faminto. Bate na porta e pede comida. Vem a dona da casa e diz que
naquele dia não fez jantar.
O homem não se aperta. Será que por acaso ela não poderia emprestar
uma panela para ele fazer uma sopa de pedra? Surpresa, a dona de
casa empresta. O andarilho enche a panela de água, põe dentro
algumas pedras, prepara o fogo e coloca-a para ferver. A mulher fica só
olhando.
No fim, o sujeito joga as pedras fora, toma a ótima sopa e vai embora de pança cheia. Dessa vez
ele conseguiu enganar a fome.
Como julgar o herói dessa história? Alguém poderia dizer: “Ele é mau porque mentiu! Enganou a
mulher”. Outra pessoa poderia argumentar: “Mas a mulher também mentiu e, além disso, o
andarilho estava morrendo de fome. Lançou mão de um ardil para poder sobreviver!”.
As duas respostas podem ser acertadas. A segunda, porém, tem mais a ver com o sentido das
narrativas de Contos de bichos do mato. O ardil é um dos recursos humanos de sobrevivência
mais antigos. Flechas, armadilhas e disfarces são ardis e graças a eles o homem arcaico, em
busca de alimento, pôde enfrentar e vencer animais muito maiores ou inimigos mais poderosos.
Foi assim que a espécie humana conseguiu superar as adversidades e sobreviver até os nossos
dias.
Os Contos de bichos do mato são narrativas que falam sobre a luta pela sobrevivência (e sobre o
amor à vida) e foram criadas e recriadas principalmente por gente do povo, gente humilde vivendo
em condições precárias. Pessoas acostumadas a todo dia acordar e ir à luta para garantir a
sobrevivência naquele mesmo dia.
Nesse contexto, os homens lutam contra todo tipo de força: as forças da natureza, representadas
por secas, chuvas, frio, doenças e epidemias, acidentes, perigos naturais e pela própria fome. E
as forças de gente poderosa que os explora e escraviza.
Essas lutas talvez possam ser assim resumidas: uma sucessão de ardis, truques, malandragens,
gambiarras e espertezas utilizados para conservar a vida. Na verdade, a fome, a busca de
proteção e a luta desigual contra forças maiores são a semente de uma certa moral popular, por
vezes chamada de moral ingênua.
As narrativas populares de bichos foram criadas a partir da moral ingênua. Em tese, como
sabemos, a moral corresponde a um conjunto de normas de comportamento destinadas a regular
as relações entre os indivíduos 1. Mas nem sempre lembramos que essas relações acontecem
numa determinada comunidade social. Em outras palavras, o significado e as características da
moral podem variar muito de sociedade para sociedade.
Mas como exigir que a moral de uma sociedade socialmente justa e equilibrada, onde todos os
cidadãos pagam impostos e recebem em troca os benefícios do Estado – segurança, educação,
saúde e trabalho –, seja igual à moral de uma sociedade desequilibrada onde cada um luta por si
para poder sobreviver?
Para entender essas narrativas sem taxá-las de “politicamente incorretas” devemos considerá-las
num contexto histórico e social específicos. Num mundo de injustiça, de tirania, de crueldade,
onde impera a lei do mais forte, só pode vigorar a moral do “cada um por si e Deus por todos”, ou
“comida pouca, meu pirão primeiro” ou “come mais quem come quieto” etc.
Trata-se de uma questão de sobrevivência. Sem levar em conta tudo isso não é possível
compreender os Contos de bichos do mato. Mas não sejamos hipócritas. A moral ingênua, não
pertence apenas ao povo pobre, humilde e socialmente desamparado. Ela é conhecida por todos
os seres humanos, independentemente de graus de instrução e classes sociais. Quem nunca
puxou a brasa para a sua sardinha que levante a mão!
Sobre o assunto, vale consultar VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Civilização Brasileira, 1999 e
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Universidade de Brasília, 1992.