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ARTE

NO ESPAÇO
PÚBLICO
Todas estas práticas se
sustentam na ideia de que o
espaço público, longe de ser
uma entidade preexistente
criada para os seus usuários,
é antes um espaço que
emerge da prática dos seus
utilizadores.
Rosalyn Deutsche1

1
Rosalyn Deutsche, “The Question of ‘Public Space’”, disponível em <iwalewapublicspace.
files.wordpress.com/.../rosalyn-deutsche-_-the-question-of-_public-space_.pdf>, acedido
em 10 Abr. 2013. Tradução livre dos autores.
A presença de objetos artísticos no chamado espaço público não constitui
uma novidade de maior, quer se trate de estátuas equestres que perpetuam
figuras e feitos históricos na memória coletiva dos locais, de painéis de azu-
lejos em relação intrínseca com a arquitetura que os suporta ou de escultu-
ras desenhadas para embelezarem uma determinada composição urbana.
Todos reconhecemos a presença destas manifestações, mesmo que por ra-
zões diversas possamos não ter reparado nesta ou naquela especificamen-
te. Aos exemplos enunciados poderíamos acrescentar os graffiti, stencils,
tags e stickers que constituem o que geralmente se designa de street art;
mas também manifestações menos visíveis, como intervenções efémeras
ou ações que ocorrem durante um período reduzido de tempo. Durante as
últimas décadas o conceito de arte pública tem procurado identificar esta
complexa composição definida por intervenções manifestamente distintas.

Numa primeira abordagem poder-se-á dizer que a adjetivação da expressão


“arte pública” deriva da sua localização. De uma forma geral, esta expres-
são procura abarcar toda e qualquer manifestação artística que ocorra ou
seja instalada no espaço público. No entanto, esta última designação reúne
pouco consenso. Este facto deve-se não só à forma como cada época faz uso
do que é considerado comum, logo público, mas essencialmente devido ao
importante papel que o comum tem vindo a desempenhar no exercício do
poder e no discurso dos diferentes regimes políticos. Verifica-se, assim, uma
constante apropriação do mesmo consoante as necessidades e ideologias.
Onde podemos, então, localizar o espaço público? Na contemporaneidade
temos tendência a associar espaço público com as artérias da cidade ou
qualquer espaço ao ar livre de caráter inclusivo. A estes dois aspetos terá
também que se associar um terceiro: o referido espaço ser propriedade
do Estado. Ou seja, de todos, público portanto. No caso de um parque, por
exemplo, este teria que ser propriedade do poder local ou do Estado e de
livre acesso a todos os cidadãos, como acontece geralmente nas ruas e pra-
ças. Assim, parece não ser precipitado concluir que a referida topologia es-
pacial se encontra associada à acessibilidade inclusiva e à liberdade de usar
e de permanecer nesse mesmo espaço. No entanto, esta definição apresenta
vários problemas quando pensamos em espaços públicos, portanto detidos
pelo Estado, cujo acesso é limitado, como é o caso do Estádio Nacional no
Jamor em Oeiras. Ou mesmo no que diz respeito a espaços fechados, como
câmaras municipais, hospitais, escolas ou museus. Da mesma forma que
existem edifícios do Estado de acesso restrito devido à natureza das suas
funções, também é verdade que as ruas e praças, apesar de acessíveis, es-
tão sujeitas a um controlo crescente associado a uma pesada máquina de
vigilância e regulamentação.
Vários autores têm refletido sobre a complexidade de questões que emer-
gem da definição de “público”, “comum” e “comunidade”, nomeadamente
no discurso dos regimes democráticos e, mais recentemente, neoliberais.
Para Claude Lefort (1924–2010), a forma como se diz e faz espaço público na
segunda metade do século XX está intimamente relacionada com o que se
entende por democracia. Um espaço universalmente acessível e totalmente
inclusivo pressupõe a circunscrição apriorística das suas liberdades. No en-
tanto, a generalização das liberdades universais não só define o espaço polí-
tico antes de este o ser, como gora a expressão das pluralidades intrínsecas
ao corpo social. Para Lefort, em vez de se apresentar enquanto definição
apriorística e aparentemente consensual, o espaço público deveria ser antes
uma constelação resultante do exercício da participação democrática. As-
sim, um corpo necessariamente plural, flexível e responsável pela definição
do seu espaço político e público.
As ocupações que tiverem lugar durante os anos de 2011 e 2012, um pouco
por todo o mundo, voltam a levantar questões sobre o chamado espaço pú-
blico e a sua operacionalidade. Neste contexto, parece também pertinente
olhar brevemente para as articulações que enformam as comuns distinções
entre o privado e o público. Ao dizer que o espaço público é universalmente
acessível e potencialmente inclusivo, coloca-se esse em relação, mesmo que
por oposição, ao espaço de acesso exclusivo ou privado. Os acontecimentos
que tiveram lugar no Parque Zuccotti, em Nova Iorque, durante o movimen-
to Occupy Wall Street (OWS) complicam os predicados que geralmente asso-
ciamos ao desígnio de privado. Apesar de o Parque Zuccotti ser um espaço
exterior de livre acesso e sem qualquer barreira física que o separe da malha
urbana, este é propriedade de uma entidade privada (privately owned public
space, ou seja, espaço público de propriedade privada), não estando assim
sujeito à legislação que superintende os espaços públicos (de propriedade
do Estado) da cidade. Assim, as decisões relativas à permanência das pesso-
as que se juntavam no parque durante o OWS fez parte de uma negociação
entre estes e os proprietários do Parque Zuccotti, abrindo a discussão a no-
vas formas de olhar e lidar com este tipo de aglomerações. Sem se atender
em detalhe aos acontecimentos em Nova Iorque, interessa notar que a na-
tureza privada do espaço ocupado permitiu que a negociação extrapolasse
a retórica das liberdades universais. Liberdades essas que nivelam as reais
características do que nos é comum: o dissenso e o plural.
Será assim o caráter público de um espaço uma característica endémica
dessa mesma fisicalidade ou antes o resultado do uso que se lhe dá? Parece,
assim, que a natureza de determinado espaço físico não constitui per se o
exercício da coisa pública. Compreende-se assim as fragilidades de se pres-
supor que a ideia de público se sustenta no caráter estatal de determinada
geografia, ou mesmo na sua acessibilidade inclusiva. Também as questões
dialéticas que o binómio público/privado sugere excluem o caráter político
de lugares tradicionalmente entendidos como privados, como é o caso do
espaço doméstico. Este exercício é antes fruto da nossa natureza social e
política que, na sua performatividade e participação, define e redefine o que
nos é comum. Assim, a rua, a praça, a escola, o museu ou a casa são espaços
de potencial performatividade desse espaço público.
Outra das questões que se colocam perante a adjetivação da expressão “arte
pública” tem a ver com a sua associação com acessibilidade e legibilidade
da produção artística. Parece que se estabelece uma relação próxima entre
a sua localização fora do espaço institucional (museus e galerias) e o facto
de esta passar a ser acessível a um maior número de pessoas. No entanto,
a acessibilidade e inclusão que este espaço supostamente proporciona é
bastante discutível, como já tivemos oportunidade de ver. O que significa
afirmar que determinado projeto artístico é mais acessível na rua do que
no museu? Terá a sua acessibilidade a ver com a qualidade da experiência
estética que proporciona, ou com a simples proximidade física? Uma maior
proximidade entre um objeto e um indivíduo não é diretamente proporcio-
nal ao interesse do último pelo primeiro; muito menos à intensidade da ex-
periência que esta proximidade possa proporcionar. Neste contexto, até se
poderia dizer que o museu ou espaço expositivo, através do diversificado
programa educativo e material de interpretação disponível para qualquer
visitante, produz, com maior assertividade, essa dita proximidade, em com-
paração com as situações fora do espaço expositivo.
A distinção que a adjetivação “pública” estabelece também não se demons-
tra muito operativa no que diz respeito ao pensamento teórico sobre essa
mesma produção artística. Dizer que esta é necessariamente distinta daque-
la, com a qual se relaciona por oposição – a produção em espaço expositivo
– é afirmar que os objetos, uma vez localizados numa destas arenas, obede-
cem a lógicas e fazeres distintos. Os artistas, quando convidados ou interes-
sados em produzir para outros contextos (nomeadamente o espaço exterior
não institucional), não reformulam necessariamente todo o seu universo
artístico. O que se verifica na maioria dos casos é uma migração do modus
operandi de cada um dos autores, tendo em conta as novas circunstâncias.
No que diz respeito ao espaço exterior, as qualidades físicas do objeto terão
necessariamente de ser pensadas tendo em conta os novos condicionalis-
mos climáticos e a exposição à interação humana. Mesmo que o objeto não
lhes resista, essa efemeridade ou porosidade será uma resposta consciente
do artista às características desse novo espaço de operação. Não se pode,
no entanto, afirmar que esta sensibilidade à natureza do contexto se verifi-
ca exclusivamente quando o artista opera em espaço exterior, mas sempre
que se predispõe a responder às condições específicas de um determinado
local ou quando pretende que o objeto se relacione diretamente com essas
mesmas características.
Pensar no conceito arte pública como capaz de designar toda e qualquer
produção que se instale em espaço exterior não institucional seria homoge-
neizar uma produção artística que é tão plural quanto aquela que se dá a ver
no interior do cubo branco. Assim, interessa olhar para a produção artística
fora do espaço galerístico não como uma forma de separar ambas as produ-
ções, mas como forma de perceber como é que os artistas têm respondido
à presença de novos condicionalismos, quer sejam climáticos, sociais, políti-
cos, físicos, ou mesmo de receção do próprio projeto.

Este ciclo de visitas – Título em construção – pretende olhar para a produção


artística que se inscreve fora do espaço expositivo de museus ou galerias.
Não numa relação dicotómica com estes últimos ou na tradição da crítica
das instituições, mas na tentativa de perceber a complexidade de questões
que emergem dos novos enquadramentos. Desta forma, olhar-se-á quer
para os trabalhos comissariados pela Fundação de Serralves que podem ser
encontrados no parque desta instituição, quer para outras manifestações
artísticas presentes na malha urbana da cidade do Porto. Ao observar a
produção artística que se inscreve para lá do lugar tradicional de exibição da
arte, pretende-se perceber como é que a ausência de enquadramento ins-
titucional ou das condições controladas do museu condicionam a produção
artística. As obras abordadas em cada um dos percursos não surgem como
forma de hierarquizar a importância do que se pode encontrar neste con-
texto, mas antes de experimentar um diálogo entre as diversas abordagens
que estes entornos sugerem.
INTRODUÇÃO
Título em construção propõe um percurso por alguns dos projetos presen-
tes, tanto no Parque da Fundação de Serralves, como nas artérias e praças
da cidade do Porto. Atendendo ao universo específico de cada um dos artis-
tas, observar-se-á a forma como cada um deles responde às circunstâncias
específicas preexistentes num determinado contexto e de que forma essa
complexidade influi no seu modus operandi artístico.
Neste percurso pretende-se refletir sobre a forma como as ações ou disposi-
tivos artísticos reforçam a importância da envolvente enquanto espaço en-
formador das subjetividades dos intervenientes. Ou seja, como é que estes
trabalhos expressam a consciência de um sujeito que se funda na complexa
constelação do meio que o envolve. Um corpo que sente e que pensa, e
que, através de determinados estímulos, complexifica a consciência do que
o envolve e é capaz de produzir essas mesmas complexidades sobre a sua
paisagem quotidiana.
Os trabalhos escolhidos para fazerem parte deste percurso potenciam um
olhar centrífugo que, partindo do dispositivo artístico, se direcionam para
o seu entorno, reforçando a importância deste na experiência estética pro-
posta. Repartindo a importância da obra pelo que a envolve, o olhar do ob-
servador é redirecionado e faz da sua presença o momento em que a situa-
ção1 acontece. A paisagem deixa de ser apenas o objeto a ser representado,
e passa a ser o lugar de ação, interpretação e relacionamento do sujeito.
Assim, artista e observador não são mais entendidos como um sujeito que
se autoconstitui, mas como um corpo resultante das constelações que acio-
nam as suas subjetividades, do qual ele é parte ativa e integrante.

1 Situação: vocábulo escolhido pelo crítico de arte americano Michael Fried (1939, Nova Iorque)
para referir o espaço-tempo de ocorrência de uma obra minimalista. Situação é o resultado
da articulação entre três elementos: espaço, obra e observador. A presença deste último no
espaço de instalação do trabalho artístico ativava a relação entre os três elementos, fundando
a totalidade da obra.
PARQUE DA FUNDAÇÃO DE SERRALVES

Richard Serra (San Francisco, E.U.A., 1939)


Walking Is Measuring [Andar é Medir], 2000
Parque da Fundação de Serralves
Walking Is Measuring é o resultado de um desafio lançado pela Fundação de
Serralves ao escultor americano Richard Serra. Instalada desde 2000, esta
obra é constituída por duas placas de aço colocadas perpendicularmente
ao muro que delimita a zona oeste do Parque. As duas peças, de dimensões
monumentais, têm alturas diferentes, respondendo à altura do muro no lu-
gar onde se encontram, respetivamente 5,32 e 3,86 m. Uma vez atraído até
ao local, provavelmente pela estranheza que a geometria e dimensão destas
placas no contexto natural possa provocar, e já próximo de uma das extremi-
dades, o visitante vê-se forçado a contornar o seu ponto A para que o resto
do caminho seja percetível. Nesse preciso momento, avista-se a segunda
extremidade – o ponto B. Devido à grande distância que têm entre si, a dife-
rença de altura das peças não é imediatamente percetível. Por essa razão, a
avaliação da distância que as separa pode ser traída pela ilusão de ótica que
essa diferença de altura provoca.
As extremidades definem uma distância ladeada pelo muro e por uma li-
nha de árvores. Há um percurso sugerido. Uma relação entre pontos. Um
movimento de um corpo que se inicia. À medida que o corpo se desloca, a
monumentalidade da placa que marca o ponto A é praticamente sublimada.
A tensão inicialmente gerada pela oposição entre os dois pontos migra para
a experiência do corpo que se torna consciente da sua presença. A obra não
é mais o limite físico ocupado pelos objetos instalados, mas o espaço/tempo
experiencial que esta presença gera. Um entre que se faz ação. Um corpo
que marca um verbo.
Inscrito na tradição do movimento minimalista2, o trabalho do artista Rich-
ard Serra tem procurado reificar ações e relações que derivam da forma
como dispõe as chapas de aço entre si. São disso exemplo as composições
com três placas de aço com as mesmas dimensões, que se justapõem numa
relação de equilíbrio aparentemente frágil; ou Wood-Lead Prop [Apoio Ma-
deira-Chumbo], uma placa de chumbo que se apoia numa viga de madeira
deitada no chão3. O exercício de tensões e equilíbrios concentram a nossa
atenção, mas não definem o território exclusivo do trabalho. A forma como
cada um destes elementos é instalado obedece a um diálogo com as cara-
cterísticas preexistentes do terreno, quer seja um espaço fechado e coberto,
quer seja um ambiente natural. Como acontece em Walking Is Measuring,
para além da fisicalidade material de ambos os objetos, a obra estende-se
ao lugar circunstancial, definido pelas características factuais da paisagem
e pela relação que emerge da nova inscrição.

2 Minimalismo: movimento artístico que emerge nos finais dos anos 1950 e se estende pelas
décadas seguintes, protagonizado por artistas como Donald Judd, Dan Flavin, Robert Morris,
Frank Stella, Carl Andre e Richard Serra. Os seus trabalhos caraterizavam-se pela simplicidade
das formas, quer escultóricas, quer pictóricas. Estes autores pretendem que os seus objetos
não representem aspetos da vida real, mas a literalidade formal apresentada. Ou seja, a forma
que se apresentava ao observador era a realidade em si.
3 Da coleção da Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea.
Segundo o artista Robert Morris, um dos principais representantes do mini-
malismo, “O objeto [artístico] não se tornou menos importante. Apenas se
tornou menos importante em si mesmo.”4 O movimento centrípeto e de en-
simesmamento que caracterizava a fruição do objeto artístico expande-se,
integrando não só as condições que lhe preexistem, mas também a situação
experiencial espoletada pela presença do observador. Neste momento o ob-
servador deixa de operar unicamente como aquele que observa, passando a
ser parte integrante da situação como um dos seus elementos constituintes.
No contexto da polémica gerada por Tilted Arc, Richard Serra demonstrou
objetivamente a relação intrínseca que os objetos desenhados para um de-
terminado local estabelecem com esse mesmo sítio. Uma relação formal en-
tre espaço e obra que tem vindo a ser definida pela expressão site-specific
(para um espaço específico). Tilted Arc foi desenhado e concebido por Rich-
ard Serra para a Federal Plaza em Nova Iorque, a convite do programa Art-in-
Architecture [Arte-na-Arquitetura] dos Serviços Gerais de Administração dos
Estados Unidos. Instalada em 1981, esta peça foi alvo de enorme contestação
por parte dos utentes que atravessavam a praça diariamente a caminho do
seu local de trabalho ou a usavam durante a pausa do almoço. A presença
deste objeto tornou-se intrusiva, tanto para os utentes, como para os que
consideravam que a obra punha em causa a segurança do local por bloquear
a visibilidade. Em 1989, perante a pressão que se gerou em torno deste pro-
jeto, as autoridades locais decidiram remover o trabalho. Mas para Serra “re-
mover o trabalho é destruir o trabalho”, tendo dado instruções para que este,
uma vez retirado, não pudesse ser reinstalado noutro local. No entanto, o au-
tor não desvaloriza toda a polémica causada, considerando as consequências
da implantação do objeto como parte constituinte da situação gerada pela
obra na praça.

Ângelo de Sousa (Porto, 1938–2011)


Um Jardim Catóptrico (Teuseus), 2002
Parque da Fundação de Serralves
Se, por um lado, a possibilidade de controlar e manipular as condições es-
paciais e de luminosidade no espaço expositivo abre o espectro das com-
binações possíveis, também é verdade que, por outro lado, as limitações im-
postas pelas preexistências no espaço exterior constituem um importante
desafio à criatividade do artista. Produzir um trabalho para um espaço onde
não é possível controlar a maioria das condicionantes espaciais, climáticas e
a própria interação do observador com a peça, exige uma atenção do artista
ao contexto. Isto não significa, no entanto, que o artista tenha necessari-
amente de considerar esse contexto para a produção do trabalho, ou seja,
que tenha que atender a todas as camadas de interpretação, tais como a
dimensão social, política, económica, cultural, natural, física, etc., do local;
antes o artista poderá optar por adequar uma peça já existente à natureza
do espaço exterior, atendendo, por exemplo, à sua durabilidade e resistência,
ou por criar uma peça produzida a partir do e para o contexto. Um exemplo
da primeira situação no espaço urbano do Porto é a escultura de Ângelo de
Sousa que em 2007 foi instalada em frente ao Edifício Burgo, na Avenida da
Boavista. A partir de uma maqueta realizada nos anos 1970, o artista adap-
tou, essencialmente, o material de construção e a escala atendendo ao es-
paço destinado à sua intervenção.
4 Robert Morris, “Notes on Sculpture 1–3” (originalmente publicado em Artforum, 1966–67), in
Charles Harrison e Paul Wood (eds.), Art in Theory, 1900-2000, Oxford: Blackwell, 2006, 7ª ed-
ição, pp. 828-835, aqui p. 833.
Tal como este último exemplo nos permite perceber, as camadas relacionais
que o trabalho estabelece com o contexto onde se insere não têm que ser
necessariamente consideradas antes de produzir a obra. Apesar de após
a sua instalação essa relação ser inevitável, o objeto (que pode ser uma
escultura, um gesto, uma ação ou uma performance) pode funcionar auton-
omamente e entender o seu espaço de ocorrência apenas como um palco
no qual se dá a ver.
É também interessante verificar que o tipo de abordagem que o artista as-
sume pode variar de projeto para projeto. No caso de Um Jardim Catóptrico
(Teuseus), do mesmo artista, verifica-se uma situação bastante diferente da
citada acima. Na peça desenhada para o Parque de Serralves, Ângelo de
Sousa realizou um estudo prévio do local, estabelecendo uma relação in-
trínseca entre os dois elementos (espaço e obra) desde o início do processo
criativo. Assim como acontece no trabalho criado por Richard Serra para o
mesmo Parque, o espaço é considerado pelo artista e tomado como parte
integrante da sua obra. Mais uma vez, é na presença do corpo que pensa e
que sente daquele que se passeia pelo Parque que a peça é ativada. As onze
estruturas metálicas estão dispostas de forma criteriosa, acompanhando o
movimento daquele que passa. Aqui, o observador não é mais aquele que
conscientemente observa um determinado objeto artístico, mas aquele que
desencadeia a situação com a sua presença, muitas vezes inconsciente, no
espaço de ação do trabalho. Num caminho mais recôndito, entre a Casa e
o Museu de Serralves, o corpo é capturado num jogo de reflexos. Depend-
endo da estação do ano, as estruturas refletoras vão sendo mais ou menos
visíveis, mas nunca intrusivas. Os espelhos estendem o território de ação do
trabalho projetando as formas refletidas para lá da fisicalidade das peças.
À medida que se percorre o caminho uma presença é sentida. O eu perde a
sua aparente unidade. Fragmenta-se e multiplica-se. Os espelhos possibili-
tam ver o que é visto de outros ângulos. Como se de repente tivéssemos o
dom da ubiquidade, estando aqui, ali e acolá.

Francisco Tropa (Lisboa, 1968)


Monte Falso, 1997/2001
Parque da Fundação de Serralves
Do lado esquerdo quando se desce para o Prado Grande, o artista Francisco
Tropa acrescentou um acidente geográfico ao já acentuado declive da en-
costa. Este novo volume provoca alguma estranheza. Apesar de se assemel-
har a um fenómeno natural, há algo que perturba essa parecença. Talvez o
avançado que se projeta ligeiramente sobre a paisagem, talvez a regulari-
dade formal do pequeno monte. Não se deixando revelar completamente, a
peça exige que se procure o que o artista pretende partilhar. Circundando
o volume encontra-se, no interior do avançado, uma superfície refletora.
No entanto, ao contrário do que acontece com a peça de Ângelo de Sousa
igualmente presente no Parque, este espelho não serve para ser visto nem
permite ver de outro ângulo. Enquanto em Um Jardim Catóptrico (Teuseus)
a presença do observador, o seu movimento e as sensações a ele associadas
fundam a situação, na peça de Tropa este movimento já não faz parte da
obra, é antes a descoberta do que o autor pretende revelar. Assim, a peça
sugere uma certa performance até ao momento em que, de pés assentes na
estrutura metálica e de costas viradas para o prado, se olha o espelho por
entre um retângulo deixado em aberto.
E o que é que se vê? Precisamente a paisagem para a qual o observador tem
nesse momento as costas voltadas. Uma descrição da imagem refletida é: o
prado que se estende no seu verde imenso; um caminho ao fundo, pontual-
mente povoado por transeuntes, atribuindo novos movimentos à imagem;
uma encosta que se une ao céu cambiante. Poder-se-á pensar na inutili-
dade deste dispositivo, pois replica aquilo que já se encontra ao dispor do
visitante. No entanto, Francisco Tropa não propõe uma simples repetição,
mas uma leitura mediada dessa mesma paisagem, intensificando inexplicav-
elmente a nossa relação com esse mesmo espaço. Simultaneamente, o dis-
positivo relembra o fascínio que a imagem fotográfica desperta.
Se retomarmos o discurso narrativo da história da arte, podemos justamente
constatar que é constante ao longo dos séculos a preocupação do artista de
representar – quer na tela, quer no bloco de pedra – o que os nossos olhos
percecionam. Assim, Tropa prolonga esta prática ancestral retirando-lhe
o valor simbólico e estilístico próprio de cada época histórica, ao mesmo
tempo que reforça a estrita relação entre o que se vê e a forma como se vê.
Um enquadramento que se altera à medida que o visitante se movimenta
e reposiciona. Um movimento que, mesmo inconsciente, deixa entrever a
subjetividade do que se escolhe selecionar e o que, consequentemente, é
excluído na produção de imagens.
O que é representado não corresponde, no entanto, à sua representação,
pois o real escapa sempre no movimento da sua projeção. Mas “escapar”
não quer, no entanto, dizer que este gore o seu objetivo, mas que a esse real
se soma a linguagem poética que sobre a paisagem os artistas (e o observa-
dor) projetam. Uma tradução formal que nunca é o que mimetiza, mas um
prolongamento plural do seu original. Tal como o acidente geográfico que o
autor acrescenta à encosta. Tal como a seleção de paisagem que o observa-
dor decide enquadrar.
MALHA URBANA DO PORTO

Pedro Cabrita Reis (Lisboa, 1956)


Palácio, 2006
Avenida da Boavista, 1269 (Hotel Porto Palácio Congress Hotel & Spa)
Como chegar: autocarro 201, 203, 502 e 503; sair na paragem António Car-
doso.
A presença de intervenções artísticas – quer em ruas e praças, quer in-
scritas nas paredes exteriores dos edifícios (painéis de azulejos, murais,
baixos-relevos ou manifestações de street art) – é um fenómeno bastante
comum na paisagem urbana. Estas intervenções têm sido pensadas não só
como objetos autónomos e isolados do seu entorno, onde se pode incluir a
maioria da tradição estatuária que embeleza parques e ruas e perpetua a
memória de figuras políticas e culturais, mas também como parte integrante
do desenho arquitetónico do volume edificado. Esta relação intrínseca entre
intervenção artística e edificação arquitetónica tem tido expressão desde
os primórdios da civilização, podendo por exemplo nomear-se situações
que remontam à antiguidade clássica, como é o caso dos frisos das Panate-
neias no Parténon em Atenas, ou os frescos da autoria de Almada Negreiros
na Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa, ou ainda os vitrais do artista
Júlio Resende na Igreja Nossa Senhora da Boavista, no Porto (Rua Azevedo
Coutinho, 103, ao Foco).
Quando se circula na Avenida da Boavista, na cidade do Porto, pode-se ver
em frente ao Porto Palácio Hotel uma intervenção de grandes dimensões do
artista Pedro Cabrita Reis. O edifício a que a peça se justapõe antecede-a
em cerca de trinta anos, ou seja, esta não fazia parte do desenho inicial. A
obra desenhada por Cabrita Reis é parte integrante das obras de requalifi-
cação do Hotel e da sua envolvente que tiveram lugar entre 2004 e 2005. A
relação orgânica que a peça escultórica estabelece com a arquitetura preex-
istente coloca esta obra em diálogo com o tipo de abordagens referidas no
parágrafo anterior. Palácio, apesar de mais recente, entrosa-se por completo
na topografia do edifício seu homónimo.
Uma estrutura em viga de aço prolonga-se para além do limite físico da fach-
ada do hotel. Estende-se em linhas paralelas e perpendiculares formando
uma quadrícula larga e tridimensional. Apesar da aparente abstração, esta
estrutura propõe uma relação bastante concreta, não só com a arquitetura,
mas também com os seus elementos construtivos. Recorrendo ao mesmo
material que possivelmente terá sido utilizado na construção do edifício ad-
jacente, Cabrita Reis consubstancia uma arquitetura entre o esquisso e a
sua concretização. A composição em viga de aço sugere, simultaneamente,
o que o edifício também poderia ter sido, dentro de todas as possibilidades
que se excluem durante os processos criativos, mas acima de tudo desvela
e deixa a nu o que se esconde por trás do elementos decorativos desta e
de qualquer outra construção. Quase como um negativo que se projeta por
detrás das janelas e da cobertura de cimento.
A obra deste artista tem revelado um fascínio pela gramática visual relacion-
ada com materiais de construção e a sua presença na paisagem urbana e
natural. Neste sentido, tem valorizado o que tendemos a negligenciar: áreas
de construção de novos edifícios; ou edifícios embargados que permanecem
afuncionais por longos períodos de tempo. Sem propor necessariamente
uma leitura crítica sobre as razões desse abandono e consequente ruína, a
sua obra sublinha o valor escultórico quer dos materiais que suportam as
edificações, quer dos esqueletos arquitetónicos que são deixados ao aban-
dono. Reposiciona, assim, o nosso olhar face a esse facto conhecido, poten-
ciadno a relocalização do que pensamos saber ver nas paisagens residuais
do nosso quotidiano.
Neste movimento de valorização destes subterritórios, a obra de Cabrita Reis
dialoga com o trabalho desenvolvido pelos artistas Bernd e Hilla Becher, que
dedicaram grande parte do seu trabalho, na segunda metade do século XX, a
fotografar estruturas industriais cuja atividade tinha cessado. As fotografias
caraterizam-se pela sobriedade do enquadramento e pelo preto e branco.
Apesar de utilizarem o meio fotografia, os artistas autodenominavam-se es-
cultores. Assim, colocavam a tónica criativa não na técnica utilizada, mas no
movimento de seleção das estruturas industriais, atribuindo-lhe uma dimen-
são plástica e escultórica.
Tal como acontece com Palácio de Cabrita Reis, o olhar atento e poético que
os artistas lançam sobre os contextos residuais do nosso quotidiano confere
ao observador a capacidade de reinventar fascínios e potencialidades criati-
vas no que o rodeia… Mesmo no que se habituou a desvalorizar.

Carla Cruz (Vila Real, 1977) e


Ângelo Ferreira de Sousa (Porto, 1975)
Praça do Anjo, 2007
Praça de Lisboa
Como chegar: autocarro, sair na paragem Cordoaria. BUS: 300 (Hospital de
S. João); 602 (Aeroporto); 18 (Carmo); 12M (Sto. Ovídio); 13M (Matosinhos);
200 (Castelo do Queijo); 201 (Viso); 207 (Mercado da Foz).
O espaço urbano não tem sido apenas palco de intervenções de caráter per-
manente. Se olharmos, por exemplo, para a linguagem artística geralmente
denominada por street art (stencils, stickers e graffiti), reconhecemos que
a sua natureza temporal é distinta da implementação de uma escultura em
bronze, cujo objetivo seja perpetuar uma determinada identidade coletiva.
No caso da street art, a limitação temporal verifica-se quer no momento da
sua feitura, devido ao facto de ser muitas das vezes realizada sem autori-
zação do proprietário do imóvel, o que também se reflete na simplicidade
e rapidez da técnica de execução, quer na duração da exposição, por estar
sujeita a ser apagada ou sobreposta por outra intervenção a qualquer mo-
mento. É também interessante observar a forma como o próprio conteúdo
de alguns destes trabalhos dialogam precisamente com essa temporalidade,
fazendo, por exemplo, referência a assuntos da atualidade, ou jogando plas-
ticamente com o seu caráter efémero.
Se, por um lado, a temporalidade dos stencils reside em circunstâncias que
extravasam a intenção do autor, por outro lado existem outros formatos
cuja limitação temporal é parte constituinte das ferramentas usadas. Neste
último caso poder-se-ia enumerar, a título de exemplo, formatos que se in-
screvem num tempo específico, como a performance, a ação ou o evento. A
materialidade destes gestos inscreve-se no binómio espaço-tempo da sua
ocorrência. O mesmo será dizer que o objeto artístico reside na experiência
que lhe dá forma. Ou seja, um objeto intangível, cujos limites são difíceis de
circunscrever. O registo documental (fotografia, vídeo, desenho, texto, entre
outros) que possa ser produzido a partir desse evento poderá ajudar a per-
petuar a sua ocorrência e a amplificar o objeto inicial, mas não deslocaliza o
valor artístico do evento em si.
Tem-se verificado, principalmente a partir da segunda metade do século XX
com projetos como o movimento Fluxus5, a ocorrência de ações em espaço
urbano que não procuram consubstanciar-se num formato duradouro, nem
recorrer às disciplinas tradicionais de representação da prática artística. A
par desta tendência verificou-se também um interesse crescente por parte
dos artistas em valorizar a riqueza e complexidade das dinâmicas que os
envolvem, quer se tratasse da fisicalidade dos espaços, quer se tratasse
das camadas mais intangíveis, como os enquadramentos sociais, políticos,
económicos e culturais. No entanto, esse interesse não se centrou apenas
na representação dessas complexidades e inquietações, mas na possibili-
dade de ativar novas possibilidades diretamente no contexto vivencial onde
o artista opera. Esta ação procura interromper a repetição dos consensos
universalmente aceites, potenciando novas possibilidades e novos modos de
se fazer o que é comum.
Devido à natureza eventual (relativo a evento) do projeto A Praça do Anjo,
desenvolvido pelos artistas Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa, uma vez
chegando ao local da sua ocorrência, Praça de Lisboa, pouco ou nada resta
do que aqui se vai contar. E que começa assim: no dia 19 de dezembro de
2006, segundo um relatório da Polícia Judiciária, dois indivíduos furtaram
uma escultura em bronze que se encontrava instalada na Praça de Lisboa,
junto à Torre dos Clérigos, no Porto. Da autoria de José Rodrigues, a escul-
tura Anja foi encontrada dois dias mais tarde já dividida em partes com o
objetivo de ser fundida e, o bronze, posteriormente vendido.
A referida Praça de Lisboa (outrora designada como Praça do Anjo e mais
recentemente apelidada de Praça do Clérigos Shopping) foi redesenhada
pelo arquiteto António Moura como galeria comercial com espaço ao ar livre
e inaugurada no final de 1991. Apesar dos esforços para que se transfor-
masse numa alavanca para a revitalização comercial da zona da Cordoaria,
este espaço, localizado num bairro bastante central da cidade, nunca se
conseguiu impor. De tal forma que no dia 3 de maio de 2006 se podia ler,
num artigo publicado pelo Jornal de Notícias: “A galeria comercial da Praça
de Lisboa (…) é hoje um deserto. O derradeiro resistente – Café na Praça
– encerrou as portas há cerca de três meses e deixou a praça ainda mais
isolada e vazia. Apenas a escultura Anja, de autoria de José Rodrigues, vigia
sobre a fonte seca. Nas cerca de duas dezenas de lojas, sobram os sinais de
abandono e vandalismo.” Perante a inoperância das autoridades locais e da
empresa responsável pela exploração das galerias, no dia 19 de dezembro os
dois assaltantes recorreram às tomadas elétricas disponíveis no local para
alimentarem a rebarbadora que lhes iria permitir furtar a Anja. Os contor-
nos rocambolescos deste furto e as condições a que o espaço foi votado,
captaram a atenção destes artistas, cuja prática tem vindo a refletir sobre
a utilização do espaço dito público e a forma como este amplifica a política
cultural das autoridades locais. No ano de 2007, o coletivo de artistas, sob a
designação Associação de Amigos da Praça do Anjo (http://amigosdoanjo.
wordpress.com/), deu início a um conjunto de atividades que têm vindo a
ter lugar, anualmente, na Praça de Lisboa.

5 Fluxus: movimento artístico fundado em 1962 pelo artista George Maciunas (1931–1978) na Ale-
manha e que contou com artistas como Joseph Beuys, John Cage, Dick Higgins, entre muitos
outros. Não se restringindo a nenhum meio específico, explorava várias formas artísticas que
produzissem um compromisso entre o artista e o contexto social e político do qual fazia parte.
Praça do Anjo I, 2007 – Praça de Lisboa (antiga Praça do Anjo), Porto
A primeira iniciativa realizada pelo coletivo surgiu no seguimento do convite
feito pelo Projeto Apêndice, no Porto – espaço de exposições alternativo
organizado pelas artistas Carla Filipe e Isabel Ribeiro, cuja programação
decorreu de 2006 a 2008.
Em colaboração com Ricardo Gomes (guia turístico), foi organizada uma vis-
ita guiada ao local de onde a Anja havia sido retirada. No dia 16 de janeiro de
2007, as pessoas que compareceram na inauguração da suposta exposição
do coletivo no Projeto Apêndice foram levadas até à Praça de Lisboa, onde
a visita se realizou. Ao longo do percurso o guia conduziu os visitantes por
treze pontos de interesse, devidamente numerados. O percurso também po-
dia ser acompanhado através do folheto que foi entregue a cada um dos pre-
sentes. Através de um discurso recheado de ironia, o guia dava a conhecer
uma história onde realidade e ficção se misturavam de forma intencional e
sem que os limites de ambos fossem facilmente percetíveis. De entre os ob-
jetos de interesse selecionados constavam: a Fonte da Anja, onde a tragédia
que aqui tinha tido lugar era enunciada e explicada aos presentes; o banco
público, mostrado como um objeto de arqueologia urbana que remontava
ao período em que “existiam coisas públicas”; ou o fenómeno “incidente
na calçada”, onde algumas pedras da calçada tinham sido retiradas, tendo
composto um desenho abstrato que a imaginação popular se tinha ocupado
de atribuir significados.

Praça do Anjo II, 2008 – Praça de Lisboa (antiga Praça do Anjo), Porto
No ano seguinte, a Associação de Amigos da Praça do Anjo concebeu uma
placa comemorativa em homenagem à escultura desaparecida. Replicando
o tipo de cerimónias que marcam estes gestos comemorativos, o coletivo
convocou a população para estar presente na inauguração da lápide (como
os artistas gostam de denominar). Afixada num dos altos muros que circun-
screvia, antes do início das obras em 2011, a área do Clérigos Shopping (Rua
das Carmelitas), esta foi desvelada com pompa e circunstância, contando
com o acompanhamento musical do grupo Calhau!. Na placa podia-se ler:

Em eterna lembrança d’Anja*


que o poder esqueceu e a incúria levou
numa noite qualquer de Dezembro de 2006

Associação de Amigos da PRAÇA DO ANJO


Porto XXIV-II-MMVIII
*escultura furtada a poucos metros deste local

Paralelamente, foi organizada uma exposição documental, que teve lugar


num espaço não muito distante deste local: a Gesto – Cooperativa Cultural.
Aqui encontrava-se reunida a documentação sobre o furto da escultura e
uma entrevista realizada pelo coletivo a José Rodrigues, autor de Anja. Du-
rante a entrevista, o escultor fala sobre a sua reação à notícia do furto e a
forma como este se terá sucedido.

Praça do Anjo III (354 g), 2010 – Rua Sá da Bandeira, Porto


Depois de um interregno de um ano, a Associação volta a prestar uma mere-
cida homenagem à escultura desaparecida. Ao convite feito pelo projeto
Troca-se por Arte – iniciativa que visa animar as montras de lojas da cidade
do Porto com projetos artísticos – este coletivo propôs expor na montra da
papelaria Sousa Ribeiro uma réplica do busto da Anja. Um vestígio da figura
que um dia habitou o antigo Clérigos Shopping e que hoje em dia simboliza
a negligência a que determinados espaços e o seu património são votados.

Praça do Anjo IVb (Fado Sísifico), 2011 – Parque de estacionamento da Praça


de Lisboa (Antiga Praça do Anjo), Porto
Em 2006, foi decidido em Assembleia Municipal que, após vários anos sob
exploração de uma empresa privada, a Câmara Municipal assumiria a gestão
da zona comercial do Clérigos Shopping. Os planos para o local eram na
altura incertos, tendo a Praça permanecido abandonada e palco dos mais
diversos atos de vandalismo, até ao início das obras de reabilitação, em 2011.
Não querendo deixar, no entanto, que a memória da Praça e da escultura
caíssem no esquecimento, em novembro de 2011 o coletivo organizou um
jantar que se pudesse repetir anualmente. Sendo impossível aceder à Praça,
devido às obras de reabilitação, o jantar teve lugar no parque de estaciona-
mento subterrâneo do ex-Clérigos Shopping.
Também no contexto das novas obras de reabilitação e dos planos que as
autoridades locais tinham para o antigo recinto da Anja, o coletivo redigiu
um abaixo-assinado no qual fazia saber quais as suas intenções para aquele
espaço. A Associação aproveitou o momento do encontro para ler aos pre-
sentes o abaixo-assinado. Os Amigos preconizam a reconstituição fidedigna
da Praça tal como esta era durante a década de 1990, mas tal como é referi-
do num excerto desse documento: “Este restauro não se deve limitar apenas
à reconstrução do edifício, seguindo o projeto do arquiteto António Moura,
mas também deve procurar reconstruir todas as lojas que existiam naquele
saudoso momento (incluindo o seu recheio). Como todos os restauros sérios,
este poderá colocar problemas. A fidelidade deve ser tendencialmente total.
No caso de inexistência de registos visuais fidedignos (fotografias, desenhos
ou outros), o espaço deve ser deixado em branco ou pintado com uma cor
neutra que procure não perturbar o espaço envolvente (seguindo as mais
modernas leis da arte do restauro).”
O projeto dos artistas Carla Cruz e Ângelo Ferreira de Sousa, através da
reação ao desaparecimento da estátua instalada na antiga Praça do Anjo,
enuncia várias questões que se prendem com a problemática do espaço pú-
blico, sua gestão, regulamentação e utilização. A literalidade do conteúdo
reclamada pela Associação é questionável, reconhecendo-se no teor e no
tom dessas ações e textos alguma ironia. Pois o contorno do que é reivin-
dicado opera como matéria plástica das problemáticas que se pretende
enunciar: qual o valor do património público? Qual a acessibilidade que te-
mos a esse património? Que responsabilidade perante aquilo que é nossa
pertença? Como se gere esse património? Será a exploração privada a mel-
hor forma de garantir a preservação desse espaço? Qual a responsabilidade
dessas entidades e dos seus utilizadores?
As possibilidades de resposta do coletivo são reificadas nos eventos e nos
materiais que vão produzindo. Mas estas possibilidades não são mais do que
isso mesmo, meras possibilidades que se querem não-finitas e permeáveis à
discussão e reflexão sobre as questões citadas. A ativação desse espaço de
discussão resulta das tensões que se geram, também, para além do próprio
evento. Macro e micro políticas que se prolongam a partir das atividades
organizadas, extravasando o seu tempo eventual. Neste contexto interessa
referir o interesse inesperado que estas iniciativas geraram por parte da im-
prensa local e nacional. O primeiro evento foi noticiado nos jornais Jornal de
Notícias e Público, tendo esta visibilidade conduzido ao convite para partici-
par na “Praça da Alegria” (programa de continuidade das manhãs da RTP1).
O facto de a linguagem escolhida pelos autores se enquadrar também em
formatos reconhecíveis, permite um outro diálogo e entrosamento com as
esferas públicas e políticas. Uma linguagem reconhecível, mas cuja ambigui-
dade e ironia no discurso procuram interromper os modelos tradicionais de
ação e reação.
Assim, através do projeto Praça do Anjo, esta dupla de artistas propõe a
produção de uma nova espacialidade. Não um espaço físico ou estável. Não
um lugar onde possamos ir. Antes uma espacialidade que existe na perform-
ance ativa das práticas quotidianas e da cidadania. Tal como referiu a in-
vestigadora Rosalyn Deutsche numa conferência sobre estas problemáticas:
“Arte pública não é mais um trabalho concebido para ocupar e desenhar
espaços físicos e interpelar audiências preestabelecidas; arte pública é um
instrumento que constitui um público através de discussões políticas ou es-
poletando uma tensão política.”6

6 Rosalyn Deutsche, “The Question of ‘Public Space’” (ver nota 1).


Isabel Carvalho (1977, Porto)
Lavar a Roupa ao Rio, 2006
Avenida dos Aliados, Porto
Como chegar: Estação de Metro Aliados (Linha Amarela)
Apesar de o espaço expositivo e institucional continuar a ter um grande peso
na legitimação do trabalho artístico, também é verdade que o artista se tem
preocupado em criar circuitos de mostra paralelos, assim como em diversificar
os tradicionais espaços de ocorrência de um projeto artístico. O mesmo será
dizer que o espaço expositivo já não é o lugar por excelência de apresentação
de objetos e ações de natureza artística. Neste contexto, o espaço urbano tem
inspirado inúmeras intervenções, quer apadrinhadas por uma qualquer insti-
tuição (artística, estatal, empresarial), quer de iniciativa do próprio artista.
Neste último caso, interessa perceber as questões que se colocam, nomeada-
mente ao nível da receção, pois geralmente estas ações acontecem sem uma
contextualização prévia da sua natureza artístic, imiscuindo-se diretamente
nas práticas quotidianas que povoam o espaço urbano. No que diz respeito a
intervenções que se enquadram neste anonimato e invisibilidade, poder-se-ia
por exemplo referir os projetos de Francis Alÿs (Antuérpia, Bélgica, 1959) na Ci-
dade do México ou de Regina José Galindo (Guatemala, 1974). Sem um anúncio
ou preparação para aqueles que possam presenciar esta ação, o momento de
interpretação por parte desse público potencial desprende-se de uma leitura
meramente artística e possibilita novas relações e contaminações. Nestes casos
não há uma preocupação, por parte do autor, em tornar este momento visível
para uma determinada audiência, pois o trabalho pode residir precisamente na
execução da ação pelo artista e não no enquadramento da sua receção. Devido
à efemeridade e intangibilidade dos objetos performativos, o artista poderá
documentá-los, permitindo a partilha e reflexão a posteriori do evento.
As intenções que estão na origem das ações em espaço urbano sem uma
identificação clara com o seu universo artístico são diversas. Por vezes, os
artistas pretendem provocar uma estranheza que interrompa a fluência do
tempo quotidiano, suscitando um novo território de interpretação. Outras
vezes, o artista pretende entrar no espaço contextual, operando dentro dele,
na sua responsabilidade social, ao mesmo tempo que interrompe e possi-
bilita uma reflexão sobre esse mesmo território conhecido.
Em Lavar a Roupa ao Rio, Isabel Carvalho debruça a sua atenção sobre a
fonte desenhada pelos arquitetos Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura,
situada no remate superior da Avenida dos Aliados. Aquando das obras
de requalificação urbana nesta artéria da cidade, os autores da proposta
conceberam uma fonte de traça atípica. Com este equipamento deixaram
várias respostas em suspenso, abrindo a possibilidade a diversas formas
de utilização. Questionando-se sobre as possibilidades de utilização deste
espaço de cariz público, a artista ativou, neste local, a função tradicional dos
tanques públicos – lavar roupa. Por se tratar de uma prática ancestral, esta é
reconhecível, permitindo dialogar com questões identitárias do espaço onde
intervém – na cidade do Porto existem, atualmente, cerca de trinta tanques
públicos ainda em funcionamento.
No entanto, o facto de ativar essa ação na fonte projetada para um espaço
de representação do poder político e económico da cidade, provoca uma dis-
rupção na utilização expectável deste equipamento. Assim, a deslocalização
da prática “lavar a roupa” dos tanques públicos para esta fonte em concreto
gera tensões entre o valor simbólico deste espaço, a sua, suposta, natu-
reza inclusiva e pública, e os preconceitos que enformam a sua utilização.
Com esta ação, Isabel Carvalho reposiciona a relação entre estas valências e
volta a fragilizar os conceitos acessibilidade, participação e inclusão que nos
habituámos a entender como sinónimos de espaço público.
REFERÊNCIAS
Referências:
Rosalyn Deutsche, “The Question
of ‘Public Space’”, disponível em
<iwalewapublicspace.files.wordpress.
com/.../rosalyn-deutsche-_-the-
question-of-_public-space_.pdf>,
acedido em 10 Abr. 2013.

Michael Fried, “Art and Object-


hood”, Artforum, nº 5, junho de
1967; também in Charles Harrison
e Paul Wood (eds.), Art in Theory,
1900-2000, Oxford: Blackwell,
2006, 7ª edição, pp. 835–46.

Robert Morris, “Notes on Sculp-


ture 1–3” (originalmente publicado
em Artforum, 1966–67), in Charles
Harrison e Paul Wood (eds.), Art in
Theory, 1900-2000, Oxford: Black-
well, 2006, 7ª edição, pp. 828–35.

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