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15/09/2010 Macunaímas - Estadao.com.

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Macunaímas
04 de setembro de 2010 | 0h 00

Miguel Reale Júnior - O Estado de S.Paulo

Às vésperas de se definirem pelo voto os novos dirigentes do Brasil, cabe perquirir sobre a
relação que se estabelece entre o sistema eleitoral e os personagens que atuam nesta
trama denominada eleição. O primeiro personagem é, sem dúvida, o eleitorado, nossa
gente.

Os relatos de viajantes nos primórdios do século 19 são manifestamente constrangedores,


a mostrar características de nosso povo nos planos intelectual e moral. Thomas Lindsey,
capitão de pequeno navio, aportou em Porto Seguro em 1801, onde foi preso por aceitar
proposta do ouvidor-mor de trocar parte da carga que trazia por pau-brasil. Alegava em
sua defesa que jamais poderia imaginar ser ilegal comerciar produto ofertado pela
principal autoridade local. Permaneceu o inglês anos retido na Bahia. Em narrativa sobre o
Brasil, destaca a ignorância dos habitantes e sua indolência, pois a "única ocupação que os
empolga é o baralho". Mais contundente é a observação de que nos negócios prevalece
entre os brasileiros a astúcia, sendo exceção os que preservam a retidão na realização de
transações.

Quando da proclamação da República, mais de 80% eram analfabetos. No plano moral,


Luís Martins, em O Patriarca e o Bacharel, reproduz versos de jovem líder republicano:
"Aqui ser honrado é vitupério;/ confiar no direito é grã loucura;/ pois só pode fazer boa
figura/ quem for servil ou não passar por sério." Para Alberto Salles, ideólogo da
República, o brasileiro é muito sociável, mas não solidário, sem ter o sentido de
comunidade e de bem comum. Daí a expressão que melhor traduz o individualismo
egoísta: "Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro."

Se o País passou, evidentemente, por grande processo civilizatório de lá para cá, no


entanto falta muito. Mário de Andrade, em fins dos anos 20, descreve o herói de nossa
gente, Macunaíma, espelho do brasileiro como astuto, preguiçoso, espontâneo, a usar a
"esperteza para escapar da socialidade adulta", na expressão de Alfredo Bosi.

Em Conta de Mentiroso, Roberto DaMatta indica o "jeitinho" brasileiro como forma de


fuga da letra dura da lei, para fazer prevalecer as regras da amizade, do clientelismo,
imperando a máxima "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". Desse modo, o interesse pelo
bem comum desaparece quando o agente político trata da coisa pública como se privada
fosse.

No século 21, a situação nos planos intelectual e moral ainda é preocupante. Dados do
Tribunal Superior Eleitoral mostram que, dos eleitores brasileiros, 8 milhões são
analfabetos e 19 milhões apenas sabem ler e escrever sem terem frequentado uma escola,
considerados, portanto, como de alfabetização rudimentar; 73,3 milhões de eleitores, ou
58,26% do total, não conseguiram completar o ensino fundamental. Excluídas as categorias
anteriores, são 46 milhões de analfabetos funcionais, isto é, têm capacidade de decodificar
minimamente as letras, de escrever uma pequena carta, mas não têm , todavia,
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capacidade de compreender textos, interpretá-los e analisá-los.

O autor de novelas da Globo Sílvio de Abreu, em entrevista à revista Veja, mostrou o


desprezo atual pelo herói virtuoso, pois hoje deve, ao gosto do telespectador, ser do vilão a
vitória, em vista de a esperteza ganhar reconhecimento de valor social.

O sistema eleitoral, por sua vez, só complica a situação, pois não vincula o candidato a
deputado a interesses do eleitor, como ocorreria no voto distrital misto. São milhares de
candidatos a deputado, sem coloração partidária alguma, mesmo porque os partidos e seus
próceres se misturam e se igualam, sem disputas ideológicas ou programáticas, sem
sequer divergências pessoais. Tudo se confunde.

O eleitor médio, sem poder de crítica, é, no caso da escolha para o Executivo, envolvido
pelo clima emocional e na opção para deputado, levado a votar em nome conhecido de
cantor, artista, jogador de futebol ou de chefete do reduto em que vive. A questão moral é
indiferente: corruptos e mensaleiros foram e serão eleitos.

Um país sem heróis virtuosos adota como figura popular um presidente que reproduz
Macunaíma, ao colocar a captação do eleitor, a esperteza, acima de qualquer outro
interesse. Prova do que digo está no fato de o menino Leandro, do conjunto habitacional
Nelson Mandela, ter desnudado o rei. Leandro gravou diálogo com Lula acerca da prática
de esporte naquele local:

Leandro: Por que aqui não tem tênis?

Lula: Que tênis? Tênis é esporte da burguesia, porra! E natação?

Leandro: A gente não pode entrar na piscina.

Sérgio Cabral: Por quê?

Leandro: Porque não abre para a população.

Sérgio Cabral: Por que não abre para a população?

Leandro: Não sei, eu vim aqui hoje para perguntar...

Lula, então, volta-se para Sérgio Cabral e diz: O dia que a imprensa vier aí e pegar um
final de semana com essa porra fechada, o prejuízo político será infinitamente maior que
colocar dois guardas aí. Coloca dois guardas aí. Coloca o bombeiro para tomar conta e abre
isso.

O popular presidente, cujo estilo debochado tem sucesso, mostrou, sem querer, mais que
um modo de ser, desprezo pelo bem do povo. Como se viu, ao presidente pouco importa a
população poder usufruir a piscina. É de relevo apenas evitar o malefício político de uma
reportagem negativa: "Coloca dois guardas aí", que o prejuízo é muito menor que o
desgaste político da denúncia do descaso. Atender à população é de somenos, o que vale é
evitar o escândalo eleitoralmente desastroso. Mas o povo é indiferente a esta enorme
amoralidade, à esperteza presidencial, que recebe aprovação maciça de uma população
sem capacidade de crítica.

É dentro deste universo, pintado com realismo, que se definirá o nosso futuro. Que os
políticos de bem a serem eleitos tenham a coragem e a indignação necessárias para resistir

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à eventual tomada do poder pelos macunaímas do século 21.

ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP,


MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

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