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No livro Ébano: minha vida na África, Ryszard Kapuscinski reproduz uma

palestra que proferiu sobre Ruanda ou, mais precisamente, sobre o massacre que
ocorre naquele país em 1994. Num mundo em que tudo é consumido e digerido
com extrema rapidez e esquecido no mesmo ritmo, talvez possa parecer estranho
voltar a algo já tão “velho”, tão antigo. Pessoalmente acho que vale o esforço na
medida mesmo em que há uma lição permanente naquele episódio. É sobre essa
lição que trata este texto.
A sequência de acontecimentos que levam ao massacre deve ser lembrada.
Ela começa com a própria independência do país. Até a década de 1960, Ruanda
era uma colônia belga. Os belgas tinham nos tutsis seus aliados na tarefa de manter
seu domínio na região. Com o acelerado processo de independência por que
passava toda a África, os tutsis passam de aliados a adversários, pois, se houvesse
a independência, ela seria capitaneada pela casta dominante. Assim, com seus
interesses prestes a serem contrariados, o governo belga resolve refazer sua aliança
e passa a incitar os hutus contra os tutsis. É por essa razão que apenas Ruanda
combina um duplo processo: fim da colonização e revolução social. Revolução
sangrenta. Dezenas de milhares de tutsis são massacrados. Outros tantos fogem e
passam a viver em campos de refugiados em países vizinhos. Há ainda os que
permanecem no país agora sob controle hutu.
A vitória é acompanhada pelo medo do vencedor. Como lembra o jornalista
polonês: “não se pode esquecer que o medo da vingança está enraizado na
mentalidade africana e que o direito secular de se vingar sempre regeu as relações
entre as pessoas e os clãs”. E os que desejavam vingança estavam logo ali, bem ao
lado. Muitos participaram como soldados voluntários em guerras que não lhes
diziam respeito. Receberam treinamento e aprenderam o que desejavam (a fazer a
guerra, a arte do combate), além de terem obtido outra coisa que lhes faltava:
armas. Esses são os que dão origem a Frente Patriótica Ruandesa, que em 1990
invade o território de Ruanda e tem por objetivo reestabelecer o controle tutsi sobre
o país.
Com apoio francês, o então presidente Habyarimana consegue parar o avanço
das tropas tutsis. Mas não consegue expulsá-la do país. É neste cenário de guerra
suspensa por quatro anos, de tensão crescente sem nenhuma perspectiva de
negociação, que vai ser plantada a árvore que terá como fruto o genocídio de 1994.
Não vou tratar aqui do lado “intelectual” da árvore, da justificativa ideológica mais
radical que não aceitava a negociação com a Frente Patriótica Ruandesa. O mais
importante é fruto social da árvore, é ele que revela a irresponsabilidade dos
governantes radicais:
“Os maiores esforços, porém, dirigem-se à formação de uma organização
paramilitar de massa, a Interahamwe (Juntos Atacaremos). É na Interahamwe que
milhares de pessoas provenientes dos vilarejos e cidadezinhas, jovens
desempregados, camponeses pobres, alunos em idade escolar, estudantes
universitários e funcionários públicos, recebem treinamento militar e ideológico.
Formam uma imensa multidão, um movimento popular cuja função é promover o
apocalipse”.
O documentário Shake Hands with the Devil [História de um massacre]
(2007), mostra cenas em que pode-se ver o tipo de treinamento acima descrito.
Tudo parece um tanto patético, pois as armas que são utilizadas nos treinamentos
são de madeira e parecem bastante inofensivas.
Quando o presidente do país morre em consequência de ataque a seu avião,
a senha para o massacre estava dada. O alvo escolhido não foram apenas os
membros da casta tutsi, como comumente se pensa. Além deles todos os que
faziam oposição ao regime (que não aceitavam a ridícula fantasia montada por seus
ideólogos, por exemplo) também eram alvos, o que quer dizer que hutus que se
opunham ao governo também foram massacrados.
Estima-se que entre meio milhão e 1 milhão de pessoas foram assassinadas
sistematicamente ao longo de inacreditáveis três meses. Aceita-se hoje o número
de 800 mil ruandeses mortos. Mortos por forças estatais, com tiros de metralhadora
e até de tanques. Mas a grande maioria foi assassinada por armas primitivas, como
faz questão de lembrar Kapuscinski: machetes, martelos, lanças e bastões. Ou seja,
não foi fruto da ação de tropas regulares, mas de civis. E é aqui que aqueles
aparentemente inofensivos e ridículos rifles de madeira mostram para que serviam:
se a Interahamwe não armou ninguém, ela serviu para lhes motivar, dizer para os
civis e lhes ensinar o que deveriam fazer.
E cito o jornalista polonês: “a intenção dos líderes do regime não era somente
atingir o objetivo, a solução final. Para eles, também era importante a forma pela
qual esse objetivo devia ser alcançado. Pretendiam que (...) houvesse uma
comunhão de culpabilidade entre toda nação”. E. mais adiante complemente:
“Desse modo, os crimes ficariam caracterizados como um movimento de massas,
como uma intervenção francamente popular, na qual toda nação teria se envolvido.
Não haveria uma só mão que não estivesse banhada no sangue daqueles que o
regime considerara inimigos”.
O desfecho da guerra é conhecido por todos. A Frente Patriótica Ruandesa
ganhou a guerra e tomou poder. O Estado é agora controlado pelos tutsis. É
curioso, porque contraditório, que a casta que mais foi massacrada (os tutsis)
tenham sido os vencedores; que ao final, tenham sidos os hutus que tiveram que
deixar seu país e ir viver em campos de refugiados. A explicação é que a guerra
foi travada entre tropas de exércitos regulares, por assim dizer, mas o massacre
aconteceu ao nível da rua, da vizinhança. Perdida a guerra convencional, só restou
aos que massacraram fugir.
Por que tiveram que fugir? Por que paira sobre cada civil hutu que participou
do massacre o direito irrevogável de vingança daquele que teve um parente ou um
amigo assassinado nos trágicos três meses que marcaram Ruanda para sempre. A
árvore do envolvimento de civis em disputas políticas armadas deixou um fruto
sangrento. Essa é a lição permanente do que aconteceu em Ruanda em 1994.

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