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corpo, fora

jean-luc nancy

corpo, fora
Tradução e organização | Márcia Sá Cavalcante Schuback
© 2013 by Jean-Luc NANCY

Direitos desta edição reservados a Viveiros de Castro Editora Ltda.

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello

Revisão
Amanda Bastos
Carolina Lopes

cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj

N168c

Nancy, Jean-Luc, 1940-


Corpo, fora / Jean-Luc Nancy ; tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. - 1. ed. -
Rio de Janeiro : 7Letras, 2015.

Tradução de: Corps dehors


isbn 978-85-421-0347-2

1. Corpo e mente. 2. Corpo humano (Filosofia). I. Título.

15-22612 cdd: 128


cdu: 128

2015
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro rj – cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br | www.7letras.com.br
Sumário

Prefácio7

Corpo nudo 11

Nu enumerado 21

Corpo de prazer 25

Corpo sob o olhar 31

A câmara escura 37

Corpos estranhos estrangeiros 41

Corpo morto 53

Pele essencial 55

Dentro fora 65

O amor que se faz 69

Corpo-teatro73

58 indícios sobre o corpo 87

Extensão da alma 101


Prefácio

1
Um corpo lá fora. Um corpo ao lado e frente a outros corpos. “Corpo”
diz inicialmente a distinção frente ao outro: o contorno onde começa e ter-
mina uma existência, quer dizer, aquilo que vem para fora (ex) do não-ser.
Um corpo expõe uma existência. Dizendo-se propriamente, nenhuma
forma de ser não corpórea existe, mas consiste ou insiste entre o que existe:
assim o vazio, o espaço, o tempo, o sentido, a relação (cinco termos cuja
conexão pode ser vista sem dificuldades: eles são a quíntupla determinação
do entre-corpo).
Um corpo não está somente fora: ele mesmo é um fora. Dessa vez não
o fora-nada mas o fora-dentro. Há um dentro do corpo: os órgãos com as
suas funções. Mas esse dentro não é o que se apresenta como corpo. Para
apresentá-lo, é preciso violentar às vezes mais, às vezes menos, o corpo. O
dentro não se apresenta. Ao contrário, retira-se para que o fora possa se
sustentar e agir. O dentro do corpo é sobretudo um fora do fora: o que se
retira do fora para ficar fora.
Existências que seriam sem um fora ou dotadas de foras imprecisos ou
precários – um pouco como as sombras do Hades – haveriam de se mistu-
rar entre si, mal se distinguindo. Dizendo-se propriamente, não existiriam.
Existir significa de fato distinguir-se tanto do nada como de outras
existências. Um único existente é impossível: seria a sua própria negação,
pois não poderia se expor ao fora e nem enquanto um fora. Por isso, o ser
supremo é algo morto: por nunca ter existido. Se, enquanto ser supremo,
Deus tivesse existido, ele o faria num mundo por ele não criado. Assim, ele
se negaria.
Nunca há portanto um corpo sem outros corpos. A diferença dos cor-
pos os distingue, expondo-os uns aos outros. Ela os impõe também uns aos

7
outros. De fato, não há uma “posição na existência” (segundo a expressão
de Kant) que não seja ex- e im-posição mútua no seio de uma dis-posição.
A dis-posição original ou elementar é estritamente contemporânea e
solidária aos corpos. Ela estabelece as suas relações. A relação ou razão
comum dos incorpóreos nasce da disposição como seu ato: separar, apro-
ximar, confrontar, juntar, rejeitar etc. Tudo jogos, batimentos, pulsões e
repulsões entre os corpos se ex-im-pondo eles mesmos.
A dis-posição não dis-põe dos corpos dados previamente ou de algum
outro modo. Ela é a condição mesma do corpo, a sua condição singular-plu-
ral. Um corpo está posto, dis-posto entre os outros. Ele está ex-posto e
im-posto aos outros, de maneira a só se “por” pro-pondo-se. Um corpo
é uma pro-posição, uma chegada que se adianta e se põe adiante, no fora,
como um fora. Pro-posto é que o corpo não se confunda com nenhum
outro, que não recubra nenhum outro e nem seja por nenhum outro reco-
berto – nunca, a não ser quando estiver em jogo uma descoberta, o por-se
a descoberto de cada corpo.

2
Isso quer dizer: nudez, decerto. Mas não “nudez” como uma catego-
ria à qual o corpo pudesse ver-se reduzido ou ao que se poderia chegar
como se chega a uma essência ou a um limite derradeiro. Ao contrário:
como aquilo que no pudor faz aparecer o impudor, a indecência à qual
nada saberia convir a não ser o movimento interminável de precisamente
desnudar-se e desnudar o outro em face de si.
A nudez seria o nome do fora de si enquanto ex-pressão de si, ímpeto
de si para fora de si, lá onde nenhum “ser-si-mesmo” poderia reconduzir
a uma identidade a pulsão, a pressão, o elã, esse onde nada subsiste e tudo
sobrevém.
Um corpo é esse pelo quê, como quê e em quê tudo acontece: tudo
sobrevém, tudo se produz num gesto, numa inflexão, numa emoção ou
erupção da pele, o sentido de um outro corpo roçado ou melindrado.
Um corpo não “é” no sentido que se costuma supor que uma coisa
ou um conceito “é” – posto, delimitado, estabilizado em algum lugar. Um
corpo só é fazendo e se fazendo – sempre fora de tudo que poderia contê-lo.
Veja o corpo da criança, do adulto ou do velho; aquele do broto e da árvore;
aquele do regato e do rio; aquele da nuvem nesse instante e naquele outro.

8
O corpo, a corporeidade do corpo – quer dizer, a sua extensão, a sua expan-
são, a sua expressão – comporta a verdade de que nada se reúne numa
intimidade cúmplice de si mas de que tudo se lança para mais longe, mais
para o dentro porque mais fora do que qualquer recolhimento. Como às
vezes tiramos a roupa para um outro, como às vezes tocamos a sua mão ou
o seu sexo, como às vezes pousamos o olhar sobre o seu. Às vezes também
amassamos uma folha ou tocamos a tangente de um teclado para formar
corpúsculos que se debatem numa tela, numa folha impressa, num fora
aventureiro do que pensamos ser um pensamento se fazendo mas que não
passa de um modo delicioso e difícil de nos entretocarmos.

3
Agradeço vivamente Marcia Sá Cavalcante Schuback que concebeu,
compôs e traduziu esse livro: que modelou o corpo e propulsou a existência.

Jean-Luc Nancy, 13 de julho de 2013

9
Corpo nudo

1
Após ter designado uma espécie de religião da natureza ou ainda um
recurso exclusivo para as medicações naturais, a palavra naturismo tornou-
se, em tempos já antigos, esses anteriores à metade do século XX, o nome
de uma doutrina que preconizava um modo de vida conforme a natureza:
ar livre, alimentação especial, etc. O que, na mesma época, se chamou de
nudismo apresentava uma opção particular, só que de tamanha importância
que os dois termos acabaram se confundindo no uso. Mais do que consumir
produtos orgânicos, ser naturista hoje em dia é antes de tudo ser nudista.
Encaixados um no outro, naturismo e nudismo, esses dois nomes de
doutrina, só conseguem contentar os seus adeptos, ao menos aqueles que
insistem em referir o seu comportamento à dignidade e à autoridade atri-
buídas a uma doutrina. Não há nenhuma razão para se criticar o gosto pela
vida desnudada ao ar livre. Mas há sempre sérios motivos para se descon-
fiar dos nomes de doutrina. Estes evocam necessariamente uma construção
assentada sobre fundamentos ou ajustada a princípios cujas consequências
tensionam toda a estrutura, ditam as regras e proclamam a excelência de
uma adesão convicta.
Nada disso convém ao exercício do pensamento e, como se sabe, em
todos os âmbitos, as doutrinas traem ou caricaturam a Ideia, o Valor ou
ainda o Nome que pretendem constituir o desdobramento. O que se chama
de “marxista” está em geral bem longe de Marx, o “idealismo” dificilmente
pode ser diferenciado do “materialismo”, etc. A história do pensamento
está cheia de renovadas retificações sobre a questão dos “empirismos”, que
pouco devem à experiência, ou dos “platonismos”, bem distantes de Platão.
Em numerosos casos, o sufixo ismo representa uma máquina de enrijecer,
de deformar, enfim, de trair uma noção, um nome ou um espírito.

11
2
Esse exagero parece de todo modo particularmente criticável no caso
de termos como naturismo e nudismo. Como fazer da natureza e da nudez
os princípios ou os sítios de uma doutrina? Para tanto seria preciso deter-
minar com suficiente clareza o que são de uma parte a natureza e de outra
o nu. Ademais, para dar-se conta do entrelaçamento entre ambos, seria
preciso tanto atestar o caráter “natural” da nudez como, reciprocamente, o
caráter “desnudado” da natureza.
Podemos nos aproximar um pouco desse último problema, antes de
retornarmos ao primeiro, pensando na palavra naturalismo. Essa palavra
se formou a partir de naturalis, adjetivo significando “o que pertence à
natureza”. O naturalista era inicialmente quem estudava os fatos naturais
antes do naturalismo tornar-se a filosofia para a qual não há nenhum outro
mundo a não ser o mundo natural e, posteriormente, a tendência estética
de representar a realidade segundo o seu aspecto “natural”, ou seja, des-
vencilhado de artifícios estéticos ou de visões idealizantes. Não obstante
em todos esses usos a ideia do natural permanecer algo a ser interrogado,
o natural designa, grosso modo, uma categoria de objetos que podemos
admitir a título provisório. Todavia, tão logo nos voltamos para a natu-
reza ela mesma, ficamos bem próximos de entrever algo como um sujeito,
uma força autônoma e autoconstituinte, a saber, autofinalizada – em grego,
uma phusis. É uma metafísica, no pior sentido da palavra, que recobre a
ideia de naturismo: a natureza seria um princípio e uma potência autossu-
ficiente, propiciadora de toda vida sã e boa. Sua legitimidade não poderia
ser buscada em nenhum outro lugar senão no fato de ser… natureza, pre-
cisamente, o que no fim das contas não designa outra coisa do que Deus ou
mais exatamente uma providência divina.
De tudo que essa ideologia metafísica apressada esquece – coisa de
que, felizmente, ao menos no essencial, a ecologia consciente e responsável
escapou – um certo esquecimento é digno de nota, esse de que o animal
humano saiu ele mesmo da natureza. Esse que se coloca face à natureza,
seja para lhe dedicar um culto, seja para explorá-la ou desordená-la, ele, o
produtor de ideias e de procedimentos, de fins e de meios – numa palavra
de técnicas –, ele vem da natureza e não cessa de a ela retornar, mesmo
correndo o risco de retornar a uma natureza inteiramente desnaturada.
O homem é o grande desnaturador da natureza. É o elemento em que a

12
natureza se desfaz, passando para além e aquém dela mesma. Mas, repito, é
a própria natureza que o engendra.

3
O homem não é somente o animal dotado de linguagem, de razão,
de vida política. É também o animal que conhece a nudez. Se a nudez é o
próprio do animal desnaturante, será possível encaixar no naturismo um
nudismo que seria uma espécie de consumação ou exaltação?
Estabeleçamos de início o seguinte fato: o homem é o animal que
conhece a nudez. Dos animais pode-se dizer tanto que eles estão e são sem-
pre nus ou então que eles nunca estão ou são nus. Todos eles têm peles que
também são as suas vestes e por vezes mais do que isso: são seus instrumen-
tos e suas armas. Mesmo a minhoca, “nua como viemos”, por assim dizer,
possui uma pele, frágil decerto, que é o seu órgão respiratório, e ainda uma
cutícula que serve para o seu deslocamento. Essa pele está bem adaptada
para os deslizamentos da reptação subterrânea. Já a pele do homem, adap-
tada às trocas térmicas e higrométricas do corpo com o exterior, não pode
proteger nada além de limites bem estreitos, o que torna indispensável a
vestimenta na maior parte das condições climáticas.
Não se pode dizer propriamente que a minhoca esteja “nua” (por opo-
sição a “vestida” ou “protegida”) a não ser que se diga em contrapartida que
o homem é essencialmente nu, ou seja, despido e exposto. Dizer que por ele
mesmo o corpo humano é despido é dizer que a veste é contemporânea da
humanidade, não sendo algo que a ela se acrescenta. E dizer que é exposto
não significa dizer somente que é frágil e vulnerável, mas que a sua expo-
sição, seu modo de se por a descoberto, expor-se ao perigo, aventurar-se,
lançar-se ao acaso, arriscar-se, é constitutivo do seu ser.
Ao intitular o último volume de suas Mythologiques “O homem nu”,
Lévi-Strauss pretendia “antecipar o crepúsculo dos homens, depois daquele
dos deuses”, como ele mesmo escreve.1 Nesse crepúsculo, apaga-se o homem
dos humanismos, tanto o homem cuja origem e destino, cujo sentido e
dignidade estão assegurados por algum ato de “complacência metafísica”,2

1 Lévi-Strauss, Claude. L’homme nu. Paris: Plon, 1971. p. 620.


2 Ibid., p. 571.

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como o homem depurado da “consistência do eu”3 e referenciado à sua
existência comum, no duplo sentido da palavra: coletiva e banal.
Interpretando livremente Lévi-Strauss, eu diria: o homem nu é ini-
cialmente o homem dentre os homens e o homem em seu sentido mais
ordinário. Ora, esse sentido ordinário não é outra coisa do que a circulação,
a troca e a partilha da diversidade e da identidade dessa coexistência ela
mesma e, mais amplamente, da coexistência dos humanos com todas as
outras formas de ser através do mundo.

4
Nu, eu estou e sou com os outros. Nu, estou exposto à partilha do
sentido. Mas nesses dois registros, o corpo nu introduz uma forma de sub-
tração: o “com” e o “sentido” se encontram desprovidos do que lhes confere
e pode conferir um caráter positivo na cena dos corpos vestidos.
Não se deve entender a cena dos corpos vestidos somente como aquela
de corpos revestidos com o que chamamos de “vestimentas”. Em certas cul-
turas, um fiapinho na altura dos rins, uma tatuagem, ornamentos diversos
podem ser suficientes para marcar uma situação social, mesmo que em
certos casos essa situação não se distinga visivelmente de uma situação de
retraimento na intimidade. De todo modo, tanto os atos sexuais como o
da excreção e, como é frequente, tanto os atos ligados ao parto como os de
caráter rituais, exigem, via de regra, um afastamento da cena social, mesmo
onde não se dê uma distinção entre público e privado como a conhecemos.
Assim, aparece uma questão do íntimo como heterogênea à homogenei-
dade da esfera comum. Voltaremos a isso.
A cena dos corpos vestidos ou providos de marcas significantes forma
o que chamamos de sociedade. Assim entendida, a sociedade não deve
ser especificada como o conjunto de relações “na exterioridade”, para falar
como Hegel, e nem como a composição de interesses e forças individuais.
Ela deve ser entendida, ao contrário, como o regime primeiro e original da
condição humana, ou seja, como o regime de uma simbolicidade4 geral.
Por “simbolicidade” deve-se entender a capacidade de comunicar outra
coisa do que uma indicação ou uma informação, ou seja, a capacidade de
comunicar inicialmente a troca ou a partilha da própria comunicação. Não

3 Lévi-Strauss, 1971, p. 559.


4 Simbolicidade traduz o neologismo symbolicité no original. (N.T.).

14
se diz apenas “eis aqui o Norte” ou “eu vou te bater”, mas fazemos passar ao
mesmo tempo uma remissão à possibilidade geral – coletiva, afetiva – de
comunicar. É o que faz a diferença entre os dois enunciados tomados como
exemplo e o uso da bússola, no primeiro caso, ou bem um golpe de punho
no segundo.
A cena social é por ela mesma cena do simbólico. Relacionando-se uns
aos outros, os seus atores se relacionam todos juntos com a própria cena.
Eles agem, ademais, exatamente como os atores de teatro cuja atuação não
cessa – mesmo trocando-se todas as réplicas – de remeter ao próprio fato
do teatro (por “teatro” pode-se entender aqui tanto a instituição como o
gênero literário, o autor da peça e todos as tramas culturais, sociais, políti-
cas e filosóficas que formam cada uma dessas instâncias). Do mesmo modo,
os homens se relacionam com seu próprio ser e estar junto a seus mitos e a
seus códigos, a seus costumes e as suas estruturas, enfim, à configuração do
“com” segundo a qual eles existem. É preciso dizer ainda mais: os homens
não existem apenas segundo o “com”, nessa ou naquela modalidade (povo,
família, grupo etc.), mas existem enquanto esse “com”: à medida que exis-
tem, seus indivíduos só são independentes porque sua independência os
separa como sujeitos da relação com todos os outros e com a coletividade.
Nessa cena, tudo simboliza, tanto os alimentos como os instrumentos,
as construções como as vestimentas, e mesmo os sentimentos, os consenti-
mentos e emparelhamentos que poderiam parecer retraídos na intimidade.

5
A intimidade não pode, com efeito, prescindir de estar ela mesma orde-
nada à coexistência geral. Mas a intimidade é também o elemento em que
essa coexistência revela de maneira mais aguda um de seus traços funda-
mentais: a saber, que a coexistência e a simbolicidade não formam simples-
mente a ordem de um continuum homogêneo. Na verdade, o comum, ou o
que se poderia chamar de maneira menos confusa de com, nada possui de
uma continuidade igual a si mesma. Ao contrário, continuidade aí se opera
por descontinuidade. A relação que faz o sentido implica uma diferença
entre os sujeitos da relação sem a qual nenhuma relação seria possível. É o
que na física elétrica se chama diferença de potencial ou ainda de tensão.
A intimidade é o lugar onde a heterogeneidade se exprime e explicita
como tal. À intimidade sempre corresponde, de uma maneira ou de outra,

15
a nudez. O corpo nu é o corpo íntimo. Cabe ainda penetrar na significação
do heterogêneo. Este não é uma outra ordem ou um elemento paralelo
ao homogêneo. Na verdade, ele representa a diferença interna frente ao
homogêneo e segundo a qual o homogêneo, enquanto espaço de transmis-
são, comunicação, troca e partilha, pode fomentar verdadeiros fenômenos
de “transmissão” e de “partilha”, verdadeiras relações. É preciso heteroge-
neidade de sujeitos, isto é, de desejos: tanto desejo de ser ou de “perseverar
no ser”, para falar como Spinoza, como desejo do outro, ou do outro ser
ou do outro de ser.
A nudez não é outra coisa do que a expressão do heterogêneo. Bem
longe de uma redução à condição comum, ela extrai da relação todos os
seus meios para desnudar ou colocar ao vivo os termos da relação. Num
sentido, o corpo nu é o corpo inteiramente “com” e mesmo excessivamente
“com”, se assim se pode dizer. É que esse corpo é o corpo do desejo e o
corpo, por excelência, do tocar, ou seja, o corpo desse sentido e desse ato
que envolvem as mais constantes proibições em todas as culturas.
Ao mesmo tempo, o corpo nu se retira da relação. Indica a mim mesmo
e ao outro como estranhos a toda ordem homogênea. Quando duas pessoas
se desnudam, elas se colocam primeiramente num estado de não mais se
comunicarem. Elas não dispõem mais de signos – por vezes nem mesmo
de palavras – revelando (ou a elas se revela) que seus corpos não são mais
signos e nem tampouco portadores de signos.
O corpo nu está, assim, bem longe de representar qualquer coisa como
a natureza ou uma natureza ou ainda um natural. Ele mostra bem mais
que por detrás da cultura – se por cultura se entende o conjunto das for-
mas, figuras e funções da cena social – não há natureza. Não há um outro
jogo de remissões mútuas de seres, que seria o jogo simples, imediato e
autorregulador. Há, ao contrário, suspense e suspensão da troca, uma sín-
cope do simbólico e uma efração do heterogêneo no homogêneo.

6
A efração se manifesta primeiramente quando meu corpo nu se torna,
no fato da sua nudez, um corpo visto. Sou visto pelo outro e se não estiver
na presença de nenhum outro é o meu próprio olhar que me vê e que vejo
me ver. Podemos lembrar aqui a cena que Derrida convoca para introduzir
a sua análise da animalidade: ele evoca sua própria nudez sob o olhar do
seu gato, sob esse “olhar sem fundo [...] que me dá a ver nos olhos do outro,

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nos olhos videntes e não somente vistos do outro”.5 O corpo nu – por menos
que seja assim apreendido em qualquer operação útil e maquinal – de
higiene e cuidados – se expõe à visão como tal e assim à impossível visão
da visão, à aproximação do “sem fundo”, que não é somente aquele do olhar
animal mas aquele de todo olhar – ou bem que, no animal, encontra uma
verdade do sem-fundo porque não sei e não saberia lhe supor um fundo.
O animal não é aqui mais do que uma via de acesso a todo outro
enquanto um olhar aberto sobre a minha nudez, o que também significa
dizer enquanto um olhar que, com a visão da minha nudez, faz ver a visão
dele ou dela mesma, o outro, enquanto que – já desnudado ou não, pouco
importa – ele ou ela se desnuda a meus olhos.6
Nesse olhar, esse do outro e do meu, o meu, visto naquele do outro
e reciprocamente, algo de animal olha. Quer dizer, alguma coisa que não
pertence à cena social ou então que lhe pertence de outro modo, ou ainda
que pertence a uma outra cena, uma cena da comunicação dos vivos. A
intimidade se avera aqui ainda mais íntima do que o próprio íntimo, pois
ela não se deixa cincunscrever como uma esfera de privacidade extrema,
no sentido de que nela reinaria o direito de um sujeito independente, de
uma potência subtraída a todas as outras. Ela não pode ser descrita como
uma tal potência porque não para de oscilar fora dela, estando na iminên-
cia sempre renovada de uma abertura sobre a ausência de fundo.
O corpo nu não é o último grau de um despir que alcançaria algo
como uma verdade desprovida de todo artifício. É, ao contrário, a expo-
sição do que não se deixa apreender nem identificar como uma verdade,
ao menos não uma verdade de adequação ou de significação. O corpo não
oferece a correspondência de uma forma a um conteúdo, nem aquela de
uma forma a ela mesma. Ao contrário, ele abre essa verdade que, se des-
velando, vela a sua própria identidade, não para dissimulá-la, mas para
atestar a sua fuga infinita.
A intimidade do corpo nu é mais íntima do que o íntimo, a exemplo
desse interior intimo meo invocado por Santo Agostinho.

5 Derrida, Jacques. L’animal que donc je suis. Paris: Galilée, 2006. p. 29.
6 É preciso distinguir bem esse olhar daquele do médico que não vê minha nudez, mas o aspecto
sintomático de meu corpo. Seria também necessário examinar em contrapartida o olhar opaco
do carrasco que desnuda para reduzir e aviltar. Em ambos os casos, seria preciso perguntar, no
entanto, qual o resto infinitesimal – mas sempre infinito – do sem-fundo nesses olhares.

17
7
Será essa intimidade divina? Por que não? Então, seria preciso saber o
que significa “divino”. Se essa palavra pode designar um ultrapassamento
do humano e do vivo aberto sem indicação de limite e nem de domina-
ção última, então, sim, a nudez merece ser chamada divina. Mas como
está sempre presente o risco dessa palavra exaltar uma superioridade, seria
melhor dizer nudez demônica. Distinguindo esse termo de seu sósia, o
“demoníaco”, que denota satanismo, podemos recordar que o daimon grego
é uma potência ou um gênio que excede no homem o humano. O excesso
demônico da nudez é o excesso do que chamei acima (com Bataille) de
heterogêneo. É o que não entra em comunicação ou no comum, sendo
no entanto aquilo a partir de que e em vistas de que, em primeira e última
instância, a comunicação se opera. É o limite do simbólico à medida que o
simbólico reúne e propaga o que não cessa de exceder toda possibilidade
de simbolização.
Isso tem o nome duplo do excesso: excreção e êxtase. O corpo nu é o
corpo segundo a redução ou segundo a expansão de uma ou de outra des-
sas posturas, dessas condutas ou modos, e segundo a proximidade ou pro-
miscuidade em jogo entre elas. De modo paralelo, trata-se igualmente da
conjunção entre uma fragilidade e uma potência: a nudez treme, desarma,
atenua até a humildade, ao mesmo tempo que afirma uma soberania pura,
que não chega a ser uma força superior mas uma maneira de se ex-cepcio-
nar de todas as ordens de potência ou de impotência.
A comunicação do corpo nu se reduz a uma espécie de tautologia: a
comunicação dela mesma, dessa nudez que não significa nada a não ser ela
mesma, mas que por isso dá acesso a um para além da troca e da partilha.
Os corpos entrelaçados – e eles se enlaçam tão logo estejam nus um em face
do outro, cada um exposto ao olhar sem fundo do outro onde se reflete seu
próprio olhar não menos aberto ao infinito – não partilham nada além do
seu estar exposto um ao outro. Entre eles, não há língua ou qualquer outro
meio de troca. Comunicam o incomunicável, não um sentido supremo,
reservado, inacessível, mas ao contrário e simplesmente, por assim dizer, a
própria abertura de sentido, o acesso a sua infinitude.
Os corpos nus não são mais corpos organizados e muito menos cor-
pos prontos para aparecer na cena social. Eles se desviam de suas funções
e cada um se esquiva de se assumir num mesmo e único corpo próprio.

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Não são mais as suas próprias imagens, figuras e ideias. A nudez dissocia
o corpo, desmembrando-o no que Freud chamou de zonas. Uma zona não
é uma parte do corpo: é o transporte ao longo do corpo, potencialmente
sobre toda a sua superfície, de uma capacidade de excitação. Segundo o
valor ativo ou passivo da palavra, excitação é um apelo ou a resposta a um
apelo. A nudez apela e responde ao apelo de nada mais do que um corpo
ou, mais ainda, de um corpo concentrado numa extremidade de excitação:
um corpo que nada mais é do que apelo e resposta.
A nudez nunca é final: ela abre para uma sucessão indefinida de des-
nudamentos, também no sentido de que há sempre uma outra nudez sob
aquela que só se apresenta onde o corpo que se desnudou uma vez, ou se
deixou desnudar, pede novamente a nudez e a sua excitação. Em jogo está,
de uma maneira ou de outra, o desejo interminável. O prazer não o inter-
rompe: ele o ritma e relança.
Diríamos ainda que se trata da natureza? Somente se “natureza” desig-
nar uma excitação inesgotável do ser, essa da vida e, por ela, desse excesso
sobre a vida mesma e sobre o ser que se pode chamar o outro, o sem fundo,
a nudez.

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