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A AFIRMAÇÃO CIÊNCIA
CÓSMICA DA VIDA
POR ALEXEY DODSWORTH
M
uito embora nunca tenha se xa luminosa que denominamos “Via-Lác-
distanciado mais do que 80 tea”, Kant inferiu que tal visão era a ilusão
quilômetros de sua cidade óptica gerada por nossa posição dentro
natal, o filósofo prussiano da galáxia. Por mais que esta percepção
Immanuel Kant (1724-1804) costumava nos pareça atualmente uma obviedade,
projetar sua mente para a vastidão ce- tratava-se de um enorme salto conceitual
leste, assumindo sua profunda comoção em 1755 e, por conta disso, Kant é consi-
diante do mero vislumbre do céu estrela- derado como um dos nomes que deram
do. Um específico trecho da obra Crítica contribuições duradouras para a Cos-
da razão pura é especialmente famoso mologia. Até então, pensava-se que as
por conta do tom intimista assumido por difusas manchas luminosas espalhadas
Kant. Neste trecho, ele diz: “Duas coisas pelo céu não passavam de sopros de gás
enchem o espírito de admiração e reve- ampliados e extremamente distantes. En-
rência sempre novas e crescentes, quanto tretanto, ao notar seus formatos elípticos,
mais frequentemente e demoradamente Kant sugeriu que tais manchas difusas
o pensamento nelas se detém: o céu es- seriam galáxias como a nossa, muito
trelado acima de mim e a lei moral dentro mais longínquas do que as estrelas que
de mim”. Ao se interessar pela difusa fai- vemos, e tão profícuas em estrelas quan-
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Uma antiga polêmica
filosófica busca
desvendar a questão:
existe vida fora do
planeta Terra? No
estudo dos planetas
e galáxias, Kant
contrapõe Aristóteles e
formula suas respostas
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CIÊNCIA
FORA DA TERRA
DIVULGAÇÃO/NASA
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natureza da vida envolve a necessidade primeiros cristãos a rejeitar a possibilida-
de um devir, de uma mutabilidade e até de de outros mundos profícuos em vida.
mesmo de imperfeição. Há praticamente Note-se que a narrativa bíblica, funda-
400 anos completados em 2009, graças mentalmente antropocêntrica, encontra
ao primeiro ímpeto de Galileu Galilei, um encaixe perfeito com o paradigma
nós, terrestres, apontamos telescópios de Aristóteles, em que um céu perfeito
para o alto e descobrimos que as “es- e imutável envolve um mundo central e
feras perfeitas de éter” não passam de inferior. Além disso, a ideia de vida fora
Para medir a
matéria bruta, tão mutável quanto a do da Terra incorreria num problema te-
distância de
ológico muito sério para os cristãos: se galáxias e estrelas,
Jesus morreu por nossos pecados, esta- cientistas usam
Para o bispo Tempier, riam os outros seres amaldiçoados? Ou uma unidade
declarar que Deus seriam sem pecado? Ou mais: e se Jesus chamada Parsec
criou apenas um migrasse de planeta em planeta, purifi- (pc). Um “pc”
equivale a
mundo era o mesmo cando o pecado original?
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Para Santo Agostinho, Cristo era úni-
que limitar a infinita co e, portanto, não teria ido a outros pla-
1016 m ou,
ainda, 3,26 anos-
potência da divindade netas. Outros estudiosos do pensamento luz. Seu cálculo
cristão apostavam numa ideia diferente: inclui o ângulo
nosso mundo. Por mais absurda que a os seres extraterrestres não cometeram de paralaxe,
crença aristotélica num mundo supra- o pecado original e, por isso, não ne- que pode ser
lunar nos soe contemporaneamente, tal cessitavam de um salvador. Pode-se, entendido como
afirmação se pautava em sua época portanto, constatar que os cristãos não um “deslocamento
num esquema engenhoso, brilhante. Era apresentavam um pensamento uniforme aparente” –
mais ou menos
uma interpretação plausível da realida- sobre a ideia de vida alienígena. Tome-
como quando
de, mas que posteriormente se revelou mos o exemplo de Etienne Tempier, bis- vemos um objeto
incorreta. O fato de ter se revelado in- po de Paris, que em 1277 declarou que a ilusoriamente
correta não muda o fato de que, para a cisão Terra-Céu proposta por Aristóteles se mexer ao
época, Aristóteles elaborou uma genial não passava de heresia, pois declarar fecharmos, de
arquitetura cósmica. que Deus criou apenas um mundo era forma alternada,
A fidelidade a Aristóteles foi um dos o mesmo que limitar a infinita potência um olho e depois
fatores mais marcantes que conduziu os da divindade. Se Deus é Deus, conforme o outro
compreendia o bispo Tempier, poderia
O astrônomo Percival Lowell observa Marte. Ele acreditava criar quantos mundos quisesse, preen-
que os “canais marcianos” seriam obra de uma civilização chendo-os com uma variedade infinita
um dia existente no Planeta Vermelho, mas provou-se que de criaturas.
eram ilusões de óptica
Aquele que considerar o equívoco de
Aristóteles como sendo natural num filó-
sofo da antiguidade se engana. Tome-
mos o exemplo de Epicuro, para quem
o universo não apenas continha infini-
tos mundos, como também poderiam
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em que arriscaria mesmo muitas das pecífico de bactéria cujas preferências PARA SABER MAIS
vantagens da vida: existem habitantes recaem sobre ambientes absurdamente
em outros mundos.” extremos: bactérias comedoras de enxo-
Ainda que tenha sido ingênuo em al- fre, amantes do calor, do frio extremo e
gumas especulações da juventude, Kant até mesmo da radiação. Bactérias que
existem na Terra, e receberam o nome
(muito adequado e autoevidente) de ex-
Se água implica em tremófilas (nome que significa “amiga
vida, há uma lei (ou dos extremos”).
leis) universal que As extremófilas, conhecidas e cata-
logadas por cientistas, constituem justa-
provoca o surgimento
mente o balde de água fria (de preferên-
da vida, tal qual um cia bem fria, já que estamos falando em Planetas Solitários – a
imperativo cósmico extremófilas!) naqueles que, partindo de filosofia natural da
uma perspectiva excessivamente local vida alienígena
e relativa, pensavam ser a vida possível Autor: David Grinspoon
continuou a apostar na possibilidade de apenas em ambientes com condições Editora: Globo –
vida nos planetas que vemos a olho nu, quase idênticas às da Terra. Vemos a 560 págs.
ou seja, justamente os do sistema solar. Terra tão aprazível à nossa vida, e con-
Dentre os possíveis sítios planetários pas- sideramos que o surgimento da vida
síveis de abrigar vida, o planeta Marte depende destas condições. Segundo o
se revela o mais conhecido mundo para cosmólogo Paul Davies, o mais prová-
onde as apostas se dirigem. Durante vel é que a vida tenha surgido em con-
muito tempo, cientistas acredita-
ram até mesmo na possibilida-
SHUTTERSTOCK
de de civilizações inteligentes
no planeta vermelho, o que ter-
minou se revelando incorreto.
Os famosos “canais marcia-
nos”, que o astrônomo Percival
Lowell (1855-1916) atribuía à
construção elaborada por uma
inteligência biológica, revela-
ram-se como sendo complexas
ilusões de óptica. As naves en-
viadas a Marte não revelaram
indícios de vida. A Ciência,
contudo, não nega a possibili-
dade de alguma forma de vida
existir no planeta vermelho. A
maioria dos astrobiólogos é
unânime ao apostar na possi-
bilidade de que é quase certo
que Marte tenha abrigado, no
passado, vida. E não seria de Cientistas concebem a possibilidade de haver alguma forma de vida
se estranhar se ainda a abri- em outros planetas ou satélites, mas seriam seres adaptados a
condições muito distintas das terrestres
gasse, na forma de um tipo es-
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CIÊNCIA
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análise desprovidos de
“(...) mas se responder não pude sentido e absurdos.”
à pergunta que fazia, ela, a vida, a Descobrir vida em
respondeu com sua presença viva. E Marte, Europa ou Titã,
não há melhor resposta que o espetá- contudo, não resolve
culo da vida: vê-la desfiar seu fio, que o problema. É preciso
também se chama vida, ver a fábrica definir se a vida surgiu
que ela mesma, teimosamente, se fa- distintamente nesses
brica, vê-la brotar como há pouco em diferentes lugares, ou
nova vida explodida mesmo quando se houve uma conta-
é assim pequena a explosão, como a minação cruzada a
ocorrida como a de há pouco, fran- partir de meteoritos.
zina mesmo quando é a explosão de Para que o paradig-
uma vida severina.” ma mude, será necessário provar que Reflexões do filósofo
a vida surgiu independentemente em Immanuel Kant (1724-
(João Cabral de Melo Neto, Morte e cada sítio planetário. 1804) contribuíram
Vida Severina) para a Cosmologia.
Intuitivamente, ele
ACASO OU DESTINO? descobriu que o sistema
Contingência e necessidade, aca- solar era apenas um
ma, o surgimento da vida se acha atrela- so e destino, são um curioso casal não entre muitos outros. Kant
do à contingência darwiniana. A vida é apenas na Filosofia, mas também na anunciou haver outras
contingente, não necessária (no sentido Ciência. Consideremos um exemplo galáxias como a nossa
de “inevitável”). O paradigma científico simples: a forma esférica dos planetas.
dominante na Biologia insiste na abso- Esta forma – para a Física – é uma lei,
luta ausência de sentido, no que tange uma necessidade, e não encontraremos
à vida. Sem “causa final”, a natureza se planetas quadrados ou triangulares. A
comporta de forma caótica e imprevisí- explicação para isso é relativamente
vel, e a vida na Terra não passa de uma simples, e adquire a forma de uma lei:
tremenda coincidência, altamente im-
provável num contexto cósmico. Por ou-
tro lado, se for demonstrado que a vida é Muitos astrônomos,
um processo inevitável, ficará claro que,
não obstante as contingências do acaso
químicos e físicos
e das adaptações ambientais que em- apostam na hipótese de
purram as mutações nesta ou naquela haver uma lei favorável
direção, há uma teleologia, uma finali- à existência da vida,
dade na natureza. E este telos seria, jus-
tamente, o surgimento da vida. Confor-
sendo ela, portanto,
me afirma o cosmólogo Paul Davies em uma necessidade
seu livro O quinto milagre: “As ramifica-
ções de encontrar vida em outro lugar
no cosmos são, portanto, extremamente quando um corpo assume massa con-
profundas. Transcendem a mera ciência siderável e as próprias partículas que
e causam impacto em questões filosófi- fazem parte deste determinado corpo
cas como a de saber se há um sentido formam interações mais relevantes do
para a existência física, ou se a vida, o que as interações com corpos vizinhos,
universo e tudo o mais são em última o corpo assume necessariamente uma
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CIÊNCIA
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e algumas boas apostas a verificar.
Ainda que nossos “irmãos cósmicos”
sejam bactérias comedoras de enxo-
fre, para quem nosso inferno é um pa-
Cientistas concebem a forma esférica. Lembre-se: todas as par- raíso, ao menos tais bactérias nos mos-
possibilidade de haver tículas estão se atraindo igualmente e a trarão que não somos o mero resultado
alguma forma de vida única forma geométrica que não dá pre- de um “acaso”, e sim o provável resulta-
em outros planetas ou ferência a nenhuma partícula é a esfera. do de uma lei que, a despeito de parecer
satélites, mas seriam
Mas o tamanho, a rotação e a cor dessa muito complexa, é perfeitamente natural.
seres adaptados a
condições muito distintas esfera serão totalmente contingentes. Espantosamente comum. Uma lei que,
das terrestres Vênus, por exemplo, tem um movimento cedo ou tarde, em específicas condições,
rotacional inverso ao da Terra. Júpiter é determina incólume: faça-se a vida!
imenso em comparação ao nosso plane-
ta; Marte é vermelho; Saturno tem anéis; Agradecimentos especiais ao astro-
Mercúrio é um inferno de fogo – contin- físico Amâncio Friaça (USP) e ao es-
gências variadas ocorridas em torno de critor Waldemar Falcão, pela revisão
uma necessidade: a esfera. Não se trata deste texto.
de criarmos uma oposição “contingên-
cia versus necessidade”. Estas duas coi-
REFERÊNCIAS
sas costumam andar juntas, pois toda
DARWIN, Charles. A origem das espécies.
necessidade incorre em contingências. São Paulo: Livros Escala, 2009
E no que tange à vida, seria ela con- DAVIES, Paul. O quinto milagre – Em busca
tingente ou necessária? Fruto do acaso da origem da vida. Companhia das Letras,
2002
ou uma inevitável manifestação da ma-
GRISPOON, David. Planetas solitários – A
téria? Reparando na imensa variedade Filosofia natural da vida alienígena. Editora
de diferenças entre seres de uma mesma Globo, 2005
espécie, percebemos que suas caracte- KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Íco-
ne Editora, 2007
rísticas gerais são contingentes: alguns
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções
humanos são loiros, outros são morenos, científicas. Editora Perspectiva, 2007
alguns têm mais pelos do que outros, etc., KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao
e assim é em todos os animais e vegetais. universo infinito. Forense Universitária, 2006
Todas estas características são fruto da
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