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ARTHUR PARREIRAS GOMES

O NARRADOR NOS TEMPOS HIPERMODERNOS:


a cartografia e o romance

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação


em Letras da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Literaturas de
Língua Portuguesa.

Orientador: Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart

Belo Horizonte
2010
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Gomes, Arthur Parreiras


G633n O narrador nos tempos hipermodernos : a cartografia e o romance /
Arthur Parreiras Gomes. Belo Horizonte, 2010.
178f. : Il.

Orientador: Audemaro Taranto Goulart


Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Romances brasileiros. 2. Narrador. 3. Esquizoanálise. 4. Cartografia.


I. Goulart, Audemaro Taranto. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 869.0(81)-3
Arthur Parreiras Gomes
O narrador nos tempos hipermodernos:
a cartografia e o romance

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade


Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em
Literaturas de Língua Portuguesa.
Belo Horizonte, 2010.

_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Maria do Carmo Lanna Figueiredo – UFMG

_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Mônica Maranhão Fagundes Fernandino – INTEGRA Cursos de Língua
Portuguesa e Consultorias

_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Márcia Marques Morais – PUC Minas

_________________________________________________________________________
Prof ª Dr ª Sílvia Regina Eulálio Souza – PUC Minas

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart (Orientador) – PUC Minas

Prof. Dr. Hugo Mari


Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras

PUC Minas
DEDICO

Para Heloísa, minha esposa, companheira e grande amor, que me questiona, me apóia e me
incentiva em todos os momentos, principalmente naqueles em que penso em desistir.

Para Nathália que, com sua beleza, sinceridade e inteligência, me acolhe carinhosamente nas
situações que me parecem mais difíceis.

Para Catharina, minha caçulinha que, com sua meiguice e alegria, me ensina, cotidianamente,
dançar e cantar o mundo fazendo dele arte.

Muito obrigado,

Amo vocês!
AGRADEÇO

Ao Prof. Audemaro Taranto Goulart, pela disponibilidade, paciência e escuta respeitosa no


processo de orientação desta tese, possibilitando-me o exercício da autonomia enquanto autor.

À Prof ª Maria do Carmo Lanna Figueiredo, pelas ricas contribuições apresentadas no exame
de qualificação, reafirmando sua competência, dedicação, afetividade e compromisso ético
com a formação de seus alunos.

À Prof ª Márcia Marques Morais, pelo empenho e sugestões dadas na realização do estudo
orientado do romance “Nove Noites” e pelos valiosos comentários feitos no exame de
qualificação.

À Prof ª Sílvia Regina Eulálio de Souza, pela disponibilidade para compor esta banca e pelo
companheirismo e afetividade que solidifica nossa amizade no cotidiano do trabalho
acadêmico.

À Prof ª Mônica Maranhão Fagundes Fernandino, pela simpatia e gentileza que acolheu o
convite para ser leitora desta tese e pelas contribuições trazidas nesta banca.

Á Prof ª Suely Maria de Paula e Silva Lobo, pela delicadeza, seriedade e competência
cotidianas e pelas sugestões oferecidas no parecer do projeto de pesquisa.

Às Professoras Ângela Vaz Leão, Ivete Lara Camargos Walty e Maria Nazareth Soares
Fonseca, pelo apoio e aprendizagem no percurso do Mestrado ao Doutorado.

Às secretárias Berenice Viana de Faria e Vera Lúcia Mageste de Salles Alves, pela atenção e
solicitude.

Aos meus pais Arthur e Alice e aos meus familiares e amigos Angélica, Joaquim, Lúcia,
Vanessa, Cristina, Denise, Luciane, Renata, Thaís, Cláudia, Victor, Carolina, Flávia, Gabriel,
Betânia e, em especial, minha sobrinha Roberta, pelo carinho, interesse e solidariedade em
todas as minhas dificuldades, conquistas e produções.
À minha irmã amiga e cunhada, Sandra Maria de Assis, pela maneira afetiva e carinhosa que
acompanhou este trabalho, desde a escolha do romance a ser estudado até a revisão final desta
tese.

Aos meus cinco grandes e verdadeiros amigos Denancir, Ronan, Lauro, Vanderson e
Vamberto, pelo companheirismo e por saber que com vocês sempre posso contar como meus
queridos irmãos.

Aos colegas e amigos Andréa Carmona, Dinéia Domingues, José Newton Garcia, Juliane
Paulino, Maria Carmen Schettino, Maristela Costa, Patrícia Melo, Paula Birchal, Regina
Corradi e Wagner Siqueira, grandes intercessores com quem compartilhei todo o percurso do
doutorado no companheirismo afetuoso presente no nosso cotidiano de trabalho.

À Carla Jorge Machado, pelo interesse carinhoso pelo meu percurso no doutorado e
contribuições pontuais na elaboração final da tese.

Ao amigo Michael Albino dos Santos, pela paciência e colaboração no trabalho de digitação
desta tese.

Aos meus alunos e orientandos de monografia, pela parceria no trabalho de pesquisa e nos
estudos sobre esquizoanálise, arte e literatura.

À PUC Minas, pelo apoio e cooperação.


7

“Só se deveria morrer por amor, e não de morte trágica.


Só se deveria escrever por essa morte,
ou deixar de escrever por esse amor,
ou continuar a escrever,
os dois a um só tempo.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.64)
8

RESUMO

A esquizoanálise traz suas reflexões sobre a arte e a literatura utilizando do conceito


de invenção. Pensar a criação como invenção é acreditar que as descobertas e produções
humanas são singulares num contexto de pluralidades e diversidades de experiências. Através
do que Guattari (1992) denominou como um motor interno autonomizador, o artista e o
escritor produzem suas subjetividades, pois eles, ao fazerem suas descobertas, encontram com
a realidade externa, assim como consigo mesmos, podendo fazer das suas produções atos de
resistência às sociedades de controle.
Frente às linhas duras presentes nas sociedades de controle, esta tese utiliza da
cartografia para o estudo do romance, dando à obra autonomia, reconhecendo-a como espaço
vivo, cuja narrativa se constrói pelos movimentos propiciados por desterritorializações
possibilitadas pelo narrador. Deslocar o romance da biografia do autor permite a cartografia
da narrativa nos movimentos realizados pelo narrador frente à multiplicidade de linhas que
compõem o texto como uma rede, um rizoma construído na e pela pluralidade hipermoderna.
Na composição do romance, enquanto rizoma, o autor também torna-se uma linha presente na
narrativa.
O romance, como manifestação de sensações, afetos e perceptos, retira a produção
romanesca da condição estática do idealizado pelo autor, incluindo-a no fluxo do devir
ficcional, promovendo intensidades a serem lidas pelas diferentes subjetividades e seus
olhares dinâmicos.
Ler o romance como um rizoma, acompanhando o narrador na cartografia que envolve
diferentes discursivas, nos apresenta outra maneira de tratar a narrativa, diferente de
convenções estaticamente territorializadas.
Considerando o que é móvel, fluido e não estático, o romance, na hipermodernidade,
se aproxima da mobilidade e fluidez sócio-cultural. Assim, os estudos literários devem
também se atualizar nos espaços de pluralidade, transdisciplinaridade e intertextualidade para
se aproximarem do romance e da realidade humana hipermodernos.
Não se podem evitar as novas técnicas literárias na produção romanesca e, dentre elas,
localizar as diferentes possibilidades de montagens da narrativa é se abrir ao múltiplo como o
meio no qual o romance acontece, ao invés de se fechar na visão do plural como fragmentação
em busca de saídas por convenções e uniformalizações.
Desta forma, o romance dá palavra aos afetos, sensações e perceptos humanos de
acordo com as intensidades que recebem de seu tempo, aqui, em evidência, os tempos
hipermodernos. Assim, o romance sai da ótica do individual e singular para mergulhar no
campo do dialógico, interdiscursivo, transdisciplinar, transpessoal e, portanto social.
Não se trata, pois, de banir normas e técnicas nos estudos literários, mas de considerar
múltiplos valores e vários olhares que só fortalecem a leitura e o estudo de um romance nos
tempos hipermodernos.

Palavras-chave: romance, narrador, esquizoanálise, cartografia, hipermodernidade.


ABSTRACT

The schizoanalysis brings its reflections on art and literature by using the concept of
invention. To think creation as an invention is the same to believe that the findings and
products are unique in a human context of plurality and diversity of experiences.
Through what Guattari (1992) called a motor internal fencing, artist and writer
produce their subjectivities. The subjectivities allow them to make their discoveries, meet
with the external reality, as well as with themselves. The output of subjectivies are translated
into acts of resistance to societies of control.
Faced with harsh lines present in the societies of control, this thesis makes use of
cartography in order to study the romance, giving the work autonomy, recognizing it as living
space. In fact, the narrative is constructed by the movement afforded by deterritorializations
allowed by the narrator. Move the romance biography away from author allows the
mapping of the narrative in the movements made by the narrator, even before the lines that
make the text as a network, which are built on a rhizome and on the hypermodern plurality. In
the composition of the romance, taken as a rhizome, the author also makes a line in this
narrative.
The romance, as a manifestation of feelings, emotions and perceptions, take away
from the production of romance its static condition designed by the author. Such production is
included on the flow of fiction, which is heavily promoted to be read by different
subjectivities and their dynamic looks.
Reading the romance as a rhizome allows the narrator to accompanning cartography
involving different discourses, which presents us with another way to treat the narrative,
unlike conventions that were statically territorialized.
Considering mobility, fluidity and flexibility, the romance, the hypermodernity,
approaches the mobility and socio-cultural fluidity. Thus, literary studies should also be
updated in the space of plurality, transdisciplinarity and intertextuality to approach the
romance and the human reality hypermodern.
There is no possibility to avoid the new literary techniques in the production of
romance and, among them, find different possibilities of assembling the narrative, which is
open to multiple as the locus in which the romance takes place, instead of shutting the search
in the view of the plural as fragmentation looking for conventions and
uniformalizations.
Thus, the romance gives voice to feelings, sensations and human perceptions
according to the intensity they are affected by hypermodernity. Thus, the romance moves
away from the perspective of the individual and unique to dive into the field of dialogue,
which can be interdiscursive, transdisciplinary, transpersonal, and, therefore, social.
There is no intention to banish standards and techniques in literary studies, but to
consider multiple values and different perspectives that only strengthen the reading and the
study of romance in the hypermodernity times.

Keywords: romance, narrator, schizoanalysis, cartography, hypermodernity.


12

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: O NARRADOR, A HIPERMODERNIDADE E A


CARTOGRAFIA ...................................................................................................................13
1.1 Literatura, hipermodernidade e esquizoanálise ...........................................................14
1.1.1 O conceito de rizoma .....................................................................................................15
1.1.2 Cartografia e esquizoanálise .........................................................................................17
1.1.3 Literatura, hipermodernidade e subjetividade ..............................................................19
1.1.4 Intertextualidade e transdisciplinaridade .....................................................................21
1.1.5 As linhas de fuga ...........................................................................................................24

2 O NARRADOR E O IMAGINÁRIO ................................................................................30


2.1 O imaginário radical e a construção do romance .........................................................30
2.2 As cartas e o romance ......................................................................................................40
2.3 Os fatos, as fotos e a palavra ...........................................................................................47
2.3.1 Fotografias, fotos e retratos ..........................................................................................50
2.3.2 Imagem cinematográfica, desenho e mapas .................................................................55

3 O NARRADOR E O VIRTUAL ........................................................................................59


3.1 Do virtual ao hipermoderno: o romance na hipermodernidade .................................68
3.2 O trauma e o trágico ........................................................................................................71
3.3 O mito e o complexo .........................................................................................................75
3.3.1 o mito ..............................................................................................................................76
3.3.1.1 O mito, a morte e a sexualidade ...............................................................................79
3.3.2 O complexo .....................................................................................................................80
3.3.2.1 A lei como organizadora do complexo .....................................................................85
3.4 O duplo e o dialógico ........................................................................................................87
3.5 Coexistências e dispersões ...............................................................................................91

4 O NARRADOR E A FICÇÃO ...........................................................................................96


4.1 O romance e o discurso histórico ..................................................................................111
4.2 O romance e o discurso científico .................................................................................128
4.3 A ficção e o fatual ...........................................................................................................139
13

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ROMANCE E AS NOVAS FORMAS DE


SUBJETIVAÇÃO NA HIPERMODERNIDADE .............................................................158

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................168

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................176
13

1 INTRODUÇÃO: O NARRADOR, A HIPERMODERNIDADE E A CARTOGRAFIA

“O narrador nos tempos hipermodernos: a cartografia e o romance” tem como seu


principal objetivo desenvolver a compreensão do narrador como um cartógrafo no contexto da
hipermodernidade, por meio do uso da cartografia como método de estudo e análise do texto
literário.
Atendendo à pluralidade presente na hipermodernidade, o romance “Nove Noites” foi
escolhido como objeto de estudo desta pesquisa pela diversidade de vozes e estratégias
literárias que compõem a narrativa. Através da cartografia, esse romance foi analisado, dando
suporte às reflexões teórico-conceituais que organizam esta tese. Obviamente, acredita-se que,
a partir do estudo de “Nove Noites”, as reflexões acerca do narrador na hipermodernidade
possam se estender a outros romances.
“Nove Noites” é uma narrativa que se desenvolve num contexto investigativo acerca
da morte do antropólogo norte-americano Buell Quain que se suicidou no Brasil, onde se
encontrava em meio aos índios Krahô. Quain, etnólogo reconhecido por seus pares, se
envolveu com índios com os quais conviveu no seu percurso profissional como cientista, mas
também como um homem em busca de outros sentidos para a vida.
Assim, num contexto marcado por ambiguidades, duplicidades, mistérios e fatos
ficcionalizados, a personalidade do antropólogo é constituída por conexões e desconexões
com as personalidades de outros personagens e do narrador. Desta forma, as inquietações do
etnólogo, voltadas para a descoberta de diferentes valores éticos e morais existentes entre as
culturas indígena e civilizada, se encontram com as inquietações do narrador em busca do
entendimento sobre o suicídio de Quain e do desvelamento do sentido da vida e da morte.
No governo de Getúlio Vargas, Buell Quain e seus colegas antropólogos que se
encontravam no Brasil, sob a acusação de serem comunistas, sofrem perseguições que
interferem em suas pesquisas. Portanto, Quain é obrigado a deixar a aldeia Krahô e retornar
ao Rio de Janeiro. No caminho de volta, o antropólogo Buell Quain se suicida, em 2 de agosto
de 1939, o que dá início ao enigma de sua morte e suas diferentes interpretações.
Na manhã de 12 de maio de 2001, o narrador de “Nove Noites” lê sobre Buell Quain e
sua morte num artigo de jornal que tratava das cartas escritas por um outro antropólogo, que
também havia morrido entre os índios no Brasil. Diante desse artigo, o narrador inquieta-se
com o que leu, passando a investigar a vida e a morte de Quain como possibilidade de
escrever um romance.
14

A escrita do romance também envolve a articulação da investigação feita pelo narrador


acerca do antropólogo Buell Quain e a carta-testamento escrita pelo sertanejo Manoel Perna.
Assim, o narrador inclui a voz de Perna na construção do romance. “Nove Noites” trata-se de
um metarrelato, uma narrativa ficcional assinada por Bernardo Carvalho.
Carvalho nasceu no Rio de Janeiro em 1960. Jornalista, escritor e crítico da “Ilustrada”
da “Folha de São Paulo”, também trabalhou como repórter, como editor do suplemento de
ensaios “Folhetim” e como correspondente desse jornal em Nova York e Paris. Na literatura,
Bernardo Carvalho estreou com o livro de contos “Aberração”, em 1993. Após a publicação
de “Aberração”, Carvalho publicou os romances “Onze” (1995), “Os bêbados e os
sonâmbulos” (1996), “Teatro” (1998), “As iniciais” (1999), “Nove Noites” (2002) e
“Mongólia” (2003). Com o romance “Nove Noites”, o autor, recebeu, em 2003, o Prêmio
Portugal Telecom de Literatura Brasileira, incluindo-se entre os grandes autores brasileiros.
No artigo “Enigma Indecifrável” de Beatriz Rezende (2005), Bernardo Carvalho é lembrado
quando, ao ser entrevistado, disse que o que há de mais literário e surpreendente na literatura
é não precisar de nenhuma razão para escrever. Carvalho parece buscar, na morte de um
antropólogo, elementos através dos quais organiza e dinamiza a sua narrativa e não a razão
para escrever.
Assim, nesta tese, intertextualmente, o romance de Bernardo Carvalho possibilitou o
estudo proposto, considerando a hipermodernidade como um tempo e um espaço marcados
pela polifonia, quando e onde coexistem diferentes concepções e paradigmas necessários para
a construção de sentidos e da subjetividade. No contexto hipermoderno, a produção textual,
na qual se inclui o gênero literário romance, também torna-se polifônica e polissêmica. Aqui
também cabe ressaltar que o romance é o gênero literário, por excelência, da modernidade.
Segundo Weinhardt, comentando Bakhtin, “o romance é o único [gênero literário] criado e
produzido na era moderna, portanto capaz de representá-la e acompanhá-la. É esta mesma
versatilidade que o faz refratário a todas as tentativas de definição.” (WEINHARDT, 1996,
p.350) Assim, o romance nascido nos tempos modernos, acompanha as mudanças ocorridas
na modernidade à hipermodernidade, constituindo-se uma rede de polifonias e de múltiplos
sentidos numa “forma linguística [...] sempre percebida como um signo mutável.”
(BAKHTIN, 1981, p.15) As narrativas construídas e lidas com os olhos da hipermodernidade
são, portanto, redes imaginárias, virtuais e ficcionais, pelo deslocamento de diferentes
discursos, cujas diversas vozes ecoam umas sobre as outras.

1.1 Literatura, hipermodernidade e esquizoanálise


15

Como a hipermodernidade, a produção textual e o romance são redes tecidas por


diferentes pontos de vista que se conectam, desconectam e reconectam na construção de
distintos espaços que se sobrepõem, flexibilizando as suas fronteiras. Neste contexto, o
pensamento esquizoanalítico surge como instrumento teórico para sustentar as reflexões
desenvolvidas nesta tese, assim como também a cartografia se apresenta como método de
estudo e análise que, operando com a diversidade, promove conhecimento ao afirmar as
diferenças.
Para Barros, ao se referir à concepção dialógica da linguagem na perspectiva de
Bakhtin: “se os estudiosos do texto e do discurso não lhes podem mais negar a constituição
dialógica, resta-nos ainda a tarefa de examinar procedimentos e estratégias inumeráveis e
diversificados de produção de efeitos de polifonia e de monofonia discursiva.” (BARROS,
1996, p.40)
No contexto dos possíveis procedimentos e estratégias apontados por Barros, a
cartografia pode ser incluída, já que o método cartográfico proposto pela esquizoanálise
pressupõe operar com a pluralidade constituinte das redes e dos rizomas, em que a produção
textual e do romance pode ser pensada.

1.1.1 O conceito de rizoma

Na perspectiva esquizoanalítica, a diversidade presente na produção textual e na


construção da subjetividade é pensada como um rizoma, termo que Deleuze e Guattari
buscaram na botânica. No contexto da botânica, o rizoma é um “sistema de caules
subterrâneos de plantas flexíveis que dão brotos e raízes adventícias em sua parte inferior.”
(GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.322) Ainda sobre o rizoma, Almeida esclarece que o rizoma
é um “conceito que [...] significa uma espécie de caule subterrâneo que se ramifica de forma
irregular, horizontal, não se guiando por um eixo principal (como a raiz), podendo se
desenvolver em várias direções.” (ALMEIDA, 2007, p.137) Assim, para Deleuze e Guattari,
“um rizoma, [...] não começa e nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas,
intermezzo. [...] O rizoma tem como tecido a conjunção ‘e..., e..., e, ’” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.37) Para esses autores, “não existem pontos ou posições num rizoma
como se encontra na estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas.”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.17)
Ainda no que se refere ao rizoma, Parpinelli e Souza comentam que esse conceito
“entende a realidade – e dentro dela a própria subjetividade – como uma rede constituída de
16

inúmeras ramificações que se conectam e reconectam continuamente com outras


ramificações.” (PARPINELLI; SOUZA, 2005, p.480) Nesse contexto, para Deleuze e
Guattari, o rizoma segue três princípios.
1º e 2º: Princípios de conexão e heterogeneidade – qualquer ponto de um rizoma
pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da
raiz que fixam um ponto, uma ordem. [...] 3º: Princípio de multiplicidade – Uma
multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza.
(DELEUZE, GUATTARI, 1995, p.14)

Recorrendo à perspectiva esquizoanalítica, no romance “Nove Noites”, as cartas,


assim como as fotografias e fotos e retratos e mapas e desenho e filmes e bilhetes e testamento
e e-mails e reportagens e produções literárias, rizomatizam a narrativa através de conexões,
desconexões e reconexões que possibilitam a ficcionalização do fatual e a realização da
ficção. Nesta mesma direção, ainda podemos encontrar Kristeva. Esta autora diz que
o texto impede a identificação da linguagem [...] com a história como um todo
linear. [...] Ele impede a constituição de um continuum simbólico substitutivo da
linearidade histórica. [...] O texto é o “objeto” que permitirá quebrar a mecânica
conceitual [...] e ler uma história [...] de temporalidade cortada, recursiva, dialética,
irredutível a um único sentido, [...] feita de [...] práticas significantes nas quais a
série plural resta sem origem nem fim. (KRISTEVA, 1974, p.14-5)

Assim, “Nove Noites” não é nem início e nem fim; é sempre meio que sustenta o
enigma e o mistério que envolve a morte, a vida e a sexualidade de Buell Quain em constantes
transformações.
No contexto do rizoma, também podemos incluir a compreensão do que chamamos
hipermodernidade. Contudo, se faz necessário, inicialmente, conhecer a pós-modernidade e
suas interfaces com a modernidade para alcançar a hipermodernidade proposta por Lipovetsky
(2004). Nos tempos pós-modernos, Bauman (2001) comenta a fluidez das transformações
comparando-a com a fluidez líquida e gasosa. Esse autor pensa a pós-modernidade em sua
natureza líquida a partir do “capitalismo moderno, [que] na expressão célebre de Marx e
Engels, ‘derrete todos os sólidos’; [portanto,] as comunidades auto-sustentadas e auto-
reprodutivas figuram em lugar de destaque no rol dos sólidos a serem liquefeitos.”
(BAUMAN, 2003, p.33) Nesta mesma direção, Kujawski (1991) nos diz que a modernidade
pode ser entendida sob o ponto de vista de Gianni Vattimo através dos “conceitos de
progresso e superação” (KUJAWSKI, 1991, p.18) ou pela fórmula de Marx, adotada por
Marshall Berman, de que “tudo que é sólido desmancha no ar” (KUJAWSKI, 1991, p.18),
numa alusão ao “dinamismo da economia moderna, que aniquila tudo que cria, a fim de
continuar, infindavelmente, criando o mundo de outra forma”. (KUJAWSKI, 1991, p.11)
17

Da mesma forma que as transformações pós-modernas são fluidas e maleáveis, o


próprio conceito e definição de pós-modernidade não são únicos, inabaláveis e fixos. Nesta
direção, Kujawsky diz que “pós-moderno é o nome de um continente ainda desconhecido, de
uma tarefa ainda mal iniciada e para muitas gerações.” (KUJAWSKI, 1991, p.28)
Frente à inquietação apresentada por Kujawski, para Lipovetsky a pós-modernidade é
um fenômeno paradoxal e múltiplo, uma fase de transição entre o que ele nomeia como
primeira modernidade, a modernidade entendida pela divisão clássica da história, e o advento
da segunda modernidade na atualidade, uma modernidade superlativa, a hipermodernidade.
Na hipermodernidade, as relações estabelecidas entre o homem e o mundo se apresentam
elevadas exponencialmente. Para Lipovetsky, na atualidade, tudo é hiper.
Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotência, hiperterrorismo, hiperindividualismo,
hipermercado, hipertexto – o que mais não é hiper? O que mais não expõe uma
modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de epílogo segue-se uma
sensação de fuga para adiante, de modernização desenfreada, feita de
mercantilização proliferativa, de desregulamentação econômica, de ímpeto técnico-
científico, cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto de promessas.
(LIPOVETSKY, 2004, p.53)

Nesta direção, Charles, autor do livro “Os tempos hipermodernos”, escrito


conjuntamente com Lipovetsky, diz que a hipermodernidade refere-se a “uma sociedade
liberal, caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade; indiferente como nunca
antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisavam adaptar-se
ao ritmo hipermoderno para não desaparecer.” (CHARLES, 2004, p.26)
Assim, afastando-se da cronologia e da territorialização lineares e estáticas, o romance
de Bernardo Carvalho, enquanto um rizoma é fluido, permitindo sempre outras e novas
leituras e configurações no contexto líquido e gasoso da hipermodernidade.

1.1.2 Cartografia e esquizoanálise

No que se refere à forma pela qual o romance “Nove Noites” se apresenta, em um jogo
de desvendamentos e ocultações, diferentes tonalidades aparecem na escrita da narrativa.
Assim, o discurso jornalístico se intertextualiza com os discursos histórico, científico e
antropológico, dando distintas configurações ao texto literário. Ao falar sobre o gênero
romance, Bakhtin diz que este
tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico,
plurilíngue e plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades
estilísticas heterogêneas que repousam ás vezes em planos linguísticos diferentes e
que estão submetidas a leis estilísticas distintas. (BAKHTIN, 1993, p.73)

Bakhtin adverte aos pesquisadores dos romances que


18

a estilística tradicional desconhece este tipo de combinação de linguagens e de


estilos que formam uma unidade superior. Ela não sabe abordar o diálogo social
específico das linguagens do romance. Por isso, a sua análise estilística orienta-se
não para o conjunto do romance, mas tão-somente para uma ou outra unidade
estilística subordinada. O pesquisador passa pelo lado da particularidade básica do
gênero romance, substituindo o objeto de seu estudo e, ao invés do estilo do
romance, ele analisa, em essência, algo completamente diverso, como se transcreve
para o piano um tema sinfônico orquestrado. Pode-se notar dois tipos de
substituição: no primeiro caso, em lugar de se analisar o estilo do romance, é dada
uma descrição da linguagem do romancista (ou, no melhor dos casos, das “línguas”
do romance); no segundo caso, põe-se em destaque um dos estilos subordinados, o
qual é analisado como estilo do todo. (BAKHTIN, 1993, p.75)

Ao contrário do proposto pela estilística tradicional e aproximando-se da pluralidade


discutida por Bakhtin, esta tese encontrou, na esquizoanálise, a cartografia como método de
estudo de diferentes textos. Com o intuito de realizar uma análise do romance que suportasse
a diversidade de vozes, discursos, éticas, fatos, informações, teorias e conceitos rizomatizados
nesta tese, a cartografia surgiu como uma possibilidade de análise literária. Se a cartografia,
enquanto método de pesquisa tem sido apresentada e problematizada nos tempos
hipermodernos como possibilidade de resgate da dimensão subjetiva da produção e criação de
outros saberes, por que não utilizá-la para analisar o texto literário como rede de emergência
da subjetividade e possibilitadora dos processos de singularização?
Kirst (2003) comenta que o termo cartografia foi construído e é compreendido por
especificidades da geografia para estabelecer relações de diferença entre territórios e rever o
conceito de espaço. Para Kirst, a “cartografia é um termo que faz referência à ideia de ‘mapa’,
contrapondo à topologia quantitativa, que caracteriza o terreno de forma estática e extensa,
uma outra de cunho dinâmico, que procura capturar intensidades.”(KIRST, 2003, p.92) Sendo
assim, o caráter instituinte da cartografia se vincula à explicitação de sensações, percepções,
afetos, aquilo que faz com que o sujeito se sinta afetado pelo seu objeto de estudo, pela
leitura, pela sua prática profissional ou pelo amor.
Utilizar a cartografia como método de estudo do romance é tecer uma rede conectando
e desconectando elementos presentes no próprio romance ou retirados de outros romances, de
textos informativos ou teóricos.
No mundo hipermoderno, a cartografia também contribui para a substituição da
uniformidade de modelos e padrões pré-estabelecidos, pela pluralidade. A hipermodernidade
torna-se assim um tempo de contaminações ideológicas, políticas, econômicas, históricas,
sociais e culturais que dinamizam a vida humana. Kujawski (1991) nos lembra que, conforme
Ortega, “a contaminação (positiva ou negativa) constitui, talvez, o atributo mais genérico da
vida, de tudo que é vital, tanto no plano biológico, quanto em dimensão biográfica: vida é a
19

capacidade ativa e passiva de contaminação.” (KUJAWSKI, 1991, p.26) Repleta de


contaminações, a vida na hipermodernidade também pode ser cartografada, o que, no âmbito
da literatura, também possibilita a cartografia do romance.
Contudo, trabalhar com a cartografia requer cuidados. Para Kirst (2003), manter certa
estabilidade na pesquisa cartográfica significa estar atento à coerência conceitual, à força
argumentativa e à construção de sentidos que contribuam para a produção de conhecimento,
sem desconsiderar as diferenças conceituais e teóricas presentes em distintos espaços textuais.
Assim, a análise literária do romance “Nove Noites”, apresentada nesta tese, buscou os
argumentos necessários à discussão e produção de sentidos sobre o narrador na
hipermodernidade, em diferentes espaços textuais das ciências humanas, tais como: literatura,
esquizoanálise, história, filosofia, sociologia, psicologia. Aqui cabe ressaltar que, para
Bakhtin (1992), o objeto das ciências humanas é o texto, o homem que no seu discurso se
constrói como humano ao produzir textos. Assim para Bakhtin (1992), nas ciências humanas,
o texto é a maneira pela qual investigamos o homem e o conhecemos. Segundo este autor:
As ciências humanas não se referem a um objeto mudo ou a um fenômeno natural,
referem-se ao homem em sua especificidade. O homem tem a especificidade de
expressar-se sempre (falar), ou seja, de criar um texto (ainda que potencial).
Quando o homem é estudado fora do texto e independentemente do texto, já não se
trata de ciências humanas (mas de anatomia, de fisiologia humana, etc).
(BAKHTIN, 1992, p.334)

Dentre diferentes textos, aqui também representados por distintos espaços dentro das
ciências humanas; “o objetivo do método cartográfico é arrancar o percepto das percepções,
do objeto e dos estados de um sujeito percipiente. Bem como arrancar o afeto das afecções,
passagem de um estado ao outro.” (KIRST, 2003, p.98) Para se aproximar desse objetivo, o
cartógrafo procura afirmar-se através do encontro com o objeto e não no distanciamento dele,
trabalhando conceitos e ideias como letra; registro; vibrações históricas e sócio-culturais da
subjetividade.

1.1.3 Literatura, hipermodernidade e subjetividade

Nesta tese, conceitos e sensações se conectam e desconectam para, novamente, se


conectarem, na emergência da subjetividade em diferentes tempos e espaços apresentados no
romance “Nove Noites”. Entre o tempo vivido por Quain em terras brasileiras e o tempo da
investigação realizada pelo narrador, sobre a morte do antropólogo, tanto no Brasil quanto nos
E.U.A., surgem espaços e possíveis conexões que constituem uma rede de circunstâncias
20

engendradas de um dado recorte da realidade, o suicídio de Buell Quain. Da mesma forma o


tempo das cartas e o tempo dos e-mails participam da construção desta rede narrativa.
Assim, a realidade do sujeito é plurivalente e múltipla de significados geridos no seu
cotidiano. Ao falarem da subjetividade como máquina desejante, Deleuze e Guattari dizem: “é
assim que todos somos ‘bricoleurs’, cada um com suas pequenas máquinas. Uma máquina-
órgão para uma máquina-energia, e sempre fluxos e cortes.” (DELEUZE, GUATTARI, 1966,
p.7) As pequenas máquinas das motivações, dos interesses, das expectativas, das impressões,
dos sonhos, das decepções, das desilusões, das sensações, das percepções, enfim, das
manifestações humanas, movimentam o fluxo e os cortes históricos, sociais e culturais
organizadores da subjetividade que se manifestam como desejo. Sobre a subjetividade
Guattari e Rolnik dizem que
o indivíduo [...] está na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade.
Entre esses componentes alguns são inconscientes. Outros são mais do domínio do
corpo, território no qual nos sentimos bem. Outros são mais do domínio daquilo
que os sociólogos americanos chamam de “grupos primários” (o clã, o bando, a
turma, etc.). Outros, ainda, são do domínio da produção de poder: situam-se em
relação à lei, à política, etc. [...] Existe também uma subjetividade ainda mais
ampla: é o que chamo de subjetividade capitalística. (GUATTARI; ROLNIK, 1999,
p.34)

No cotidiano do sujeito, o tempo pulsa e evidencia os movimentos da subjetividade, os


modos pelos quais o sujeito percebe, experimenta, pensa e narra fatos, acontecimentos,
passagens temporais de sua vida. Ainda é importante salientar que o cotidiano e as maneiras
pelas quais nele o sujeito se insere são primordialmente sociais. Segundo Yaguello, na
introdução do livro de Bakhtin “Marxismo e filosofia da linguagem”, para este autor, “o
pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por consequência, fora da orientação
social desta expressão e do próprio pensamento.” (BAKHTIN, 1981, p.17) Assim, o que
potencializa o sujeito para pensar, perceber, experimentar e narrar é a sua condição, antes de
tudo, social.
Também de forma pulsante, as percepções do autor, dos personagens e do próprio
narrador, podem ser cartografadas no tecer de um romance. Numa aproximação da
esquizoanálise com as proposições de Bakhtin, as pulsações e fluxos históricos, sociais,
culturais e literários da subjetividade cartografados pelo narrador de um romance,
materializam a polifonia textual. Para Bakhtin: “O plurilinguismo [...] penetra no romance,
por assim dizer, em pessoa, e se materializa nele nas figuras das pessoas que falam.”
(BAKHTIN, 1993, p. 134)
Considerando o plurilinguismo na construção do romance, propor e utilizar, portanto,
o método cartográfico na análise literária é estar aberto à instituição de outras e novas
21

possibilidades de enunciação, dos processos de singularização que não se limitam à


individualização. Enquanto se individualizar diz respeito ao indivíduo que é único,
indivisível, absoluto e nada plural, singularizar-se significa conferir existência às múltiplas
manifestações da subjetividade no ver, no falar, no ler, no sentir.
Assim, na hipermodernidade, surgem novas formas de subjetivação que conduzem a
diferentes constituições subjetivas. No contexto dos tempos hipermodernos de coexistências e
dispersões, as subjetividades se organizam e reorganizam numa velocidade instantânea. Para
Bauman, a subjetividade, as intersubjetividades e as relações estabelecidas entre o homem e
seu meio sócio-cultural, ético, científico, enfim, linguístico,
são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e
nem poderiam imaginar mas, como todos os fluidos, eles não mantêm a forma por
muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são
moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção,
vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é
tudo menos inevitável. (BAUMAN, 2001, p.14)

Espera-se, portanto, que, através do método cartográfico, os processos de produção de


sentidos possam ser concebidos como constituídos e constituintes dos sujeitos da enunciação.
Para que a pesquisa cartográfica consiga a autonomia que lhe é vital, faz-se necessário que as
práticas discursivas também apresentem espaços vazios. São esses espaços que dão
mobilidade aos discursos na construção de uma rede em que se incluem, pelos não-sentidos e
pelas indeterminações, as diferentes interlocuções que abrem aos textos as possibilidades de
interpretação, criação e recriação de outros e novos territórios, sujeitos, vozes que falam de
um risco polissêmico, de um risco devir que se opõe à verdade unívoca. Diferentes
intercessores possibilitam diferentes maneiras de intertextualizar e de se intertextualizar na
produção de um texto.

1.1.4 Intertextualidade e transdisciplinaridade

Intertextualizar literatura e conteúdos de diferentes campos de conhecimento não


significa fazer coincidir textos diversos e nem reduzir o que é literário em explicações
psicologizantes ou historicizantes da narrativa, do narrador ou dos personagens.
Intertextualizar é fazer aproximações e afastamentos na composição de fios, de nós e de
espaços vazios que resultam no tecer de uma rede. Sobre os espaços vazios que compõem as
redes, Bauman comenta que estes são gerados pelas diferenças quando elas se tornam
invisíveis, impedidas de serem percebidas. Segundo Bauman, esse termo foi desenvolvido por
Jerzy Kociatkiewicz e Monika Koestera quando dizem de
22

lugares a que não se atribui significado. Não precisam ser delimitados fisicamente
por cercas e barreiras. Não são lugares proibidos, mas espaços vazios, inacessíveis
porque invisíveis. Se o fazer sentido é um ato de padronização, compreensão,
superação da surpresa e criação de significado, nossa experiência dos espaços
vazios não inclui o fazer sentido. (BAUMAN, 2001, p.120)

Nessa direção, Kristeva comenta que “a ‘palavra literária’ não é um ponto (um sentido
fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do
escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior.”
(KRISTEVA, 1974, p.62)
No seu texto “Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso”, Barros, ao
aproximar Todorov a Bakhtin no que se refere às relações do discurso com a pluralidade
semântica que envolve a enunciação, o contexto sócio-histórico e o outro, introduz a
concepção de intertextualidade a partir de Kristeva. Segundo Barros: “Todorov, a partir da
sugestão de Kristeva, prefere usar o termo intertextualidade para os ‘diálogos entre
discursos’”. (BARROS, 1996, p.33-4) Assim, falar de intertextualidade é falar do cruzamento
de diferentes discursos na compreensão do texto como dialogismo e polifonia, “reservando o
termo dialogismo para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo discurso e
empregando a palavra polifonia para caracterizar certo tipo de texto, aquele em que o
dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes”. (Barros, 1996, p.36)
Aqui cabe ressaltar que para Fiorin, intertextualidade e interdiscursividade se
diferenciam. Para esse autor enquanto a intertextualidade diz respeito aos “processos de um
texto – unidade de manifestação, com expressão e conteúdo – em outros; [...] [na
interdiscursividade] incorporam-se temas e/ou figuras de um discurso em outro.” (FIORIN,
1994, p.32)
Contudo, enquanto rede, tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade se
aproximam da transdisciplinaridade, ou seja, a coordenação de várias disciplinas num dado
sistema onde interagem distintos saberes, em diferentes níveis e com objetivos múltiplos na
composição de um axioma. Para Vasconcelos (2002), transdisciplinaridade não é a
pulverização de conhecimentos especializados, é a integração de campos e saberes individuais
em um campo de saber mais amplo com autonomia teórica e operativa própria. Na perspectiva
esquizoanalítica, Baremblitt recorre à figura do bricoleur para falar de transdisciplinaridade.
Segundo esse autor:
[Na transdisciplinaridade] o essencial é entender que não se trata de “aplicações”
sistemáticas de disciplinaridades, especificidades ou de saberes fazeres
convalidados ou sacralizados, e sim, de sua reinvenção e remontagem fragmentária
e bricoleur que se compõem as realidades e realteridades
esquizoanalíticas.(BAREMBLITT, artigo disponível no
23

sitehttp://www.fgbbh.org.br/artigos/subetividad_subjetivacion.htm acesso em
21/05/2008)

Na intertextualidade, na interdiscursividade e na transdisciplinaridade, os romances se


ampliam como possibilidade de produção de sentidos e se reafirmam como diversidades e
dispersões de intensidades e interpretações que vão além da codificação da palavra escrita. Na
opinião de Kristeva,
para a semiótica, a literatura não existe. Ela não existe enquanto uma linguagem
igual às outras, e, ainda menos, como objeto estético. Ela é uma prática semiótica
particular, detentora da vantagem de tornar mais apreensível que outras, aquela
problemática da produção de sentido que uma semiótica nova se coloca e,
consequentemente, só tem interesse na medida em que ela (a ‘literatura’) é
considerada em sua irredutibilidade ao objeto da linguística normativa (da palavra
codificada e denotativa). (KRISTEVA, 1974, p.40)

Kristeva, citando Sollers, também nos diz que: “entendido como prática, o texto
literário ‘não é assimilável ao conceito, historicamente determinado, de literatura. Implica a
inversão e o remanejamento completo do lugar e dos efeitos desse conceito.’”(KRISTEVA,
1974, p.40) Assim, para essa autora “todo texto ‘literário’ pode ser encarado como
produtividade. Ora, a história literária, desde o fim do século XIX, oferece textos modernos
que, em suas próprias estruturas, se pensam como produção irredutível à
representação.”(KRISTEVA, 1974, p.41)
Sendo assim, para pensar o romance e o seu narrador na hipermodernidade, não
podemos desconsiderar a modernidade, seus paradigmas e possibilidades. Como diz
Lipovetsky (2004): “Longe de decretar-se o óbito da modernidade, [nos tempos
hipermodernos], assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na
mercantilização quase generalizada dos modos de vida, na exploração da razão instrumental
até a ‘morte’ desta, numa individualização galopante.” (LIPOVETSKY, 2004, p.53) Portanto,
para se falar de tempos hipermodernos, termo cunhado por Lipovetsky, tem-se que pensar na
modernidade, quando o homem medieval/feudal que “não [era] protagonista dos próprios
atos, [pensando e agindo] coletivamente, governado por um só princípio, a
tradição”(KUJAWSKI, 1991, p.20), foi substituído pela individualidade, única responsável
tanto pelo sucesso como pelo fracasso de cada indivíduo isoladamente.
Contudo, atravessando o contexto da individualidade moderna, os tempos
hipermodernos, elevando os paradigmas da modernidade aos seus expoentes maiores, deram
visibilidade à diferença no sentido do que é múltiplo e dialógico. Para Jakobson, no prefácio
do livro de Bakhtin “Marxismo e filosofia da linguagem”, segundo Bakhtin,
na estrutura da linguagem, todas as noções substanciais formam um sistema
inabalável, constituído de pares indissolúveis e solidários: o reconhecimento e a
compreensão, a cognição e a troca, o diálogo e o monólogo, sejam eles enunciados
24

ou internos, a interlocução entre o destinador e o destinatário, todo signo provido de


significação e toda significação associada ao signo, a identidade e a variabilidade, o
universal e o particular, o social e o individual, a coesão e a divisibilidade, a
enunciação e o enunciado. (BAKHTIN, 1981, p. 10)

Assim, a individualidade moderna singulariza-se, na hipermodernidade, ao trazer para


si a complexidade múltipla da qual faz parte. No âmbito da intertextualidade e da
transdisciplinaridade, as produções humanas são híbridas, o que para Latour (1991) se traduz
como produções mistas que escapam ao universo das representações, provocando
interlocuções e intercessões entre diferentes saberes.

1.1.5 As linhas de fuga

Como já foi mencionado, Deleuze e Guattari recorreram ao território da botânica em


busca da concepção de rizoma para a compreensão do conceito de rede na perspectiva
esquizoanalítica. Esses autores também recorreram à geografia trazendo para o território
esquizoanalítico a definição de cartografia. No movimento ocasionado pelos processos de
desterritorialização e reterritorialização na produção do conhecimento, Deleuze e Guattari
construíram conceitos, organizaram teorias e fundaram a esquizoanálise.
De forma semelhante, esta tese buscou conceitos esquizoanalíticos para o estudo do
romance no território da literatura. Junto à compreensão do romance como um rizoma e da
utilização do método cartográfico para a análise da narrativa, o conceito de linhas de fuga que
marcam com singularidade o tido universal e impessoal, aparece nesta tese para falar tanto do
narrador no contexto do romance, quanto da subjetividade no contexto da hipermodernidade.
No sentido deleuziano, fuga significa “produzir algo real, criar vida” (DELEUZE;
PARNET, 1998, p.62) através de múltiplas desterritorializações, já que “as multiplicidades se
definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual
elas mudam de natureza ao se conectarem às outras.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.17)
Para Deleuze e Parnet, “a linha de fuga é uma desterritorialização. [...] Fugir não é renunciar
às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É também fazer fugir,
não necessariamente os outros, mas fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se
fura um cano.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.47) Ainda podemos pensar nas linhas de fuga
“como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos
limiares, em direção a uma destinação desconhecida, não previsível, não preexistente.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.146) Deleuze e Parnet também falam que
25

uma fuga é uma espécie de delírio. Delirar é exatamente sair dos eixos (como
“pirar” etc.). Há algo de demoníaco, ou de demônico, em uma linha de fuga. Os
demônios distinguem-se dos deuses, porque os deuses têm atributos, propriedades e
funções fixas, territórios e códigos: eles têm a ver com os eixos, com os limites e
com os cadastros. É próprio do demônio saltar os intervalos, e de um intervalo a
outro. [...] Sempre há traição numa linha de fuga. [...] Trai-se as potências fixas que
querem nos reter, as potências estabelecidas da terra. (DELEUZE; PARNET, 1998,
p.53)

Schuch comenta que linhas de fuga podem ser “entendidas como o pensamento que
não se fecha sobre o reconhecimento de situações e saberes, mas, pelo contrário, questiona os
modelos e se propõe a novos encontros nas relações em que foi produzido.” (SCHUCH, 2003,
p.2)
Produzindo algo real e criando vida, o narrador, pensado como um cartógrafo diante
da pluralidade hipermoderna, desterritorializa-se e reterritorializa-se em diferentes tempos e
espaços da narrativa, deixando sempre vazar o que sustenta o tom enigmático do romance.
No que se refere à territorialização, desterritorialização e reterritorialização, para
Guattari e Rolnik,
a noção de território é entendida aqui num sentido muito mais amplo. [...] Os seres
existentes se organizam, segundo territórios que os delimitam e os articulam aos
outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território é sinônimo de aproximação, de
subjetivação fechada sobre si mesma. [...] A reterritorialização consistirá numa
tentativa de recomposição de um território engajado num processo
desterritorializante. (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p.323)

Sobre o movimento de desterritorialização, Guattari e Rolnik acrescentam:


A espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização,
no sentido de que seus territórios originais se desfazem ininterruptamente com a
divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os
quadros da tribo e da etnia, com os sistemas maquínicos que levam a atravessar,
cada vez mais rapidamente, as estratificações materiais e mentais. (GUATTARI;
ROLNIK, 1986, p.323)

Enquanto fluxo, processo e constante movimento, diferente das potências fixas do


herói da epopéia, o narrador do romance aproxima-se do cidadão comum, do homem que
vive, se angustia e morre em constantes movimentos de desterritorialização e
reterritorialização. Através das linhas de fuga, o narrador hipermoderno constrói e desloca-se
pelo rizoma da narrativa. Sobre o ato de escrever, Deleuze e Parnet comentam que
é possível que escrever esteja em uma relação essencial com as linhas de fuga.
Escrever é traçar linhas de fuga, que não são imaginárias, que se é forçado a seguir
porque a escritura nos engaja nelas, na realidade, nos embarca nela. Escrever é
tornar-se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se uma coisa. Um
escritor de profissão pode ser julgado segundo seu passado ou seu futuro, segundo
seu futuro pessoal ou segundo a posteridade. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.56)
26

Ainda é importante salientar que um rizoma não se constrói apenas por linhas de fuga.
No rizoma também encontramos as linhas duras. Essas linhas são as linhas da arborescência e,
para Deleuze e Guattari, tais linhas também participam da construção do rizoma. Segundo
esses autores,
o que conta é que a árvore-raiz e o rizoma-canal não se opõem como dois modelos:
um [a árvore-raiz] age como modelo e como decalque transcendente, mesmo que
engendre suas próprias fugas; o outro [o rizoma-canal] age como processo imanente
que reverte o modelo e esboça um mapa; mesmo que constitua suas próprias
hierarquias, e inclusive ele suscite um canal despótico. (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p.31-2)

Num rizoma construído por linhas duras e linhas de fuga, encontramos igualdades e
diferenças. Enquanto, pelo decalque, o sujeito molda-se frente ao modelo apresentado pela
árvore-raiz, no rizoma, através das linhas de fuga, o sujeito singulariza-se produzindo
diferenças. A rigidez das linhas duras é desfeita pelas linhas flexíveis, linhas elásticas que
metamorfoseam as linhas duras em “uma corrente de maleabilidade.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.68)
Na condição de produtor de intervalos propiciadores da emergência do diferente, o
narrador é um experimentador que, para Deleuze e Parnet, é um traidor, aquele que não se
conforma com os modelos que lhes são apresentados. Podemos pensar o experimentador
como o coringa de um baralho, aquele que muda o valor das cartas no decorrer do jogo. Para
Deleuze e Parnet, “o padre, o adivinho, é um trapaceiro, mas o experimentador, um traidor.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.55) É preciso trair para produzir diferenças e intensidades, e
não trapacear, pois, este último não denota devir. No seu livro “Lógica do sentido”, Deleuze
nos permite pensar o experimentador como uma possível forma de reverter o platonismo, por
o experimentador ser um diferencial, marcar uma diferença que evidencia um
devir-louco, um devir ilimitado, [...] um devir sempre outro, um devir subversivo
das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o mesmo ou o semelhante:
sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual. Impor um limite a este
devir, ordená-lo ao mesmo, torná-lo semelhante – e, para a parte que permaneceria
rebelde, recalcá-la o mais profundo possível, encerrá-la numa caverna no fundo do
oceano: tal é o objetivo do platonismo em sua vontade de fazer triunfar os ícones
sobre os simulacros, [mataria o experimentador, extinguiria sua função de produzir
diferenças.] (DELEUZE, 1969, p.264)

No jogo estabelecido entre o igual e o diferente, foram vários os intercessores que,


com suas vozes, participaram da construção desta tese, promovendo intensidades e com seus
questionamentos desestabilizando qualquer tendência à uniformização. Obviamente, dentre os
intercessores que permitiram a escrita desta tese se encontra Gilles Deleuze. Na perspectiva
de Deleuze (1992), tê-lo como intercessor, o que também pode ser pensado para a inclusão de
27

outros autores na produção textual, significa utilizar de seus conceitos, como se fosse uma
caixa de ferramentas para a criação, num sentido pragmático, de outros e, talvez, novos
conceitos. Através dos intercessores encontramos as ferramentas necessárias para a produção
de teorias, para a construção de conceitos, para a criação. Na opinião de Foucault, um dos
intercessores de Deleuze, “uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com
o significante. É preciso que sirva, é preciso que funcione...”. (FOUCAULT, 1979, p.70)
Diferente da arma, a ferramenta
prepara uma matéria à distância para trazê-la a um estado de equilíbrio ou adequá-
la a uma forma de interioridade. Nos dois casos, existe a ação à distância, mas num
caso é centrífuga, e no outro, centrípeta. Diríamos, do mesmo modo, que a
ferramenta se encontra diante de resistências a vencer ou a utilizar, ao passo que a
arma se encontra diante de revides, a evitar ou a inventar. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.73)

Os intercessores propiciam alianças e encontros desencadeadores de outras


intercessões que possibilitam a leitura, releitura e criação de conceitos, teorias e ideias. No
cenário de multiplicidades apresentado na filosofia deleuziana, e também na não-filosofia por
ele pensada, a produção teórica e conceitual, assim como a criação artística, são expressões do
pensamento através do reconhecimento da diferença como essencial ao múltiplo, ao plural e
não como oposição construída na desigualdade. Para Deleuze e Guattari, multiplicidades,
assim como o rizoma, “não supõem nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e
tampouco remetem a um sujeito.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.8)
Na aliança estabelecida entre pensamento e criação, Deleuze diz que o ato de pensar é
a verdadeira forma de criar, pois “não decorre de uma simples possibilidade natural; ele é, ao
contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio
pensamento”. (DELEUZE, 1987, p.96) Deleuze ainda acrescenta que
o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas
– para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas –
mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais,
animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.
(DELEUZE, 1988, p.156)

A participação do intercessor na produção de conhecimento e diferença, presente na


concepção esquizoanalítica, dialoga com a proposição de Bakhtin que “a interação entre
interlocutores é o princípio fundador da linguagem.” (BARROS, 1996, p.27) Para que haja
conhecimento, diferença e linguagem, faz-se necessária a participação de distintos sujeitos no
processo de comunicação. Considerando as diferenças existentes entre diversos discursos
como a condição dialógica fundante da linguagem, a produção do conhecimento, enquanto
28

trabalho realizado pela e na linguagem, também se sustenta pela sua dissimilitude em relação
a um dado modelo, indo em direção à pluralidade hipermoderna.
O que pode parecer justaposição de ideias, na perspectiva da cartografia, é a
possibilidade de escrita e leitura de um texto como rizoma. Já em Bakhtin, podemos pensar
que “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo
tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.” (BAKHTIN,
1981, p. 144) Aproximando-se da ideia de cartografia, Bakhtin, ao falar sobre o discurso
citado, diz que
esse torna-se [...] mais forte e mais ativo do que o contexto narrativo que o
enquadra. Dessa maneira, o discurso citado é que começa a dissolver, por assim
dizer, o contexto narrativo. Esse último perde a grande objetividade que lhe é
normalmente inerente em relação ao discurso citado; nessas condições, o contexto
narrativo começa a ser percebido – e mesmo a reconhecer-se – como subjetivo,
como fala de “outra pessoa”. (BAKHTIN, 1981, p.151)

Da mesma forma, ideias, que do ponto de vista epistemológico, são divergentes, na


produção textual podem se conectar num dado aspecto para se desconectar em outros. Assim,
Wellek, Warren e também Kristeva, embora sigam direções diferentes de Deleuze, Guattari,
Rolnik, Kirst, Bakhtin, Foucault, Nietzsche, Bergson, Bauman, Kujawski, Lipovetsky,
Gevertz, dentre outros, podem com eles dialogar em alguns pontos de vista, já que, para a
filosofia da diferença e para a esquizoanálise, a produção do conhecimento também é
produção da diferença. Daí podemos pensar as linhas de fuga como possibilidades do não
fechamento do pensamento em saberes pré-estabelecidos, abrindo espaços para questionar
modelos e criar novas relações.
Assim, para a elaboração desta tese também foram necessários estudos bibliográfico,
documental, biográfico e histórico em obras teóricas, pesquisas na internet, sites e
conferências virtuais que possibilitaram discussões sobre as possíveis manifestações do
narrador no romance de Bernardo Carvalho, identificando as diferentes estratégias literárias
utilizadas para a construção dessa categoria ficcional.
Utilizando-se o método analítico-crítico, diferentes campos teóricos contribuíram para
diversificar os possíveis entendimentos sobre a figura do narrador, indo ao encontro das
teorias literárias, da filosofia, da sociologia, da história, da psicologia e, obviamente, da
esquizoanálise.
Retomando o título desta tese, “O narrador na hipermodernidade: a cartografia e o
romance”, evidencia-se o campo de análise e reflexão desta produção, estabelecendo o que foi
discutido, através de que se realizou esta discussão e de que modo ela foi conduzida.
Discutindo o narrador no contexto da hipermodernidade, o romance “Nove Noites” de
29

Bernardo Carvalho foi analisado através do método cartográfico para pensar as posições do
narrador frente ao imaginário, ao virtual e à ficção. Segundo a esquizoanálise, a realidade é
composta do possível, do impossível, do virtual e do atual e, assim, é preenchida pelo ser do
devir. Desta forma, “a realidade consiste em ‘todos’ os devires (processos) que a integram.”
(BAREMBLITT, 1998, p.71) Longe de uma ideia totalizante, a esquizoanálise, através dos
devires, diz de constantes construções da realidade por processos que vão “se agregando, sem
totalizar-se nem unificar-se inteiramente.” (BAREMBLITT, 1998, p.71) Da mesma forma, “o
ser não é estático, o ser é devir.” (BAREMBLITT, 1998, p.88)
Com o intuito de delimitar espaços conceituais e apresentar sucintamente o romance
“Nove Noites” como objeto de estudo desta tese, foram aqui realizadas algumas reflexões
como considerações preliminares à produção deste texto. Com isso espera-se contribuir para a
leitura e compreensão do texto que se encontra a seguir. Contudo, o que numa concepção
linear, arborescente e radicular pode parecer uma solução, a saber, a construção de uma
introdução ao texto a ser desenvolvido, na perspectiva esquizoanalítica uma introdução
apresenta-se como um problema. Na concepção de rizoma não temos nem início e nem fim.
Tudo é meio, pelo qual se deslocam e se desdobram diferentes significações. Portanto, o que
aqui é apresentado como considerações preliminares pretende definir territórios para futuras
desterritorializações e reterritorializações, já que, como foi dito anteriormente, para a
realização de uma cartografia exige-se coerência conceitual e força argumentativa e não a
linearização do texto.
30

2 O NARRADOR E O IMAGINÁRIO

Em “Nove Noites”, o fato da morte do antropólogo Buell Quain está presente ao longo
de toda a narrativa, movimentando-a e ampliando suas possíveis leituras. As inquietações do
narrador frente à morte do antropólogo possibilitam, no decorrer do romance, a reconstituição
da vida de Buell Quain e de sua personalidade. O fluxo da narrativa, ao mesmo tempo em que
diz da morte do etnólogo, nos propicia conhecer a sua vida. Assim, o suicídio de Quain deve
ser entendido não como um núcleo desencadeador do romance, mas como um dos elementos
que dele faz parte e que o dinamiza.
Enquanto fluxo, a narrativa se expande em diferentes direções, em que cartas, fatos,
fotos personagens e o próprio narrador se contaminam mutuamente na constituição das
subjetividades existentes em “Nove Noites” e dos contextos temporais e geográficos presentes
no romance. Enquanto um rizoma, “Nove Noites” é devir, constantes transformações que na
dimensão imaginária se compõe por subjetividades que se manifestam em diferentes espaços
históricos, sociais e culturais. Na articulação do individual e particular com o social, a
narrativa mostra-se como fluxo de discursos, afetos e sensações. É nesse contexto que
podemos ser remetidos à concepção de imaginário radical de Castoriadis e à sua aproximação
com a cartografia apresentada pela esquizoanálise.

2.1 O imaginário radical e a construção do romance

Na concepção de Castoriadis, o imaginário consiste num fluxo contínuo de criação que


se constitui pelas dimensões psíquica e sócio-histórica. Iser, citando Castoriadis, diz que para
este autor “o imaginário [...] existe como o sócio-histórico e como psique-soma. Enquanto
sócio-histórico, é o fluxo aberto do coletivo anônimo; enquanto psique-soma, é o fluxo
representativo/afetivo/intencional.” (ISER, 1996, p.248) Assim, ao contrário de uma visão de
imaginário referente ao especular, a um duplo irreal, Castoriadis sustenta a ideia de
que o imaginário é a raiz da institucionalização da sociedade. O conceito de imaginário
radical discutido por Castoriadis nos lembra que sujeito e sociedade são produções que advém
da ação consciente da institucionalização e que as instituições originam-se no imaginário
social que também envolve a singularidade da psique humana. Segundo Iser, para Castoriadis,
o sujeito se movimenta para a sociedade e “tal movimento [...] está relacionado [...] a uma
globalização do imaginário.” (ISER, 1996, p.246)
31

Diferente também da compreensão da construção da subjetividade envolvendo um


outro mediador na relação sujeito/objeto, na perspectiva de Castoriadis o próprio espelho, o
outro enquanto espelho, é efeito do trabalho imaginário. No imaginário radical, o outro não se
apresenta como duplo, ele é construído no e pelo imaginário que na condição de fluxo é devir.
Na compreensão do imaginário radical, a multiplicidade de elementos que ao se
conectarem uns aos outros constroem os entrelaçamentos possibilitadores da produção do
tecido da narrativa, deixam espaços para o devir de outras interpretações. Recorrendo a Iser,
temos que para Castoriadis “o imaginário se inscreve em tudo o que existe como seu
transformar-se-em-outro, e é capaz disso porque todo o existente é postulado pelas operações
da lógica de identidade e de conjunto.” (ISER, 1996, p.249) O outro para Castoriadis sempre
envolve identidade e conjunto.
Corroborando Castoriadis, Bakhtin afirma que, “com efeito, a enunciação é o produto
da interação de dois indivíduos socialmente organizados”. (BAKHTIN, 1981, p.112) Para
Bakhtin, a dimensão social da enunciação advém da função social da palavra. Para ele,
na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de
que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao
outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie
de ponte lançada entre mim e os outros. Se ele se apóia sobre mim numa
extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 1981, p.113)

Portanto, sustentando-se no social e afastando-se do sentido ontológico, o imaginário


radical está presente na tessitura da narrativa, reinserindo-se no fluxo de constantes
transformações. Comentando Castoriadis, Iser diz que “o imaginário desenvolve-se como
postulação, ruptura e transformar-se-em-outro [...], de modo que toda determinação se
comprova sempre como fenômeno produzido, e não originário.” (ISER, 1996, p.248)
Falar sobre o imaginário radical também afasta-nos da ideia de um núcleo, de uma
instância ativadora a partir da qual é colocado em movimento um jogo de significações,
fantasias e relações. Segundo Castoriadis, o imaginário flui do encontro da psicogênese com a
sociogênese num impulso mobilizador, produtor de imaginação. Ao falar sobre as
imaginações, Castoriadis adverte que mobilizar o imaginário não significa reconduzir à
presença o ausente. As imaginações nada representam. Através delas “a psique se converte no
palco de seus fantasmas” (ISER, 1996, p.251), direcionando-se para fora de si. Assim, a
psicogênese se enlaça com a sociogênese e as imaginações encontram-se com o imaginário
social.
32

Dialogando com Bakhtin, “a expressão exterior [...] prolonga e esclarece a orientação


tomada pelo discurso interior, e as entonações que ele contém.” (BAKHTIN, 1981, p.114)
Dessa forma, “o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo exterior,
[...] na fronteira dessas duas esferas da realidade. É nessa região limítrofe que se dá o
encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas este encontro não é físico: o organismo e
o mundo encontram-se no signo.” (BAKHTIN, 1981, p.49) No imaginário radical, o “outro é
sempre e ao mesmo tempo significação e não-significação.” (ISER, 1996, p.253) O jogo de
ideias e sentidos presente na narrativa não é desencadeado por um núcleo ativador e sim como
o transformar-se-em-outro. “Esse jogo, porém, nunca chega ao fim, razão pela qual os seus
resultados podem ser novamente desfeitos.” (ISER, 1996, p.258)
No romance, a multiplicidade de sentidos vista como um fluxo contínuo de possíveis
interpretações faz com que a realidade fatual e a fantasia se misturem no âmbito do
imaginário. Citando Calvino,
seja como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através
da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia
aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas
através do olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de
caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas
inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia,
representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e
sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto. (CALVINO, 1990,
p.114)

Enquanto instituição, o imaginário cria a realidade objetiva social na qual o sujeito se


insere e se inscreve, já que “a psique-soma é mortal e apenas pode sobreviver nas
significações imaginárias de institucionalizações sociais.” (ISER, 1996, p.259) Para
Castoriadis entender o imaginário radical no campo da psique é saber que o desejo é fluxo,
devir louco e movimento, diferente do desejo visto como impossível, indestrutível,
irrealizável, nunca representado. Na perspectiva do imaginário radical, o desejo
não é para a psique aquele que não poderia estar presente no real. [...] O que falta e
o que sempre faltará é o não representável daquele “estado original” anterior a
qualquer separação e diferenciação, aquela protorepresentação que a psique não
pode mais produzir, e que, no entanto, assinala linhas de força indestrutíveis no
campo psíquico. (ISER, 1996, p.250)

Sendo assim, o desejo, no campo do imaginário radical, aproxima-se do desejo na


visão esquizoanalítica. Falar do desejo na esquizoanálise, nos remete às máquinas desejantes.
Para Guattari e Rolnik, parece
muito mais vantajoso partir para uma teoria do desejo que o considere como
pertencendo propriamente a sistemas maquínicos altamente diferenciados e
elaborados. E, quando digo “maquínico”, não me refiro a mecânico, nem
necessariamente a máquinas técnicas. As máquinas técnicas existem, é claro, mas
há também máquinas sociais, máquinas estéticas, máquinas teóricas e assim por
33

diante. Em outras palavras, há máquinas territorializadas [...] assim como há


também máquinas desterritorializantes que funcionam num nível de semiotização
completamente outro. (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.239)

Na perspectiva de Guattari, o desejo se encontra rizomatizado com o capitalismo, que


por sua vez
é obrigado a construir e impor seus próprios modelos de desejo, e é essencial para
sua sobrevivência que consiga fazer com que as massas que ele explora os
interiorizem. Convém atribuir a cada um: uma infância, uma posição sexual, uma
representação do amor [...]. As relações de produção capitalista não se estabelecem
somente na escala dos grandes conjuntos sociais; é desde o berço que modelam um
certo tipo de indivíduo produtor-consumidor. (GUATTARI, 1992, p.188)

O desejo faz parte da mentalidade capitalista, assim como, de todo e qualquer outro
modo de produção. Em torno do capital podemos encontrar diferentes sistemas e organizações
sociais que se estendem do capitalismo ao socialismo. As máquinas desejantes são
moleculares. Por serem pequenas, “elas permanecem como tais no seio das entidades macro,
que se chamam molares, e que são as que estamos acostumados a reconhecer.”
(BAREMBLITT, 1998, p.52-3) Falar, pois, do desejo é estar “em conexão direta com os mais
diferenciados elementos de seu entorno que vão da família ao cosmos.” (GUATTARI;
ROLNIK, 1999, p.239-40) Assim, segundo Guattari e Rolnik, “o desejo é sempre
extraterritorial, desterritorializado, desterritorializante. Ele passa por cima e por baixo de
todas as barreiras.” (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.47)
Da mesma forma que o desejo se diferencia enquanto impossibilidade e enquanto
fluxo, a concepção de imaginário radical difere de outras compreensões do imaginário, as
quais se organizam pelo entendimento de suas funções. Pensar o imaginário como instituição
é reconhecê-lo como fundação da produção e da criação enquanto fluxos contínuos
propiciados por linhas de forças que direcionam a psique-soma para a sua sobrevivência no
horizonte sócio-histórico. Novamente recorrendo a Bakhtin, temos que “a ideologia do
cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num
sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de
consciência.” (BAKHTIN, 1981, p.118) “A consciência só se torna consciência quando se
impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de
interação social.” (BAKHTIN, 1981, p.34)
Deslocando a subjetividade do universo da singularidade para o grupo coletivo e
social, o romance, como produção humana, também pode ser visto como uma das formas do
sujeito lançar-se para fora de si a fim de garantir e alcançar a sua existência na realidade
social objetiva da qual faz parte.
34

Aqui podemos lembrar Kristeva que, ao considerar o texto como espaço de


representação, também nos diz que este, ao representar o real, altera o seu significado,
participando da sua mobilidade e constante transformação. Vejamos:
Em outros termos, não sendo o texto a linguagem comunicativa que a gramática
codifica, não se contenta com representar – com significar o real. Pelo que
significa, pelo efeito alterado, presente naquilo que representa, participa da
mobilidade, da transformação do real, que apreende no momento de seu não-
fechamento. Dito de outro modo, sem remontar a – simular – um real fixo, constrói
o teatro móvel de seu movimento, para o qual contribui e do qual é o atributo.
(KRISTEVA, 1974, p.12)

A mobilidade do texto e do romance permite ao sujeito significar-se e resignificar-se,


aventurando-se no espaço social. Assim, a morte real do antropólogo Buell Quain torna-se
enigma ao ser tratada pela dimensão imaginária da linguagem como fluxo da produção e
criação da narrativa da qual faz parte, como linhas de força e não como representações. Levy,
referindo-se a Baudrillard, diz que “o real por sua própria natureza é enigmático, um mundo
de sombras que estimula a imaginação”. (LEVY, 2002, p.61)
A imaginação é aquilo que nada representa e que impulsiona a psique-soma a lançar-
se para fora de si e ir de encontro com a realidade social. Ela sustenta e realiza a subjetividade
na institucionalização da sociedade. É nessa direção que o imaginário pode ser concebido
como o impulso necessário à institucionalização social, criando a realidade. Da mesma forma,
o romance, enquanto fluxo de sentido / não sentido, pode ser concebido como uma instituição.
Para Wellek e Warren, comentando Harry Levin,
a espécie literária é uma “instituição” – tal como a Igreja, a Universidade, o Estado,
são instituições. Existe, não no sentido em se diz que existe um animal ou mesmo
um edifício, seja capela, biblioteca ou assembléia, mas sim naquele em que uma
instituição tem existência. Uma pessoa pode atuar, expressar-se, por meio das
instituições que existem, ou criando novas instituições, ou prosseguindo, tanto
quanto possível, sem compartilhar na política e nos rituais; podemos também aderir
a instituições e depois dar-lhes nova forma. (WELLEK; WARREN, 1962, p.286)

Enquanto instituição, assim como o imaginário, o romance é a criação de distintas


realidades, como também se recria e se renova como escrita, estilo e gênero literário.
Reconhecendo a distância existente entre a realidade e a palavra, distância esta necessária à
conciliação entre essas duas dimensões, o romance ficcionaliza os fatos. Ao discutir as
funções do imaginário, Lima, lembrando Platão, afirma que “a realidade [...] diz o que é,
enquanto a palavra apenas a declara e deste modo a torna comunicável.” (LIMA, 1991, p.140)
Lima ainda comenta que a ficcionalização do fatual não é apenas a expressão da realidade.
Muito mais do que isso, na ficção, “sendo um dos meios de formulação da realidade, por
conseguinte de constituição do objeto real, a narrativa se peculiariza por sua relação com o
35

tempo.” (LIMA, 1991, p.143) Comunicando a realidade, ou seja, ficcionalizando o fatual nas
relações que esse estabelece com o tempo, o fluxo narrativo dinamiza o romance.
O imaginário radical não tendo o sentido de fundamento e sendo fluxo, traz na sua
concepção a possibilidade da multiplicidade semântica na produção do discurso. Assim, as
narrativas enquanto “multiplicidade, [...] [apresentam-se como] um feixe inextricável de
tecidos enredados de materiais diferentes e todavia homogêneos, cobertos por peculiaridades
virtuais e fugazes” (ISER, 1996, p.249), ou seja, aquilo que podemos entender como magma.
Podemos, pois, pensar que as possíveis aproximações entre os elementos que
compõem a narrativa acontecem num contexto de diferenças e semelhanças. São as
semelhanças que permitem a conexão de uma ideia a outra. Essas conexões possibilitam o
cruzamento de uma linha de pensamento com outra. Contudo, é a diferença que, pelo
afastamento destas linhas, constrói os intervalos que fazem do discurso uma rede. Os espaços
vazios existentes entre diferentes enunciados abalam a linearidade do discurso, questionando
os sentidos por eles construídos na abertura para outras interpretações marcadas pelo não
sentido. Dessa forma, no movimento do devir, uma significação transforma-se em outra. As
possíveis compreensões produzidas no e pelo discurso não obedecem a uma linhagem linear
causa/efeito. No imaginário radical, uma ideia não se origina de outra e a narrativa entendida
como fluxo ramifica-se como rede pelas transformações decorrentes de um constante vir-a-
ser.
Em “Nove Noites”, o narrador como um cartógrafo, orquestra diferentes vozes que
ecoam umas sobre as outras no fluxo da narrativa. Assim, o romance é tecido como uma rede
imaginária, cujos espaços existentes entre uma ideia e outra, e os silêncios produzidos entre
um discurso e outro, possibilitam a construção de diferentes sentidos para a morte de Quain,
para a sua vida, para a narrativa, para o romance, para os personagens e para o próprio
narrador.
No romance “Nove Noites”, o enigma da morte, e da morte de Buell Quain, é
apresentado pelo narrador, seguindo como “na poesia épica (ou no romance) o poeta, em
parte, [falando] na sua própria pessoa, como narrador, e, em parte, [fazendo] as suas
personagens falarem em discurso direto (narrativa mista)”. (WELLEK; WARREN, 1962,
p.288) Assim, as vozes do narrador e dos personagens ecoam umas nas outras, produzindo o
conhecimento e a ficcionalização dos fatos, ao mesmo tempo em que demarcam a diferença
de dois distintos tempos.
“Nove Noites” é uma narrativa composta por duas diferentes grafias que demarcam
dois diferentes discursos e tempos. As partes do romance que são escritas em itálico referem-
36

se às falas e lembranças de Manoel Perna, um engenheiro de Carolina que conviveu com


Quain no período que este antropólogo esteve no Brasil. Já as partes do romance que são
escritas sem o uso do itálico dizem respeito à pesquisa, às reflexões e às conclusões
construídas pelo narrador do romance acerca da morte do antropólogo Buell Quain, 62 anos
depois de sua morte.
Assim, utilizando da cartografia para a análise do romance, evidencia-se também o
narrador enquanto um cartógrafo que possibilita a construção da narrativa e dos personagens
do romance. Prova disso é quando o narrador de “Nove Noites”, ao dar voz a Manuel Perna,
também revela a identidade deste personagem através de pistas que são apresentadas num tom
enigmático.
Já no início da obra, o narrador, como um cartógrafo, dando voz ao personagem que
participa da narrativa nas partes escritas em itálico, apresenta pistas ao leitor que, também
pela cartografia, pode descobrir que este personagem é Manoel Perna. Da página 07 à página
13, o narrador insiste, por diversos momentos, que o personagem, que fala nas partes em
itálico, diga que era amigo do antropólogo, que “estava ocupado com uma obra”
(CARVALHO, 2002, p.09) quando Quain chegou à Carolina num hidroavião da Condor e que
ao ser apresentado à Buell, este “mal ouviu o [seu] nome. Se o tivesse entendido, teria na
certa caçoado, porque apesar de tudo não lhe faltava humor. O [seu] nome é motivo de
chacota fora [de Carolina].”(CARVALHO, 2002, p.09)
Na página 12, o narrador também convoca o personagem que fala nas partes em itálico
a dizer que uma das cartas deixadas por Quain, após a sua morte, era endereçada a ele. Quain
“deixou cartas para os Estados Unidos, para o Rio de Janeiro, para Mato Grosso e duas para
Carolina, uma para o capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia, e a outra para mim.”
(CARVALHO, 2002, p.12)
Na segunda parte do livro, escrita não em itálico, o narrador, utilizando de sua própria
voz, numa outra interpretação, diz que Quain
deixou pelo menos sete cartas, que escreveu, aos prantos, nas últimas horas que
precederam o suicídio. Queria deixar o mundo em ordem, a julgar pelo conteúdo
das quatro a que [teve] acesso, endereçadas a sua orientadora, Ruth Benedict, da
Universidade de Columbia, em Nova York; a dona Heloísa Alberto Torres, diretora
do Museu Nacional, no Rio e Janeiro; a Manoel Perna, um engenheiro de Carolina
de quem se tornara amigo, e ao capitão Ângelo Sampaio, delegado de polícia da
cidade. [...] Entre as que não consegui encontrar, no entanto, sei que havia pelo
menos uma endereçada ao pai médico, dr. Eric P. Quain, recém-divorciado e
hospedado no Annex Hotel, em Bismarck, na Dakota do Norte; outra ao reverendo
Thomas Young, missionário americano instalado com a mulher em Taunay, em
Mato Grosso, e uma terceira ao cunhado Charles C. Kaiser, marido de sua irmã,
Marion. (CARVALHO, 2002, p.15-6)
37

Assim, das sete cartas, três foram para os Estados Unidos (Ruth Benedict, pai Eric
Quain e cunhado Charles Kaiser), uma para o Rio de Janeiro (Heloísa Alberto Torres), uma
para o Mato Grosso (reverendo Thomas Young) e duas para Carolina (capitão Ângelo
Sampaio e Manoel Perna). Manoel Perna, amigo de Quain, é o engenheiro que estava ocupado
com uma obra no momento que o antropólogo chegou a Carolina e que tem um nome que
pode ser motivo de chacota. O narrador, através das cartas deixadas por Quain antes de sua
morte, deixa entrever as pistas necessárias para a identificação do personagem Manoel Perna,
que também, ao enumerar estas cartas e seus destinatários, participa do seu desvendamento na
narrativa.
Também o narrador de “Nove Noites” é construído ao longo do romance de Bernardo
Carvalho, propiciando inquietação e fruição no leitor.
Na perspectiva de Culler,
por convenção, diz-se que toda narrativa tem um narrador, que pode se colocar fora
da história ou ser um personagem dentro dela. Os teóricos distinguem a “narração
em primeira pessoa”, em que um narrador diz “eu”, daquilo que [...] é chamado de
“narração em terceira pessoa”, em que não há um “eu” – o narrador não é
identificado como um personagem na história e todos os personagens são referidos
na terceira pessoa, pelo nome ou por “ele” ou “ela”. Os narradores em primeira
pessoa podem ser os principais protagonistas da história que contam; podem ser
participantes, personagens secundários na história; ou podem ser observadores da
história, cuja função não é agir, mas descrever as coisas para nós. Os observadores
em primeira pessoa podem ser plenamente desenvolvidos como indivíduos com um
nome, história e personalidade. (CULLER, 1999, p.88)

Assim, em “Nove Noites”, o narrador que se inclui na história, narrando-a na primeira


pessoa, têm sua personalidade construída e revelada ao leitor gradativamente. Ao longo da
narrativa, os leitores são convidados a desvendar e conhecer o narrador, movidos pelos
processos de identificação e pela descoberta do novo, sempre renovado pelo tom enigmático
que este recebe no decorrer do romance. Wellek e Warren nos dizem que: “o prazer que uma
obra literária instila no homem é composto por uma sensação de novidade e por uma sensação
de reconhecimento.” (WELLEK; WARREN, 1962, p.297)
O narrador de “Nove noites”, através de suas experiências e questionamentos,
gradativamente, vai se revelando. Prova disso é quando ele, ao relatar as suas recordações, já
aponta, na infância, para suas inquietações e sua vontade de entender o que parece
incognoscível. Segundo o narrador:
Dizem que hoje tudo mudou e que a região está irreconhecível. A floresta tropical
se transformou em campos de fazendas. A mata desapareceu, caiu e foi queimada,
mas na época impunha-se como uma ameaça aterrorizante, a ponto e ser difícil para
uma criança entender o que os homens podiam ter ido buscar naquele fim de
mundo. (CARVALHO, 2002, p.61)
38

Da infância à vida adulta, o narrador de “Nove Noites” manteve sua necessidade de


buscar a compreensão para aquilo que não entendia. Foi nessa busca que ele também incluiu,
na narrativa, a sua intenção de escrever um romance. Na página 75, temos a sua confissão de
querer escrever um romance a partir da obsessão pelo esclarecimento da morte de Buell
Quain. Segundo o narrador: “Àquela altura, eu já estava completamente obcecado, não
conseguia pensar em outra coisa. [...] Ninguém me perguntava a razão [de minha obsessão].
Eu dizia que queria escrever um romance.”(CARVALHO, 2002, p.75) Assim, o narrador
deixa entrever que busca o esclarecimento sobre a morte de Buell Quain, a fim de ter recursos
para escrever um romance.
Na escrita de um romance, o percurso realizado pelo narrador, no desvendamento do
enigma Buell Quain, se traduz pelo seu percurso na escalada da igreja de Carolina, quando
esteve nesta cidade em busca de esclarecimentos sobre a morte do antropólogo. O desejo e a
impossibilidade de conhecer a verdade sobre Quain, sua vida e sua morte, atravessam o
narrador, que tem suas forças abaladas pelos vários fragmentos residuais que encontra em
suas pesquisas. Na sua descrição temos:
Comecei a subir sem maiores problemas. Sempre senti uma certa aflição de altura,
que, no entanto, nunca tinha chegado a assumir contornos de fobia. Conforme eu
subia, notei que a espessura dos degraus de cimento ia diminuindo com a altura.
Um trabalho porco de alvenaria. A impressão era que no alto a escada fininha não
sustentaria mais o peso humano. Não havia corrimão, e eu comecei a me esgueirar
pelas paredes, suando já sem saber se de calor ou de medo. Evitava olhar para o vão
central e para baixo. De repente, levantar a perna para alcançar o degrau seguinte
passou a ser um esforço, e aos poucos eu me vi engatinhando pelo cimento
irregular. [...] Eu estava só. Não se ouvia nada além do vento. Nunca havia sofrido
de vertigem, e era como se agora tivesse pela primeira vez a consciência da minha
falta de controle sobre o meu corpo, como se uma força exterior à minha vontade
pudesse me atirar de uma hora para outra de lá de cima. Em algum lugar ao sul
daquela vastidão toda, estavam enterrados os restos de Buell Quain. (CARVALHO,
2002, p.78)

Assim como a igreja de Carolina em construção, a escrita de um romance, tanto no


que se refere à forma, quanto ao desenvolvimento de sua narrativa, pressupõe a utilização de
diferentes elementos e estratégias que fazem do texto uma produção literária. A literatura
possui um lexema acentuadamente polissêmico e histórico-cultural. Nesta perspectiva, a
literatura não é estática e hereditária. Ela envolve um processo dinâmico de produção de
novos conjuntos abertos de textos, provocando transformações literárias, subjetivas e sócio-
culturais na medida em que propicia novas leituras.
Frente à expansão do conceito de literatura em direção a campos antes tidos como não
literários, surgem as contribuições do formalismo russo, apontando o que é próprio da
literatura. Nesta direção, Compagnon comenta que
39

a linguagem cotidiana é mais denotativa, a linguagem literária é mais conotativa


(ambígua, expressiva, perlocutória, auto-referencial): [...] A linguagem cotidiana é
mais espontânea, a linguagem literária é mais sistemática (organizada, coerente,
densa, complexa). O uso cotidiano da linguagem é referencial e pragmático, o uso
literário da língua é imaginário e estético. A literatura explora sem fim prático o
material linguístico. Assim se enuncia a definição formalista de literatura. [...] Os
formalistas se opunham abertamente à definição de literatura como documento –
que a historiciza _, ou à sua definição através da função de representação (do real)
ou de expressão (do autor) – que a psicologiza – e acentuavam os aspectos da obra
literária considerados especificamente literários e distinguiam, assim, a linguagem
literária da linguagem não literária ou cotidiana. (COMPAGNON, 2001, p.41)

Numa aproximação do formalismo russo à concepção de imaginário radical, a


linguagem literária, de forma ambígua e expressiva, é organizada no âmbito do imaginário,
gerando fruição e estética. Afastando-se da documentação fatual que historiciza, da
psicologização do autor ou personagens e da representação do real, a narrativa literária torna-
se fluxo de criação, de releituras, de ficcionalização, de arranjos e desarranjos propiciadores
de outras e novas configurações textuais para a realidade. Nesse contexto pode ser incluída a
compreensão de literariedade da literatura, discutida pelo formalismo russo e comentada por
Culler da seguinte maneira:
Os formalistas russos dos primeiros anos do século XX salientaram que os críticos
deveriam se preocupar com a literariedade da literatura: as estratégias verbais que a
tornam literária, a colocação em primeiro plano da própria linguagem, e o
“estranhamento” da experiência que elas conseguem. Redirecionando a atenção dos
autores para os mecanismos verbais, eles afirmavam que “o mecanismo é o único
herói da literatura”. Ao invés de perguntar “o que diz o autor aqui?” deveríamos
perguntar algo como “que aventuras acontecem ao romance nesse livro [...]?”
(CULLER, 1999, p.118-119)

Ainda no que se refere à literariedade, Compagnon se questiona e se responde da


seguinte forma:
Qual é, entretanto, essa propriedade – essa essência – que torna literários os textos?
Os formalistas, segundo Viktor Chklovski, [...] (1917), tomavam como critério de
literariedade a desfamiliarização, ou o estranhamento (ostránerie): a literatura, ou a
arte em geral, renova a sensibilidade linguística dos leitores através de
procedimentos que desarranjam as formas habituais e automáticas da sua
percepção. (COMPAGNON, 2001, p.41)

A inversão da pergunta “o que diz o autor?” para “que aventuras acontecem ao


romance?”, nos leva a questionar “como o autor diz?” ou “como podemos pensar o
romance?”. Assim, aproximando-nos do questionamento proposto pela esquizoanálise, a
saber, “como acontece?”, formas habituais da percepção cedem lugar a outras manifestações
das sensações. Para a esquizoanálise, enquanto devir, o desejo se torna transformador da
particularidade subjetiva, assim como, da realidade objetiva e social. Segundo Guattari e
Rolnik,
40

o desejo permeia o campo social, tanto em práticas imediatas, quanto em projetos


muito ambiciosos. Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu
proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de
criar, vontade de amar, vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção
do mundo, outros sistemas de valores. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.215)

Sobre o fluxo ficcional enquanto devir, Kristeva acrescenta que “mergulhando na


língua, o texto é [...] o que ela tem de mais estranho: aquilo que a questiona, aquilo que a
transforma, aquilo que a descola de seu inconsciente e do automatismo de seu
desenvolvimento habitual.” (KRISTEVA, 1974, p.10-1)
Em “Nove Noites”, o narrador é um misto de enganos e entendimentos, revelações e
ocultamentos, fragmentos que imaginariamente possibilitam o conhecimento da sua
subjetividade, assim como, da morte e da vida de Buell Quain. Na perspectiva bakhtiniana,
“não há, dessa forma, no discurso, uma voz ‘confiável’ que possa interpretar e resolver a
ambiguidade da narrativa.” (BARROS, 1996, p. 40) Diante do ambíguo e inacabado, cartas
aparecem no romance “Nove Noites” promovendo costuras ficcionais como possibilidades,
interpretações e não verdades conclusivas.

2.2 As cartas e o romance

Diante do que até aqui foi exposto é possível considerar o romance “Nove Noites”
como uma narrativa cujas fronteiras territoriais e temporais são fluidas e a construção dos
personagens e do narrador é plural. Na tessitura do romance pela fluidez da produção
imaginária, a diversidade e pluralidade desta narrativa se organizam em torno, principalmente,
de cartas. O tom epistolar que identifica a gênese do romance, que permite a construção da
narrativa e que evoca um destinatário que está para chegar, também possibilita a cartografia
da narrativa.
Segundo Peters (2001), a troca de cartas evidencia uma espécie de diálogo por escrito
com a presença de locuções diretas e pessoais, quebrando formalidades e abrindo espaço para
o que Deleuze (1998) chamou de afetos e devires. Sobre os devires, Zourabichvili acrescenta
que “devir é o conteúdo próprio do desejo (máquinas desejantes ou agenciamentos): desejar é
passar por devires.” (ZOURABICHVILI, 2004, p.48) Assim, as cartas, ao quebrarem
formalidades impessoais, permitem aproximações afetivas e manifestações do desejo, o que,
para Guattari e Rolnik, “é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de
construção de algo.” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.216)
41

Ainda para Peters, “a cultura da correspondência tem uma longa tradição. Platão
transmitiu seus pensamentos por este meio, e o apóstolo Paulo escreveu suas epístolas aos
romanos a fim de divulgar a doutrina cristã.” (Peters, 2001, p.48) Cumpre ainda lembrar que a
gênese do gênero romance pode ser encontrada também na escrita de cartas. Recorrendo a
Wellek e Warren, temos que na “história do romance, [...] por trás da sua chegada à
maioridade, [...] encontram-se [...] a carta, o diário, o livro de viagens (ou a ‘viagem
imaginária’), as memórias, o ‘caráter’ do século XVII, o ensaio, bem como a comédia, a épica
e o romance.” (WELLEK; WARREN, 1962, p.299) Em “Nove Noites”, cartas, diário, livro
de viagem, viagens imaginárias e memórias compõem esse romance da mesma forma que o
precederam e, assim, participaram da construção e compreensão do que é esse gênero
literário. O fato é que através de cartas, o pensamento se movimenta, atravessando fronteiras
temporais e territoriais, se desterritorializando e encurtando distâncias para se reterritorializar.
Foucault, ao pensar a função do documento na reconstituição da história, nos fala de
rupturas e descontinuidades. Para Foucault,
desde que existe uma disciplina como a História, temo-nos servido de documentos,
interrogamo-los, interrogamo-nos a seu respeito; indagamos-lhes não apenas o que
eles queriam dizer, mas se eles diziam a verdade, e com que direito podiam prendê-
lo, se eram sinceros ou falsificadores, bem informados ou ignorantes, autênticos ou
alterados. Mas cada uma dessas questões e toda essa grande inquietude crítica
apontavam para um mesmo fim: reconstituir, a partir do que dizem estes
documentos – às vezes com meias-palavras –, o passado de onde emanam e que se
dilui, agora, bem distante deles; o documento sempre era tratado como a linguagem
de uma voz reduzida ao silêncio: seu rastro frágil mas, por sorte, decifrável. Ora,
por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se
concluiu, a história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como
sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é
seu valor expressivo, mas sim tratá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza,
recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é
pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades e descreve relações.
O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual
ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que
deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades,
conjuntos, séries, relações. É preciso desligar a história da imagem com que ela se
deleitou durante muito tempo e pela qual encontrava sua justificativa antropológica:
a de uma memória milenar e coletiva que se servia de documentos materiais para
reencontrar o frescor de suas lembranças; ela é o trabalho e a utilização de uma
materialidade documental [...] que apresenta sempre e em toda parte, em qualquer
sociedade, formas de permanências, quer espontâneas, quer organizadas. O
documento não é o feliz instrumento de uma história que seria em si mesmo, e de
pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, uma certa maneira de dar
status e elaboração à massa documental de que ela não se separa. (FOUCAULT,
1987 b, p. 7-8)

Assim, o documento, nos tempos atuais, ou seja, nos tempos hipermodernos, é


questionado na condição de ser a expressão viva da verdade em oposição à falsidade. Pela
impossibilidade de acesso irrestrito ao passado, enquanto recortes, fragmentos, meias-
42

palavras, os documentos organizam, desorganizam e reorganizam a história lida por


interpretações que não se fecham na certeza.
A concepção do documento como recorte da pluralidade interpretativa da história
também pode aparecer no romance como estratégia utilizada para a produção do discurso
ficcional. Assim, o documento pode aparecer tanto no texto historiográfico quanto no
romance. Contudo para Weinhardt,
as consequências não são exatamente as mesmas, ainda que nada impede que
coincidam em muitos aspectos. Quando apropriados pelo ficcionista, os
documentos perdem a função que tiveram em vista do interlocutor para o qual
foram produzidos, mas também não tem o mesmo uso que o historiador faz deles,
ainda que esse profissional os empregue recorrendo à imaginação ou aos recursos
de desmontagem propostos pelos defensores da história narrativa. (WEINHARDT,
1996, p.343)

No romance, os documentos não cumprem a função informativa, como acontece no


discurso histórico. Na ficção, os recortes documentais são escolhidos e organizados
textualmente, não pelo caráter informativo, mas, atendendo a dinâmica da narrativa,
considerando e caracterizando diferentes espaços, tempos e personagens. Na flexibilidade
interpretativa, o romance questiona o fato documentado na historiografia, na desilusão da
intenção de restauração do passado pelo acontecimento ocorrido. A ligação entre o documento
e sua ficcionalização fica sempre em aberto, demonstrando a diferença da apresentação do
documento pelo historiador e pelo ficcionista. Ainda, o documento, ficcionalizado no
romance, envolve não apenas a época que o produz, mas também, o tempo narrado.
Weinhardt, ao falar sobre a presença do documento na ficção contemporânea, diz que
na medida que considero o romance como espaço de confluência de diversas vozes,
que percebo o plurilinguismo como traço essencial do discurso romanesco, a voz
documental, ou melhor, as vozes documentais se individualizam em sua
caracterização, ao mesmo tempo que se modificam, na medida que entram na
orquestração representada pelo conjunto, permitindo atingir questões de caráter
socioideológicas. (WEINHARDT, 1996, p.346)

Os documentos, de forma cartográfica, representam espaços e distâncias múltiplas que


são índices, apresentam intenções e possibilidades de leituras que, no fluxo do imaginário,
dizem e fornecem materialidade à realidade fatual.
Cartas, também exercendo a função de mapas, são evocadas no romance “Nove
Noites” como possíveis interpretações presentes na multiplicidade de sentidos acerca do
enigma Quain. Na página 116, Manoel Perna, ao lembrar-se dos relatos que Quain lhe
confiava sobre suas viagens e experiências profissionais, diz que o antropólogo “aproveitava
os dias de folga para explorar as ilhas [do Pacífico], rascunhando mapas que mandava para
43

casa no lugar de cartas e que mostravam a sua posição no mundo.” (CARVALHO, 2002,
p.116)
Cartografar o romance “Nove Noites” é ampliar as suas leituras por movimentos de
afastamento e aproximações do fato da morte de Quain no desdobramento de sentidos sobre a
vida do antropólogo pelas possíveis conexões existentes entre diferentes textos, espaços,
temáticas, realidades, posicionamentos políticos, subjetividades, construções literárias,
ficções, linguagens e culturas. Cartografar o romance é também experimentá-lo no trabalho
com o conhecimento e as sensações que o permeiam, ampliando seus possíveis movimentos
territoriais. Cartografar o romance é se afastar da lógica aristotélica que “diz que o enredo é o
traço mais básico da narrativa, [...] que as boas histórias devem ter um começo, meio e fim e
que elas dão prazer por causa do ritmo de sua ordenação.” (CULLER, 1999, p.85)
A cartografia de um romance, através da possibilidade de cartografar territórios de
singularidades, é uma maneira de recusar todos os modos preestabelecidos de manipulação,
para construir modos de sensibilidade que produzam subjetividades em consonância com o
desejo. Pensar numa cartografia do romance é incluir a produção do romance e da literatura
dentre esses dispositivos de fuga dos estilos de produção preconcebidos como verdadeiros e
únicos. Segundo Bakhtin, “é justamente o caráter plurilíngue, e não a unidade de uma
linguagem comum normativa, que representa a base do estilo.” (BAKHTIN, 1993, p.113)
Portanto, cartografar um romance não se limita à representação do todo estático pelo mapa,
coincidindo, assim, com a ideia de cartografia pensada pelos geógrafos. Na opinião de Rolnik
(1989), a cartografia é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os
movimentos de transformação alteram as paisagens.
Em “Nove Noites”, a tentativa de evitar um inquérito sobre a morte de Buell Quain
causa aproximações que possibilitam sentidos para a história e para a vida do protagonista do
romance. Manoel Perna, dirigindo-se ao destinatário que ainda não chegou, diz que Quain
“foi chamado de infeliz e tresloucado em relatos que [ele] mesmo [teve] a infelicidade de
ajudar a redigir para evitar o inquérito.” (CARVALHO, 2002, p.08) Contudo, é na tentativa
de evitar a certeza sobre a morte de Quain através do referido inquérito que diferentes cartas
são evocadas, possibilitando a construção e o deslocamento da narrativa e a subjetivação do
antropólogo. Como possíveis pistas que, ao contrário de esclarecer totalmente a morte de
Buell, mantêm o enigma acerca do seu suicídio, as cartas possibilitam conexões e
desconexões que transcendem à linearidade espaço-temporal.
No que se refere às cartas através das quais se desenvolve a narrativa, num jogo de
ocultamento e revelações, o narrador nos diz:
44

Escrevi uma carta ao filho do fotógrafo, em Nova York, na tentativa de esclarecer a


relação entre o velho [fotógrafo] e Buell Quain, se é que havia alguma, porque em
momento nenhum deixei de desconfiar da possibilidade, ainda que pequena, de uma
confusão ou de um delírio da minha parte. Podia ter ouvido errado, os meses que
precederam a morte do meu pai foram especialmente tensos, e eu não andava com a
cabeça no lugar. Esperei em vão uma resposta. (CARVALHO, 2002, p.153)

Nessa citação, podemos perceber que a carta escrita pelo narrador e endereçada a
Schlomo Parsons, filho do fotógrafo Andrew Parsons que, na perspectiva desse narrador,
poderia ter conhecido Quain e assim aproximá-lo da verdade sobre a vida e a morte do
antropólogo, também o afasta do possível desvendamento do enigma Quain pelo uso da
conjunção subordinativa adverbial condicional, se, e pela confusão e delírio do próprio
narrador que esperou em vão uma resposta.
Segundo esse narrador, tendo suas iniciativas frustradas, o que o impedia de desvendar
o mistério que envolvia Buell Quain, restava-lhe apenas insistir no envio de cartas, mantendo
a esperança de alguma resposta. Sendo assim, o ele faz uma segunda tentativa de se
comunicar com Schlomo Parsons. Em suas palavras: “Quando esgotei todos os meios de
achar o que me faltava [...] decidi retomar a minha busca pelo filho do fotógrafo, dessa vez
pessoalmente. Cheguei a lhe escrever mais uma vez, perguntando se podia visitá-lo.”
(CARVALHO, 2002, p.156-7) Em busca do que lhe faltava, o narrador recorre, novamente, à
carta na esperança de uma resposta. Contudo, desta vez, a carta fazia apelo à possibilidade de
um encontro real. Afinal, ele diz que “precisava ver um rosto. [...] Precisava de um rosto real
[...] que [o] impedisse de continuar à deriva naquele limbo”. (CARVALHO, 2002, p.157-8)
Contudo, mais uma vez, o narrador se viu frustrado, pois, segundo o filho do
fotógrafo:
Nunca tinha ouvido falar de nenhum etnólogo, não fazia a menor ideia de quem
podia ser Buell Quain, e portanto não podia ajudar na [...] pesquisa [do narrador].
Não tinha nenhum documento que [o] interessasse. Não tinha mais nada a dizer e
pedia que [o narrador implícito] não mais o procurasse. (CARVALHO, 2002,
p.157)

As cartas presentes em “Nove Noites”, recebendo um tom literário, possibilitam ao


leitor desvendamentos sempre parciais do enigma da morte de Buell, apontando para a
impossibilidade da palavra tudo dizer. No romance de Carvalho, diferentes discursos
característicos dos personagens são orquestrados pelo narrador, em suas manifestações
textuais através de cartas. As cartas bordejam o enigma Quain, dele falam, mas não o
desvendam. Assim, às sete cartas, deixadas por Buell Quain antes de sua morte e elencadas
pelo narrador, foi acrescentada e hipotetizada uma oitava carta, mantendo o tom lacunar e
enigmático da narrativa.
45

Na busca de sentido para a morte de Quain, o narrador acalentava “a suposição de que


devia haver (ou ter havido) uma oitava carta.” (CARVALHO, 2002, p.114) Na sua
perspectiva: “Tinha que haver uma carta em que [Quain] revelasse os seus desejos e
sentimentos.” (CARVALHO, 2002, p.27) Isto deve-se ao fato dele conhecer o conteúdo de
quatro destas cartas, endereçadas a Ruth Benedict, a Heloísa Torres, a Manoel Perna e a
Ângelo Sampaio, que tinham a intenção de “isentar os índios de qualquer culpa [e] constituir
seus executores testamentários e instruí-los sobre a disposição de seus bens”(CARVALHO,
2002, p.16), sendo, portanto, insuficientes para esclarecer os motivos do suicídio do
antropólogo.
Segundo o narrador, essas cartas são “cartas em que [Quain] dá instruções aos vivos
sobre como proceder depois da sua morte” (CARVALHO, 2002, p.16), já que “boa parte das
cartas deixadas pelo morto não trata de outra coisa.” (CARVALHO, 2002, p.35) Este mesmo
narrador também supunha que as outras três cartas restantes, “as que não [conseguiu]
encontrar” (CARVALHO, 2002, p.16), endereçadas ao pai Eric Quain, ao reverendo Thomas
Young e ao cunhado Charles Kaiser, também não eram suficientes para a compreensão da
morte de Buell, embora seja “muito possível que [Quain] não tenha deixado [nestas cartas]
apenas instruções.” (CARVALHO, 2002, p.16) Assim, o narrador, pesquisador da morte de
Quain, levanta a hipótese da existência de uma oitava carta que reforça o enigma presente no
desenvolvimento da narrativa. Para que essa oitava carta pudesse existir, mesmo hipotetizada,
o narrador, desconhecedor do assunto nela tratado, o que poderia desvendar os reais motivos
da morte de Quain, dá voz a Manoel Perna, que tendo recebido a possível oitava carta,
certifica-se da sua existência.
Contudo, o tom enigmático que sustenta “Nove Noites” se mantém. Manoel Perna,
mesmo possuidor da referida carta, não pode saber do seu conteúdo, apenas imaginando-o.
Essa carta, escrita em inglês, foi guardada por Manoel Perna que, “desconfiado, já que não
podia compreender o que ali estava escrito – embora suspeitasse – [não poderia] correr o risco
de pedir ao professor Pessoa que [lhe] traduzisse aquelas linhas” (CARVALHO, 2002, p.12),
por não “confiar nas traduções [deste] professor”. (CARVALHO, 2002, p.11) Num contexto
de desconfiança, Manoel Perna guarda essa carta, hipotetizada pelo narrador, para entregá-la a
um destinatário que está para chegar, destinatário este que também desconhecemos ao longo
da narrativa e que, gradativamente, vai-se revelando como Andrew Parsons, um fotógrafo
norte-americano que o narrador conheceu no Brasil e que faleceu no hospital onde o pai desse
narrador estava internado. Manoel Perna, ao se dirigir a este destinatário, mantém o mistério
46

sobre a morte de Quain ao dizer que “da sua carta, todavia, ninguém nunca soube nada.”
(CARVALHO, 2002, p.25)
Também o narrador, em conversa telefônica com Raimunda Perna sobre a morte de
Quain e obtendo informações sempre insuficientes para o entendimento desse enigma,
imagina esta oitava carta porque Manoel Perna não tinha deixado um testamento que poderia
ser esclarecedor do fato. “Manoel Perna não deixou nenhum testamento, e eu imaginei a
oitava carta.” (CARVALHO, 2002, p.135) Contudo, Manoel Perna, ao se dirigir ao
destinatário que está por chegar, diz que: “deixo este testamento para quando você vier e
deparar com a incerteza mais absoluta.” (CARVALHO, 2002, p.08) Esse possível testamento
ou não existiu ou existiu como incerteza absoluta.
Junto a essa suposta oitava carta existe também um possível diário, alimentando a
esperança do narrador em desvendar o enigma sobre a morte do antropólogo. Segundo o
narrador,
tudo o que eu precisava era do teor de uma suposta oitava carta, além das que o
etnólogo enviara ao pai, a um missionário e ao cunhado antes de morrer (por que
não teria escrito antes à irmã? Ou teria escrito uma oitava carta à irmã?), e de um
eventual diário que, segundo a mãe, ele sempre mantinha. A oitava carta e o diário
explicariam tudo. (CARVALHO, 2002, p.153-4)

Entretanto, nem esta oitava carta nem o eventual diário aparecem na obra de Bernardo
Carvalho e, sendo imaginação ou não, participam das ambiguidades que estão presentes em
toda a obra, sustentando o inexplicável da morte e o incompreensível do suicídio numa
tonalidade de inquérito que assusta, angustia e justifica a existência de um segredo que não
pode ser conhecido. Recorrendo à obra de Bernardo Carvalho, “Ninguém nunca me
perguntou, e por isso também não precisei responder. Todo mundo quer saber o que sabem os
suicidas.” (CARVALHO, 2002, p.27)
Frente ao inexplicável da morte e à incompletude do conhecimento, a palavra escrita
pode ser uma tentativa de sustentar o sujeito no seu processo de singularização. No contexto
das cartas que permitem o desenvolvimento da narrativa, também encontramos uma carta
enigmática escrita por dona Heloísa a Quain que, “a pretexto de lhe propor um futuro
emprego de professor no Museu Nacional” (CARVALHO, 2002, p.119), inicia-se com uma
curiosa pergunta sobre o que levou Quain “a rasgar a última parte da sua carta.”
(CARVALHO, 2002, p.119) Há também a existência de uma carta escrita por Buell a
Margaret Mead que foi “abruptamente interrompida [e] que não foi enviada” (CARVALHO,
2002, p.120), mantendo o tom enigmático do romance.
47

Traços, marcas, cartas, fatos e fotografias são elementos que compõem a narrativa
organizada pela lei advinda da linguagem que, através daquilo que sempre escapa, possibilita
a construção de sentidos. Assim, “Nove Noites” não apresenta capítulos definidos, embora
tenha diferentes partes definidas por numeração e pelo uso ou não do itálico que demarca dois
tempos na narrativa: o apresentado por Manoel Perna que foi amigo e conviveu com Quain
(itálico) e o do narrador que, muitas gerações depois da morte de Buell, retomou o enigma de
sua morte na tentativa de desvendá-lo (sem o uso do itálico). Os dois tempos presentes no
romance também indicam o tempo do acontecimento e o tempo da narrativa.
“Nove Noites” continua sendo uma história contada esperando um fim que não se
totaliza numa certeza. Afinal, “cada um lê os poemas como pode e neles entende o que quer,
aplica o sentido dos versos à sua própria experiência acumulada até o momento em que os lê.”
(CARVALHO, 2002, p.114) Nesse romance, encontram-se significantes que se repetem, se
desdobram e transbordam em múltiplos sentidos pelos quais a morte de Quain, transformada
em enigma, pode ser transmitida pela dimensão imaginária da linguagem. Assim, “o texto
atinge à força de trabalhar o significante: a imagem sonora que Saussure vê envolver o
sentido, um significante que devemos pensar aqui, também, no sentido que lhe deu a análise
lacaniana.” (KRISTEVA, 1974, p.11) Para Lacan, a função significante é aquela “de nada de
particularmente significado. Ou seja, o trabalho imposto à criação [...] só faz evidenciar o
vazio.” (GUARDADO, 1989, p. 47) Na direção do vazio, nada de particularmente
significado, Kristeva busca recursos para afirmar que no texto “o sujeito é aniquilado: aí se
efetua a estrutura do autor enquanto anonimato que cria e se vê criar, enquanto eu e enquanto
outro, enquanto homem e enquanto máscara.” (KRISTEVA, 1974, p. 77-8)
Repleta de perícias, a linguagem em “Nove Noites” possibilita diversas conjecturas.
Sendo assim, o pedido de Quain que Heloísa Alberto Torres e Ruth Benedict esterilizem as
cartas por ele enviadas, talvez possa significar o seu conteúdo estéril por, em verdade, nada
dizerem. Esta é uma conjectura que se acrescenta a tantas outras apresentadas pelo narrador e
personagens no decorrer do romance. Frente à impossibilidade da palavra se esgotar numa só
significação no desenrolar da produção imaginária, o narrador polissêmico e polifônico torna-
se também apenas possibilidade de conjecturar acerca do enigma aqui apresentado pela morte
de Buell Quain.

2.3 Os fatos, as fotos e a palavra


48

O romance de Bernardo Carvalho é tecido por conexões e desconexões que envolvem


elementos extraídos da realidade e ficcionalizados na narrativa. As associações que se
expandem a partir do fato da morte do antropólogo possibilitam ao leitor mergulhar nos
diferentes desdobramentos do romance. O leitor se envolve com o fato da morte de Buell
Quain, o que junto a outros dados fatuais organizados pelo narrador, se manifesta por palavras
e fotografias que o inquietam e o convidam ir além da fatualidade do acontecido. Para
Deleuze,
acreditar no mundo é o que mais nos falta: nós perdemos completamente o mundo,
nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar
acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. [...] é ao nível de cada
tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a
um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE, 1992,
p.218)

Em “Nove Noites”, os fatos acontecem como imagens ficcionalizadas. Não podemos,


contudo, nos esquecer de que “toda imagem é linguagem, [e que ela] se faz em função de
processos de modelagem, que constituem mundos possíveis.” (PARENTE, 1999, p.14)
Sobre o que é fatual, Deleuze propõe que “o acontecimento é sempre produzido por
corpos que se entrechocam, se cortam ou se penetram, a carne e a espada; mas tal efeito não é
da ordem dos corpos, batalha impassível, incorporal, impenetrável que domina sua
efetuação”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p.78) Sendo assim, o fato registrado pela imagem
fotográfica ou pela palavra acontece através do confronto entre corpos. O fato é efeito de um
combate, o que transcende o que é corporal.
É importante salientar que, no pensamento deleuziano, corpos não se restringem ao
sentido biológico. Corpos “podem ser físicos, biológicos, sociais, verbais”. (DELEUZE;
PARNET, 1998, p.66) Ainda para Deleuze, tendo como seu intercessor Espinosa (1632-
1677), corpos são afetos e devires. Portanto, falar do corpo como ampliação de territórios e
diluição de fronteiras nos remete à potência do devir. Na perspectiva de Deleuze e Parnet, “os
devires são o mais imperceptível, são atos que só podem estar contidos em uma vida e
expressos em um estilo.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.11)
Em um contexto de devires, a narrativa em “Nove Noites” organiza-se pelos espaços
existentes entre o texto jornalístico, o texto fotográfico e o texto literário, em que diferentes
“acontecimentos [são] configurados [...] para realçar o significado e a organização do
enredo.” (CULLER, 1999, p.87) Assim, o narrador torna-se experiência e o que escapa ao
experimentado.
49

O relato do narrador sobre a sua experiência junto ao pai doente e internado num dado
hospital, onde e quando aquele encontrou o paciente norte-americano que conhecera Buell
Quain. Nesse relato, o narrador não só diz da sua vivência, mas também do que dela escapa
apontando para a dimensão dos sonhos. Frente às palavras do rapaz, que lia para o paciente
americano, acerca da espera deste paciente por alguém que estaria por chegar, o narrador
reconhece que demorou “para entender que aquelas palavras não faziam parte do [seu]
sonho.” (CARVALHO, 2002, p.145) No relato do narrador sobre suas conversas com este
rapaz, certezas advindas daquilo que escutou apontam para a dimensão ficcional do seu
discurso e, por não fazerem parte de seu sonho, lhe incentivam na busca do que escapa e que
continua incognoscível. Deleuze e Guattari afirmam que “não se tem mais uma tripartição
entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representação, o livro, e um campo de
subjetividade, o autor.” (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p.34)
Nas páginas 150 e 151, o narrador, ao relatar a sua descoberta sobre quem era “o velho
americano que morrera no leito de hospital ao lado do [seu] pai” (CARVALHO, 2002, p.150-
1) busca também, com precisão, identificá-lo pelo nome, profissão, procedência, datas e fotos.
Vejamos:
Era fotógrafo, chamava-se Andrew Parsons e tinha vindo para o Brasil
provavelmente antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, por volta de 1940.
Nunca mais voltou para a casa. Em mais de uma ocasião o velho havia lhe
mostrado fotos antigas, dos anos 30 e 40, de uma praia perto de Nova York e uma
tribo de índios, provavelmente no interior do Brasil. (CARVALHO, 2002, p.151)

Numa costura ficcional de elementos fatuais, os limites existentes entre a ficção e a


realidade tornam-se tênues quando o fato delimitado por datas, acontecimentos históricos e
fotos se dilui nos infinitos graus de liberdade que a palavra nos possibilita, assim como, os
fragmentos da realidade encontrados no romance se dispersam na descontinuidade do
discurso. Na perspectiva de Culler,
há duas maneiras de pensar o enredo. De um ângulo o enredo é o modo de dar
forma aos acontecimentos para transformá-los em uma historia genuína: os
escritores e os leitores configuram os acontecimentos num enredo, em suas
tentativas de buscar o sentido das coisas. De um outro ângulo, o enredo é o que é
configurado pelas narrativas. [...] Desse ângulo, o enredo ou história é o dado e o
discurso são as apresentações variadas dele. (CULLER, 1999, p.87)

Em “Nove Noites” podemos encontrar essas duas maneiras de pensar o seu enredo.
Dando forma aos acontecimentos para transformá-los em história, o narrador torna-se
pesquisador da vida e da morte do antropólogo Buell Quain, apresentando os fatos através dos
mais variados discursos. Para Bakhtin,
o prosador-romancista [...] acolhe em sua obra as diferentes falas e as diferentes
linguagens da língua literária e extraliterária, sem que esta venha a ser enfraquecida
50

e contribuindo até mesmo para que se torne mais profunda. [...] Nesta estratificação
da linguagem, na sua diversidade de línguas e mesmo na sua diversidade de vozes,
[o romancista] também constrói o seu estilo, mantendo a unidade de sua
personalidade de criador e a unidade do seu estilo. (BAKHTIN, 1993, p.104)

Na narrativa aqui estudada, compondo sua polifonia e pluridiscursividade, encontram-


se fotografias, retratos, filme, desenho e mapas entremeados com os discursos jornalístico,
histórico, científico e antropológico, organizados pelo narrador na composição do romance.

2.3.1 Fotografias, fotos e retratos

Na ficcionalização da realidade e na realização da ficção, o texto de Bernardo


Carvalho, escrito em interação com diferentes vozes, também recorre às imagens fotográficas
como marcas visuais. Em dois momentos da narrativa, aparecem três fotografias. Duas delas
encontram-se na página 26, apenas sendo legendadas na parte 15, página 117, da seguinte
forma:
Em outubro de 1939, aos sessenta e cinco anos, Fannie Quain mandou três fotos do
filho para Heloísa Alberto Torres. A maior delas tinha sido feita num estúdio de
Minneapolis, em 1935, antes de [Quain] ir para Fiji. Os outros dois retratos, um de
perfil e o outro de frente, foram tirados em 1937, quando Buell Quain estava
trabalhando no seu apartamento, em Nova York, provavelmente nos últimos
retoques dos dois livros sobre Fiji que seriam publicados após a morte dele, graças
aos esforços de sua mãe e de Ruth Benedict. (CARVALHO, 2002, p.117)

Pela descrição dessas duas últimas fotos, trata-se dos retratos apresentados na página
26, os quais continuam sendo explicados no final da parte 14, também na página 117, logo
acima da citação apresentada anteriormente. Perna, ao falar sobre o homem que fotografou
Quain numa ilha onde o antropólogo se encontrava junto com amigos, relata que
por muito tempo o estranho não conseguiria tirar outra foto [de Quain]. Até
irromper um dia em seu apartamento, sem avisar, decidido a fotografá-lo de
qualquer jeito, depois de ter sabido que ele estava de partida para o Brasil. Queria
uma lembrança do amigo antes de embarcar para a selva da América do Sul.
(CARVALHO, 2002, p.117)

Percebe-se, então, que entre a foto e o texto se incluem legendas explicativas que
impossibilitam qualquer fusão entre o fato e a ficção. Sem seguir uma linearidade na
exposição dessas fotos, suas legendas e explicações, o narrador lida com o descompasso
presente entre o experimentado e o deduzido, entre a realidade e o romance.
Outra fotografia apresentada na página 31 vem logo em seguida à pergunta: “O que
Buell Quain queria tanto esconder?” (CARVALHO, 2002, p.30) Na retomada do enigma, ela
parece vir como uma possível explicação à pergunta levantada. Contudo, aquilo que a
fotografia não consegue responder e que lhe escapa nas suas limitações, evoca a palavra com
51

sua multiplicidade semântica e interpretativa como possibilidade de esclarecimento e de


ocultação, como resposta e ao mesmo tempo pergunta. Assim, abaixo dessa foto tem-se o
seguinte texto construído pelo narrador:
Há uma foto, de 1939, em que dona Heloísa aparece sentada no centro de um banco
nos jardins do Museu Nacional, entre Charles Wagley, Raimundo Lopes e Edson
Carneiro, à sua direita, e Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes e Luiz de Castro Faria,
à sua esquerda. Hoje, estão todos mortos, à exceção de Castro Faria e Lévi-Strauss.
Mas havia já naquele tempo uma ausência na foto, que só notei depois de começar a
minha investigação sobre Buell Quain. Àquela altura, ele ainda estava vivo e entre
os Krahô, e a imagem não deixa de ser, de certa forma, um retrato dele, pela
ausência. Há em toda fotografia um elemento fantasmagórico. Mas ali isso é ainda
mais assombroso. Todos os fotografados conheceram Buell Quain, e pelo menos
três deles levaram para o túmulo coisas que eu nunca poderei saber. Na minha
obsessão, cheguei a me flagrar várias vezes com a foto na mão, intrigado, vidrado,
tentando em vão arrancar uma resposta dos olhos de Wagley, de dona Heloísa ou de
Ruth Landes. (CARVALHO, 2002, p.31-2)

Nesse texto se evidencia a colocação do enigma, a presença de alguns de seus


elementos esclarecedores e a impossibilidade de explicação para a pergunta levantada.
Contudo, o que é mais assombroso e enigmático encontra-se após o término da narrativa e
depois dos agradecimentos. Nos créditos das fotos, tem-se: “página 31: Buell Quain com
Lévi-Strauss e Heloísa Alberto Torres, entre outros, no jardim do Museu Nacional, acervo da
Seção de Arquivos do Museu Nacional/UFRJ” (CARVALHO, 2002, p.171) Nessa fotografia
aparecem sete pessoas, todas nomeadas no texto das páginas 31 e 32, evidenciando-se a
ausência de Quain. Já nos créditos das fotos na página 171, Quain é nomeado e incluído na
fotografia. Então, de quem é a ausência? Quem ou o que falta?
A partir de uma ausência, as palavras presentes na narrativa se desdobram como
significantes e como significação. Assim, na construção do romance de Bernardo Carvalho,
quando a imagem fotográfica se torna palavra escrita e inscrita no texto narrativo, fotografia e
foto diferenciam-se de retrato. Em distintos momentos do romance, aparece ora a palavra
fotografia/foto, ora a palavra retrato. Exemplo disso encontra-se na página 11, em que temos
num mesmo momento narrado por Manoel Perna, as três palavras: fotografia, foto e retrato.
Assim temos:
Uma comitiva de vinte índios entrou na cidade no final da tarde. Traziam a triste
notícia e, na bagagem, os objetos de uso pessoal do dr. Buell, que eu mesmo recebi
e contei, com lágrimas nos olhos: dois livros de música, uma Bíblia, um par de
sapatos, um par de chinelos, três pijamas, seis camisas, duas gravatas, uma capa
preta, uma toalha, quatro lenços, dois pares de meias, um suspensório, dois ternos
de brim, dois ternos de casimira, duas cuecas e um envelope com fotografias. O seu
retrato não estava entre elas. Havia a foto de uma casa de madeira na praia; havia os
retratos dos negros do Pacifico Sul; que lhe contaram lendas e canções; havia
retratos dos Trumai do alto Xingu, mas não havia nenhuma foto de família, nem do
pai, nem da mãe, nem da irmã, nem de nenhuma mulher. É possível que tivesse
queimado esses retratos junto com as outras cartas que recebera antes de se matar.
(CARVALHO, 2002, p.11-2)
52

Na citação acima, dois aspectos merecem destaque. O primeiro diz respeito à


ambiguidade existente na expressão “seu retrato”. Afinal, retrato de quem? De Buell ou do
destinatário a quem Manoel Perna se dirige? A utilização do pronome possessivo seu é
recorrente na narrativa. Tal fato faz parte das estratégias de linguagem presentes na obra de
Bernardo Carvalho, mantendo um tom desidentitário e com isso sustentando duplicidades,
ambiguidades, incertezas e dúvidas.
O segundo aspecto a ser ressaltado se refere às maneiras pelas quais as palavras foto,
fotografia e retrato são utilizadas ambiguamente na sustentação e busca da compreensão do
enigma Quain. Através das diferenças semânticas existentes entre essas palavras, a narrativa
vai-se construindo a partir da construção/desconstrução do enigma que envolve a vida e a
morte do antropólogo.
Assim, fotografia nos diz do processo de fixar imagens; escrever por imagens;
reproduzir fielmente; descrever minuciosamente e com exatidão. Um envelope com
fotografias poderia ser a prova mais contundente sobre o enigma Quain. Contudo, dentro de
tal envelope havia apenas fotos e retratos.
Abreviando a palavra fotografia, foto reduz a certeza evocada pela fotografia,
tornando-a breve, uma precipitação ou antecipação, mas não uma verdade. A foto da casa de
madeira na praia é apenas índice e não certeza sobre o enigma Quain. A inexistência de fotos
do pai, da mãe, da irmã ou de uma mulher coloca o enigma e o estranho no lugar do familiar.
Para acentuar o tom enigmático, o seu retrato não estava entre as fotografias. O signo
retrato remete à imagem que se obtém por fotografia; semelhança entre duas pessoas; modelo,
exemplo; descrição, como também, possibilidade de retratação. O seu retrato, os dos negros
do Pacífico Sul, dos Trumai do alto Xingu e aqueles que provavelmente foram queimados,
enquanto imagens, possibilitam especularidades descritas, construídas e reproduzidas pela
semelhança com modelos, mas que também desdizem, confessam e desmentem o que foi
afirmado ou hipotetizado.
Na perspectiva de Bakhtin, Barros comenta que é possível distinguir
dois tipos de ambiguidade do texto, a ambiguidade discursiva (que se pode
comparar com a ambiguidade linguística textual) e a ambiguidade narrativa (que se
pode aproximar da ambiguidade linguística sintática). Os discursos ambíguos são
aqueles que admitem várias leituras semânticas, graças aos percursos temático-
figurativos que nele se desenvolvem. Já [...] [nos] efeitos de ambiguidade narrativa
[...] pode-se perceber que, da mesma forma que a ambiguidade sintática dos
enunciados decorre de transformações que apagam, no nível de superfície, as
diferenças constituídas na estrutura profunda, são os procedimentos discursivos
mais superficiais que fazem de duas ou mais organizações narrativas um único
discurso. (BARROS, 1996, p.39-40)
53

Assim, enquanto a expressão “seu retrato” se refere à ambiguidade narrativa, os


termos foto, fotografia e retrato são usados na sustentação da ambiguidade discursiva.
Contudo, no campo da linguagem, em especial na produção literária, fotografia, foto e retrato
podem também ser pensados como mimesis. Segundo Lima,
mimesis não é imitação no sentido de cópia fotográfica, seu valor grego não tem
exata correspondência em nossas línguas, mas, apesar de tudo, ela se assemelha a
uma imitação. Em suma, mimesis remete à ideia de verossimilhança. Falando mais
livremente, supõe-se haver uma homogeneidade entre o representado (o referente) e
o representante (o objeto da mimesis), cabendo ao artista corrigir, ajustar, modificar
relativamente a fonte representada, sem, no entanto, mudá-la de tal maneira que se
tornasse naturalisticamente irreconhecível. (LIMA, 1981, p.226)

Lima, ainda, acrescenta que


a mimesis supõe em ação o distanciamento pragmático de si e a identificação com a
alteridade captada nesta distância. Identificação e distância, identificação a partir da
própria distância constituem pois os termos básicos e contraditórios do fenômeno
mimesis. [...] Representação de representações, a mimesis supõe entre estas e sua
cena própria uma distância que torna aquelas passíveis de serem apreciadas,
conhecidas e/ou questionadas. Essa distância, pois, ao mesmo tempo que
impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se sobre ele,
experimentar-se a si próprio nele. (LIMA, 1981, p.230-1)

Em “Nove Noites”, a presença de fotografias, muitas vezes reduzida à condição de


foto, como forma de retratar a realidade Buell Quain e seu contexto, aproxima-se da mimesis
por se afastar da cópia fiel e nos conduzir à verossimilhança. No que diz respeito à
verossimilhança, Kristeva comenta que:
O verossímil, sem ser o verdadeiro, seria o discurso semelhante ao real. Um “real”
alterado, que chega a perder o primeiro grau de semelhança (discurso-real), para se
representar apenas no segundo (discurso-discurso). [...] O sentido do verossímil não
mais tem objeto fora do discurso, a conexão objeto-linguagem não se lhe refere, a
problemática do verdadeiro e do falso não lhe compete. [...] Para o verossímil, não
precisa ser verdadeiro para ser autêntico. [...] Ser verossímil nada mais é que ter um
sentido. Ora, sendo o sentido [...] um efeito interdiscursivo, o efeito verossímil é
uma questão de relação de discursos. (KRISTEVA, 1974, p.128-9)

Como podemos observar na citação acima, o verossímil, enquanto, um discurso do


discurso, afasta o texto da díade verdadeiro-falso e das pretensões de ser julgado por suas
semelhanças e diferenças em relação a um pretenso modelo, tido verdadeiro. “Noutras
palavras, o critério de verdadeiro/falso não se aplica ao texto literário em si.” (LIMA, 1975,
p.15)
Ainda sobre a verossimilhança, Weinhardt, comentando Jitrik, “destaca alguns
comportamentos da ficção contemporânea, classificando-os como intraliterários, a saber: a
proliferação das possibilidades narrativas; a penetração da linguagem da poesia na narrativa; a
derrocada de conceitos tradicionais de verossimilhança e de linearidade.” (WEINHARDT,
54

1996, p.348) Assim, na hipermodernidade, a verossimilhança associa-se à pluralidade de


estratégias e discursos que compõem o romance.
No romance, o narrador apresenta, na construção ficcional, elementos da realidade,
dentre os quais se incluem as fotografias, corrigindo, ajustando e modificando o fatual na
produção do verossímil. Entre a imagem fotográfica e a palavra escrita emerge, no contexto
da verossimilhança, enigmas que abrem espaços para diferentes interpretações. Nas
fotografias, a pretensão de retratar e de retratação da realidade possibilita a construção das
subjetividades presentes em “Nove Noites” pela distância existente entre elas e a realidade.
Assim, o sujeito se lança no mundo, o experimenta mais do que o conhece. Na opinião de
Iser, “a significação da obra, então, não se encontra no significado selado dentro do texto, mas
no fato de que este significado revela o que estivera selado dentro de nós.” (ISER, 1978,
p.157)
Merquior, ao comentar a produção de imagens e a composição do que chamou
alegoria pregnante, reúne a discussão feita por Benjamin sobre a alegoria com a reflexão
realizada por Auerbach sobre o conceito de figura. Para Merquior, a alegoria pregnante recebe
a forma da figura que consiste na “alegoria histórico-sensível, concreta, em oposição às
alegorias abstratas.” (MERQUIOR, 1969, p.108) Assim, em busca do que se aproxima da
realidade fatual, o narrador de “Nove Noites” traz em seus discursos fotografias, fotos e
retratos na reconstituição da história de Quain que, na sua opinião, pode lhe ajudar a fugir
“não só de um fantasma pessoal, mas de alguma coisa objetiva e concreta.” (CARVALHO,
2002 p.113) É esse mesmo narrador que ainda afirma, conforme já mencionado
anteriormente, a sua necessidade de “ver um rosto, nem que fosse antídoto à [sua] obsessão
sem fundo e sem fim.”(CARVALHO, 2002, p.157)
Ainda sobre fotografias e retratos, no relato de Manoel Perna nas páginas 116 e 117,
acerca da viagem de Quain para uma ilha, este nos diz que numa
tarde em que, voltando de uma caminhada solitária na praia, [...] [Quain] deparou
com a casa excepcionalmente vazia e um homem sentado na cozinha. E que, antes
de poder se apresentar, o estranho, saindo da sombra, sacou de uma máquina
fotográfica e registrou para sempre o espanto e o desconforto do antropólogo
recém-chegado de um passeio na praia, surpreendido pelo desconhecido. [...] Buell
confessou que viera ao Brasil com a missão de contrariar a imagem revelada
naquele retrato. (CARVALHO, 2002, p.116-7)

Possíveis relações estabelecidas entre a ilha na qual se encontrava Buell Quain e o


Brasil, caso existam, não são explicitadas, no máximo estão indicadas nesse trecho da
narrativa. Contudo, a intenção de retratação do antropólogo no que se refere ao seu espanto e
desconforto, pode ser claramente percebida na citação acima. Assim, onde a fotografia
55

condensa, a foto reduz e o retrato falha; o narrador, pela palavra, amplia pela diferença a
inexatidão do fato.

2.3.2 Imagem cinematográfica, desenho e mapas

A precisão imprecisa da fotografia faz com que o narrador também recorra à imagem
cinematográfica e ao desenho no romance. Afinal, “toda imagem [é] [...] uma forma de
escrita. Ela ensina a ler em seus traços a confissão de sua falsidade, confissão essa que a priva
de seu poder e o transfere para a verdade. Desse modo, a linguagem torna-se mais que um
sistema de signos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.36)
Manoel Perna, na parte 8, ao falar das nove noites que passou na companhia de Quain,
em especial a primeira noite, diz da sua impossibilidade de acessar a realidade narrada pelo
antropólogo através de suas palavras. Nas palavras de Perna, ao se referir ao relato de Quain
na primeira noite em que estiveram juntos:
[...] falou dos Trumai, e eu os imaginei. Tudo o que ele contou daí em diante eu
procurei imaginar. [...] O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou
e da minha imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu
sonho e o seu pesadelo. O paraíso e o inferno. (CARVALHO, 2002, p.46-7)

A incapacidade de Perna para entender Quain introduziu neste momento da narrativa o


apelo ao cinema para a compreensão da personalidade, identidade e do destino do
antropólogo. Ainda na primeira noite, Quain relata a Perna uma passagem de sua história que
incluía uma experiência com o cinema.
Em março de 1931, depois de passar pelos primeiros exames, e para comemorar o
final do semestre, [Quain] pegou um ônibus com alguns colegas até Chicago, onde
beberam até cair e foram ao cinema. Como uma palavra de Deus, ele não podia
esperar por aquilo. E até a noite em que me contou ainda não sabia o quanto havia
do efeito da bebida no que viu. Na escuridão da sala de cinema, a luz de prata se
acendeu na tela e uma vida impensada se descortinou diante dele, uma nova
possibilidade e uma saída, como se um caminho inexplorado se abrisse à sua frente.
Não fazia ideia do filme a que assistiria quando entrou no cinema, assim como não
fazia ideia do destino que ali lhe era apresentado. Assistiu vidrado a uma história de
amor no Pacífico Sul. A um amor proibido pelas leis de uma sociedade de nativos.
Um amor condenado pelos deuses. Um tabu. Até a noite em que me contou suas
lembranças, não sabia o quanto havia do efeito daquele amor proibido na própria
vocação. (CARVALHO, 2002, p.47)

Sem a certeza de seu destino, Quain, mergulhado na escuridão da não compreensão, vê


na imagem cinematográfica a luz que poderia apontar-lhe caminhos, sem que, contudo, esses
caminhos se traduzissem como verdades. A interpretação cinematográfica da vida e do
destino do antropólogo, pela via de uma lei e de uma proibição inscritas na linguagem, já que
a palavra não dá conta de tudo, aponta para uma vocação, uma tendência, um chamado àquilo
56

que não se conhece com certeza. Assim, tanto as palavras de Quain, quanto as imagens
cinematográficas, eram índices, imprecisões, as quais impossibilitavam Perna de ver o que o
antropólogo tinha visto. Nas palavras de Manoel Perna:
O sonho é um ponto de vista. É um lugar de onde se vê. Mas por mais que [Quain]
me falasse de Fiji e de Vanua Levu, a sua ilha no Pacífico Sul, eu não conseguia
ver. [...] Eu não conseguia imaginar. [...] Para me ajudar a ver, quando voltou a
Carolina em maio, trouxe uma fotografia e um desenho que havia feito de próprio
punho. (CARVALHO, 2002, p.48-9)

No campo da linguagem, assim como a fotografia, a foto e o retrato; o cinema e o


desenho que se limitam pela imagem que condensa o fato numa só explicação, são ampliados
pela palavra em diferentes interpretações. Essa estratégia literária de construção da narrativa
torna-se, portanto, possibilidade de registro do que pode ser contado oralmente ou por escrito,
ampliando os diferentes graus de liberdade do sujeito na dimensão simbólica da linguagem.
Afinal, enquanto Quain mostra fotografias, desenha e relata suas experiências, resta a Manoel
Perna imaginar, interpretar, ficcionalizar e se intertextualizar na trama da narrativa. Para
Bakhtin, o narrador, diferente “de um suposto autor personificado e concreto (palavra escrita),
[...] [é] palavra oral.” (BAKHTIN, 1993, p.117)
Manoel Perna, ao se referir a Quain e ao relato de sua experiência vivenciada junto ao
etnólogo, dirigindo-se ao destinatário que está por chegar, comenta:
Eram territórios que [Quain] trilhava sozinho no verão ártico, infestado de
mosquitos, e cujos mapas eram uma indissociável combinação da sua experiência e
da sua imaginação. Assim como o que tento lhe reproduzir agora, e você terá que
perdoar a precariedade das imagens de um humilde sertanejo que não conhece o
mundo e nunca viu a neve e já não pode dissociar a sua própria imaginação do que
ouviu. (CARVALHO, 2002, p.116)

Junto ao cinema e ao desenho, que, por sua vez, se uniram às fotografias, às fotos e
aos retratos ampliando lembranças e provocando dúvidas e inexatidões, mapas são incluídos
na narrativa como possibilidade de combinação da experiência vivida com a imaginação, do
fato com a ficção. Afinal, como afirma Warning, citado por Lima, “a imaginação permanece
ligada ao ser.” (LIMA, 1981, p. 62) Contudo, essa combinação também é falha, pois os fatos
se ficcionalizam por imagens e essas imagens sempre deixam que algo do fato escape. Assim,
Manoel Perna, recorrendo ao aparato sensorial, justifica a precariedade de suas imagens por
nunca ter visto o fato e apenas dele ter ouvido falar.
No que se refere ao jogo criado pelas lembranças e esquecimentos numa perspectiva
temporal, na obra de Bernardo Carvalho, a memória também é visual. Isto pode ser visto
também na fala do narrador, quando ele diz que “àquela altura dos acontecimentos, depois de
meses lidando com papéis de arquivos, livros e anotações de gente que não existia, [ele]
57

precisava ver um rosto, nem que fosse como antídoto à obsessão sem fundo e sem fim que
[lhe] impedia de começar a escrever o [seu] suposto romance”. (CARVALHO, 2002, p.157)
Assim a narrativa se desenvolve num terreno construído por confissões e enganos, afirmações
e negações, cujo narrador e os personagens se apresentam em suas intimidades num contexto
público que dá visibilidade ao privado.
Bauman, ao pensar a pós-modernidade como líquida e fluida, atenta para o fenômeno
da colonização do espaço público pelos interesses privados. Na sua opinião, “o interesse
público é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas [...] e a arte da vida pública é
reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos
privados.”(BAUMAN, 2001, p.46) Assim, o leitor pode ser capturado pelas confissões e
angústias do narrador e dos personagens, em busca do desvelamento dos enigmas humanos,
sem perceber que, ao se prenderem às intimidades que lhes são expostas, se mantem na
superfície do enunciado, se afastando do nunca entendido que sustenta os diferentes
posicionamentos do sujeito no campo da enunciação, através do engano, do incerto, do lapso e
das hesitações.
Ao se referir à carta escrita por Heloísa Torres para Fannie, o narrador se refere a
possíveis enganos nas correspondências trocadas entre estas duas personagens. Assim,
em dezembro de 1939, por ocasião do primeiro Natal depois da morte de Quain,
[este narrador comenta sobre estas cartas como se fosse] [...] um diálogo forjado de
enganos [e que] estivesse sendo tácita e mutuamente incentivado entre as duas.
Alguma coisa [lhe] dava a impressão de que ambas sabiam e fingiam não saber.
[Nesta] mesma carta, [...] dona Heloísa diz coisas que, no mínimo, contradizem
uma carta estranhíssima que tinha enviado ao próprio Quain poucos meses antes do
suicídio. Dona Heloísa escreve à mãe do etnólogo: ‘Ele parecia tão bem-disposto e
feliz quando deixou o Rio’, e completa dizendo que nem os colegas de Columbia
podiam imaginar tal desfecho. Vários outros elementos desmentem a afirmação.
(CARVALHO, 2002, p.118)

Em outros momentos da narrativa, a imaginação e a ficção continuam possibilitando


lembranças e causando incertezas, lapsos e hesitações. Vejamos: “Ele me falou da casa na
praia e eu procurei imaginar.” (CARVALHO, 2002, p.122) “Ele gritou com eles até se calar
de repente, como se tivesse despertado aturdido de um sono profundo.” (CARVALHO, 2002,
p.126) “Como se nada tivesse acontecido, começou a falar sobre a paisagem do lugar de onde
vinha.” (CARVALHO, 2002, p.126) “Imaginei o seu sonho e o seu pesadelo.” (CARVALHO,
2002, p.127) “Quando acordei no dia seguinte, [não sabia] o que tinha ouvido, se ele havia me
pregado uma peça ou se falara a sério.” (CARVALHO, 2002, p.128) “A verdade e a mentira
não têm os sentidos que o trouxeram até aqui.” (CARVALHO, 2002, p.131) “O que lhe conto
é uma combinação do que ele me contou e do que imaginei. Assim também, deixo-o imaginar
o que nunca poderei lhe contar ou escrever.” (CARVALHO, 2002, p.134)
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Marcado por afirmações e enganos, Manoel Perna, ao se referir a Quain, comenta que
“ele se exprimia por denegações.” (CARVALHO, 2002, p.128) Do jogo entre espelhos, o
narrador, Buell Quain, Manoel Perna e os outros personagens também fazem parte. Na
dimensão do imaginário, narrador e personagens são construídos e constantemente
desconstruídos e reconstruídos como figuras discursivas e de linguagem.
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3 O NARRADOR E O VIRTUAL

A utilização de cartas, enquanto veículo através do qual as informações circulam pelo


romance “Nove Noites”, possibilita, também, o trânsito entre o arcaico e o moderno. Nesse
contexto, o virtual, frente à realidade, contribui para manter o tom enigmático da narrativa,
quando os instrumentos de comunicação modernos não são também suficientes para o
esclarecimento da verdade referente ao enigma Quain. Em busca de informações sobre Buell
Quain, o narrador diz que:
Tentei [encontrar os familiares de Quain] por todos os meios. Em sites
genealógicos, em programas de busca de pessoas na internet e finalmente, depois de
várias tentativas frustradas, pelo método mais arcaico de todos: enviando cartas
para todos os assinantes com o sobrenome Kaiser das listas telefônicas de Chicago,
Seattle ou do estado do Oregon, as três pistas sobre o possível paradeiro de Marion
Quain Kaiser e sua família que pude apreender ao ler as cartas da mãe à dona
Heloísa. (CARVALHO, 2002, p.154)

As tentativas frustradas de o narrador conhecer a realidade Buell Quain, através dos


meios de comunicação modernos, levaram-no a utilizar cartas para alcançar esse seu objetivo,
mesmo recurso por ele utilizado para construir as três pistas necessárias para o descobrimento
do possível paradeiro de Marion Quain Kaiser, a irmã de Buell Quain. Na mesma proporção
que os recursos modernos não foram suficientes para o conhecimento da verdade sobre Buell
Quain, também as cartas, consideradas como algo arcaico e ultrapassado, não possibilitaram o
alcance dessa verdade. Assim, as ambiguidades e ambivalências se desdobram ao longo da
narrativa e as cartas constituem o meio de aproximação e afastamento do desvendamento do
enigma Quain.
As possíveis interfaces existentes entre o moderno e o arcaico, que apontam para a
impossibilidade do acesso absoluto à realidade, traduzindo a dificuldade na delimitação
precisa entre o fatual e a ficção, também se manifestam na seguinte fala do narrador:
Antes [da] empreitada arcaica [de utilizar de cartas para obter informações acerca
do enigma Quain], porém, liguei em desespero de causa para uma amiga em Nova
York e ela me pôs com uma produtora de televisão reputada por desenterrar o que
ninguém mais conseguia descobrir. [...] Trocamos alguns e-mails e já tínhamos
chegado mais ou menos a um acordo sobre o custo e o tempo da pesquisa [...]
quando dois aviões de passageiros [...] atingiram e derrubaram as duas torres do
World Center. [...] O fato é que nunca mais consegui falar com a produtora. Não me
restava outra opção ou recurso senão as cartas. (CARVALHO, 2002, p.154-5)

Novamente as cartas são retomadas como instrumentos arcaicos de comunicação


(portanto não confiáveis) quando a realidade, aqui representada pela queda das torres do
World Trade Center, barra a crença no seu pleno conhecimento, tornando a informação
apenas possibilidade e nunca verdade. A derrubada das torres impossibilitou a via de acesso
que o narrador tinha estabelecido com a produtora de televisão como meio de desvendamento
60

da realidade Buell Quain. Cumpre também ressaltar que essa produtora era reputada por
desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir. Sendo assim, a produtora poderia ser a
alavanca necessária para que o narrador desenterrasse o que estava enterrado, mantendo o
mistério da narrativa. Contudo, isso não foi suficiente para revelar a verdade sobre Buell
Quain e a realidade continuou sendo ficção.
No que tange às cartas enviadas pelo narrador para os Estados Unidos, ele afirma que:
Escrevi mais de cento e cinquenta [cartas] e as enviei para todos os Kaiser e Quain
que encontrei na lista telefônica de Chicago, de Portland e arredores, no Oregon, e
de Seattle. E por uma infeliz coincidência, toda essa correspondência chegou aos
destinatários justamente no momento em que os Estados Unidos entraram em
pânico por causa das remessas de antraz em cartas anônimas enviadas pelo correio
a personalidades da mídia e da política americana e até mesmo a pacatos cidadãos.
[...] Das mais de cento e cinquenta cartas que mandei, recebi apenas umas vinte
respostas, todas por e-mail, [...] todas negando qualquer tipo de parentesco com os
Kaiser que eu procurava. Não sei se algum dos indivíduos a quem enviei as minhas
cartas chegou a suspeitar de um ato terrorista ao ler o nome desconhecido e exótico
do remetente e me denunciou ao FBI. Não sei se algum deles deixou de ler a minha
carta por causa disso. Não sei se algum era de fato parente de Quain e simplesmente
preferiu me ignorar por razões que eu também desconheço mas posso supor – uma
desconfiança em relação aos meus verdadeiros motivos, a determinação de
preservar a privacidade familiar ou o mero desinteresse por um caso encerrado
havia sessenta e dois anos e que um estranho e duvidoso jornalista da América do
Sul tentava reviver. (CARVALHO, 2002, p.155)

No relato acima, novamente se evidencia a impossibilidade do acesso do narrador à


realidade, neste momento retratada pelas remessas da bactéria antraz. Assim, das mais de
cento e cinquenta cartas enviadas por esse narrador aos Estados Unidos, apenas umas vinte
respostas foram obtidas. O pequeno número de respostas aponta para a fragilidade das cartas
como meio de obtenção de informações. Além disso, o conteúdo dessas cartas, negando
qualquer parentesco com os Kaiser, afastava ainda mais o narrador da realidade acerca de
Quain. Também é importante lembrar que as respostas às cartas enviadas por esse narrador
chegaram por e-mail, ressaltando o ciberespaço como possível representação da
contemporaneidade.
Segundo Pierre Lévy, o termo ciberespaço surgiu com William Gibson, em 1984, em
seu romance de ficção científica “Neuromancer”. Também para Lévy (1996), ciberespaço
pode ser entendido como um meio de comunicação contemporâneo que surgiu da conexão
mundial dos computadores através de redes como a internet. Citando Lévy (1999),
ciberespaço é
o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos
computadores. O termo especifica não apenas a infra-estrutura material da
comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela
abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.
(LÉVY, 1999, p.17)
61

No contexto do ciberespaço como um espaço virtual, incrementa-se a utilização de e-


mails como meio de comunicação que atende às demandas de rapidez e imediatismo
instantâneo dos tempos atuais. Segundo Gevertz, “uma das características mais marcantes de
nosso tempo é a virtualidade” (GEVERTZ, 2002, p.269), entendendo-se que “virtual vem do
latim virtus que quer dizer virtude, força, e define aquilo que está potencialmente no real, uma
potencialidade.” (LEVY, 2002, p.59) Sobre a etimologia da palavra virtual, Lévy acrescenta:
“A palavra virtual vem do latim virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência.”
(LÉVY, 1996, p.15)
Ainda é importante lembrar que as influências do ciberespaço sobre o mundo
hipermoderno constituem uma cultura que se desenvolve em torno dele. Essa cultura aponta
para outras formas de o homem se posicionar no mundo, outras éticas que influenciam os
meios de comunicação e informação virtuais, o funcionamento sócio-econômico, o exercício
da inteligência, a sensibilidade e os afetos. Cibercultura pode, então, ser entendida como “o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço.” (LÉVY,
1999, p.17)
Ainda no que se refere ao ciberespaço e à cibercultura, o advento do computador e da
internet, além de diminuir significativamente distâncias e romper com a rigidez territorial,
também pode traduzir a ordem capitalística discutida por Guattari (2000).
O termo capitalístico é a tradução de capitalistique, um neologismo construído por
Guattari para definir a dimensão capitalista na sua maior amplitude. Segundo Guattari e
Rolnik,
a ordem capitalística é projetada na realidade do mundo e na realização psíquica.
Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de pensamento, de sentido,
de sentimento, de afeto, etc. Ela incide nas montagens da percepção, da
memorização. Ela incide na modelização das instâncias intra-subjetivas.
(GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.42)

Para Guattari e Rolnik, a ordem capitalística visa a


designar não apenas as sociedades qualificadas como capitalistas, mas também
setores do “Terceiro Mundo” ou do capitalismo “periférico”, assim como as
economias ditas socialistas dos países do leste, que vivem numa espécie de
dependência e contradependência do capitalismo. Tais sociedades [...] em nada se
diferenciam do ponto de vista do modo de produção da subjetividade. Elas
funcionariam segundo uma mesma cartografia do desejo no campo social, uma
mesma economia libidinal-política. (GUATTARI, ROLNIK, 2000, p.15)

No que se refere à subjetividade capitalística, Guattari e Rolnik nos falam:


[...] o que há é simplesmente uma produção de subjetividade. Não somente uma
produção da subjetividade individuada – subjetividade dos indivíduos – mas uma
produção de subjetividade social, uma produção da subjetividade que se pode
62

encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. [...] A meu ver, essa


grande fábrica, essa grande máquina capitalística produz inclusive aquilo que
acontece conosco quando sonhamos, quando devaneamos, quando fantasiamos,
quando nos apaixonamos e assim por diante. (GUATTARI; ROLNIK, 2000, p.16)

Na direção da alienação da subjetividade no modo de produção e mentalidade


capitalistas, ainda temos as contribuições de Bosi. Para ele: “o estilo capitalista e burguês de
viver, pensar e dizer se expande a ponto de dominar a terra inteira.” (BOSI, 2004, p.164)
A subjetividade capitalística está circunscrita no cenário de confinamento das
sociedades disciplinares conforme Foucault (1926-1984) e que, na compreensão de Deleuze,
foram ultrapassadas por um modelo mais sutil e perverso chamado sociedades de controle.
Aqui, cumpre-se lembrar que, para Deleuze, controle “é o nome que Burroughs propõe para
designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo.”
(DELEUZE, 1992, p.220) As sociedades de controle dizem da
interpenetração dos espaços, por sua suposta ausência de limites definidos (a rede)
e pela instauração de um tempo contínuo no qual os indivíduos nunca conseguiriam
terminar coisa nenhuma, pois estariam sempre enredados numa espécie de
formação permanente, de dívida impagável, prisioneiros em campo aberto.
(COSTA, artigo disponível no site
http://www.scilo.php?script=sciarttext&pid=S0102-88392004000100019. acesso
em 20/09/2007)

No contexto da ordem capitalística, a sociedade de controle funciona como agente que


determina os modos de agir e pensar do sujeito que vive a ilusão de liberdade de escolha e
pensamento. Guattari e Rolnik dizem que
a ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas
representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado,
como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a
produção, com a natureza, com os fatos, com o movimenta, com o corpo, com a
alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro – em suma, ela fabrica
a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. Aceitamos tudo isso porque
partimos do pressuposto de que esta é a ordem do mundo, ordem que não pode ser
tocada sem que se comprometa a própria ideia de vida social organizada.
(GUATTARI; ROLNIK, 1999, p.42)

Assim, inserido na vida social organizada,


o indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas
leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”),
depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois na fábrica, de vez em
quando no hospital, eventualmente na prisão, que é o meio de confinamento por
excelência. (DELEUZE, 1992, p.219)

Deslocando-se pelas organizações e instituições sociais, o sujeito tem suas ações e


pensamentos avaliados e devolvidos na forma de controle. A sociedade, através da ordem
capitalística, desenvolve sua capacidade de detectar e modelar o desejo e as demandas
humanas, oferecendo novos modos de viver. Na opinião de Costa, “as massas [...] tornam-se
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amostras, dados, mercadorias, que precisam ser rastreados, cartografados e analisados para
que padrões de comportamentos repetitivos possam ser percebidos.” (COSTA, artigo
disponível no site http://www.scielo.php?script=sciarttext&pid=S0102-88392004000100019.
acesso em 20/09/2007)
Sendo a globalização oriunda do avanço tecnocientífico circunscrito pelos ditames
capitalísticos, o ciberespaço e a cibercultura podem, assim, também ser circunscritos pelo
modo de produção e mentalidade capitalista na dimensão capitalística.
Gradativamente, o computador e a internet ampliaram os domínios do ciberespaço e
da cibercultura. Configurando-se como rede, o mundo virtual se apropria da realidade e é
apropriado por ela. Segundo Gevertz (2002), na virtualidade hipermoderna, “a imagem não
mais representa o real, mas ela o simula. [...] A lógica da simulação não pretende mais
representar o real com uma imagem, mas, sim, sintetizá-lo, em toda sua complexidade.”
(GEVERTZ, 2002, p.267) Gevertz ainda acrescenta que “é vital não confundir o virtual com o
imaginário. [...] No imaginário, o real é colorido pelas experiências emocionais. Já no virtual,
o real é abstraído, segundo cálculos matemáticos, e apresentado, pela lógica da simulação,
como seu ideal.” (GEVERTZ, 2002, p.268) Já Deleuze diz que:
[...] o mundo moderno é dos simulacros. Nele, o homem não sobrevive a Deus, nem
a identidade do sujeito sobrevive à identidade da substância. Todas as identidades
são apenas simuladas, produzidas como um “efeito” óptico por um jogo mais
profundo, que é o da diferença e da repetição. (DELEUZE, 1988, p.15-6)

A lógica da simulação “produz [...] um efeito de semelhança; mas é um efeito de


conjunto, exterior, e produzido por meios completamente diferentes daqueles que se acham
em ação no modelo.” (DELEUZE, 2007, p.263) Dessa forma, Deleuze se afasta da
compreensão platônica sobre os simulacros como “sombras demoníacas que carecem de todo
ser, de toda identidade e permanência, de toda imagem e semelhança com as ideias puras.”
(BAREMBLITT, 1998, p.80) Na perspectiva platônica, enquanto “a cópia é uma imagem
dotada de semelhança, o simulacro [é] uma imagem sem semelhança.” (DELEUZE, 2007,
p.263) Na opinião de Deleuze, o simulacro é puro devir que aponta para a dissimilitude que
produz diferença. Segundo este autor, o simulacro é “construído sobre uma disparidade, sobre
uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude.” (DELEUZE, 2007, p.263) Deleuze
aproxima o simulacro do eterno retorno de Nietzsche. Para Deleuze,
entre o eterno retorno e o simulacro, há um laço tão profundo, que um não pode ser
compreendido sem o outro. O que retorna são as séries divergentes como
divergentes, isto é, cada qual enquanto desloca sua diferença com todas as outras e
todas enquanto complicam a sua diferença no caos sem começo nem fim. O circulo
do eterno retorno é um círculo sempre excêntrico para um centro sempre
descentrado. (DELEUZE, 1969, p.305)
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Na perspectiva deleuziana, o eterno retorno de Nietzsche pode ser interpretado como


“o ser comum de todas as metamorfoses, a medida e o ser comum de tudo o que é extremo, de
todos os graus de potência na medida em que são realizados.” (DELEUZE, 1988, p.100-1)
Esse ser comum, essa medida sempre divergente e descentrada, afasta-nos radicalmente do
que é idêntico e, muitas vezes, inacessível e imutável. Diferente do eterno retorno, sobre o
retorno do idêntico, Nietzsche nos diz:
Que sucederia se, um dia ou uma noite, um demônio resvalasse furtivamente pela
tua mais erma solidão e te dissesse: - Esta vida tal qual a vives atualmente, é
preciso que a reviva ainda uma vez e uma quantidade inumerável de vezes e nada
haverá de novo, pelo contrário! É preciso que cada dor e cada alegria, cada
pensamento e cada suspiro, todo o infinitamente grande e infinitamente pequeno de
tua vida aconteça-te novamente, tudo na mesma sequência e na mesma ordem –
esta aranha e esta lua por entre o arvoredo, e também este instante e eu mesmo; a
eterna ampulheta da existência será invertida sem detença e tu com ela, poeira das
poeiras! (NIETZSCHE, 1976, p.223)

Longe do que é idêntico, no contexto da simulação, enquanto diferença e semelhança,


a produção virtual se inclui como possibilidade de tratar a realidade.
Diante da realidade construída pela lógica da informática, abrem-se, na
hipermodernidade, novos espaços para se fazer ficção. Diferente do fluxo imaginário que
proporciona a ficcionalização da realidade pelas manifestações afetivas que alteram,
substituem ou reforçam as cores do que é fatual, a virtualidade traz para o trabalho da ficção,
a realidade idealizada pela simulação dos fatos através de mecanismos sofisticados e
calculados matematicamente. Assim, nos espaços virtuais, diferentes códigos correspondem a
diferentes imagens e alterar os valores que compõem esses códigos resulta na alteração das
imagens produzidas virtualmente.
O narrador do romance hipermoderno pode, pela cartografia, utilizar tanto do fluxo
imaginário para desterritorializar e reterritorializar a realidade fatual na ficção ampliando as
conexões e desconexões que compõem a rede narrativa, quanto aproximar da construção da
realidade pela lógica da informática, modificando, diminuindo e criando outras distâncias, ao
mesmo tempo em que dilui fronteiras territoriais, reinventando a realidade na ficção como no
universo do ciberespaço e da cibercultura.
Em “Nove Noites”, as cartas, que movimentam a narrativa, mantêm o enigma sobre
Buell Quain pelas diversas interpretações dadas à vida e à morte desse antropólogo através
das experiências afetivas e emocionais presentes nos seus conteúdos. No fluxo imaginário,
diferentes ideias acerca do enigma apresentado evocam distintos sentidos que oferecem novas
configurações ao romance.
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Já no que tange à lógica do ciberespaço, o excerto de fragmentos de cartas na


narrativa, que da mesma forma que são interrompidos são retomados ao longo do romance; a
utilização de aspas que, às vezes, são abertas e não fechadas; o uso do itálico em algumas
partes do romance diferenciando espaços, tempos e opiniões; assim como, a organização do
texto sem capítulos definidos inventam outras distâncias e eliminam fronteiras no uso da
cartografia para a narrativa do romance. A presença de e-mails, junto às cartas enviadas pelo
narrador aos EUA, lembra as novas formas de produção textual e de ficcionalização da
realidade.
Levy (2002) comenta que as imagens virtuais “pretendem [...] anular o espaço que
existe entre o representado e a representação, entre o símbolo e o simbolizado e o faz por
meio de um simulacro que pretende ser o objeto e não representá-lo.” (LEVY, 2002, p.60)
Para Levy, a virtualidade pode ser entendida como “imagens criadas pelo computador por
meio de sínteses numéricas e que se propõem a ser simulacros do real. [...] O virtual é
excessivamente real e impede a obscuridade necessária à especulação imaginativa.”(LEVY,
2002, p.60-1)
Corroborando com Levy, Gevertz (2002), acredita que:
[...] a imagem que tem como suporte o próprio corpo é este corpo. A imagem que
não representa mais o objeto mas o simula é o objeto. Afinal, se a imagem não
representa, não reapresenta a coisa, e se a morfogênese das novas imagens (geradas
a partir de uma linguagem numérica) transformou-se, ou retirando toda a sua
exterioridade e tornou-a parte, tornou-a o mesmo não o outro, o que nos resta na
imagem da imagem? A ausência, o vazio, a dissolução de todas as distâncias.
Resta-nos a falta da imagem na imagem. Não é à toa que muitas vezes diante de
imagens numéricas, ainda que sejam “belos” fractais, sentimos o vazio. É que, de
fato, elas nada representam além desse vazio. (GEVERTZ, 2002, p.272)

Retornando a Levy, ainda pode ser acrescentado que: “a realidade virtual se propõe a
ser encarada como real. As relações virtuais privam o sujeito do olhar do outro de onde se
origina o sentimento de existir, de ser real, de ser verdadeiro, sendo possível que desperte
sentimentos de irrealidade e de vazio existencial.” (LEVY, 2002, p.62)
Na hipermodernidade marcada pela virtualidade, quando o simulacro ocupa o lugar do
intervalo entre o representado e a representação,
talvez possamos afirmar que, confundir o mundo virtual com o emocional seja uma
forma de atingir a felicidade buscada pelo princípio do prazer, uma vez que
iludindo o mundo emocional busca-se fugir dos sentimentos desprazerosos do viver
humano e encontrar, na realidade virtual, o mundo ideal ficcional. (GEVERTZ,
2002, p.268)

Sigmund Freud (1930), em “O mal-estar na civilização”, apresenta o mecanismo do


princípio do prazer em “dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado,
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visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos


sentimentos de prazer.” (FREUD, 1969a, p.94)
Portanto, para Gevertz,

regido pela busca de satisfazer seus desejos baseado somente no princípio do


prazer, o ser humano, ao imaginar que é possível viver num pretenso paraíso da
realidade virtual ficcional, se empobrece. Desumaniza-se para não enfrentar a
verdadeira experiência humana. Instala-se num vazio que se perpetua e se auto-
alimenta, trazendo sentimentos de solidão e isolamento. (GEVERTZ, 2002, p.274)

Evitar o sofrimento e propiciar o prazer são as condições essenciais para se iludir o


mundo emocional pela realidade virtual na hipermodernidade. O sujeito hipermoderno,
inserindo-se na realidade virtual, pode viver conforme seu desejo, num mundo ideal e
ficcional como simulação da realidade. Para Levy,

este seria o império do narcisismo, em que haveria finalmente a abolição dos


limites da realidade, uma vez que conduziria à ilusão do gozo sem limites, à
abolição dos limites das características dos objetos, da dependência, enfim, das
relações objetais humanas. (LEVY, 2002, p.61)

Nessa mesma perspectiva, Gevertz acrescenta que:


Na realidade virtual, uma pessoa pode se apresentar tal como gostaria de ser e
também pode ser como imagina que o “outro” desejasse que fosse. Da mesma
forma, o outro também pode existir conforme é cobiçado. A realidade virtual pode
se tornar, assim, uma dimensão onde estão projetados todos os desejos e busca de
satisfação do ser humano, com a qual ele se relaciona e se identifica, podendo,
muitas vezes, substituir a própria realidade. O mundo pode ser experienciado como
uma ficção, onde o outro não existe, a não ser como extensão de si mesmo, o outro
que é criado na realidade virtual segundo é desejado. Com a perda do sentido de
separação eu-outro, as vivências de ausência e de falta podem ser dribladas e
evitadas. (GEVERTZ, 2002, p.270)

Assim como a ficcionalização da realidade e a realização da ficção, a virtualização da


realidade e a realização do virtual transbordam em significações na produção não só da
comunicação e da informação, mas, sobretudo, da subjetividade. Para Levy (2002), “imersos
que estamos cada vez mais em mundos e relações virtuais, devemos refletir sobre seu impacto
– ou não – sobre o próprio homem.” (LEVY, 2002, p.52) Já Lévy diz que: “um movimento
geral de virtualização afeta hoje não apenas a informação e a comunicação, mas também os
corpos, o funcionamento econômico, os quadros coletivos da sensibilidade ou o exercício da
inteligência.” (LÉVY, 1996, p.11) A esse respeito, Gevertz diz acreditar que:
[...] um dos grandes desafios [...], atualmente, é estudar como a presença da
tecnologia, com as mudanças e novas formas de representação do mundo e do ser
humano que trouxe para a civilização contemporânea, pode influenciar no
desenvolvimento e crescimento emocionais. Vivemos numa era de imagens. Mais
do que isso, estamos numa época do virtual: imagem virtual, mundo virtual. A
contemporaneidade não é só uma época de imagens. Uma das características mais
marcantes do nosso tempo é a virtualidade. (GEVERTZ, 2002, p.269)
67

Ainda no que se refere à virtualidade e à subjetividade, Guattari comenta:


Devem-se tomar as produções semióticas dos mass mídia, da informática, da
telemática, da robótica etc... fora da subjetividade psicológica? Penso que não. Do
mesmo modo que as máquinas sociais que podem ser classificadas na rubrica geral
de Equipamentos coletivos, as máquinas tecnológicas de informação e de
comunicação operam no núcleo da subjetividade humana, não apenas no seio de
suas memórias, da sua inteligência, mas também da sua sensibilidade, dos seus
afetos, dos seus fantasmas inconscientes. (GUATTARI, 1992, p.14)

Sobre o consumo tecnológico, podemos ainda acrescentar Marçal (1999), que diz: “É
possível observar um movimento na direção do consumo de aparatos tecnológicos ‘mais
compactos, mais potentes, mais rápidos, mais baratos, mais acessíveis’, atendendo ao
determinismo tecnológico, como se ele garantisse a inserção social, a organização do sujeito.”
(MARÇAL, 1999, p.51)
Enquanto uma rede tecida por inúmeras e diferentes linhas, que se equivalem, sem
haver predominância de uma sobre as outras e pela inexistência de um só comando central, na
hipermodernidade, o romance, assim como a subjetividade, pode ser também aproximado da
concepção de rizoma de Deleuze e Guattari, quando esses autores salientam que o rizoma
“pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma [seus diferentes
direcionamentos] segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p.18) O fato é que, nas novas experiências de linguagem, onde inclui-se o
hipertexto, “o novo dilúvio não apaga as marcas do espírito. Carrega-as todas juntas. Fluida,
virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel não pode ser queimada.
As inúmeras vozes que ressoam no ciberespaço continuarão a se fazer ouvir e a gerar
respostas. As águas deste dilúvio não apagarão os signos gravados: são inundações de
signos.”(LÉVY, 1999, p.16)
É exatamente por essas rupturas e religamentos que, em “Nove Noites”, a
compreensão advinda das informações contidas nos e-mails e nas cartas, por se tratarem de
meios de comunicação humana e, portanto, de linguagem, nunca é completa. Isso também
aproxima o que é arcaico do que é moderno, “já que em termos rigorosamente filosóficos, o
virtual não se opõe ao real, mas ao atual.” (LÉVY, 1996, p.15) Para Lévy,
a virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num
conjunto de possíveis). [...] [Também, a virtualização] em vez de se definir
principalmente por sua atualidade (uma “solução”), [ela] passa a encontrar sua
consistência essencial num campo problemático. (Lévy, 1996, p.18)

Diferente da atualização que consiste na “invenção de uma solução exigida por um


complexo problemático” (LÉVY, 1996, p.17),
virtualizar uma entidade qualquer consiste em descobrir uma questão à qual ela se
relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a
68

atualidade de partida como resposta a uma questão particular. [...] [Enquanto,] a


atualização ia de um problema a uma solução. A virtualização passa de uma
solução dada a um (outro) problema. [...] Com isso, a virtualização fluidifica as
distinções instituídas, aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor. (LÉVY,
1996, p.18)

O desdobramento de questões, diferente da busca de soluções, mantém os enigmas que


sustentam a existência humana. Assim, a virtualidade aproxima-se da hipermodernidade por
ampliar as possibilidades do ser humano de perguntar sobre si, sobre o outro, sobre o mundo e
sobre o tempo no qual vive. Da modernidade à hipermodernidade, o homem fala, pensa, age,
sofre, transforma e se angustia, fortalecendo-se com a dimensão múltipla e plural da produção
de sentidos. O homem hipermoderno é real e não uma idealização imaginária. Sendo assim,
ele é virtual, já que a virtualidade não foge ao real, apenas se opõe ao atual. Assim como na
virtualidade, na hipermodernidade, o atual é instantâneo, o passado é sombra e o futuro está
por existir. A efemeridade da hipermodernidade angustia e provoca, na produção humana, a
construção do ideal virtual e a ficção toma outros rumos. Para além da idealização imaginária,
a ficção, nos tempos hipermodernos, encontra, no ideal virtual, as várias possibilidades de
tratar o homem na sua angústia frente aos enigmas humanos. No romance, o herói toma
feições próximas do homem hipermoderno e o narrador tem que lidar com a pluralidade dos
novos tempos.

3.1 Do virtual ao hipermoderno: o romance na hipermodernidade

Falar sobre a transformação humana na contemporaneidade nos remete à renascença e


suas importantes contribuições para o entendimento do homem atual.
No período renascentista, com a ascendência da cientificidade, ”essa [...] clamava [...]
pela ‘profanação do sagrado’: pelo repúdio e destronamento do passado, e, antes e acima de
tudo, da ‘tradição’ – isto é, o sedimento ou resíduo do passado no presente.” (BAUMAN,
2001, p.9) Neste período,
a mecânica tradicionalista da alma é substituída pela mecânica racionalista. A razão
é considerada faculdade quase divina, universal e invariável, quer dizer,
independente da experiência. [...] A utopia racionalista [pretendia] reinterpretar o
mundo à luz da razão pura e reconstruí-lo more geométrico, com desprezo total da
experiência e da herança do passado tradicional. (KUJAWSKI, 1991, p.20)

Assim, a modernidade, herdeira da utopia racionalista, sustenta-se no individualismo


cartesiano, na mesma proporção que ao afastar-se do tradicionalismo e do passado, volta-se
para o futuro como promessa de tempos melhores. Para Kujawski, a “razão e [o] racionalismo
são formas de radicalismo ideológico, ou seja, de utopismo. [...] [Sendo assim, a]
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modernidade é utopia, e utopia significa incorporar a Perfeição ao tempo humano, a promessa


do paraíso terrestre.” (KUJAWSKI, 1991, p.21-23) Kujawski ainda acrescenta que
na corrida para a utopia o homem perde totalmente sua pertinência com o estágio a
que chegou, lutando para ultrapassá-lo, até atingir o estágio seguinte, que também
exige ser vencido com máxima urgência, e assim por diante. [...] Entre o prato e a
boca já não há tempo de morder o alimento, que se dissipa em nada tão logo o
garfamos. [...] O homem moderno vem perdendo toda a pertinência com o presente,
toda a ligação com a circunstância, passando a errar sem pátria e sem lar, perdido
no desabrigo nos descaminhos do tempo e do espaço. [...] O homem quererá ser
feliz aqui e agora, e sua plenitude será integrada no marco de suas limitações.
(KUJAWSKI, 1991, p.24-5)

Pensar a modernidade também nos remete a Latour. Recorrendo a Latour (1991), a


modernidade ainda pode ser compreendida como modernidade complexa e/ou projeto da
modernidade. Enquanto modernidade complexa, ela se compõe por sistemas que se bifurcam
na criação de diferentes direcionamentos e funcionamentos que sustentam a totalidade social.
Já o projeto da modernidade, também chamado por Latour de projeto de purificação crítica,
diz respeito à distinção e separação de supostas formas puras, tais como sujeitos ou objetos,
homens ou coisas; como também inclui outra separação classificatória: de um lado temos
tanto os sujeitos, quanto os objetos; tanto os homens, quanto as coisas; designados,
purificados, circunscritos e identificados sob o signo da representação e de outro lado
encontramos aqueles que fogem da sua simplificação nas formas puras, escapando ao
universo das representações. Esses últimos seres Latour chamou de híbridos nos quais se
misturam sujeito, objeto, natureza, sociedade, ciência, política, etc. Para Latour:
Quando surgiam apenas algumas bombas de vácuo, ainda era possível classificá-las
em dois arquivos, o das leis naturais e o das representações políticas; mas, quando
nos vemos invadidos por embriões congelados, sistemas especialistas, máquinas
digitais, robôs munidos de sensores, milho híbrido, bancos de dados, psicotrópicos
liberados de forma controlada, baleias equipadas com rádio-sondas, sintetizadores
de genes, analisadores de audiência etc. [é impossível desprezar ou negar a
presença de híbridos no projeto de purificação crítica da modernidade.] (LATOUR,
1991, p.53)

No universo dos híbridos, também o homem moderno se incluiu. Quando, na


modernidade, o homem é produzido pela fábrica capitalística e pelas montagens serializadas
de desejo, ele se torna um híbrido por trazer dentro de si misturadas as suas condições de
sujeito, objeto, natureza, sociedade, cultura, ciência, política, etc. Recorrendo a Guattari, na
subjugação psíquica da economia subjetiva capitalística para produzir individualidades, os
homens são
reduzidos a nada mais que engrenagens concentradas sobre o valor de seus atos,
valor que responde ao mercado capitalista e seus equivalentes gerais. São espécies
de robôs, solitários e angustiados, absorvendo cada vez mais as drogas que o poder
lhes proporciona, deixando-se fascinar cada vez mais pela promoção. E cada degrau
70

de promoção lhes proporciona um certo tipo de moradia, um certo tipo de relação


social e de prestigio. (GUATTARI, ROLNIK, 2000, p.40)

Os híbridos não se alocam no projeto da modernidade e, portanto, escapam à ciência e


à filosofia. Quando por elas são abordados, os híbridos são desconsiderados em sua
constituição mista e reduzidos a formas puras classificatórias e excludentes: ou sujeito ou
objeto; ou natureza ou cultura; ou ciência ou política.
A dupla separação existente no projeto da modernidade é, na opinião de Latour,
sustentada na constituição moderna. A constituição moderna, marcada pelo pensamento
dicotômico, inventou a si mesma, como também, produziu os híbridos que aparentemente não
cabem no seu projeto em busca da totalização, excluindo o que dele não faz parte
oficialmente, não se enquadrando no signo da representação.
Durante a modernidade, embora de forma não planejada, vetada, mas, legítima,
sempre ocorreram práticas de hibridação e o projeto da modernidade tomou corpo pela
produção de híbridos. Manifestam-se, assim, os paradoxos da modernidade. Dentre eles,
também se evidenciam os híbridos rebeldes à purificação da representação, mas, mantendo-se
como os signos mais representativos da modernidade. Os híbridos rebeldes, nascidos na
modernidade, se fortalecem na hipermodernidade. Prova disso é a emergência do hipertexto
nos tempos atuais como forma de escrita que recusa obediência à linearidade textual.
A modernidade torna-se, assim, também um paradoxo. Ao produzir paradoxos, ao
produzir híbridos num contexto que os recusam, a modernidade funda-se pela diferença, pelo
que parece incoerente, mas que é contradição.
No contexto de uma modernidade híbrida, também podemos encontrar o híbrido no
romance. Para Bakhtin,
denominamos construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais
(sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde, na realidade,
estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas
“linguagens”, duas perspectivas semânticas e axiológicas. [...] As construções
híbridas têm uma importância capital para o estilo romanesco. (BAKHTIN, 1993,
p.110-1)

Ainda em Bakhtin, temos que um “híbrido romanesco [...] trata-se não apenas [...] da
mistura de formas e de indícios de duas linguagens e dois estilos, mas principalmente do
choque no interior dessas formas, dos pontos de vista sobre o mundo. [...] O objeto da
hibridização [...] do romance é uma representação literária da linguagem.” (BAKHTIN, 1993,
p.158-62)
O romance e a modernidade, assim como os híbridos, escapam a toda explicação que
tenta reduzi-los a uma identidade totalizada e totalizadora. Por causa disso, no que se refere à
71

modernidade, Latour diz que jamais fomos modernos. Segundo Latour: “jamais fomos
modernos no sentido da Constituição. A modernidade jamais começou. Jamais houve um
mundo moderno. O uso do pretérito é importante aqui, uma vez que se trata do sentido
retrospectivo, de uma releitura de nossa história.” (LATOUR, 1991, p.51)
Assim, a modernidade se expande à pós-modernidade, quando “a uniformidade dos
modelos [...] já começa a ser substituída pela pluralidade dos padrões adaptados a cada
circunstância e a cada caso”. (KUJAWSKI, 1991, p.26) Já os tempos hipermodernos referem-
se, na concepção de Lipovetsky (2004), ao tensionamento das diferenças e do plural ao seu
maior expoente, ampliando a coexistência e a dispersão dos híbridos produzidos.
Na hipermodernidade, isto é, na coexistência e dispersão dos híbridos, assim como na
sua resistência à purificação da representação, as questões que sustentam a humanidade e as
suas produções recebem várias significações. Frente à origem, à morte e ao sexo, o trauma e o
trágico, o mito e o complexo, o duplo e o dialógico, fazem emergir, no campo da enunciação,
o sujeito como enigma, indo além das suas manifestações enquanto enunciado. Na
hipermodernidade, os enigmas que sustentam a existência e a produção humana recebem
outras configurações, surgindo outras formas de subjetivação. Dentre elas, o universo do
ciberespaço se faz presente na reconstituição do sujeito no ideal virtual.
Na manifestação da subjetividade no romance, visto como um híbrido, o narrador
promove rupturas e junções textuais, diminuindo a distância entre o fato e a ficção. De forma
próxima da produção virtual, o narrador, dando à ficção feições reais, afasta o romance, nos
tempos hipermodernos, da idealização imaginária. Além de diminuir distâncias, ele também
cria espaços e intervalos que desestabilizam a simulação da realidade fatual. Na lógica do
virtual, o narrador, promovendo encontros e dispersões entre o fatual e a ficção, faz com que o
romance sintetize o real, mas também impede que o sujeito se perca na dimensão da verdade.
Afinal, o romance apresenta a realidade fatual como um disfarce, uma simulação.
No contexto daquilo que escapa e produz questões, a modernidade alcança a
hipermodernidade através de resíduos fundantes das organizações subjetivas que se mantêm
enquanto aquilo que é traumático, um mito pelo qual o complexo se organiza em sua condição
trágica de ser sempre dispersão e nunca totalidade.

3.2 O trauma e o trágico

O que é traumático ao sujeito é a impossibilidade de acesso à verdade. Assim, o


sujeito depara-se com o tom trágico que organiza a narrativa da sua existência. A construção
72

da subjetividade acontece a partir da cicatriz deixada pelo não entendimento e apreensão das
questões fundantes da realidade humana. Nesta direção, Manoel Perna questiona-se em
relação do passado de Quain: “O que pode ter passado um homem na infância para trazer uma
cicatriz daquelas na barriga?” (CARVALHO, 2002, p.43) Antecipando a resposta à sua
pergunta, na página anterior, Perna diz: “o terror de um menino operado pelo próprio pai”.
(CARVALHO, 2002, p.42) Ainda no que se refere a esse terror, Manoel Perna acrescenta:
“Eu sabia da cicatriz na barriga, que ele só revelou aos índios, entre outras barbaridades, nas
horas de desespero que precederam a sua morte”. (CARVALHO, 2002, p.125) Para Manoel
Perna “a tristeza e o horror” (CARVALHO, 2002, p.42) que tomavam Quain e que marcaram
os seus “olhos para sempre” (CARVALHO, 2002, p.42), iam além de seus objetos pessoais
que passaram “a assombrar a mãe depois da sua morte”. (CARVALHO, 2002, p.42) Operado
pelo pai, o menino se submete a lei trazida e inserida na cultura. Assim como Quain, o filho
de José Maria, índio Krahô que hospedou o narrador do romance em sua casa, “agia sob as
ordens do pai.” (CARVALHO, 2002, p.90)
A impossibilidade do acesso à verdade, como cicatriz que marca a existência do
sujeito, reaparece em diferentes tonalidades no romance. Uma dessas possíveis tonalidades
diz respeito à cirurgia a que foi submetido o filho do casal de antropólogos que conduziram o
narrador até a aldeia krahô na sua pesquisa acerca da morte de Buell Quain. O antropólogo
que acompanhou este narrador até a referida aldeia
tinha prometido aos Krahô levar o filho mais velho para a aldeia quando acabasse a
reunião em Carolina. O rapaz, de vinte e poucos anos, sobrevivera a uma operação
para resolver um problema congênito no coração. Depois de vários adiamentos ao
longo da infância e da adolescência, resolveram por fim operá-lo. A cirurgia, que
não era simples nem sem riscos, foi bem-sucedida, e os índios, em agradecimento,
queriam comemorar o renascimento do menino, que conheciam desde pequeno.
(CARVALHO, 2002, p.75)

Pode-se observar que o rapaz, tido pelos índios como um menino, menino como Quain
quando foi operado pelo pai, traz a cicatriz que delimita a fronteira existente entre a vida e a
morte, uma passagem ritualizada. Os rituais também se manifestam nas citações abaixo.
As cicatrizes deixadas pela impossibilidade do encontro com a verdade são
simbolizadas por rituais. Nesse contexto, também se faz presente o ritual de iniciação dos
meninos Trumai que denota a passagem da vida infantil para a idade adulta, quando esses
meninos
tinham o corpo inteiro esfolado com uma pata afiada de tatu. Era uma prova de
coragem, uma recompensa e uma honra, embora muitos, apavorados e horrorizados,
chorassem de dor durante o sacrifício, cobertos de sangue. Entre os Trumai, as
cicatrizes eram muito admiradas. Os meninos de 7 anos expunham com orgulho as
marcas que as cerimônias lhes deixavam pelo corpo. (CARVALHO, 2002, p.56)
73

O encontro da passagem da vida à morte com o ritual de iniciação dos trumai pode ser
visto quando Manoel Perna se lembra do suicídio do antropólogo e nos diz que,
ao se lembrar das palavras do dr. Buell [palavras essas referentes à sua experiência
de ser operado pelo pai e às suas observações acerca do ritual de passagem vivido
pelos meninos trumai] só [lhe] vem à cabeça a imagem do seu corpo enforcado,
cortado com gilete no pescoço e nos braços, coberto de sangue, que foi como os
índios o encontraram e o descreveram ao chegarem à [sua] casa. (CARVALHO,
2002, p.57)

Cumpre também lembrar que os Trumai “vêem na morte uma saída e uma libertação
dos seus temores e sofrimentos.” (CARVALHO, 2002, p.56) Prova disso é “uma vez em que
[Buell] havia caído doente, um de seus amigos índios se ofereceu para esfaqueá-lo com o
intuito beneficente de livrá-lo da dor da doença.” (CARVALHO, 2002, p.57) É importante
salientar que
os ritos [indígenas] dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio
dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito
que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se
assemelhar aos múltiplos espíritos. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.24)

Assim, os ritos são flexíveis, se adaptam a diferentes situações e necessidades e o que


através dele retorna, repete de distintas maneiras. Em “Nove Noites”, a passagem da vida
infantil para a idade adulta, assim como a passagem da vida para a morte são tratadas e
vivenciadas no contexto indígena, através de diferentes rituais que inserem o sujeito na
cultura. A lei manifestada no e pelo rito organiza o sujeito e a cultura, articulando o
traumático na linguagem, produzindo diversos sentidos para a condição trágica do sujeito de
nunca ter para si uma verdade única e absoluta. Segundo Adorno e Horkheimer,

a magia é a pura e simples inverdade, mas nela a dominação ainda não é negada, ao
se colocar, transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela
sucumbiu. O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou
suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. (ADORNO, HORKHEIMER,
1986, p.24)

No terreno do rito, a força que a magia exerce sobre o sujeito transforma inverdades
em verdades, fragilizando, também, os limites entre a realidade fatual e a ficção. Entre a
“versão oficial [sobre a morte de Quain] e o relato do velho Diniz” (CARVALHO, 2002,
p.82), o narrador diz que:
Ao voltar para o acampamento sem pá nem enxada, João Canudo encontrou [o
antropólogo] todo cortado com navalha e ensanguentado. Horrorizado, implorou ao
etnólogo que parasse de se maltratar, que não fizesse aquilo, que não morresse.
Ficou atônico diante do estado deplorável do jovem americano. Perguntou por que
ele estava se cortando, e o tresloucado respondeu que “precisava amenizar o
sofrimento, extinguir a sua dor cruciante”, já não podia seguir em frente, não tinha
cara para chegar a Carolina. (CARVALHO, 2002, p.84)
74

Assim como lhe ensinaram os índios, o antropólogo corta o próprio corpo para
amenizar a sua dor. Verdade ou mito, Quain reproduz o rito indígena para diminuir o seu
sofrimento, dando expressão à angústia frente à inexistência da verdade, fazendo da vida uma
invenção. Ainda no que se refere à morte, é curioso que, em relato de Quain para Perna,
os Trumai, apesar de estarem em vias de extinção, continuavam fazendo abortos e
matando recém-nascidos. E que, talvez sem saber, estivessem cometendo um
suicídio coletivo, vivendo um processo coletivo de autodestruição. [...] Não era à
toa que matavam os recém-nascidos. Pior era nascer. (CARVALHO, 2002, p.57)

O suicídio de Quain, ficcionalizando a cultura trumai e sendo ficcionalizado por essa


cultura, aponta para a angústia do sujeito diante dos enigmas que possibilitam a sua
existência, promovendo perguntas mais do que produzindo respostas.
Em “Nove Noites”, a condição trágica do suicídio de Quain e do não entendimento da
morte do antropólogo recebe diferentes tonalidades como advertência, desolação,
perplexidade, reconhecimento e ameaça. Nesta direção, Bosi (2004), ao refutar a opinião de
Adorno que acreditava que “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato de barbárie”
(BOSI, 2004, p.17), afirma que, também no terreno literário, “onde há perplexidade, há
esperança, um fio de esperança, um recomeço.” (BOSI, 2004, p.17) Quain e o narrador da sua
tragédia são condensados de angústia, dor e sofrimento provocados pelo não saber que,
enquanto descontinuidade, causa estranheza, mantendo os enigmas que sustentam a
construção da subjetividade. A narrativa de Bernardo de Carvalho é enigma e antecipação.
Nas palavras do narrador:
O mais incrível, nos nascimentos, é a euforia cega com que os pais encobrem o
risco e a imponderabilidade do que acabaram de criar, a esperança com que o
recebem e que os faz transformar em augúrio promissor a incapacidade de prever o
futuro que ali se anuncia e a impotência de todas as medidas de precaução nesse
sentido. (CARVALHO, 2002, p.19)

A única certeza de que o sujeito tem no reconhecimento da sua incapacidade de prever


o futuro é a sua finitude, a sua morte. Segundo Adorno e Horkheimer, “todo nascimento se
paga com a morte, toda ventura com a desventura. [...] [Portanto,] a ventura e a desventura
[...] [são] os dois lados de uma única equação.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.30) Em
remissão à carta que Fannie Quain enviou a Heloísa Alberto Torres, “quase cinco anos depois
do suicídio,” (CARVALHO, 2002, p.19) o narrador também referencia-se ao fim trágico do
antropólogo dizendo: “Faz trinta e dois anos esta noite que ele nasceu. Em pequeno, sempre
respondia às pessoas que lhe perguntavam quando tinha nascido: ‘A dez minutos de junho.’
Há cinco anos, ele me escreveu de Carolina a última carta de aniversário.”(CARVALHO,
2002, p.19)
75

Cumpre ainda lembrar que, mesmo “que foram tomadas as devidas precauções contra
[a] oftalmia neonatal [que Quain foi portador ao nascer], àquela altura um procedimento de
praxe contra a transmissão de doenças venéreas aos recém-nascidos” (CARVALHO, 2002,
p.19), o fim trágico de Quain não pode ser evitado e a sua morte foi além da sífilis que ele
tinha. Sífilis neonatal e que também aparece na sua vida adulta quando “a julgar por certos
sintomas na pele, achava que tinha contraído sífilis em consequência de uma aventura casual
com uma moça que teria encontrado durante o Carnaval no Rio.” (CARVALHO, 2002, p.40)
Assim, sustentando a atmosfera enigmática frente ao que é traumático, o narrador
apresenta, ao longo do romance, índices enquanto possibilidades de entendimento da morte e
do suicídio de Quain, ao mesmo tempo que antecipam a imprecisão que nos desloca para
lugares inesperados por aproximações e afastamentos sucessivos que demarcam a diferença
entre o conhecer e o saber.

3.3 O mito e o complexo

Conhecendo o que é fatual, deslocamo-nos com Quain, com Manoel Perna e com o
narrador pelos diversos e difusos caminhos marcados por um saber que em si contempla um
não-saber. Movido pelo saber, o sujeito produz conhecimento sobre si e sobre o mundo no
qual se encontra inserido. Assim, o sujeito e suas possíveis verdades estão entesourados no
campo do saber. Segundo Adorno e Horkheimer,
a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas coisas
estão guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, não podem comprar, sobre
as quais sua vontade não impera, das quais seus espias e informantes nenhuma
notícia trazem, e que provêm de países que seus navegantes e descobridores não
podem alcançar. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.19)

A impossibilidade de acesso irrestrito ao saber traz, portanto, no próprio saber, um não


saber. Em “Nove Noites” é a intercessão do saber com o não-saber que possibilita constantes
resignificações do enigma Quain e do sujeito na criação de símbolos. Nesse sentido, no dizer
de Manoel Perna, ao relatar a descrição que Quain lhe apresentou sobre os índios da ilha Fiji,
pode-se perceber a recorrência à cultura e aos símbolos indígenas como possibilidades de
descrever este povo. Assim,
as estrelas não têm nenhuma importância. Os índios acreditam que sejam fogueiras
acessas à noite por aldeias e índios que ficaram presos no céu, no outro mundo que
nos cobre e envolve como um chapéu ou um espelho, quando lhes retiram a escada
que ligava a esfera celeste à terra. Tanto faz o que são as estrelas para nós, para os
índios ou para os nativos do Pacífico. Naquela noite, ele bebeu mais do que devia.
(CARVALHO, 2002, p.126)

Para Lévi-Strauss,
76

é da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em seus costumes e


em suas instituições; ao contrário, as condutas individuais normais nunca são
simbólicas por si mesmas: são os elementos a partir dos quais um sistema
simbólico, que só pode ser coletivo, se constrói. São apenas as condutas anormais
que, porquanto dissociadas e de algum modo abandonadas a si mesmas, realizam,
no plano individual, a ilusão de um simbolismo autônomo. (LÉVI-STRAUSS,
1966, p.16-7)

O símbolo pode contribuir na construção da identidade do sujeito, considerando a sua


inserção no seu grupo sócio-cultural. O deslocamento semântico, em que emergem os
símbolos de uma cultura, se organiza por narrativas que fundam as questões essenciais ao
sujeito e à sua existência, ou seja, se organiza pelo mito. Para Adorno e Horkheimer, “a
doutrina dos sacerdotes [é] simbólica no sentido de que nela [coincidem] o signo e a imagem.
Como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu originalmente também a função da imagem.
Esta função passou para os mitos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.30) Os mitos,
então, através dos símbolos, organizam sentidos para o sujeito, garantindo-lhe a sua existência
pelo sentimento de pertencimento a uma dada coletividade.

3.3.1 O mito

O mito enquanto uma narrativa de fundação de um fluxo de outras narrativas,


envolvendo a intercessão saber/não saber, dá movimento e circularidade aos diversos
discursos construídos na tentativa de significar o sujeito. Assim, a história passada de Quain,
enquanto uma narrativa através da qual se desenvolve o romance, aproxima-se do que é
mítico. Na opinião de Adorno e Horkheimer, o sujeito
está tão próximo do mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que o próprio
passado por ele vivido se transforma para ele num outrora mítico. [...] A ânsia de
salvar o passado como algo de vivo, [...] só se [acalma] na arte, à qual pertence a
própria História como descrição da vida passada. (ADORNO, HORKHEIMER,
1986, p.44)

O mito, portanto, realiza, na história, o sujeito, ou seja, torna-o real, pela ilusão do
fatual e do acontecido. A concretude do fato realizado no e pelo mito alivia o sujeito na
impossibilidade de ter acesso a sua verdade. Contudo, esse alívio pressupõe um preço. “No
mito, tudo o que acontece deve expiar uma pena pelo fato de ter acontecido. [...] O preço que
se paga pela identidade de tudo com tudo é o fato de que nada, ao mesmo tempo, pode ser
idêntico consigo mesmo.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.26-7) Em “Nove Noites”,
Quain paga com a vida por ter vivido a possibilidade de encontrar e ser, na cultura indígena, o
oposto do que tinha e era na cultura civilizada e que tanto desprezava. Portanto, a morte de
77

Quain também pode ser vista como a desilusão do antropólogo diante do que ele acreditava
ter alcançado no meio dos índios.
No contexto dos mitos, também o texto bíblico está presente na narrativa de Bernardo
Carvalho. A saída do narrador de Carolina para a aldeia Krahô lembra a saída de Moisés do
Egito em direção à terra prometida. Segundo este narrador: “Viajamos durante cinco horas
pelo cerrado, atravessando rios e areais. A certa altura, a trilha de terra começa a seguir
paralela ao rio Vermelho, que no final é preciso cruzar a pé, com água acima da cintura e as
malas na cabeça.” (CARVALHO, 2002, p.89)
No livro do Êxodo, nos capítulos de 1 a 13, Moisés parte com os hebreus escravizados
no Egito em direção a Canaã. Neste percurso, Moisés e o povo de Deus depararam-se com o
mar Vermelho, necessitando da intervenção divina para realizarem a ultrapassagem das águas
deste mar. Segundo a narrativa bíblica:
Tendo Moisés pois estendido a sua mão sobre o mar, o Senhor lhe dividiu as águas
fazendo que toda a noite assoprasse um vento veemente, abrasador, que lhe secou o
fundo. Estando a água assim dividida, entraram os filhos de Israel pelo meio do mar
seco, tendo pela direita e esquerda a água que lhes servia como de muro. (Ex,
14:21-22)

Então as águas se precipitaram sobre os exércitos de Faraó.


Tendo-se desta sorte tornado a ajuntar as águas, cobriram as carroças, e cavalaria de
todo o exército de Faraó, que tinham entrado no mar em alcance dos israelitas, e
não escapou deles nem sequer um. Mas os filhos de Israel ao contrário passaram a
pé enxuto pelo meio do mar, tendo à direita, e à esquerda as águas, que lhe serviram
de muro. (Ex, 14:28-29)

Por retirar os hebreus da servidão, Deus, no monte Sinai, apresenta a Moisés sua lei e
seus mandamentos como a verdade a ser seguida como forma de libertação. De forma similar,
o narrador de “Nove Noites”, a fim de se libertar da obsessão de desvendar o enigma que
envolvia o antropólogo Buell Quain, atravessa o rio Vermelho, dirigindo-se à tribo Krahô em
busca da palavra reveladora e esclarecedora do misterioso suicídio.
A terra prometida também pode ser pensada a partir do comentário feito pelo narrador
sobre o deslocamento dos índios Krahô para outras aldeias. Na perspectiva do narrador:
A aldeia anterior tinha se desmembrado quando um grupo decidiu se mudar para a
aldeia Nova e o resto, discordando do sítio escolhido, juntou-se à aldeia do Rio
Vermelho, que tínhamos avistado de longe, no caminho. O sítio anterior foi
abandonado por ter se tornado infértil. Não sei o quanto havia de superstição
naquilo. Falavam do número de índios que ali estavam enterrados. (CARVALHO,
2002, p.90)

Em busca de terra fértil, os Krahô se deslocam pelo rio Vermelho acreditando


encontrarem melhores condições de vida. Já o saber de Buell Quain, homem branco, cientista
e etnólogo, questiona se a verdade construída pelos índios era real ou mera superstição. Quain
78

questiona o saber indígena por também ter o seu saber questionado. Afinal, devemos lembrar
que o antropólogo “procurava entre os índios as leis que mostrariam [...] o quanto as nossas
são descabidas.” (CARVALHO, 2002, p.48) Quain parecia buscar o resgate do encantamento
da vida, já que para Adorno e Horkheimer, “o entendimento que vence a superstição [impera]
sobre a natureza desencantada.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.20) Contudo,
superstição ou não, o mito aí se encontra como possibilidade de construção da narrativa.
O narrador, ao relatar o seu desespero ao comer do peixe servido pelos seus anfitriões
na aldeia Krahô, faz também alusão à outra passagem bíblica ao dizer que “ali começava a
via-crúcis da alimentação.” (CARVALHO, 2002, p.93) Esse narrador ainda faz menção ao
texto bíblico quando apresenta seu anfitrião Krahô ao leitor pelo nome de “José Maria”.
(CARVALHO, 2002, p.89)
O mito bíblico, que envolve os nomes dos pais do salvador, também evoca outros
mitos. Na percepção do narrador: “José Maria Teinõ [...] tinha [ainda] alguma coisa de
guerrilheiro mexicano do começo do século XX, de bigode, pele muito escura e cabelo
ondulado até os ombros.” (CARVALHO, 2002 p.89-90) A lembrança e descrição do
guerrilheiro mexicano pode nos conduzir à imagem de Ernesto Guevara de la Serna,
revolucionário e líder político argentino que foi para o México, onde se ligou aos cubanos
Fidel e Raúl Castro.
Contudo, também o mito se organiza em torno do que é enigmático. Assim, “o rio
Vermelho é verde” (CARVALHO, 2002, p.89) mantendo o enigma como um mito, um saber
pulsante primitivo, circular e não científico e racional, um “mapa não muito preciso ou
detalhado que [o narrador] tinha trazido” (CARVALHO, 2002 p.89) para a sua viagem de
Carolina à aldeia Krahô.
O rio Vermelho que é verde também estava contaminado com lixo hospitalar. Segundo
o narrador:
Os índios ouvem tudo. [...] [Eles] costumavam beber aquelas águas, pescar e se
banhar nelas, até o dia em que começaram a cair doentes, um depois do outro, e
foram morrendo sem explicação. Alguns conseguiram chegar à cidade e morreram
no hospital, diante da perplexidade e incompreensão dos médicos. Foi quando
decidiram parar de usar a água do rio Vermelho e passaram a se banhar e beber em
um córrego que passava do outro lado da aldeia e a pescar numa lagoa distante.
Com o tempo, descobriram a causa do envenenamento do rio vermelho. Um
hospital, construído rio acima, em Recursolândia, estava despejando lixo hospitalar
naquelas águas. Foi o que me contaram logo que cheguei e depois ficaram me
olhando calados, com olhos mendicantes, como se eu tivesse o poder de resolver
alguma coisa. (CARVALHO, 2002, p.89)

Os índios, que tudo ouvem, se vêem desamparados e mendicantes quando caíam


doentes e morriam sem explicação. Sem explicação também era o fato de que os índios não só
79

morriam no hospital sem recursos para salvá-los, o que deixava os seus médicos perplexos,
mas também morriam em virtude do envenenamento decorrente do lixo hospitalar despejado
em suas águas por um hospital de Recursolândia. Parece que os únicos recursos hospitalares
disponíveis aos índios serviam para o seu envenenamento e não para a sua cura. Novamente, o
saber científico e racional é questionado na produção ficcional, não trazendo respostas, mas
promovendo intensidades.

3.3.1.1 O mito, a morte e a sexualidade

Da mesma forma, o enigma da morte e a sexualidade de Quain podem ser esclarecidos


pelo mito, mas sempre carente de outros esclarecimentos. Para Adorno e Horkheimer, “a vida
e a morte haviam se explicado e entrelaçado nos mitos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986,
p.21) No que se refere à morte, Quain comenta com Perna sobre
uma história que o pai cirurgião lhe contara quando foram à Europa pela primeira
vez, quando ainda era adolescente, e que dizia respeito a um navio assombrado que
jamais conseguia chegar ao porto e percorria os mares, à deriva, desde tempos
imemoriais. A cada vez que cruzavam outros navios, os membros da lúgubre
tripulação se aproximavam em botes para implorar aos marinheiros das outras
embarcações que levassem pacotes de cartas para a terra firme. Ao chegarem aos
portos de destino, porém, os marinheiros descobriam sempre que as cartas eram
endereçadas a homens que ninguém conhecia ou que já estavam mortos fazia muito
tempo. (CARVALHO, 2002, p.127)

O pai cirurgião que deixou no corpo do filho uma marca, uma cicatriz, traduz para
Quain a morte como algo inacessível à compreensão humana, um navio assombrado que
jamais chega ao porto desde tempos imemoriais. Ainda sobre a morte, podemos pensá-la em
oposição à sobrevivência, o que retoma a questão do verdadeiro e do falso. Adorno e
Horkheimer comentam que “na escolha entre a sobrevivência e a morte, [...] entre duas
proposições contraditórias, só uma pode ser verdadeira e só uma falsa.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.42) Como inatingível ou em oposição à sobrevivência, a morte
apresenta-se como um enigma que instala a dúvida no sujeito e promove questionamentos.
Como um possível impossível encontro com a morte, novamente cartas aparecem no romance
e mais uma vez seus destinatários não são encontrados. No contexto da morte, o destino de
Quain se traduz como “um processo de liquidação.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986,
p.27)
Já na perspectiva da sexualidade, Manoel Perna narra para o intercessor que está para
chegar que:
Entre as canções, lendas e histórias que o negro [...] contara [a Buell Quain]
debaixo das estrelas da [...] ilha no Pacífico Sul, do outro lado do mundo, houve
uma que o dr. Buell deixou para me relatar na noite em que separamos. Era a
80

história de um chefe de Vanua Levu que, às vésperas de visitar outra aldeia, ouviu
falar de um homem que seduzia todas as mulheres que por ali passavam. Com a
intenção de pregar-lhe uma peça, antes de chegar à aldeia, pediu a seus
antepassados que lhe dessem a aparência de uma mulher. Entrou no rio e uma
enguia fez dele uma moça. Seguiu para a aldeia e, ao chegar, logo foi abordado pelo
sedutor, que o convidou a dormirem sob o mesmo teto. O chefe em forma de
mulher rechaçou todas as investidas e propostas, até o sedutor, contrariado, e à falta
de outros recursos, terminar por lhe pedir em casamento. No dia seguinte, enquanto
o chefe em forma de mulher fingia estar se arrumando, o homem tentou seduzi-lo
de novo. Mas, dessa vez, o chefe não ofereceu resistência. Quando o sedutor subiu
em cima dele, os dois pênis eretos se tocaram e o sedutor fugiu envergonhado,
perseguido pelo chefe, que agora exigia que dormissem juntos. (CARVALHO,
2002, p.128)

Assim, através da narrativa do mito, os enigmas constituintes da subjetividade


recebem diversas configurações na tentativa de traduzir pelo homem e para o homem suas
questões fundamentais, ou seja, a origem, a sexualidade e a morte.

3.3.2 O complexo

A circularidade do mito recortada, no campo do saber/não-saber, pela vivência do


complexo aponta para a narrativa edípica. Em “Nove Noites”, a narrativa edípica mantém o
tom trágico sustentada num fulcro romanesco. Recorrendo a Wellek e Warren, ao discutirem
o gênero romance, neste “temos o gradual estreitar ou apertar do enredo – a gradual
convergência (tal como no Édipo) das provas acumuladas [ao longo da narrativa].”
(WELLEK; WARREN, 1962, p.297) Em “Nove Noites”, a cena clássica edípica pode ser
remontada e recontada na visita que o narrador fez ao Xingu, ainda enquanto criança e
acompanhando seu pai na “confraternização [proporcionada pelos Villas Bôas,] entre tribos
inimigas, que se mantinham em estado de guerra havia anos”. (CARVALHO, 2002, p.67)
Nessa visita, o narrador comenta que os Txikão “apesar de baixinhos e franzinos, eram muito
temidos pelos robustos índios locais. Eram considerados traiçoeiros. Atacavam as aldeias à
noite e roubavam as mulheres dos grandalhões.” (CARVALHO, 2002, p.68) Ribeiro nos fala
que os txikão,
pressionados pelo deslocamento de outros grupos indígenas e das frentes de
expansão nacionais, instalaram-se no território compreendido entre o Ronuro e o
Jatobá, de onde passaram a hostilizar os xinguanos, principalmente os grupos
ceramistas para raptar mulheres. [...] [Pode-se relacionar] 15 ataques desfechados
ano após ano pelos índios Txikão a aldeias xinguanas visando os Nahukuá,
Mehinaku, Waurá, Yawalapití e Awetí de que resultaram muitas morte. (RIBEIRO,
1979, p.24-5)

Assim, pressionados e acuados, os baixinhos e franzinos, que traiçoeiramente


roubavam as mulheres dos grandalhões, podem ser uma possível tradução da cena edípica
81

clássica. Na história de Buell Quain, diferentes posicionamentos de seus pais diante de sua
morte apontam para diferentes papéis por eles vivenciados no romance familiar.
Diante da lei e da impossibilidade do saber absoluto, o antropólogo relatou a Perna
que
na escuridão da sala de [um] cinema, a luz de prata se acendeu na tela e uma vida
impensada se descortinou diante dele, uma nova possibilidade e uma saída, como se
um cainho inexplorado se abrisse à sua frente. Não fazia ideia do filme a que
assistiria quando entrou no cinema, assim como não fazia ideia do destino que ali
lhe era apresentado. Assistiu vidrado a uma história de amor no Pacífico Sul. Um
amor proibido pelas leis de uma sociedade de nativos. Um amor condenado pelos
deuses. Um tabu. Até a noite em que contou suas lembranças [para Manoel Perna],
não sabia o quanto havia do feito daquele amor proibido na própria vocação.
(CARVALHO, 2002, p.47)

O romance edipiano já estava traçado e não tinha como dele fugir. Frente ao enigma
do sujeito, mesmo que não fosse possível negar alguma clareza sobre o suicídio do
antropólogo, “uma vez constatadas as provas irrefutáveis do suicídio” (CARVALHO, 2002,
p.20), Eric Quain, pai de Buell Quain, “lançou mão de seus conhecimentos e apelou a um
influente senador da Dakota do Norte [...] para que entrasse com um pedido de investigação
junto ao Departamento de Estado” (CARVALHO, 2002, p.20) para esclarecer a morte do
filho. Nas palavras do próprio Quain: “Meu pai sofre de uma forma atenuada de
degenerescência senil – talvez seja o que o tenha levado a escarafunchar o passado nos
últimos seis meses.”(CARVALHO, 2002, p.21) Seis meses estes que antecederam à morte de
Quain.
Já Fannie Quain,
descontando-se a dificuldade do momento, em que de repente se viu sozinha no
mundo, recém-divorciada e com o filho morto, [parece que, em cartas endereçadas
a Heloísa Alberto Torres,] mais do que querer saber a razão do suicídio do filho,
temesse que alguém já a conhecesse ou viesse a descobri-la. (CARVALHO, 2002,
p.21)

Isso pode também ser visto no encontro de Fannie Quain com os missionários Thomas
e Betty Young no final de 1940. Sobre este encontro, o narrador comenta que Fannie
certamente nada perguntou aos missionários sobre o filho, reforçando assim a ideia de que
temesse a revelação de algo que queria manter encoberto. Segundo o narrador:
O mais provável, porém, é que, ao se apresentar e cumprimentar [os missionários]
entre os outros convidados, ela não tenha lhes perguntado nada, em parte por
constrangimento, em parte por temer que lhe revelassem o que não podia ouvir. É
possível que, dez anos depois, tenha morrido sem chegar a perguntar nada a
ninguém. Preferia acreditar que não soubessem o que ela também não podia saber.
(CARVALHO, 2002, p.50)

As ambivalências novamente se manifestam na narrativa. Em primeiro lugar, é apenas


provável que Fannie não tenha perguntado sobre o filho e não uma certeza. Em segundo lugar,
82

é possível que ela tenha morrido sem perguntar nada a ninguém. Se Fannie não perguntou
nada, ou seja, se é o nada que ela não perguntou é porque algo ela perguntou. Além disso,
Fannie preferia acreditar que não soubessem o que ela não podia saber. Sendo assim, ela sabia
do que não podia saber. Se não sabia, pelo menos desconfiava. Na perspectiva do narrador:
“Sua insistência atormentada dá a impressão de que [Fannie] tentava, ainda que
inconscientemente, sob um véu de filantropia, comprar o silêncio dos índios ou subornar a
própria consciência.” (CARVALHO, 2002, p.50-1)
Entre as diferentes posições assumidas pelos pais de Quain, gravitam cenas e
fantasmas relativos à origem, à sexualidade, à morte e à vivência edípica. Afinal, a palavra
dos pais “é organicamente ligada ao passado hierárquico. [...] Ela já foi reconhecida no
passado. É uma palavra encontrada de antemão.” (BAKHTIN, 1993, p.143)
No reconhecimento da palavra no passado, os mitos inseridos no romance, através dos
elementos retirados das culturas civilizada e também indígena, sustentam e são sustentados
pela vivência do complexo edipiano tanto presente na história de Quain, quanto na vida dos
índios com os quais o antropólogo e o narrador conviveram.
Entre diferentes culturas, o complexo de Édipo também delineia os papéis
desempenhados por diferentes personagens. No relato de Quain a Manoel Perna acerca dos
índios da aldeia Nakoroka na ilha no Pacífico, temos:
[...] cada um decide o quer ser, pode escolher sua irmã, seu primo, sua família, e
também sua casta, seu lugar em relação aos outros. Uma sociedade muito rígida nas
suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus
papéis. Uma aldeia onde a um estranho é impossível reconhecer os traços
genealógicos, as famílias de sangue, já que os parentes são eletivos, assim como as
identidades. O paraíso, o sonho de aventura do menino antropólogo.
(CARVALHO, 2002, p.47)

Na cultura Nakoroka, embora os parentes sejam eletivos, também existem leis. Essas
leis organizam a constituição social e definem papéis e identidades por possibilitarem a
vivência do complexo edípico. Afinal, as famílias e as castas também existem nessa
sociedade, embora não sejam delimitadas por relações consanguíneas. Assim, o sonho de uma
criança não se refere à ausência da lei, mas sim à possibilidade de escolher seus parentes,
obviamente, deixando fora da proibição do incesto àqueles que bem desejar. Estrangeiro
naquela sociedade, Quain não reconhecia traços genealógicos, mas reconhecia a lei que
também existia na sua cultura.
De forma semelhante, o narrador, em visita à tribo Krahô, relata que:
Na verdade, quase todos ali tinham laços de sangue. Aos poucos, fui descobrindo
que a aldeia Nova era praticamente uma única família, que eram quase todos irmãos
e irmãs, tios e sobrinhos, e que o parentesco simbólico, classificatório, em grande
83

parte apenas maquiava relações, se não incestuosas, pelo menos muito viciadas.
(CARVALHO, 2002, p.97-8)

Mesmo que o narrador pudesse supor a existência de relações incestuosas e viciadas


entre os Krahôs, há uma costura simbólica, classificatória, antropológica, organizada pela lei
da proibição do incesto e possibilitadora da constituição social. No relato do narrador sobre a
tribo Krahô temos:
Dormi embalado pelo canto do velho Krahô, que volta e meia retornava ao pátio
central e entoava suas canções. Havia alguma coisa maravilhosa e encantadora
naquele ritual. Por volta das três da manhã, ao ouvir de novo o velho cantor, resolvi
me levantar e ir ver. [...] o velho cantava sozinho no centro da aldeia imóvel e
adormecida. Depois de alguns minutos, uma mulher despontava à porta de uma
casa e vinha em silêncio [...] por um dos caminhos que convergiam para o pátio.
[...] Ao chegar ao pátio central, ela se postava diante do cantor e passava a
acompanhá-lo na canção, como se fossem uma dupla. Minutos depois, outra mulher
surgia à porta de outra casa e tomava o caminho solitário que a levava ao centro da
aldeia. Uma mulher depois da outra, de todas as casas, com intervalos de minutos,
vinham em direção ao velho cantor e se punham enfileiradas diante dele, para
acompanhá-lo, atraídas pelas canções. Ele as chamava, uma a uma, até que no
centro da aldeia um coral de mulheres estava formado sob a sua liderança e a lua
cheia. [...] Lá pelas tantas, despontou de uma delas um homem com um carrinho de
bebê. E pelo mesmo caminho que antes havia tomado a sua mulher, ele veio até o
centro da aldeia, parou diante da mãe, já com o peito para fora dos panos, e lhe
entregou a criança. (CARVALHO, 2002, p.100)

Nesse momento, o narrador apresenta um dos aspectos da organização social da tribo


Krahô através de uma lei manifestada por um ritual que acorda e dá movimento à aldeia
imóvel e adormecida. A ritualização da lei promove imagens pelas quais o grupo social se
organiza. Para Adorno e Horkheimer, as imagens produzidas no meio sócio-cultural servem
aos homens, “no ritual mágico, para tentar influenciar a natureza.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.21) Adorno e Horkheimer ainda acrescentam que
na magia existe uma substitutividade específica. O que acontece a lança do inimigo,
à sua cabeleira, a seu nome, afeta ao mesmo tempo a pessoa; em vez do deus, é o
animal sacrificial que é massacrado. A substituição no sacrifício assinala um novo
passo em direção à lógica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e
o cordeiro em lugar do primogênito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já
representavam o gênero e exibiam a indiferença do exemplar. Mas a sacralidade do
hic et nunc, a singularidade histórica do escolhido, que recai sobre o elemento
substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcável na troca. (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.24-5)

Assim, no exercício do rito, surge na produção e na lógica discursiva, uma forma de


substituição que mantém o que é da ordem do individual num contexto do universal, do
gênero, da indiferença do exemplar. O que é exemplar torna-se uma singularidade histórica e,
em nome do coletivo, fixa-se num espaço de mudanças e trocas como introcável. O que
permite que o singular se mantenha como introcável em meio a transformações existentes no
contexto social é seu caráter coletivo e universal. Em “Nove Noites”, as mulheres Krahô,
84

como por encantamento, saem de suas casas para acompanhar o chamado de um homem, um
ancião representante da lei que organiza o contexto social na constituição de uma ordem
coletiva. Essas mulheres, sob a liderança do ancião; obedeciam a ele em suas canções. Nesse
contexto, surge um homem que, seguindo a sua mulher e lhe entregando o filho em seus
braços, se manifesta como singularidade, ao mesmo tempo em que representa, na
coletividade, o universal da instituição e organização familiar.
Ainda cumpre lembrar que no que se refere à constituição das famílias, na divisão do
paparuto, “uma espécie de bolo de mandioca recheado com banha e pedaços de porco”
(CARVALHO, 2002, p.98), “cada família teria o seu quinhão e voltaria para comê-lo em
casa.” (CARVALHO, 2002, p.101) Também no ritual da divisão do paparuto, a singularidade
de cada família é mantida no grupo social por pertencer e participar do que é coletivo. Na
intimidade de suas casas, cada família celebrava a sua participação na organização social,
comendo do paparuto preparado coletivamente, o quinhão que lhe cabia.
Nos jogos realizados na tribo Krahô, também os índios eram organizados em duas
famílias. “De um lado ficava a família do verão ou da estiagem (Wakmêye). [...] Do outro, a
família do inverno ou da estação das chuvas (Katamye). [...] Os dois grupos alternavam-se no
poder e na administração da aldeia, como dois partidos políticos.” (CARVALHO, 2002,
p.102) Após os jogos dos Krahô, o narrador teve que escolher a qual das duas famílias iria
pertencer e “no início da noite, [...] [o antropólogo que lhe acompanhava na visita a essa tribo
lhe revelou] de uma vez por todas o que ia acontecer ali: ‘Você escolheu, hoje de manhã.
Agora vai ser apresentado à sua família, às mulheres com quem não poderá transar’”.
(CARVALHO, 2002, p.104)
Outro ritual presente na aldeia Krahô era:
Algumas mulheres com baldes e garrafas de água nas mãos se aproximaram,
escolhendo alguns homens e os levaram para o centro da roda, perto do fogo, onde
abaixaram a cabeça, como numa reverência, e elas lhes despejaram os baldes e as
garrafas, rindo a valer. [...] As mulheres jogavam água nos homens a que estavam
ligadas por laços de parentesco simbólico, classificatório, com os quais não podiam
manter relações sexuais. O banho era uma cerimônia de explicitação e delimitação
da interdição do incesto. (CARVALHO, 2002, p.104)

A lei classificatória e proibitória dos Krahô organiza o pensamento do narrador na


construção do seu discurso e, obviamente, do complexo e do romance. Afinal, “as múltiplas
afinidades entre os entes são recalcadas pela única relação entre o sujeito doador de sentido e
o objeto sem sentido, entre o significado racional e o portador ocasional do significado.”
(ADORNO, HORHEIMER, 1986, p.25) A lei classificatória e proibitória torna-se, pois, um
efeito de linguagem que emerge entre aquele que produz sentido e aquele que recebe o sentido
85

que para ele foi produzido. Portanto, é entre duas diferentes famílias, entre os Wakmêye e os
Katamye, entre o verão e as chuvas, que o sujeito se organiza num contexto social pelo
coletivo que lhe oferece a possibilidade de inserção e inclusão em dadas instituições e
organizações, dentre as quais se inclui a família. A linguagem, assim, exercendo sua função
social, permite a construção da subjetividade num processo singular/coletivo, onde e quando
se organizam as relações sociais, parentais, familiares e sexuais através das interdições
apresentadas ao sujeito pela incompletude do saber.
Em carta escrita por Marion à Ruth Benedict, ao frisar o interesse de seu pai por
dinheiro, a irmã do antropólogo também se refere a uma lei. Marion apela à Ruth que: “Por
favor, não deixe que ele ou qualquer outra pessoa mude o rumo da lei.” (CARVALHO, 2002,
p.88)
No contexto da magia da cultura Krahô, Buell Quain envolve-se com rituais que lhe
apresentam no contexto social da coletividade, o complexo de Édipo e os possíveis rumos
resultantes da sua organização pela lei do incesto. Segundo Adorno e Horkheimer,
todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a
ser influenciado pela magia. [...] No estágio mágico, sonho e imagem não [devem
ser] tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou
pelo nome. A relação não é a da intenção, mas do parentesco. (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.23-5)

Assim, parece que Quain também encontrou na linguagem da magia da cultura Krahô
possibilidades para vivenciar o complexo edípico organizado pela lei e proibição incestuosa.

3.3.2.1 A lei como organizadora do complexo

A lei, através da cultura, organiza a sociedade. Isto também está presente no que
Quain relatou a Manoel Perna sobre os nativos do Pacífico Sul. Nas palavras de Perna,
segundo o antropólogo:
A aldeia não ficava na praia, mas morro acima, [...] governada por um chefe que
mantinha um dente de baleia pendurado no peito como símbolo de poder. Na ilha
os chefes eram sagrados, assim como tudo em que eles tocavam e todos os que os
tocavam. As aldeias na costa foram aculturadas pelos invasores de outras ilhas, que
por sua vez foram influenciados pelos europeus. Só os nativos do interior
mantinham intacto aquilo que [Quain] procurava: uma sociedade em que, a despeito
da rigidez das leis, os próprios indivíduos decidiam os seus papéis dentro de uma
estrutura fixa e de um repertório predeterminado. (CARVALHO, 202, p.115)

Numa rede construída por diferentes culturas, a cultura europeia chega às aldeias da
costa pela sua invasão por outras ilhas já aculturadas pelo europeu. Para Bakhtin, não
podemos desconsiderar “o imenso papel histórico que a palavra estrangeira desempenhou no
processo de formação de todas as civilizações da história. [...] A palavra estrangeira foi,
86

efetivamente, o veículo da civilização, da cultura, da religião, da organização política.”


(BAKHTIN, 1981, p.1001)
Contudo, no contexto da palavra nativa apoderada pela palavra estrangeira,
residualmente, algo sagrado parece permanecer intacto. O sagrado nativo, lido pelo
estrangeiro como profano, dilui fronteiras e questiona as delimitações territoriais. Também
recebendo a condição de profano, o sagrado passa a evocar o mistério. “A palavra nativa é
percebida como um irmão, como uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual
habitualmente se vive e se respira. Ela não apresenta nenhum mistério.” (BAKHTIN, 1981,
p.100) Já, quando o sagrado existente na palavra nativa é interpretado como profano pela
palavra estrangeira, surgem os enigmas, os mistérios que sustentam as civilizações e toda vida
humana. Prova disso é o lugar do sacerdote na formação das sociedades. Para Bakhtin,
decifrar o mistério das escrituras sagradas foi justamente a tarefa dos sacerdotes.
[...] [O mistério surge] na boca de um estrangeiro, duplamente estrangeiro por sua
posição hierárquica e se trata, por exemplo, de um chefe ou de um sacerdote; mas,
nesse, a palavra muda de natureza, transforma-se exteriormente ou desprende-se de
seu uso cotidiano. (BAKHTIN, 1981, p.100-1)

O que permanece residualmente na palavra nativa questionada pela palavra estrangeira


nos diz da lei, também materializada num símbolo de poder. A lei que organiza a cultura, a
sociedade e o próprio sujeito delimita o repertório a partir do qual o sujeito faz suas escolhas.
A lei também se manifesta nos rituais de uma dada cultura. No que diz respeito à
aldeia trumai, Perna relata uma cerimônia de cura presenciada por Quain nesta aldeia. Nas
palavras de Manoel Perna:
A mulher do chefe da aldeia estava doente e até então nenhum remédio tinha sido
eficaz. Os índios decidiram fazer o ritual. Os homens se fecharam numa das casas,
em torno da doente. A cerimônia era proibida às mulheres. Quando o dr. Buell
tentou entrar, a irmã do chefe lhe disse que, como elas, ele morreria se pisasse ali
dentro. Mas ele ignorou e entrou assim mesmo. (CARVALHO, 2002, p.58)

Na cultura, a lei inscrita na linguagem apresenta-se como repetição, um ritual no qual


as mulheres e Quain, enquanto estrangeiro, eram barrados em relação a um dado saber.
Considerando os processos de singularização e as diferenças por eles produzidas, Deleuze
ressalta que, “sob todos os aspectos, a repetição é a transgressão. Ela põe a lei em questão,
denuncia seu caráter nominal ou geral.” (DELEUZE, 1988, p. 69) A lei da impossibilidade do
saber total assemelha-se à morte que mantém o tom enigmático que sustenta a construção do
romance. No final da narrativa, o narrador, lembrando-se de um “desses programas de
televisão sobre antigas civilizações, [comenta que] os Nazca do deserto do Peru cortavam as
línguas dos mortos e as amarravam num saquinho para que nunca mais atormentassem os
vivos.” (CARVALHO, 2002, p.168)
87

Corroborando com o narrador, Manoel Perna também fala que “depois da morte [de
Quain], [saiu] à procura [da] árvore [na qual “todo bicho [...] vê a totalidade do universo e
compreende [...] o que é, onde está e o que se passa à sua volta.” (CARVALHO, 2002,
p.133)] (CARVALHO, 2002, p.133) Ainda nas palavras de Perna:
Os índios me levaram até o túmulo cercado de talos de buriti. Podia estar diante de
qualquer árvore. Tive que acreditar que havia sido ali. A comprovação eu só teria se
exumasse o cadáver com as próprias mãos. Muita coisa não se pode desenterrar.
Sozinho eu não tinha forças. (CARVALHO, 2002, p.133)

Tanto o narrador quanto Manoel Perna apresentam a morte como impossibilidade, o


que, na perspectiva indígena e na visão da civilização branca, permite ao sujeito produzir
sentidos para si e para o outro, localizando-se espaço-temporalmente e assim garantindo no
duplo a sua existência.

3.4 O duplo e o dialógico

Dos rituais e explicações indígenas ao mito da malandragem, o romance se constrói


por diferentes duplos frente à impossibilidade da existência de um só e único sentido para o
enigma Buell Quain. Portanto, o narrador apresenta distintas organizações sócio-culturais que
se sobrepõem na construção da história do antropólogo. Fazendo alusões ao Carnaval, ao Rio
de Janeiro e à Lapa, o narrador, ao contar a chegada do antropólogo no Rio de Janeiro em
1938, apresenta a cultura carioca recortada por dois de seus expoentes: o Carnaval e o bairro
da Lapa. Esses contextos são organizados pela lei da malandragem, assim como é através
deles que essa lei se manifesta. Segundo o narrador, Quain
chegou ao Rio de Janeiro às vésperas do Carnaval de 1938 e se hospedou numa
pensão da rua do Riachuelo, na Lapa. O bairro era conhecido por suas “pensões do
amor barato”, como as definiu Luís Martins, àquela altura célebre cronista da bas-
fond e da prostituição carioca. Ao pé da carta de apresentação que trazia, assinada
por Franz Boas, o jovem etnólogo escreveu à mão o seu novo endereço no Rio: “B.
H. Quain, 107 Rua Riachuelo (Pensão Gustavo)”. Na mesma época, Banana da
Terra, filme em que Carmen Miranda foi imortalizada com bananas na cabeça
enquanto cantava “O que é que a baiana tem?”, entrou em cartaz no cine Metro-
Passeio, no centro da cidade. O filme inspirou os foliões, que saíram às ruas da
Lapa, em blocos, travestidos de baianas, com a cabeça coberta de frutas. Ainda no
Carnaval de 1938, um dos principais personagens da mitologia local, expoente da
malandragem, do crime e da homossexualidade do bairro, ganhou o concurso do
baile do teatro República, próximo à praça Tiradentes, com uma fantasia de
lantejoulas inspirada num morcego do Nordeste, de onde vinha, e daí em diante
passou a ser chamado Madame Satã, por associação ao filme homônimo de Cecil B.
DeMille. (CARVALHO, 2002, p.121)

Num jogo especular, diferentes elementos textuais desdobram-se uns sobre os outros
na construção do romance e da subjetividade Buell Quain. Na perspectiva de Lima, “a dupla
ótica interpretativa não é apropriada apenas para entendermos a razão do tom da narrativa. Na
88

verdade, ela penetra em cada vão do relato,”(LIMA, 1981, p.138) ampliando as possibilidades
de produção de sentidos que fazem do romance uma rede semântica e interpretativa. Em
“Nove Noites”, no contexto do Carnaval, uma festa marcada pela possibilidade de
transgressão, chega ao Brasil um antropólogo questionando as leis que regem a civilização
branca e disposto a encontrar outra configuração de mundo e de sociedade na qual pudesse se
incluir.
Buscando um mundo no qual ele coubesse e que lhe abrigasse, um mundo dialógico,
de relações, distâncias, analogias e oposições que trazem o plural, o social, o coletivo e o
intersubjetivo, Buell Quain também se aproxima das ideias de Bauman sobre as comunidades
contemporâneas. Para Bauman,
comunidade é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido – mas a que
esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos que
podem levar-nos até lá. [...] O paraíso perdido, diferente da’‘dura realidade” é
produto da imaginação, da liberdade de sonhar uma realidade de realidade hostil da
vida cotidiana. [...] A comunidade imaginada se alimenta dessa diferença.
(BAUMAN, 2003, p.9)

Bauman ainda diz que,


as pessoas [diante da] frialdade (da sociedade) sonham com esse círculo mágico e
gostariam de adaptar aquele mundo frio a seu tamanho e medida. Dentro do
“círculo aconchegante” elas não precisam provar nada e podem, o que quer que
tenham feito, esperar simpatia e ajuda. (BAUMAN, 2003, p.16)

No Brasil, nada melhor do que a cidade do Rio de Janeiro e o Carnaval para expressar
a receptividade do povo brasileiro. No texto do Carnaval se inclui o texto do bairro da Lapa
conhecido como o berço da boemia carioca, o ponto de referência para os amantes e para a
vida noturna. Em terras brasileiras, Quain também teve seus momentos boêmios. Isso pode
ser visto tanto na sua chegada no Rio de Janeiro, quanto em suas visitas a Manoel Perna.
Quain
chegou ao Rio no Carnaval de 1938 e [...] conheceu, num bloco de rua, uma negra alta e
vistosa, fantasiada de enfermeira. [...] Ele mal falava português. Não entendia nada do que
ela lhe dizia. Estava bêbado. Levou-a para o seu quarto de pensão, dormiram juntos, mas
quando acordou no dia seguinte, ela já não estava lá. [...] Havia um homem na sua cama.
(CARVALHO, 2002, p.127)

Na companhia de Manoel Perna, o antropólogo ao queixar-se de suas desilusões


amorosas e possíveis traições, também encontrava-se bêbado. Dirigindo-se ao intercessor que
está por chegar, Perna diz:
Só pode ter sido na casa da praia que ele lhe falou dela pela primeira vez. Se não,
por que teria associado, bêbado, numa das noites em que me procurou em Carolina,
o mar e chuva à decepção que infligia aos que o amaram? Devem ter discutido
sobre aquela mulher. Ele pensava que você não soubesse dela. E foi quando se
revelou a traição. (CARVALHO, 2002, p.122)
89

Assim, o contexto da boemia dialoga com situações amorosas, embriaguez, possíveis


traições, um misto de realidade e fantasia, de realidade e ficção. Através de diferentes ditos, a
realidade é ficcionalizada por diálogos envolvendo distintos duplos organizados pelo interdito
que exerce a função de impor um entredito, um dito entre dois sujeitos, imposto por um
intervalo existente entre dois significantes. No desequilíbrio existente entre os significantes
marcados pelo excesso e os significados marcados pela escassez, o romance se apodera da
realidade fatual que padece de sentido e tem a paixão pela verdade. Exercendo, pois, a função
do significante, ao recortarem os diferentes textos que compõem a narrativa, o narrador do
romance, como orquestrador de distintas vozes, permite-nos apaixonar por aquilo de que
somos carentes. Assim, O narrador e Manoel Perna organizam diferentes discursos presentes
na narrativa que
se encontram e coexistem [...] na consciência criadora do romancista. [Estas
linguagens] vivem verdadeiramente, lutam e evoluem no plurilinguismo social.
Portanto, todas elas podem penetrar no plano único do romance, o qual pode reunir
em si as estilizações paródicas das linguagens de gêneros, os diferentes aspectos da
estilização e de apresentação das linguagens profissionais, [...] das linguagens de
gerações, dos grupos sociais. [...] Todas elas podem ser invocadas pelo romancista
para orquestrar os seus temas. (BAKHTIN, 1993, p.99)

Diante do enigma da morte de Quain, diferentes falas e opiniões movimentam o


romance. Assim, o romance, o drama, o trágico, o irônico, dialogando com os discursos do
antropólogo, do engenheiro, do jornalista, do romancista, do índio, do carolinense e do norte-
americano, em distintos tempos que demarcam diferentes gerações, apresentam fatos e
acontecimentos. Bakhtin comenta que “todas as linguagens do plurilinguismo [...] são pontos
de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas
específicas objetais, semânticas e axiológicas.” (BAKHTIN, 1993, p.98)
Enquanto outro recorte do romance que apresenta o aspecto dialógico da narrativa,
dentre as principais vias do bairro da Lapa, encontra-se a Rua Riachuelo. Segundo o site
“informativo dos leiloeiros e colecionadores”, na Lapa, essa rua que começa na Avenida Mem
de Sá e termina na Rua Frei Caneca, pode ser lida como uma das ruas preferidas pelas pessoas
ricas e fidalgas do Rio de Janeiro nos anos 1800. Já nessa ocasião, a Rua Riachuelo, chamada
de Rua Matacavalos, era uma via bastante movimentada, o que caracterizava muito bem a
vida urbana carioca. Prova disso são as referências que Machado de Assis faz a essa rua em
suas obras. Nessa rua, esse autor também localizou seus personagens Bentinho e Capitu,
protagonistas de “Dom Casmurro” (1994), um dos mais discutidos romances da literatura
brasileira. No contexto do duplo, assim como “Nove Noites”, o romance “Dom Casmurro” é
90

tecido por questões referentes ao dinheiro, à política, às classes sociais, à família, às relações
pessoais, ao sexo e principalmente, a uma possível traição.
Assim, como o texto literário é em si duplo, podemos também pensar na duplicidade e
desdobramentos entre textos. No que diz respeito à duplicidade dentro do próprio texto,
Kristeva adverte que
este desdobramento não é nem horizontal, nem vertical: não implica nem a ideia do
paragrama como mensagem do sujeito da escritura a um destinatário (o que seria a
dimensão horizontal), nem a ideia do paragrama como significante-significado (o
que seria a dimensão vertical). O duplo da escritura-leitura é uma espacialização da
sequência: às duas dimensões da escritura (Sujeito-Destinatário, Sujeito da
enunciação-Sujeito do enunciado), acrescenta-se a terceira, a do texto “estranho.”
(KRISTEVA, 1974, p.99)

Como podemos ver, o duplo então, além de trazer as dimensões significante-


significado e sujeito-destinatário, dimensões estas que também se constituem pelo duplo,
promove estranheza. Duplicidades acontecem quando a familiaridade do diferente soa como
estranha e é no estranhamento que o sujeito percebe o diferente e marca a sua diferença.
Retornando ao bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro, no site “informativo dos
leiloeiros e colecionadores”, em 04 de julho de 1875, numa homenagem aos feitos da força
armada nacional no dia 11 de junho na Guerra do Paraguai, a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro propõe a mudança do nome da Rua de Matacavalos para Rua Riachuelo. Onze dias
após, a proposta foi aprovada por portaria do ministro do império.
Na Rua Riachuelo, também famosa por seu carnaval, encontra-se o Clube dos
Democráticos, instituição carnavalesca fundada em 1867 e lá instalada até os dias de hoje. Foi
aí, também, que, na primeira década do século XX, Biase Labanca, juntamente com seu irmão
João Augusto e seu primo José, instalaram um estúdio cinematográfico improvisado, uma das
primeiras tentativas de filmagens do Rio de Janeiro.
Como toda a Lapa, a Rua Riachuelo é palco de encontro de boêmios, intelectuais,
artistas, políticos e, também, lugar onde se reúne e celebra os mais diversos grupos musicais.
A Rua Riachuelo pode, então, ser lida através de romances, fatos, personalidades históricas,
arquitetura, carnaval, produção cinematográfica e música. Nessa rua, também passaram Luís
Martins, Carmen Miranda, João Francisco dos Santos, Cecil DeMille que dialogam com o
Cinema Metro-Passeio, o Teatro República, a Praça Tiradentes, Madame Satã, o filme
“Banana da terra” e a música “O que é que a baiana tem?”
Assim, pela cartografia, o narrador tece a rede narrativa por conexões entre diferentes
pontos e elementos advindos de diversos discursos que, de forma dialógica, estabelecem os
possíveis duplos presentes no romance. Na hipermodernidade, o encurtamento de distâncias e
91

criação de outros espaços aproximam a cartografia da lógica virtual. A desterritorialização e


reterritorialização de um texto, de um fato, de um personagem, de um lugar, etc.,
movimentam a narrativa tanto por coexistências quanto por dispersões.

3.5 Coexistências e dispersões

A multiplicidade de sentidos, de discursos, de lugares, de acontecimentos e de


personagens presentes em “Nove Noites” evidencia, pela não certeza, a carência semântica
que mantém na narrativa seu caráter lacunar e enigmático. Num mesmo espaço e tempo
coexistem diferentes e infinitos significantes que excedem à precariedade de significados que
dispomos para dar sentido àquilo que nos rodeia. Por não existir uma relação de equivalência
entre significantes e significados, mas sim um constante desequilíbrio, transbordamentos
semânticos num contexto de dispersões ampliam as conexões intertextuais através da
cartografia.
Sabendo da carência de sentidos frente ao excesso de significantes presentes no
mundo, o sujeito tem que se satisfazer com aquilo que lhe é possível conhecer. Assim,
também em 1938, no retorno de Quain da aldeia trumai para Cuiabá, já que isso foi exigido
pelo Serviço de Proteção aos Índios, um eclipse simula a parcialidade do que o sujeito pode
saber de seu destino. Esta passagem é apresentada por Manoel Perna da seguinte maneira:
Para mim, o pesadelo era imaginar a viagem de volta, os trinta e oito dias de barco
a subir os rios por terras inimigas na apreensão de flechas traiçoeiras, e depois a pé
e de caminhão por quilômetros e mais quilômetros de poeira e terra. Era o que ele
teria que enfrentar, deixando para trás aquele fim de mundo, embora só quisesse
ficar e seguisse contrariado, coagido pelo Serviço de Proteção aos Índios a sair
imediatamente das terras indígenas. Durante a viagem de volta, quando ele subia os
rios, no dia 7 de novembro de 1938, um eclipse de pouco mais de uma hora fez a
lua desaparecer do céu logo depois de ter surgido. Os índios que o acompanhavam
disseram que não podiam prosseguir enquanto não espantassem o mal que estava
comendo a lua. Primeiro, pediram que ele atirasse para o alto. Depois, dançaram e
atiraram flechas para o céu. Um dos índios decidiu voltar, temendo ser assassinado
pelos brancos. Por fim, o chefe ficou de pé e falou longamente com a lua, até ela
reaparecer do nada. (CARVALHO, 2002, p.60)

Passando por entre flechas traiçoeiras em terras inimigas, Quain, desconhecendo o seu
destino, já que não mais poderia ficar com os trumai, depara-se com os sentidos produzidos
pelos índios para o eclipse. Assim, um eclipse pode estar comendo a lua ou ser sinal de
assassinato. Segundo o antropólogo, em carta escrita para Ruth Benedict, a partir de sua
convivência como os Trumai: “toda morte é assassínio. Ninguém espera passar da próxima
estação das chuvas. Não é raro haver ataques imaginários. Os homens se juntam aterrorizados
no centro da aldeia – o lugar mais exposto de todos – e esperam ser alvejados por flechas que
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virão da mata escura.” (CARVALHO, 2002, p.60) O fato é que Quain, no dia 7 de novembro
de 1938, dirigia-se pela incerteza para o seu destino, ou seja, para a sua morte em 2 de agosto
de 1939. Para Lima,
a morte é sim o nada, o aniquilamento do que nasce, mas também o oposto que o
incita e o delimita. Neste que aqui nasce, a morte que se invoca declara o contrário
que o norteará. Mesmo pois sob o risco de articularmos o inarticulável, não se
cogita de dizer que a dialética entre contundência e receio seja a causa de que o
efeito seria a morte como nada e norte. (LIMA, 1981, p.184)

Assim como a morte, vista como nada e norte, num contexto de incertezas,
multiplicidades, coexistências e dispersões, o narrador e personagens do romance
manifestam-se na narrativa como duplicações e especularidades. Lima afirma que “o outro
não está a priori fora do eu, inaugura-se dentro de si. E este outro interno é outro mesmo
porque não é uno, mas disperso. O outro não é apenas quem empresta seu ouvido para o que
diz a nossa voz. Dentro desta voz, já está o mais de um do outro.” (LIMA, 1981, p.160)
Enquanto vozes que ecoam umas sobre as outras, na escrita do romance, o enigma da
morte e da vida de Quain é constantemente reescrito por repetições. A reescrita, como forma
de buscar o ideal virtual, defende o texto contra a sua esclerose ao estabelecer uma rede
construída por linhagens envolvendo diferentes gerações. As tentativas de encontrar o
esclarecimento acerca do enigma Quain realizam-se não só por repetições, mas também por
omissões e substituições, alcançando sempre outras configurações. Na busca da causa da
morte do antropólogo, o narrador, confuso entre as possibilidades desta morte, especulariza as
crises vividas por Quain. Nessa mesma perspectiva, o terror vivido pelos índios Trumai,
frente aos possíveis ataques de outras tribos, também duplica e dispersa os fantasmas do
antropólogo. Para o narrador:
A saída de Buell Quain da aldeia pela última vez lembra uma fuga. [...] Se estava
realmente louco, e a despeito do clichê psicológico, era então uma fuga de si
mesmo, do duplo que o mataria na eventualidade de uma nova crise, que se
aproximava. Deve ter sentido a iminência de uma nova crise e decidido ir embora
antes que fosse tarde demais. Na solidão, vivia acompanhado dos seus fantasmas,
via a si mesmo como a um outro de quem tentava se livrar. Arrastava alguém no
seu rastro. Carregava um fardo: Cãmtwýon. [...] A aceitar a explicação da doença,
no entanto, de um ponto de vista exterior e mais objetivo, esse fardo era agora o
próprio corpo leproso ou sifilítico. Simplesmente não podia mais suportar o
sofrimento do próprio corpo castigado pela doença. [...] Houve momentos em que,
talvez por causa da inutilidade da obsessão de entender o que o guiava nas suas
últimas horas, e com isso tentando entrar também na sua loucura, cheguei a cogitar
que pudesse estar fugindo não só de um fantasma pessoal, mais de alguma coisa
objetiva e concreta, de alguém de carne e osso. Quando nos encontramos, perguntei
à antropóloga que tinha escrito o artigo no jornal se ela aventava a possibilidade de
ele ter sido assassinado. E ela foi taxativa. Me disse que não havia nenhuma chance
de que ele não tivesse se matado. Tudo contradizia a hipótese do homicídio, a
começar pelas cartas que deixou. [...] Talvez Quain tivesse as suas razões para não
deixar transparecer que estava correndo risco de vida. O que eu queria dizer não
fazia muito sentido, estava contaminado pela loucura dele. [...] Talvez houvesse
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razões para ele ser assassinado. Talvez não quisesse que essas razões viessem à
tona. [...] Talvez preferisse se matar. Tudo dependia do que tivesse feito na aldeia.
(CARVALHO, 2002, p.112-4)

A coexistência da fuga, da crise, da solidão e dos fantasmas de Quain leva às


duplicações e especularizações do antropólogo na obsessão do narrador em compreender a
morte que também se manifesta como dispersão. A morte sempre escapa e exatamente por
isso se dispersa em múltiplos sentidos. Frente à impossibilidade da obsessão do narrador
entender a morte de Quain, o fato torna-se enigma que se desdobra em inúmeras hipóteses.
Contaminado pela loucura do antropólogo, o narrador reproduz a angústia de Quain e tem a
sua angústia reproduzida por este personagem. Nesta direção, além da especularidade
existente entre Quain e o narrador, Cãmtwýon, maneira pela qual os índios chamavam o
antropólogo, torna-se o outro para esta personagem, assim como Quain se identifica como o
terror vivido pelos Trumai.
Bernardo Carvalho mantém na escrita, por duplicações e repetições, o tom trágico da
narrativa. No relato do narrador acerca da vivência de Quain com os trumai, o que será citado
logo abaixo, o trágico se manifesta como possibilidade de esclarecimento ou, pelo menos,
como catarse. Assim, mediados pela cultura, os conflitos humanos cedem espaço às práticas
de feitiçaria ou às representações catárticas. Para o narrador, ao se referir ao tempo que Quain
esteve com os Trumai:
Os conflitos, em geral ligados ao sexo e ao adultério, ou eram substituídos por
práticas de feitiçaria ou se resolviam em representações catárticas, em que os
envolvidos descarregavam suas diferenças emocionais por meio de ações
simbólicas numa espécie de teatro improvisado no centro da aldeia. (CARVALHO,
2002, p.55)

Uma simulação, um teatro que ocorre no centro da aldeia promovendo catarse,


permite-nos pensar no gênero trágico, que na antiguidade clássica acontecia em arenas
públicas, despertando e promovendo horror, fruição e purificação.
O horror e a fruição também estão presentes no relato do narrador sobre o seu destino
na visita que fazia aos Krahôs e sobre o que poderia descobrir a respeito de Quain nessa
expedição. Isso pode ser observado quando o narrador diz:
Tudo só ficou ainda pior quando o menino da bicicleta, filho do [índio Krahô] José
Maria, se aproximou furtivamente de mim e conseguiu dizer apenas: “Eles estão
mentindo para você”. Teve que interromper pela metade o que me revelava, para
logo sair pedalando e desaparecer, quando percebeu que o pai se aproximava
desconfiado da cena de cumplicidade do filho comigo. A frase ficou martelando a
minha cabeça. Era o mais próximo de alguma verdade a que eu tinha chegado. Eu
não sabia se dizia respeito ao que preparavam para mim naquela noite ou ao que
escondiam de mim sobre o passado e a morte de Quain. Em ambos os casos, era
péssimo. (CARVALHO, 2002, p.103)
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Quando o filho de José Maria adverte o narrador de uma possível mentira, isso
também aproxima o narrador de uma possível verdade. Nesta direção, Bakhtin adverte que “a
verdade é restabelecida pela redução da mentira ao absurdo.” (BAKHTIN, 1993, p.115) A
coexistência da mentira com a verdade promove horror e fruição. A possibilidade de o sujeito
alcançar a verdade que busca lhe traz fruição na mesma intensidade que lhe causa horror pela
realização e fim de sua busca. Também a mentira horroriza o sujeito pela probabilidade de
destituir a verdade do lugar do desejo, ao mesmo tempo em que lhe causa fruição por manter
acesa a dúvida que alimenta a sua condição de ser desejante. Interrompendo pela metade o
que poderia revelar a verdade, o menino desaparece, causando desconfiança, cumplicidade e
desejo no sujeito. A revelação sempre parcial do que se busca, o que causa fruição e horror no
sujeito, dá o tom enigmático necessário à construção da subjetividade e da sua narrativa.
Ehrenzweig, ao discutir
o chiste como excelente e racionalmente significativo [para a percepção artística,
diz que] se tornará difícil para nós nos darmos conta de seu caráter inarticulado e
sem sentido. Nós acreditamos ter “adivinhado” um significado já previamente
existente, um sentido “oculto” numa aparente falta de sentido. [...] Do mesmo modo
somos levados a acreditar que o chiste tem uma estrutura articulada e um conteúdo
sensato o tempo todo, só que antes do riso não conseguíamos captá-lo. As
experiências inarticuladas originais são esquecidas em um nível mais profundo da
mente, foram destruídas quando a percepção totalmente articulada da superfície
chegou para substituí-las. (EHRENZWEIG, 1977, p.178-9)

Apesar de toda relutância para não nos perder na dimensão do não sentido, é ele que
nos traz fruição, mesmo que também nos horrorize pela instabilidade que nos causa. Da
mesma forma que a produção de sentido acontece no campo da alteridade, nos deparamos
com o não sentido também no nosso encontro com o outro. Nas palavras do narrador,
dois meses e meio depois [que Quain tinha chegado na aldeia trumai, ele] já estava
integrado; [mesmo que agora, o antropólogo se permitisse] recusar os pedidos
incessantes dos índios [...] [e sabendo que] a violência física não era permitida na
aldeia, sobretudo contra as crianças, [...] por duas vezes quase desencadeou uma
comoção social ao bater na mão de um menino que lhe roubava farinha e ao pisar
sem querer no pé de outro. (CARVALHO, 2002, p.55)

Assim como o narrador relata a aculturação de Quain pelos trumai, esse mesmo
narrador também comenta a aculturação do antropólogo e de seu filho que o acompanharam à
aldeia Krahô ao observá-los “pintados dos pés à cabeça” (CARVALHO, 2002, p.92) no meio
desses índios. A aculturação de Quain pelos trumai ainda pode ser vista quando Manoel Perna
relata o que o etnólogo lhe tinha contado na primeira noite em que eles se encontraram.
Vejamos:
Num dia de tempestade cuja escuridão se confundiu com a noite, acometido de
febre, [Quain] sentiu o horror que afligia os Trumai. Apesar de eles não ligarem
para o sobrenatural, como os Kamayurá, temiam raios e trovões. Achavam que
alguém estava contrariando a chuva. Durante a primeira tempestade tropical que
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presenciou na aldeia, o dr. Buell recebeu a visita esbaforida de Aloari, seu


assistente e cozinheiro, que vinha lhe implorar que apagasse o lampião e parasse de
trabalhar, pois assim estava irritando a chuva. Foi diferente naquele dia de febre em
que a tempestade fez o dia virar noite. Viu dois olhos à porta da cabana. Não eram
os olhos fundos de Aloari, com seus lábios grossos e os cabelos desgrenhados
cortados em forma de cuia. Eram olhos ardentes soltos no nada, como se boiassem
na matéria viçosa da escuridão e da chuva. E [Quain] disse apenas: “Os olhos de
uma pessoa que eu conheci”. (CARVALHO, 2002, p.59)

Como os Trumai, Quain teme, na escuridão propiciada pela chuva, não o sobrenatural
ou os raios e os trovões, mas algo de conhecido que amedronta pela familiaridade e
semelhança. Para Adorno e Horkheimer, “o sobrenatural, o espírito e os demônios seriam as
imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras
míticas podem se reduzir [...] ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.22)
Atemorizado, também, pela semelhança existente entre e si e os Trumai, Quain busca
marcar uma diferença quando “ao chegar [na aldeia trumai] raspou a cabeça e as
sobrancelhas, para a perplexidade dos seus anfitriões, já que a prática é considerada um
costume suyá.” (CARVALHO, 2002, p.53) Adotando um costume suyá no meio dos trumai, o
antropólogo instala uma falha no duplo, essencial à construção da subjetividade. Nem branco,
nem trumai, nem suyá, pois na perspectiva dos missionários americanos do rio Coliseu,
“quando viram um homem com a cabeça raspada, calças esfarrapadas e uma velha jaqueta
vindo do rio na sua direção, acharam que [o antropólogo] fosse um prisioneiro em fuga, até
que ele lhes sorriu.”(CARVALHO, 2002, p.50) Afinal, como já foi dito, o antropólogo “tinha
horror da ideia de ser confundido com as culturas que observava.”(CARVALHO, 2002, p.55)
Nos tempos hipermodernos, assim como Quain, homem branco, trumai e suyá, a
produção de subjetividades se amplia na coexistência de sentidos que se dispersam para a
construção de outras interpretações. Desestabilizando toda e qualquer certeza, o desequilíbrio
existente entre os significantes e os significados também nos apresenta o desequilíbrio entre
os diferentes mundos e as linguagens que os compõem. Para Bakhtin, “todas [...] [as] línguas
e mundos cedo ou tarde sairão de seu estado de equilíbrio sereno e amorfo, para descobrir sua
pluridiscursividade.” (BAKHTIN, 1993, p.103) Na pluridiscursividade, o discurso imaginário
e o discurso virtual se apresentam como diferentes formas de pensar a ficção.
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4 O NARRADOR E A FICÇÃO

“Nove Noites” é uma narrativa composta por diferentes estratégias literárias


possibilitadoras da manifestação da palavra na sua dimensão escrita e oral. Incluindo-se
também na diversidade literária desta obra, encontramos a inspiração deste romance num
artigo que se referia às cartas escritas por outro antropólogo, em que o narrador disse ter lido
pela primeira vez o nome de Buell Quain. Recorrendo à narrativa temos:
Não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar nele, mas a verdade é que não fazia
a menor ideia de quem ele era até ler o nome de Buell Quain pela primeira vez num
artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001. [...] O artigo tratava das cartas de
um outro antropólogo, que também havia morrido entre os índios do Brasil.
(CARVALHO, 2002, p.13-4)

Assim, este romance escrito também por cartas se inspira num artigo jornalístico que,
por sua vez, foi inspirado por outras cartas. Além disso, ainda encontramos em “Nove
Noites”, fotos, retratos, bilhetes, testamentos, mapas, filme, desenho, artigo jornalístico,
outros romances e e-mails ampliando as possibilidades de se escrever e de se fazer um
romance.
A condição dialógica na composição da narrativa está presente no romance desde os
tempos em que esse gênero literário encontrava-se vinculado à épica. Segundo Wellek e
Warren,
num tempo em que épica e romance não estavam ainda separados, [...] o romance
tradicional, à semelhança da épica, misturava o diálogo, a apresentação direta, com
a narração; a épica chegou mesmo a ser considerada, por Scaliger e outros
inventores de medidas de “valor” dos gêneros, como o mais elevado gênero, em
parte pela razão de que incluiria os outros todos. (WELLEK; WARREN, 1962,
p.287-289-290)

Da épica à hipermodernidade, os possíveis diálogos do romance com outros tipos de


produção textual se ampliaram. Dialogando com outras manifestações de linguagem, o
romance se alimenta, se enriquece, se renova e se atualiza com o passar do tempo. Assim, a
ficção no romance afasta-se da produção épica, o que, para Bakhtin, leva à “profunda
distinção entre a representação puramente épica e a representação romanesca.” (BAKHTIN,
1993, p.77) Segundo Fiorin, “para o teórico russo, o romance é um gênero particular, que,
tendo origens na sátira menipéia e nos gênero aparentados, de certa forma, vive ao longo de
toda a história de nossa civilização.” (FIORIN, 1996, p.137)
Weinhardt nos fala que, na perspectiva de Bakhtin, “o traço definidor do discurso
romanesco é a confluência de muitos discursos”. (WEINHARDT, 1996, p.346) Essa autora
ainda acrescenta que
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a primeira oposição entre romance e epopéia é determinada pelo período próprio a


cada um. O epos já não tem lugar no presente, é um gênero fechado e encerrado
como o mundo que representou, enquanto o romance é o único a se encontrar em
processo de construção, capaz de dar conta da multiplicidade do presente,
justamente pelo seu caráter anacrônico. (WEINHARDT, 1996, p.350)

Em “Nove Noites”, os discursos histórico, jornalístico, científico e antropológico


organizam-se no romance, diluindo na ficção o que é fatual. Para Bakhtin, “a
pluridiscursividade e a dissonância penetram no romance e organizam-se nele em um sistema
literário harmonioso. Nisto reside a particularidade do gênero romanesco.”(BAKHTIN, 1993,
p.105-6)
No percurso histórico que nos conduz à hipermodernidade, o potencial dialógico do
romance se acentua apontando, numa leitura bakhtiniana, “a mutabilidade do gênero
romance.” (WEINHARDT, 1996, p.347) A fluidez textual dos tempos hipermodernos
proporciona “rápidas modificações da moda literária [onde] surge uma geração literária nova
em cada década, e não em cada século, como anteriormente”. (WELLEK; WARREN, 1962,
p.293-4) No “desenvolvimento interno da literatura, [...] aquilo a que Henry Wells [...]
chamou ‘genética literária’” (WELLEK; WARREN, 1962, p.298), surge a moderna teoria dos
gêneros literários. Para Wellek e Warren:
A moderna teoria dos gêneros [...] não limita o número das espécies possíveis e não
prescreve regras aos autores. Admite que as espécies tradicionais possam “misturar-
se” e produzir uma espécie nova [...]. Reconhece que os gêneros podem ser
construídos tanto numa base de englobamento ou “enriquecimento” como de
“pureza”. (WELLEK: WARREN, 1962, p.297)

A moderna teoria dos gêneros literários mantém as misturas, o englobamento, o


enriquecimento, assim como a pureza, na construção e compreensão do gênero literário,
considerando as especificidades de cada obra e de cada autor. Considerando, pois, as
especificidades das obras e de seus autores, Kristeva diz que:
Trabalhar a língua implica, necessariamente, em remontar ao próprio germe onde
despontam o sentido e seu sujeito. É o mesmo que dizer que o “produtor” da língua
[...] é obrigado a um nascimento permanente, ou melhor, que, às portas do
nascimento, ele explora o que o precede. (KRISTEVA, 1974, p.10)

No contexto hipermoderno, o romance, assim como a subjetividade, para além da


dimensão individual, constrói-se na pluralidade e no social, considerando os “diversos
contextos, diversos pontos de vista, diversos horizontes, diversos sistemas de expressão e de
acentuação, diversas ‘falas’ sociais.” (BAKHTIN, 1993, p.91) Barros, ao tratar o diálogo
entre interlocutores, diz que a concepção bakhtiniana de sujeito é “a de sujeito social,
caracterizado por pertencer a uma classe social e em que dialogam os diferentes discursos da
sociedade” (BARROS, 1996, p.28), já que Bakhtin, ao pensar a sociabilidade, apresenta dois
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tipos de relação: a relação entre sujeitos interlocutores que interagem e a relação entre desses
interlocutores com a sociedade. Compondo a subjetividade e o romance, temos, pois, as duas
definições bakhtiniana de dialogismo, o diálogo entre interlocutores e o diálogo entre
discursos. A concepção de subjetividade para Bakhtin, também presente na construção do
romance, aproxima-se da compreensão esquizoanalítica de rizoma por “o dialogismo
interacional de Bakhtin desloca[r] o conceito de sujeito, que perde o papel de centro ao ser
substituído por diferentes vozes sociais que fazem dele um sujeito histórico e ideológico.”
(BARROS, 1996, 28)
Assim, o romance, na hipermodernidade, apresenta-se com espaço intersubjetivo,
interdiscursivo e intertextual. Recorrendo a Bakhtin, Fiorin diz que: “a singularidade do
gênero romanesco consiste exatamente em ser uma representação do interdiscurso e que,
portanto, nele a heterogeneidade constitutiva representa-se.” (FIORIN, 1996, p.136-7)
Em “Nove Noites”, além da diversidade de elementos textuais que compõem o
romance, tais como cartas, mapas, fotos, e-mails, dentre outros, encontramos também,
diferenças linguísticas. Se não todas as cartas, certamente parte delas foi escrita em inglês o
que impôs a sua tradução para o português. “Nove Noites” torna-se, portanto, um espaço de
pluralidade linguística, o que nos remete ao gênero romance como o lugar onde também
diferentes línguas ou suas traduções podem aparecer compondo a narrativa. O narrador de
“Nove Noites”, ao se referir a sua visita à aldeia Krahô, diz: “no final da tarde [...] saí à
procura do antropólogo e do seu filho [...]. Encontrei-os de short e sandália havaiana (em
Roma como os romanos), com os corpos pintados de urucum, sentados em frente à casa do
pajé.” (CARVALHO, 2002, p.91) A presença dos elementos short, sandália havaiana e
urucum, muito mais do que uma questão de tradução, apresenta a pluralidade linguística e
cultural na escrita do romance, numa cartografia do texto literário organizada pelo narrador.
Em Bakhtin, a “palavra estrangeira [entra no espaço do outro criando um] novo contexto.”
(BAKHTIN, 1993, p.147)
Nesse jogo de diversidade e pluralidade, “Nove Noites”, ao se apresentar como um
romance, também se questiona como tal, assim como discute o que é este gênero literário.
Como já foi, rapidamente, comentado anteriormente, problematizando o valor da literatura, às
vezes vista como diletantismo, temos o narrador esclarecendo para Leusipo, índio da tribo
Krahô, sobre o que escrevia: “Tentei lhe explicar que pretendia escrever um livro e mais uma
vez o que era um romance, o que era um livro de ficção [...], que seria tudo historinha, sem
nenhuma consequência na realidade.”(CARVALHO, 2002, p.95)
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Historinhas sem consequências eram também aquelas contadas pelos índios krahô na
tentativa de impressionar o narrador visitante. Segundo ele, só mais tarde entendeu “que, por
ser recém-chegado, [ele] também era o bobo da aldeia, o alvo mais fácil das histórias em que
ninguém mais acreditava.” (CARVALHO, 2002, p.95) O fato é que, recorrendo a Robert
(1973), a origem do romance cedeu lugar a um romance das origens, quando os índios mais
velhos ”estavam preocupados [e] queriam saber por que [o narrador] vinha remexer no
passado”. (CARVALHO, 2002, p.95) Nesse cenário temos que o mito está para os índios,
assim como o romance está para os brancos como possibilidade de esclarecimento e condição
de aplacar a ameaça do caos civilizatório.
Recorrendo a Adorno e Horkheimer, temos que “o esclarecimento ainda se reconhece
a si mesmo nos próprios mitos.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.22) Para esses autores,
o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. [...] Do
mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o
esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia.
Todo conteúdo, ele o recebe dos mitos, para destruí-los, e ao julgá-los, ele cai na
órbita do mito. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.24 e 26)

Assim, em “Nove Noites”, a origem do romance cedendo lugar a um romance das


origens, também nos permite pensar os saberes produzidos pelo mito e pelo romance no
âmbito da busca do esclarecimento. Em torno do enigma Quain, um esclarecimento demanda
sempre outro sentido e a narrativa desenvolve-se por suposições. Nesse contexto, o narrador
também questiona se o que escreve é realmente um romance.
Na página 158, o narrador comenta: “Tomei o avião para Nova York com pelo menos
uma certeza: a de que, não encontrando mais nada, poderia por fim começar a escrever o
romance.” (CARVALHO, 2002, p.158) Já na página 157, este narrador diz da “obsessão sem
fundo e sem fim que [lhe] impedia de começar a escrever o [seu] suposto romance”.
(CARVALHO, 2002, p.157) A suposição, apresentada pelo narrador, de que talvez o que
estava escrevendo não seja um romance é reafirmada quando este, ao se encontrar com a
antropóloga que havia escrito o artigo inspirador da sua obra, de forma ambígua, nos diz que
esta antropóloga “supôs que [ele] quisesse escrever um romance, que [seu] interesse fosse
literário, e [ele] não a [contrariou].” (CARVALHO, 2002, p.14)
Na produção de diferentes sentidos para um romance, o narrador vai, desde historinhas
sem consequências, passando pelo mito, até chegar à possibilidade do esclarecimento que
frente ao indecifrável do enigma abre espaço às suposições, às ambiguidades e às incertezas.
Na narrativa “Nove Noites”, é recorrente a necessidade do narrador de afirmar e ao
mesmo tempo de questionar se o que escrevia era um romance. Na página 75, por exemplo,
100

esse narrador comenta: “Eu dizia que queria escrever um romance.” (CARVALHO, 2002,
p.75) Nessa citação, a colocação dos verbos dizer e querer como uma intenção permite pensar
que o narrador não tem certeza de que o que escrevia era mesmo um romance. Afinal, o que é
o romance nos tempos hipermodernos? Como pensar o narrador na hipermodernidade?
Dentre as alusões relativas à produção literária no romance “Nove Noites”, ainda
temos a fala de Mrs. Lowell, endereçada ao narrador, sobre o trabalho de leitura realizado
pelos jovens no asilo que dirigia. Para Mrs. Lowell: “’São jovens interessados em literatura.
Aprendizes de escritores. É um trabalho voluntário. Ajudam os idosos e para eles – quero
dizer, para os jovens – também é muito bom. Afinal, os velhos são uma fonte de histórias. É o
que o traz aqui, não é? ’” (CARVALHO, 2002, p.148)
Considerando o interesse do narrador em escrever um romance, ele, assim como os
jovens interessados em literatura e aprendizes de escritores, poderia se inspirar nas histórias
contadas pelos velhos, conforme a orientação benjaminiana. Para Benjamin: “o narrador não
está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se
distancia ainda mais.” (BENJAMIN, 1985, p.197) A ambiguidade aqui também se faz
presente quando o exercício da escuta de histórias e da leitura pode beneficiar os velhos
contadores de histórias e ouvintes de literatura, ou os jovens leitores de histórias e aprendizes
de escritores, ou o narrador imerso em suas dúvidas e críticas sobre os romances. Para Culler:
O autor cria um texto que é lido pelos leitores. Os leitores inferem a partir do texto
um narrador, uma voz que fala. O narrador se dirige a ouvintes que às vezes são
subtendidos ou construídos, às vezes explicitamente identificados [...] [Assim,] a
narrativa constrói um público através daquilo que sua narração aceita sem discussão
e através daquilo que explica. (CULLER, 1999, p.88)

Tendo as ambiguidades como estratégias literárias privilegiadas em “Nove Noites”, a


narrativa de Bernardo Carvalho também se constitui em um romance que, utilizando também
o tom jornalístico, apresenta-se através de uma escrita policial. Nessa direção, junto à
perspectiva benjaminiana, outras concepções acerca da figura do narrador se manifestam na
narrativa. Assim, temos ao lado do bom conselheiro, presente na transmissão oral, proposto
por Benjamin, metaforizado pelos velhos índios da tribo Krahô, escutados pelo narrador na
página 148, o narrador de Silviano Santiago que não se limita à experiência da ação, mas que
lança seu olhar sobre esta experiência, presente na angústia, nas dúvidas e opiniões emitidas
por Manoel Perna e pelo narrador. Para Santiago,
o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair de si a ação narrada em atitude
semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação como um
espetáculo a que assiste [...] da platéia, da arquibancada ou da poltrona da sala de
estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante. (SANTIAGO, 1989, p.39)
101

Assim, na hipermodernidade, o narrador, como um híbrido que resiste à purificação da


representação, envolvendo a diversidade de leituras e opiniões como as de Benjamin e
Santiago na composição do romance, deixa espaço para outras interpretações. Os
questionamentos do narrador de “Nove Noites” acerca dos romances também se voltam para
aquele que ele pretendia escrever e que já escrevia. Na visita desse narrador ao asilo dirigido
por Mrs. Lowell, a diretora desse asilo lhe disse:
Se eu soubesse [do seu interesse em saber sobre um velho que tinha morado ali e
morrido fazia onze anos (148)] teria lhe poupado a viagem. Vocês no Brasil são
muito mal-acostumados. A vida das pessoas deve ser respeitada, é de foro íntimo. É
assunto delas, e só cabe a elas ou a seus familiares, decidir torná-la pública. Não
temos dinheiro, mas não é por nos faltar recurso que vamos desrespeitar a
privacidade dos nossos velhos. Não precisamos nos rebaixar por um espaço na
mídia. (CARVALHO, 2002, p.148)

Frente à crítica que Mrs. Lowell faz á mídia e a inexistência de limites entre o público
e o privado, a decepção e o desalento do narrador com a escrita de um romance também se
manifesta, já que esse narrador se dispôs a escrever sobre a vida e a morte de Buell Quain,
aquilo que deveria dizer respeito apenas àquele antropólogo.
Na composição do romance, ainda é possível observar que, considerando a construção
das partes enumeradas presentes na obra, as partes em itálico referentes a Manoel Perna são
interrompidas pelas partes em não itálico, em que encontramos a voz do narrador, sendo
retomadas em outros momentos do romance para serem novamente interrompidas. Essa
estratégia, referente à forma pela qual o romance foi construído, reforça o enigma da vida e da
morte de Quain, núcleo central da narrativa. Para Culler,
o leitor [...] compreende [o texto literário] identificando a história e depois vendo o
texto como uma apresentação específica daquela história; identificando “o que
acontece”, somos capazes de pensar no resto do material verbal como sendo a
maneira de retratar o que ocorre. (CULLER, 1999, p.87)

Assim, as partes em itálico e as em não itálico, como estratégias de escrita literária,


retratam o que ocorre na narrativa, ou seja, a vida e a morte de Buell Quain tratadas como
enigmas. Recorrendo a Bakhtin, podemos entender o uso do itálico, no romance de Bernardo
Carvalho, como a introdução da “fala de outrem [nos diferentes discursos que compõem a
narrativa] sob uma forma dissimulada, isto é, sem qualquer indicação formal da sua pertença a
outrem, seja direta ou indireta.” (BAKHTIN, 1993, p.109) Os dois diferentes tipos de letras
que compõem o romance podem ainda trair o leitor que se descuida dessa estratégia por não
perceber os distintos tempos e espaços que participam da narrativa, apresentados pelo
narrador. Manoel Perna adverte o leitor do cuidado que este tem que ter ao fazer sua leitura.
102

Isso pode ser visto quando Manoel Perna, ao relatar a experiência vivida por Quain na aldeia
trumai, diz que
durante uma caçada em que [os Trumai] procuravam aves para tirar-lhes as penas,
disseram [para Buell Quain] que um pássaro de cabeça vermelha a que chamavam
“lê” era o anúncio da morte para quem o visse. Pouco depois [Quain] deparou com
a aparição fatídica e preferiu acreditar que lhe pregavam uma peça. Não disse nada,
embora no íntimo tenha ficado muito impressionado. (CARVALHO, 2002, p.58)

O pássaro “lê” pode ser visto como a representação daqueles que desejam saber,
inclusive saber sobre a morte, e para tal realizam suas leituras, dentre os quais podem ser
incluídos Manoel Perna, o narrador e o leitor do romance. Contudo, esse pássaro impressiona
por não sabermos se a história construída em torno dele é uma peça ou realidade. Assim, em
busca de respostas para os seus questionamentos, o sujeito constrói suas interpretações na
fronteira que delimita os espaços da ficção e da realidade fatual. O enigma Quain apresenta-
nos os enigmas do sujeito através da sua ficcionalização. O sujeito, assim como suas
verdades, é pura ficção.
O romance de Bernardo Carvalho atravessa a realidade fatual, quebrando as suas
conexões com a verdade, apresentando-nos a ficção como possibilidade de acesso ao sujeito.
Para além do inventário dos fatos, existe um enigma, o qual não é totalmente esclarecido,
mantendo o tom enigmático que sustenta o desenvolvimento da narrativa, já que o inquérito
sobre a morte de Quain não aconteceu. Na impossibilidade de compreensão e esclarecimento
acerca da morte de Quain, o antropólogo torna-se, assim como a sua morte, também enigma.
Os motivos para a morte de Buell são múltiplos e os enigmas sobre a personalidade do
antropólogo desdobram-se na narrativa, através das mais diferentes falas. Para Bakhtin, “o
homem do romance é essencialmente o homem que fala; o romance necessita de falantes que
lhe tragam seu discurso original, sua linguagem.” (BAKHTIN, 1993, p.134)
A presença marcante do enigma na narrativa de Carvalho, que atravessa quebrando o
que é fatual, também é mencionada por Marion em carta escrita à Ruth Benedict, quando ela
diz: “O fato de que nenhum de nós provavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais
difícil nos desembaraçarmos deles.”(CARVALHO, 2002, p.88) O provável conhecimento dos
fatos é, assim, atravessado e quebrado pelo próprio fato, o fato de jamais conhecê-los. Da
mesma forma que o provável é questionado pelo jamais, o verossímil questiona e mantém a
esperança da possibilidade do conhecer no âmbito da impossibilidade apresentada pelo nunca.
Assim os enigmas são construídos e no lugar da impotência, ou mesmo da onipotência frente
ao desvendamento dos fatos, surge a impossibilidade de apreensão do fatual, abrindo espaço
103

para as infinitas possibilidades de interpretações para o que é enigmático e suas diferentes


leituras.
Ainda sobre o ato da leitura, cabe ressaltar que para Kristeva,
o verbo “ler” tinha, para os antigos, uma significação que merece ser lembrada e
valorizada, com vistas a uma compreensão da prática literária. “Ler” era também
“recolher”, “colher”, “espiar”, “reconhecer os traços”, “tomar”, “roubar”. “Ler”
denota, pois, uma participação agressiva, uma apropriação ativa do outro.
(KRISTEVA, 1974, p.98)

O significado do verbo ler como espiar, recolher, reconhecer traços, pode ser
identificado quando, no romance, Manoel Perna ressalta a palavra observar, recorrente na
parte 10 de “Nove Noites”, demonstrando a preocupação de Quain em ser observador dos
Trumai e assim fazer a sua leitura desses índios, mantendo uma distância necessária para não
se perder no meio da cultura indígena. Segundo Perna: “A [Quain] só restava observar”
(CARVALHO, 2002, p.55); “tinha horror da ideia de ser confundido com as culturas que
observava” (CARVALHO, 2002, p.55); “ele estava cansado de observar” (CARVALHO,
2002, p.55); “tentava manter-se afastado e, num círculo vicioso, voltava a ser observador”
(CARVALHO, 2002, p.55); “talvez por uma estranha afinidade decorrente do lugar incômodo
que ele próprio ocupava na aldeia, justamente como observador” (CARVALHO, 2002, p.56);
“observou que o órfão tinha um interesse especial [pelos jogos sexuais que aconteciam na
aldeia Trumai]” (CARVALHO, 2002, p.56); “outro garoto, logo depois da primeira ereção,
compareceu uma noite à casa do dr. Buell para se vangloriar e certa vez chegou a copular com
uma menina, sob os olhos do antropólogo, de propósito, para se mostrar, sabendo que era
observado”(CARVALHO, 2002, p.56); “[Quain] não observou nenhum caso de suicídio
propriamente dito durante a sua breve estada entre os Trumai.”(CARVALHO, 2002, p.57)
Nas citações acima, é curioso que o antropólogo, mesmo ocupando o lugar de
observador para não se misturar com os Trumai, corre o constante risco de se perder no meio
dessa cultura indígena exatamente por observá-la. Uma estranha afinidade existente entre
Quain e os Trumai fazia do etnólogo observador dos índios, na mesma proporção que era
observado por eles. A condição de observador e observado pertence, pois, tanto a Buell,
quanto aos Trumai. Assim, enquanto o antropólogo observa a cultura trumai, ele é observado
pelo garoto indígena como aquele com quem este índio podia se vangloriar por seu
desempenho sexual ao se colocar como objeto da observação de Quain. Ler pressupõe ler-se e
ser lido, o que na composição do romance, reafirma seu caráter polifônico, plurilinguístico e
social.
104

A dimensão observador/observado, também, é vista quando Perna, ainda na parte 10


do romance, fala sobre os índios da ilha Melanésia, segundo o relato de Quain. Nas palavras
de Manoel Perna:
[Quain] me contou que, entre os nativos com quem convivera na sua ilha da
Melanésia, não podia haver pior desgraça para um rapaz do que ser acusado de
espreitar as mulheres. Era um sinal de infantilidade: diziam dos que espreitavam
que não eram capazes de alcançar a satisfação sexual pelas vias de fato.
(CARVALHO, 2002, p.55)

Na construção da narrativa, o deslocamento do verbo observar para o verbo espreitar


apresenta uma leitura infantil da realidade por aquele que, por terror, apenas espia, não
alcançando a satisfação sexual de fato e mantendo o seu prazer sempre parcial. Os jogos
infantis são lembrados quando Manoel Perna relata a experiência de Quain junto aos Trumai.
Segundo Perna:
[Buell] falou das crianças trumai como exceção, das quais se aproximou na
tentativa de compreender os seus jogos, e entre elas, talvez por uma estranha
afinidade decorrente do lugar incômodo que ele próprio ocupava na aldeia,
justamente como observador, logo percebeu um órfão de dez ou doze anos que era
mantido à margem. Era um desajustado. O único ali que, como ele, não tinha
família. Nunca participava das lutas que os outros meninos organizavam. Como não
havia meninas adolescentes, os jogos sexuais aconteciam entre meninos ou entre
meninos e homens, quase sempre por iniciativa dos primeiros, que os adultos não
reprimiam. Observou que o órfão tinha um interesse especial por esses jogos.
Costumava procurar os homens mais velhos, que não o rechaçavam. Não sei se esse
menino também o procurou e por isso me contava a história. (CARVALHO, 2002,
p.56)

Naquele momento, identificado com as crianças Trumai, em especial com o menino


órfão, Quain envolve-se com jogos e brincadeiras sexuais infantis como observador numa
leitura que afastou o antropólogo da satisfação sexual adulta. Desajustados e sem família,
ambos, Quain e o órfão aproximam-se na duplicação de suas histórias.
Contudo, observar também conota cumprir, respeitar, seguir prescrições, ou seja, tanto
Quain, quanto os nativos da ilha Melanésia, observam por respeito e cumprimento das normas
e leis das culturas indígenas. Quando esses nativos espreitam as mulheres para não irem à
satisfação sexual pelas vias de fato, eles confirmam as leis de sua cultura, já apresentadas por
Manoel Perna na página 47. Na opinião de Perna, nessa ilha
cada um decide o quer ser, pode escolher sua irmã, seu primo, sua família, e
também sua casta, seu lugar em relação aos outros. Uma sociedade muito rígida nas
suas leis e nas suas regras, onde, no entanto, cabe aos indivíduos escolher os seus
papéis. Uma aldeia onde a um estranho é impossível reconhecer os traços
genealógicos, as famílias de sangue, já que os parentes são eletivos, assim como as
identidades. O paraíso, o sonho de aventura do menino antropólogo.
(CARVALHO, 2002, p.47)
105

Os diferentes sentidos que o verbo ler pode receber diluem possíveis verdades,
tornando tênues os limites entre a realidade fatual e a ficção. Entre a realidade e a ficção, a
trama narrativa se desenvolve, promovendo intensidades e não certezas. Para Culler:
Um enredo exige uma transformação. Deve haver uma situação inicial, uma
mudança envolvendo algum tipo de virada e uma resolução que marque a mudança
como sendo significativa. [...] Encontramos a associação de um desenvolvimento
no nível dos acontecimentos com uma transformação no nível do tema. Uma
sequência de acontecimentos não faz uma história. Deve haver um final que indique
o que aconteceu com o desejo que levou aos acontecimentos que a história narra.
(CULLER, 1999, p.86)

Através de diferentes intercessores, que com suas presenças desconfiam da veracidade


dos discursos que lhes são encaminhados, no romance “Nove Noites”, as verdades, enquanto
intensidades afetivas, são produzidas naqueles que falam. Nesse sentido, Deleuze (1998)
chama a atenção para um fazer com, um escrever com. Num contexto no qual se
presentificam diferentes intercessores, a invenção e o processo de criação não podem ser
vistos como um ato de extrema solidão. Ao criar, o autor está sozinho em seu território,
contudo, ele não é apenas um, mas vários, mesmo que “quando [ele] trabalha, a solidão
[pareça] absoluta.”(DELEUZE; PARNET, 1998, p.14) A solidão vivida no ato da produção e,
obviamente, também da produção escrita, não é um abandono, mas, no campo da enunciação,
pressupõe a existência de outros intercessores que potencializam e realizam a invenção como
ficção. Criar, inventar, ficcionalizar, pensados como um fazer com, ou um escrever com,
proclamam os autores como sujeitos de enunciação, mantendo e sendo mantidos pelo espaço
de desconfiança existente entre a verdade e a ficção. No descompasso da linguagem confirma-
se que, realmente, “muita coisa não se pode desenterrar.” (CARVALHO, 2002, p.133)
É nessa direção que o enigma Quain, enquanto índice e não verdade, sofre vários
desdobramentos. Além da igreja encontrada pelo narrador na sua ida a Carolina e das cartas
presentes na narrativa como destroços e descontinuidades, outros elementos participantes do
romance podem elucidar o enigma Quain como um chamado à construção de outras leituras e
interpretações. No que se refere à igreja de Carolina, ainda podemos destacar que “a nave
estava em obras, e o interior da torre parecia inacabado. Havia pedaços de madeira por todos
os lados.” (CARVALHO, 2002, p.77) Da mesma forma, a aldeia trumai pode também
representar o incompreensível da morte, apontando para o enigma como uma construção.
Quain chegou à aldeia trumai em meados de agosto. A região era das mais
inacessíveis e isoladas, às margens do rio Culuene, na confluência com o Coliseu.
O acesso à área pelo rio Xingu é impossível devido às cachoeiras. Temidos no
passado pelo número e pela coragem guerreira, os Trumai estavam reduzidos a uma
única aldeia de quatro ocas e uma quinta em construção. (CARVALHO, 2002,
p.51)
106

A linguagem cerca o fato, mas não o apresenta na sua totalidade. Algo escapa e é
exatamente por isso que diferentes e novos arranjos e configurações podem ser construídos
em torno da morte de Buell Quain e de tudo que faz alusão à sua vida. Da mesma forma que a
igreja de Carolina e as ocas da aldeia Trumai, na remontagem da história do antropólogo,
histórias atravessam e participam de outras histórias possibilitando espelhamentos e
duplicações. Para Culler, o “encaixe de histórias dentro de outras histórias, [faz com] o ato de
contar uma história se torna um acontecimento na história. [...] Histórias dentro de histórias
dentro de histórias.” (CULLER, 1999, p.92)
No entrecruzamento de diferentes histórias, o discurso organiza as relações existentes
na obra “Nove Noites”, assim como os mitos evocados nos relatos das culturas indígena e
civilizada organizam o caos da impossibilidade da compreensão absoluta da existência
humana, e o romance organiza a realidade para o sujeito. Na perspectiva de Culler:
Os personagens [de um romance] são pessoas cujas vidas secretas são visíveis:
somos pessoas cujas vidas secretas são invisíveis. E é por isso que os romances
podem nos consolar; eles sugerem uma raça humana mais compreensível e,
portanto mais administrável, podem nos dar a ilusão de perspicácia e de poder.
(CULLER, 1999, p.93)

Pensar a raça humana mais compreensível e administrável é colocar os romances


como instrumentos de manutenção e sustentação de poder. Isto se torna possível se pensarmos
os romances como produções e manifestações de linguagem e como tal transmissores de
ideologias. Para Bakhtin, “uma inscrição [...] é orientada para uma leitura no contexto da vida
científica, [social] ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo
ideológico do qual ela é parte integrante.” (BAKHTIN, 1981, p. 98) Segundo esse autor, “é
preciso supor [...] um certo horizonte social definido e estabelecido que determina a criação
ideológica do grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da
nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito.” (BAKHTIN, 1981,
p.112) Ainda para Bakhtin,
em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contados
estreitos com a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-
se da seiva nova secretada. É apenas na medida em que a obra é capaz de
estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de
uma determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites
de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois
deixa de ser apreendida como ideologicamente significante. (BAKHTIN, 1981,
p.119)

Assim, os romances, como qualquer discurso, ao se abrirem às infinitas possibilidades


de interpretação, podem transmitir ideologias tanto como adestramento do ser humano, quanto
como denúncia e posicionamento crítico. Para Bakhtin,
107

as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de


trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a
palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais,
mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda
não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A
palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de
mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica,
que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A
palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das
mudanças sociais. (BAKHTIN, 1981, p.41)

Os vários fios ideológicos que compõem as palavras trazem ao texto e no texto


questões referentes ao poder. Ao falar de poder, somos remetidos a Foucault e à sociedade
disciplinar. Para Foucault, “talvez ainda não se saiba o que é o poder. E Marx e Freud talvez
não sejam suficientes para nos ajudar a conhecer esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo
visível e invisível, presente e oculta, investida em toda parte, que se chama poder.”
(FOUCAULT, 1979, p.75). Na opinião de Machado, segundo Foucault, “não existe algo
unitário e global chamado poder, mas unicamente formas díspares, heterogêneas, em
constante transformação.” (MACHADO, 1982, p.10) Assim, retornando a Foucault,
atualmente se sabe, mais ou menos, quem explora, para onde vai o lucro, por que
mãos passa e onde ele se reinveste, mas o poder ... Sabe-se muito bem que não são
os governantes que o detêm. [...] Onde há poder ele se exerce. Ninguém é,
propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em
determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo
quem o detém; mas se sabe quem não o possui. (FOUCAULT, 1979, p.82)

O poder não é um objeto natural, mas exercício e prática social produzida


historicamente. Enquanto potência, o poder, em Foucault, instaura práticas e saberes
disciplinares que, ao contrário de proibir, exigem que se faça de uma determinada maneira,
vista como única possibilidade. Para Machado:
De fato o poder produz; ele produz o real; produz domínios e rituais de verdade. O
poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade.
[...] Esse aspecto [...] explica o fato de que [o poder] tem como alvo o corpo
humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.
(MACHADO, 1982, p.15)

Como o poder, a linguagem e os romances também produzem o real enquanto fatual,


ou, pelo menos, dão visibilidade a ele. Da mesma forma, poder, linguagem e romances
produzem subjetividades enquanto aprimoramento ou adestramento. Enquanto possibilidade,
o homem pode ter o seu corpo psíquico, físico, social, institucional, organizacional e cultural;
administrado, adestrado, aprimorado ou rompendo com qualquer adjetivação, funcionando
como possibilidade e transformação. Segundo Foucault,
108

o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce a arte do corpo


humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto obediente quanto mais útil e inversamente. (FOUCAULT, 1987 a,
p.119)

No que diz respeito ao controle, também o homem e seu corpo evidenciam-se. Nas
palavras de Foucault,
o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e
objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância
hierárquica e sansão mobilizadora, realiza as grandes funções disciplinares de
repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de
acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de
fabricação da individualidade celular, orgânica genética e combinatória.
(FOUCAULT, 1987 a, p.160)

Contudo, a sociedade disciplinar, pensada por Foucault, vem tomando outras formas e
novas configurações. Segundo Deleuze, o próprio Foucault falava que esse tipo de sociedade
não duraria por muito tempo. Para Deleuze, “as sociedades disciplinares são exatamente
aquilo que estamos deixando para trás, o que já não somos.” (DELEUZE, 1992, p.214) Esse
autor ainda afirma que o anúncio constante da necessidade de reformas nas instituições
contemporâneas nada mais é do que uma maneira encontrada pelos políticos e gestores sociais
de “gerir [a] agonia das instituições e ocupar as pessoas, até a instalação das novas formas que
se anunciam.” (DELEUZE, 1992, p.220) Nessa direção ainda podemos encontrar Hardt,
quando ele diz que “os muros das instituições estão desmoronando de tal maneira que suas
lógicas disciplinares não se tornam ineficazes, mas se encontram, antes, generalizadas como
formas fluidas por meio de todo o campo social.” (HARDT, 2000, p.357)
As mudanças sociais vividas na contemporaneidade não significam que no lugar da
sociedade disciplinar foucaultiana surgiu uma nova configuração social. O que é possível
vislumbrar na atualidade é a coexistência de sociedades. Ao lado da sociedade disciplinar, ou
melhor, rizomatizada com essa sociedade, encontra-se “o que está sendo implantado, às cegas,
[...] novos tipos de sansões, de educação, de tratamento.” (DELEUZE, 1992, p.216) Segundo
Costa, “chegamos definitivamente à modulação contínua da sociedade de controle de que nos
fala Deleuze.” (COSTA, artigo disponível no site
http://www.scielo.php?script=sciarttex&pid=S0102-88392004000100019. acesso em
20/09/2007) E nas palavras do próprio Deleuze: “o que conta é que estamos no início de
alguma coisa.” (DELEUZE, 1992, p.225)
Nesse novo cenário, que também representa os tempos hipermodernos, a sociedade, o
poder e a linguagem se conectam e desconectam na construção do romance de forma
alienante ou emancipadora. Assim, falar, ler e escrever são exercícios necessários para
109

garantir nossa existência, que também se sustenta na diluição do fatual na ficção.


Desconfiando do que falamos, lemos e escrevemos, produzimos sentidos a partir de outros
sentidos, fazemos histórias dentro de outras histórias. Carvalho, no seu romance, consegue
transmitir a imprecisão que nos retira da busca pequeno-burguesa e histérica de saber por que
Quain morreu, ou se suicidou, para enfrentarmos de frente a nossa vida, o nosso destino, a
nossa morte. Por isso, Deleuze e Parnet (1998) nos falam que arte e literatura são
manifestações de afetos. Da mesma forma que existem as linhas duras ou segmentadas que
aprisionam a subjetividade na ordem capitalística, “há tipos de linha muito diferentes, na arte,
mas também numa sociedade, numa pessoa.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997c, p.47) Assim,
a constituição social, o jogo estabelecido pelo poder, a linguagem e a literatura, ao exercerem
sua função simbólica de organização das subjetividades, nos permitem viver nossos romances
das mais diferentes maneiras, já que “indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais
linhas são de natureza bem diversa.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.145)
A literatura, como função de organização simbólica, pode ser percebida quando o
narrador de “Nove Noites”, desesperado frente ao caos da cultura Krahô, trazia nas mãos um
livro que estava lendo. Esse livro estava tingido pela tinta vermelha com que o corpo do
narrador também foi pintado pela filha do índio José Maria. Afinal, esse narrador não mais
tinha forças para resistir à cultura Krahô. Contudo, mesmo que tingido pela cultura indígena,
o livro estava firmemente seguro pelas mãos do narrador, representando a função do romance
de organização da realidade para o sujeito. Vejamos:
[A] filha mais velha do José Maria [...] apareceu com uma bola besuntada de
urucum nas mãos, para me pintar. Em outra ocasião, eu teria resistido como um
porco diante da degola. [...] Concordei em tirar a camisa. Estava disposto a me
submeter a qualquer coisa. [...] Tudo o que eu tocava também ficava vermelho: o
livro que estava lendo, a bermuda, a mochila, o chapéu. O toque do urucum.
(CARVALHO, 2002, p.96-7)

Assim, o corpo estrangeiro do narrador marcado pelo urucum da cultura Krahô, ou


seja, a inscrição da cultura Krahô no corpo do homem branco, pode apresentar a função da
escrita como possibilitadora da transformação do corpo biológico e sem imagem, em corpo
linguístico e, portanto, humano. Enquanto metáfora de um corpo humanizado na e pela
linguagem, o romance, na condição de escrita, marca o sujeito e é por ele marcado pelos
traços e cicatrizes que possibilitam sua leitura e interpretação. Atravessado pelo corpo do
romance, o corpo do sujeito ancora-se na linguagem, tornando-se uma subjetividade na
diluição das possíveis fronteiras existentes entre esses dois corpos, assim como, entre o fato e
a ficção. Através das contradições presentes e manifestadas na escrita, o romance,
metaforizado na forma de sintaxe, expurga os fantasmas da verdade, resgatando a lei que
110

marca a diferença, na dimensão do sujeito que aponta o desequilíbrio entre o mundo dos
significantes e o dos significados. Diante desse desequilíbrio, o sujeito como efeito de
linguagem pode ser encarado como metonímia do corpo biológico e da própria vida,
encontrando, no romance, possibilidades de dizer de si.
A humanização do corpo enquanto processo de subjetivação ocorre num jogo que
envolve linguagem, escrita e poder. As leis, pelas quais se organizam o grupo social e a
cultura, são traços que marcam cada subjetividade e por ela são subjetivados. Nos
depoimentos do narrador de “Nove Noites”, esses traços e marcas também aparecem como
pinturas que o narrador teve sobre o corpo, feitas com jenipapo e urucum. Segundo esse
narrador:
Não tive como resistir quando as índias me cercaram à tarde para me pintar de
jenipapo. A tintura do jenipapo é um líquido transparente com pedacinhos do fruto,
e uma vez aplicada à pele termina por tingi-la de preto. Quando mais maduro o
jenipapo, mais escuro o resultado da pintura. Ao contrário do urucum, o jenipapo
não mancha a roupa. O que não me disseram na hora, e que eu devia ter concluído,
é que se não mancha a roupa é porque também não sai da pele. Não adianta esfregar
com nada o jenipapo fica na pele por um mês. [...] Sem que eu tivesse noção, ceder
ao jenipapo tinha sido como fazer um primeiro gesto de respeito e amizade em
relação aos índios. (CARVALHO, 2002, p.101-2)

Traços e marcas traduzem ao sujeito o seu encontro sempre parcial com a realidade
fatual, ao livrá-lo e, ao mesmo tempo, aproximá-lo daquilo que é “terrível e surpreendente.”
(CARVALHO, 2002, p.157) Em outras palavras, ficcionalizar a realidade só é possível pelo
não encontro total com fato. Marcado pela morte, o encontro com a realidade dos fatos traz o
terrível para a ficção. A impossibilidade do encontro pleno com a realidade protege o sujeito
da morte, da sua destruição enquanto subjetividade e linguagem, e assim, o surpreende com o
terrível ficcionalizado, levando também à sua ficcionalização. Em “Nove Noites”, recorrendo
às palavras do narrador, temos:
Dois aviões de passageiros, diante dos olhos atônitos de todo o planeta, atingiram e
derrubaram as duas torres do World Trade Center. Os jornais diziam que o mundo
nunca mais seria o mesmo. O fato é que nunca mais consegui falar com a produtora
[de televisão reputada por desenterrar o que ninguém mais conseguia descobrir.
(154)] Não me restava outra opção ou recurso senão as cartas. [...] E por uma
infeliz coincidência, toda [a minha] correspondência chegou aos destinatários
justamente no momento em que os Estados Unidos entraram em pânico por causa
das remessas de antraz em cartas anônimas enviadas pelo correio a personalidades
da mídia e da política americana e até mesmo a pacatos cidadãos. (CARVALHO,
2002, p.154-5)

Diante dos olhos atônitos do sujeito, a realidade fatual, sustentada na linguagem,


manifesta-se enquanto ficção. Na ficção, o sujeito se surpreende com o terrível ficcionalizado
e assim suporta o que lhe é insuportável. A ficcionalização do fato, ao produzir a realidade
ficcional, inclui a ficcionalização do próprio sujeito no romance.
111

Todos os textos e discursos que se manifestam em “Nove Noites” e que sustentam a


sua narrativa, promovendo diferentes intensidades afetivas, permitem o transbordamento
semântico necessário à produção da enunciação. Para Bakhtin “o significado linguístico de
uma enunciação dada é conhecido sobre o fundo de uma língua e o seu sentido atual, sobre o
fundo de outras enunciações concretas do mesmo tema, sobre o fundo de opiniões
contraditórias, de pontos de vista e de apreciações.” (BAKHTIN, 1993, p.90) Assim, em
“Nove Noites”, o enigma Buell Quain desdobra-se em diferentes interpretações e
significações. Mais do que isso, esse romance transborda-se indo do dilema Quain aos
dilemas próprios do ser humano. Nesses desdobramentos e transbordamentos, “Nove Noites”
não se conclui e continua na espera de um fim.

4.1 O romance e o discurso histórico

As possíveis relações existentes entre o romance e a história podem ser analisadas já


em suas origens. Na opinião de Lima,
é interessante notar que o desenvolvimento do romance se dá pari passu com o
desenvolvimento da escrita da história. História e romance são formas discursivas
firmadas sobre o mesmo veículo: a prosa narrativa. Daí mesmo a dificuldade de
perceber-se e aceitar-se sua inscrição em campos discursivos diversos, sujeitos a
exigências distintas, em vez da tendência mais frequente de su-bordinar uma à
outra. (Historicamente, essa tendência sempre se fez no sentido de subordinar o
romance à verdade da história.) (LIMA, 1991, p.148)

Para não subordinar o romance à verdade da história, Weinhardt (1996) adverte que,
para além dos laços parentéticos existentes entre eles, ficção e discurso histórico se
intertextualizam, já que “a história, tanto quanto a ficção, é uma modalidade discursiva”
(WEINHARDT, 1996, p.338) e ambas não são categorias universais. Enquanto espaços que
se intertextualizam, o romance e a história demarcam suas diferenças. Weinhardt (1996),
comenta Walter Mignolo em “Lógicas das diferenças e política das semelhanças”, publicado
nos Anais do simpósio promovido pelo Centro Ángel Rama, “Literatura e história na América
Latina”, em 1992. Para Weinhardt,
Mignolo realiza rigoroso exame dos procedimentos habituais que a comunidade
historiográfica e a literária têm com assentes, enfatizando o que denomina
“convenção de veracidade” e “convenção de ficcionalidade”. O discurso conforme
as normas literárias pode enquadra-se na convenção de ficcionalidade, ainda que
esta não seja sua condição indispensável. Já no discurso histórico a submissão à
convenção de veracidade, protocolo de verdade para Costa Lima, é indispensável.
As práticas linguísticas historiográficas e as ficcionais são portadoras de marcos
discursivos que as inscrevem nesta ou naquela convenção. Os produtores de tais
discursos podem proceder no sentido de eliminar ou de reforçar esses marcos. Cabe
ao analista detectar esses movimentos e levantar as hipóteses sobre as razões que os
geram. (WEINHARDT, 1996, p.340)
112

Delimitando as diferenças entre romance e história, essas duas discursivas podem se


desterritorializar para se reterritorializarem uma na outra, assim como em outros espaços. A
visão do romance como rizoma advém da capacidade da ficção apresentar os movimentos da
narrativa como processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização.
Detectar esses movimentos pela cartografia aproxima a proposta esquizoanalítica da leitura
sobre o analista do texto literário apresentada na reflexão de Weinhardt sobre o exame
realizado por Mignolo quando os marcos constitutivos das práticas linguísticas ficcionais e
historiográficas tornam-se flexíveis e tênues.
Contudo, para que os processos de desterritorialização e reterritorialização aconteçam,
é necessária a existência de diferentes territórios. Sendo assim, Weinhardt lembra Lima
(1989) reafirmando que a ficção e a história são discursos deferentes e que, por isso, não
devem ser confundidos. Por serem diferentes, esses discursos podem se aproximar e, assim,
um permear o outro, distanciando ou, até mesmo, perdendo suas identidades originais e
assumindo o estatuto um do outro. No que se refere à relação da ficção com a verdade, Lima
diz que
a verdade [...] não deve ser considerada o eixo único de todos os discursos. O
discurso ficcional, ao mudar a forma de relação com o mundo, também muda sua
relação com a verdade. Ele a fantasmagoriza, faz o verossímil perde seu caráter
subalterno e assumir o direito de constituir um eixo próprio, [...] Os vários
discursos não se orientam por um mesmo centro. O valor social do discurso
ficcional não parece estar tanto no questionamento que ofereça dos discursos de
verdade, mas em não ter condições internas, pelo próprio tipo de verossímil que
atualiza, de se tornar verdade. (LIMA, 1989, p.105-6)

Na reorganização histórica presente no romance “Nove Noites”, incluiem-se as


lembranças do narrador, quando ele nos diz:
Não me lembro nem da cara do Chiquinho da Vitoriosas, mas guardei a notícia de
sua morte num acidente de avião. Não sei se agora apenas imagino, mas tenho a
impressão de ter visto o meu pai debruçado sobre alguém, talvez a viúva, a lhe dar
esperanças, a lhe dizer que ainda havia chances de encontrarem o aviãozinho
desaparecido fazia dias. Lembro de uma casa escura, de gente amada, de mulheres
recolhidas e caladas, e de um céu carregado, com raios e nuvens negras, sempre que
visitávamos a Vitoriosas. Isso quando o sol não estava escondido por uma névoa
que fazia lembrar a atmosfera de um planeta inóspito em Perdidos no espaço ou em
algum filme de ficção científica. (CARVALHO, 2002, p.62)

Inserido num mundo masculino, no qual as mulheres se encontravam recolhidas e


caladas, o narrador em questão ficcionaliza a própria infância como um filme perdido no
espaço, em analogia ao fragmento da realidade, a saber, o seriado televisivo da década de 70,
“Perdidos no espaço”. Na opinião de Culler,
as vozes narrativas podem ter sua própria linguagem distintiva, na qual narram tudo
na história, ou podem adotar e relatar a linguagem de outros. Uma narrativa que vê
as coisas através da consciência de uma criança pode ou usar a linguagem adulta
para relatar as percepções da criança ou resvalar para a linguagem de uma criança.
113

[...] Ao relatar algo que aconteceu com ele quando criança, um narrador pode
focalizar o evento através da consciência da criança que ele foi, restringindo o
relato ao que pensou ou sentiu na época, ou pode focalizar os eventos através de seu
conhecimento e compreensão na época da narração. Ou, naturalmente, pode
combinar estas perspectivas, fazendo um movimento entre o que sabia ou sentiu
[...] e o que reconhece agora. Quando a narração em terceira pessoa focaliza
acontecimentos através de um personagem específico, ela pode empregar variações
semelhantes, relatando como as coisas parecem ao personagem na época ou como
são percebidas mais tarde. A escolha da focalização temporal faz uma diferença
enorme nos efeitos de uma narrativa. (CULLER, 1999, p.89 e 90)

Através de suas lembranças, o narrador desloca-se de um território definido espaço-


temporalmente a outro, sem ausentar-se de seu abrigo, de sua moradia delimitada na
atualidade. Numa espécie de prolongamento territorial, as lembranças desse narrador
permitem a aproximação de distâncias e interações de territórios. Para Guattari e Rolnik,
os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os
articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo
tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um
sujeito se sente “em casa.” [...] Ele é o conjunto dos projetos e das representações
nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.
(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.323)

A territorialização do sujeito que permite a sua desterritorialização para que ele se


reterritorialize possibilita que fragmentos da realidade sejam ficcionalizados para que aqueles
que não vivenciaram uma dada época possam imaginá-la. Nesse contexto, literatura e cultura
são intertextualizadas nos diferentes tempos da história. Na perspectiva de Culler,
as teorias literária e cultural têm afirmado cada vez mais a centralidade cultural da
narrativa. As histórias, diz o argumento, são a principal maneira pela qual
entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas como uma progressão que
conduz em algum lugar, quer dizer a nós mesmos o que está acontecendo no
mundo. [...] [A vida] segue não uma lógica científica de causa e efeito mas a lógica
da história, em que entender significa conceber como uma coisa leva a outra, como
algo poderia ter sucedido. (CULLER, 1999, p.84)

Pensar o tempo e intertextualizá-lo com a história também nos apresenta duas distintas
direções. Uma delas é associar tempo à cronologia, assim delimitando e diferenciando três
distintos espaços: passado, presente, futuro. A outra direção nos apresenta o tempo como
devir, ou seja, onde e quando as coisas acontecem sem a demarcação territorial do passado, do
presente e do futuro.
Recorrendo a Kastrup (1999) existem duas vertentes filosóficas que se contrapõem na
história da filosofia. Uma delas é a vertente analítica da verdade que, segundo Foucault
(1983), se ocupa com a discussão e com o estabelecimento das condições necessárias para a
produção e compreensão do conhecimento verdadeiro e científico. A segunda vertente diz
respeito à ontologia do presente, que, na perspectiva de Foucault (1984), afasta a filosofia da
busca do conhecimento verdadeiro e a aproxima da história. Para Kastrup, “a ciência está para
114

a analítica da verdade assim como a história está para a ontologia do presente.” (KASTRUP,
1999, p.33)
Na ontologia do presente se inclui a discussão sobre o tempo. Nessa vertente
filosófica, “o presente aparece como ponto privilegiado, pois é nele que o processo de
transformação acontece. É a partir dele, do que ele apresenta de instabilidade em relação
àquilo que, por encontrar-se estabelecido, sugere a ideia de invariância, que tais limites
podem ser ultrapassados.”(KASTRUP, 1999, p. 34) Nessa perspectiva, podemos pensar que a
instabilidade do presente ao fazer frente à rigidez do estabelecido, dilui fronteiras temporais, e
presente, passado e futuro podem acontecer num só instante. Para haver a coexistência desses
três tempos, esses não devem ser entendidos como acontecimentos fatuais, mas, sim, como a
realização do fatual na produção de sentidos, na qual se inclui a ficção. A impossibilidade de
retornar ao passado e de viver o futuro faz do presente momento também de lembranças, de
resignificações, de expectativas e previsões. Na opinião de Kastrup:

Segundo Foucault, [na] segunda vertente filosófica aberta por Kant, [ou seja, na]
ontologia do presente, [...] se inscrevem Hegel, Marx, Nietzsche, M. Weber e a
Escola de Frankfurt. [Kastrup inclui] aí também as filosofias de Heidegger, Sartre e
de H. Bergson, que Foucault não cita. [...] Neste momento, importa sublinhar que
se encontra aí toda a filosofia que toma como problema fundamental o tempo, seja
na forma da investigação histórica (Hegel, Marx, Weber, a Escola de Frankfurt),
seja na forma do intempestivo e do devir (Nietzsche, Bergson). [...] A ontologia do
presente reúne uma variedade de filosofias entre as quais não é possível traçar uma
linha homogênea. Agrupa Hegel, que desenvolve um historicismo racionalista, e
também anti-hegelianos ferrenhos, como Nietzsche, para quem o historicismo é
uma doença da filosofia, que a desvitaliza e a conduz à morte. [...] O que distingue
a maneira como o problema do tempo comparece em Hegel e em Nietzsche é que,
para o primeiro, ele aparece como tempo passado, história de curso necessário, ao
passo que, para o segundo, ele é tempo por vir, futuro inantecipável. Foucault
parece não se importar com os matizes dos diferentes conceitos de história, ou
mesmo com a diferença entre história e tempo, história e devir. (KASTRUP, 1999,
p.32-3)

Assim, para Kastrup, da mesma forma que o presente inclui o passado e o futuro,
enquanto produção e dissipação de sentidos, Foucault incorpora história, tempo e devir, por
sua filosofia significar uma ruptura com o conceito tradicional de epistemologia, com a
história dos conceitos básicos de determinada ciência em suas teorias e métodos, com o
conhecimento verdadeiro, ou seja, com a vertente filosófica analítica da verdade. Portanto,
Kastrup acredita que Foucault propõe que o que faz a unidade de um discurso ou de uma
teoria não é o objeto a que ele se refere, mas o que é enunciado a seu respeito, a constituição
de temas que resultam em diferentes configurações do saber. Os discursos também não devem
ser analisados segundo uma história de temas, mas considerar a sempre e constante dispersão
dos temas em diferentes sentidos. Aqui cumpre salientar que, para Deleuze (1988), lembrado
115

por Escobar (1991), Foucault é um historiador do presente e que para Bergson, “quanto mais
aprofundarmos na natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração quer dizer
invenção, criação de formas, elaboração contínua do inteiramente novo.” (BERGSON, 1907,
p.49) Ainda sobre o tempo, Weinhardt pode ser lembrada quando ela diz que

a inconsciência da epopéia quanto à relatividade do passado é uma das chaves para


se estabelecer a diferença entre os dois gêneros [a saber: a epopéia e o romance].
[...] [Quando, no romance,] sua matéria é o passado, [diferente da] epopéia, [...] o
passado [é] histórico, ainda vivo, sujeito a revisões, inconfundível com o passado
mítico, cristalizado, imutável. (WEINHARDT, 1996, p.350)

No tempo presente na ficção “Nove Noites”, também foi no início dos anos 70 que “os
militares chegaram a aventar a possibilidade de que, sendo área de segurança, o aeroporto [em
verdade, a pista de pouso existente ao lado da casa do Xingu] estivesse sofrendo um ataque
terrorista.” (CARVALHO, 2002, p.63)
Cumpre lembrar que a década de 70 foi um período de turbulência política e apogeu e
crise da ditadura militar brasileira. Nessa década o regime repressor, a censura policial e a
tortura militar provocaram uma reação no Brasil, onde um projeto humanitário mobilizou o
país contra a hegemonia política calcada no poder militar. Sendo assim, abriu-se espaço para a
resistência ao regime militar no transcorrer dessa década. Considerando também que os anos
70 ficaram conhecidos como o período de reestruturação capitalista global, essa época passou
a refletir sobre a forma como funcionavam os países governados pelo modo de produção e
mentalidade capitalistas, estabelecendo as normas para o progresso da nação e bem-estar
social. Aqui merece destaque o império norte-americano, país de origem do antropólogo Buell
Quain.
No que se refere à história, ao progresso e à opressão social, Benjamin, ao dizer que “a
tradição dos oprimidos nos ensina que ‘o estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a
regra geral” (BENJAMIN, 1985, p.226), analisa um quadro de Klee da seguinte forma:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nos vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se
em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o
impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso. (BENJAMIN, 1985, p.226)

Para Benjamin, o progresso impele a história e, por conseguinte, o sujeito, ao futuro.


Assim, história e sujeito, mesmo que resistam, são afastados do passado em nome do
116

desenvolvimento necessário ao progresso. É neste contexto que num estado de opressão


mantido em favor do progresso, exceção vira regra geral.
Já Bosi (2004), ao se referir ao cativeiro cativante da imagem manipulada pela
propaganda, comenta que a sociedade de consumo é um dos aspectos dessa teia crescente de
domínio e ilusão que os espertos chamam de desenvolvimento e os tolos aceitam como preço
do progresso. Para Bosi:
A ratio abstrata transformou o corpo e a cabeça de cada indivíduo em mão-de-obra
sem nome nem rosto que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da
natureza fez matéria-prima; do fruto do trabalho fez mercadoria a ser trocada e
consumida. (BOSI, 2004, p.169)

Ainda no que se refere ao progresso, Serres nos diz que: “não há progresso sem
utopia.” (SERRES, 1999) Esse filósofo francês nos convida pensar na importância das utopias
como a desencadeadora do progresso da humanidade, já que, na sua opinião, quando o
homem historicamente se vê frente àquilo que é novo, se vê convidado à percorrer os
caminhos da experimentação, da invenção e da criação como resistência. No contexto da
invenção como resistência, Deleuze e Guattari comentam que desta forma transfere-se ao
futuro “as sensações persistentes que encarnam o acontecimento: o sofrimento sempre
renovado dos homens, seu protesto recriado, sua luta sempre retomada.” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997 c, p.228)
Na perspectiva da criação e da invenção, para compreender o romance como
resistência, Compagnon comenta que a literatura pode tanto favorecer as ideologias e valores
capitalísticos, quanto ser propiciadora do desejo e dos processos de singularização que
rompem com esses valores e, assim, produzem o novo. Para Compagnon,
ligada à privatização da cena da leitura, depois do nascimento da imprensa, [...] [a
literatura] estaria comprometida com valores dos quais seria ao mesmo tempo causa
e consequência, sendo o primeiro deles o indivíduo burguês. Essa é, sobretudo, a
crítica marxista, que vincula literatura e ideologia. A literatura serve para produzir
um consenso social; ela acompanha, depois substitui a religião como ópio do povo.
(COMPAGNON, 2001, p. 36)

Pensar o romance vinculado à ideologia capitalista remete-nos a premissa de que “a


arte teria, primeiro, que mostrar a sua utilidade.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.32)
Contudo, Compagnon também diz que “do ponto de vista da função, chega-se também a uma
aporia: a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo. [...] A
literatura confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a
ruptura.”(COMPAGNON, 2001, p.37)
Na perspectiva da arte também vista como reprodução de ideologias ou como forma
de resistência, Furlan cita Deleuze e Guattari, dizendo que “a arte pode terminar em clichês de
117

reprodução de opiniões sobre as sensações e perder sua abertura ao caos, de onde justamente
tira seu plano de composição. Mais do que combater o caos, a arte combate as opiniões e
clichês que nos abrigam do caos.” (DELEUZE; GUATTARI apud FURLAN, 2006, p.105-
126) Ainda nessa direção, Guattari comenta a diferença entre a relação de alienação e a
relação de criação, incluindo-se, nesta última, os processos de singularização. Para esse autor,
existem dois modos de relação do sujeito com a ordem capitalística e esses modos dizem
respeito a
relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal
como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se
reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu
chamaria de singularização. (GUATTARI, 1992, p.33)

Ao aproximar a criação dos processos de sigularização, Guattari apresenta a relação de


expressão como resistência, ou seja, fazer a diferença frente ao que aliena e oprime. Guattari
afirma que
o traço comum entre os diferentes processos de singularização é um devir
diferencial que recusa a subjetivação capitalística. Isso se sente por um calor nas
relações, por determinada maneira de desejar, por uma afirmação positiva da
criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou
sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaço para que
isso aconteça. O desejo só pode ser vivido em vetores de singularidade.
(GUATTARI, 1992, p.47)

Também no contexto da criação como forma de resistência, Deleuze diz que “criar não
é comunicar, mas resistir.” (DELEUZE, 1992, p.179) Junto a Guattari, Deleuze ainda
acrescenta que “não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais,
falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997c). Para
pensar o ato de criar como resistência, segundo Deleuze, “é preciso falar da criação como
traçando seu caminho entre impossibilidades.” (DELEUZE, 1992, p.179)
Corroborando Benjamin, Serres, Compagnon, Deleuze e Guattari, Bosi apresenta o
conceito de poesia-resistência. Esse autor afirma que toda poesia moderna, ou melhor, o fato
de se conseguir produzir poesia no mundo contemporâneo, pode ser visto como uma forma de
resistência simbólica às ideologias e discursos dominantes. Para Bosi:
A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, “esta coleção de
objetos de não amor” (Drummond). Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo
descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso.
Resiste aferrando-se à memória viva do passado; e resiste imaginando uma nova
ordem que se recorta no horizonte da utopia. Quer refazendo zonas sagradas que o
sistema profana (o mito, o rito, o sonho, a infância, Eros); quer desfazendo o
sentido do presente em nome de uma libertação futura, o ser da poesia contradiz o
ser dos discursos correntes. (Ainda que nem sempre possa impedir de todo que um
ou outro pseudovalor formal vigente – e daí, obliquamente ideológico – venha a
cruzar o seu jogo verbal). (BOSI, 2004, p.169)
118

Pensando o romance também como resistência, cumpre-se lembrar que a literatura


brasileira, após 1964, envolveu-se criticamente com as formas de poder autoritarista, dentre
elas a imposta pelas forças e regimes militares encobertos pelas leis de segurança nacional.
Barros, ao comentar os discursos autoritários e poéticos, diz que
nos discursos autoritários abafam-se as vozes, escondem-se os diálogos e o discurso
se faz discurso da verdade única, absoluta e incontestável. A única forma de
contestar tais discursos é recuperar externamente a polêmica escondida, os
confrontos sociais, ou seja, contrapor ao discurso autoritário um outro discurso,
responder a ele, com ele dialogar, polemizar. O discurso poético, por sua vez, é
aquele que expõe, que mostra ou que deixa escutar o dialogismo que o constitui, a
heterologia discursiva, as vozes contraditórias dos conflitos sociais. (BARROS,
1996, p.36)

Podemos, pois, pensar que o discurso poético, frente ao discurso autoritário, polemiza
a realidade fatual apresentada como verdade. A dimensão plural do discurso poético questiona
a linearidade do discurso autoritário. No contexto do discurso poético, inclui-se o romance, já
que, recorrendo à Barros,
cabe ressaltar aqui que todo discurso, seja ele poesia, pintura, prosa, dança, que
apresentar as características de polifonia [...] será tido discurso poético. A palavra
poético não tem aqui o emprego que lhe dá Bakhtin quando diferencia poesia
(lírica) e prosa (romance) e apenas à última atribui a característica de polifonia. Em
seus últimos textos, Bakhtin afirma que não há na literatura discursos monofônicos,
nem mesmo na poesia lírica. É nesse sentido que [...] o termo [...] discurso poético
[pode se referir] aos discursos que produzem efeitos de polifonia. (BARROS, 1996,
p.37)

No âmbito da polifonia, a história se inscreve no texto e o texto se inscreve na história


na produção do romance como ficção. Para Kristeva, “a inserção da história (da sociedade),
no texto, e do texto na história; para o escritor, são uma única e mesma coisa.” (KRISTEVA,
1974, p.67)
Também foi na década de 70 que as manchetes dos jornais anunciavam “a tragédia de
um avião da Varig que se incendiara misteriosamente na rota de descida para Orly.”
(CARVALHO, 2002, p.72) Talvez por isso a “pista de terra aberta ao lado da casa”
(CARVALHO, 2002, p.61) no Xingu, tornou-se na narrativa, aeroporto.
Ainda na vertente dos acidentes aéreos, o pai piloto do narrador, por relato do cunhado
deste narrador,
sem enxergar quase nada adiante do nariz, por dentro de um cúmulo-nimbo, um
‘CB’, que era como ele chamava os pesadelos arroxeados em forma de catedrais no
meio do céu, de repente [foi pego] de surpresa por um morro mais à frente, a
algumas centenas de metros, e [...] imediatamente arremeteu com o bimotor numa
subida vertical e apavorada para fora da nuvem. [...] Também ficou famosa a vez
em que, preocupado em chegar antes das seis da tarde no aeroporto de Cuiabá, já
que seu brevê não lhe permitia pilotar à noite com instrumentos, [o pai do narrador
em questão] entendeu que o operador na torre de controle falava da hora e da
necessidade de se apressar, quando na realidade apenas o alertava sobre o fato de
que uma das pistas estava em obras. Foi justamente para essa pista que o [seu] pai
119

dirigiu o avião, na pressa de não cometer uma infração e perder o brevê.


(CARVALHO, 2002, p.63)

No espelhamento entre ficção e realidade, entre a história ficcional do narrador e os


fatos retirados do cotidiano, o narrador toma o que é fatual, tornando-o uma representação,
um traço, uma marca que pode receber as mais diversas significações, pois padece de um só
sentido. Sobre as representações, Melo (1988), recorrendo a Baudrillard, diz que
em toda forma de representação alguma coisa se encontra no lugar de outra coisa:
representar significa ser o outro do outro, que vem simultaneamente evocado e
cancelado pela representação. Esse significado será mantido como determinação
mínima da representação, a qual se configura de tal modo como o tecido mesmo do
pensamento [e de seus espelhamentos]. (MELO, 1988, p.30)

Ainda sobre as representações, Merquior comenta, a partir do conceito de


representação alegórica de Benjamin, que esta “é precisamente a representação em que há
distância entre significante e significado, entre o que está dito e o que se quis dizer.”
(MERQUIOR, 1969, p.106) É a distância entre o significante e o significado, entre o dito e o
querer dizer, que permite aproximações e espelhamentos, já que a representação é apenas
possibilidade e jamais verdade. Nessa perspectiva, Lima diz que “não há um real previamente
demarcado e anterior ao ato da representação. [...] Não representamos porque queremos e
quando queremos, mas o fazemos como maneira de nos tornarmos visíveis e ter o outro como
visível.” (LIMA, 1981, p.219-222)
Questões referentes à representação, à realidade e à mimese são retomadas, no campo
dos estudos literários, quando, “com interlocutores condicionados por repertório diverso e
acostumados a outras linhas de raciocínio, foi necessário reordenar o esquema de
argumentação e reexaminar os conceitos relativamente cristalizados [no estudo da literatura].”
(WEINHARDT, 1996, 338) É nesse contexto que a ficção e o discurso histórico se encontram
e desencontram no rizoma da narrativa e manifestam na cartografia do romance.
Para dar visibilidade à subjetividade, foi no contexto da viagem que o narrador fez em
companhia de seu pai para a compra de uma fazenda, já que seu pai “tinha decidido fundar
[uma fazenda], em 1970, no Xingu” (CARVALHO, 2002, p.61), que outros espelhamentos e
aproximações entre história e ficção podem ser observados no romance. Comentando Bakhtin,
Todorov (1981) salienta dois diferentes aspectos no enunciado-discurso. Assim, o romance,
enquanto enunciado-discurso, envolve tanto o que advem da língua, quanto o que vem do
contexto histórico, social, cultural. Em “Nove Noites”, de forma crítica e irônica, o narrador
apresenta denúncias ao governo, ao militarismo e à corrupção, que embora focada na época de
sua infância (década de 70), ainda são extremamente atuais. Já na compra da fazenda no
Xingu, este narrador nos fala que seu pai
120

articulava desde 1966, em Brasília, a compra de dois latifúndios no sertão, por meio
de títulos definitivos do governo. [...] Não só pagou uma ninharia pelas terras,
como passou a receber subsídios para o projeto agropecuário que implantou a partir
de 1970. A prática foi estabelecida como programa pelo governo militar, que sob o
pretexto de desenvolvimento da Amazônia não só subvencionou a compra e
centenas de milhares de alqueires a preço de banana, como em seguida financiou
nababescamente os projetos de ocupação pelos fazendeiros – em geral, bastava
derrubar a mata, plantar capim e encher as fazendas de gado. (CARVALHO, 2002,
p.65)

A expansão da fronteira agrícola e o desflorestamento na Amazônia ocorreram


fundamentalmente no contexto da regionalização da agricultura brasileira em seguida à
industrialização acelerada a partir da década de 50. Contudo, a Amazônia extrativista pode ser
pensada desde o século XVII. Para Ribeiro,
o delta do Amazonas constitui uma das áreas de mais antiga ocupação européia no
Brasil. Já nos primeiros anos do século XVII ali se instalaram soldados e colonos
portugueses, inicialmente para expulsar franceses, ingleses e holandeses que
disputavam seu domínio, depois como núcleos de ocupação permanente. Estes
núcleos encontrariam uma base econômica na exploração de produtos florestais
como o cacau, o cravo, a canela, a salsaparrilha, a baunilha, a copaíba que tinham
mercado certo na Europa e podiam ser colhidos, elaborados e transportados com o
concurso da mão-de-obra indígena, farta e acessível naqueles primeiros tempos.
Estas condições marcariam o desenvolvimento da colonização da Amazônia dentro
dos estreitos limites da economia mercantil extrativista. [...] Para esta obra de
devassamento da floresta tropical e de exploração de seus produtos, os índios foram
aliciados desde a primeira hora, através de toda a sorte de compulsões. (RIBEIRO,
1977, p.21-2)

Já os anos 70, década do “Milagre Econômico” do regime militar, certamente foram os


mais devastadores da Floresta Amazônica. A política de ocupação da Amazônia brasileira
teve seu apogeu na década de 70, quando as fazendas latifundiárias transformaram florestas
em pastagens. A abertura de estradas pelo Governo Federal, em busca do crescimento
econômico, também favoreceu o desmatamento da Amazônia. Recorrendo a Ribeiro temos
que
em 1971, a superfície original [do Xingu], demarcada 10 anos antes, foi amputada
com a abertura, secreta a princípio, da BR 080 que cortou a parte setentrional da
reserva [e levando] a alocação de terras mais pobres na sua extremidade sul. Uma
outra estrada, seccionando mais uma vez a área [foi] projetada: a BR 242.
(RIBEIRO, 1979, p.20)

Assim, romance e história se aproximam na ficcionalização do fatual. A


verossimilhança buscada ao longo do romance, ou seja, o jogo estabelecido pelas
probabilidades de aproximações da ficção com a realidade pode também ser verificada
quando o narrador relata fatos históricos ocorridos na ocasião do suicídio do antropólogo. Nas
suas palavras:
Buell Quain se matou na noite de agosto de 1939 – no mesmo dia em que Albert
Einstein enviou ao presidente Roosevelt a carta histórica em que alertava sobre a
possibilidade da bomba atômica, três semanas antes da assinatura do pacto de não-
121

agressão entre Hitler e Stalin, o sinal verde para o início da Segunda Guerra e, para
muitos, uma das maiores desilusões políticas do século XX. Topei com uma
referência à carta de Einstein, por mera coincidência, logo que comecei a vasculhar
a morte de Quain. Ele não chegou a ver nada. O mundo dele não foi o meu. Não viu
a guerra, não viu a bomba – ainda que, na loucura final das suas observações sobre
os Krahô, e com base nas lembranças das revistas científicas que lia na
adolescência, tenha tentado aplicar “os mesmos princípios matemáticos que
governam os fenômenos atômicos” aos fenômenos sociais, detectando nos índios
“síndromes de comportamento cultural” análogas às leis da física. Tinha um
fascínio quase adolescente pela ciência e pela tecnologia. Não podia ter pensado
que quanto mais o homem tenta escapar da morte mais se aproxima da
autodestruição, não podia lhe passar pela cabeça que talvez fosse esse o desígnio
oculto e traiçoeiro da ciência, sua contrapartida, embora muito do que observou
entre os índios e associou por intuição à sua própria experiência pudesse tê-lo
levado a alguma coisa muito próxima dessa conclusão. (CARVALHO, 2002, p.15)

Em busca da verossimilhança, “através da identificação antecipatória do mundo


totalmente matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do
mítico.” (ADORNO, HORHEIMER, 1986, p.37) É nesse contexto que o narrador depara-se
com outra carta, a de Einstein para o presidente Roosevelt, mantendo o tom epistolar da
narrativa. Pensando o verossímil e a presença de diferentes discursos na construção do
romance, Kristeva diz que “o verossímil é uma conjunção [...] de dois discursos diferentes,
um dos quais (o discurso literário), [...] se projeta sobre o outro que lhe serve de espelho e
com [ele] [...] se identifica além da diferença.” (KRISTEVA, 1974, p.129)
Em “Nove Noites”, o verossímil evoca distintos discursos, que ecoam uns sobre os
outros. Assim, o narrador, entre as loucuras da adolescência e as observações científicas do
mundo adulto, reconta a vida e a morte do antropólogo Buell Quain, quando os princípios
matemáticos se misturam com as lembranças deste narrador, os fatos históricos são
absorvidos pelo romance e passam a fazer parte dos acontecimentos pelos quais se desenvolve
a narrativa. Aquilo “que não se submete ao critério da calculabilidade e da inutilidade
[tornando-se] suspeito para o esclarecimento” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.21), é,
totalmente aceitável para a ficção. Na ficção, os elementos internos do romance redefinem os
elementos que lhes são externos. Aqui cumpre lembrar Candido quando ele nos diz: “vejo
com a maior curiosidade que neste decênio de 70 está-se desenvolvendo cada vez mais um
movimento [...]: a redefinição dos elementos externos ao texto, por meio do conhecimento
cada vez mais refinado dos seus elementos internos.” (CANDIDO, 1974, p.26) Assim,
também na década de 70, a literatura brasileira se redefine.
História e literatura são redefinidas considerando os espaços internos e externos de
suas produções textuais. Para Lima, “a dimensão histórica já não se pensa dentro da pré-noção
da continuidade. [...] A história, ao contrário, é o relacionamento das rupturas e não o que flui
sobre a continuidade.” (LIMA, 1975, p.13) Pensar a história enquanto descontinuidade
122

“equivale a dizer que se propõe estabelecer uma atitude de constante desconfiança ante o
afirmado.” (LIMA, 1975, p.14) Portanto, marcado pela desconfiança, o texto histórico
transcende o fato numa rede de constantes e sucessivas interpretações. Nessa direção se inclui
Bakhtin, quando ele nos diz que:
Todas estas linguagens [...] são concretizadas sobre um plano social e histórico [...]
e, por isso, atrás de todas elas, transparecem as imagens das pessoas que falam, em
vestimentas concretas sociais e históricas. [...] Para que esta linguagem se torne
precisamente uma imagem de arte literária, deve se tornar discurso das bocas que
falam, unir-se à imagem do sujeito que fala. (BAKHTIN, 1993, p.137)

No que se refere ao romance, ainda podemos pensar em Kristeva. Ela comenta que
este é “uma rede de diferenças que marcam e/ou reúnem as mutações dos blocos históricos.”
(KRISTEVA, 1974, p.14)
Num contexto de mutações, no qual o romance e o discurso histórico ampliam suas
fronteiras, Hutcheon apresenta a ideia de metaficção historiográfica. Esta autora, ao introduzir
seu livro “Poética do pós-modernismo”, nos diz que

este livro [...] vai privilegiar o gênero romance, especialmente uma de suas formas,
que quero chamar de “metaficção historiográfica”. Com este termo refiro-me
àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo são intensamente
auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de
acontecimentos e personagens históricos [...]. A metaficção historiográfica
incorpora todos esses domínios (literatura, história e teoria), ou seja, sua
autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas
(metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reelaboração
das formas e dos conteúdos do passado. [...] Ela sempre atua dentro das convenções
a fim de subvertê-las. Ela não é apenas metaficcional; nem é apenas mais uma
versão do romance histórico ou do romance não ficcional. (HUTCHEON, 1991,
p.21-2)

Enquanto uma metaficção historiográfica, o romance “Nove Noites”, na construção da


rede ficcional envolvendo a história, inclui diferentes fatos e personagens históricos na
narrativa. Desde a antropóloga que escreveu o artigo sobre Quain a partir do qual o narrador
se dispôs a escrever o romance, outros nomes desfilam pela narrativa. Além do próprio Buell
Quain, estão presentes em “Nove Noites”: Albert Einstein, Roosevelt, Hitler, Stalin, Ruth
Benedict, Heloísa Alberto Torres, Luiz de Castro Faria, Charles Wagley, Raimundo Lopes,
Edson Cordeiro, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes, Manoel Perna, Ângelo Sampaio, Eric P.
Quain, Fannie Quain, Marion Quain, Thomas Young, Charles C. Kaiser, William Lipkind,
Franz Boas, William Ellery Leonard, dentre outros.
Todos esses personagens possibilitam a construção da narrativa, na qual a desilusão do
narrador diante da imprecisão e impossibilidade de compreensão da morte de Quain não é
suficiente para que ele recue e abandone a busca da veracidade dos fatos. Exatamente em
123

seguida ao trecho da página 19, o narrador expõe seu desencanto com a verdade e decepção
com a verossimilhança ao comentar sobre “os nascimentos [e] a euforia cega com que os pais
encobrem o risco e a imponderabilidade do que acabaram de criar” (CARVALHO, 2002,
p.19) e volta a precisar temporalmente a narrativa, agora no que diz respeito ao nascimento e
dados biográficos de Quain.
Buell Halvor Quain nasceu em 31 de maio de 1912, às 11h53 da noite, no hospital
de Bismarck, capital da Dakota do Norte. A certidão de nascimento diz que foram
tomadas as devidas precauções contra a oftalmia neonatal, àquela altura um
procedimento de praxe contra a transmissão de doenças venéreas aos recém-
nascidos. (CARVALHO, 2002, p.19)

A tonalidade biográfica ainda se faz presente na mudança da sintaxe e da pontuação da


narrativa presente nas páginas 18 e 19, quando o narrador descreve a formação acadêmica e
profissional de Buell Quain. Nesse momento, o tom biográfico retorna ao romance de forma
irônica. No término da exposição curricular do antropólogo, o narrador lembra-se de uma
carta escrita por Heloísa Alberto Torres à mãe de Quain na qual e quando a diretora do Museu
Nacional “se dizia espantada com tanta coisa feita [por Quain] em tão pouco tempo: ‘Era tão
moço e tinha visto tanto. Que vida extraordinária!’.”(CARVALHO, 2002, p.18-9)
Em relação à ironia, Muecke (1970) diz que ela tem função corretiva. Para tal
definição, esse autor faz uma analogia entre a ironia e um giroscópio. Assim como o
giroscópio, a ironia ou provoca um equilíbrio estabilizador numa vida levada muito a sério ou
provoca um desequilíbrio desestabilizador numa vida muito estável, como mostram algumas
tragédias. Pode-se notar que, para Muecke, a ironia é condição sine qua non da vida. Contudo,
a definição de ironia sofre variações de acordo com a época, espaços geográficos e evoluções
semânticas. Na “República” de Platão, a ironia aparece como forma lisonjeira, abjeta de
tapear as pessoas. Já para Aristóteles, a ironia é considerada no sentido de dissimulação
autodepreciativa. Na Europa, o termo ironia remete àquilo que diz uma coisa, mas significa
outra. Foi no fim do século XVIII e início do século XIX que o conceito de ironia sofreu sua
maior transformação. Nesse período, a ironia passou a ser considerada como uma forma
destinada a deixar em aberto a questão do que pode significar o significado literal de uma
situação, de um acontecimento, de uma expressão, etc. Para Muecke, nessa definição de ironia
ocorre uma aparência que é mostrada e uma realidade que é sonegada, inferindo o significado
real, por não estar explícito e por não pretender ser imediatamente apreensível. Segundo
Muecke:
O ironista, em seu papel de ingênuo, propõe um texto, mas de tal maneira ou em tal
contexto que estimulará o leitor a rejeitar o seu significado literal expresso, em
favor de um significado “transliteral” não expresso de significação constante. De
124

modo geral, o significado transliteral é melhor lembrado como uma “esfera


semântica latente”. (MUECKE, 1970, p.58)

A ironia em “Nove Noites” também se manifesta quando, na e pela ficção, o narrador


desfaz o que o discurso histórico coloca como verdade. A necessidade irônica de previsão
temporal, apresentada por datas e, às vezes, por horários, é desdita, também ironicamente,
pela imprecisão dos fatos e acontecimentos relatados. Assim, como já foi mencionado, o
narrador, logo após a sua descrição sobre a formação profissional de Quain na página 19,
ironicamente, se desdiz quando reconhece que
o mais incrível, nos nascimentos, é a euforia cega com que os pais encobrem o risco
e a imponderabilidade do que acabaram de criar, a esperança com que o recebem e
que os faz transformar em augúrio promissor a incapacidade de prever o futuro que
ali se anuncia e a importância de todas as medidas de precaução nesse sentido.
(CARVALHO, 2002, p.19)

A ironia está também presente em “Nove Noites” nos momentos em que o narrador
faz menção à produção de um romance. Assim, “suposto romance” (CARVALHO, 2002,
p.157), “edição popular” (CARVALHO, 2002, p.153) e “livros [...] de gente que não [existe]”
(CARVALHO, 2002, p.157) reafirmam o tom crítico presente na narrativa acerca da ficção
como uma “historinha sem nenhuma consequência na realidade.” (CARVALHO, 2002, p.95)
A ironia referente à produção de um romance também se faz presente quando o narrador, no
seu encontro com Schlomo Parsons, momento em que esse narrador diz iniciar a ficção, nos
fala: “A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos.” (CARVALHO,
2002, p.158) “As palavras dali em diante não teriam nenhuma importância. Eu podia dizer o
que quisesse, podia não fazer o menor sentido, só não podia dizer a verdade. Só a verdade
poria tudo a perder. ”(CARVALHO, 2002, p.161)
Ainda no que se refere à ironia, temos nas especularidades presentes em “Nove
Noites”, o relato do narrador, quando ele nos diz: “Meu pai me fez o favor de anunciar que eu
era bisneto do marechal Rondon por parte de mãe. Uma informação que, dali em diante, ele
usaria sempre que achasse necessário, como cartão de visita, toda vez que me levava para a
selva.” (CARVALHO, 2002, p.66) Intensificando a importância de Rondon para o jogo
político necessário à apropriação de terras amazônicas, o marechal, agora lembrado na patente
mais elevada, já que na página 67 Rondon era lembrado como General, enquanto bisavô do
narrador, é extremamente útil para que o pai deste narrador justificasse a compra da fazenda
Santa Cecília e os subsídios que recebeu do governo federal para a implantação do projeto
agropecuário em suas terras. Essa importância é reafirmada na narrativa quando a palavra
rondar aparece na página 67, referindo-se à procura das terras para serem compradas pelo pai
125

do narrador, na companhia do filho. Entediado pela procura das terras na mata, este narrador
relata:
Na ilha do Bananal, [...] meu pai e eu, com o meu chapéu de Jim das Selvas e um
mau humor mais do que compreensível numa criança de seis anos que se vê forçada
a passar os dias a rondar pela mata, de jipe e em voadeiras, sob um sol escaldante,
saímos à procura das terras que ele pretendia comprar. (CARVALHO, 2002, p.67)

No terreno da significância, rondar acentua o projeto do governo federal de incentivo à


agropecuária em terras amazônicas, no contexto Rondon Pacheco. Para Kristeva,
significância [é] esse trabalho de diferenciação, estratificação e confronto que se
pratica na língua e que deposita sobre a linha do sujeito falante uma cadeia
significante comunicativa e gramaticalmente estruturada. [...] Este trabalho [...]
questiona as leis dos discursos estabelecidos e apresenta um terreno propício no
qual novos discursos podem se fazer ouvir. (KRISTEVA, 1974, p. 11)

Essa autora ainda diz que “uma ruptura nas práticas significantes [possibilita que] o
significante [seja] remodelado enquanto significante.” (KRISTEVA, 1974, p.34) Portando,
Rondon cedeu lugar a rondar reforçando, na narrativa, a política agropecuária proposta para as
terras amazônicas.
Já apontando para o contexto da aculturação indígena sob o poder da civilização do
homem branco representada pelo poder de Rondon para a apropriação de terras na Amazônia
e pelo poder norte-americano imposto à nação brasileira, o que será analisado mais adiante, o
seriado televisivo “Jim das Selvas”, assim como a ficção científica “Perdidos no espaço”
lembrada na página 62 e a revista “Sétimo Céu” referida na página 66, confirmam o tom
irônico presente na narrativa.
O narrador ao fazer suas críticas às relações de poder e aculturação indígena, inclui, no
romance, comentários sobre o envolvimento amoroso de seu pai com uma atriz da fotonovela
que tinha como cenário o hotel da ilha do Bananal, onde esse narrador se hospedou na
companhia de seu pai que estava em busca de terras na Amazônia. Segundo o narrador:
Meu pai logo se engraçou com uma das atrizes da fotonovela, que no verão
seguinte eu reencontraria em Petrópolis, num fim de semana em que ele apareceu
para me visitar, com ela e dois filhos [...] e me comprou um forte apache de plástico
para aplacar a decepção que me provocou aquele reencontro. (CARVALHO, 2002,
p.67)

Novamente um elemento trazido da realidade das décadas de 60 e 70 aparece


ironicamente na narrativa entre o fato e a sua representação ficcional. Um forte apache de
plástico, representando a cultura indígena fragilizada frente o poder dos brancos, aponta para
uma dupla decepção do narrador. Por um lado temos a decepção pelo reencontro do narrador
com seu pai na companhia da atriz, reforçando na narrativa o interesse de seu pai pelas
mulheres. Por outro lado temos a decepção do narrador com o jogo político e de poder que
126

sustenta os processos de subjugação e aculturação. Não podemos esquecer que o hotel ao qual
o narrador se referia “era um prédio moderno, de dois andares, que lembrava Brasília à beira
do Araguaia.” (CARVALHO, 2002, p.66) Na perspectiva da dominação do homem branco
sobre os índios, Ribeiro comenta que
assim viviam, assim morriam os índios do Brasil nos primeiros anos [do século
XX]. Os que se opunham ao avanço das fronteiras de civilização eram caçados
como feras desde os igarapés ignorados da Amazônia até às portas das regiões mais
adiantadas. Ainda mais dramático era o destino dos índios civilizados. Submetidos
ao convívio com as populações brasileiras que ocuparam seu antigo território,
incapazes de se defenderem da opressão a que eram submetidos, viviam seus
últimos dias. Expulsos de suas terras, eram escravizados nos seringais e nas
fazendas onde enfrentavam condições de vida a que nenhum povo poderia
sobreviver. (RIBEIRO, 1977, p.111)

A desilusão do narrador pode se aproximar da desilusão do leitor quando, segundo


Culler,
devemos ficar nos movendo para lá e para cá entre a consciência da narrativa como
uma estrutura retórica que produz a ilusão de perspicácia e um estudo da narrativa
como principal tipo de busca de sentido à nossa disposição. Afinal de contas,
mesmo a exposição da narrativa como retórica tem a estrutura de uma narrativa: é
uma história em que nossa ilusão inicial cede à crua luz da verdade e emergimos
mais tristes, mas mais sábios, desiludidos, mas depurados. Paramos de dançar em
círculos e contemplamos o segredo. Assim diz a história. (CULLER, 1999, p. 94)

Entre a ilusão propiciada pelo romance e a busca de sentidos para o que nele se
apresenta escrito, o leitor se desilude e se fortalece diante do segredo que move a narrativa.
Na perspectiva da presença do discurso histórico no romance,
na primeira instância, a situação é dada pelo momento histórico; na segunda é o
diálogo com o discurso do próprio historiador que se instaura; no romance, estas
duas situações primeiras podem ser totalmente subvertidas, a partir das
confluências com outras vozes e até com outros discursos já chamados à cena ou
que ainda o serão. (WEINHARDT, 1996, p.351)

Assim, na composição do romance “Nove Noites”, lido como uma rede de diferenças,
além do discurso histórico, ainda encontramos os discurso jornalístico visto pela ótica da
ruptura, da descontinuidade, da desconfiança, das mutações, das possibilidades. Para
Weinhardt: “Se o traço definidor do discurso romanesco é a confluência de muitos discursos,
[...] nele há o discurso do historiador, o do antropólogo, o do sociólogo, o do jornalista, o do
etnólogo...” (WEINHARDT, 1996, p.346) No romance de Carvalho, a confluência desses
discursos possibilita o desenvolvimento da narrativa e a construção de seus personagens.
Através de fontes consideradas confiáveis, o tom jornalístico é tomado na narrativa
enquanto estratégia literária. Um exemplo da interseção existente entre texto literário e
discurso jornalístico pode ser visto na seguinte passagem:
Manoel Perna, o engenheiro de Carolina e ex-encarregado do posto indígena
Manoel da Nóbrega, morreu em 1946, afogado no rio Tocantins, durante uma
127

tempestade, quando tentava salvar a neta pequena. [...] Deixou sete filhos, três
homens e quatro mulheres. Voltava de Miracema do Tocantins para Carolina.
Quem conta a história são os dois filhos mais velhos. [...] Francisco Perna, de
Miracema, disse que o pai “voltava para Carolina pelo rio, houve uma tempestade e
a balsa virou. Ele já estava doente dos intestinos. O coração não aguentou. Tentou
nadar e salvar a neta sobre uma mala, mas o corpo dele afundou. A neta foi salva
por um amigo que conseguiu nadar até a margem.” Só dias depois do acidente os
filhos tiveram notícia de que o corpo do pai, levado pela correnteza, tinha sido
achado e enterrado em algum lugar rio abaixo, que não sabem onde é.
(CARVALHO, 2002, p.134-5)

Como pode ser visto, o texto literário atravessa o discurso jornalístico e é por ele
atravessado. A ficção se apodera da realidade e é por ela apoderada. O relato da morte de
Manoel Perna numa descrição jornalística, ao compor a narrativa, participa do tom enigmático
que sustenta todo o romance de Bernardo Carvalho quando, mesmo como a riqueza de
detalhes que o compõe, não se sabe onde o corpo de Perna foi enterrado.
No contexto do discurso jornalístico, retratos da realidade desfilam ao longo do
romance desde a sua gênese apresentada pelo artigo de jornal exposto na página 13, quando o
narrador diz:
[...] não posso dizer que nunca tivesse ouvido falar [em Buell Quain], mas a
verdade é que não fazia a menor ideia de quem ele era até ler o nome Buell Quain
pela primeira vez num artigo de jornal, na manhã de 12 de maio de 2001, um
sábado, quase sessenta e dois anos depois da sua morte às vésperas da Segunda
Guerra. O artigo saiu meses antes de outra guerra ser deflagrada. (CARVALHO,
2002, p.13)

Sob um estado belicoso e de perigo constante, o narrador, precisando datas e


acontecimentos, delimita a escrita do romance em busca da veracidade de suas argumentações
acerca do enigma Quain. Entre a Segunda Guerra Mundial, iniciada em setembro de 1939, e a
Guerra entre os EUA e o Iraque ocorrida em 2001, a verdade sobre a morte e o suicídio de
Quain encontra sua origem na veracidade de um artigo de jornal, quando o seu nome é lido
pelo narrador pela primeira vez. Através desse artigo, a leitura histórica acerca da morte de
Quain, atravessada pelo espaço existente entre as referidas e distintas guerras, desestabiliza
certezas e estabelece a fruição estética necessária para a manutenção da tensão essencial ao
deslocamento da narrativa, enquanto ficção. Segundo Lima, “nenhuma teoria, [inclusive as
históricas,] jamais substituirá o prazer da própria leitura, o prazer estético.” (LIMA, 1981,
p.195) Aqui cumpre ressaltar que para este autor, num “entendimento mais sofisticado: a
Estética seria o campo que daria regras, princípios, meios de aproximação da obra de arte. [...]
Então, de duas uma: ou nós renunciamos a dizer algo objetivo sobre Arte e Literatura, ou essa
objetividade há de ser procurada fora do campo da Estética.” (LIMA, 1981, p.211-3)
Corroborando Lima, para Deleuze (1998), a aproximação do sujeito à obra de arte
acontece pelo afeto. Segundo este autor, pela via do afeto, acredita-se que uma dada distância
128

histórica e geográfica existente entre o sujeito e a arte pode ser rompida no seu caráter espaço-
temporal, quando a fronteira que delimita diferentes territórios subjetivos se permeabiliza,
possibilitando infinitas trocas de saberes, conhecimentos, aspectos culturais, sociais e de
linguagem. Para Bakhtin,
em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de
fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído
num romance por algum autor. Os gêneros introduzidos no romance conservam
habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade
linguística e estilística. (BAKHTIN, 1993, p.124)

Assim, da mesma forma que distintos gêneros podem ser introduzidos no romance,
podemos pensar que diferentes discursos também podem ser nele incluídos. No romance
“Nove Noites”, o cruzamento do discurso jornalístico com o discurso histórico permite a
produção de diferentes interpretações e sentidos para as lembranças do narrador na
ficcionalização dos fatos e acontecimentos.

4.2 O romance e o discurso científico

No que se refere à cientificidade, no contexto do poder disciplinar, Auguste Comte é


lembrado em “Nove Noites” por ser um dos maiores expoentes da ciência positivista. Para
Comte, considerando “apenas os conhecimentos [...] [tidos] positivos em uma determinada
área, tudo o que não se conforma com o que é aceito como científico se descarta de sua
indagação.” (LIMA, 1975, p. 12) Assim, na perspectiva de Buell Quain, em carta escrita para
Margaret Mead em “4 de julho de 1939” (CARVALHO, 2002, p.66) e citada pelo narrador na
busca do esclarecimento da morte do antropólogo: “Auguste Comte [...] teve uma enorme
influência na educação superior [de Carolina e do Brasil] e [...] através do seu espetacular
discípulo brasileiro, o já velho general Rondon, corrompeu o Serviço de Proteção aos
Índios.”(CARVALHO, 2002, p.66-7)
Aqui cabe ressaltar que na perspectiva de Kastrup:
Na vertente da filosofia que Foucault denomina analítica da verdade, alinham-se
Auguste Comte e o movimento da filosofia analítica anglo-saxônica, em sua
vertente formalista (Tedesco 1993). O traço que os liga ao Kant da Crítica da razão
pura é a preocupação em discutir e estabelecer as condições do conhecimento
verdadeiro, por eles entendido como sinônimo de conhecimento científico. Comte
trabalha com base na ideia de que só a ciência produz conhecimentos verdadeiros.
Essa é, de resto, uma ideia kantiana, mas Comte extrai dela uma consequência: o
fim da metafísica. Ele reduz, assim, a ideia kantiana muito mais complexa de uma
eterna tensão entre o entendimento e a razão a um jogo de vencedores e vencidos.
Comte anuncia a morte da filosofia pelo conhecimento científico – a filosofia
cederá lugar à ciência. (KASTRUP, 1999, p. 29-30)
129

No encontro do discurso científico positivista de Comte com a formação acadêmica e


científica brasileira e de Carolina, ironicamente o general Rondon é lembrado na redução da
cultura de um povo à condição de objeto de investigação científica sendo corrompida,
dominada e aculturada pelo estrangeiro em nome da cientificidade. No caminho da
cientificidade, o general Rondon, nascido em Mato Grosso, é evocado, no romance, também
para acentuar o problema da aculturação e desrespeito ao índio.
Defendendo ainda a necessidade de proteger militarmente as fronteiras brasileiras e
favorecer o progresso econômico, o “marechal Rondon” (CARVALHO, 2002, p.66) lembrado
enquanto general e assim destituído, na narrativa, de uma patente militar, engajou-se na
Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Cuiabá ao Araguaia. Esta comissão, na
margem esquerda do rio Araguaia, passava pelo território dos índios Bororo que, vítimas de
sucessivos massacres, eram o principal obstáculo às comunicações entre Goiás e Mato Grosso
e, portanto, dificultavam o progresso da nação brasileira. Na opinião de Ribeiro,
em 1910, ano da fundação do Serviço de Proteção aos Índios, largas faixas do
território nacional, que podiam ser alcançadas com um a dois dias de viagem, a
partir de algumas das principais cidades brasileiras, como São Paulo, Vitória,
Ilhéus, Blumenau, estavam interditadas a qualquer atividade econômica pelas lutas
sangrentas que levavam tribos inteiras ao extermínio. As notícias dessas lutas
ocupavam todos os jornais, eram discutidas nas assembléias legislativas, nas
associações científicas e instituições filantrópicas, todas elas exigindo providências
imediatas. O Presidente da República convocava reuniões de ministros para estudar
a conveniência de mandar forças do Exército para por cobro àqueles conflitos. As
populações das zonas pioneiras exigiam medidas capazes de assegurar a conclusão
de estradas de ferro e de garantir a vida dos sertanejos que conquistavam novas
matas para as plantações de café e dos colonos estrangeiros a quem haviam sido
entregues terras habitadas por tribos hostis. (RIBEIRO, 1977, p.127-8)

Frente a essa situação, os índios tiveram suas terras demarcadas e, dessa forma, foi
assegurado o trabalho nas obras para a instalação das linhas telegráficas. A fim de manter a
ordem e impedir reações indígenas, surgiram duas diferentes iniciativas: uma religiosa e outra
leiga e política. Recorrendo ainda a Ribeiro temos:
[...] em meio a [diferentes] [...] debates, o País toma consciência do problema
indígena, definindo-se logo duas correntes opostas. Uma, religiosa, que defendia a
catequese católica como a única solução compatível com a formação do povo
brasileiro. Outra, leiga, argumentava que a assistência protetora ao índio competia
privativamente ao Estado. Sendo este leigo, leiga devia ser a assistência, mesmo
porque mais de uma religião era professada pelo povo e cabia assegurar ao índio
plena liberdade de consciência para, uma vez capacitado, escolher sua própria fé, e
bem assim garantir a todas as confissões religiosas o direito de fazer prosélitos
entre eles. (RIBEIRO, 1977, p.131-2)

Condizente com a vertente leiga e política, no contato com diferentes aldeias


indígenas, a Comissão Rondon definiu padrões de relacionamento com os índios no
estabelecimento de um conjunto de normas e de técnicas para a pacificação dos índios. Essa
130

padronização e normalização técnica nos relacionamentos com as populações indígenas,


propostas e realizadas pelo modelo rondoniano, pacificou diferentes tribos indígenas tidas
hostis e agressivas à civilização e ao progresso. Dentre essas tribos tem-se os Kepkiriwát, os
Ariken e os Nambikwara. Ribeiro acrescenta que
dentro desta orientação [leiga e política] foi estabelecido o Serviço de Proteção aos
Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais [...] [que] previa uma organização
que, partindo de núcleos de atração de índios hostis e arredios, passava a povoações
destinadas a índios já em caminho de hábitos mais sedentários e, daí, a centros
agrícolas onde, já afeitos ao trabalho nos moldes rurais brasileiros, receberiam uma
gleba de terras para se instalarem, juntamente com sertanejos. (RIBEIRO, 1977,
p.137-8)

Sem ceder ao crescimento e fortalecimento econômico, o Estado deparou-se com a


necessidade de intervir nas relações estabelecidas entre os grupos indígenas e a sociedade
brasileira. Criou-se, assim, O Serviço de Proteção aos Índios, tendo como diretor geral o
general Rondon, seguindo o princípio de assistência e proteção aos índios e de respeito à
diversidade cultural. Em 1939, ano da morte de Quain, Rondon assumiu a presidência do
recém-criado Conselho Nacional de Proteção ao Índio, apresentando, em 1952, ao Presidente
da República Getúlio Vargas o projeto de criação do Parque do Xingu e acompanhando a
fundação do Museu do Índio, destinado a coletar e analisar dados recolhidos das culturas
indígenas na elaboração e realização de pesquisas e na produção e divulgação de
conhecimento acerca desta realidade. Ribeiro, no seu livro “Diário do Xingu”, comenta que
o projeto de criação do Parque Indígena do Xingu, como reserva florística,
faunística e indígena foi aprovado pelo vice-presidente Café Filho em 1952 (SPI
1953:98/106) e compreendida uma área muito maior do que a que foi finalmente
demarcada (22 mil Km²) em 1961 pelo decreto-lei 50.455 que criou o Parque
Nacional do Xingu. Houve uma aproximação das aldeias para possibilitar uma
assistência mais permanente do Posto Leonardo, sede da administração do parque e
para a defesa de ataques externos, principalmente dos índios Txikão. (RIBEIRO,
1979, p.19)

Em nome da assistência, proteção e respeito aos índios, diferentes tribos foram


reunidas no Parque Nacional do Xingu e suas culturas homogeneizadas pelo olhar estrangeiro.
Os estreitos vínculos existentes entre Rondon e Comte muito contribuíram para o
funcionamento do Museu do Índio, pois a carreira do indigenista Rondon foi intensamente
influenciada pelos princípios positivistas.
No romance “Nove Noites”, o narrador também busca, na Antropologia, elementos
necessários à escrita ficcional. No que se refere à escrita literária de cunho antropológico,
Lima comenta que, desta forma, a literatura possibilita, “de certo modo, [...] [que] [...] o autor
[ceda] sua voz à fala do outro.” (LIMA, 1981, p.125) Para ele, esta “abdicação autoral
[permite que] surja a palavra, não por acaso, suspeitosa, torcida, barroca daquele que nunca
131

verá em livro a expressão por ele pronunciável. [...] Por um artifício literário, portanto, o leitor
[...] se defronta com o ponto de vista doutra classe.”(LIMA, 1981, p.125) Nesta direção, em
“Nove Noites”, o discurso antropológico abre espaço para a emergência das falas tanto do
índio quanto do homem branco.
Na reconstituição da vida de Buell Quain e na busca da compreensão de sua morte,
diferentes antropólogos estão presentes. Num misto de ficção e antropologia, Franz Boas,
antropólogo inovador das ciências humanas no século XX por deslocar o foco dos seus
estudos para as culturas, lendas, costumes, línguas e tradições, assinalando o caráter
inconsciente dos fenômenos linguísticos e dos fenômenos etnológicos, é incluído na narrativa.
Assim como Franz Boas, sua aluna Ruth Landes é também lembrada, por considerar nos seus
trabalhos questões relativas à subjetividade, à memória social e ao outro enquanto lugar para
falar de si próprio. Também Ruth Benedict, orientadora de Landes, não foi esquecida.
Na aproximação da ficção com a antropologia, foi construído um enigma a partir da
morte de Quain e diferentes sentidos deslocam-se na composição da rede narrativa. Nessa
rede, incluem-se os encontros do antropólogo com Manoel Perna acontecidos no decorrer de
nove noites. Segundo o narrador
foi na casa de Manoel Perna que Buell Quain encontrou um interlocutor atento nas
noites que passou em Carolina ao desembarcar em março, e depois em sua
passagem pela cidade no final de maio e início de junho, quando veio buscar cartas,
dinheiro e mantimentos, e comemorar o seu aniversário. (CARVALHO, 2002,
p.76-7)

Contudo, a reconstituição do enigma da morte de Quain não se limitou aos relatos dos
encontros do antropólogo com Perna. Outros sentidos para o suicídio de Quain foram
buscados na narrativa, incluindo assuntos referentes à etnia.
Quando em “Nove Noites”, o romance apresenta questões étnicas, o tom literário
apodera-se do discurso antropológico e é também tocado por ele. Na página 24, Manoel Perna
relata ao destinatário, que está por chegar, que conhece os motivos do suicídio de Quain, só se
silenciando para evitar inquérito policial “e para proteger os índios.” (CARVALHO, 2002,
p.24) Numa carta escrita por Quain e endereçada à Ruth Benedict, o etnólogo diz que: “Você
receberá esta carta bem depois da minha morte. Os índios estão a salvo, pelo que fico muito
feliz’.” (CARVALHO, 2002, p.87) A preocupação e os cuidados de Manoel Perna e de Quain
em proteger os índios e livrá-los de qualquer responsabilidade sobre a morte do antropólogo,
também, demonstram a intenção do narrador de resguardar os índios das perseguições da
cultura do homem branco. Ao conhecer o conteúdo dessa carta endereçada à Ruth Benedict,
132

especificamente no que se refere à situação dos índios de estarem a salvo, o narrador


questiona: “A salvo de quê? Ou de quem?” (CARVALHO, 2002, p.87)
No jogo especular estabelecido entre ficção e antropologia, a aculturação dos índios
brasileiros em nome da civilização e cientificidade é recorrentemente reafirmada. A chegada
do narrador, ainda criança em companhia de seu pai para a compra da fazenda na ilha do
Bananal, demonstra claramente o processo de aculturação indígena.
O campo de pouso da ilha do Bananal ficava ao lado e uma aldeia Karajá, e quem
chegava era recepcionado pelos índios aculturados. Era um espetáculo deprimente.
Havia naquele tempo um hotel que, segundo as más línguas, fora construído por
Juscelino Kubitschek como pretexto para promover encontros com as suas amantes.
[...] Em julho de 1967, o hotel tinha se transformado em cenário de uma fotonovela
exótica da revista Sétimo Céu. Era um prédio moderno, de dois andares, que
lembrava Brasília à beira do Araguaia. [...] Quando chegamos, alguns atores da
fotonovela estavam sentados no bar ao lado da recepção. E entre eles estava o
cacique Karajá. Tentava convencer o barman a lhe dar mais um copo de uísque. O
barman recusava-se e fazia troça do cacique. (CARVALHO, 2002, p.66)

Em meio às críticas irônicas endereçadas ao Governo Federal e às lembranças das


revistas da época (Sétimo Céu), o narrador relata a deprimente aculturação do povo indígena,
incluindo as troças dirigidas ao cacique Karajá, maior representante de uma aldeia indígena.
No contexto da aculturação indígena, Lima comenta que “a cultura se fez privilégio do
branco, que só se interessava pelas formas indígenas como maneira de melhor aculturar, [...]
de destruir o seu possuidor.” (LIMA, 1981, p.04) Sobre a aculturação do índio xinguano,
Ribeiro comenta que:
Considerando-se o isolamento dos grupos xinguanos, a densidade populacional era
baixa. [...] Hostilidades guerreiras, práticas abortivas e anticoncepcionais e,
principalmente, as doenças contraídas dos brancos, por contágio direto ou através
de grupos intermediários, como os Bakairí, contribuíram para a drástica
depopulação de todas as tribos da área. [...] Considerando-se o cálculo máximo da
população xinguana feito por Von Den Steinen (3.000 índios) e Ranke (4.000), o
descenso demográfico, no curso de um século, foi da ordem de 75 a 85%.
(RIBEIRO, 1979, p.23)

Assim, a baixa densidade populacional dos índios xinguanos tornou-se ainda menor
com a presença do homem branco. A aculturação indígena ainda pode ser observada, no
romance “Nove Noites”, através do hotel construído por Juscelino Kubitschek, da fotonovela
Sétimo Céu e do barman, como representação da cultura branca e da destruição do povo e da
cultura indígena. Recorrendo a Adorno e Horkheimer, ao falarem da imposição do
esclarecimento sobre a produção mítica, “o lugar dos espíritos e demônios locais foi tomado
pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo
sacrifício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando.” (ADORNO,
HORKHEIMER, 1986, p.23) Diante das imagens da dominação concretizadas nas troças
dirigidas ao cacique, no hotel de Juscelino e na fotonovela Sétimo Céu, o narrador se deprime,
133

já que “o sentimento de horror materializado numa imagem sólida torna-se o sinal da


dominação consolidada dos privilegiados.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.34)
Ainda no que se refere à aculturação indígena, é curioso que nos estudos realizados
pelo narrador sobre os Krahô, “pouco depois de ter lido pela primeira vez sobre o suicídio de
Quain no artigo de jornal” (CARVALHO, 2002, p.73), constata-se que é o homem branco que
ataca e destrói essa tribo e não uma outra tribo indígena como imaginava esse narrador a
partir de suas lembranças da infância. Cumpre lembrar que o narrador, em visita ao Xingu
ainda criança, na ocasião que os Villas Bôas realizavam “uma confraternização entre tribos
inimigas que se mantinham em estado de guerra havia anos” (CARVALHO, 2002, p.67),
presenciou o “terror dos Waurá e Yawalapíti” (CARVALHO, 2002, p.67) frente aos temidos
índios txikão, cuja cultura, segundo Ribeiro, “parece uma colcha de retalhos com muitos
traços xinguanos” (RIBEIRO, 1979, p.187), devido às conquistas realizadas sobre outras
tribos.
O terror vivido pelos Waurá e pelos Yawalapíti frente aos Txikão também pode ser
visto como o abalo de uma dada cultura organizada e circunscrita por uma comunidade
devido a uma intrusão externa. Num grupo social, fica clara a distinção entre aqueles que são
reconhecidos como seus membros e aqueles que dele não participam. A comunicação dentro
de uma comunidade alcança a todos e sua auto-suficiência a isola do que estão de fora,
resguardando seus membros de ameaças externas a seus modos habituais. Lembrando
Bauman, “numa verdadeira comunidade não há motivação para a reflexão, a crítica ou a
experimentação [...] porque a comunidade é fiel à sua natureza (ou a seu modo ideal) apenas
na medida em que ela é distinta de outros agrupamentos.”(BAUMAN, 2003, p.17) Contudo,
segundo o próprio Bauman,
o entendimento compartilhado, “natural” e “tácito”, não pode sobreviver ao
momento em que se torna autoconsciente, estridente e vociferante. [...] As fissuras
nos muros de proteção da comunidade “surgem” quando a comunicação entre os de
dentro e o mundo externo se intensifica e passa ter mais peso que as trocas mútuas
internas. [...] [Assim,] mais do que uma ilha de “entendimento natural” ou um
“círculo aconchegante”, a comunidade realmente existente se parece com uma
fortaleza sitiada, continuamente bombardeada por inimigos de fora, assolada por
discórdia interna. (BAUMAN, 2003, p.17 a 19)

Podemos pensar que a ameaça real, vivida pelos índios devido à intrusão externa,
apresenta a pressão interna na própria comunidade que abala o seu entendimento natural e
aconchegante. Nesse contexto, também se inclui a ameaça exercida pelo homem branco à
comunidade indígena. Assim, para a surpresa do narrador, no que diz respeito aos índios
Krahô, o ataque sofrido por essa tribo não foi de outros índios, mas do homem branco. Nas
suas palavras:
134

Na madrugada de 25 de agosto de 1940, um domingo, um ano depois do suicídio do


etnólogo, a aldeia em que havia passado os seus últimos meses sofreu um ataque de
onze homens armados com rifles, sob o comando de dois fazendeiros, José
Santiago e João Gomes, do município de Pedro Afonso, na época pertencente ao
estado de Goiás, que arquitetaram a emboscada com minúcias de traição e
perversidade, como vingança, para dar uma lição aos índios que roubavam seu
gado. No cômputo final da chacina, que também teve por alvo outra aldeia,
morreram vinte e seis índios, entre homens, mulheres e crianças. Antes de atacar, os
fazendeiros ofereceram um boi à aldeia de Cabeceira Grossa, prevendo que os
índios se reuniriam para dividir a carne. Era uma armadilha. (CARVALHO, 2002,
p.73)

O massacre dos índios Krahô também recebeu um tom messiânico e enigmático assim
como aconteceu com a morte de Buell Quain. Para o narrador,
os reflexos do trauma do massacre foram imensos e podem ser detectados até no
movimento messiânico que se desenvolveu entre os Krahô por volta de 1952, em
outra aldeia. Um vidente, ao que tudo indica sob efeito da maconha, passou a
profetizar o desaparecimento dos brancos e a transformação dos índios em
civilizados. (CARVALHO, 2002, p.74)

A decepção do narrador frente a essas formas de aculturação também se manifesta na


sua crítica referente à confraternização entre tribos inimigas organizada pelos irmãos Villas
Bôas. Na perspectiva do narrador: “Todos esperavam um acontecimento sem precedentes,
uma cerimônia que seria transformada em espetáculo exótico para uma platéia de brancos.”
(CARVALHO, 2002, p.67-8)
A crítica à transformação dos índios em homens civilizados é retomada pelo narrador,
quando ele se refere à informação que obteve por intermédio do velho Diniz que foi o
comerciante e fazendeiro Justino Medeiros Aires “quem deu a munição para o massacre dos
Krahô”. (CARVALHO, 2002, p.81) Neste contexto, o narrador ainda acrescenta que Justino
era
um dos “intelectuais” a que o antropólogo havia se referido na carta que escreveu a
Ruth Landes na manhã de sua partida para a aldeia. Justino tinha sido vice-
presidente do Grêmio Literário Carolinense na juventude. Era dele um dos
discursos em homenagem a Humberto de Campos na cerimônia a que o etnólogo
assistiu em 8 de março de 1939: “Humberto, o adolescente”. (CARVALHO, 2002,
P.81)

Pode-se observar que a crítica à transformação dos índios em homem civilizados feita
pelo narrador reflete e é refletida na crítica que Buell Quain faz à intelectualidade carolinense.
Num jogo de espelhos, imagens se refletem mutuamente, duplicando e reduplicando sentidos
ao mesmo tempo em que os reforça. Especularmente, a narrativa também evidencia as críticas
do antropólogo Buell Quain no que tange à aculturação indígena.
Numa das cartas que nunca mandou a Margaret Mead, escrita em 4 de julho de
1939, Quain dizia o seguinte: “O tratamento oficial reduziu os índios à
pauperização. Há uma crença muito difundida (entre vos poucos que se interessam
pelos índios) de que a maneira de ajudá-los é cobri-los de presentes e ‘elevá-los à
nossa civilização”. Tudo isso pode ser atribuído a Auguste Comte, que teve uma
135

enorme influência na educação superior local e que, através do seu espetacular


discípulo brasileiro, o já velho general Rondon, corrompeu o Serviço de Proteção
aos Índios. Ainda não consegui estabelecer a conexão lógica, mas sei que ela existe.
(CARVALHO, 2002, P.66-7)

Ironicamente, no dia da comemoração da independência americana, Quain relata a


pauperização e aculturação dos índios brasileiros. Submetido ao poder econômico norte-
americano, o índio brasileiro, assim como toda cultura brasileira, sofre as consequências do
poder hegemônico americano. Na opinião do norte-americano Buell Quain:
Tanto os brasileiros como os índios [...] são crianças mimadas que berram se não
obtêm o que desejam e nunca mantêm as suas promessas, uma vez que você lhes dá
as costas. O clima é anárquico e nada agradável. A sociedade parece ter se
esgarçado. [...] O Brasil [...] sem dúvida absorveu muitas das marcas mais
desagradáveis das culturas indígenas com as quais teve contato inicialmente.
(CARVALHO, 2002, p.120-1)

Criticando a cultura brasileira, o antropólogo estrangeiro reafirma o poder hegemônico


da cultura norte-americana. Contudo, quando o terror toma a narrativa no relato dos “dois
aviões de passageiros, diante dos olhos atônitos de todo o planeta, [atingindo e derrubando] as
duas torres do World Trade Center [...] [e do] momento em que os Estados Unidos entraram
em pânico por causa das remessas de antraz em cartas anônimas enviadas pelo correio”
(CARVALHO, 2002, p.155), o poder e a hegemonia norte-americana passam a ser
questionados. Para Bakhtin, o poder ideológico traz, em si, a possibilidade da transformação.
Segundo esse autor,
a palavra ideológica do outro, interiormente persuasiva, [...] é determinante para o
processo da transformação ideológica da consciência individual: para uma vida
ideológica independente, a consciência desperta num mundo onde as palavras de
outrem a rodeiam e onde logo de início ela não se destaca. [No jogo ideológico,
temos] a distinção entre nossas palavras e as do outro, entre os nossos pensamentos
e os dos outros. [...] No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é
comumente metade nossa, metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste
precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa nova palavra
autônoma, em que ela organiza do interior as massas de nossas palavras, em vez de
permanecer numa situação de isolamento e imobilidade. (BAKHTIN, 1993, p.145-
6)

A palavra ideológica é transformadora por trazer o eu e o outro, marcando a diferença


e, com isso, possibilitando os processos de singularização. Barros comenta que “se nos
discursos falam vozes diversas que mostram a compreensão que cada classe ou segmento de
classe tem do mundo, em um dado momento histórico, os discursos são, por definição,
ideológicos, marcados por coerções sociais.” (BARROS, 1996, p.34) Assim,
a língua produz discursos em que falam vozes diversas e também discursos
ideologicamente opostos, pois classes sociais diferentes utilizam o mesmo sistema
linguístico, deve-se concluir que na língua se imprimem, com o tempo, os traços
desses discursos. [...] A partir do uso discursivo e dos traços impressos na língua,
instalam-se nela choques e contradições, em que se atraem e se rejeitam elementos
136

tidos inconciliáveis. Em outros termos, para Bakhtin, no signo confrontam-se


índices de valor contraditório. (BARROS, 1996, p.35)

Portanto, o poder hegemônico norte-americano também se revela frágil quando,


reconhecendo a existência e, com isso fortalecendo a cultura do dominado, percebe que seu
poder não é tão hegemônico assim.
As críticas ao poder hegemônico e aos processos de aculturação culminam na página
155, quando a queda das torres gêmeas do World Trade Center e as remessas de antraz em
cartas anônimas marcaram o ano de 2001 como ameaça ao poder norte-americano.
Cumpre saber que o World Trade Center era um complexo de edifícios construído no
início da década de 70, assim como os outros elementos retirados da realidade que compõem
a narrativa são datados do final da década de 60 e início da década de 70. Assim, o poder
hegemônico norte-americano, também representado por esse complexo arquitetônico e por
suas duas torres gêmeas com 110 andares, tidas como um dos ícones da economia norte-
americana, onde trabalhavam diariamente cerca de 50.000 pessoas e, portanto, considerado o
maior prédio do mundo durante os anos de 1972 e 1973, cede aos ataques liderados pelo
terrorista Mohamed Atta, causando pânico em todo o mundo em 2001. O predomínio norte-
americano, enfatizado nas décadas de 60 e 70, período da infância do narrador, é questionado
na atualidade do século XXI, quando adulto, se envolve com a vida e com a morte de Buell
Quain, um americano que, nas suas palavras, era um
estudante atraído por um pensamento liberal que se propunha a cortar
cientificamente as raízes dos preconceitos sociais. Depoimentos de alunos e colegas
atribuem a Benedict [orientadora de Quain] uma preferência por estudantes em
desacordo com o mundo a que pertenciam e de alguma forma desajustados em
relação ao padrão da cultura americana. (CARVALHO, 2002, p.17)

O romance “Nove Noites” aponta para implicações étnicas, éticas e políticas que, na
ficção, apresentam as realidades indígena e brasileira em outras configurações que não apenas
científicas e antropológicas. Como já foi citado anteriormente, o narrador afirma junto ao
índio Leusipo, sua condição de romancista, dizendo: “Tentei lhe explicar que pretendia
escrever um livro e mais uma vez o que era um romance, o que era um livro de ficção”.
(CARVALHO, 2002, p.95) Reiterando seu desejo de escrever um romance e não um estudo
antropológico, o narrador ainda comenta:
Não consegui entender nem os laços de sangue nem o parentesco simbólico entre os
membros da tribo [Krahô]. Era muito complicado, e meus objetivos não eram
antropológicos. O próprio Quain teve dificuldades em entender essas relações. [...]
Não sou antropólogo e não tenho uma boa alma. (CARVALHO, 2002, p.98-109)

A diferenciação estabelecida entre um romance e o discurso antropológico também


pode ser observada na passagem do narrador pela tribo Krahô, na qual ele ficou hospedado
137

em casa diferente da que se hospedou o antropólogo que o acompanhou nessa viagem. Nas
palavras do narrador:
No final da tarde em que chegamos [na aldeia Krahô], logo depois de me instalar,
saí à procura do antropólogo e do seu filho, que ficaram em outra casa. [...] Cada
convidado comia na casa em que estava hospedado, o que significava, para meu
desespero, que jantaria separado do antropólogo e do seu filho. (CARVALHO,
2002, p.91-2)

Comentários incisivos e persistentes conectam-se com intuições e delas se


desconectam para que a narrativa possa acontecer. A escrita de um livro, de um romance,
assim como a escrita da narrativa “Nove Noites”, dá voz à diversidade cultural e ao
plurilinguismo social. Ao falar sobre os romances, Bakhtin comenta que
o romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às
vezes de línguas e de vozes individuais. A estratificação interna de uma língua
nacional única em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jargões profissionais,
linguagens de gêneros, fala das gerações, das idades, das tendências, das
autoridades, dos círculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e
mesmo de certas horas [...], enfim, toda estratificação interna de cada língua em
cada momento dado de sua existência histórica constitui premissa indispensável do
gênero romanesco. (BAKHTIN, 1993, p.74)

Na perspectiva da plurilinguismo sócio-cultural, “Nove Noites” traz a voz indígena do


Xingu através de seus mitos, de suas crenças, mas também, de sua opressão pela cultura
branca e pelos interesses capitalistas, manifestados nos distintos discursos dos personagens e
do narrador em diferentes tempos e espaços. A própria formação do Xingu foi plurilingüística.
Segundo Ribeiro: “A coexistência pacífica de 14 tribos que falavam línguas distintas,
pertencentes aos quatro principais troncos linguísticos indígenas brasileiros (Tupi, Aruak,
Karib, Jê) e uma língua isolada (Trumai) [levou á formação da] região [...] do rio Xingu.”
(RIBEIRO, 1979, p.19)
Em “Nove Noites”, o narrador, recordando uma passagem de sua infância pelo Xingu,
na mesma ocasião quando os irmãos Villas Bôas organizaram “uma confraternização entre
tribos inimigas” (CARVALHO, 2002, p.67), se angustia com a situação miserável desses
índios por ele interpretada como “uma cena grotesca” (CARVALHO, 2002, p.69) ou como
uma “imagem do inferno.” (CARVALHO, 2002, p.72) Naquele contexto, o narrador
questiona-se ao dizer que “não entendia o que dera na cabeça dos índios para se instalarem
[no Xingu], o que [lhe] parecia [...] uma burrice incrível, se não um masoquismo e mesmo
uma espécie de suicídio.” (CARVALHO, 2002, p.73) Também referindo-se a um suicídio,
agora cometido pelos índios do Xingu, o enigma da morte se mantém, propiciando perguntas
que são respondidas ao longo da narrativa. Na dimensão intertextual e de constantes
espelhamentos, uma das respostas encontradas pelo narrador para os seus questionamentos foi
138

alcançada na leitura de um dos apontamentos deixado pelo antropólogo Buell Quain sobre o
Xingu. Assim, o narrador nos diz:
Não pensei mais no assunto até o antropólogo que por fim me levou aos Krahô, em
agosto de 2001, me esclarecer: “Veja o Xingu. Por que os índios estão lá? Porque
foram sendo empurrados, encurralados, foram fugindo até se estabelecerem no
lugar mais inóspito e inacessível, o mais terrível para a sua sobrevivência, e ao
mesmo tempo a sua única e última condição. O Xingu foi o que lhes restou.”
(CARVALHO, 2002, p.73)

E o que resta é um enigma fragmentado, estilhaçado na descontinuidade do discurso,


no deserto e solidão desbotados de cada subjetividade, a serem coloridos pela rica fauna e
flora dos diferentes discursos que compõem a ficção. Na perspectiva de Deleuze e Parnet,
nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso
tempo a arrumar essas tribos, a dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas,
a fazer prosperar outras. E todos esses povoados, todas essas multidões não
impedem o deserto, que é nossa própria ascese; ao contrário, elas o habitam,
passam por ele, sobre ele. [...] O deserto, a experimentação sobre si mesmo é nossa
única identidade, nossa única chance para todas as combinações que nos habitam.
(DELEUZE; PARNET, 1977, p.67)

No encontro e desencontro de diferentes tribos, culturas e discursos, distintos saberes


suportam contaminar e serem contaminados uns pelos outros. Essa contaminação acontece
por meio de desterritorializações e reterritorializações, ao mergulharmos nos vários textos
presentes na construção da narrativa. Encontros e desencontros casuais podem acontecer na
superfície do acontecido. Contudo, uma cartografia exige pesquisas em profundidades
suficientes para a argumentação de ideias e fatos. Assim, a cartografia não se limita ao
agrupamento de discursos, mas, muito pelo contrário, ela leva a aprofundamentos nas
diferentes direções textuais que um romance apresenta. Isso se faz necessário tanto para a
produção do romance, quanto para sua leitura e estudo. Acompanhando os mais diversos
caminhos textuais orquestrados pelo narrador, o leitor pode conhecer os percursos realizados
pelo autor na construção do romance, como também sustentar as suas análises e interpretações
de uma dada narrativa, dissolvendo a estática realidade fatual no dinamismo da ficção.
Nos princípios positivistas, fortaleceu-se a ciência moderna e fragilizou-se o sujeito.
Para Adorno e Horkheimer,
o eu que, após o extermínio metódico de todos os vestígios naturais como algo de
mitológico, não queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo
um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lógico, o ponto
de referência da razão, a instância legisladora da ação. [...] [Assim,] a subjetividade
volatizou-se na lógica de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a fim de
dispor de uma maneira ainda mais desembaraçada. [...] O processo técnico, no qual
o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da
plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral,
porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica
que a tudo engloba. (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.41-2)
139

Contudo, no contexto positivista e da vertente filosófica analítica da verdade, a ciência


depara-se com seus limites. Na busca da verdade, o discurso científico, ao se apoiar no
racional, empírico e intelectual, se distancia de sua capacidade inventiva. Para Kristeva, ao
discutir a produção do texto literário,
na modernidade, oposto habitualmente ao conhecimento científico formal, o texto
“estranho à língua” [...] [resgata] a pluralização dos sistemas abertos de notação,
não submetidos ao centro regulador de um sentido. Sem se opor ao ato científico
[...], mas longe de se igualar a ele e sem pretender substituí-lo, o texto inscreve seu
domínio fora da ciência e através da ideologia, como uma verbalização [...] da
notação científica. O texto transpõe para a linguagem, para a história social,
portanto, os remanejamentos históricos da significância evocando aqueles que
encontramos marcados em seu domínio próprio pela descoberta científica. [...] O
texto literário atualmente atravessa a face da ciência, da ideologia e da política
como discurso e se oferece para confrontá-los, desdobrá-los, refundi-los.
(KRISTEVA, 1974, p.16-7)

Adorno e Horkheimer comentam que: “Segundo Schelling, a arte entra em ação


quando o saber desampara os homens. Para ele, a arte ‘é o modelo da ciência, e é aonde está a
arte que a ciência deve ainda chegar.’” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.32)
Corroborando Adorno e Horkheimer, Bergson (1934) afirma que a ciência moderna,
restringindo a produção do conhecimento à cognição, exclui o tempo inventivo do seu
trabalho de investigação.
Já no campo da literatura, Lima comenta que “se assumirmos [a] posição [da ciência
positivista], o papel da teoria da literatura seria o de discutir as técnicas da análise hoje
vigentes do discurso literário, buscando aperfeiçoá-las no sentido de uma maior objetividade.”
(LIMA, 1975, p.13) Contudo, “o discurso poético [...] é igualmente ambíguo e polifônico. É
nisso que está a sua diferença fundamental do discurso-conceito, do discurso-termo.”
(BAKHTIN, 1993, p.130) Retornando a Bergson e a Lima, ainda temos que “a descoberta
relaciona-se ao que já existe, atual ou virtualmente; certamente, ela viria cedo ou tarde. A
invenção doa o ser ao que não era” (BERGSON, 1934, p.127) e, assim, “o caminho da
invenção leva à abertura do campo dos problemas e não das soluções.” (J. HYPPOLITE in:
LIMA, 1975, p.14) Enquanto uma invenção, o ser passa a existir como dúvida, como
representação, como ficção. Assim, a ficcionalização da realidade que realiza a ficção
aproxima-se da potencialidade inventiva que rompe com os limites, dispersa sentidos e dilui
fronteiras entre o ser e a realidade fatual. Talvez, como afirmam Deleuze e Guattari (1997c), o
mundo deva ser pensado pela interseção da filosofia, arte e ciência, nos seus diferentes
objetos de estudo, a saber: o pensamento, os perceptos e os fatos científicos.

4.3 A ficção e o fatual


140

Quando a ficção toma a realidade, a precisão fatual é abalada pela fluidez da palavra.
Afinal, na perspectiva de Booth, “se o espelho [da ficção] for polido demais, sacrificar-se-á a
ilusão.” (BOOTH, 1980, p.63) Por exemplo, na página 22 de “Nove Noites”, em carta escrita
por Quain à Heloísa Torres, momentos antes de sua morte, a palavra contos pode ser lida
ambiguamente, pois se por um lado pode se referir aos contos de réis, moeda brasileira em
vigor em 1939, apenas sendo substituída pelo cruzeiro em 10 de outubro de 1942; por outro
lado, esta mesma palavra pode significar narrativa, literatura, invenção, ficção.
Na referida carta, Quain solicita à Heloísa que dois contos fossem remetidos aos índios
que a enviariam o catálogo da coleção que o antropólogo dizia já não poder terminar.
Segundo Quain:
Estou morrendo de uma doença contagiosa. [...] Não pense o pior de mim. Apreciei
a sua amizade. Mas não posso terminar o catálogo da coleção que os índios vão
encaixotar e lhe enviar. Pedi que dois contos lhe fossem remetidos por conta do
meu fracasso. (CARVALHO, 2002, p.22)

O fracasso de Quain o remete aos contos. Esses contos podem ser interpretados como
contos de réis como pagamento do serviço prestado pelos índios ao encaminharem à Heloísa o
catálogo inacabado. Mas, dois contos podem-nos remeter também às duas versões sobre o
suicídio do antropólogo que aparecem neste momento da narrativa. Bakhtin comenta que “o
sentido da palavra é totalmente determinado pelo seu contexto. De fato, há tantas
significações possíveis quantos contextos possíveis.” (BAKHTIN, 1981, p.106) Isso é
diferente de pensar “a ficção da palavra como decalque da realidade [que] ajuda [...] a
congelar sua significação. [...] O objetivismo abstrato coloca a língua fora do fluxo da
comunicação.” (BAKHTIN, 1981, p.107) Já Lima comenta que “a palavra que faltara obseda
a que se multiplica.” (LIMA, 1981, p.170) Sendo assim, Quain escreve para Heloísa que está
morrendo de uma doença contagiosa. O narrador acrescenta que: “A aceitar a explicação da
doença, no entanto, de um ponto de vista exterior e mais objetivo, esse fardo era agora o
próprio corpo leproso ou sifilítico. Simplesmente não podia mais suportar o sofrimento do
próprio corpo castigado pela doença.” (CARVALHO, 2002, p.113) Reforçando a doença
como possível motivo do suicídio de Quain, no diário de Métraux, citado pelo narrador, num
jantar que esse antropólogo teve na companhia de uma americana, de Wagley e de Cowan,
maneira pela qual chamava Quain,
a identidade do misterioso personagem por fim se revela, por dedução: “Cowan nos
relata a sua viagem ao Xingu, e depois se estende sobre o tema da sua sífilis. Na
fraqueza brutal do se discurso, nas brincadeiras que ele faz sobre a sua própria
condição, creio descobrir uma bravata desesperada.” (CARVALHO, 2002, p.130)
141

Também é importante lembrar que, na certidão de nascimento de Quain, já se


encontrava apontada uma possível e suposta doença da qual o antropólogo poderia ser
portador e que, talvez, fosse motivo para o seu suicídio. Nas palavras do narrador: “A certidão
de nascimento [de Quain] diz que foram tomadas as devidas precauções contra a oftalmia
neonatal, àquela altura um procedimento de praxe contra a transmissão de doenças venéreas
aos recém-nascidos.” (CARVALHO, 2002, p.19)
Contudo, na página 23, os índios afirmam que “o etnólogo não mostrava nenhum
sintoma de doença física.” (CARVALHO, 2002, p.23) A especulação sobre a hipotética
doença de Quain desloca-se pela obra de Carvalho, também compondo a narrativa e o enigma
Quain. Uma doença contagiosa sem apresentar sintomas intensifica as dúvidas do narrador na
sua pesquisa sobre o enigma Quain. A ficção proporciona, pela dúvida e pelo enigma, a ilusão
de compreender a vida em suas diferentes intensidades, frente ao que escapa à razão humana.
Booth, comentando o realismo de James, diz que “para James, era ‘intensidade de ilusão’ [...],
a ilusão de experimentar a vida tal como vista por uma mente lúcida, sujeita a limitações
humanas realistas.” (BOOTH, 1980, p.60)
Ampliando a leitura dos possíveis motivos da morte de Quain, a hipótese de doença
reaparece numa carta de Buell endereçada a Ruth Landes, na qual o antropólogo descreve
suas primeiras impressões sobre os índios Krahô. Nessa carta, Quain, ao comentar sobre os
dentes limados da arcada superior destes índios, menciona que esta característica
também é um sintoma comum de sífilis congênita; são chamados “dentes de
Hutchinson”. [Segundo Quain] você vê um caso ou outro entre os brasileiros, de
vez em quando. Já vi três desde que cheguei ao Brasil. Não pensei nisso na época
em que falamos sobre traços negros. Melhor teria sido prestar atenção.
(CARVALHO, 2002, p.41)

Nessa fala, Quain deixa entrever a possibilidade de estar com a doença por
contaminação, já que deveria ter prestado atenção na manifestação da sífilis, não limitando
essa característica apenas como um traço comum aos negros. Na perspectiva do narrador:
O estranho é a associação um tanto perturbada que Buell Quain faz desses traços
com sinais de uma determinada condição patológica, o fato de reconhecê-los vez
por outra na vida cotidiana e de lamentar não ter dado maior atenção àquelas
informações, como se de posse delas tivesse podido melhor se defender ou evitar
alguma coisa. (CARVALHO, 2002, p.41)

Logo em seguida a essa reflexão do narrador, este, recordando de um comentário de


Castro Faria, o cita dizendo que:
Nunca ouvi nenhuma história sobre o comportamento sexual dele. [...] Falaram um
monte de coisas depois do suicídio, inclusive que ele tinha lepra. Não se tem prova
de coisa nenhuma. Quando chegou a notícia do suicídio – e esses dados todos
sempre causam muita impressão -, acharam que talvez fosse uma doença. Foi uma
coisa tão inesperada. (CARVALHO, 2002, p.41)
142

Nas ilações do narrador, a morte de Quain pode estar associada a sua condição de
portador de sífilis por contaminação através do ato sexual, assim como, ao se lembrar da fala
de Castro Faria, a morte do antropólogo pode dizer respeito à lepra. Contudo, não se têm
certezas. São apenas especulações construídas a partir da estranheza advinda do inesperado
suicídio, que em James, comentado por Booth (1980), podem ser entendidas por intensidades
de ilusão e não por realidades ilusórias. No contexto da falta das certezas e garantias, o
narrador, pela cartografia, opera no fluxo imaginário do romance, dispersando verdades,
criando intensidades e fazendo semblant. Para Linn e Taylor, “o narrador [...] francamente
omnisciente desapareceu [...] da ficção moderna.” (LINN, TAYLOR, 1935, p.33) Nesse
sentido, Booth, fazendo referência a Sartre em suas reflexões sobre o autor na atualidade, diz
que:
Para Sartre, não chega que o autor evite por completo o comentário omnisciente.
Nem sequer é suficiente que o autor dê a ilusão de que está silenciosamente sentado
nos bastidores, como se fosse um Deus, observando objetivamente o seu trabalho.
[...] O autor tem que dar a ilusão de que não existe. Se, por um momento que seja,
suspeitarmos de que ele está nos bastidores,controlando as vidas dos personagens,
estes não parecerão livres. (BOOTH, 1980, p.67-8)

A inexistência do autor é essencial para existência dos personagens na construção e


desenvolvimento da narrativa. Isso também nos remete à inexistência do narrador como
aquele que sabe, conhece e relata os fatos. Diferente disso, o narrador traz a dúvida e inspira
desconfiança, já que, para Booth, “toda a ficção requer uma retórica complexa de
dissimulação.” (BOOTH, 1980, p.61) Promovendo intensidades no romance, o narrador
desordena fatos, recria situações e remodela acontecimentos na narrativa. Ainda recorrendo a
Booth como intercessor, temos que “é só através duma ordenação não natural que a arte pode
conseguir uma intensidade que não se encontra na vida.” (BOOTH, 1980, p.62)
Assim, a ideia sobre a morte de Quain estar vinculada a uma doença de natureza
sexual também está presente no relato de Manoel Perna, endereçado ao intercessor que está
por chegar. Perna, ao terminar sua explanação sobre a história contada pelo negro do Pacífico
Sul a Buell Quain e recontada pelo antropólogo para esse personagem, a respeito de um chefe
de Vanua Levu que na aparência de uma mulher enganou um homem que seduzia todas as
mulheres da aldeia e o obrigou ter relações sexuais com ele, nos diz: “Ao terminar a história,
o dr. Buell virou-se para mim, sorriu e disse que estava muito doente.”(CARVALHO, 2002,
p.128) É curioso que, ao concluir uma história acerca de uma relação homossexual, Quain
diga a Perna que está muito doente. Tal comentário, logo em seguida dessa história, permite
hipotetizar que a morte do etnólogo possa ter sido causada por uma doença transmitida
sexualmente.
143

Ainda no que se refere às doenças como possíveis causas da morte de Buell Quain, o
narrador comenta que “em carta de 1º de novembro de 1940 a Heloísa Alberto Torres, a mãe
de Quain conta a história dos missionários do rio Coliseu. À falta de quinino, e com os
homens morrendo de malária, os americanos começaram a rezar.” (CARVALHO, 2002, p.49-
50) Inclui-se, assim, a malária como outra hipotética doença que poderia ser a causa do
suicídio do antropólogo, já que, segundo o narrador, “de volta à Cuiabá, Buell Quain sofreu
um ataque de malária.” (CARVALHO, 2002, p.60)
No meio de tantas deduções acerca de uma possível doença para Buell Quain, em
correspondência de Ruth Landes com Ruth Benedict, “Landes menciona à orientadora ter
recebido ‘notícias pesarosas’ de Quain – que estava retido em Cuiabá com uma infecção no
ouvido – mas que ele próprio revelaria mais detalhes a Benedict em carta a ser remetida pela
Bolívia por razões de segurança.” (CARVALHO, 2002, p.43) Cumpre lembrar que essa
infecção no ouvido, como o motivo pelo qual o antropólogo estava retido em Cuiabá, é
questionável por se tratar de um momento quando
a situação dos estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada. A impressão era
que estavam sob vigilância permanente. [Neste contexto,] a prostração de Quain se
devia em especial às dificuldades que enfrentava para chegar ao Xingu sem as
devidas autorizações. Sua expedição solitária aos Trumai terminaria com uma
convocação expressa de volta ao Rio e Janeiro. (CARVALHO, 2002, p.43)

Nessas circunstâncias, questões políticas também passaram a fazer parte das hipóteses
sobre a morte e o suicídio do antropólogo. Na opinião do narrador: “Se é que Buell Quain já
tinha alguma coisa a esconder, a situação política só lhe dava ainda mais razões para a
dissimulação e a preservação quase paranóica da sua vida pessoal.” (CARVALHO, 2002,
p.44) Um possível motivo político que justificasse a morte de Quain foi questionado pelo
narrador a Castro Faria. No relato do narrador sobre seu encontro com Castro Faria temos:
Perguntei a Castro Faria sobre a repercussão do suicídio de um jovem etnólogo
americano em meio a esse estado de coisas. [Considerando que “a situação dos
estrangeiros no Brasil do Estado Novo era delicada.”(43)] “Não creio que o suicídio
dele tenha tido alguma repercussão nacional. Não sei nem localmente quais foram
as reações. Foi inteiramente imprevisto, apesar de todas as excentricidades dele,
que eram faladas. [...] O suicídio não foi traumatizante para nenhum de nós. Foi
surpreendente. O Quain foi um acidente na história da antropologia e nas relações
entre o Museu Nacional e a Universidade de Columbia. Mas as relações
continuaram sem problemas.” (CARVALHO, 2002, p.(45)

Na fala de Castro Faria um motivo político para a morte de Quain, assim como
ocorreu com outros possíveis motivos apresentados ao longo da narrativa, é questionado
como a real justificativa para o suicídio do etnólogo. Se a morte de Quain não interferiu nas
relações estabelecidas entre o Museu Nacional e a Universidade de Columbia, sendo apenas
considerada como um acidente na história da antropologia, um motivo político não explicaria
144

a morte do antropólogo. Assim, o enigma do suicídio de Buell Quain é mantido na narrativa,


possibilitando que ela se desenvolva pelo encontro da vida com o romance. Para Booth,
lembrando o que James fala sobre a qualidade moral do romance, “o sentido moral duma obra
de arte depende, integralmente, da quantidade de vida que se sente estar ligada a sua
produção.” (BOOTH, 1980, p.63) Mais do que pelo sentido moral, é pela visibilidade que o
romance dá à vida, que a narrativa se dinamiza como fluxo contínuo da diversidade da
expressão e do cotidiano humanos. James, citado por Booth, diz que:
Nenhum tema é tão humano como o que reflete, a partir da confusão da vida, a
ligação íntima entre êxtase e desgraça, entre coisas que ajudam e coisas que
magoam, acenando assim eternamente aos nossos olhos o medalhão duro e
brilhante, de uma liga tão estranha, com uma face que representa a razão e paz de
alguém e o reverso contendo a sua dor e os seus erros. (JAMES apud BOOTH,
1980, p.66)

Diante das ambiguidades humanas, no romance “Nove Noites”, ficam as questões:


Afinal, Quain estava doente ou não? A doença, como motivo da morte do antropólogo, era
encobridora de questões políticas? Qual ou quais foram os reais motivos para a morte de Buell
Quain?
Na página 23 de “Nove Noites” ainda aparece outra possível versão para o suicídio de
Quain: problemas familiares.
Na carta que mandou para dona Heloísa, em 12 de agosto de 1939, para confirmar o
telegrama que já lhe enviara na véspera com a notícia do suicídio de Quain, Manoel
Perna escreve a propósito do antropólogo: “É lamentável que o seu
desaparecimento tenha sido de um modo tão doloroso. Ainda ignoramos os motivos
que o levaram a tal atitude. Mas, segundo notícias colhidas de fontes que reputamos
certas, podemos adiantar que tenha sido por questões familiares. Segundo relataram
os índios, ultimamente, quando recebera cartas de seus pais e família, mostrara-se
muito contrariado, dizendo mesmo que as notícias recebidas não haviam sido nada
agradáveis, tendo em seguida dilacerado as missivas e queimado.” (CARVALHO,
2002, p.23-4)

Dona Heloísa depara-se, pois, com duas versões, dois contos, acerca da morte de
Quain. A primeira versão, encaminhada pelo próprio Quain, diz de doença contagiosa, a qual
também foi atravessada por questões políticas. A segunda versão apresentada à dona Heloísa
por Manoel Perna, a partir do relato dos índios, aponta para problemas familiares. Doença
contagiosa, embora sem apresentação de sintomas, questões políticas ou problemas
familiares? Enfim, entre uma versão e outra, enquanto conto, ficção, os motivos do suicídio
de Quain continuam ignorados, mesmo que as notícias colhidas advenham de fontes
consideradas confiáveis.
Na perspectiva do narrador, além das possibilidades de doença contagiosa e problemas
familiares, ele sugere outros prováveis motivos para a morte do etnólogo. Segundo esse
narrador:
145

Houve momentos em que, talvez por causa da inutilidade da obsessão de entender o


que o guiava nas suas últimas horas, e com isso tentando entrar também na sua
loucura, cheguei a cogitar que pudesse estar fugindo não só de um fantasma
pessoal, mas de alguma coisa objetiva e concreta, de alguém de carne e osso.
Quando nos encontramos, perguntei à antropóloga que tinha escrito o artigo no
jornal se ela aventava a possibilidade de ele ter sido assassinado. E ela foi taxativa.
Me disse que não havia nenhuma chance de que ele não tivesse se matado. Tudo
contradizia a hipótese de homicídio, a começar pelas cartas que deixou. [...] Talvez
Quain tivesse as suas razões para não deixar transparecer que estava correndo
perigo de vida. O que eu queria dizer não fazia muito sentido, estava contaminado
pela loucura dele. O que eu queria dizer era que talvez ele tivesse sido compelido
ao suicídio, talvez tivesse se matado, em pânico, ao entender que não conseguiria
escapar não só da culpa, mas de uma ameaça real, antes que fosse assassinado.
Talvez houvesse razões para ele ser assassinado. Talvez não quisesse que essas
razões viessem à tona. (CARVALHO, 2002, p.113-14)

Nesse momento, são apresentadas como possibilidades da morte de Quain várias


hipóteses e nunca certezas. Assim, no que se refere aos possíveis motivos da morte do
antropólogo, são diluídas as fronteiras entre a doença e os problemas familiares, incluindo a
loucura, a possibilidade de assassinato, direto ou por coação, ou suicídio.
Em sua passagem por Carolina, o narrador, em busca de fatos que contribuíssem para
a compreensão da morte de Quain, ainda comenta:
Fiquei com a manhã livre para ir atrás das pistas de uma eventual investigação
sobre a morte do etnólogo, algum documento que estivesse restado arquivado nos
cartórios ou no fórum da cidade. Não achei nada entre os papéis que se esfacelavam
como pó entre os dedos, processos de homicídios, crimes passionais e por dinheiro,
brigas familiares e suicídios, esmagados em pastas empoeiradas no alto de estantes
esquecidas em cômodos sem janelas, verdadeiras fornalhas nos fundos de casas
antigas e térreas no meio do sertão. (CARVALHO, 2002, p.77)

Novamente, a imprecisão fatual impede ao narrador o acesso à verdade sobre Quain.


Pistas, se desmanchando como pó, sustentam a pluralidade de possibilidades para o
entendimento da morte do etnólogo. Homicídio, crime passional e por dinheiro, questões
familiares e/ou suicídio, tudo isso, possível de ser encontrado na história de Quain, pode
justificar o acontecimento de sua morte. Sobre o acontecimento, Deleuze diz que
em toda acontecimento, há de fato o momento presente da efetuação, aquele em que
o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa,
aquele que é designado quando diz: pronto, chegou a hora; e o futuro e o passado
do acontecimento só são julgados em função desse presente definitivo, do ponto de
vista daquele que o encarna. Mas, há por outro lado, o futuro e o passado do
acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente porque está livre
das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal e pré-individual, neutro,
nem geral, nem particular... (DELEUZE, 1969, p.177)

Ainda sobre a imprecisão do acontecido, Zourabichvili comenta que o acontecimento é


“inseparavelmente o sentido das frases e o devir do mundo; é o que, do mundo, deixa-se
envolver na linguagem e permite que funcione. Assim, o conceito de acontecimento é exposto
numa lógica do sentido.” (ZOURABICHVILI, 2004, p.7)
146

No contexto do impreciso e da linguagem, a ficção encontra-se com o fatual. Ainda no


que se refere a este encontro, segundo o narrador de “Nove Noites”, ele guarda nas suas
lembranças “a notícia da [morte de Chiquinho da Vitoriosas] num acidente de
avião.”(CARVALHO, 2002, p.62) O narrador, ao se referir mais uma vez ao seu pai, diz que:
Há várias histórias que, passado o pavor do momento, entraram para o folclore
familiar e que, se não depõem contra a perícia aeronáutica do meu pai, denunciando
a sua imprudência, também não deveriam ser vistas como prova da sua bravura,
mas antes como resultado de uma dose de atabalhoamento na condução das
questões áreas. [...] Eu mesmo participei, como espectador e vítima, de duas dessas
histórias, sendo que a menos grave foi quando meu pai se esqueceu de fazer uma
mistura de óleo, um procedimento de praxe que devia ser realizado durante o vôo,
enquanto atravessávamos já fazia quase uma hora uma tempestade de granizo e
raios, entre São Miguel do Araguaia e Goiânia, e o motor direito congelou.
(CARVALHO, 2002, p.62-4)

Em meio ao acidente de Chiquinho da Vitoriosas e da imprudência de seu pai, o


narrador também se refere ao acidente aéreo envolvendo um Boeing da Varig em 1973. Nas
suas palavras:
No dia em que acordei, a manchete dos jornais era a tragédia de um avião da Varig
que se incendiara misteriosamente na rota de descida para Orly, matando boa parte
dos tripulantes e todos os passageiros, à exceção de um. O jornal trazia as fotos das
celebridades mortas. E de alguma forma associei a grande tragédia ao nosso
pequeno acidente, como se houvesse alguma conexão incompreensível entre os
dois. O Xingu, em todo caso, ficou guardado na minha memória como a imagem do
inferno. (CARVALHO, 2002, p.72)

No que diz respeito aos jogos de especularidades, a morte de Chiquinho da Vitoriosas,


em um acidente aéreo e a imprudência do pai do narrador como piloto, espelham e são
espelhados pelo fato do acidente com um avião da Varig em 11 de julho de 1973, ocorrido
perto de Paris, cerca de 11horas e 30 minutos depois de ter decolado do aeroporto do Galeão
no Rio de Janeiro.
O acidente aéreo envolvendo o Boeing da Varig foi noticiado pelo “Jornal do Brasil”
da quinta-feira 12 de julho de 1973. Sobre esse fato, consta na “Folha de São Paulo” (2000),
na listagem dos principais acidentes aéreos da França nas últimas décadas, que esse acidente
envolveu a queda do Boeing 707 da Varig “nas proximidades do aeroporto parisiense de Orly
por causa de um incêndio, deixando 123 mortos.” Esse acontecimento ainda foi comentado
pelo “Estadão” (2006), num histórico dos acidentes aéreos no Brasil, como um acidente
ocorrido perto de Paris onde “123 pessoas morrem na queda de um Boeing 707 da Varig, a
um minuto do destino, o aeroporto de Orly.” O fato é que o Boeing 707 da Varig caiu a 11
horas e 30 minutos do aeroporto do Galeão e a 1 minuto de Orly, em virtude de um incêndio a
bordo. Esses dados também podem ser averiguados no livro “Caixa-preta: o relato de três
desastres aéreos brasileiros” de Ivan Sant’Anna (2001). Para Sant’Anna:
147

Se pudéssemos voltar no tempo, em flash-back, até a tarde do dia 11 de julho de


1973 e, de um ponto no espaço, fechássemos poderoso zoom sobre uma área ocre-
esverdeada, em forma de retângulo, junto à localidade de Saulx-les-Chartreux, na
parte sul do cinturão verde de Paris – às margens do riacho Yvette, subafluente do
Sena –, veríamos apenas o cenário bucólico de uma horta de repolhos. [...] Ao
longe, ouviu-se o silvo das turbinas de um jato, bem mais estridente do que o
normal. [...] Saulx-les-Chartreux ficava a cinco quilômetros do Aeroporto de Orly.
[...] O barulho era infernal. Tinha-se a impressão de que tudo ia explodir. Qual
gigantesco arado, o jato continuou rasgando o solo de repolhos, lançando para cima
enormes torrões de terra e expelindo um cheiro forte de querosene queimado. [...]
Ao longo do percurso, as duas asas haviam se quebrado – uma delas junto à
fuselagem, a outra exatamente no meio –, mas continuaram presas ao corpo do
avião, por cabos de aço (dos comandos), como um pato que houvesse levado um
tiro e, estrebuchando no solo, arrastasse as asas antes de morrer. [...] Havia agora
um silêncio assustador, quebrado apenas por estalidos, como os de ferro muito
quente. [...] Um pouco acima, no leme de direção, era possível ver o nome da
empresa, Varig, sob um logotipo em forma de círculo, tendo ao centro uma rosa-
dos-ventos estilizada. (SANT’ANNA, 2001, p.19-21)

Tal como o narrador de “Nove Noites”, Sant’Anna também foi à busca de fatos para
escrever seu livro. Segundo ele: “Minha primeira decisão foi a de me ater a fatos ocorridos
com aeronaves de empresas brasileiras. O segundo passo foi a escolha dos episódios. Optei
por selecioná-los entre os que deixaram sobreviventes, gente que sobrou para contar a
história.” (SANT’ANNA, 2001, p.10) Segundo Sant’Anna:
Meu ponto de partida foi ler o máximo possível de matérias publicadas na imprensa
sobre os eventos escolhidos. Além de pesquisar durante meses na Biblioteca
Nacional, obtive recortes de jornais e revistas com Sindicato Nacional dos
Aeronautas e, mais tarde, com o sobrevivente de um dos desastres. Só destas duas
últimas fontes, trouxe xerocadas para casa 331 reportagens, que li atentamente e
que tenho arquivadas. (SANT’ANNA, 2001, p.11)

Junto aos recortes de jornais e revistas, Sant’Anna incluiu telefonemas, e-mails, fax,
cartas e fotografias em suas pesquisas, os mesmos recursos utilizados pelo narrador de “Nove
Noies” para o entendimento da morte do antropólogo Buell Quain. Assim, Sant’Anna
disparou “telefonemas, e-mails e fax em todas as direções, para instituições e pessoas as mais
diversas, às vezes [se] guiando apenas por um sobrenome num site de universidade.”
(SANT’ANNA, 2001, p.11-2) Como o narrador do romance de Carvalho, Sant’Anna obteve
respostas às suas cartas e e-mails gradativamente. Recorrendo a ele temos: “Tendo lançado ao
mar 154 garrafas (materializadas através de 96 e-mails, 42 fax e 16 cartas), recebi 97
respostas escritas (73 e-mails, 13 fax e 11 cartas). Isso sem contar as centenas de telefonemas
que dei, alguns verdadeiros tiros no escuro.” (SANT’ANNA, 2001, p.13)
Assim entre telefonemas, fitas gravadas, fotos e cartas, o acidente aéreo que envolveu
o vôo da Varig, RG-820, foi narrado por Ivan Sant’Anna e o suicídio de Buell Quain
sustentou o desenvolvimento da narrativa de Bernardo Carvalho. Na busca da
verossimilhança, Sant’Anna comenta que correu “em busca da exatidão.” (SANT’ANNA,
148

2001, p.13) Segundo esse autor “só quando [ele se julgou] um razoável conhecedor dos fatos
que pretendia narrar,” (SANT’ANNA, 2001, p.11) é que iniciou a escrita de seu livro.
Na composição da literariedade de seu texto, Sant’Anna também descobriu “que um
mesmo fato pode ser visto (e costuma ser narrado) de maneira diferente por cada um dos
envolvidos [...] [e] que, não raro, a visão oficial encobre culpas, torce os fatos.”
(SANT’ANNA, 2001, p.13) A ficcionalização da realidade e a realização da ficção estão
presentes tanto no romance “Nove Noites” quanto no livro de Sant’Anna que adverte querer
“escrever [...] [um] livro de não-ficção.” (SANT’ANNA, 2001, p.10)
Em “Nove Noites”, no que diz respeito ao acidente com o vôo 820 da Varig, o
narrador, referindo-se ao dia em que acordou após o acidente aéreo que teve na companhia de
seu pai, ficcionaliza um dado da realidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade a esse
dado na ficção. As notícias dos jornais, “Jornal do Brasil”, “Folha de São Paulo” e “Estadão”,
tão precisas nas suas reportagens, recebem um tom de mistério na narrativa. Assim, 123
mortos, já que parecia “impossível alguém ter sobrevivido no interior do aparelho”,
(SANT’ANNA, 2001, p.23) tornaram-se, na narrativa de Bernardo Carvalho, boa parte dos
tripulantes e de todos os passageiros, à exceção de um que conseguiu sobreviver ao acidente.
Contudo, na primeira página do “Jornal do Brasil” daquela quinta-feira 12 de julho,
embaixo de uma foto tirada numa plantação de cebola perto do aeroporto de Orly, pode ser
lido o seguinte título: “Fogo a bordo derruba Boeing perto do aeroporto de Paris e mata 122”.
Nessa mesma reportagem temos que “em circunstância de incrível dramaticidade, dos 134 que
se encontravam a bordo morreram todos os passageiros e se salvaram apenas 12, que eram
tripulantes.” Para Sant’Anna, a aeronave “levando em seu bojo 134 pessoas, decolou em
direção ao Aeroporto de Orly, em Paris, dez horas e meia e 10 mil quilômetros adiante. O
RG-820 chegaria quase lá.”(SANT’ANNA, 2001, p.42)
No espaço do dramático e porque não dizer do romance, realmente, os 123 mortos
noticiados na “Folha de São Paulo” (2000) e no “Estadão” (2006) menos os 122 mortos
anunciados na manchete do “Jornal do Brasil” (2007) são iguais a um, uma exceção que faz a
diferença; que não se encontra entre os 12 tripulantes sobreviventes de acordo com o “Jornal
do Brasil” (2007); um único passageiro sobrevivente na perspectiva do narrador de “Nove
Noites” e também dado presente no livro publicado por Sant’Anna (2001).
Sobre os tripulantes que sobreviveram à aterrissagem forçada do Boeing da Varig
numa plantação de cebolas, na opinião do “Jornal do Brasil”, ou numa horta de repolhos, na
perspectiva do livro “Caixa-preta”, Ivan Sant’Anna comenta que
149

uma língua de fogo saiu da parte inferior esquerda da fuselagem e começou a


lamber os lados do avião. A agonia dos camponeses, ao ver o jato se incendiar, deu
lugar a gritos de alívio quando viram pessoas pulando do avião. Eram tripulantes
uniformizados que se jogavam da janela da cabine de comando e das portas
dianteiras. Saíram umas dez pessoas. (SANT’ANNA, 2001, p.22)

Dos “17 tripulantes do RG-820” (SANT’ANNA, 2001, p.75), 12 sobreviveram,


segundo o que foi noticiado pelo “Jornal do Brasil”. Dez saíram da aeronave, segundo
Sant’Anna, pela janela da cabine de comando e pelas portas dianteiras. E “enquanto os
bombeiros tentavam agir sobre o fogo – que era mais intenso na parte de trás da fuselagem –,
da parte dianteira foi possível tirar mais três homens, todos tripulantes.” (SANT’ANNA,
2001, p.23) Totalizaram-se, assim, 13 tripulantes que conseguiram sair da aeronave e
sobreviveram ao acidente. Novamente uma exceção se faz presente, agora no que se refere à
tripulação sobrevivente.
Em Sant’Anna, os tripulantes que morreram foram: O comissário “Balbino [que]
perdera as esperanças de escapar com vida. Tirou o pano do rosto e começou a chorar. [...] –
Senta, senta – disse um outro. Sérgio Balbino jamais respondeu.”(SANT’ANNA, 2001, p.78)
O mecânico de vôo Diefenthaler que, entre “os tripulantes do cockpit, [foi o único] que
morreu em consequência da queda.” (SANT’ANNA, 2001, p.87) E “na cabine de passageiros,
apenas três corpos foram encontrados fora dos assentos: a comissária Elvira Strauss, seu
namorado, o co-piloto Ronald Utermoehl, e o comissário Edemar
Mascarenhas.”(SANT’ANNA, 2001, p.93) Assim, dos 17 tripulantes, 5 morreram,
sobrevivendo 12. Mas, como explicar que 13 foram os tripulantes que saíram com vida da
aeronave e que sobreviveram ao acidente?
No livro de Sant’Anna,
como estava na penúltima fila, [o passageiro] Ricardo Trajano fora um dos
primeiros a tomar conhecimento da fumaça. Olhando para trás, por sobre o encosto
da poltrona, procurava acompanhar a movimentação dos tripulantes na área do
incêndio. Pôde ver a fumaça branca, não muito espessa, que saía de um dos
banheiros. “Preciso sair daqui”, foi o pensamento que lhe ocorreu. (SANT’ANNA,
2001, p.61)

Sant’Anna ainda acrescenta que:


Em meio ao corre-corre do pessoal de serviço, Trajano, tomado de estranho poder
de premonição – e a despeito de os comissários terem pedido que todos
permanecessem em seus lugares -, erguera-se de seu assento, de onde acompanhara
atento a movimentação na cauda, pegara sua maleta no bagageiro em cima da
poltrona e fugira para a frente. (SANT’ANNA, 2001, p. 64-5)

Sendo assim, Trajano fugira para frente, enquanto os demais passageiros, seguindo as
instruções dos comissários, permaneciam em seus assentos, onde vieram a morrer. Ainda é
importante salientar que “a abertura das janelas do cockpit fora benéfica aos tripulantes que
150

estavam na galley e junto à porta principal, assim como a Trajano.” (SANT’ANNA, 2001,
p.77) Após o acidente, um bombeiro, “embora supondo que se tratava de um cadáver, puxou-
o pelos longos cabelos. Muito queimado, interna e externamente, Ricardo Trajano foi retirado
do Boeing.” (SANT’ANNA, 2001, p.91) Os bombeiros “depararam-se com um cenário que
lhes revoltou os estômagos: na parte traseira, não fosse pelos ossos enegrecidos à mostra,
dificilmente poderia se dizer que as postas calcinadas dispostas lado a lado – e amalgamadas
às ferragens retorcidas – eram de seres humanos.” (SANT’ANNA, 2001, p.23) Diante de tal
situação, “tomavam Trajano pelo comissário Sérgio Balbino (que morrera logo após ser
retirado do Boeing).”(SANT’ANNA, 2001, p.95)
Afinal, o que ocorreu a bordo da aeronave da Varig só pode ser parcialmente
reconstituído e ficcionalizado através dos relatos dos sobreviventes e da releitura que o
narrador do romance de Carvalho faz desse acidente. Assim, o narrador de “Nove Noites”
afirma que de alguma forma associou o acidente do Boeing da Varig ao pequeno acidente que
sofreu na companhia de seu pai, quando seu “pai se esqueceu de fazer uma mistura de óleo
[...] enquanto [atravessavam] já fazia quase uma hora uma tempestade de granizo e raios,
entre São Miguel do Araguaia e Goiânia” (CARVALHO, 2002, p.64), “como se houvesse
alguma conexão incompreensível entre os dois” (CARVALHO, 2002, p.72) acidentes. Este
narrador, ainda, faz a conexão entre o acidente do Boeing da Varig ocasionado por um
incêndio e o “o Xingu [que] ficou guardado na [sua] memória como a imagem do inferno.”
(CARVALHO, 2002, p.72) Aqui deve ser salientado que na notícia publicada pelo “Jornal de
Brasil”,
incêndio a bordo do 707 teve características inéditas. Teve início no sanitário
traseiro e produziu fumaça densa, que se espalhou pelas cabines com incrível
rapidez. Mais tarde, quando os bombeiros subiram a bordo, foi constatado que se
tratava de gás cianídrico. E foi afirmado que esse gás foi desprendido da combustão
de material plástico, que foi espalhado das tubulações do ar condicionado. Tudo
ocorreu rapidamente depois que – supostamente devido ao pequeno incêndio
causado por uma ponta de cigarro jogada na lixeira do banheiro – o PVC começou
a se derreter e o gás letal saiu dos dutos. Houve quem negou essa versão, atribuindo
sem muita credibilidade o gás à explosão de um extintor de incêndio. Mas ficou
comprovado que, ao respirar o ar contaminado, os passageiros começaram a
desfalecer, morrendo em seguida, pois não foi possível ajudá-los com as máscaras
de oxigênio, pois a mistura deste com o gás provocaria uma explosão. (Google,
2007)

Ainda sobre as possíveis causas do acidente temos que


o mecânico de vôo Claunor Bello morreu alguns anos depois de Orly, sem jamais
ter acreditado na versão do cigarro no toalete como estopim do incêndio. Para ele, a
fumaça teria sido desprendida pela combustão espontânea de equipamentos de
caças Mirage da FAB, que o VJZ estaria transportando em seus porões. Tratava-se,
segundo Bello, de cargas para ejeção de assentos, devolvidas ao fabricante na
França por apresentarem defeito. [...] O que saiu daqui como especulação,
publicada num jornal apenas, voltou como notícia séria de um jornal Francês. A
151

história ganhou abrigo nos meios aeronáuticos brasileiros, favorecida pela censura
que prevalecia na época. (SANT’ANNA, 2001, p.100-1)

Sendo o incêndio provocado por uma ponta de cigarro jogada na lixeira, pela explosão
de um extintor de incêndio ou pela combustão de equipamentos de caças Mirage, a
credibilidade do fato depende da interpretação. Através de distintas visões, a realidade é
criada e ficcionalizada. Segundo Booth, “na vida real essas visões não existem. O ato de as
proporcionar em ficção é, em si, uma intrusão do autor.” (BOOTH, 1980, p.35) Na ficção,
“tudo é aparência e todas as aparências são, ou pelo menos parecem ser igualmente válidas.”
(BOOTH, 1980, p.69) Os fatos, o mundo e o sujeito só existem se sustentados na linguagem
como possibilidades, como interpretações. Quain morre suicidando-se, assim como os
passageiros e a tripulação do Boeing da Varig, independente de quantos eram, também
morreram, embora num incêndio. A morte é real e tudo que podemos falar sobre ela é
especulação, no máximo interpretações. Enquanto enigma e mistério, ela provoca no sujeito a
vontade de desvendá-la; causa no sujeito o desejo de saber de si, convocando-o a produzir
sentido e/ou a vivenciar uma experiência literária.
Intensificando as incertezas sobre a morte de Buell Quain, lembranças e
esquecimentos também se apresentam como fragmentos da realidade, índices, possibilidades e
não verdades. Para Lima, “a via memorialista se torna a maneira de que o escritor dispõe a
priori para sentir que contata com o leitor, que fixa para ele experiências reconhecíveis, seja
por sua memória, seja, notadamente, por suas expectativas e valores.” (LIMA, 1981, p.124)
Num jogo de memória, Manoel Perna traduz a subjetividade Quain através de suas impressões
e julgamentos. Ao interpretar o antropólogo nas suas lembranças, Perna, contaminado por
seus valores e inquietações, contribui para manter o tom enigmático da narrativa. Ao se dirigir
ao seu intercessor que está por chegar, diz:
Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às
portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada. [...] Já não posso
contar com a sorte e deixar desaparecer comigo o que confiei à memória. [...]
[Afinal, devo] lembrar que morremos todos. (CARVALHO, 2002, p.7-8)

Manoel Perna ainda acrescenta: “Me lembro do dia em que ele chegou à cidade [...],
sua vinda provocou uma sensação que cinco meses depois todos já tinham esquecido, [...] só
eu guardo a memória dele.” (CARVALHO, 2002, p.8-9) “Nada me entristeceu tanto quanto o
fim do meu amigo, cuja memória decidi honrar.”(CARVALHO, 2002, p.11) Por fim, Perna
Conclui:
Hoje, mal se passaram seis anos da morte do dr. Buell, e o próprio professor
[Pessoa] já se diz etnólogo e se autoproclama estudioso dos Krahô, como se nunca
tivesse passado nenhum etnólogo por Carolina, como se bastasse a sua
autodeterminação para se equiparar ao homem que o ignorou e de quem ele diz
152

também já não se lembrar, pois só a lembrança já lhe faria sombra. (CARVALHO,


2002, p.12)

Frente ao que foi enterrado no passado, a memória falha e os esquecimentos fazem das
lembranças sombras que apontam para o que parece ser, assemelha-se, mas não é. No
contexto da subjetividade, o ser não é um fato objetivo estabelecido e dado a priori. De
acordo com a abordagem teórica, psicanalítica; sócio-histórica e esquizoanalítica,
respectivamente, o ser se constitui sujeito do desejo e do inconsciente pelo jogo pulsional; se
constrói como uma subjetividade ao construir intersubjetivamente sua realidade sócio-
cultural-histórica; se rizomatiza enquanto devir. Na discussão sobre o ser também se inclui
Bergson, e com ele, a memória participa efetivamente do ser, possibilitando que algo
permaneça num contexto de mudanças. Hyppolite, comentando a filosofia bergsoniana, diz:
Bergson concilia, em sua intuição primeira, as filosofias do devir e aquelas do ser.
O devir não se reduz a uma poeira de instantes sucessivos, mas evanescentes, como
nas filosofias heraclitianas, e o ser não é rejeitado para fora do tempo, como nas
filosofias eleatas. Pela memória, a duração é tanto substancial quanto é mudança.
(HYPPOLITE, 1949, p. 469)

Pensar, pois, o ser na perspectiva de Bergson é ir além da efemeridade de Heráclito e


da cisão entre o mundo físico, conhecido pelos sentidos, e o mundo inteligível, conhecido
pela razão e objeto da ciência, proposta pela Escola Filosófica de Eléia. Para Bergson, a
memória exerce função primordial para que o ser não se desfaça no que é efêmero, não se
perca no conhecimento apenas produzido pelos sentidos e nem se enrijeça na razão pura e
científica. A memória possibilita permanências num contexto de transformações.
Na mesma direção do que permanece e também se transforma, na primeira parte da
obra de Bernardo Carvalho, a oralidade se associa à memória como possibilidade de produção
de sentido, reforçando a ideia veiculada num discurso. Em “Nove Noites”, verbos tais como
contar e chamar trazem para o presente o acontecido no passado. Isso pode ser percebido
quando Manoel Perna diz ao destinatário que está por chegar: “Terá que contar apenas com o
imponderável e a precariedade do que agora lhe conto.[...] Me lembro do dia em que [Quain]
chegou à cidade que chamou de morta.”(CARVALHO, 2002, p.8) Reforçando o apelo à
oralidade presente nos verbos acima citados, Perna também diz que, mesmo considerando o
medo dos índios diante da morte de Quain, isso “não impediu que a notícia logo se
espalhasse”.(CARVALHO, 2002, p.12) Assim, o discurso oral expande o sentido como o que
permanece num espaço de transformação e que incita o sujeito a novas interpretações.
Diferente da expansão semântica incontível no discurso oral, o texto escrito, na busca
do entendimento, é lembrado como possibilidade de registro que circunscreve e contém a
palavra falada. Perna, nessa mesma parte da obra, comenta sobre cartas, bilhetes e
153

testamentos. Vejamos: Quain “deixou cartas impressionantes, mas que nada explicam”
(CARVALHO, 2002, p.8); “deixo este testamento para quando você vier” (CARVALHO,
2002, p.8); “não guardo rancor de ninguém, muito menos do dr. Quain [...] a despeito de tudo
o que possa ter pensado ou escrito e a que só tive acesso pela incerteza das traduções do
professor Pessoa”(CARVALHO, 2002, p.9); “a despeito do que pensou ou escreveu, não
passava de um menino”(10); “nada do que tenha pensado ou escrito pode me causar
rancor”(CARVALHO, 2002, p.11); “é possível que tivesse queimado [...] retratos junto com
as outras cartas que recebera antes de se matar”(CARVALHO, 2002, p.12); “sabia que viria
em busca do que era seu, a carta que ele lhe escrevera antes de se matar”(CARVALHO, 2002,
p.12); “mandei-lhe um bilhete no lugar de uma carta, um bilhete cifrado, é verdade, em
código”(CARVALHO, 2002, p.13); “nunca pude me certificar de que você tenha recebido
esse bilhete, ou que o tenha compreendido”.(CARVALHO, 2002, p.13)
Assim, entre lembranças e esquecimentos, também o intervalo existente entre discurso
oral e registro escrito participa do enigma da morte e da vida do antropólogo Buell Quain que
sustenta a narrativa “Nove Noites” na “espera de um sentido, nem que seja pela suposição do
mistério [...] escorado em fatos [...] parecido[s] incontestáveis”. (CARVALHO, 2002, p.7)
Sobre as suposições que evocam os mistérios constituintes da vida humana e de suas novas
configurações, dentre as quais se inclui a produção romanesca, ainda podemos recorrer a
Booth, que a partir de Sartre, diz que:
Em romances [...], o autor não pode permitir o aparecimento de qualquer sugestão
do mundo ordenado em que vive e a partir do qual recorda acontecimentos;
implicar a existência de ordem virá, necessariamente, destruir no leitor o sentido de
liberdade real que tem quando se vê face ao absurdo do caos. A existência de uma
ordem implícita era, de certo modo, desculpável na ficção antiga; escrita num
mundo ordenado. Era um tipo de ficção em que nem autor nem leitor estão em
perigo; não há surpresas a temer; o acontecimento faz parte do passado; foi
catalogado e entendido. Nesse mundo, não há motivo para que a técnica narrativa
não implique o ponto de vista [...] da ordem. Mas, no nosso mundo em que se
entendeu finalmente o verdadeiro caos das coisas, só é tolerável uma técnica que
pareça deixar aos personagens uma liberdade genuína de enfrentar o caos.
(BOOTH, 1980, p.68-9)

Diante da hipermodernidade multifacetada, o romance, recorrendo ao múltiplo, afasta-


se definitivamente da ordem que acredita na apreensão total do passado e na previsibilidade
do futuro.
Entre elementos fatuais, relatos pseudo-fatuais também compõem a narrativa. No que
se refere aos 6 anos de idade do narrador, a ficção na ficção e a realidade misturam-se no
pavor desse narrador ao saber da existência de um pequeno peixe que poderia entrar pelo
orifício de seu pênis. Segundo ele, ao dizer de uma de suas viagens com o pai:
154

Viajávamos os dois sozinhos sobre o fim do mundo, e eu me distraía a folhear um


manual de primeiros socorros e sobrevivência na selva, onde se tratava dos piores
terrores no caso de pouso forçado ou queda do avião, como a descrição de um peixe
minúsculo que me atormentava só de imaginar que pudesse entrar pelo orifício do
pênis e, uma vez instalado na uretra, abrir suas escamas ou sei lá o quê, de maneira
a não poder mais ser removido, tudo com farta ilustração. (CARVALHO, 2002,
p.65-6)

O horror vivenciado por uma criança, frente ao fato da existência do pequeno peixe no
contexto da ficção, também pode ser observado no seguinte relato do narrador do romance:
Houve um final de tarde em que, ao voltarmos à ilha do Bananal, toda a equipe da
fotonovela e a família do gerente do hotel nos esperavam para atravessarmos o rio
até uma praia paradisíaca, de areia branca, onde quem estivesse machucado (ou de
calção vermelho – era esse o folclore) ficava proibido e nadar, para não atrair as
piranhas. Ainda assim, havia cardumes de peixes mínimos que mordiscavam as
pernas dos banhistas e que a mim os adultos disseram ser filhotes de piranha,
provavelmente para me assustar. (CARVALHO, 2002, p.67)

O romance vai se construindo por conjecturas, fragmentos organizados por ilustrações,


ditos folclóricos, fantasias. Para Freud, em carta endereçada à Fliess, “as fantasias derivam de
coisas que foram ouvidas, mas compreendidas posteriormente, e todo o seu material,
naturalmente, é verídico. São estruturas de proteção, sublimações dos fatos, embelezamento
dos mesmos e, ao mesmo tempo, servem como auto-absolvição.” (FREUD, 1969b, p.334-5)
A partir do detonador fatual, o narrador busca elementos da realidade que se conectam e
desconectam com elementos da imaginação pela sintaxe ficcional. A presença do fantasioso
no romance não ocorre ao acaso. Aqui, também podemos incluir Booth ao dizer que “todas as
alusões literárias ou metáforas coloridas, do recurso a mitos e símbolos [...] conferem juízos
de valor. Um leitor esclarecido aperceber-se-á de que todos eles são impostos pelo autor.”
(BOOTH, 1980, p.36) Afinal, para Booth, “em resumo, o juízo do autor está sempre presente,
é sempre evidente a quem sabe procurá-lo.” (BOOTH, 1980, p.38)
Longe de ser uma produção marcada pela ingenuidade, o romance envolve a voz do
autor na construção dos sentidos veiculados na narrativa, assim como, ele constrói seus
personagens e cria o seu leitor. Para Booth, “o autor está presente em todos os discursos de
qualquer personagem” (BOOTH, 1980, p.35), como também, cria “o seu leitor tanto quanto
cria os personagens.” (BOOTH, 1980, p.67) Citando James, Booth diz que: “quando o escritor
cria mal o seu leitor, ou seja, quando o faz indiferente, o leitor não trabalha; o escritor errou.
Mas se o escritor cria bem o seu leitor, quer dizer, se o leva a interessar-se, então o leitor faz
metade do trabalho.” (BOOTH, 1980, p.67) Na parceria construída entre autor e leitor, sem
ingenuidade, os sentidos do romance multiplicam-se e são orquestrados pelo narrador. A
multiplicidade semântica presente no romance, retira da narrativa qualquer declaração do
contexto das verdades, por mais fidedignas que pareçam ser.
155

No espaço da ficção, as distorções imaginárias também participam da construção do


romance. Num fluxo imaginário, as palavras se associam às imagens, compondo as linhas que
se conectam e desconectam na composição do texto e organização da produção ficcional.
Ainda cumpre ressaltar que os fragmentos da realidade necessários ao narrador de
“Nove Noites” para a construção de seu romance foi, além do rosto de Schlomo Parsons, o
atentado sofrido pelos Estados Unidos com a queda das torres do World Trade Center. Nas
palavras desse narrador:
A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos. A edição do The
New York Times, de 19 de fevereiro de 2002, que distribuíram a bordo, anunciava
as novas estratégias do Pentágono: disseminar notícias – até mesmo falsas, se
preciso – pela mídia internacional; usar todos os meios para “influenciar as
audiências estrangeiras”. (CARVALHO, 2002, p.158)

No trecho citado acima, podemos ver que, ambiguamente, a ficção que começou no
dia em que o narrador colocou seus pés nos Estados Unidos diz respeito tanto à escrita do
romance por esse narrador, quanto à escrita das reportagens que noticiavam ao mundo a
tragédia norte-americana. Literatura e jornalismo, ou melhor, ficção e realidade encontram-se
na produção textual. Um rosto, um fato, assim como fotografias, cartas e mapas, enquanto
possíveis recortes da realidade, são ficcionalizados na escrita de um romance ou numa notícia
de jornal. Assim, a vida do antropólogo Buell Quain foi ficcionalizada num romance e a
tragédia norte-americana foi ficcionalizada em notícias de jornal para influenciar as
audiências estrangeiras. Na perspectiva do narrador: “As palavras dali em diante não teriam
nenhuma importância. [...] podia dizer o que [se] quisesse, podia não fazer o menor sentido.”
(CARVALHO, 2002, p.161) Cumpre, novamente, lembrar que o narrador não só começou a
sua ficção a partir de um dado da realidade, como também se interessou por Buell Quain
através do fato da morte do antropólogo publicado “num artigo de jornal”. (CARVALHO,
2002, p.13)
A necessidade do narrador em buscar, na realidade, elementos para a construção de
sua ficção, também registrada no seu romance, reaparece no seu encontro com Schlomo
Parsons. Para o narrador
não podia abordar o filho do fotógrafo de chofre. [...] Até então [...] nunca o tinha
visto. [...] Sabia mais ou menos a idade dele. [...] Fiz o reconhecimento do bairro.
[...] Pensei em tocar [o interfone] e ficar mudo, nem que fosse só para ouvir a sua
voz. [...] Precisava vê-lo. [...] Não podia perder a oportunidade. (CARVALHO,
2002, p.159)

A impossibilidade de acesso irrestrito do sujeito à realidade o faz ficção que o narrador


transformou em romance. Nos confrontos estabelecidos entre o sujeito e a realidade, o
narrador segue pistas do que nunca foi visto, do que se sabe mais ou menos, no
156

reconhecimento de uma voz ou de um rosto que servisse para a construção da realidade


ficcionalizada num romance.
No campo da ficção, o narrador, ao querer convencer a moça que lia para idosos no
asilo de Mrs. Lowell, a lhe fornecer dados sobre o rapaz que lia diariamente para o americano
internado no hospital onde também se encontrava hospitalizado o seu pai, diz:
Dessa vez, estava decidido a não perder nenhuma chance. Não ia arriscar. Inventei
tudo, disse que o vizinho estava dormindo naquele momento e que ela o veria na
semana seguinte, quando começariam as sessões de leitura, três vezes por semana,
como acabamos combinando (na véspera do dia marcado, eu ligaria para ela e diria
que o vizinho tinha morrido durante a noite). Acertamos o preço. Disse-lhe que eu
mesmo pagaria, era um ato de solidariedade, me cortava o coração ver o velho
estrangeiro abandonado numa terra estranha. (CARVALHO, 2002, p.149-50)

Na realidade Buell Quain, ficcionalizada no romance de Bernardo Carvalho,


encontram-se outras realidades ficcionalizadas pelo narrador, que, ao inventar a história sobre
o vizinho estrangeiro doente que o sensibilizava, constrói uma ficção dentro de outra ficção.
Ficções surgem dentro da ficção e os desdobramentos textuais e semânticos, orquestrados
pelo narrador, movimentam a narrativa. Nesta direção, ele acrescenta: “E assim fui
desdobrando a conversa até chegar onde eu queria.” (CARVALHO, 2002, p.150)
O não saber e o desconhecimento do fato e das razões que levaram ao suicídio de
Quain reforçam o clima de desconfiança presente no decorrer da narrativa. Isso também é
evidenciado no encontro do narrador com Schlomo Parsons, filho do fotógrafo que faleceu no
hospital ao lado de seu pai e, ao mesmo tempo, possível filho de Buell Quain. Segundo o
narrador:
Eu fingia que estava interessado nas fotos dos índios. [Schlomo] prosseguiu com a
história da sua vida, mas eu já não queria saber que, depois de sair de casa, ele tinha
ido viver com um homem mais velho [...]; não queria saber que passou a
acompanhar esse poeta em todos os encontros, exposições e galerias [...]; não
queria saber o nome do poeta [...]; já não queria saber de nada da vida dele.
(CARVALHO, 2002, p.165)

O não querer saber do narrador, ambiguamente, não o impediu de saber. Contudo, esse
não querer saber põe em questão as possíveis verdades presentes nas informações que
obtinha. Cumpre lembrar que, no momento do encontro do narrador com Schlomo, esse
narrador já não se interessava pela vida desse personagem. A suposição de que Schlomo era
filho de Quain parecia suficiente para aliviar o narrador nas suas dúvidas acerca da vida e da
morte do antropólogo.
Contudo, “as histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da
capacidade de interpretá-las.” (CARVALHO, 2002, p.8) De acordo com Manoel Perna: “era
preciso que ninguém achasse um sentido.” (CARVALHO, 2002, p.10) Sem sentidos únicos e
157

absolutos, se faz a ficção e nela se ficcionaliza o sujeito marcado por aquilo que lhe escapa e
lhe traz inquietação. Diante do que escapa ao entendimento, surge, no campo da alteridade, o
duplo como possibilidade do sujeito se significar para se designificar e se resignificar. Assim,
no jogo provocado e propiciado pela linguagem, os enigmas fundadores da subjetividade
possibilitam ao sujeito a sua ficcionalização. A produção da ficção, assim como a
ficcionalização do sujeito, não acontece de forma isolada e solitária, envolvendo, pois, outros
sujeitos e outras questões.
158

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ROMANCE E AS NOVAS FORMAS DE


SUBJETIVAÇÃO NA HIPERMODERNIDADE

Frente ao sujeito individualizado por um mundo fragmentado e que se pergunta sobre


o sentido da vida sem que tenha respostas definitivas para isto, a obra de Bernardo Carvalho,
conservando esta característica do romance, explicita angústias ao propor um enigma.
Buscando apenas diferentes pontos de vista, o romance traduz a angústia de Quain frente a
não resposta para as suas perguntas em suas visitas a Manoel Perna. Segundo Perna,
[na] primeira noite em que veio à minha casa [...] estava envergonhado, intimidado
pelos brancos que antes havia desprezado e aos quais já não ousava se dirigir em
português, com medo de não conseguir se expressar. Eu só o ouvia. [...] Com os
outros, preferia ficar calado. Quando me procurava, era para falar. Às vezes,
quando bebia, não dizia coisa com coisa. [...] Não via saídas. (CARVALHO, 2002,
p.111)

Diante de outra ordem, de uma lógica externa a si, Quain se vê envergonhado,


intimidado e acuado. A apresentação de dois diferentes territórios, aqui demarcados por
distintos códigos linguísticos (português/inglês), também delimita os espaços da singularidade
Quain e da realidade objetiva externa, os brancos brasileiros. Evidentemente, não é a
diferenciação de territórios que intimida a subjetividade Quain. O que deixa o antropólogo,
assim como o homem hipermoderno, acuado é a imposição de outra lógica a si. Contudo, a
lógica externa imposta ao etnólogo também participa da sua subjetivação, já que, como nos
fala Bakhtin (1992), a palavra do outro é constituinte do sujeito.
O que faz com que Buell Quain se sinta intimidado por aquilo que lhe é externo é a
sua incapacidade de manter, num contexto de imposição, a sua singularidade e o seu desejo e
não a sua condição humana sociocultural. Faz-se necessário que Quain opere como sujeito e
não seja guiado pelo outro, por um saber externo que não emancipa e o mantenha assujeitado
numa relação heteronômica. Para Guattari e Rolnik (1999), pode-se pensar, nos contextos
semelhantes ao vivenciado por Quain, em movimentos de desterritorialização e
reterritorialização como produção de linhas de fuga das montagens serializadas de desejo pela
subjetividade capitalística.
A subjetividade é construída a partir de territórios organizadores do sujeito para que
ele possa, ao se desterritorializar, ir em direção a outras reterritorializações, já que, nas
palavras de Todorov: “Ser significa comunicar-se.” (TODOROV, 1981, p.312) No contexto
da comunicação e, para tal, das territorializações, desterritorializações e reterritorializações, é
importante lembrar que Deleuze e Guattari (1997a) colocam território e distância num mesmo
159

plano. O território é o que possibilita ao sujeito estabelecer relações através das distâncias e
fronteiras existentes entre distintos espaços existenciais.
Na citação retirada da página 111 do romance de Bernardo Carvalho e que foi
apresentada no início destas considerações, Quain, na construção de sua subjetividade, tem
que se territorializar enquanto um antropólogo, etnólogo norte-americano, para ao se
desterritorializar, poder se reterritorializar como um antropólogo, etnólogo norte-americano
em terras brasileiras. A necessidade de Quain de territorializar-se em terras brasileiras
coincide com o que Bauman (2003) reflete sobre os sentimentos de segurança e proteção que
nos inspiram a palavra comunidade. Estabelecendo relações através das distâncias e fronteiras
existentes entre distintos espaços existenciais, a saber: ser antropólogo, etnólogo norte-
americano e ser antropólogo etnólogo norte-americano em terras brasileiras, Quain mantém
fronteiras e distâncias necessárias à sua desterritorialização e reterritorialização.
Nos tempos hipermodernos, territórios e distâncias tornam-se, assim, essenciais aos
processos de subjetivação, incluindo os seus movimentos em linhas de fuga, que para
Parpinelli e Souza (2005) são os dispositivos para se conectar com multiplicidades diversas.
Na hipermodernidade construída por inúmeras diferentes linhas, dentre elas as linhas de fuga,
ainda podemos pensar nas linhas de força apresentadas por Kristeva. Comentando a produção
do texto e do texto literário no contexto do devir, essa autora nos diz que a “particularidade do
‘texto’ [destaca-se por] suas linhas de força e de mutação, seu devir histórico e seu impacto
sobre o conjunto das práticas significantes.” (KRISTEVA, 1974, p.10)
Os territórios do romance e da subjetividade hipermodernos estão sempre em
movimento e, por isso, torna-se possível que o sujeito se mova de um território a outro no
processo de desterritorialização, engajando-se em linhas de fuga. Para Deleuze e Guattari,
desterritorializar é “o movimento pelo qual se abandona o território. É a operação da linha de
fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p.224)
Portanto, a desterritorialização divide o espaço dos processos de subjetivação com a
reterritorialização, outro tipo de movimento que surge com a intenção de recomposição,
quando o sujeito adentra num outro território, ou seja, quando o sujeito é capturado em outro
território.
Nos movimentos de desterritorialização e reterritorialização surgem agenciamentos
coletivos de enunciação para a produção de singularidades. Dialogando com Deleuze,
Guattari e Rolnik, Bakhtin afirma que “o sujeito [...] não pode ser percebido e estudado a
título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo;
consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico.” (BAKHTIN,
160

1992, p.403) Perceber e estudar o sujeito, assim como a sua inserção no romance, é, pois,
escutar a sua voz no contexto da construção de sua singularidade e, assim, implicá-lo no seu
processo de subjetivação. Os ecos existentes entre as vozes que compõem a voz do sujeito
também podem ser escutados, evidenciando espaços vazios entre os distintos discursos
constituintes da subjetividade, vista enquanto uma narrativa. Assim, diferentes cartografias
que o desejo vai traçando, diferentes micropolíticas, que correspondem a diferentes modos de
inserção social, agenciam linhas de fuga em processos de desterritorialização e
reterritorialização, até onde esses territórios não foram capturados pela subjetividade
capitalística alienante, na sua tomada de poder.
A cartografia da subjetividade se assemelha à cartografia do romance. Para perceber o
sujeito, é necessário escutar, na sua voz, as diversas vozes que participam do seu processo de
sigularização, as máquinas desejantes e desterritorializantes que, embora pequenas, permitem
questionar as máquinas molares territorializadas e territorializantes. Estudar o romance
pressupõe acompanhar o narrador pelos distintos caminhos nele presentes, também
identificando as várias vozes constituintes dos personagens, do narrador e da própria narrativa
na qual eles se inscrevem como singularidades. Tal como os ecos provenientes das diversas
vozes que compõem a subjetividade e participam da produção dos romances, a contraposição
de palavras, ao longo da narrativa, deixam entreabertas fissuras possibilitadoras da construção
de novos sentidos e outras interpretações, tanto no que se refere aos processos de
singularização, quanto no que diz respeito ao estudo dos romances.
A ideia apresentada por Bakhtin (1992) acerca da produção e compreensão do texto
como multiplicidade semântica e criativa dialoga com a concepção de rizoma presente no
pensamento esquizoanalítico. Pensando o rizoma como pluralidades coletivas e individuais, a
subjetividade, na esquizoanálise, pode se aproximar da compreensão do que é um texto para
Bakhtin. Para Guattari, a subjetividade como um rizoma é o “conjunto das condições que
torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como
território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma
alteridade ela mesma subjetiva.” (GUATTARI, 1992, p.19) As condições de tecer as
instâncias individuais e coletivas na construção da subjetividade aproxima-se do dialogismo
proposto por Bakhtin na produção textual. A construção da subjetividade e a elaboração
textual considerando, respectivamente, as suas condições de alteridade e dialógica, envolvem,
portanto, múltiplos discursos, contraposições de ideias e distintas vozes que ecoam umas
sobre as outras, dinamizando a vida enquanto fluxo de vontade, crescimento e produção.
161

Nietzsche, um dos intercessores do pensamento esquizoanalítico, ao criticar a moral


ascético-metafísica presente em sua época, diz:
A vida mesma é, para mim, instinto de crescimento, de duração, de acumulação de
forças, de poder: onde falta a vontade de poder, há declínio. Meu argumento é que a
todos os supremos valores da humanidade falta essa vontade – que valores de
declínio, valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados. (NIETZSCHE,
2007, p.13)

A mortificação da vontade humana apontada por Nietzsche, ou seja, o distanciamento


do homem de sua vontade, o que o leva a renunciar ao poder de dar sentido à vida e ao
mundo, aproxima-nos do termo capitalístico proposto por Guattari, por retirar do sujeito sua
autonomia.
Em “Nove Noites”, a produção da subjetividade singularizada Buell Quain também
envolve a produção de subjetividades sociais num contexto de controle. Quando a
subjetividade Quain se manifesta enquanto um antropólogo, etnólogo norte-americano em
terras brasileiras, não só as terras brasileiras passam a participar da produção da subjetividade
Buell Quain, como também esse personagem é capturado na produção de subjetividades
sociais.
A possibilidade da liberdade de viver seus processos intra e interpessoais é o que
capacita o sujeito e o grupo para a criação e autonomia. Os processos de singularização são,
pois, maneiras de recusar os modos preestabelecidos de controle e manipulação, para
construir modos de sensibilidade que produzam uma subjetividade singular em consonância
com o seu desejo, com a instauração de dispositivos que possam mudar os tipos de sociedade
e os valores que não são os do sujeito. Esses processos são pontos de ruptura, brechas nas
quais ocorre “algo que frustra os mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo
que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular independente das escalas de
valor que nos cercam e nos espreitam de todos os lados.” (GUATTARI, ROLNIK, 2000.
p.45) Sobre os processos de singularização ainda temos:
Essa nova lógica [...] se parenta à do artista que pode ser levado a remanejar sua
obra a partir da intrusão de um detalhe acidental, de um acontecimento-incidente
que repentinamente faz bifurcar seu projeto inicial, para fazê-lo derivar longe das
perspectivas anteriores mais seguras. (GUATTARI, 1991, p.36)

O narrador de “Nove Noites”, ao tentar esclarecer o mistério construído em torno de


Buell Quain e ao se deparar com o suicídio do antropólogo, tal como este personagem, parece
não encontrar saídas. Contudo, por não encontrar saídas, o narrador organiza o que se
encontra disperso. Ao jogar com esclarecimentos e ocultações, o narrador, como orquestrador
de diversas vozes, também joga com palavras, cartas, fotografias, passagens bíblicas e com a
própria literatura como possibilidade de cartografar territórios de singularidades, já que para
162

“Deleuze e Guattari a arte tem o poder de desterritorialização; de colocar em movimento o


que era estático.” (CHAGAS, 2005, p.379) Bakhtin comenta que “a língua, enquanto meio
vivo e concreto onde vive a consciência do artista da palavra, nunca é única.” (BAKHTIN,
1993, p.96) Para este autor, “a linguagem literária é um fenômeno profundamente original,
assim como a consciência linguística do literato que lhe é correlata; nela, a diversidade
intencional [...], torna-se plurilíngue: trata-se não de uma linguagem, mas de um diálogo de
linguagens.” (BAKHTIN, 1993, p.101) No dialogismo estabelecido entre diferentes
linguagens, podemos também pensar as possíveis relações da subjetividade com a alteridade.
Na multiplicidade de linguagens presente na hipermodernidade, o sujeito singulariza-
se enquanto uma subjetividade social na companhia de um outro que exerce a função de
alteridade. Com esse outro, o sujeito se identifica como semelhante, mas, também se
diferencia tendo-o como alteridade. Na dimensão imaginária, segundo Adorno e Horkheimer,
“é só enquanto [...] imagem e semelhança que o homem alcança a identidade do eu que não
pode se perder na identificação com o outro, mas toma definitivamente posse de si como
máscara impenetrável.” (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p.24) O outro, enquanto efeito
do trabalho imaginário e espelhando semelhanças e diferenças, oferece e abre possibilidades
ao sujeito na produção de sua singularidade, ao contrário de demarcar caminhos, impondo-lhe
percursos corretos a serem seguidos.
Especularmente, no relato de Manoel Perna sobre a ilha do Pacífico na qual um dia
esteve Quain, ele, diante da imprecisão do acontecido, volta-se ao seu intercessor que está
para chegar como outro que, na dimensão do saber, pode lhe proporcionar a produção de
sentido. Segundo Perna:
Isto é para quando você vier. O que eu sei é o que ele me contou e o que imaginei.
Você sabe de coisas dessa ilha que eu mesmo nunca poderei saber. É só por isso
que me dou o trabalho de contar o pouco que sei. Se as coisas que tenho a dizer
estão todas pela metade, e podem soar insignificantes aos ouvidos de outra pessoa,
é porque estão à sua espera para fazer sentido. Só você pode entender o que quero
dizer, pois tem a chave que me falta. Só você tem a outra parte da história. [...] O
que eu tenho a dizer só pode fazer sentido junto com o que você já sabe.
(CARVALHO, 2002, p.122)

O relato sobre a ilha do Pacífico se repete e se duplica em distintos discursos. O relato


de Quain sobre esta ilha, endereçado a Manoel Perna, é imaginado por este personagem e
narrado a outro intercessor que está por chegar. Diante de Manoel Perna, Quain produz
sentido para o seu discurso. Da mesma forma, diante do intercessor que está por chegar,
Manoel Perna produz sentido para aquilo que imaginou e que passa a narrar.
Ainda sobre o sujeito e outro, segundo Kristeva, “o sujeito da narração, pelo próprio
ato da narração, se dirige a um outro, e é em relação a este outro que a narração se estrutura.
163

(Em nome desta comunicação, Ponge opõe ao ‘Penso, logo existo’, um ‘Eu falo e você me
ouve, logo, existimos’.)”(KRISTEVA, 1974, p.73) Kristeva, assim, aproxima-se de Bakhtin,
quando ele nos diz que “aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo,
privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores.” (BAKHTIN, 1981,
p.147)
Como um devir, ou seja, enquanto movimentos solitários e quase imperceptíveis
presentes na vida do sujeito e manifestos como estilo próprio que proporcionam
transformações na dimensão do ser, os encontros acontecem como a inserção de diferentes
outros no terreno singular da subjetividade. Num jogo especular, diferentes subjetividades são
apresentadas na delimitação de espaços interpessoais que se deslocam para outros espaços e
envolvem outras subjetividades. Nos tempos hipermodernos, na produção e análise de ideias,
textos e do romance, “prestamos uma atenção cada vez maior aos jogos de diferenças”.
(FOUCAULT, 1987 b, p.7)
No campo da linguagem, o sujeito se depara com os sentidos que permitem a sua
existência. Enquanto alteridade, a linguagem dinamiza a produção do discurso, assim como o
narrador movimenta a narrativa. Na construção do romance, o narrador exerce a função de
alteridade.
No romance, o sujeito aparece como efeito de linguagem, encontrando-se com outras
subjetividades advindas de distintos discursos e diferentes éticas. Na duplicação de histórias,
fatos e personagens, o outro como o estrangeiro que reside na dimensão do sujeito torna-se,
por excelência, o intercessor necessário para o deslocamento da narrativa de Carvalho.
Manoel Perna, tendo o seu discurso orquestrado pelo narrador, ao se dirigir àquele que está
por chegar, se refere à Quain da seguinte forma:
Numa das vezes em que me falou de suas viagens pelo mundo, perguntei aonde
queria chegar e ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu lhe
perguntei: “Para olhar o quê?” Ele respondeu: “Um ponto de vista em que eu já não
esteja no campo de visão”. [...] Ele nunca estaria no seu próprio campo de visão,
onde quer que estivesse, ninguém nunca está no seu próprio campo de visão, desde
que evite os espelhos. Às vezes me dava a impressão de que, a despeito de ter visto
muitas coisas, não via o óbvio, e por isso acreditava que os outros não o vissem,
que pudesse se esconder. O que eu vi, nunca falei. Fiquei à sua espera. O que eu
ouvi, já não sei se foi fato ou fruto de um conjunto de imaginações, minha e dele.
[...] Terá que aprender a se lembrar dele como um homem fora do seu campo de
visão, se é que pretende vê-lo como eu o vi. [...] Ao contrário dos outros, vivia fora
de si. Via-se como um estrangeiro e, ao viajar, procura apenas voltar para dentro de
si, de onde não estaria mais condenado a se ver. Sua fuga foi resultado do seu
fracasso. De certo modo, ele se matou para sumir do seu campo de visão, para
deixar de se ver. (CARVALHO, 2002, p.111-12)

Diante do outro, estrangeiro que está por chegar, Manoel Perna, guiado pelo narrador,
volta-se para si e vai ao encontro do outro que o habita. Na espera de um intercessor, Perna
164

organiza suas imagens acerca de Quain e de si. Afinal, Perna apresenta o antropólogo sob seu
ponto de vista, um conjunto de imaginações, dele e de Quain. Da mesma forma, sendo
intercessor para Buell Quain, Manoel Perna questiona o etnólogo, convocando Quain também
a voltar-se para si. O antropólogo reluta, mas não há escapatória, não é possível não se ver,
tudo é espelho, não é possível não ser visto, não é possível se esconder. Manoel Perna ainda
convida o seu intercessor a abandonar o seu campo de visão para ver o antropólogo como ele
o viu. Para ver Quain como Perna o viu, tem que ser do ponto de vista desse personagem, o
que certamente é impossível, já que o intercessor que está para chegar também tem a sua
forma de olhar.
No campo do outro, na narrativa organizada pelo narrador, a subjetividade Buell
Quain busca segurança e liberdade. Contudo, como adverte Bauman, tem que se haver uma
escolha e “qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. [...] Não
seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não podemos ter as duas ao mesmo
tempo e ambas na quantidade que queremos.”(BAUMAN, 2003, p.10-1)
Problematizando a realidade Buell Quain, Perna, conduzido pelo narrador como um
outro que o habita, depara-se consigo e com o outro. Para este personagem, “no fundo nada
pode surpreender quem se permite ouvir nos outros a própria voz.”(CARVALHO, 2002,
p.122) No jogo especular no qual surge o sujeito, a única forma de não se ver é se matando.
Segundo o Manoel Perna: “O suicídio elimina não apenas a hipótese do homicídio, mas os
motivos de quem tivesse razões para matá-lo”. (CARVALHO, 2002, p.131) Perna ainda
acrescenta: “Se pomos o corpo à prova, não é pelo capricho fútil de saber até onde podemos
ir, não é para desafiar os limites, mas para saber onde estamos - embora aos outros possa
parecer que cometemos um ato contra a natureza.” (CARVALHO, 2002, p.132-3)
Na perspectiva de Manoel Perna, traduzida pelo narrador, o corpo territorializa, cria
fronteiras e delimita espaços, garantindo ao ser a sua existência. Contudo, os territórios
corporais são atravessados por linhas de todas as espécies. Na concepção de Deleuze e Parnet,
“indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa.”
(DELEUZE; PARNET, 1998, p.145) Sendo assim, os corpos que territorializam, também
desterritorializam para que possam acontecer outras territorializações. Esses movimentos
corporais são possíveis devido às diversas linhas que atravessam o corpo e que compõem a
sua tessitura no trabalho realizado pelo narrador sobre o romance.
O corpo da narrativa “Nove Noites”, através de relatos fatuais, retratos, fotografias e
cartas, possibilita o trânsito e o atravessamento do corpo dos personagens por diferentes
espaços intertextuais e interculturais, corporificando o narrador como uma figura discursiva
165

de possibilidades, também construída por diferentes linhas no orquestramento que realiza no


romance. Nessa configuração, o romance, os personagens e o narrador são três corpos tecidos
intertextualmente. Na construção intertextual, diferentes linhas de distintas cores, tonalidades,
tamanhos e espessuras, possibilitam variadas costuras ficcionais. Enquanto aquilo que é
apenas possível, essas linhas apontam para caminhos, direções e leituras que também são
apenas possibilidades. O narrador, orquestrando várias e diferentes vozes, apresenta pela
cartografia, a diversidade de linhas que atravessam as narrativas do romance e do sujeito. É
nessa direção que o narrador exerce a função de alteridade frente às diferentes subjetividades
presentes no romance.
Em “Nove Noites”, o narrador, diante de um enigma que se ramifica em outros
mistérios, provoca o encontro do leitor com os personagens do romance, quando diferentes
subjetividades singularizam-se num contexto dialógico e, ao mesmo tempo, plural. No
romance de Bernardo Carvalho, em torno do enigma da vida e da morte, o narrador, através
de diferentes sujeitos e diferentes outros, constrói o romance como uma rede intersubjetiva,
uma das tonalidades que recebe e que sustenta os tempos hipermodernos.
No romance de Bernardo Carvalho, o narrador, Quain, os demais personagens e os
fatos que compõem a narrativa se conectam e desconectam na construção de uma rede
intersubjetiva, se territorializando para se desterritorializarem e se reterritorializarem em
territórios que não se definem espaço/temporalmente, mas que recebem o sentido de moradia,
de singularização, embora arraigada de diferentes subjetividades.
No contexto da intersubjetividade, Bakhtin comenta que “o sujeito que fala no
romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu
discurso é uma linguagem social [...], e não um dialeto individual.” (BAKHTIN, 1993, p.135)
De forma semelhante, na perspectiva esquizoanalítica, a subjetividade é construída por
todos os processos de produção de valores, de cultura e de relações sociais presentes numa
sociedade, sendo assumida e vivida pelos indivíduos em suas existências particulares. Desta
forma, recorrendo novamente à Bakhtin, nas palavras de Barros, “a intersubjetividade é
anterior à subjetividade, pois a relação entre os interlocutores não apenas funda a linguagem e
dá sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto”.
(BARROS, 1996, p.28) A partir da intersubjetividade, a subjetividade é um sistema que
atinge o individual, o social e o inconsciente, na construção de um rizoma.
Rizomatizada, a subjetividade vai desde a relação de alienação e opressão, na qual há a
sujeição ao processo de subjetivação, à relação de expressão e criação, em que pode ser
também incluído o romance, no qual o indivíduo se reapropria dos componentes constitutivos
166

da subjetividade, produzindo o que Guattari, segundo Parpinelli e Souza (2005), denomina


como singularização. O processo de singularização é, portanto, algo que frustra os
mecanismos de interiorização de valores pré-estabelecidos, como os valores capitalistas. Esse
processo é o movimento de protesto do inconsciente contra a subjetividade pré-moldada,
sendo aquilo que pode conduzir à afirmação de outros valores, que busca novas maneiras de
ser, outras sensibilidades e percepções.
No campo do desejo, conexões e desconexões aparecem ao longo de toda a narrativa
“Nove Noites”, possibilitando, pois, que a história de Buell Quain seja contada através do
agenciamento de diferentes vozes e subjetividades, o que, segundo Barros, para Bakhtin
“define o texto como um ‘tecido de muitas vozes’, ou de muitos textos ou discursos, que se
entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre si no interior do
texto.” (BARROS, 1996, p.34) Já para Deleuze e Guattari, “um agenciamento é precisamente
[o] crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à
medida que ela aumenta suas conexões.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.17) Portanto, o
agenciamento de diversas vozes amplia as dimensões das subjetividades ali presentes.
Considerando, pois, a multiplicidade presente nos processos subjetivos e
intersubjetivos, diferentes histórias também compõem a construção do narrador, dos
personagens e da narrativa “Nove Noites”. Assim, no romance, a intersubjetividade
manifesta-se na intertextualidade. Neste sentido, Kristeva comenta que “todo texto se constrói
como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar
da noção de intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se
pelo menos como dupla.”(KRISTEVA, 1974, p.64)
No romance de Bernardo Carvalho, o enigma da morte do antropólogo Buell Quain
desdobra-se em outras pequenas histórias que nele vão se incluindo. Enquanto devir, o
narrador de “Nove Noites” diz que: “Eu mesmo participei, como espectador e vítima, de duas
dessas histórias”. (CARVALHO, 2002, p.64) Espectador e pesquisador da história de Quain e
vítima da própria história, o narrador intertextualiza sua história com a de Quain e se
intersubjetiva com a subjetividade do antropólogo, tecendo a rede necessária para o
deslocamento da narrativa, em que a voz falada manifesta-se no texto escrito.
Este é o caso da expressão “isto é para quando você vier” recorrente no romance aqui
estudado. Através da palavra falada, Manoel Perna amplia as suas possibilidades de
compreensão do enigma Quain, incluindo em seu discurso o intercessor de quem espera
respostas, mas que também interroga. Na opinião de Todorov (1981), a vida, vista como a
participação do sujeito em diferentes diálogos, se traduz como a possibilidade de ouvir,
167

escutar, responder, concordar, discordar ou interrogar. O destinatário que está por chegar é um
intercessor tanto para Manoel Perna, quanto para o narrador. Da mesma forma, ele também
foi um intercessor para Buell Quain.
Sobre os intercessores, Deleuze (1992), ao citar Nietzsche (1844-1900), Bergson
(1859-1941), Guattari (1930-1992), dentre outros, como subjetividades essenciais à sua
produção, comenta que esses são os responsáveis por “pegar as pessoas em flagrante delito de
fabular”. (DELEUZE, 1992, p.157) Assim, a potência de um intercessor, no instante em que
ela se manifesta na produção de uma obra, lança o movimento de constituição de um
pensamento para além dos limites identificados entre o falso e o verdadeiro. Para Deleuze, os
intercessores são as “potências do falso que vão produzir o verdadeiro.” (DELEUZE, 1992,
p.157)
Na perspectiva deleuziana, o destinatário que está por chegar possibilita a produção da
existência de Quain, da voz de Manoel Perna e da pesquisa do narrador como verdades, por
potencializá-las pelo o que é falso. A presença de um intercessor que desconfia e, com isso,
questiona a veracidade dos fatos e das certezas, pegando o produtor do discurso no flagrante
de fabular, produz no agente do discurso a ilusão da verdade. Quando o produtor do discurso
se defende da desconfiança de seu intercessor sobre a veracidade de sua fala, ele, o
intercessor, produz a ilusão da verdade naquilo que o agente do discurso diz.
Assim, no fluxo variável e flexível da produção imaginária, o destinatário que está por
chegar, o narrador do romance e Manoel Perna caracterizam-se como aqueles que vêm “à
procura do que o passado enterrou [...] à espera de um sentido, nem que seja pela suposição
do mistério, para acabar morrendo de curiosidade.” (CARVALHO, 2002, p.7) Também este
destinatário “viria em busca do que era seu” (CARVALHO, 2002, p.12) e de forma especular
era desconfiado como Buell Quain. Desse modo, o narrador, Buell Quain, Manoel Perna e seu
intercessor, rizomaticamente, encontram-se e desencontram-se na narrativa de forma ativa e
viva, quando por consonâncias e multissonâncias se deparam com o enigma deixado pelo
antropólogo, impactando o leitor.
Ao longo da narrativa, a vida e a morte do antropólogo Buell Quain vão se construindo
como enigmas sempre carentes de sentido, o que aproxima o romance das questões que
também movimentam a história da humanidade. A busca de sentidos para a vida e para morte
alimenta o sujeito nos seus questionamentos e interpretações sobre si e sobre o mundo, o que
lhe permite contar as suas histórias de forma dinâmica e plural, como exige a
hipermodernidade.
168

REFERÊNCIAS

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