Vous êtes sur la page 1sur 13

“QUESTÃO SOCIAL”: ELEMENTOS

PARA UMA CONCEPÇÃO CRÍTICA


José Paulo Netto

Ao contrário do vaticínio do ilustre Lord Keynes - que, em 1930,


escrevia que o “problema econômico” da humanidade estaria completa­
mente solucionado em cem anos!1 - , o mundo atual vê-se atolado neste
“problema”. Dados contemporâneos são eloquentes para desmentir a
profecia do insigne mestre da economia burguesa: se 20% da população
mundial vive no hemisfério Norte e detém de 80% da riqueza social,
80% da população reside no hemisfério Sul e dispõe de apenas 20%
dessa riqueza; 1/6 da população da Terra passa fome, 1/4 dela subsiste
com cerca de 2 dólares por dia, e 2/3 com até 10 dólares por dia. Pou­
pemo-nos, porém, de alinhar aqui cifras e mais cifras2 - baste-nos dizer
que os últimos 30 anos vêm tão somente agravando as três dimensões da
crise civilizatória do capitalismo dos dias correntes, assim anotadas pelo
maior historiador marxista vivo: “o crescente alargamento da distância
entre o mundo rico e o pobre (e (...) dentro do mundo rico, entre os seus
ricos e os seus pobres); a ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise
ecológica do globo”.3
Compreende-se, pois, que desde as três últimas décadas do século
X X , a expressão “questão social”, depois de anos restrita a círculos de
ativistas e militantes sociais,4 venha ganhando destaque até mesmo na
mídia destinada ao chamado “grande público”. Contribuir para esclare-
cê-la mínima e criticamente é o objetivo deste texto.
Uma primeira versão deste texto, sob o título “Cinco notas a propósito da ‘questão social’”,
foi apensada a Netto, José Paulo, Capitalismo monopolista e Serviço Social (São Paulo:
Cortez, 2009). A versão que aqui se apresenta foi preparada especialmente para este livro.
1 Como ironicamente o recordou I. Mészáros em O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo,
2004, p. 11-12.
2 Recorra o leitor, por exemplo, aos relatórios anuais mais recentes do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento e do Banco Mundial.
3 Hobsbawm, E., in: Blackburn, R. (org.), D epois da queda. O fracasso do comunismo e o
futuro do socialism o. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 204.
4 Dentre os círculos profissionais brasileiros, provavelmente foram os assistentes sociais
aqueles que mais se ocuparam dos fenômenos denotados pela expressão e mais se esfor­
çaram por dar-lhe alguma densidade teórica - cf., por exemplo, a revista Temporalis.
Brasília: Abepss, ano 2, n. 3, jan.-jul. de 2001.

19
“ QUESTÃO S OC I A L ” :
ELEMENTOS P AR A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

A exp ressão : um a h is tó r ia r e c e n te

Todas as indicações disponíveis sugerem que a expressão “ques­


tão social” tem história recente - seu emprego não data de mais de 180
anos. Parece que começou a ser utilizada na terceira década do sécu­
lo X IX e foi divulgada até a metade daquela centúria por críticos da
sociedade e filantropos situados nos mais variados espaços do espectro
político.5
A expressão surge para dar conta do fenômeno mais evidente da
história da Europa Ocidental, que experimentava os impactos da pri­
meira onda industrializante, iniciada na Inglaterra no último quartel
do século XVIII: trata-se do fenômeno do pauperismo. Com efeito, a
pauperização (neste caso, absoluta - cf., ittfra, a nota 17) massiva da
população trabalhadora constituiu o aspecto mais imediato da instau­
ração do capitalismo em seu estágio industrial-concorrencial e não por
acaso engendrou uma copiosa documentação.6
Para os observadores lúcidos da época, independentemente da
sua posição ideopolítica, tornou-se claro que se tratava de um fenômeno
novo, sem precedentes na história anterior conhecida.7 Com efeito, se
não era inédita a desigualdade entre as várias camadas sociais, se vinha
de muito longe a polarização entre ricos e pobres, se era antiquíssima a
diferente apropriação e fruição dos bens sociais, era radicalmente nova
a dinâmica da pobreza que então se generalizava.8

5 Desde um legitimista francês como Armand de Melun a um jovem revolucionário alemão


como F. Engels (cf. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo,
2010). Curiosamente, a expressão “questão social” emerge praticamente ao mesmo tempo
em que aparece, no léxico político neolatino, a palavra socialismo.
6 O texto de Engels, referido na nota anterior, é apenas um exemplo de uma larga biblio­
grafia na qual concorreram autores de posições ideopolíticas das mais diversas (com des­
taque para Villermé, Ducpétiaux, Buret). Até mesmo um conservador como Tocqueville
ocupou-se do problema na sua Mémoire sur le paupérism e, apresentada à Academia de
Cherbourg em 1835.
7 No seu ensaio As m etam orfoses da questão social. Uma crônica do salário (Petrópolis:
Vozes, 1998, p. 284), Robert Castel assinala que autores como E. Buret e A. de Villeneuve-
Bargemont tinham consciência da novidade do pauperismo em questão, cabendo mesmo
a sua caracterização como uma nova pobreza.
8 Dados quantitativos do quadro do pauperismo europeu estão disponíveis tanto em
obras estritamente históricas (cf., por exemplo, Hobsbawm, E., A era das revoluções.
1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; ou, especificamente para a Inglaterra,
Thompson, E. P., A fo rm a çã o da classe op erária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
I-II-III, 1987) quanto em textos de natureza sociológica (cf. o citado trabalho de R.
Castel). Releva notar que, no século X X , muito antes de o interesse acadêmico “des-

zo
J OS É PAULO NE T T O

Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na


razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir rique­
zas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamen­
te acrescer a produção de bens e serviços, tanto mais aumentava o
contingente de seus membros que, além de não terem acesso efetivo
a tais bens e serviços, viam-se despossuídos das condições materiais
de vida de que dispunham anteriormente. Se, nas formas de socieda­
de precedentes à sociedade burguesa, a pobreza estava ligada a um
quadro geral de escassez (quadro em larguíssima medida determinado
pelo baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e
sociais), agora ela se mostrava conectada a um quadro geral tendente
a reduzir com força a situação de escassez. Numa palavra, a pobreza
surgida e generalizada no primeiro terço do século X IX - o pauperis-
mo - aparecia como nova precisamente porque ela se produzia pelas
mesmas condições que propiciavam os supostos, no plano imediato, da
sua redução e, no limite, da sua supressão.
A designação desse pauperismo pela expressão “questão social”
relaciona-se diretamente aos seus desdobramentos sociopolíticos. Man­
tivessem-se os pauperizados na condição cordata de vítimas do destino,
manifestassem eles a resignação que Comte considerava a grande virtu­
de cívica e a história subsequente haveria sido outra. Lamentavelmen­
te para a ordem burguesa que se consolidava, os pauperizados não se
conformaram com a sua situação: da primeira década até a metade do
século X IX , seu protesto tomou as mais diversas formas, da violência
luddista à constituição das trade unions,9 configurando uma ameaça
real às instituições sociais existentes. Quando se tornou objetiva a pers­
pectiva de uma eversão da ordem burguesa, consagrou-se a designação
do pauperismo como “questão social”.

cobrir” os exclu ídos, foi um marxista norte-americano quem dedicou especial aten­
ção ao pauperismo daqueles tempos (cf. a obra, originalmente publicada em 1936, de
Huberman, Leo, H istória da riqueza do h om em . Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).
9 Uma síntese bastante didática da história do movimento operário encontra-se em
Abendroth, W., A história social do movim ento trabalhista europeu. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1977. Textos mais abrangentes são a obra de Cole, G. D. H., Historia dei pensa-
miento socialista. México: Fondo de Cultura Económica, I-VI, 1974; e o trabalho coletivo
de Cherniaev, A., et al., El movimiento obrero internacional. Historia y teoria. Moscou:
Progreso, 1-5, 1982.

21
“ QUESTÃO S O C I A L ” :
ELEMENTOS P A R A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

A “ q u e s t ã o s o c i a l ” e n t r e o c o n s e r v a d o r is m o ...

A partir da segunda metade do século X IX , a expressão “ques­


tão social” deixa de ser usada indistintamente por críticos sociais de
diferenciados lugares do espectro ideopolítico - ela desliza, lenta mas
nitidamente, para o léxico próprio do pensamento conservador.
O divisor de águas, também aqui, é a Revolução de 1848.10 De
um lado, os eventos de 1848, encerrando o ciclo progressista da ação de
classe da burguesia, impedem, a partir de então, aos intelectuais a ela
vinculados (enquanto seus representantes ideológicos) a compreensão
dos nexos entre economia e sociedade - donde a interdição da com­
preensão da relação entre desenvolvimento capitalista e pauperização.
Posta em primeiro lugar, com caráter de urgência, a manutenção e a
defesa da ordem burguesa, a consideração da “questão social” perde
paulatinamente sua estrutura histórica determinada e é crescentemente
naturalizada, tanto no âmbito do pensamento conservador laico quanto
no do confessional (que, aliás, tardou até mesmo a reconhecê-la como
pertinente).
Entre os pensadores laicos, as manifestações imediatas da “ques­
tão social” (forte desigualdade, desemprego, fome, doenças, penúria,
desamparo ante conjunturas econômicas adversas etc.) são vistas como
o desdobramento, na sociedade moderna (leia-se: burguesa), de caracte­
rísticas inelimináveis de toda e qualquer ordem social, que podem, no
máximo, ser objeto de uma intervenção política limitada (preferencial­
mente com suporte “científico”) capaz de amenizá-las e reduzi-las por
meio de um ideário reformista (aqui, o exemplo mais típico é oferecido
por Durkheim e sua escola sociológica). No caso do pensamento con­
servador confessional, se se reconhece a gravitação da “questão social”
e se apela para medidas sociopolíticas para diminuir os seus gravames,
insiste-se em que somente a sua exacerbação contraria a vontade divina
(é emblemática, aqui, a lição de Leão XIII, de 1891).
Em qualquer dos dois casos - o que, aliás, explica a perfeita
complementaridade político-prática dessas duas vertentes do conserva­

10 Sobre a Revolução de 1848, cf., entre outros, Duveau, G., 1848. Paris: Gallimard, 1965;
Claudín, Fernando, Marx, Engels y la revolución dei 1848. Madrid: Siglo X X I, 1975;
Sigmann, J. 1848: las revoluciones rom ânticas y dem ocráticas de Europa. Madrid: Siglo
X X I, 1988; Evans, R. J. W., et al.f The revolutions in Europe, 1848-1849: From Reform
to Reaction. Oxford: Oxford University Press, 2000; Sperber, J., The european revolu­
tions, 1848-1851. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

11
J OSÉ PAULO NE T T O

dorismo - , mesmo as reduzidas reformas sociais propostas estão hipo­


tecadas a uma reforma moral do homem e da sociedade. De fato, no
âmbito do pensamento conservador, a “questão social”, numa operação
simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação mora-
lizadora. E, em ambos os casos, o enfrentamento das suas manifesta­
ções deve ser função de um programa de reformas que preserve, antes
de tudo e mais, a propriedade privada dos meios de produção. Mais
precisamente: o cuidado e o trato com/das manifestações da “questão
social” é expressamente desvinculado de qualquer intervenção tenden­
te a problematizar a essência da ordem econômico-social estabelecida;
trata-se de combater as manifestações da “questão social” sem tocar
nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um
reformismo para conservar.n
Mas a explosão de 1848 não afetou somente as expressões ideais
(culturais, teóricas, ideológicas) do campo burguês. Ela feriu substanti-
vamente as bases da cultura política que calçava até então o movimento
dos trabalhadores: 1848, trazendo à luz o caráter antagônico dos inte­
resses sociais das classes fundamentais, acarretou a dissolução do ideá­
rio formulado pelo utopismo. Desta dissolução resultou a clareza de que
a resolução efetiva do conjunto problemático designado pela expressão
“questão social” seria função da eversão completa da ordem burguesa,
num processo do qual estaria excluída qualquer colaboração de classes12

11 Sobre este pensamento conservador, consulte-se, entre outros, Nisbet, R., O conservado­
rismo. Lisboa: Estampa, 1987; e Netto, Leila E., O conservadorism o clássico. São Paulo:
Cortez, 2011. Cumpre observar que não se pode confundir o pensamento conservador,
que ganha densidade e expansão após 1848, com o reacionarism o. Se, para este, a alter­
nativa às mazelas da ordem burguesa consiste na restauração do Antigo Regime, o que
é próprio a(o pensamento conservador é o reform ism o, no interior - e sem feri-las - das
instituiçõe^ fundantes do mundo do capital. Outra é a problemática própria ao conserva­
dorismo contemporâneo. Sobre este, cf., entre outros, Green, G. D., The new right. The
counter-revolution in political econom y and social thought. Londres: Havester, 1988;
Cueva, A. (org.), Tempos conservadores. São Paulo: Hucitec, 1989; Dubiel, H., Que es el
neoconservadurismo? Barcelona: Anthropos, 1993; Verea, M. e Núnez, G. S. (orgs.), El
conservadurismo en Estados Unidos y Canadá. México: Unam/Cisan, 1997.
12 Para que se tenha uma noção das ilusões do utopismo com relação à colaboração de clas­
ses, recorde-se que um de seus mais dotados e consequentes representantes, o inglês Robert
Owen, preparou um memorial dirigido a todos “os republicanos vermelhos, comunistas
e socialistas da Europa”, enviado tanto ao governo provisório francês de 1848 quanto à
“rainha Vitória e seus conselheiros responsáveis”! Sobre o “socialismo utópico”, além do
clássico texto de Engels, D o socialism o utópico a o socialism o científico (Lisboa: Avante!,
1975), cf., entre outros: Alexandrian, S., L e socialism e romantique. Paris: Seuil, 1979;
Russ, J., Los precursores de Marx. Barcelona: Hogar dei Libro, 1982; e Taylor, Keith, The
political ideas o f the utopian socialists. Londres: Frank Cass, 1982.

13
“ QUESTÃO S OC I A L ” :
ELEMENTOS P A R A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

- uma das resultantes de 1848 foi a passagem, em nível histórico-univer-


sal, do proletariado da condição de classe em si a classe para si.13 As van­
guardas operárias ascenderam, no seu processo de luta, à consciência
política de que a “questão social” está necessariamente colada à socie­
dade burguesa: somente a supressão desta conduz à solução daquela.
A partir daí, o pensamento crítico-revolucionário passou a identi­
ficar na expressão “questão social” uma tergiversação conservadora, e a
só empregá-la indicando este traço mistificador.14

. . . E A CRÍTICA MARXIANA

Mas consciência política não é o mesmo que compreensão teórica


- e o movimento dos trabalhadores tardaria ainda alguns anos a encon­
trar os instrumentos teóricos e metodológicos para apreender a gênese, a
constituição e os processos de reprodução da “questão social”.
Se, já nas vésperas da eclosão de 1848, K. Marx avançava no rumo
daquela compreensão - como se pode verificar nitidamente nas suas duas
obras mais importantes então publicadas15- , é apenas com a publicação,
em 1867, do primeiro volume d’0 capital16 que a razão teórica acedeu à
compreensão do complexo de causalidades da “questão social”. Somen­
te com o conhecimento rigoroso do “processo de produção do capital”
Marx pôde esclarecer com precisão a dinâmica da “questão social”, con­
sistente em um complexo problemático muito amplo, irredutível à sua
manifestação imediata como pauperismo.17

13 Sobre esta passagem, cf. Marx, Miséria da filosofia. São Paulo: Expressão Popular, 2009,
p. 190.
14 Daí, pois, as aspas (ou os itálicos) que utilizo sempre que a ela me refiro.
15 Penso especificamente na já citada Miséria da filosofia e, em coláboração com Engels, no
Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Cortez, 1998.
16 Entre as várias edições em português, cf. Marx, O capital. São Paulo: Abril Cultural, v. I,
t. 1-2, 1983-1984.
17 É de notar que, tanto na Miséria da filosofia quanto no M anifesto do Partido Comunista,
Marx prognostica que o desenvolvimento do capitalismo implica pauperização absoluta
da massa proletária. É em O capital que ele distinguirá os mecanismos de pauperização
absoluta e relativa. Em nossos termos muito breves: “A pauperização pode ser absoluta
ou relativa. A pauperização absoluta registra-se quando as condições de vida e traba­
lho dos proletários experimentam uma degradação geral: queda do salário, aviltamento
dos padrões de alimentação e moradia, intensificação do ritmo do trabalho, aumento do
desemprego. A pauperização relativa é distinta: pode ocorrer mesmo quando as condições

*4
J OS É PAULO NE T T O

A formulação marxiana da “lei geral da acumulação capitalista”,


contida no vigésimo terceiro capítulo do livro publicado em 1867,18 reve­
la a anatomia da “questão social”, sua complexidade e seu caráter de
corolário (necessário) do desenvolvimento capitalista em todos os seus
estágios. O desenvolvimento capitalista engendra, compulsoriamente, a
“questão social” - diferentes estágios capitalistas produzem diferentes
manifestações da “questão social”; esta não é uma sequela adjetiva ou
transitória do regime do capital: sua existência e suas manifestações são
indissociáveis da dinâmica específica do capital tornado potência social
dominante. A “questão social” é constitutiva do desenvolvimento do
capitalismo. Não se soluciona a primeira conservando-se o segundo.
A análise de conjunto que Marx oferece n’0 capital revela, lumi­
nosamente, que a “questão social” está elementarmente determinada
pelo traço próprio e peculiar da relação capital/trabalho - a explora­
ção. A exploração, todavia, apenas remete à determinação molecular da
“questão social”; na sua integralidade, longe de qualquer unicausalidade,
ela implica a intercorrência mediada de componentes históricos, políti­
cos, culturais etc. Sem ferir de morte os dispositivos exploradores do
regime do capital, toda luta contra as suas manifestações econômicas e
sociopolíticas (basicamente o que se designa por “questão social”) está
condenada a enfrentar sintomas, consequências e efeitos.
A análise de Marx, desvelando o caráter explorador do regime do
capital, permite situar com radicalidade histórica a “questão social”, isto
é, distingui-la das expressões sociais derivadas da escassez nas socieda­
des que precederam a ordem burguesa. A exploração não é um traço dis­
tintivo do regime do capital (sabe-se, de fato, que formas sociais assen­
tadas na exploração precedem largamente a ordem burguesa); o que é
distintivo desse regime, entre outros traços, é que a exploração se efetiva
num marco de contradições e antagonismos que a tornam, pela primeira
vez na história registrada, suprimível sem a supressão das condições nas
quais se cria exponencialmente a riqueza social. Ou seja: a supressão
da exploração do trabalho pelo capital, constituída a ordem burguesa
e altamente desenvolvidas as forças produtivas, não implica - bem ao
contrário! - redução da produção de riquezas.

de vida dos trabalhadores melhoram, com padrões de alimentação e moradia mais eleva­
dos; ela se caracteriza pela redução da parte que lhes cabe do total dos valores criados,
enquanto cresce a parte apropriada pelos capitalistas” (Netto, J. P. e Braz, M. Econom ia
política. Uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2012, p. 145). É desnecessário obser­
var que estas duas modalidades de pauperização podem operar simultaneamente.
18 Cf., na edição citada, na nota 16, t. 2, p. 187 e ss.

25
“ QUESTÃO S O C I A L ” :
ELEMENTOS P AR A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

Nas sociedades anteriores à ordem burguesa, as desigualdades, as


privações etc. decorriam de uma escassez que o baixo nível de desenvol­
vimento das forças produtivas não podia suprimir (e a que era correlato
um componente ideal que legitimava as desigualdades, as privações etc.);
na ordem burguesa constituída, decorrem de uma escassez produzida
socialmente, de uma escassez que resulta necessariamente da contradi­
ção entre as forças produtivas (crescentemente socializadas) e as relações
de produção (que garantem a apropriação privada do excedente e a deci­
são privada da sua destinação).19 A “questão social”, nesta perspectiva
teórico-analítica, não tem nada a ver com o desdobramento de proble­
mas sociais que a ordem burguesa herdou ou com traços invariáveis da
sociedade humana; tem a ver, exclusivamente, com a sociabilidade ergui­
da sob o comando do capital.
Da análise teórica marxiana, porém, não se pode derivar o imo­
bilismo sociopolítico consistente na espera de um dia D, ou uma hora
H, revolucionariamente catastrófica, em que o regime do capital seja
reduzido a escombros - e, com ele, desapareça a exploração. De fato,
para Marx, a transformação revolucionária da ordem do capital é um
processo que só pode resultar da ação política organizada dos trabalha­
dores. Da análise marxiana, o que legitimamente fica interditado é, tão
somente, qualquer ilusão acerca do alcance das reformas no interior do
capitalismo.

A "q u e s tã o s o c ia l” c o m o p r im a d o n n a

Na sequência da Segunda Guerra Mundial e no processo de


reconstrução econômica e social que então teve curso especialmente na
Europa Ocidental, o capitalismo experimentou o que alguns economis­
tas franceses denominaram “as três décadas gloriosas” -- da reconstru­
ção à transição dos anos 1960 aos 1970, mesmo sem erradicar as suas
crises periódicas, o regime do capital viveu uma larga conjuntura de
crescimento econômico. Não por acaso, a primeira metade dos anos

19 Um livro recente de Jean Ziegler (Destruction massive. G éopolitique de la faim. Paris:


Seuil, 2011, em especial as partes III e VI - publicado em 2012 pela Cortez Editora, de São
Paulo) demonstra inequivocamente que a fome que atormenta imensa parcela da humani­
dade contemporânea deriva da especulação operada pela financeirização do capitalismo
mundializado.

26
J OS É PAULO NE T T O

1960 assistiu à caracterização da sociedade capitalista - evidentemente


desconsiderando o inferno da sua periferia, o então chamado Terceiro
Mundo - como sociedade afluente, sociedade de consumo.20
A construção do Welfare State na Europa nórdica e em alguns
países da Europa Ocidental, bem como o dinamismo da economia nor­
te-americana (desde a Segunda Guerra, o carro-chefe do capitalismo
mundial), pareciam remeter para o passado a “questão social” e suas
manifestações - elas eram focadas como um quase privilégio da periferia
capitalista, às voltas com os seus problemas de “subdesenvolvimento”.
Apenas os marxistas insistiam em assinalar que as melhorias no con­
junto das condições de vida das massas trabalhadoras não alteravam a
essência exploradora do capitalismo, continuando a revelar-se por inten­
sos processos de pauperização relativa - apenas os marxistas e uns pou­
cos críticos sociais, como Michael Harrington, que tinha a coragem de
denunciar “a pobreza, o outro lado da América”.21
Na entrada dos anos 1970, esgotou-se a longa onda expansiva
da dinâmica capitalista.22 À redução das taxas de lucro, condicionadas
também pelo ascenso do movimento operário - que alcançara significa­
tivas vitórias naqueles e nos anos imediatamente anteriores23 - , o capital
respondeu com uma ofensiva política (de início, basicamente repressiva -
recorde-se o trato que ao movimento sindical brindaram a Sra. Thatcher
e R. Reagan - , depois fundamentalmente de natureza ideológica) e eco­
nômica. O que se seguiu é conhecido (trata-se do que Ruy Braga deno­
minou a restauração do capital) e não precisa ser retomado aqui:24 a
conjunção “globalização” mais “neoliberalismo” veio para demonstrar
20 Já nos anos 1960, Lefebvre esboçava uma crítica radical desta noção a partir da sua teoria
da vida cotidiana - cf. o segundo capítulo de H. Lefebvre, La vie quotidienne dans le
m onde m oderne. Paris: Gallimard, 1968.
21 Harrington, M., A outra América. Pobreza nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civiliza­
ção Brasileira, 1964.
22 Cf. Mandei, E., O capitalism o tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
23 Cf., por exemplo, o ensaio de Vicente Navarro em Laurell, Asa Cristina (org.), Estado e
políticas sociais no neoliberalismo. São Paulo: Cortez/Cedec, 1995.
24 Para as questões subsequentes, cf. especialmente Villarreal, R., A contrarrevolução mone-
tarista. Rio de Janeiro: Record, 1984; Brunhoff, S. de, A hora do m ercado. São Paulo:
Unesp, 1991; Netto, J. P., Crise do socialism o e ofensiva neoliberal. São Paulo: Cortez,
1993; Sader, E. e Gentilli, P. (orgs.), O pós-neoliberalism o. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995; Harvey, D., C ondição pós-m oderna. São Paulo: Loyola, 1996; Chesnais, F., A mun-
dialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996; Coggiola, O. (org.), G lobalização e socia­
lismo. São Paulo: Xamã, 1997; Teixeira, F. J., e Oliveira, M. A. (orgs.), Neoliberalism o
e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez/Uece, 1998; Martin, H.-P. e Schumann,
H., A arm adilha da globalização. Lisboa: Terramar, 1998; Husson, M., Miséria do capi­
tal. Lisboa: Terramar, 1999; Chossudovsky, M., A globalização da pobreza. São Paulo:

2-7
“ QUES TÃO S O C I A L ” :
ELEMENTOS P AR A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

aos ingênuos que o capital não tem nenhum “compromisso social” - e o


seu esforço para romper com qualquer regulação política democrática,
extramercado, tem sido coroado de êxito. Erodiu-se o fundamento do
Welfare State em vários países, e a resultante macroscópica social saltou
à vista: o capitalismo “globalizado”, “transnacional” e “pós-fordista”
perdeu a pele de cordeiro, generalizou a miséria (“internalizando” o
“Terceiro Mundo” nos seus espaços cêntricos) e, mesmo assaltando o
fundo público,25 ingressou numa crise sistêmica de que os abalos de 2008
e 2011 são os sintomas mais evidentes.26 Quanto à intelectualidade aca­
dêmica, a mesma que em boa parcela considera Marx o criador de um
“paradigma em crise”, descobriu a “nova pobreza”, os “excluídos” etc.,
essa descobriu a “nova questão social”.27 E eis que a “questão social”,
“velha” ou “nova”, passa a figurar como prima donna nos debates da
agenda universitária, e não só.
Essa caricatural descoberta, nas condições contemporâneas, con­
dições que tornam cada vez mais problemáticas as possibilidades de
reformas no interior do regime do capital, mostra-se, a despeito de sua
eventual credibilidade acadêmica, com uma anemia teórico-analítica
que somente é comparável à anemia das práticas sociopolíticas que pro­
põe como alternativas.28 Do ponto de vista teórico, não apresenta uma
só determinação que resista ao exame rigoroso na esteira da crítica da
Moderna, 1999; e alguns dos estudos contidos em Oliveira, F., et al., Hegemonia às aves­
sas. São Paulo: Boitempo, 2010.
25 O assalto ao fundo público, há muito uma prática contumaz das grandes empresas e
monopólios, ganhou novo ritmo, a partir dos anos 1980, com as políticas de privatização,
mas atingiu um ponto culminante na crise de 2008 - na sua imediata sequência, estima-se
que a fabulosa quantia de 3 trilhões de dólares foi “queimada” pelos Estados capitalis­
tas centrais na “salvação” do sistema bancário-financeiro. A evolução da atual “crise do
euro” vai na mesma direção.
26 Já é larga a diferenciada bibliografia sobre as mais recentes crises do capital - a título
ilustrativo, refira-se: Brenner, R., The econom ics o f global turbulence. New York: Verso,
2006; Boccara, P., Transformations et crise du capitalisme mondialisé. Paris: Les Temps
de Cérises, 2008; Forster, J. B. e Magdoff, F., The great financial crises. New York:
Monthly Review Press, 2009; Avelãs Nunes, A. J., Uma leitura crítica da actual crise do
capitalismo. Coimbra: Coimbra Ed., 2011; Harvey, D., O enigma do capital e as crises do
capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.
27 A inépcia da noção de “exclusão social” assinala-se em Castel, na obra referida na nota
7 e no seu texto contido em Bógus, L., et al., citado adiante, na nota 29 (e a solução do
próprio Castel não é satisfatória). A publicitação da “nova questão social” é mérito de
Pierre Rosanvallon, não por acaso divulgado no Brasil também pelo Partido da Social-
Democracia Brasileira (PSDB).
28 Esta anemia concretiza-se no minim alismo das políticas sociais dirigidas ao enfrenta-
mento das expressões atuais da “questão social”. Abordei o significado social de polí­
ticas minimalistas conjugadas à repressão das “classes perigosas” em intervenção no

28
J OSÉ PAULO NE T T O

economia política marxista; do ponto de vista sociopolítico, retrocede


ao nível das utopias (as mais das vezes conservadoras) do século X IX,
proponentes de novos contratos sociais que restabeleçam vínculos de
solidariedade no marco de comunidades ilusórias e residuais - uma
solidariedade naturalmente transclassista e comunidades pensadas com
inteira abstração dos (novos) dispositivos de exploração.
A tese que sustento é a de que inexiste qualquer “nova questão
social”. O que devemos investigar é, para além da permanência de
manifestações “tradicionais” da “questão social” a emergência de novas
expressões da “questão social”, que é insuprimível sem a supressão da
ordem do capital. A dinâmica societária específica dessa ordem não só
põe e repõe os corolários da exploração que a constitui medularmente: a
cada novo estágio de seu desenvolvimento, ela instaura expressões eco­
nômicas e sociopolíticas diferenciadas e mais complexas, corresponden­
tes à intensificação da exploração, que é a sua razão de ser. O problema
teórico consiste em determinar concretamente a relação entre as expres­
sões emergentes e as modalidades imperantes de exploração.
Esta determinação, que obviamente não pode desconsiderar a
forma contemporânea da “lei geral da acumulação capitalista”, precisa
levar em conta a complexa totalidade dos sistemas de mediações em que
ela se realiza. Sistemas nos quais, mesmo dado o caráter universal e mun-
dializado daquela “lei geral”, objetivam-se particularidades culturais,
geopolíticas e nacionais que, igualmente, requerem determinação con­
creta. Se a “lei geral” opera independentemente de fronteiras políticas e
culturais, seus resultantes societários trazem a marca da história que a
concretiza. Isto significa que o desafio teórico anteriormente salientado
envolve, ainda, a pesquisa das diferencialidades histórico-culturais (que
entrelaçam elementos de relações de classe, geracionais, de gênero e de
etnia constituídos em formações sociais específicas) que se cruzam e ten-
sionam na efetividade social. Em poucas palavras: a caracterização da
“questão social”, em suas manifestações já conhecidas e em suas expres­
sões novas, tem de considerar as particularidades histórico-culturais e
nacionais.29
III Encontro Internacional “Civilização ou barbárie” (Serpa, out.-nov. de 2010) intitula­
da “Uma face contemporânea da barbárie”. Disponível em: pcb.org.br/portal/index).
29 Entre nós, já existe uma tradição que encaminha a investigação neste rumo. Lembremo-nos
de alguns textos de Florestan Fernandes e do esforço de “pensar o Brasil” conduzido por
Octavio Ianni (cf. especialmente Pensamento social no Brasil. Bauru: Edusc/Anpocs, 2004);
outras tentativas de avançar nesta direção foram realizadas, por exemplo, por Amélia Cohn
(cf. o seu ensaio “A questão social no Brasil: a difícil construção da cidadania”, in: Mota, C.
G. (org.), Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). II. A grande transa­

29
“ QUESTÃO S OC I A L ” :
ELEMENTOS P AR A U MA C O N C E P Ç Ã O CRÍTICA

Enfim, uma observação importante. Ela diz respeito à perspec­


tiva histórico-concreta de construir uma ordem social que vá além dos
limites do comando do capital. Como Marx e Engels deixaram muito
explícito no Manifesto do partido comunista, não há nenhuma garantia
abstrata de que o comunismo - porque é de comunismo que se trata, não
tenhamos medo das palavras: trata-se aqui daquela organização social
em que, suprimida a propriedade privada dos meios fundamentais de
produção, assegura-se que o livre desenvolvimento da personalidade de
cada um seja a condição do livre desenvolvimento da personalidade de
todos - venha a substituir a ordem do capital.30 Mas tudo o que conhece­
mos acerca da sociedade dos homens nos indica a inviabilidade da pere-
nização da ordem do capital. A história é uma matrona cheia de ardis,
não nos enganemos: o que parece sólido se desmancha no ar. É verdade,
porém, que não há garantias prévias da derrota da barbárie - e, por isto
mesmo, o futuro permanece aberto.
A possível derrota do capital, em condições tais em que se supri­
ma a escassez, determinará a solução da “questão social”. Mas o fim do
comando do capital não é o fim da história nem, absolutamente, a realiza­
ção da Idade de Ouro: homens e mulheres continuarão a enfrentar (novos)
problemas, a experimentar (novos) conflitos e colisões, a indagar por que
vivem e por que morrem, empenhados em encontrar sentido para as suas
vidas finitas - provavelmente não serão poucos os que conjunturalmente
se sentirão vulnerabilizados e, por isto mesmo, formas (novas) de coope­
ração e apoio mútuos serão requisitados e desenvolvidos. A sociedade do
futuro, sem classes e sem Estado, sem exploração e sem opressão, assegu­
rará a solução da “questão social” como a conhecemos sob o comando do
capital - vale dizer, garantirá as condições objetivas para a liberdade de
todos e cada um. O mais - isto é, o exercício da felicidade - dependerá da
vontade livre dos indivíduos sociais plenamente desenvolvidos.

ção. São Paulo: Senac, 2000) e por Luiz Eduardo W. Wanderley (cf. o seu ensaio “A questão
social no contexto da globalização: o caso latino-americano e o caribenho”, in: Bógus, L.,
et al.9Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 2008).
30 O otimismo que Marx e Engels sempre demonstraram em relação ao futuro da humani­
dade jamais se expressou numa fé messiânica acerca de um inevitável desfecho comunista;
substantivamente, eles sempre consideraram a possibilidade do triunfo do que designa­
vam por “barbárie”. Lê-se no M anifesto do Partido Comunista: “Homem livre e escravo,
patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em suma,
opressores e oprimidos, estiveram em constante antagonismo entre si, travando uma luta
ininterrupta, umas vezes oculta, outras aberta - uma guerra que sempre terminou ou com
uma transform ação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes
em luta” (ed. cit. na nota 15, p. 4-5. Itálicos meus).

30
Copyright © 2013 by Editora Expressão Popular

Revisão: Ana Cristina Teixeira e Maria Elaine Andreoti


Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Krits Estúdio
Impressão: Cromosete

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

S187 Samba, cultura e sociedade: sambistas e trabalhadores entre a


questão social e a questão cultural no Brasil. / Marcelo Braz
(Org.).-I.ed.— São Paulo : Expressão Popular, 2013.
248 p. -(Coleção Arte e sociedade)

Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br


ISBN 978-85-7743-228-8

1. Samba. 2. Cultura. 3. Sambistas e trabalhadores.


I. Braz, Marcelo org. II. Título. III. Série.

CDD 301
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

1a edição: setembro de 2013


1a reimpressão: maio de 2017

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro


pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização das editoras.

Editora Expressão Popular Ltda.


Rua Abolição, 201 I Bela Vista 101319-010 I São Paulo - SP
Tel: (11) 3522-7516/3105-9500
livraria@expressaopopular.com.br I www.facebook.com/ed.expressaopopular I www.expressaopopular.com.br

Vous aimerez peut-être aussi