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– Doutor, estou precisando dos seus serviços. É que, para a minha situação,
não encontrei ainda nenhum advogado disposto a me defender. Sabe como é, né? Cidade do
interior, distante da capital, pessoas mais conservadoras... Os advogados que consultei
disseram que não podiam me defender, ou por objeção de consciência ou ou porque não
saberiam como fazer. Mas seu escritório me foi indicado por dois deles e acho que, como o Sr.
é um advogado jovem, cabeça mais aberta, formação jurídica mais atual, talvez aceite o
desafio da minha causa. Além disso, posso assegurar que a remuneração será muito boa caso
aceite enfrentar a briga.
Diante dessa situação, o advogado, que não é criminalista e nunca lidou com
matéria penal no seu curto tempo de militância, deve escolher entre duas possibilidades:
recusar a causa como fizeram os colegas de profissão procurados antes dele e deixar o médico
desamparado ou aceitar o desafio da causa, sabendo que não pode fugir do problema com
estratégias processuais rasas.
O advogado também não perderia tempo tentando criar uma peça processual
que explique ao juiz o que são crimes contra a vida, quais são e quais as suas características,
quais os elementos do tipo, qual a diferença entre homicídio, suicídio e aborto para, então, ao
final do seu texto, dizer em apenas três páginas o que é o aborto, quais os elementos do tipo,
como são denominadas as hipóteses de excludente e quais são essas hipóteses, com o intuito
de concluir dessa falsa exposição histórica e dogmática que o médico não deveria ser punido
porque o que deve prevalecer é a liberdade de escolha da mulher, com base no princípio da
dignidade da pessoa humana (aliás, a liberdade da mulher e a dignidade da pessoa humana
teriam aparecido de repente e sem a necessária discussão sobre os seus conteúdos, de forma
que esses princípios seriam utilizados com base no que o senso comum entende sobre eles).
Se ele for um advogado que gosta de história, ele não vai proceder a partir
de uma descrição rasa da história do aborto. Ele vai tentar narrar como as sociedades pré-
modernas encaravam o aborto, quais as que o aceitavam e quais não aceitavam, qual a relação
do aborto com a visão interna de unidade e permanência que essas sociedades propagavam,
como a prática do aborto ou como o fato de não ser admitido revela características sobre a
identidade comunitária. Passaria, então, relacionar a percepção cultural do aborto com os
valores e desses com a religião como fator de determinação de uma visão de mundo. Esse
seria o momento para direcionar a discussão para o ponto de vista cristão e a pretensão de
universalidade do cristianismo e como ele formou boa parte dos valores culturais do ocidente.
Mas, se o advogado for diligente nos seus estudos, perceberá que dentro do próprio
cristianismo houve divergências a respeito do aborto e vai narrá-las para mostrar que a
decisão baseou-se em um ato de autoridade institucional e não numa vitória de um argumento
racional. Essa descrição mostraria como o aborto diz respeito a percepções valorativas e
culturais e como a proibição do aborto poderia estar ligada a uma reprodução acrítica de uma
percepção cristã de mundo, incompatível com a idéia da laicidade do Estado e do pluralismo
presentes na Constituição de 1988.
É bem verdade que essa abordagem ainda seria muito longa, complexa e
muito difícil para quem não tem o hábito de lidar com uma vasta literatura histórica. Uma
argumentação próxima a essa só seria possível de ser traçada em um parecer, o que não é o
caso do advogado. Ele tem limite de tempo, linguagem, páginas (implicitamente, pois sabe
que o juiz não está disposto a ter muito trabalho na leitura da peça) e conhecimento. Deste
modo, caso escolha uma abordagem histórica, ele necessita de uma delimitação temporal do
seu objeto de análise. Essa delimitação poderia muito bem ser uma história da legalização do
aborto no século XX a partir da comparação com alguns Estados que servem de referência
para o desenvolvimento do nosso direito, por exemplo: Estados Unidos, França, Alemanha
Holanda e Itália. Nesse estudo histórico comparado, o advogado poderia mostrar como esses
outros países, mesmo possuindo uma formação cultural de base cristã, legalizaram o aborto,
privilegiando a liberdade de escolha da mulher e como essa questão foi regulada
jurisprudencialmente nos Estados Unidos a partir de uma lógica de princípios constitucionais
que também estão presentes na nossa Constituição. Ou seja, nada impediria que o judiciário
brasileiro aplique esses princípios constitucionais de forma semelhante à Suprema Corte
Americana, reconhecendo que o aborto já é uma questão resolvida nos países que mais
influenciam nosso sistema jurídico.
Vê-se, portanto, que nos três casos o advogado teria de organizar os dados e
as informações, levantar mais dados e mais informações, escolher uma estratégia de
abordagem, especificar a maneira de trabalhar a questão que lhe foi colocada, pesquisar para
poder desenvolver seus argumentos, traçar objetivos a serem alcançados para provar as suas
hipóteses e desenvolver um texto coerente que mostrasse que ele á capaz de fundamentar de
maneira rigorosa o seu ponto de vista. Em outros termos, para fazer uma ação judicial cujo
problema não tenha uma resposta imediata ele precisaria ser capaz de fazer uma pesquisa
jurídica, uma monografia escrita numa linguagem menos acadêmica e mais “judiciária”, mas,
ainda assim, uma monografia jurídica. Deve-se dizer, por fim, que os outros advogados, por
não terem desenvolvido essa habilidade, não foram capazes de lidar com um problema
jurídico complexo e atual, já que as alternativas antiéticas e “processualísticas” lhe estavam
vedadas, e eles não eram capazes de lidar com conteúdos. Assim, o advogado que seria capaz
de articular um problema jurídico de forma a colocar em questão princípios básicos do nosso
ordenamento seria não o repetidor de modelos prontos e esquematizados, mas exatamente
aquele capaz de produzir conhecimento.