Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO
PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO
CONSTITUCIONAL ECONÔMICO
4
A questão adquire particular importância em relação à atividade dos juízes, porque, em rela-
ção aos legisladores e aos administradores públicos, sempre se entendeu que devessem atuar
com os olhares próximos às consequências de suas ações.
5
“Não seria melhor, então, que nossos juízes fossem pragmatistas inconscientes? Não seria melhor,
não apenas ao reassegurar ao público que os magistrados estão atuando juridicamente da forma
como este entende que devam fazê-lo, ou seja, aplicando normas pré-existentes de um modo
‘objetivo’, mas, também, ao inocular os juízes contra uma possível embriaguez advinda da per-
cepção de poder?” (POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155, grifos no original).
6
Recentemente, na doutrina brasileira, tem aparecido uma série de artigos e estudos mono-
¤ęȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱǰȱ£ȱȱȱ
exagero, de “virada pragmatista” da teoria jurídica. Entretanto, uma coisa são as ondas da
academia, outra, não de todo distante daquela, é verdade, é a aceitação consistente da ideia
por parte da jurisprudência. De toda forma, ainda se está muito distante da produção teórica
dos Estados Unidos, locus ȱ¡¹ȱȱǰȱȱęàęȱȱÇǯ
7
SOUZA NETO. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica conse-
quencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
8
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155. Posner defende que um juiz exercitará com
mais comedimento seu poder discricionário quando possuir clareza de que o está fazendo, ao
invés de se sentir como mera correia de transmissão de decisões tomadas em outras instâncias
(como o Legislativo), sem maiores responsabilidades pelas consequências daí advindas. Em certa
medida, o “intérprete consciente de suas circunstâncias”, aquele que se autocritica e se autoco-
nhece, preconizado por Luís Roberto Barroso, é um operador do Direito que deverá possuir, tam-
bém, consciência e conhecimento de suas técnicas argumentativas e interpretativas, e não apenas
ȱȱȱàȱȱȱȱ³äȱǻǯȱȱàȱȱęàęȱ
do novo direito constitucional brasileiro. In: VIEIRA. Temas de direito constitucional, p. 6).
9
Exemplo disso são as diversas referências feitas por Nelson Jobim, quando Ministro do STF, à
importância das consequências. Em discurso de posse como presidente do TSE, mencionou o
seguinte: “Discutir-se-á o voto obrigatório. Não se vai discutir a partir da concepção acadêmica
de ser bom ou mau. Discutir-se-á, isto sim, de acordo com o que temos e o que podemos fazer.
Nada mais. É a conveniência da solução, porque o compromisso é com a consequência” (JOBIM.
Discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Diálogo Jurídico,
grifos nossos).
10
Segue resumo da discussão havida no dia 22 de abril de 2009 no plenário do STF. Destacamos,
em itálico, os trechos das falas dos Ministros mais afetos à nossa exposição. O Estado do Paraná
ȱȱǰȱȱŗşşşǰȱȱȱȱ¤ȱȱȱ¤ȱęǯȱȱȱȱȱ
ser declarada inconstitucional em 2006. Discutiam-se, no STF, os efeitos da decisão para os notá-
rios aposentados entre 1999 e 2006. Na mesma sessão da Suprema Corte, discutia-se, também, o
ponto exato para a cessação da produção de efeitos de outra lei, de 2002, igualmente já declarada
inconstitucional pelo STF, em 2005, que estendia o foro privilegiado a autoridades durante o perío-
do em que o processo estivesse em julgamento. No primeiro caso, o da aposentadoria dos notá-
rios, Joaquim Barbosa defendeu a plena retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. O
Ministro alegou que seus colegas “deveriam se inteirar das consequências da decisão”, com ênfase em
ȃȱȱȱę¤Ȅȱǻȱǰȱȱ¤ǼǯȱȃȱȱȱȄǰȱęǯȱ¤ȱȱȱ
do foro privilegiado, Joaquim Barbosa não chegou a votar, mas alegou que haveria “consequências
graves” caso o Supremo votasse pela retroatividade, já que inúmeros julgamentos seriam anula-
dos. Foi aqui que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa começaram a se acusar de julgar por classes.
Gilmar Mendes acusou o Ministro Joaquim Barbosa de dar parâmetro ideológico ao julgamento
ȱ¤ǰȱǰȱęǰȱȱÇȱȱȱȱ¤ȱȱȱȱȱ
servidores. “Eu sou atento às consequências das minhas decisões, só isso”, redarguiu Barbosa. Todas as
ȱȱȱȱÇȱȱȱȱȱǻǀĴDZȦȦ ǯǯǯǁǼǯȱȱDZȱŖŘȱȱŘŖŖşǯ
11
Em março de 2012, outra polêmica, em tons pragmatistas, ocupou a ordem do dia no Supremo.
O STF, após detectar falha na sistemática legislativa de edição de Medidas Provisórias, declarou
inconstitucional a Medida Provisória que havia criado o Instituto Chico Mendes. Alertado,
pelo Advogado Geral da União, de que a consequência de tal decisão seria a invalidação de
mais de quinhentas outras Medidas Provisórias, o Supremo acabou voltando atrás.
12
Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, em coluna do dia 24 de abril de 2009, intitulada
“Embate Político”, a propósito da referida discussão entre os dois Ministros do Supremo, ano-
tou o que segue (grifos nossos): “Mas o bate-boca entre os dois Ministros revelou também um
debate doutrinário latente, quando Gilmar Mendes acusou Joaquim Barbosa de fazer ‘popu-
lismo judicial’, argumentando que ‘esse negócio de classe não cola’. Ao que Joaquim Barbosa
retrucou que levava em conta ‘as consequências’ de suas decisões. Gilmar Mendes estava se
referindo aos ataques que tem sofrido devido às últimas decisões do Supremo, como a de que
ȱȱàȱę¤ȱȱȱȱȱȱȱȱǯȱMas revelava que também
no Supremo há um debate entre os ‘consequencialistas’, que interpretam a lei, atentos ao resultado da
decisão, contra os ‘formalistas’, que se atêm à letra da lei. Esse debate doutrinário é sério, e ocorre em
vários lugares do mundo” (Clipping Ȯȱ ³¨ȱ ȱ Çǯȱ Çȱ DZȱ ǀĴDZȦȦǯ
ǯǯȦȦȦŘŖŖşȦŚȦŘŚȦȬǁǯȱȱDZȱŖŘȱȱŘŖŖşǼǯ
13
Cf. BARROSO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas
– Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB.
14
As relações entre a atuação do Poder Judiciário e o princípio democrático, na atuação cotidiana
e no exercício da jurisdição constitucional, vêm sendo tratadas em larga escala na produção
¤ęȱȱøȱǯȱȱȱ¨ȱ¡ǰȱǯDZȱȱȱet al. (Coord.).
Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional; MAUÉS
(Org.). Constituição e democracia; BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fun-
damentais, democracia e constitucionalização; SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia
deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação
na deliberação democrática. De nossa autoria, seja-nos concedido mencionar MENDONÇA.
Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de consti-
tucionalidade das leis. Revista de Direito do Estado. O tema da democracia — em especial o da
democracia deliberativa — será estudado no próximo capítulo do livro.
15
CYRINO. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação institucionalmente
adequada da Constituição econômica brasileira (a dissertação foi publicada pela editora Renovar
ŗǯŘȱ ȱȱȱęDZȱȱȱȱ¹ȱ¨ǯȱ
Algumas questões clássicas
O termo “pragmatismo” é noção confusa.17 Não possui a carga
emotiva de palavras como “liberdade” ou “igualdade”, mas carrega suas
complicações. A maioria das pessoas, quando ouve falar no assunto, pensa
numa “atitude prática”, num posicionamento pedestre em relação aos
problemas da vida.18
E o pragmatismo não é isso, embora, sob certo aspecto, o pragmatismo
£ȱȱȱǯȱ¨ȱ·ȱȱęȱȱȱȯȱȱȱ
¤ȱȯǰȱȱȱȱȱȱ£ȱęęǯ19
No início dos anos setenta do século XIX, na Universidade de
Cambridge, um grupo de estudantes reuniu-se no que um deles chamou
de “O Clube Metafísico” — uma piada, porque, naquela época e lugar, o
20
MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 201.
21
Peirce posteriormente viria a preferir o termo “pragmaticismo” para diferenciá-lo do pen-
ȱ ȱ ȱ ǯȱ ȱ DZȱ ȱ ȱ ȃȄȱ ¤ȱ ȱ ǯȱ ȱ
ȱâǰȱȱȱęǰȱȱ¡ȱȱȱȱȱȱȱȱǰȱ
ȱ ȱ ȱ ǰȱ ¹ȱ ȱ ȱ ¨ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęęȱ ȱ ȱ
James, precisava ser designada por uma nova palavra, daí “pragmaticismo”, “palavra feia o
ęȱȱ¹ȬȱȱȱȄȱǽǰȱȱǯȱȱȱ
Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱȱǰȱǯȱŗŜŜǾǯȱȱ
observação: a expressão “pragmatismo” é de origem kantiana. Na Introdução à Metafísica dos
Costumes, Kant distingue entre pragmático e prático. Este se refere às leis morais apriorísticas,
enquanto “pragmático” diz respeito às normas da arte e da técnica que são baseadas na ex-
periência. Charles Peirce fez, assim, opção terminológica consciente. Para essa explicação, não
consultamos Peirce, mas Dewey “The Development of American Pragmatism” [In: THAYER
(Org.). PragmatismDZȱȱȱǰȱǯȱŘřȬŘŚǾǯ
22
PEIRCE. The Fixation of Belief. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱȱǰȱ
p. 107-126; PEIRCE. How to Make our Ideas Clear. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
ȱǰȱǯȱŗŘŝȬŗśŖǯ
23
Cf. Menand (The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, cap. 9 - The Metaphysical
ȱȱǯȱŗřȱȬȱǼǯȱȱ·ȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱ
era Professor de Harvard e uma celebridade acadêmica internacional, Peirce estava, quase
ǰȱȱDZȱȱęȱȱȱȱȱȱ
ǰȱȱȱȱ
seu cargo na Universidade Johns Hopkins por causa de um escândalo conjugal; também havia
ȱȱȱȱȱȱȱȱÇęȱǻȱǯǯȱȱ¢Ǽǯȱȱ
ǰȱȱŗŞşŞǰȱȱȱ¹ȱȱȱǰȱȱ¦ǰȱȱȱ
casa aos pedaços, depois de anos ao relento pelas ruas de Nova Iorque.
ȱȱȱęȱȱ¹ȱȱȱ-
ǯȱȱęȱȱȱȱȱ¥ȱ¹ȱȱȱ
ȱȱȱ³¨ȱȱę³¨ȱȱǯ24 Existiriam
três graus de clareza conceitual. O primeiro grau seria o da capacidade de
se utilizar a palavra adequada (por exemplo, o uso de “elétrico”, e não o de
“sonoro”, para descrever o fenômeno envolvido com colocar um dedo na
Ǽǯȱȱȱȱȱȱȱȱȱę³¨ǰȱȱ
ȱǯȱȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱęȱ
¤ǯȱȃȱ·ȱ·ȱ£ȱȱęǰȱȱȱǰȱȱȱ
âȱ¡ȱÇȱȱȱȱęȱȱ
ȱ³¨ȱȱȱǰȱȱ·ȱ¤ȱȱȱę³¨ȱ
do conceito, e não há absolutamente mais nada nele”.25
ȱ ¡ȱ ȱ àȱ ǰȱ ȱ ȱ ęȱ ȱ
falamos que uma substância é dura é que ela será capaz de riscar vidros,
resistir a ser entortada etc. A soma de tais efeitos práticos é o conceito de
“dureza”. Não há uma essência abstrata: “dureza” é o conjunto de todos
os efeitos práticos das coisas duras.26
ȱȱȬ27 daquilo que chamou de “princípio de
Peirce, o princípio do pragmatismo” e, a partir de algo que era uma regra
àȱȱȱęȱȱǰȱ¡ȱȱȱȱ
ȱęȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱ¨ȱ
ȱȱȱȱę³¨ǰȱȱ·ȱȱteoria da verdade.
Em suas palavras:
ȱȱęȱȱȱȱȱȱęȱ·ǰȱȱǰȱȱȱ
ȱȱȱȱǯȱǽǯǯǯǾȱȱęȱȱȱȱ³¨ȱ
ęàęȱ ȱ ȱ ȱ £ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¹ȱ
particular, em nossa experiência prática futura, seja ela ativa ou passiva; a
questão está mais no fato de que a experiência deva ser particular do que
no fato de que ela deva ser ativa.28
24
ȱ ǯȱȱęȱȱǯȱIn: MENARD (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 56.
25
PEIRCE. Pragmatism and Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
ǰȱǯȱŗŜŘǯ
26
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xiv.
27
ȱ ȱȱȱàȱȱȱǰȱȱȱ¢ǰȱȱàȱȱęàȱ
norte-americano, acreditava que o que hoje chamamos de pragmatismo é, na verdade, o resul-
tado da incompreensão de James em relação à obra de Peirce. Em suas palavras, “é uma interes-
ȱ¨ȱȱȱȱȱ·ȱÇȱȁȂȱȱȱęàȱȱȱȱȱDzȱȱȱ
·ȱÇȱȱ·ȱȱ£ȱȱȱȱȱȱęȱǰȱȱ
ȱęȱȱǰȱȬȱȱȱȱȱ³¨ȱȱȱǯȱ
Talvez seja correto, e o mais justo para todas as partes envolvidas, dizer que o movimento
moderno conhecido como pragmatismo é, em grande parte, o resultado da incompreensão de
James em relação a Peirce” (BERRY. The Thought and Character of William James, p. 281).
28
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 291.
29
ȱ ȱǰȱȱȱ¨ȱ¤ȱȱǰȱȱȱȱǰȱȱteste
da verdade; para James, isto é o próprio ęȱda verdade (RUSSEL. The Philosophy of
ȱǯȱIn: GOODMAN. (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 199).
30
ȱ ȃ1ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęàęȱ ȱ ȱ ę¦ȱ ȱ
momento em que você as submete a esse teste simples de traçar uma consequência concreta.
Não pode haver diferença naquilo que não faz nenhuma diferença — nenhuma diferença
numa verdade abstrata que não se expresse numa diferença num fato concreto e, assim, numa
conduta relacionada com aquele fato, conduta imposta a alguém, de alguma forma, em algum
ǰȱ ȱ ȱ ǯȱ ȱ ȱ àȱ ȱ ęęȱ ȱ ǰȱ ¨ǰȱ ȱ ȱ
diferença faria, para você ou para mim, em certo momento de nossas vidas, se essa ou aquela
àȱ ·ȱ ȱ Ȅȱ ǽǯȱ ȱ ȱ ǯȱ In: HAACK (Org.).
Pragmatism, Old & NewDZȱȱǰȱǯȱŘşřǾǯ
31
“Um pragmatista vira suas costas, de modo resoluto e de uma vez por todas, a uma série de
¤ȱȱȱȱęàȱęǯȱȱȱȱ³¨ȱȱȱę¹ǰȱ
as soluções verbais, as péssimas razões a priori, os princípios imutáveis, os sistemas fechados,
as pretensas Origens, os supostos Absolutos. Ele vai em direção à concretude e à adequação;
ȱ ǰȱ ¥ȱ ³¨ȱ ȱ ȱ ǯȱ ǽǯǯǯǾȱ ǽȱ Ǿȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
£ǰȱȱȱǰȱȱęǰȱȱȱ¨ȱȱęȱȱȄȱǽǯȱ
ȱȱǯȱIn: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱȱǰȱǯȱŘşřǰȱ
grifos no original].
32
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 307, grifos no
original.
33
“Suas aspirações [do pragmatismo] não se detinham no esclarecimento dos conceitos; tal coisa
era importante apenas como meio para potencializar a ação. E é precisamente este confessado
ideal o ponto de partida de uma imagem distorcida do pragmatismo que, ainda hoje, circula
ȱȱȱęȱȱǰȱȱǰȱȱȱ¹ǰȱ£Ȭȱȱȱȱ
ȱ ³ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ
concepções humanas, entendido este em termos de interesse individual imediato, e despreza
as formas mais elevadas de realização intelectual, as quais se supõem desvinculadas de
qualquer demanda prática. Os que, alguma vez, aproximaram-se das obras de James, Peirce
ȱ ¢ǰȱǰȱǰȱȱȱȱęǰȱȱ·ȱȱȱȱ³äȱȱ
descrição são imerecidas” (FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 2,
grifos no original).
34
ȱ ǯȱȱȱȱȱ¢ȱȱ¢ǯȱIn: SIDORSKY (Ed.). John Dewey: the Essential
ǰȱǯȱŝŗǯ
35
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xxiv.
36
ȱ ǯȱ ȱ ȱ ǯȱ In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
ǰȱǯȱřŚŜǯ
37
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 34-35. De próprio Dewey, acerca
do tema, consultar “The Need for a Recovery in Philosophy” (In: MENAND. Pragmatism: a
ǰȱǯȱŘŗşȬŘřŘǼDZȱȃȱęęȱȱȱȱȱ¡ȱȱȱȱȱȱȱ
ȱ ȱ ȱ ȱ ęàȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ·ǰȱ ȱ ȱ ęàǰȱ ȱ
lidar com os problemas dos homens”.
ȱDZȱ¡ǰȱȱȱ·ǰȱȱȃęęȱȄǵ38
Quantos pragmatismos existem: um, treze, tantos quantos sejam os autores
que resolvam escrever sobre o tema?39 Em que medida o pragmatismo
·ȱȱȱȱ³¨ȱęàęǰȱȱȱ¨ȱǰȱȱ
ȱȱǰȱȱȱȱȱȱȱȱǵ40
38
Ángel Faerna estabelece três critérios com base nos quais um pensamento pode ser tido como
ȱȱȱȱęàęDZȱǻǼȱȱȱàǰȱǻǼȱȱøȱ¤ȱ
Çęȱ ȱ ǻǼȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ
ȱęàęȱ·ȱ¤ǯȱȱÇ£ȱàȱ¨ȱǯȱȱȱȱǰȱ
o pragmatismo possuiria antecedentes tão distintos quanto Sócrates, Aristóteles, Kant,
Stuart Mill, Francis Bacon, Spinoza, Locke, Hume. Outros autores clássicos poderiam ser (e
provavelmente foram) citados por pragmatistas antigos e modernos. Em segundo lugar, o
øȱ ¤ȱ Çęȱ ¨ȱ ·ȱ ȱ DZȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ ¢ȱ
ȯȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ¹ȱ ȯȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ ǰȱ ȱ ³ȱ
ȱ ȱ ¨ȱ ȱ ȱ ȱ ęàęȱ ǯȱ ȱ ·ȱ ȱ ¨ȱ ȱ ȱ
ęǰȱǰȱ·ǰȱȱǰȱȱǰȱȱǰȱȱȱȱ³¨ȱǯȱȱ
ȱęȱ¨ȱȱȱȱàȱȱȱȱȱȯȱǰȱǰȱȱȃęęȱ
platônica” ou a epistemologia kantiana —; antes, foram algumas ideias seminais, que, ori-
ginadas dos clássicos, vieram a ser disseminadas no mundo contemporâneo, até o ponto
em que não se poderiam mais reconduzir a uma unidade original. Assim, conclui Faerna, o
pragmatismo não pode ser tido, ao menos em termos técnicos rigorosos, como uma “escola”
ou um corpus teórico. No entanto, e aqui uma observação interessante do autor espanhol, o
ȱęàęȱȱȱȱȱȱȱȱ¤ǰȱȱ·ǰȱȱȱȱȱ
efeitos discerníveis no pensamento e na cultura posterior (FAERNA. Introducción a la teoría
pragmatista del conocimiento, p. 3-6). Em nossa opinião, seguindo Faerna, não existe uma
ȃęęȱ Ȅȱ ȯȱ ȱ ȱ ¡ȱ ȱ ȱ ęàęȱ ¤. Também
·ȱ Çȱ ǰȱ ¨ȱ ȱ ¦ȱ ǰȱ ǰȱ ȱ Ĵǰȱ ȱ família de
pensadores pragmatistas, compartilhando interesses, posturas, atitudes.
39
ȱ ȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęàęǯȱ ȱ ȱ
autor a defender a existência não de um, mas de vários pragmatismos — precisamente treze
—, foi Arthur Oncken Lovejoy, num artigo chamado “The Thirteen Pragmatisms” (1908).
Lá, ele sustentava que, deixando de lado algumas observações laterais dos diversos autores,
existiriam, à época, treze pragmatismos, todos logicamente independentes entre si. Ainda,
dizia que o pragmatismo era mais reconhecido por sua originalidade e inventividade do que
por sua capacidade de autoanálise, e que, por isso, às vezes se criticava um pragmatismo por
todos, ou por vários outros; far-se-ia mister, então, diferenciá-los um a um, o que ele ora se
propunha a fazer [LOVEJOY. The Thirteen Pragmatisms. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism:
Critical Concepts in Philosophy, p. 159-174]. Há, ainda, quem defenda que o pragmatismo
é um único pensamento — mas um único pensamento multifárioǯȱ ȱ ǰȱ Ĵ ȱ
Festenstein (Pragmatism & Political Theory: from Dewey to Rorty, p. 3 et seq.). O pragmatismo
ęàęȱ ·ȱ ęȱ ȱ ȱ Dzȱ ȱ ȱ àȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
ȱȱȱǯȱȱǰȱǰȱȱȱęęȱȱ¹Dzȱ
seu tom admite passagens como: “A verdade É ASSIM, quer você ou eu ou qualquer outra
pessoa acredite nisso ou não”. Já James pretendia abrir espaço para as crenças religiosas numa
era que se mostrava pouco afeita a isso. Sua máxima pragmática é menos técnica e “lógica” (no
rigor da palavra). Finalmente, as aspirações de Dewey circulam em torno a uma epistemologia
reconstruída, na qual o conhecimento constitui ou altera seus objetos. Três preocupações
diferentes. Três pragmatismos? [V. HAACK. Preface. HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
ȱǰȱǯȱşȬŗŘǾǯ
40
ȱ ȱȱ³ȱȱȱǰȱȱŗşŖŝǰȱȱȱȱȱȱȃà¡ȱ
à reforma protestante”. Apesar disso, et pour cause, ele se preocupou com a estratégia de
apresentação: para não soar muito revolucionário, e, daí, possivelmente, perder adesões,
James, a partir do subtítulo, tratou de desarmar ânimos. Pragmatism – A New Name for Some
ȱȱ·ȱȱȃęęȄȱȱǰȱȱ³¨ǰȱȱ¡-
mentação. Filha de um tempo e de um lugar — o século XIX nos Estados
Unidos —, reagindo a um inimigo demarcado: o realismo e o racionalismo
âȱȱȱȬ¡¨ȱȱęȱȱ·ǰȱ£ȱȱ
ȱęȱȱȱ¥ȱǯ41 Há quem nele veja ecos do
ceticismo de Hume e do positivismo, mas também do marxismo e do
ǯȱȱàǰȱȱ·ȱȱȱȱȱȱȱȱęȱ
tão multifária, é o de resgatar o valor da experiência: num mundo cindido
em dualismos anódinos — objetos mentais versus mundo extramental,
teoria versus prática, cultura humanística versus ȱ Çęȱ ȯǰȱ ȱ
pragmatismo quer depurar nossa compreensão de conceitos viciadamente
abstratos. Como há continuidade, e não separação, entre teoria e prática,
depurar nossos conceitos de muitas das noções vagas que muitas corren-
ȱęàęȱę£ȱȱȱȱ¹ȱȱȯȱȱȱȱ
intermédio de um apelo a que olhemos para as consequências concretas
da adoção desta ou daquela proposição — é, ao mesmo tempo, contribuir
ȱȱȱȱȱȱȱę£ǰȱȱȱǰȱȱǯ42
44
ȱ DzȱǯȱǯȱDzȱȱǻǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 1.
45
Há passagens na obra de Charles Peirce que podem apontar para um pragmatismo metafísi-
co. Sua pretensão seria a de fundar uma Metafísica baseada na ciência. Assim, por exemplo,
quando compara seu pragmatismo ao positivismo de Augusto Comte, Peirce, citado por Susan
ǰȱęȱǰȱȃȱ·ȱȱȱȱȱÇǰȱȱȱ¡ȱȱ
uma essência preciosa”. Em outros trechos, Peirce considera a Metafísica como a “Paris do
intelecto: excitante, porém perigosa”, e sustenta que “quase todas as proposições da metafísica
ontológica são bobagens”. Mas, uma vez que essas bobagens sejam neutralizadas, pode come-
³ȱȱȱȱȱÇǰȱȱȃÇȱÇęȄȱǻ
ǯȱǯȱIn:
HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱȱǰȱǯȱŗŜǰȱŘŖǼǯ
46
ETCHEVERRY. O fundacionismo clássico revisitado na epistemologia contemporânea, p. 34-35. O fun-
dacionismo surge, classicamente, como tentativa de resposta ao trilema de Agripa, segundo o
qual só existiriam três soluções para uma cadeia de argumentos: ou se termina numa suposição
arbitrária; ou se retorna ao ponto de partida, perfazendo, assim, movimento circular; ou se
ȱęȱȱǯȱȱȱȱȱęȱȱȱǰȱ
ȱ ȱ ȱ ³ȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ǰȱ ¨ȱ ǰȱ ȱ
ȱȱȱȱȱ³ȱ¨ȱęǯ
47
ARISTOPHANES. The Clouds. Ainda, Alfonso Morales (Renascent Pragmatism: Studies in Law
and Social Science, p. xiv): “O pragmatismo afasta a pura e simples criação de conceitos em
favor do desenvolvimento de ferramentas capazes de auxiliar na compreensão do mundo que
observamos e das regras que o produzem”.
48
O antifundacionalismo não se confunde, embora tenha tudo a ver, com outra característica
ȱȱęàęǰȱȱǰȱȱfuncionalismo, a ideia de que as crenças são instrumentos
para a ação. Segundo o funcionalismo pragmatista, não agimos porque temos ideias, mas
ȱȱȱȱǰȱȱȱȱ³ȱȱęǯȱȱȱǰȱ
v. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 364.
ȱȱęàęȱȱ£ȱȱ¹ȱȱǰȱȱȱ
conceito. Há muita discussão teórica acerca das proximidades e distancia-
mentos do consequencialismo — que muitas vezes é usado como sinônimo
tout court ȱȱȯȱȱ³¨ȱȱ·ȱęàęȱȱȱȱ
ǯȱȱǰȱȱȱ¤¡ȱ¤DZȱȱęȱȱȱȱ
de teorias e conceitos devem ser buscados por intermédio de uma análise
da diferença que fazem para a realidade. Ou seja, por um processo mental
de adiantamento e avaliação de suas consequências. Donde nada mais na-
tural do que apresentar o consequencialismo como uma das características
ǰȱ£ȱȱȱǰȱȱȱęàęǯ
O (iii) contextualismo não causa grandes dúvidas. É o destaque do
¡ȱȯȱǰȱÇǰȱàǰȱȱȯȱȱ³¨ȱęàęȱ
ȱÇęǯȱȱȱęàęȱ¨ȱ¹ȱȱ³äȱǰȱ
se não por seu antifundacionalismo, então porque elas costumam se inse-
rir num plano a-histórico, acima do tempo, do lugar e das circunstâncias
pessoais e culturais.
É porque o método pragmatista preza a diferença prática que as
teorias possam fazer — e só é possível perscrutar uma diferença prática a
partir de um contexto real — que o contextualismo assume importância
como traço do pragmatismo. “O pragmatismo é sempre contextual, o que
ęȱȱȱ¡ȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
contextos que irão determinar seu sentido e seu valor”.49
Eis que a matriz pragmatista se completa: se não existem fundações
ȱęȱȱȱȱȱǰȱȬȱ¤Ȭȱȱȱ
de suas consequências, as quais só adquirem sentido dentro do contexto no
qual estão inseridas. Os deuses estão mortos; é hora de se preocupar com
as consequências concretas de nossos conceitos, juízos e ações, praticados
por nós em nosso único mundo.
49
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on
Social Thought, Law, and Culture, p. 8.
50
“Embora o pragmatismo e o modernismo frequentemente divirjam, e os primeiros pragmatis-
tas tivessem opiniões reticentes sobre Arte Moderna, o momento do pragmatismo foi, também,
o momento do Cubismo de Picasso e de Braque, da Teoria da Relatividade de Einstein, e de
uma nova geração de literatura moderna” (MENAND. An Introduction to Pragmatism. In:
MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 4).
51
V. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 371 et seq.
52
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on
Social Thought, Law, and Culture, p. 1.
53
GHIRALDELLI JÚNIOR. O que é o pragmatismo?, p. 23.
54
ȱ ȱ ǯȱ ¢ȱ ȱ ȱ ȱ ǯ Boston College Law School – Legal Studies
Research Paper Series, p. 347-348.
55
Estamos, aqui, usando a expressão “desencantamento” no sentido técnico que ela passou a ter
a partir de sua utilização, como conceito-chave para o entendimento da sociedade moderna,
ȱǯȱȱȃȱȱȄǰȱ³¨ȱȱEntzauberung der Welt — literal-
DZȱȱȃę³¨ȱȱȄȱȯǰȱ·ȱȱǰȱȱȱȱǰȱȱ
intermédio do qual a racionalidade técnica expulsou representações mágicas tradicionais (Cf.
PIERUCCI. O Desencantamento do mundoDZȱȱȱȱȱȱȱ¡ȱǼǯȱ
defesa que Dewey fez da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra,56
ȱǰȱȱȱȱ¡ǰȱȱǰȱȱȱDZȱȃȱ
acordo com os princípios pragmáticos, não podemos rejeitar nenhuma
hipótese se dela decorrem consequências úteis para a vida”.57 Quando
veio, a rejeição atacou por todos os lados.
Randolph Bourne, intelectual que fora aluno e admirador de Dewey
em Columbia, publicou, em 1917, artigo na revista Seven Arts intitulado
“Twilight of Idols”, no qual atacava seu ex-professor, expressava preocu-
pação por sua defesa da guerra e responsabilizava-o indiretamente pelo
ȱȱ·ȱȱȱȱȱÇǯȱȃȱęęȱȱ ¢ȱ·ȱ
inspiradora para uma sociedade em paz, próspera, e com uma reserva
ȱȱȬǯȱ1ȱȱęęȱȱ³ǰȱȱ¨ȱ
clara de ferramentas e de meios”. No entanto, nada disso aparece durante
ȱ ǯȱ ȃȱ ³¨ȱ ȱ ȱ ęęȱ ¥ȱ Çǰȱ ȱ ȱ
¨ȱȱȱ¥ȱ¨ȱȱȱęȄǯ
Bourne continua: “A guerra revelou uma jovem intelligentsia, trei-
nada no pragmatismo, imensamente pronta para a ordenação executiva
de atividades, mas lamentavelmente despreparada para a interpretação
ȱȱȱȱȱÇȱȱęȄǯȱȱȱ ¢ǵȱ
Certamente, o professor tinha e defendia seus valores, mas havia aspectos
pouco claros em seu pensamento.
¢ǰȱ·ȱǰȱȱȱȱȱęęǰȱȱȱȱȱ
ęęȱ¤ǰȱ³ȱȱȱǯȱ·ǰȱȱȱȱ£ȱ
ambiguidade em sua doutrina acerca de como os valores eram criados, e foi
ęȱȱ£ȱȱ¤ȱȱȱȱȱȱȱ
ȱęǰȱȱȱȱȱȱǯ
56
ȱ ȱȱȱȃȱȱȄǰȱȃȱȱȱęȄǰȱȃȱȱ
ȱ ȱ Ȅǰȱ ȃȱ ȱ Ȅǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ The New
Republic, John Dewey defendeu pragmaticamente a Primeira Guerra, além de criticar aquilo
ȱȱȱ¡ȱȱęǯȱ
57
O trecho original, em inglês: “On pragmatic principles we cannot reject any hypothesis if
ȱȱȱȱĚ ȱȱǯȱȱǰȱȱȱȱȱȱǰȱ
may be as real for pragmatism as particular sensations are. They have indeed no meaning and
no reality if they have no use. But if they have any use they have that amount of meaning. And
the meaning will be true if the use squares well with life’s other uses”. Em nossa tradução:
“De acordo com os princípios pragmáticos, nós não podemos rejeitar nenhuma hipótese se
dela decorrerem consequências úteis para a vida. Conceitos universais, enquanto algo a ser
considerado, podem ser tão reais para o pragmatismo como as sensações particulares o são.
ȱ ǰȱ ȱ ¨ȱ ¹ȱ ǰȱ ¨ȱ ¹ȱ ęȱ ȱ ǯȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ
ǰȱ ȱ ȱ ¡ȱ ȱ ȱ ęǯȱ ȱ ȱ ęȱ ¤ȱ ȱ ȱ ȱ
ȱȱȱȱȱȱȱȱȄǯȱ¹Ȭȱȱȱȱ¨ȱȱȱ
branca ao pragmatismo para qualquer uso, mas busca não descartar, de modo a priori, as
ȱDZȱȱȱȱęȱȱȱȱȱǰȱȱ·ȱȱ
possuem (JAMES. Pragmatism, p. 105).
58
BOURNE. War and the intellectuals: collected essays (1915-1919), p. 53-64.
59
ȱ ȱȱȱȱȱȱȱęàęȱȱȱȱǰȱǰȱȱ
ȱȱǻȃȄȱȱŗşŖşȱȱȃȱ¢ȱȱȱȄȱȱŗşŗŖǼǰȱȱ
ȱ¤ȱ¤ȱȱȱęęȱȯȱȱ¨ȱ¡ȱȱȱȱȱȱȱȱ
tábua de multiplicação (3 x 3 = 9), mas, apenas, a partir de suas consequências, resta a dúvida
sobre se o pragmatismo é menos dogmático do que os sistemas que pretendia substituir —, ou
cunhou frases fortes contra o movimento: “Se o pragmatismo triunfar, então encouraçados e
ȱ¨ȱȱ¤ȱęȱȱȱÇȄǯȱȱÇȱȱȱȱ
ȱȱȱȱȱę³¨ȱȱȱȱȱȱȱęęȱȱDZȱ
“Ora”, argumentava, “como qualquer um percebe, há verdades que não são úteis, assim como
existem proposições úteis que não são verdadeiras” (RUSSEL. Pragmatism. In: GOODMAN
(Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, v. 1, p. 175-195). Ainda, republicado na
ȱ¦ǰȱȱȱǰȱȃȱ¢ȱȱȱȄǰȱǯȱŗşŞȬŘŖŗǯ
Guerra certamente não é exemplo). Mas não vamos avançar no tema, que
é complexo e exige aprofundamento.
Próxima crítica: (i) o pragmatismo seria um método incompleto e
ȱęȱȱǯȱȱȱ·ȱDZȱȱȱȱȱ
caso, a saída é associá-lo a uma teoria substantiva, que proíba determinadas
escolhas e oriente resultados.
Quanto às duas outras críticas — (ii) o pragmatismo seria uma bana-
lidade, solicitando, tão somente, que continuássemos com nossas práticas
de senso comum, ou (iii) ele seria uma banalidade por sublinhar, apenas,
a importância da ação, sem maiores consequências ou profundidade —,
são objeções que merecem ser refutadas de plano.
ȱȱęàęȱ¨ȱ·ȱǯȱȱ¨ȱȱȱȱ
com nossas práticas usuais. Lendo Dewey e James, há um subtexto muito
ȱȱęȱȱȱȱ ȱ àȱǯȱȱęęȱ
ȱ·ȱȱęęȱȱ³¨ǯȱȱ ¢ȱǰȱ
por exemplo, o conceito de “inteligência criativa”, ele imagina que se
possa superar a barreira da criação intelectual e dos condicionamentos
sociais, em direção a uma realidade comunitária radicalmente transformada
(a ênfase em “radicalmente” não é retórica). Ideias que, hoje, poderiam
ser reputadas como intensamente transformadoras encontram ancestral
no pragmatismo social desses primeiros pensadores. Provavelmente esse
é o erro mais comum quando se fala em pragmatismo. Erro decorrente de
ȱ¨DZȱȱȱ·ȱȱęęȱȱ¹ǰȱ
ȱ¡¹ȱȱȱ³¨ǰȱȱ·ǰȱ·ȱȱǰȱȱęęȱ
ȱ³¨ǯȱȱȱȱȱȱęàęȱȱȱ
uma postura de tibieza diante da realidade, de conformismo, de “render-se
aos fatos”. Ao antigo lema do movimento estudantil brasileiro “seja rea-
ǰȱ¡ħȱȱÇȄǰȱÇȱǰȱȱ³ȱ·ǰȱȱ
ȱȱȱęàęȱ ȱȱDZȱȃȱ¤ǰȱ ȱ
um novo possível”.
·ȱ ǰȱ ȱ ȱ ęàęȱ ¨ȱ ·ȱ ȱ ę³¨ȱ ȱ
ação pela ação, como faz crer a crítica (iii). John Dewey defende seu papel
intermediárioǯȱ1ȱȱȱȱęęȱȱȱȱȱȱȱ³¨ǰȱǰȱ
ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęǰȱ ȱ ǰȱ ȱ ęȱ ȱ
conceitos (ou das teorias ou da verdade). Em suas palavras:
1ȱȱ£ȱȱȱȱȱ£ȱȱ³¨ȱȱęȱȱǯȱ
£Ȭǰȱǰȱȱȱȱȱȱȱȱ³¨ȱȱȱę-
lidades particulares de interesse e de proveito. É verdade que a teoria, de
acordo com a concepção de Peirce, implica essencialmente uma relação com
a ação, com a conduta humana. Mas o papel da ação é o de um intermediário.
ȱȱȱȱȱȱęȱȱǰȱȬȱȱ£ȱ
de aplicá-los à existência. E é por intermédio da ação que esta aplicação se
ȱÇǯȱȱę³¨ȱȱ¡¹ȱȱȱȱ³¨ȱ·ȱȱ
ȱęȱȱǯȱȱǰȱǰȱ¤ȱȱȱ
ȱȱę³¨ȱȱ³¨ȱȱ³¨ȱȱ·ȱȱȱȱÇȱȱ
da vida norte-americana.60
ŗǯŘǯřȱ ȱȱęàęDZȱȱȱȱȱȱ
reinvenção. A explosão contemporânea da abordagem
pragmatista
O renascimento do pragmatismo possui data, certidão de nasci-
mento e paternidade conhecida. Com a publicação, em 1979, da primeira
edição do livro Philosophy and the Mirror of Nature, de Richard Rorty,62 o
ȱȱȱ¨ȱȱȱęàȱęȱȱ¨ȱ
ȱȱęȱęǰȱȱȱȃȱȱÇȱȱ
número três”63 e, salvo diferenças pontuais de áreas de interesse, conside-
rava suas propostas teóricas idênticas às de John Dewey.64
Ressurgiu não com um suspiro, mas com uma explosão. Rorty
defendia um rompimento com a então predominante tradição analítica
ȱ ęȱ Ȭȱ mainstreamǰȱ ȱ ȃęȱ ȱ ęàȄǰȱ ȱ
60
ȱ ǯȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ In: THAYER (Org.). Pragmatism: the
ȱǰȱǯȱŘśǯȱ
61
MORALES. Foreword. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social
Science, p. xvii.
62
RORTY. Philosophy and the Mirror of Nature.
63
RORTY The Pragmatist Progress. In: COLLINI (Org.). Interpretation and Overinterpretation,
p. 93. A acusação de que Peirce buscava uma associação com o número três em tudo, numa
espécie de “triadomania”, é contemporânea à vida do lógico, merecendo resposta do autor. O
prefácio ao manuscrito The Quest for the Quest – An Inquiry into the Sucess of Inquiry chama-se
ȃȂȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ Ĵȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
importance to the number THREE, and forces Divisions to a Procrustean Bed of THRICOTOMY”,
ǰȱǰȱȱǰȱȱȱȱǰȱ¹ȱȱ¤ȱȱȱę³¨DZȱ
1. Ele teria usado diversas outras divisões (de vinte e nove divisões em sua obra, apenas cinco
ȱǼDzȱŘǯȱȱȱȱę³äȱÇęȱȱ¡ȱ¡Dzȱ
3. Dever-se-ia entender que há diferença entre o raciocínio matemático e outros tipos de
Çǰȱȱȱȱȱ³¨ȱȱ¨ȱęȱȱǯȱȱȱȱ
tema v. SPINKS. Peirce and TriadomaniaDZȱȱ ȱȱȱȱǯȱ
64
BORRADORI. ȱęęȱ: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto,
Rorty, Cavell, Macintyre e Kuhn, p. 149.
ęȱ¹Ȭęȱȱȱ³¨ǰȱȱǰȱȱ
ȱ³¨ȱàȱ¥ȱęęȱǰȱȱȱ£ǯ65
ȱȱęȱàǰȱȱȱȱȱęęȱ
com “f” minúsculo, uma disciplina dentre outras, sem maiores pretensões a
ȱȱ¡ȱȱȱDzȱȱęęȱȱȱȱ·ȱ
de crítica cultural, sem medo do tom literário, e que servisse, apenas, para
comparar as diversas visões de mundo.66
“O que os pragmatistas estão a dizer é que a maior esperança para
ȱęęȱ·ȱ¨ȱ£ȱęǯȱȱȱȱȱȱȱ¨ȱ
ajuda a dizer algo verdadeiro, nem pensar sobre o Bem ajuda a agir bem,
nem pensar sobre a Racionalidade ajuda a ser racional”.67 Nessa “cultura
àȬęàęȄǰȱ¨ȱȱȱȱǰȱȱȱęȱ·ȱȱȱǯȱ
É, apenas, um estudo comparativo das diversas narrativas criadas pelo
homem: literatura, ciência (“um gênero de literatura”), Ética.68 Outros
ȱȱȱȱ³¨ȱ¹ȱȬȱȱĚ¡äȱ
acerca do pluralismo, da solidariedade e da ironia, entendida, esta, não
como humor ácido, mas como uma espécie de desencanto transgressivo,
que impulsiona o intelectual em direção a uma “utopia liberal” que não
surge da história nem da natureza humana, mas que é construída pelos
próprios indivíduos.69
ȱȃȄȱȱ¢ȱȯȱȱȱęȱȱ-
cido —, tal como descrito, assemelha-se, bem vistas as coisas, a certas pro-
postas teóricas pós-modernas, descrentes das chamadas grandes narrativas,
“desconstrutivas”, críticas.
O que isso tem a ver com o pragmatismo de Peirce, James e Dewey?
ȱȱȱȱǰȱȱǰȱęȱ¢ǯȱȱǰȱę-
mam outros. Explica-se.
65
BORRADORI. ȱęęȱ: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto,
Rorty, Cavell, Macintyre e Kuhn, p. 151.
66
“A fortiori, tal cultura não conteria ninguém chamado ‘o Filósofo’, que pudesse explicar como
e porque é que certas áreas da cultura gozariam de uma relação especial com a realidade.
Tal cultura conteria, sem dúvida, especialistas em ver como as coisas são compatíveis. Mas
seriam pessoas que não teriam ‘problemas’ para resolver, nem nenhum ‘método’ especial para
aplicar, não estariam submetidas a normas particulares, não teriam uma auto-imagem coletiva
ȱȱę¨ǯȱǽǯǯǯǾȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
oferecer um ponto de vista sobre quase tudo, na esperança de o tornar compatível com tudo o
mais” (RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 41).
67
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 15.
68
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 42.
69
RORTY. Contingency, Irony, and Solidarityǯȱȱǰȱ¢ȱȱȱęȱȱȃâȱȄȱ
(ou “ironista liberal”, como aparece em algumas traduções), que é o sujeito que reconhece a
contingência de todas as suas crenças, mas, mesmo assim, acredita na existência de um mal
extremo na existência humana — a crueldade e a humilhação —, e aposta em seu desapare-
ǯȱ
¤ȱ ȱ ęǰȱ ǰȱ ȱ ȱ DZȱ ȱ ǰȱ ¨ȱ ȱ ȱ ȱ
humanitária, mas como evitação da humilhação. Desenvolver em Gabriel Bello Reguera (Rorty
y el Pragmatismo. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho).
ȱàȱȱȱȱȱÇęǯȱȱȱȱ
¦ȱȱȱÇęǯȱȱȱÇȱȱȱȱ
verdade, provisória que fosse, graças ao consenso da comunidade de inves-
ǯȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱęȱ
da Ciência pela introdução da máxima pragmática. Isso nada tem a ver
ȱȱȱęàęȱȱ¢ǰȱȱȱȱ¹ȱ·ȱȱȱ
um discurso, e as preocupações com método e estrutura de argumentos
devem ser deixadas para trás conforme as pessoas forem se dando conta
de que “conhecer nossos desejos é conhecer o critério da verdade”.70
Há outros pontos de discordância entre o pragmatismo clássico
e o neopragmatismo de Rorty. No primeiro pragmatismo, conquanto o
conceito de verdade não possa ser dado a priori, ele pode ser buscado com
a projeção das consequências. Para Rorty, a ideia de procura da verdade
deve ser descartada.71 Em outro ponto, a ênfase do pragmatismo clássico
no conceito de experiência — o conjunto de crenças presentes na sociedade
e a forma como elas se relacionam com as instituições e práticas sociais —
é substituída, em Rorty, pela preocupação com o conceito de linguagem,
ȱ ³¨ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęàȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
ęȱÇȱȱàȱȱȃȱÇȄǯȱȱ
às três características da matriz pragmatista — o antifundacionalismo, o
consequencialismo e o contextualismo —, o neopragmatismo de Rorty só
ȱęȱȱȱȱǯ72
Independentemente de o neopragmatismo ser ou não um velho
nome para novas ideias,73 ou uma antropofagia das crenças do antigo
ȱęàęǰ74 fato é que a reinterpretação idiossincrática de
temas de James e Dewey, por Richard Rorty, fez renascer o pragmatismo.
Pensando no que gerou — o ressurgimento do tema e a atualização de
ȱøȱȯǰȱȱȱęàęȱ·ǰȱǰȱ¤ǯ75
A discussão sobre quem é autêntico não é profícua. Fiel ou não às suas
ȱ ǰȱ ȱ ·ȱ ȱ ȱ ȱ ęàęȱ ȱ ȱ
debate pragmatista.
Reabilitado e repaginado, o pragmatismo explodiu, e, como cos-
tuma acontecer, as partículas mais distantes acabam mantendo, apenas,
70
RORTY. Essays on Heidegger and Others: Philosophical Papers, p. 31.
71
ȱ ȃ¨ȱȱȱȱ¨ȱ¡ǰȱȱȱȱȱę³¨ȱ¡ǰȱǰȱ·ȱǰȱDzȱ
o que Rorty diz é que a questão da ‘natureza da verdade’ é dispensável” (GHIRALDELLI
qǯȱȱȱȱȱȱęęǯȱIn: RORTY. Pragmatismo e política, p. 8).
72
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos
Estudos CEBRAP, p. 125-138.
73
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 183.
74
RAPOZO, Joana Tavares da Silva. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las
teorías en el âmbito conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 26.
75
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos
Estudos CEBRAP, p. 138.
ŗǯŘǯŚȱ ȱȱȱȱęàęȱȱȱȱ
sobre o pragmatismo jurídico: a visão de Richard
Posner, Thomas Grey e David Luban
Há questão essencial que deve ser enfrentada: qual a utilidade do
ȱęàęȱȱȱȱȱȱȱÇǵ
Apesar de natural a intuição de que há alguma relação entre o prag-
ȱęàęȱȱȱȱÇǰȱ³¤ȱȱȱȱȱȱ
trata de uma aplicação daquele ao mundo do Direito,80 há quem defenda
que a utilidade não é muita.
Richard Posner, juiz norte-americano que é um dos principais
autores sobre o assunto, e cujo pensamento será analisado em breve,
ȱǰȱȱȱȱÇȱȱȱęàęȱȱ-
luído na experiência americana, seria um erro imaginar que as críticas ao
76
FARBER. Eco-pragmatismDZȱȱȱȱȱȱȱȱǯȱ
Ainda, MINTZ. Some Thoughts on the Merits of Pragmatism as a Guide to Environmental
Protection. ȱȱȱě.
77
SEIGFRIED. Pragmatism and Feminism: Reweaving the Social Fabric.
78
POIRIER. Reading Pragmatically. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 437-455.
79
HAACK. Introduction: Pragmatism, Old and New. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
ȱǰȱǯȱśŗǯ
80
ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracte-
rização, estratégias e implicações, p. 7. No entanto, conferir o verbete “Pragmatismo”, escrito
por José Eisenberg, no ¤ȱȱęęȱȱ coordenado por Vicente Barreto: “O prag-
matismo jurídico é uma escola da Teoria do Direito que nasceu nos EUA no início do século XX
e que tem naquele país seus maiores expoentes. Sua principal característica é o esforço de aplicar
ȱ³¨ȱęàęȱȱȱȱȱȱ³¨ȱÇ” (BARRETO. Dicionário de
ęęȱȱ, p. 656, grifos nossos).
ȱęàęȱȱȱȱȱȱ-
matismo jurídico. Em suas palavras: “A defesa do pragmatismo jurídico
·ȱȱȱȱ¨ȱȱȱęàęǰȱȱȱȱȱȱ
caráter do Direito norte-americano”.81
Tanto o pragmatismo clássico quanto o neopragmatismo teriam
pouco a dizer para operadores institucionais do Direito sem vocação ou
ȱȱȱȱȱȱęàęǯȱȬȬȱȱ·ȱȱ¹ȱ
ęęȱ·ǯ82ȱȱȱǰȱȱȱȱȱęà-
ęȱȱǯȱȱȱȱȱȱǰȱȱ³¨ȱ
Çǰȱȱȱęęȱȱȱȱ£ǰ83
seja em sua principal função, a de questionar preconceitos, o pragmatismo
ęàęȱȱȱȱȱȱøȱȱȱȱÇ£ǰȱ
tornando-os menos dogmáticos.84 Esse seria o principal papel do pragmatismo
ęàęȱȱȱDZȱȃȱȱȱȱÇ£Ȅǰȱ£ȱȱȱȱ
ȱęȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱȱàȱ
autônoma.85 Questionar o discurso do “apenas apliquei a lei aos fatos” seria
ȱȱȱÇȱȱęęȱǯȱȱǰȱȱøǰȱ¤ȱ
longe de ser novidade: dezenas de autores e posições teóricas, há tempos,
questionam tais pressuposições. Hoje em dia, provavelmente ninguém,
juízes ou opinião pública, leva a sério tal positivismo ingênuo à la Escola
da Exegese, ainda que alguns magistrados, quando lhes seja conveniente,
não hesitem em apelar a esse argumento convencional.86
81
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 149.
82
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 41.
83
Exemplo disso é trazido pelo próprio Posner no livro The Problems of Jurisprudence (p. 179-184),
ǰȱȱȱ³äȱȱȱęàęǰȱȱȱȱȱȱȱ
ǰȱȱȱȬǰȱȱęäȱ¤ȱ¡Çǰȱȱ¡ǰȱ
a partir da inoculação de “soros da verdade” e de falsas promessas de punições brandas.
84
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
85
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
86
Usamos aqui o termo “convencional” na acepção cunhada pelo sociólogo americano Charles
Tilly. No livro Why? – What Happens When People Give Reasons... and Why, o Professor de
ȱâȱȱȱȱ£äȱȱȱ£ȱȱęȱȱ-
tas. São elas as convenções, as histórias, os códigos e os relatos técnicos. Relatos técnicos são des-
crições minuciosas, frias, tendencialmente objetivas, acerca de acontecimentos do mundo. Um
parecer técnico, um laudo acerca de um acidente aéreo. Já os códigos são razões baseadas em
categorias, procedimentos, regras. Os argumentos jurídicos comumente são códigos, mas tam-
bém o são os códigos dos rituais cívicos ou religiosos, as maneiras pelas quais se torna inteli-
Çȱȱ³¨ȱǯȱ
àȱ¨ȱȱȱȱȱęǰȱȱȱ
ȱ¤ǰȱȱȱęȱ³äȱǯȱȱęǰȱ³äȱ¨ȱ£äȱ
que, desprovidas de conteúdo técnico, são aceitas muito mais por uma questão de adequação
do que de relação lógico-causal, e que costumam ser expressas em fórmulas estereotipadas
(“Deixe de ser bobo, menino”). Além de traçar as categorias de razões, Tilly defende que cada
ȱ ȱ ȱ ȱ £äȱ ȱ ȱ àȱ ÇęDZȱ ȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ
marido conta uma história (“Desde que arrumei meu novo emprego, tenho tido menos tempo
para nós [...]”), expressa seu desejo de reconciliação e de conservação do vínculo, ao passo que,
ao recorrer a uma convenção (“A culpa é minha, não sua”), está marcando uma posição de
ȱȱȱ³¨ȱȱȱȱ³¨ǯȱȱȱȱȱȱĚȱȱȱ
ȱȱ£äȱȱȱȱęȱ·ȱ¹ȱȱȱÇDZȱȱȱ
judiciais surgem em histórias, mas se resolvem em códigos — os quais, aptos a responderem à
imparcialidade exigida pelo Ordenamento Jurídico, são, todavia, incapazes de “curar” as per-
sonalíssimas feridas deixadas pelas lesões. Voltando ao tema do livro: razões como “apenas
apliquei a lei aos fatos”, inseridas no discurso jurídico, são convenções, razões estereotipadas
ȱȱȱȱȱ¤ȱȱȱȱȱȱ³¨ȱȱȱęȱ
institucional do magistrado. Fogem completamente à razão-padrão do mundo do Direito — o
código —, e, quase sempre, prestam-se a encerrar, de modo indevido e autoritário, um dis-
curso para o qual não se encontra, ou não se quer encontrar, uma razão baseada num código
imparcial. Cf. TILLY. WhyǵDZȱȱ
ȱȱȱ ȱǯǯǯȱȱ¢ǯ
87
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 50-52.
ȱȱÇȱ·ȱ¤ȱȱȱȱȱȱęǰȱȱę³¨ǰȱ
ȱ¤ȱǯȱȱȱȱȱȱȱȱęàęȱ
genuínos — pensemos no debate sobre os limites da vida, na discussão
acerca do aborto do feto anencefálico —, mas, aí, já são problemas de
ęȱȱtout court, não mais problemas jurídicos.
ȱȱ¡ęȱȱȱȱȱȱȱȱȱȯȱȱ
ȱȱęàȱȱ·ȱ ¢ȱȯȱȱȱȱ¨ǯȱȱ
ȱęęȱȱȱ·ȱȱȱǻȱȱȱȱȱ
da razão, Deus), quando começam a conversar sobre o Direito, as concor-
dâncias são integrais. Ambos estão de acordo que o Direito é empreitada
terrena devotada a encontrar formas menos desagradáveis de lidar com
desavenças; concordam com a importância do Estado de Direito; estão de
acordo, ainda, que normas de conduta, criadas a partir de procedimentos
prévios, e aplicadas por agentes públicos responsáveis, com disputas
fatuais e interpretativas remetidas à resolução por juízes independentes,
são a melhor forma de lidar com essas desavenças.
ȱDZȱȱȱÇȱ·ǰȱȱęȱȱǰȱȱȱ
que, em si mesma, é de fácil aceitação pelos juristas práticos, não exigindo
qualquer prévio conhecimento ou opinião acerca das abstrusas discussões
ȱȱ£ȱȱȱȱęàęǯȱȱȱǰȱ£ȱ
banal.88
Outro autor que contribui para o debate é David Luban. Para ele, do
modo como Posner e Grey expõem o pragmatismo jurídico — como uma
teoria que advoga, simplesmente, o ecletismo metodológico, o antiformalismo
ȱȱÇȱȱȱȱȯǰȱ¨ȱ¤ȱȱȱȱę-
àęȱȱøȱȱǯȱȱȱȱȱǰȱȱȱÇȱ
seria incontroverso porque pouco corajoso. Só que o próprio Posner, em
outros lugares, não defende apenas estas platitudes: toma posições em
³¨ȱȱȱ·ȱȱȱęàęȱ¹ȱǻȱȱ¨ȱ
behaviorista dos estados mentais, um determinismo moderado em relação
ao livre arbítrio, uma concepção econômica de racionalidade etc.).
E não teria como ser diferente. Embora, sustenta Luban, para
efeitos práticos, nenhuma questão jurídica possa ser decidida em termos
ęàęȱȯȱȱ£ȱ¨ȱȱȱȱȱȱȱ³äȱȱ
Kant —, o Direito, mesmo quando entendido como aplicação dessa teoria
antiformalista, eclética e orientada a resultados, não pode simplesmente
ȱȱȱȱȱ·ȱȱäȱęàęȱȱȱ£ǯȱȱȱ
é extensa: debates sobre o paternalismo ou não paternalismo do Estado,
88
GREY. Freestanding Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new
Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 254-274.
89
David Luban fala que o sentido especial da pena (desestimular a prática do crime por outras
pessoas) seria juridicamente pragmatista por excelência — olha para frente, importando-se
com as consequências do ato. Já o sentido especial, de retribuir o mal causado, só poderia ser
ȱȱȱ³¨ȱęàęȱǰȱǰȱȱȱȱȱȱȱ
“merece” uma punição, isso só pode ocorrer à conta de sua dignidade humana, e, ainda, com
ȱàȱȱęȱȱȱȱȱǯȱǯȱǯȱȂȱȱȱ
Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 292.
90
ȱ ȱ Çȱ ęȱ ȱ ³¨ȱ ȱ ³¨ȱ ȱ ȱ ȱ ¤ǯȱ
ȱ ¤DZȱ ȬȬȱ øȱ ǻȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęȱ
ȃ¤¡ȱę¹ȱàȄǼȱȱȱȱȱȱ£ȱȱÇȱȱ
ȱǯȱȱ³¨ȱàȱȱęȱȱȱȱ³äȱęàęȱȱȱȱ
ǯȱǯȱǯȱȂȱȱȱȱǯȱIn: DICKSTEIN (Org.). The
Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 292.
91
ȱ ǯȱ Ȃȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of
Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 275-303, passim.
92
Por ex., como se faz em Thamy Pogrebinschi (A normatividade dos fatos, as consequências po-
líticas das decisões judiciais e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito
Administrativo, p. 181-193).
93
ȱ ȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱęàęȱȱÇ£ȱȱȱȱ
ȱ ȱ ǰȱ ǯȱ
ǯȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǵDZȱ ȱ ¢ȱ ȱ
Philosophers?.
94
ÁVILA. Argumentação jurídica e a imunidade tributária do livro eletrônico. Diálogo Jurídico.
ȱę³¨ȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱȃ¤Ȅǰȱȱȱ-
dem quanto ao conteúdo e quanto ao resultado, são “não institucionais”, ou seja, “decorren-
tes apenas do sentimento de justiça que a própria interpretação eventualmente evoca” (p. 7).
Em outro trecho (p. 18), ele esclarece que “Os argumentos não-institucionais não fazem refe-
rência aos modos institucionais de existência do Direito. Eles fazem apelo a qualquer outro
elemento que não o próprio ordenamento jurídico. São argumentos meramente práticos que de-
pendem de um julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob pontos de vista econômicos, políticos e/ou
éticos. As consequências danosas de determinada interpretação e a necessidade de atentar para os
planos de governo enquadram-se aqui” (grifos nossos). Nesse trecho, a explicação do uso do
termo dá a entender que o argumento prático confunde-se com o argumento consequencialista,
o que não é o caso, como deixaremos claro ao longo do livro.
95
Noel Struchiner apud ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: sub-
sídios para uma compatibilização, p. 4, nota de rodapé n. 8.
96
ȱ ȃȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęȱ
estatais disponíveis. A ‘impossibilidade econômica’ apresenta-se como limite — necessário —
da garantia (prestacional) dos direitos fundamentais” (BÖCKENFÖRDE. Escritos sobre derechos
fundamentalesǰȱǯȱŜśǼǯȱȱ¡¨ȱȃȱȱÇȄǰȱȱ¹ȱ¦ǰȱęȱȱ
ȱęȱȱȱøȱȱȱȱ³äǯȱ
ȱȱǰȱȱȱ-
ÇęȱȱȱȱÇǰȱȱȱȱ³äȱÇȱȱ³¤ǰȱ£ȱȱ
ȱȱȱȱȱȱǰȱ·ȱȱę¤ǯȱȱ
alguns exemplos: GOUVÊA. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas
de implementação dos direitos prestacionais, passim (para a reserva do possível, p. 19-21);
BARCELLOS. ȱę¤ȱÇȱȱÇȱ: o princípio da dignidade da pes-
soa humana; SARLET. ȱę¤ȱȱȱ; CAPITANT. ȱěȱȱȱ
droits fondamentaux en Allemagne; GALDINO. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos
não nascem em árvores; GIMÉNEZ. La exigibilidad de los derechos sociales; TORRES. O direito
ao mínimo existencial; HOLMES; SUNSTEIN. The Cost of Rights: why our Liberties Depend on
Taxes; TAVEIRA. ³¨ȱȱę¤ȱȱȱ: a responsabilidade do Estado
na garantia dos direitos sociais.
¡ǰȱǰȱȱäǯȱ
¤ȱȱęȱȃ-
mento pragmático” a “argumento consequencialista”,97 e outros para quem
o “argumento pragmático” é um gênero do qual “argumento consequen-
cialista” é uma de suas espécies.98
Esta última posição, dentro do desenvolvimento teórico aqui pro-
posto, pode ser adotada, mas com restrição, pois o argumento consequen-
cialista é um argumento pragmático a menor, quer dizer, um argumento
pragmático incompleto, já que ausentes suas duas outras características.
Seja como for, não pretendemos gastar muita energia nesse tipo
de debate. A teoria jurídica brasileira não deve mergulhar em discussões
analíticas para além do útil.99 Uma coisa é usar o mesmo nome para desig-
nar duas realidades diferentes, o que é um equívoco e deve ser evitado,100
porque a confusão é deletéria não apenas à higidez dos conceitos, mas à
prática. Outra é usar vários nomes para se referir a idênticas realidades
— não é o ideal, mas essa criatividade doutrinária não causa problemas
ȱȱ¹ȱȱ¡£ǯȱǰȱęǰȱ·ȱȱȱ¹ȱ
para realidades muito próximas: talvez não corresponda a nenhuma utopia
ȱ¨ȱÇęǰȱǰȱǰȱ¨ȱȱȱęȱȱ-
zada em prol da pureza conceitual se o custo da transição for alto, ou se
o resultado prático for desprezível.
É o caso de se aplicar a máxima pragmática à questão: que diferença
vai fazer, ao mundo da aplicação do Direito, se as expressões “argumento
97
ȱ 1ȱȱȱȱÊȱǯȱȱę³¨ȱȱȃȱ¤Ȅȱ£ȱȱȱȱȱ
confunda com o argumento consequencialista: “Chamo de argumento pragmático um argumento
das conseqüências que avalia um ato, um acontecimento, uma regra ou qualquer outra coisa,
consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis; transfere-se assim todo o valor
destas, ou parte dele, para o que é considerado causa ou obstáculo” (PERELMAN. Retóricas,
ǯȱŗŗǰȱȱȱǼǯȱ¨ȱȱȱȱȱȱȱę³¨ȱȱȱ
apenas uma das características do pragmatismo, se bem que a mais destacada, que é o con-
ǯȱȱę³¨ȱȱȱ¤ȱ·ȱȱ·ǰȱȱȱȱȱ
elementos característicos da “matriz pragmatista”.
98
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridicaDZȱǰȱǯȱşŖǯȱȱęȱǰȱȱǰȱ
usa-se “argumentação orientada às consequências” (folgenorientierte Argumentation) em substitui-
ção a “argumento consequencialista” (consequentialist argumentǼǰȱ³¨ȱȬǯȱęǰȱ
ainda, que, embora “argumento pragmático” seja gênero do qual “argumento consequencialista”
é uma das espécies, na maioria das vezes utiliza-se, de modo indistinto, um pelo outro.
99
Comentando acerca de Paul Feyerabend, Virgílio Afonso da Silva anotou o seguinte (com o
itálico do original e o sublinhado adicionado): “A leitura do trabalho de Feyerabend é extre-
ȱ¤ǰȱȱȱǰȱȱȱȱȱęȱ
um pouco o papel da metodologia no progresso da ciência. Apesar de seus exageros — como
£ȱȱ¨ȱ¤ȱ³ȱȱȱȱȱȱÇęȱȯǰȱsuas provocações servem,
pelo menos, para evitar que o apego ao método sirva de escudo para que não sejam discutidos
problemas de conteúdo” (SILVA. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In:
SILVA (Org.). Interpretação constitucional, p. 139, nota de rodapé n. 79). A mencionada obra de
Feyerabend é seu clássico: Contra o método (São Paulo: UNESP, 2007).
100
Nesse sentido, ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱȱę³¨ȱ¥ȱ³¨ȱȱÇȱÇǯȱ
4. ed., passim.
101
ȱ ¨ȱ£ȱȱ¡¨ȱȃȱ¤Ȅȱȱ¤Ȭȱęȱȱȱ
realidades conotadas pelas expressões “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”.
102
Mesmo na advocacia preventiva, o raciocínio é o mesmo. Trata-se de adequar práticas, de modo
a evitar qualquer tipo de consequência negativa havida por parte das autoridades controladoras.
103
ȱ ȱ ȱ ȱ ¨ȱ ȱ ³¨ȱ ·ȱ ¡ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęǯȱ ȱ
dizer que ele se baseia na ideia de que o discurso jurídico seria um caso especial do discurso
prático geral, diferenciando-se desse por algumas características (a importância do precedente
e da norma jurídica). Assim como o discurso prático possui uma pretensão de correção moral,
que decorre de certos pressupostos advindos da comunicação entre as pessoas — quando
estabelecemos um diálogo, a comunicação só se torna possível porque há uma pressuposição de
que estejamos falando a verdade —, também isso valeria para o discurso prático em geral (que
é comunicação, só que de regras de agir) e, naturalmente, para o discurso jurídico, como caso
especial deste. O juiz pode até não fazer justiça no caso concreto, mas, segundo essa teoria, deve
ȱȱ£¹Ȭǯȱȱ³¨ȱȱȱȱǰȱȱȱȱęȱȱǰȱ
deixa de ser uma relação binária (“existe” ou “não existe”) e passa a ser um elemento condicional
(é objetivo a ser alcançado). Sobre pretensão de correção, consultar Robert Alexy (La tesis del caso
especial. Isegoría). Ainda, na doutrina brasileira, v. DUARTE. Teoria do discurso e correção normativa
do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito. Sobre o debate da relação entre
Direito e moral, v. VÁZQUEZ (Org.). Derecho y moral: ensayos sobre un debate contemporáneo.
104
Nesse sentido, trecho de voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal,
no Recurso Extraordinário nº 111.787, publicado no Diário de Justiça, 13 set. 1991 (RTJ, 136/1292):
“Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva
formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensá-
vel apoio, formalizá-la”. Em idêntico sentido, ver trecho de seu voto no RE nº 140.265-2, julgado
em 20.10.1992, DJ, 28 maio 1993. Conferir, ainda, a opinião do chanceler James Kent: “Eu vejo
para onde a justiça e o bom senso estão e, então, sento e procuro as autoridades até esgotar
meus livros; de vez em quando, surpreendo-me embaraçado por uma regra técnica, mas, quase
sempre, encontro princípios que se adaptam à minha visão daquele caso [...]” (KENT, James. An
ȱĴȱȱȱȱ
ǯ The Green Bag, p. 210 apud SCALIA; GARNER.
Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 27). Comparar também com trecho de artigo
do juiz Richard Posner, um dos maiores defensores do pragmatismo jurídico como teoria da
adjudicação, no qual relata a forma como decide os casos que tem diante de si: “O modo como
me aproximo de um caso como juiz [...] é, em primeiro lugar, perguntar a mim mesmo o que
seria um resultado razoável, de bom senso, tal como um leigo acharia e, havendo respondido a
essa questão, perguntar se tal resultado está claramente proibido pelo texto da Constituição ou
das leis, pela jurisprudência majoritária, ou por outra restrição atuante sobre a discricionarie-
dade judicial” (POSNER. Tap Dancing. The New Republic Online).
105
“O pragmatismo é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados” (GREY.
ȱ ȱ ȱ DZȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¢ǯȱ Southern California Law
Review, p. 1590).
106
Talvez, hoje, mais do que nunca, ao menos no que diz respeito à advocacia. Embora os dados
ȱęȱȱǰȱ¤ȱ¤ȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ·ȱȱ
ȱȱ¥ȱȱęȱȱȱȯȱȱøȱȱȱǰȱ
a cultura de que quem traz o cliente é o que vai receber a maior parte dos honorários, a maior
instabilidade na relação entre cliente e advogados, havendo sempre concorrência entre
todos os escritórios —, os advogados cada vez menos sejam capazes de negar pedidos ou
sugestões de seus contratantes. Desse modo, tornam-se pragmatistas-instrumentalistas não
ȱ ȱ ¨ȱ £ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¡ħȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
seus representados, mas porque vão fazer tudo o que for necessário para concretizar esses
mesmos interesses, incluindo manipular a lei e todos os argumentos possíveis, só parando
diante de ilegalidades ou inconstitucionalidades óbvias (sendo que até essas noções podem
ser generosamente estendidas). A noção de advogado devotado aos interesses do cliente, mas
também ao bem comum, capaz de rejeitar pretensões absurdas, é, cada vez mais, substituída
pela do advogado “engenheiro de argumentos jurídicos”, que vai fazer tudo o que for
¤ȱȱȱȱȱȯȱ·ȱǰȱȱ¨ȱȱę£ǰȱȱȱ¤ǯȱȱȱȱȱ
v. KISCHER, Robert K. Legal Advice as Moral Perspective. Georgetown Journal of Legal Ethics,
p. 223 et seq. Ler, ainda, Brian Z. Tamanaha (Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law,
p. 133-155. cap. 8 - Instrumentalism in the Legal Profession).
107
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 240.
108
SMITH. The Pursuit of Pragmatism. Yale Law Journal. Frank Cross, com algum exagero,
reputa-a “talvez a mais controversa de todas as teorias de interpretação de textos legislativos”
(The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 102).
109
ATIYAH. Pragmatism and Theory in English Law, p. 5.
110
FARBER. Legal Pragmatism and the Constitution. Minnesota Law Review.
111
ȱ
ǯȱȱȱȱȱ ȱȱDZȱȱȱȱȱ
ȱ
ǯȱNorthwestern University Law Review, p. 595.
112
LEITER. Rethinking Legal Realism: Toward a Naturalized Jurisprudence. Virginia Law Review,
p. 285-286.
113
ȱ ǯȱȱȁ¢ȱȱȬȂDZȱȱȱ
ǰȱǯǰȱȱǯȱIn:
MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: studies in Law and Social Science, p. 3-30.
114
LEAF. Pragmatic Legal Norms. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law
and Social Science, p. 73.
115
ȱ ȱȱǰȱǯȱ
ǯȱȱȱDZȱȱȱȁȱȱȱȱ Ȃȱȱǵǯ
American Journal of Jurisprudence.
116
GASCÓN ABELLÁN; GARCÍA FIGUEROA. La argumentación en el derecho, p. 49 et seq.;
ATIENZA. Teorias da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros;
ALEXY. Teoria da argumentação jurídicaDZȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ę-
cação jurídica; FERREIRA. Uma introdução à teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy;
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory.
117
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 24-56.
118
POSNER. The Problems of Jurisprudence, p. 73-74. Mesmo depois, Posner continuou defendendo
ȱ¨ȱ¡ȱȱ³ȱęȱȱȱ³¨ȱÇȱȱȱ-
³¨ȱ¤ȱȱDZȱȃǽǯǯǯǾȱ¨ȱ¤ȱȱȱÇȱÇęȱȱȱȱ
argumentação jurídica da argumentação prática em geral. Os juízes conhecem algumas coisas
ȱȱȱDzȱȱȱ¤ȱÇęDzȱȱȱȱ
apuradas, por exemplo, em relação aos valores do Estado de Direito. A educação jurídica não
é uma fraude, embora possa ser encurtada. E a prática jurídica é, também, um processo de
£³¨ȱȱȱęȱÇęǯȱȱ¨ȱ¤ȱ³ȱÇȱȱ-
mental entre como um juiz trata uma questão jurídica e como um homem de negócios trata
uma questão de administração ou de marketing” (POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy,
2003, p. 73).
119
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 49 et seq.
120
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
121
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64. Posner destaca que “todas as variá-
ȱ Ȅȱ ¨ȱ ęȱ ȃȱ ȱ ¤ȱ ÇȄǯȱ
¤ȱ ¹ȱ ǰȱ ȱ
razões práticas — as limitações de disponibilidade de informação relativas aos juízes — ou
ȱȱȱęȱȱ£ǰȱȱȱȱjustice
Holmes, que, ao conceituar o juiz pragmático como aquele que coloca a
¡¹ȱȱȱȱàǰȱęȱȱǰȱȱȱȱȱ-
são, “as necessidades do momento presente, as teorias morais e políticas
dominantes, intuições sobre políticas públicas, até mesmo os preconceitos
que os juízes compartilham com seus companheiros”.122
Logo se vê que o juízo de razoabilidade de Posner é uma espécie de
recomendação para que os juízes, ao decidirem, levem em consideração
toda espécie de fator — institucional ou não — capaz de contribuir para
uma decisão segura e “justa”. Possui muito pouco em comum com o uso
na doutrina brasileira do termo, onde, como “princípio da razoabilidade”,
aparece ora como sinônimo do teste da proporcionalidade, ora como sinô-
nimo para “proibição de situações absurdas”.123
ȱ¨ȱȱȱȱȱȱ¡ęȱȱ-
quencialismo utilitarista, pois o standard adotado é “aquilo que é razoável”,
e não “as mais úteis consequências para a obtenção de algo”. Claro que sua
versão do pragmatismo jurídico aproxima-se mais do consequencialismo-
utilitarismo do que das moralidades deontológicas, mas há distinções.
Numa hipótese em que, com base na violação à liberdade de autodeter-
minação, questione-se a constitucionalidade de lei que proíba o incesto a
casais adultos estéreis, um utilitarista poderia concordar com o argumento
ȯȱęǰȱȱ³¨ȱ¨ȱȱøȱȱȱǰȱȱȱ
restringiria a felicidade do casal. Todavia, um pragmatista posneriano,
atento ao horror ao incesto presente na sociedade americana, e às possíveis
consequências sociais deletérias de tal invalidação, defenderia a validade
da norma.124
Há aspecto no pragmatismo jurídico de Posner que, de certa forma,
faz com que seja teoria mais palatável a espíritos formalistas como os nos-
sos, inseridos na tradição romano-germânica:125 o de que a autoridade, ao
decidir, deve levar em consideração consequências não apenas casuísticas
126
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 61.
127
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151. Posner acredita que a adoção do formalismo
como estratégia pragmática, embora possível, não seja comum na Suprema Corte dos Estados
Unidos, por conta da tradição da Common Law e da própria força do órgão. Os incentivos em
favor do formalismo seriam mínimos: a Corte seria chamada a resolver muitos problemas para
os quais a Constituição americana não ofereceria virtualmente nenhum auxílio e não existiria
qualquer pressão advinda do risco de ter seu pronunciamento revertido por cortes superiores.
O órgão seria bastante livre para ser diretamente pragmatista (POSNER. Law, Pragmatism, and
Democracy, 2003, p. 64). É importante levantar o ponto sobre se o nosso STF também não seria,
por essas próprias razões, instância propícia para a adoção do pragmatismo vis-à-vis o formalismo
(v. discussão à frente).
128
ȱ ȱȱȱȱÇȱȱȱȱȱǻǀĴDZȦȦ ǯǯǯǁǼǰȱàȱȱŘŖŖŞȱȱ
julgados 45.136 recursos extraordinários. Somando-se a isso os 73.915 agravos de instrumento,
que, em regra, são tirados de decisões denegatórias de seguimento desses mesmos recursos
extraordinários por parte dos tribunais locais (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais
Ǽǰȱęȱ¤ȱȱȱ³¨ȱȱ£ȱȱȱȱȱȱ-
das a serem apreciadas e julgadas.
129
Enunciado nº 287 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF: “É inadmissível o recurso
extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.
Ainda, Enunciado nº 356: “O ponto omisso da decisão sobre o qual não foram opostos
embargos declaratórios não pode ser objeto de recurso extraordinário por faltar o requisito do
prequestionamento”.
130
Sobre tais requisitos, ver, por todos, Rodolfo de Camargo Mancuso (Recurso Extraordinário e
Recurso Especial). Posteriormente, o próprio legislador brasileiro encampou a ideia, ao criar, por
exemplo, a repercussão especial para a admissibilidade de RE. O exemplo de Posner, embora
parecido, parte de uma preocupação pragmática mais consistente (ainda que a preocupação
ȱȯȱ¨ȱȱȱȱȱ¤ȱȱȱęǰȱȱ
tempo de julgamento das demandas realmente importantes — seja, também, louvável): o
autor menciona que as cortes federais americanas criam uma série de requisitos formais (“às
£ȱȱ¤ȄǰȱȱǼȱȱȱęȱȱȱ³äȱȱ
do Judiciário nos assuntos da nação. “Nada é mais antipragmático para uma corte do que
declarar que um programa é inconstitucional ou ilegal antes que ele tenha tido a chance de
entrar em prática e provar seu valor (ou sua falta de) de modo empírico, ao invés de por
especulação” (Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151).
131
“A distinção é importante porque não existe conexão necessária entre teoria e metateoria.
Mesmo se o pragmatismo for a melhor teoria, pode não ser a melhor metateoria; e, mesmo se o
ȱȱȱȱǰȱȱ¨ȱȱȱȱȄȱǻ ǰȱǯȱȱ
and Consequentialism. Columbia University – Law School, p. 4). Ainda: “Essencialmente, o prag-
ȱ·ȱȱǯȱǽǯǯǯǾȱȱ·ȱęȱȱęȱȱȱȱȱ-
mativa — desde que essa teoria normativa produza as melhores consequências possíveis” (p. 5).
ȃȱǰȱ¨ȱ·ȱȱȱęȱȱȱȱ·ǰȱǰȱȱǯȱ
Na doutrina, o pragmatismo é comumente indicado como uma teoria normativa”. Em outro
ǰȱǰȱǰȱęȱȱȱȱ·ȱȱȱȱ-
tiva, pois, mesmo quando se está sendo textualista por razões pragmáticas, no fundo está-se
adotando o pragmatismo, p. 6. Em nossa opinião, não há predominância de nenhum aspecto. O
pragmatismo pode ser tanto uma coisa quanto outra. A respeito da estratégia das “decisões de
segunda ordem” — decisões sobre qual é o melhor critério a ser adotado na hora de decidir —,
tanto no Direito quanto na vida prática em geral, desenvolver em Cass Sunstein e Edna Ullman-
Margarit (Second order-decisions. University of Chicago Law School, Public Law and Legal Theory).
132
Ainda voltaremos ao assunto. Alguns artigos e livros que defendem tal perspectiva, na doutrina
nacional e estrangeira: ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da
decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49; SUNSTEIN. Must Formalism
be Defended Empirically?. University of Chicago, John M. Olin Law & Economics; SUNSTEIN;
VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law Research Paper;
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation. Para
uma visão crítica do discurso das capacidades institucionais no Brasil, cf. ARGUELHES;
LEAL. O argumento das “capacidades institucionais”: entre a banalidade, a redundância e o
absurdo. Revista Direito, Estado e Sociedade.
133
“O pragmatismo jurídico não possui um conteúdo ideológico em si mesmo. Apoia-se na
teoria dos jogos, na Ciência Política e em outras ciências sociais, mais do que em determinadas
preferências ideológicas” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84). Há quem
critique a teoria por uma suposta proximidade ao capitalismo liberal. Não só contra o
pragmatismo jurídico, não só contra o pragmatismo jurídico de Posner: essa crítica também
é comum em relação às éticas consequencialistas e utilitaristas em geral. V. SAPHIRO. The
Flight from Reality in the Human Sciences, p. 100-151, especialmente p. 149-151 - “Ideological
Implications of Posner’s View”.
134
ȱ ȱ £¨ǰȱ ȱ ȱ ȱ ·ȱ DZȱ ȃȱ ę¤ȱ ȱ ȱ ³¨ȱ ȱ
contexto depende, portanto e necessariamente, dos recursos conceituais e metodológicos das
Ciências Sociais: cabe sempre ao operador do Direito, sob a ótica do pragmatismo jurídico,
realizar o importante trabalho de descrever o contexto a partir de uma pesquisa empiricamente
orientada, para decifrar com conceitos aplicáveis à realidade social os seus determinantes e seus
ȱę¤ȄȱǻȱȱȱȱȱÇǯȱIn: FILOSOFIA e teoria do direito).
135
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80.
136
Em rigor, a defesa da ideia de razoabilidade como aceitabilidade racional, trazida por Aarnio,
é mais demandante do que o sentido descrito. Em nosso favor, diga-se que, dentre as várias
teorias da razoabilidade, a de Aarnio é uma das que mais se aproxima da razoabilidade em
sentido loose, “solto”, defendida por Posner. Desenvolver em Aulis Aarnio (Lo racional como
razoableDZȱȱȱȱȱęàȱÇǼǯ
137
BARBER; FLEMING Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186. Como prova do
tradicionalismo da proposta, basta ver que, já em 1935, Felix Cohen defendia uma ciência jurí-
dica livre do “nonsenseȱȄȱęȱȱȱ£ȱȱȱȱäȱ
etéreas. A doutrina deveria se dedicar à discussão de casos e à realidade comportamental, eco-
nômica e psicológica da administração da justiça (Transcendental Nonsense and the Functional
Approach. Columbia Law ReviewǰȱǯȱŞŖşȬŞŚşǼǯȱȱǰȱ¤ǰȱȱȱ£ȱȱ¥ȱę-
mação de Rorty (e de outros) de que, mercê de sua ampla difusão, haver-se-ia tornado banal.
Ver RORTY. The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice. InDZȱDzȱȱǻǯǼǯȱ
Pragmatism in Law and SocietyǰȱǯȱŞşȬşŝǯȱȱȱǰȱ£ȱȱȃȱȄȱàȱęǰȱ
realmente, sua vagueza. Assim, CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 104.
138
SCHAUER. Formalism. Yale Law Journal, p. 509 et seq. Para uma apresentação do tema na dou-
trina brasileira, ver o verbete “formalismo”, escrito por Noel Struchiner (In: BARRETO (Org.).
¤ȱȱęęȱȱ, p. 363-366).
139
Há outro sentido no qual o pragmatismo de Posner é antiformalista. É que tal pragmatismo
não é um complemento ao positivismo jurídico de Hart. Este defendia, forte na experiência do
Direito inglês, que, em casos fáceis, incluídos dentro da zona de certeza positiva da linguagem
jurídica, a aplicação seria meramente subsuntiva: o juiz, pura e simplesmente, aplicaria o que
está escrito. Já nos casos difíceis, inseridos dentro da área cinzenta de certeza da linguagem, o
juiz haveria que agir como se legislador fosse, formulando norma e a aplicando ao caso. Por isso,
muitos poderiam imaginar que o pragmatismo jurídico de Posner servisse para complementar,
na parte em que o juiz é livre, o positivismo de Hart. Só que Posner não pensa como Hart. Não
acredita que os juízes, ordinariamente, coloquem seus chapéus de legisladores nos momentos
de incerteza e recoloquem suas capas de juízes nas horas de certeza da linguagem. A explicação
Ȭȱęȱǻȱȱȱȱȱȱȱȱȱ¤ȱȱ
agir como legisladores, quando técnicas e condições de atuação são completamente distintas),
sendo certo que ele busca com sua teoria pragmática da adjudicação uma proposta útil porque
realista. Além disso, não existiriam lacunas no Direito porque este não é uma coisa, é uma
atividade: a atividade diária dos juízes e demais autoridades públicas. Aplicar e criar o Direito
são momentos simultâneos e essencialmente indistintos. Sem falar que há muitas outras
zonas de incerteza para o Direito além da linguagem; e as zonas de certeza não são, de fato,
assim tão certas. Muito embora seja sensato aderir, em casos em que as consequências não são
ȱȱàęǰȱȱęȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
expectativas e de manter a linguagem legal como forma de comunicação jurídica, isso se dá
— diz Posner — por razões pragmáticas. A teoria de Posner quer que sempre os juízes ajam
de modo pragmático. Suas propostas não são complementares, sequer compatíveis, com o
positivismo hartiano (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80-82). Para a visão
de Hart, v. STRUCHINER. Direito e linguagem: uma análise da textura aberta da linguagem e
sua aplicação ao direito. Ainda, o capítulo clássico em Hart (O conceito de direito, p. 137-168).
140
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80. A vindicação de decisões judiciais mais
restritas é desenvolvida em Cass Sunstein (One Case at a Time: Judicial Minimalism on the
Supreme Court).
141
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 75.
142
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 74. Exemplo do tratamento expressamente
rejeitado por Posner vem com o livro de Ronald Dworkin Life’s Dominion de 2003.
143
“É a arte de defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível,
o que a obriga a passar por ‘noções comuns’, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que
cada um pode encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria menos cientí-
ęȱȱȱ¡ȱȱÇęȄȱǻǯȱIntrodução à retórica, p. 27).
144
SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 26 et seq.
145
“Questões jurídicas difíceis tendem a não possuir respostas ‘certas’ no sentido que Platão
aprovaria. Em vez disso, elas possuem respostas melhores ou piores — e muitas vezes não é
claro qual é qual. Essas incertezas chegam a seu apogeu em certos casos nos quais os juízes
enfrentam o desconhecido em cima de um abismo para o qual não possuem nenhum dos ma-
teriais necessários para a travessia. Nesses casos, diante dessas descontinuidades, um insight
ǰȱ ¡ȱ ȱ ȱ Çǰȱ ȱ Ěȱ ȱ ȱ ȱ ȯȱ £ȱ
seja, apenas, um tiro no escuro —, pode desempenhar adequadamente um papel no desenvol-
vimento do Direito. Talvez seja a melhor coisa que se possa fazer” (POSNER. Law, Pragmatism
and Democracy, 2003, p. 83).
146
O realismo jurídico é o designativo de duas linhas de pensamento — uma americana e outra
advinda da Europa do Norte, especialmente da Escandinávia — que advogavam a quintes-
sencial indeterminação do Direito e, a partir daí, a ideia de que o Direito se constituiria nas
decisões judiciais e nas atividades administrativas em concreto. O realismo ainda defendia o
ȱȱȱǯȱǰȱȱȱȱȱǰȱę-
mavam que as autoridades decidiriam antes os casos — a partir de seu senso interior de Justiça
ou, segundo alguns, com base em sua intuição ou instinto (numa tradução para guts) — e,
ǰȱȱ£äȱÇȱȱǯȱȬȱȱȱȱȱę-
mado que a decisão judicial poderia ser determinada pelo que o juiz comeu no café da manhã.
Como representativo da corrente europeia do realismo, numa vertente lógica, ver o clássico de
Alf Ross (Direito e justiça). Ainda, num interessante estudo dos conceitos fundamentais da lin-
guagem jurídica — “direito subjetivo”, “obrigação”, “dever” etc. —, caracterizando-os como
originários da linguagem da magia e essencialmente vazios, desempenhando função emotiva
(conclamar para a ação) e técnica, ver Karl Olivecrona (Lenguaje jurídico y realidade). Na ver-
ȱȬǰȱ¤ȱȱȱȱȱȱȱÇȱȱȱ£ȱȱȱ
Holmes — mais uma vez, a proximidade entre realismo e pragmatismo jurídico é clara, porque
tantos outros tratam Holmes como pragmatista jurídico seminal —, enquanto outros veem
na sociologia jurídica de Pound traços do realismo. Mais recentemente, Karl Llewellyn e Felix
Cohen são nomes de destaque. V. POSNER; HOLMES (Ed.). The Essential Holmes: Selections
ȱ Ĵǰȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
ǰȱ
Jr.; POUND. An Introduction to the Philosophy of LawDzȱ ǯȱ Jurisprudence: Realism
in Theory and Practice; COHEN. Transcendental Nonsense and the Functional Approach.
Columbia Law Review, p. 809-849; LEITER. Naturalizing Jurisprudence: Essays on American Legal
Realism and Naturalism in Legal Philosophy. Boa apresentação está em Michael Steven Green
(Legal Realism as Theory of Law. William and Mary Law Review). Na literatura nacional, v.
FONTES. Aspectos do realismo jurídico. Justiça & Cidadania.
147
O movimento dos critical legal studies seria, segundo alguns, uma derivação do realismo jurí-
dico de base mais política. Com ele, compartilharia a ideia de que normas e precedentes não
determinariam o Direito. Ao contrário do realismo, no entanto, os estudos críticos acreditariam
que o Direito seria, na verdade, política (Law is politics) e que, de modo geral, prestar-se-ia a ser
instrumentalizado pelas classes economicamente dominantes com o propósito da manutenção
do status quo. Sendo assim, nada impediria — de fato, haveria muitos estímulos — que fosse
tomado por operadores politicamente conscientes em prol da mudança social. Diferentemente
do realismo jurídico, os critical legal studies adquiriram certa projeção na doutrina brasileira dos
anos sessenta e setenta, embora, hoje, já não possuam tanta força nem nos EUA nem no Brasil.
Por todos, Mark Kelman (A Guide to Critical Legal Studies). No Brasil, resumindo o histórico
do movimento, mas adotando tom crítico — imaginar que o Direito se iguala à política aca-
baria negando efetividade ao Direito —, ver a primeira parte da obra de Paulo Ricardo Schier
(SCHIER. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
148
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84.
149
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 32 et seq.
150
ȱ ȱ ȱ Çȱ ȱ ǰȱ ȱ ęȱ ¤ȱ ǰȱ ¨ȱ ȱ ę-
mente pragmático, tal como o entenderia, digamos, John Dewey. V. SULLIVAN; SOLOVE. Can
Pragmatism be Radical?: Richard Posner and Legal Pragmatism. Yale Law Journal. Algumas linhas
merecem ser ditas a esse respeito. A teoria de Posner prefere deixar que a sociedade experimente
antes de tomar partido (judicial) a respeito das questões. “Um dos valores do pragmatismo é seu
ȱȱȱ¡ȱ¤ȱȱȱȱȱȱȱȱęȱȱȱȱ
³¨ȱDzȱǰȱǰȱȱȱ¤ȱȱȱÇȱ·ȱȱȱęȱȱ¹ǰȱ
preserve caminhos de mudança, não agite desnecessariamente as águas políticas”. Sob tal pers-
pectiva, o pragmatismo jurídico de Posner é pouco ativista — justamente o contrário da tônica
principal das críticas — e, de certa forma, política e socialmente conservador. Nem sempre, con-
tudo, não intervir corresponde a manter as coisas como estão. A sociedade pode estar mudando,
e a intervenção judicial servir de veículo ao conservadorismo econômico ou social (por exemplo,
a Suprema Corte americana contemporânea ao New Deal era economicamente conservadora e
ȱǼǯȱȱȱǰȱȱȱȱȱȱȱęàęǰȱȱ
especial com Dewey, seja progressista, não é por isso que o pragmatismo jurídico precisará o ser.
ȱȱ³¨ȱȱǰȱǯȱǯȱȱȱȱȱěȱ ǵǯȱIn: BRINT;
ȱǻǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 42.
151
A proposta estimularia a pobreza intelectual por reduzir as decisões judiciais e administrativas
ao critério “daquilo que é melhor naquele caso”. Uma espécie de eterno juízo de equidade,
sem que as autoridades precisassem sequer saber nada sobre dogmática jurídica, preceden-
tes e comandos normativos. É crítica injusta. O pragmatismo jurídico não é um decisionismo
desarvorado. É preciso conhecer a doutrina, os precedentes e a legislação para saber como
utilizá-los pragmaticamente. De resto, ao estimular a interdisciplinaridade, o julgador prag-
matista será obrigado a estudar muitas outras disciplinas além daquelas a que estaria acostu-
mado. Nesse sentido, então, o pragmatismo estimula — não empobrece — a intelectualidade
dos aplicadores do Direito. V. POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94-95.
152
KENNEDY. Pragmatism as a Philosophy of Law.ȱĴȱ ȱ , p. 72-73.
153
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94.
154
“O pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de
que elas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque alguma
³¨ȱȱǰȱȱȱȱȱęȱȱÇ£ȱȱȱȱȱ
ȱȱȱȄȱǻ
ǯȱO império do direito, p. 186).
155
Já que se teria o pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação de fundo mesmo quando se
adotasse o formalismo.
156
Em diversos momentos, é o que dá a entender o próprio Richard Posner. Quando, por exemplo,
conceitua seu pragmatismo jurídico tendo por base especialmente as decisões pragmáticas
aplicadas aos casos difíceis; quando menciona que o pragmatismo não é sempre nem em todo
lugar a melhor estratégia de adjudicação; quando denota o valor social da expectativa criada
ȱȱȱȱȱDzȱȱDZȱȃȱȱ£ȱęȱȱ³¨ȱ
legislativa das consequências? [...] Minha resposta é que apenas em casos extremos o juiz estará
autorizado a abandonar o julgamento legislativo. Porque a circunstância de os juízes abrirem uma
guerrilha contra os legisladores e as cortes superiores é desestabilizadora e, em geral, uma má
coisa, embora não seja sempre algo pior do que a alternativa” (POSNER. Law, Pragmatism and
Democracy, 2003, p. 71, grifos nossos; o segundo itálico está no texto original). Em outro livro,
ęȱȱȱDZȱȃȱȱȱ·ȱȱȱȱȱȱ£ȱȱ³¨ȱ
jurídica requer que o juiz se mantenha bastante próximo ao texto da lei e ao precedente judicial
na maioria dos casos, agindo, na maior parte do tempo, pelo menos, como um formalista”
(POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 209).
157
CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
158
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 115.
159
Para uma visão geral da teoria do Direito como integridade e da ideia de leitura moral da
Constituição, ver introdução de Ronald Dworkin (Freedom’s Law: the Moral Reading of the
ȱǰȱǯȱŗȬřŞǼǯȱ
¤ȱ¨ȱȱȱȱ¨ȱę³¨ȱȱ ȱȱ-
matismo jurídico, em que pese sua crítica expressa ao movimento. Quem crê nisso parte de
ȱę³¨ȱȱȱȱȱȱȱÇǯȱ1ȱȱȱ£ǰȱȱ¡-
plo, Thomas Grey, ao entender como pragmatistas duas linhas teóricas, a “teoria dos interes-
ses” (tradução aproximada de policy jurisprudence) e a moderna teoria dos direitos. Ambas
ultrapassam o texto legal na defesa de seus respectivos objetivos. No caso da primeira (a “teo-
ȱȱȄǼǰȱȱȱȱ¹ȱǰȱȱǰȱę¹ȱǯǰȱ
sendo seu mais destacado exemplo a própria teoria de Richard Posner. A outra (a moderna
teoria dos direitos) supera o texto legal em favor da defesa e da promoção de direitos morais,
como seria o caso da proposta de Dworkin. Ao lado desse pragmatismo estaria o formalismo,
ȱȱȱȱęȱ¥ȱȱÇDZȱȱȱȱȱȱȱȱ
regras e de princípios objetivos capazes de controlar as decisões daqueles que pretendem ser
ȱȱę·ȱǻ ǯȱȱ ȱȱǯȱStanford Public Law and Legal Theory
Working Series, p. 5 et seq.). Cf. também a opinião de Margaret Jane Radin, para quem o juiz
Hércules, de Dworkin, aquela entidade contrafática que ele imagina como o ideal de julgador
(inatingível, mas que serve como princípio regulador da prática judicial), dotado de tempo
ȱ ȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ Çȱ ȱ ȱ ¥ȱ à-
ses concretas e chegar sempre à resposta correta, mesmo e especialmente em casos difíceis,
é um pragmatista, já que está comprometido com a construção de sentido por intermédio de
eventos concretos (adequação e coerência institucional), ao invés de apelar a um ideal abs-
trato de verdade ou de justiça (The pragmatist and the feminist. InDZȱDzȱȱǻǯǼǯȱ
Pragmatism in Law and Society, p. 146 et seq.). Já Richard Rorty acredita que não seja necessário
alargar muito o sentido de “pragmatista” para acomodar, juntos, Dworkin e Posner, dada a
banalidade que assola o pragmatismo (The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice.
InDZȱDzȱȱǻǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 90). Ver, por outro lado, a opinião
ȱ ¢ȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ ęȱ não é um pragmatista jurídi-
co, sendo determinante para tal afastamento o papel da Moral e da História em sua teoria.
Enquanto, na concepção de Direito como integridade de Dworkin, seus famosos princípios
são o elo de conexão entre o Direito e a Moral, tida como elemento central da adjudicação, o
pragmatismo preocupa-se antes de tudo com a Política (entendida em sentido amplo). Além
disso, a teoria de Dworkin seria atenta e reverente aos precedentes (o juiz Hércules é entidade
que olha para trás ao propor algo novo); mesmo a ideia de interpretação do Direito como
redação de um capítulo numa novela seriada (chain novel) é noção sensível ao precedente
ȱ¥ȱàȱȱäȱǻȬǰȱęǰȱȱȱnovo capítulo dentro de um mesmo seriado),
ȱ ȱ ȱ ·ǰȱ ȱ ę³¨ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ¤¡ǰȱ
vê a adesão ao passado como estratégia de preservação de expectativas (POGREBINSCHI.
Dworkin e o Pragmatismo Jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do direito). Esta discussão está
ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǻȱ ȱ ǻǼȱ ȱ
normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 4, nota de rodapé
ǯȱşǼǯȱęȱȱȱȱȱȱȱ ǰȱǯȱǯȱJuízes & casos difí-
ceis: o pragmatismo de Richard Posner e a crítica de Ronald Dworkin.
160
Contrastar com a ideia de que também a teoria de Dworkin só se aplicaria a casos especiais. Na
ȱȱ£ǰȱȱ£ȱ¨ȱȱȱȱȱę³äȱàǯȱȱȱ
“não precisará procurar mais em nossos argumentos interpretativos do que nos textos legais
ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ àȱ ȱ ¨Ȅȱ ǻ
ǯȱ Justice in
Robes, p. 54).
161
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 96. Ainda, POSNER. Legal Pragmatism.
Metaphilosophy, p. 155.
162
CRAVEN JR. Paean to Pragmatism. North Carolina Law Review, p. 977.
163
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 95-96.
164
Em homenagem ao contraditório, vejam-se, no entanto, alguns comentários críticos de
ȱȱȱȱȱȱȱȱȱ·ȱȱǯȱȱȱęȱ
que se trata de algo implausível, Dworkin alega que “o pragmatismo só pode ser resgatado
como uma boa explicação de nossa imagem transversal da decisão judicial por meio de um
mecanismo procustiano que parece extremamente inadequado. Só pode ser resgatado se não
tomarmos as opiniões judiciais em seu sentido literal; precisamos tratar todos os juízes que se
preocupam com leis e precedentes problemáticos como se praticassem uma forma imotivada
de impostura. Devemos vê-los como se inventassem novas regras para o futuro de acordo
com suas próprias convicções sobre o que é melhor para a sociedade como um todo, livres de
quaisquer pretensos direitos que decorreriam da coerência com a jurisprudência, mas apre-
sentando-as, por razões desconhecidas, sob a falsa aparência de regras extraídas do passado”
ǻ
ǯȱO império do direito, p. 194). Nas páginas seguintes, Dworkin defende a coerência
judicial por si mesma, não por qualquer valor instrumental, como derivação do princípio da
integridade, entendido este como o dever de tratamento de todos os indivíduos, por parte do
Estado, como agentes morais dignos de igual respeito e de consideração, o que inclui tratá-los
conforme a um conjunto único e coerente de princípios, e não consoante o que entende como
opiniões circunstanciais dos juízes.
165
ȱ
ǯȱO império do direito, passim.
166
No entanto, leia-se, ainda uma vez, a crítica de Dworkin: “É uma tentativa ousada de unir o
pragmatismo e o convencionalismo. Faz do pragmatismo o conteúdo de uma vasta e abrangente
convenção segundo a qual os juízes devem decidir seus casos de maneira pragmática. Uma vez
que, na melhor das hipóteses, o convencionalismo não é uma concepção de Direito mais po-
ȱȱȱȱǰȱȱȱęȱȱȱ³¨ȱȱøǯȱ
De qualquer modo, porém, esse casamento é uma farsa”. O autor norte-americano explica os
motivos da farsa: “Não é verdade que norte-americanos e ingleses, por exemplo, concordaram
tacitamente em delegar o poder legislativo aos juízes dessa maneira. [...] Já vimos que, assim,
ęȱȱ¡ȱȱ³ȱȱȱ¤ȱȱȯȱȱȱȱȱÇ£ȱȱ
com relação às leis e aos precedentes nos casos difíceis [...]. Não existe, sem dúvida, uma con-
venção que permita aos juízes adaptar seus pontos de vista sobre os direitos das partes a razões
puramente estratégicas. Pelo contrário, como observamos no começo deste livro, a maioria das
ȱȱȱȱÇ£ȱȱȱȱȱ¨ȱȄȱǻ
ǯȱO império do
direito, p. 196).
167
A respeito do tema, conferir, CROSS; LINDQQUIST. Measuring Judicial Activism.
168
ȱ
ǯȱLevando os direitos a sério, p. VII-VIII. Ainda, CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
In: A TESE dos direitos.
169
Para Dworkin, os princípios, em sentido amplo, dividem-se em princípios em sentido estrito —
que dão origens a direitos — e policies (traduzido como “políticas” ou “diretrizes políticas”) —
ȱȱęȱȱȱȱøǰȱ¹ȱǰȱȱ¡ȱ
etc. Os argumentos de princípio sempre preferem aos argumentos de política. Vale dizer que
as conveniências públicas não suplantam as exigências de justiça, moralidade ou equidade
nas quais se radicam os direitos. É nessa primazia dos argumentos de princípio que reside seu
ȱǻ
ǯȱLevando os direitos a sério, p. 128 et seq.). Também SOUZA NETO.
Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, p. 225-228.
170
CHIASSONI. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative,
p. 620.
171
ȱ
ǯȱJustice in Robes, p. 59.
172
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 84.
173
ȱ
ǯȱJustice in Robes, p. 24, 64-65.
174
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 3.
175
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 5. Também
Richard Epstein: “Existem tantos graus de liberdade no modo pragmatista de pensar que, ao
ȱ ǰȱ ȱ ¨ȱ ęȱ Ȅȱ ǻǯȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ
University of Chicago Law Review, p. 639-650).
176
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 8.
177
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 7.
178
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 122. Daí, inclusive, a sugestão de
ȱȱȱȱ³¨ȱȱȱ¤ȱęǰȱȱȱȱäȱ¹ǯȱ
“Tal Judiciário é mais representativo e suas decisões irão obter, portanto, maior aceitação
ȱȱęȱȱȱȱȱȱȱȱȄȱǻǯȱLaw,
Pragmatism and Democracy, p. 120).
179
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 86 et
seq. chap. 4 - Judicial Capacities: a Case Study.
180
SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law
Research Paper.
181
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 125. Posner pretende ver compro-
vação das virtudes do pragmatismo jurídico no sucesso econômico dos países da Common Law
em relação aos da Civil Law. Naqueles, os juízes agem de modo menos amarrado a scripts, ao
passo que, por formação e tradição, os juízes da Civil Law são mais formalistas. Em nossa opi-
nião, não é boa prova. O sucesso econômico depende de uma miríade de fatores que podem
nada ter a ver com o grau de formalismo jurídico dos países. V. POSNER. Law, Pragmatism and
Democracy, p. 95-96.
182
A questão do pragmatismo jurídico consiste em saber se a teoria é a mais útil ou, ao menos, com-
parativamente mais útil do que sua principal rival, o formalismo jurídico. Questão a ela ligada é
ȱȱȱȱÇȱȯȱȱȱ¨ȱȱȱȯȱĚȱȱ¤ȱȱ³¨ǯȱ
As respostas a essas perguntas, até aqui, têm sido desanimadoras para os teóricos do Direito,
ȱȱȱĚ¹ȱ·ȱȱȱȱȱǯȱȬǰȱȱ¡ǰȱȱȱȱȱ
Farber, que selecionou quatro decisões julgadas por Richard Posner e Frank Easterbrook, na mes-
ma corte, em ocasiões em que houve dissenso entre os dois julgadores. Posner é um dos grandes
defensores do pragmatismo jurídico. Easterbrook, por sua vez, além de juiz, é teórico defensor
do formalismo como critério de adjudicação. No entanto, e de modo contrário ao que fariam crer
seus posicionamentos teóricos, ambos os juízes, na prática, souberam transitar, ao sabor de cada
caso, por posições que se aproximavam, ora do pragmatismo, ora do formalismo. Não havia, in
concreto, nenhuma consistência em relação às teorias que professavam. V. FARBER. Do Theories
ȱ¢ȱȱĴǵDZȱȱȱ¢ǯȱNorthwestern University Law Review, p. 1409 et
seq. Estudo mais recente comprovou que o formalismo teórico de Antonin Scalia, juiz da Suprema
Corte americana, não se projetava em sua prática como justice, que se baseava nos mesmos
métodos que os demais juízes (nesses métodos estavam incluídas técnicas como a análise dos
àȱȱǰȱȱÇȱȱǼǯȱǯȱ ǯȱȱȱȱǰȱȱȱȱ¢DZȱȱ
Empirical Investigation of Justice Scalia’s Ordinary Meaning Method of Statutory Interpretation.
University of San Diego Legal Research Papers.
183
ȱ ǯȱ¢ȱȱ
ȱȱȱȱȱ
¢ȱ¢ǯ Harvard Law Review,
passim.
184
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 11-12.
185
ȱ
ǰȱ ǯȱ The transformation of American Law, 1780-1860. Cambridge: Harvard
University Press, 1977, p. 1 apud TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of
Law, p. 24.
186
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 60-76.
187
Duas semanas e meia após ser reeleito por histórica maioria de votos, Franklin Delano Roosevelt
apresentou projeto de lei que criaria uma vaga adicional para cada juiz do Judiciário federal
com mais de setenta anos. A intenção declarada era a de acelerar o julgamento dos processos.
A capacidade de oposição da Suprema Corte aos projetos de lei advindos do New Deal restaria
não sendo aprovado. Alguns contestam a ideia de que teria havido reação
de temor por parte da Suprema Corte — talvez ela já estivesse mudando
sua opinião quanto à possibilidade de intervenção do Estado na econo-
mia188 —, mas o que importa é a percepção pública de que o Direito era
um instrumento nas mãos de um grupo de juízes, políticos, empresários,
partidos, associações.
ȱęȱȱDZ
O ponto crítico foi a quase universal percepção de que a pressão externa na
Corte realizou o truque. A mensagem mais profunda aos observadores, a
partir desse evento, foi a de que a interpretação judicial da Constituição era,
para além de qualquer dúvida, produto das visões de juízes individuais, e isso
ęȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱ
realistas jurídicos juntos. [...] Os juízes da Suprema Corte não poderiam,
ȱ ȱ ȱ ¨ǰȱ ęǰȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ
meramente pronunciando as palavras da Constituição.189
virtualmente neutralizada porque, embora isso não haja sido dito em nenhum momento, era
óbvio que as indicações caberiam ao presidente eleito, que conseguiria maioria a partir de seus
indicados.
188
ȱ
ǯȱȱȱȱȱ ȱDZȱȱȦ¡ȱǯȱ
189
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 80-81.
190
A análise econômica do Direito, conhecida em inglês pelo termo Law and Economics, é movi-
mento que, surgido em meados do século passado, pressupõe que os indivíduos envolvidos
com o Direito ajam como maximizadores racionais de satisfações. Há duas assertivas básicas,
uma descritiva — o Direito funcionaria com o propósito de aumentar a riqueza, ou seja, as
normas e práticas jurídicas pretenderiam facilitar a atribuição de bens, valores e serviços a
quem mais os valorizasse —, outra, prescritiva — o Direito deve funcionar assim. O movimento
ęȱȱ³äȱȱȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
ocidentais contemporâneas perceberiam as funções públicas de modo utilitarista, sendo certo
que a maximização de riqueza seria forma de concretizar tal percepção. No mundo atual,
ȱȱȱȱęǰȱ¡£ȱȱ£ȱȱ³¨ȱȱȱȱȱ
ȱȱȱøȱęȱȱȱǯȱȱȱȱÇDZȱȱȱȱę¹ȱ
¨ȱ·ȱȱȱȱȱøȱęȱȱDzȱ¤ȱȱ·ȱȱȱȱ
detrás de suas propostas; a teoria não daria devida atenção a questões de justiça distributiva; a
¤ȱâȱȱȱȱȱ³äȱ¤ȱȱęȱǻȱ
a associação do comportamento humano à de um maximizador racional), chegando a resulta-
dos pouco úteis; os cálculos e técnicas exigidos pela teoria seriam complicados e estariam além
ȱ ¨ȱ ęȱ ¤ȱ ȱ Ç£ȱ ȱ ǯȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ
bastante penetração, em especial na área do antitruste e da responsabilidade civil. No Brasil,
¤ȱȱęȱȱ¥ȱȱ³¨ǰȱȱȱǰȱȱǰȱ·ȱÇǰȱȱȱ-
tões interessantes quanto a algumas apropriações em certas áreas (como no Direito Processual
Civil). No Direito Concorrencial, como ocorre nos Estados Unidos, o uso é mais difundido,
mas isso por características próprias da área. O grande autor do Law and Economics é, nova-
mente, Richard Posner, e, por isso, alguns associam o movimento ao pragmatismo jurídico.
Existem, sem dúvidas, proximidades — o uso da economia como técnica decisória de apoio é
uma —, apesar de o pragmatismo jurídico posneriano ser mais uma atitude geral em relação
ao Direito do que um corpo de propostas de conteúdo, como é o caso do Law and Economics.
Não há, em todo caso, contradição entre as ideias: a partir de uma atitude pragmatista, o jul-
ȱȱȱ£ȱȱ·ȱâǰȱęȱȱȱ¨ȱȱȱLaw
and Economics. Para uma apresentação do movimento, v. POSNER. Law and Economics in
Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris. Introdução a algumas técnicas
está em COPE et al. Analytical Methods for Lawyers, p. 375-472. Uma discussão dos possíveis
usos do movimento no Processo Civil está em Flávio Galdino (Introdução à análise econômi-
ca do Processo Civil (I): os métodos alternativos de solução de controvérsias. Quaestio Iuris,
p. 171-204). Para as relações entre pragmatismo jurídico e análise econômica do Direito, v.
COTTER. Legal Pragmatism and the Law and Economics movement. Georgetown Law Journal,
p. 2071-2141. Analisando o Posner do movimento Law and Economics e o Posner do pragma-
tismo jurídico, v. KRECKÉ. Economic Analysis and Legal Pragmatism. International Review of
Law and Economics.
191
Trata-se de movimento teórico de origem norte-americana que, descendendo do realismo ju-
rídico e da sociologia jurídica de Pound, atualiza o debate sociológico aos dias atuais. As aten-
ções não são propriamente dogmáticas, mas se voltam a temas como “ordem social”, “controle
Ȅǰȱȃ³ȱÇȄǰȱȃȄǰȱȃę¨ȱȄǯȱǯȱ
ǯȱ ȱȱ¢ǯȱ
Saint John’s University School of Law legal Studies Research, p. 1-25.
192
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 219.
193
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 223.
194
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 242.
195
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
196
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
197
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy.
198
Comunitarismo é rótulo debaixo do qual é agrupada uma série de autores, principalmente
ȱǻȱȱȱ¤ȱȱęȱȱ·ȱǼǰȱǰȱ¥ȱȱ³äȱÇęǰȱ
destacam a importância do aspecto comunitário numa era em que o discurso dos direitos
individuais e, com ele, o próprio individualismo, teria ido longe demais. Há uma tese descri-
tiva — a sociedade americana contemporânea priorizaria, de modo excessivo, o indivíduo, em
detrimento da esfera pública e da comunidade — e uma tese prescritiva — far-se-ia necessário
priorizar a comunidade. Outros temas e estilos de argumentos sublinham os deveres públicos
(em contraposição aos direitos individuais) e a importância dos direitos positivos prestacio-
nais. Os comunitaristas opõem-se, no debate acadêmico, aos liberais, entendida a palavra na
acepção americana, isto é: teóricos preocupados com a posição do indivíduo, mas que também
não descuidam de interesses redistributivos. A discussão é abstrata, mas incide concretamente
em polêmicas como o aborto, a abertura ao multiculturalismo em colégios públicos, a univer-
salidade dos direitos humanos, polêmicas nas quais se espera que o comunitarista defenda
posição mais culturalmente relativista, e o liberal, posição universalista. Entre os teóricos co-
ǰȱȱȱȱę³¨ǰȱȬȱȱ£ǰȱȱȱ
ȱ ȱ ¢ǯȱ ǯȱ ǯȱ Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade;
SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy; TAYLOR (Org.).
El multiculturalismo y “la política del reconocimiento”. Em português, ver, por exemplo, SILVA. A
crítica comunitarista aos liberais. In: TORRES (Org.). Teoria dos direitos fundamentais, p. 197-242.
199
Num caso em que se discutia a validade da expulsão de aluno do ensino médio que profe-
riu discurso irônico numa campanha eleitoral interna (Fraser versus Bethel School District), a
Suprema Corte optou por mantê-lo fora do colégio com o argumento de que a liberdade de ex-
pressão não superaria o interesse público consistente em ensinar decoro social aos estudantes.
Outro caso, em 1987, Daryll Olesen foi suspenso da escola por usar brinco. O colégio alegou
que fazia parte do protocolo de vestuário proibir a utilização de adereços de gangues, embora
o aluno tivesse mencionado que usava o brinco apenas para expressar sua individualidade.
A Suprema Corte, em Olesen versus Board of Education of School District, manteve a suspensão,
ęȱ ǰȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¨ȱ ȱ
àȱ ȱ ¹ǰȱ ȱ
também como se comportar em sociedade.
200
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 25-26.
201
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 35. Ainda, p. 41: “O
pragmatismo pode ser tudo, menos hostil, por princípio, a estudar as relações entre decisões
presentes e passadas. Até porque é apenas por intermédio de comparações assim que as deci-
sões atuais podem ser melhoradas”.
202
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 53.
203
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 54.
204
ȱ ȃȱ ȱ ȱ ·ȱ ȱ ȱ ȱ ³¨ȱ ¥ȱ ȱ ęȱ ǰȱ ȱ
ȱȱȱȱȱęàęȱȱȱȱȱȱȱȱ³äȱ
vazias. O pragmatismo é um convite a uma espécie diferente de debate — um debate que o
pragmatismo posneriano ignora por completo” (SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community,
Rights, and Democracy, p. 63).
205
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63-66.
206
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 98-99.
207
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution.
208
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 5.
209
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 7.
210
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 115.
211
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 85-101.
212
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 66-74.
213
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 43-50.
214
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 58-62.
215
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 75-84.
216
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 102-108.
217
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 119-120.
218
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 120.
219
SUNSTEIN. Justice Breyer’s Democratic Pragmatism.
220
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory.
“pé no chão” de Posner. É pragmatismo técnico, que lida com ideias como
ȱęȱ¦ȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱ¨ȱ
deriva de Peirce ou James, mas de Quine, Donald Davidson e Hilary
Putnam. É pragmatismo jurídico hardcore, que lamenta que o termo, “com
ȱàȱȱȱȱȱęȱȬȄǰȱȱÇȱȱ
gosto dos juristas.
Cinco são suas características, mas deixemos que Coleman tente
explicar:
(1) Um compromisso com um não-atomismo semântico; (2) a visão de
que o conteúdo dos conceitos deve ser explicada em termos de seu papel
ȱȱ¤ȱȱȱęȱǻ¦ȱȱ¤ȱȱ
³¨ǼDzȱǻřǼȱȱ¨ȱȱǰȱ¥ȱ£ǰȱȱ¡³¨ȱęàęȱȱȱ¤ȱ
assume a forma da demonstração de como certos princípios estão incorpo-
rados (explanação pela incorporação); (4) a visão de que o modo no qual
ȱȱęȱȱȱ¤ȱĚȱȱ³¨ȱȱȱ
relação a todas as outras, e que, nesse sentido, as práticas devem ser vistas
de modo holístico; e (5) um comprometimento, por princípio, com uma
revisabilidade de todas as crenças, categorias de pensamento etc.221
221
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, p. 6.
222
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
223
ȱ
ǯȱ¢ȱ¢ȱǯ Harvard Law Review.
ȱȱȱęȱȱøȱȱǯȱȱǰȱ·ȱȱȱ
mais importantes teorias jurídicas contemporâneas.
224
ȱ Dzȱ ǯȱ ȱ ȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
judiciales. Isonomía, p. 155.
225
Tradicionalmente, a teoria (alguns chamam de “ciência”) da legislação propõe dois enfoques
para as constrições incidentes junto ao processo legislativo: o enfoque minimalista — as cons-
³äȱǰȱǰȱȱȱ¥ȱę¹ȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
ȱ¤ȱȱȱȱȱęȱȯǰȱȱȱȱ¡ǰȱȱȱȱȱ
·ȱȱ£¨ȱ¤ȱȱ¤ȱ¨ȱȱȱǰȱȱ·ȱ¥ȱęȱ
ȱǯȱȱȱȱ·ȱȱǰȱęȱȱȱàȱȱȱ-
lação é sempre o de produzir um estado de coisas tido como ideal — mesmo quando se trate de
legislação simbólica, a produção do efeito-símbolo é o que se busca —, o que envolve raciocínio
pragmático. É possível ser pragmatista tanto ao se optar por enfoque minimalista quanto maxi-
malista; basta, ao projetar o ato normativo, fazê-lo com vistas à produção de resultados. Há,
ainda, outro sentido no qual se pode encetar estudo pragmático da legislação, que é quanto à
sua efetiva adesão pela sociedade (“a lei vai pegar?”), o que a doutrina jurídica e os estudos so-
àȱȱȱȱȱę¤ȱȱȱǯȱȱȱȱȱȱȱ
da teoria da legislação, v. CÓRDOBA. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de
la legislación, p. 275-343. Ver ainda, sobre o processo legislativo e seus processos de valoração
e avaliação, Ángeles Galiana Saura (La ley: entre la razón y la experimentación, especialmente
cap. III, IV). Interessante proposta teórica, dando notícia da pouca atenção tradicionalmente
ȱ¥ȱ³¨ȱȱȱ¦ǰȱȱȱȱǯȱȱǻȱȱȱ
New Theory of Legislation. Ratio Juris). Para a clássica apresentação, no Brasil, sobre o problema
(pragmático) da efetividade das normas constitucionais, v. BARROSO. O direito constitucional e
a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira.
226
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 130, grifo nosso.
227
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 131-132.
228
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 133.
229
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 139.
230
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 149.
231
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150.
232
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150, grifo nosso.
233
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 239-241.
234
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 246-249.
235
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 250.
236
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 251.
237
O mesmo raciocínio vale para a decisão do juiz Marshall em Marbury vs. Madison: a subversão
da Constituição, ao se admitir que leis inconstitucionais possam prevalecer diante dela, é
implicação lógica. Não importa ao argumento consequencialista se tais leis irão existir ou se,
ao hipoteticamente decidir por sua validade, elas passarão, como resultado da decisão, a ser
mais comuns.
238
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 254.
239
“Mais do que a previsão de qual conduta a norma provavelmente irá induzir ou desestimu-
lar, o que interessa é responder à pergunta de que tipo de conduta autorizaria ou proibiria a
norma estabelecida na decisão; em outras palavras, os argumentos conseqüencialistas são, em
geral, hipotéticos, mas não probabilistas” (ATIENZA. Teorias da argumentação jurídica: Perelman,
Toulmin, MacCormick, Alexy e outros, p. 195).
240
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 255.
241
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 257.
ȱȱøǰȱȱȱøǰȱȱȬǰȱǰȱȱęȱ
típicas da área do Direito na qual o argumento estiver inserido, e que (iv) exige
que a incidência de um argumento consequencialista seja compatível com sua
aplicação a casos semelhantes.
242
“Efetivamente, o termo ‘real’ se refere a este aspecto: a interpretação é sopesada à luz de certos
fatores que pertencem à realidade social” (AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre
ȱęàȱÇǰȱǯȱŗŞŖǼǯ
243
AARNIO. Lo racional como razoableDZȱȱȱȱȱęàȱÇǰȱǯȱŗŞŘǯ
244
MENGONI, Luigi. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggiǯȱDZȱ ě¸ȱǰȱŗşşŜǰȱǯȱşśǯȱǰȱ
CHIASSONI, Pierluigi. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative.
¨DZȱ ě¸ȱǰȱŗşşşǰȱǯȱŜŘŘȬŜŘŚǯ
245
ȱ ȃȱȱȱ¨ȱȱȱǰȱȱ¨ȱȱ£ȱȱęȱȱ¹-
cia de um sobre o outro, observem-se suas consequências. De fato, o objeto do qual segue um
bem maior é preferível; se, ao invés, as consequências são piores, mais desejável é o objeto do
qual deriva o mal menor”. ARISTÓTELES. Topici, 117, a. Bari: 1970, p. 464 apud MENGONI.
Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97.
ȱęȱȱȱ³ȱȱ³äȱȱ³¨ȱ
e jurisprudência, e entre doutrina e jurisprudência. As legislações contem-
porâneas concederiam espaço cada vez maior à discricionariedade judicial;
a doutrina viria perdendo seu papel de guia da jurisprudência. Com todo
esse protagonismo do Judiciário, os julgadores deveriam se adaptar à
proferição de julgamentos prospectivos, realizados com base em cláusulas
ǰȱȱĚ¹ȱȱȱȯȱȱ·ȱÇȱȱȱȱȱȱȱ
consequencialista.246
Não que o argumento jurídico-consequencialista seja isento de riscos.
O principal deles é indeferenciar o discurso político, orientado a resultados,
do discurso jurídico, baseado em direitos. Com isso, perder-se-ia a credibi-
lidade do Judiciário, que seria visto não mais como repositório de garantias
civilizacionais, mas como instrumento de engenharia social.247 Mengoni
opõe-se a essa crítica de dois modos: em primeiro lugar, o fenômeno seria
inevitável — far-se-ia mister discipliná-lo juridicamente. Em segundo,
porque a crítica partiria do pressuposto de que o discurso orientado às
consequências é insubmisso a restrições que não se originem da política.
Mas, para Mengoni, não precisa ser assim. É possível “domesticar” (a
palavra é nossa) o argumento consequencialista e torná-lo útil à prática
jurídica. Como fazê-lo? Luigi Mengoni propõe algumas regras metodológicas
e vínculos normativos para a argumentação consequencialista no Direito.
Nosso interesse reside aqui.
A primeira regra metodológica diz respeito à seleção das consequências.
É importante selecioná-las bem, seja para reduzir o risco de mensurações
equivocadas de suas probabilidades, seja para que possam ingressar dentro
dos limites da capacidade racionalizadora do sistema jurídico (um número
ȱȱȱ¹ȱȱ¥ȱȱȱĚ¡¨ȱÇǼǯȱ
ȱȱȱȱę¡ȱȱȱȱȱȱǰȱȱ¨ȱ
de modo discricionário, mas conforme a relevância para o caso. A escolha
dessas consequências será feita com base num cálculo de probabilidade
tirado de regras comuns de experiência ou de modelos estatísticos, eco-
âȱȱàȱęȱę¤ǯȱ
246
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97-99.
ȱ ȱȱǰȱȱÇȱĚȬȱȱÇȱȱ
ȱ¥ȱ·ȱȱ³¨ȱȱ-
247
resses: “Para o Tribunal Constitucional Federal, a Lei Fundamental da República não constitui
tanto um sistema de regras estruturado através de princípios, mas uma ‘ordem concreta de
valores’ (semelhante à de Max Scheler ou de Nicolai Hartmann). [...] Essa interpretação vem ao
encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre os juristas, o qual, no entanto,
é frouxo. Os que pretendem diluir a constituição numa ordem concreta de valores desconhe-
ȱ ȱ ¤ȱ Çȱ ÇęDzȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ ǰȱ
como também as regras morais, são formados segundo o modelo das normas de ação obriga-
tórias — e não segundo o modelo dos bens atraentes” (HABERMAS. Direito e democracia: entre
facticidade e validade, v. 1, p. 314-315, 318, 320-321).
248
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 102.
249
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103.
250
Até porque, segundo Mengoni, a argumentação orientada a consequências não é, em si mes-
ǰȱȱȱę³¨ȱÇDzȱ·ǰȱǰȱȱÇȱȱȱȱ
àȱȱǯȱȱ¨ȱÇȱȱȱȱęȱȱ
·ȱȱäȱȱę³äȱȱȱȱȱȱ¹ȱ¤-
ǰȱȱ£³¨ȱȱ¨ȱǯȱȃȱęȱȱ¨ȱȱȱȱ
senão no, e por intermédio do, sistema jurídico, e, portanto, só podem ser explicados dogma-
ticamente” (MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 107).
251
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 105.
252
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129.
253
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129-130.
254
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
255
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
256
Apenas por amor à completude, nesta nota seguem alguns desses trechos, com os sublinha-
dos do original e os itálicos acrescentados: “Preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo depois que
entraram em função de exegese os dados da Sociologia, com o resultado provável de cada interpre-
tação. Toma-o em alto apreço; orienta-se por ele; varia tendo em mira, quando o texto admite
mais de um modo de o entender e aplicar. Quando possível, evita uma consequência incompatível
com o bem geral; adapta o dispositivo às ideias vitoriosas entre o povo em cujo seio vigem as
expressões de Direito sujeitas a exame. Prefere-se o sentido conducente ao resultado mais favo-
rável, que melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave”
(MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 135). “A interpretação sociológica
atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto;
ȱÇȱȱȱ¨ȱ·ęȱȱÇȱȱȱȱȱȱȱȱ-
dernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de tal sorte
que o mundo prossiga rumo a seus altos destinos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação
do Direito. 19. ed., p. 137). “O Direito é um meio para atingir os ęȱcolimados pelo homem
em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o
seu papel antigo de entidade cega, indiferente às ruínas que inconsciente ou conscientemente
possa espalhar” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 138).
257
MORAND. La révolte des faits contre le code; MORAND. La revolte du Droit contre le code: la
révision nécessaire des concepts juridiques.
258
Em 2010, ano em que a tese de doutorado da qual se originou o presente livro foi defendida,
o pragmatismo jurídico ainda se encontrava a meio caminho da popularização acadêmica. Em
2014, ano da publicação do livro, pode-se dizer que o uso da expressão “pragmatismo” e “con-
sequencialismo” aparece com alguma frequência em dissertações e teses. Também se vê as
palavras “pragmatismo” e “consequencialismo” em artigos dogmáticos — alguns fazendo uso
absolutamente fuzzy ȱ³äǯȱȱȱ£ȱȱȱȱȱȱęȱ
ȱęęȱǻǯȱȱȱ·ȱǯȱŘŗǼǰȱǰȱǰȱȱ¨ȱ¤ȱȱȱȱȱ³äȱȱ
pragmatismo e de consequencialismo de seus sequestradores.
259
POGREBINSCHI. A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões judiciais
e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193.
260
Art. 18. [...] §4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por
lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta
prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos
Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei (grifos nossos).
261
O Projeto de Lei Complementar nº 98/2002, originário do Senado e aprovado no Congresso, e
que pretendia regulamentar a Constituição da República no ponto, foi vetado integralmente
pela Presidente da República em novembro de 2013.
262
“Como o Legislativo omitiu-se, deixando de produzir essa lei complementar, e o ente federa-
tivo surgiu, existindo como tal, a aplicação do preceito para que se declare a inconstitucionali-
dade do ato legislativo estadual e a inconstitucionalidade institucional do Município agravará
a moléstia do sistema” (Voto do Relator Eros Grau na ADI nº 2.240-7, p. 298 dos autos do
processo judicial).
263
ADI nº 2.240-7, p. 302.
264
ADI nº 2.240-7, p. 313, grifos nossos.
ȱ ȱę³¨ȱ·ȱȱȱǯȱřŘşDZȱȃ¤ȱęȱȱȱÇȱȱǰȱ
265
268
COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 130-137.
269
Defendendo-se das acusações feitas pela imprensa e pelo Congresso, Nelson Hungria disse o
seguinte: “Jamais o Supremo Tribunal desertou a sua função constitucional, que não é, positi-
vamente, a de debelar insurreições vitoriosas. O que ocorre é que o Brasil, com a implantação
da República, entrou no ciclo político da América Latina, em que as mudanças de regime e a
queda dos governos se operam, frequentemente, mediante pronunciamentos militares, contra
os quais não há de opor-se a força do direito. Bem ou mal intencionados, tais pronunciamentos
fazem calar a força das leis e dos ditames jurídicos. Contra o fatalismo histórico dos pronun-
ciamentos militares não vale o Poder Judiciário, como não vale o Poder Legislativo. Esta é que
é a verdade, que não pode ser obscurecida por aqueles que parecem supor que o Supremo
Tribunal, ao invés de um arsenal de livros de direito, disponha de um arsenal de schrapnels e
de torpedos” (COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 135).
ȱ ȱȱȱȱķȱŘǯŚřśǰȱȱȱȱȱĚȱķȱřǯśŚŘȦŖŗǰȱȱȱŗřȱ
270
de março de 2002.
271
STF. 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC nº 73.662/MG. Diário de Justiça, 20 set. 1996.
de suas decisões poderem vir a ser revistas por outra corte.272 O tipo de
assunto que é levado ao Supremo costuma convidar à interdisciplinaridade
e ao pensamento out of the box. E, como corte política, suas decisões geram
efeitos prognósticos (no que se assemelha à instância consequencialista
por excelência — o Legislativo).
Para o bem ou para o mal, em nossa conformação institucional, o
STF pode ser o espaço próprio do pragmatismo jurídico.
Mas não apenas o Supremo pode usar tal argumento. Diversos
outros operadores institucionais do Direito deles se utilizam dia a dia.
Exemplo trivial: o argumento do “efeito multiplicador” das demandas é,
na raiz do termo, argumento consequencialista. Dia após dia, quando a
Fazenda Pública ou empresas buscam anular decisões judiciais argumen-
tando que, com base nelas, por meio de um efeito exemplo, inúmeras outras
acabariam surgindo — com risco de prejuízos —, está-se apelando a uma
das consequências prováveis do julgamento (o estímulo à litigância) como
motivação para nova decisão, agora, de cassação.273
Outro exemplo é a argumentação, por parte da Fazenda Pública,
a respeito da provável perda de arrecadação caso o tributo, que se ques-
tiona em juízo, seja declarado inconstitucional pelo Judiciário. Como o
argumento possui, na vida prática, peso considerável, observa-se que, em
geral, advogados tributaristas não se mostram favoráveis a argumentos
pragmatistas, ou propõem que eles incidam de modo restrito.274
Há casos em que a decisão judicial não tem como deixar de ser prag-
matista. É que o próprio dispositivo normativo solicita apreciação contextual e/ou
voltada às consequências. Dois exemplos: o art. 27 da Lei Federal nº 9.868/99,
que permite a modulação dos efeitos temporais das declarações de incons-
titucionalidade emitidas pelo STF em sede de controle concentrado,275 e o
art. 15 da Lei Federal nº 12.016/09, que autoriza a suspensão da execução
de liminar ou de sentença proferida em mandado de segurança nos casos
em que tais decisões gerem lesão à ordem, saúde, segurança ou economia
públicas.
Na primeira hipótese, como vimos no voto de Gilmar Mendes no
caso do Município de Luís Eduardo Magalhães,276 são preocupações de
272
V. nota de rodapé nº 127.
273
Cf. ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma com-
patibilização, p. 7.
274
Veja-se, por exemplo, Fábio Martins Andrade (O argumento pragmático ou consequencialista
e a modulação temporal dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria
tributária. Tese).
275
Não apenas no controle concentrado. A jurisprudência do STF aceita o uso dessas técnicas
também no controle incidental. Ver, por exemplo, RE nº 197.917/SP, Rel. Maurício Corrêa, DJ,
07 maio 2004.
276
E poderíamos encontrar em tantas outras decisões do STF. Assim, na ADI nº 1.102, em que se
discutia a constitucionalidade das expressões “empresários” e “autônomos”, da Lei Federal
ķȱŞǯŘŗŘȦşŗǰȱȱęȱȱ³¨ȱȱȱȱ¹ȱøǰȱȱȱȱ
estímulo ou desestímulo a que o legislador atue em determinado sentido (no voto de Marco
Aurélio) ou o impacto da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc nas contas
públicas (no voto do relator Maurício Corrêa), de nítida índole pragmatista, podem ser
encontrados. Até a gripe suína já contou como dado da realidade para orientar a modulação dos
efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Embora reconhecendo a inconstitucionalidade
da Lei Complementar nº 300, do Espírito Santo, que permitia a contratação temporária de
ęȱ ȱ ¤ȱ ȱ øǰȱ ȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ¡ǰȱ ȱ ǰȱ
ȱȱȱȱȱÇȱȱȱȱȱȱ³¨ȱȱȱęȱȱȱ
de saúde durante aquele período crítico, concedeu prazo de sessenta dias até a cessação dos
ȱȱǰȱȱęȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱ
ȱȱȱȱȱȱȱ³¨ȱǻÇȱDZȱǀĴDZȦȦ ǯǯ
ǯȦȦŘŖŖşȦŖŞȦŗŘȦǯŘŖŖşȬŖŞȬŗŘǯŖŝŚŝśŝśşśŞȦ ǁǯȱȱDZȱŗśȱǯȱŘŖŖşǼǯ
277
Adotando a ideia de Humberto Ávila, segundo a qual os argumentos pragmáticos são não
institucionais e devem aparecer em papel secundário na argumentação jurídica, Ana Paula
Ávila escreveu: “Aqui merecem referência o pragmatismo e o consequencialismo que podem
ser detectados na origem de uma série de argumentos que acabam sendo considerados na
interpretação jurídica. Tome-se, por exemplo, a decisão que deixa de atribuir efeitos ex tunc
à declaração de inconstitucionalidade apenas para evitar uma enxurrada de ações individuais, ou
a decisão que atribui o efeito ex tunc apenas porque, do contrário, equivaleria a incentivar o
legislador à produção de normas em desacordo com a Constituição. Ora, não é isso que deve
servir de parâmetro para a interpretação do art. 27 da Lei nº 9.868/00. O reconhecimento da
permanência dos efeitos deve decorrer justamente das normas que, acaso existentes, sustentem
ȱ¹ǰȱȱ¨ȱȱȱȱȱ¤ȱȱ¨ȱȱęȱ¥ȱ£ȱȱȱ
jurídico” (ÁVILA. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade:
ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme à Constituição do artigo 27
da Lei nº 9.968/99, p. 119-120).
278
Assim, por todos, a opinião de Cássio Scarpinella Bueno: “Se o que o mandado de segurança
tem de mais caro é sua predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis ao
ǰȱȱȱȱȱęǰȱȱȱȱȱȁ¨ȱȱ³Ȃȱ-
loca em dúvida a constitucionalidade do instituto. Em verdade, tudo aquilo que for criado pelo
ȱȱȱ£ǰȱęȱȱȱȱȱȱę¤ȱ
do mandado de segurança agride sua previsão constitucional. Nesse sentido, não há como
admitir a constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua natureza jurídica. É
instituto que busca minimizar efeitos do mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se
ȱęȱȄȱǻǯȱMandado de segurança, p. 179). Sem pretender ingressar
em qualquer polêmica processual, a verdade é que a opinião do Professor parece-nos partir
da constitucionalização de uma maxi-abrangência do conteúdo da referência constitucional
ao mandado de segurança, até o ponto em que “tudo” que “obstaculizar” tal (enorme) abran-
gência será inconstitucional. É exemplo de raciocínio equivocado que, aplicado ao Direito
Constitucional Econômico, ainda discutiremos extensamente.
279
Observe-se que o art. 543-A do CPC, o qual exige a repercussão geral como requisito para a
admissão de recursos extraordinários, é exemplo de raciocínio consequencialista solicitado
pela legislação, mas surgiu, em grande parte, a partir da prática hiper-restritiva do Supremo
em relação à admissão de tais recursos.
280
Pesquisa AMB 2005 – Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões. Em 2006, a mesma
pesquisa, na pergunta XXIII, constatou que os magistrados não consideram os efeitos orça-
mentários de decisões relacionadas com a área da saúde, o que também denotaria certa rejei-
ção ao pragmatismo aplicado à seara das demandas judiciais de remédios (no qual aparece
como argumento da reserva do possível fática).
281
Colocados diante de três opções, “parâmetros legais”, “consequências econômicas” e “conse-
quências sociais”, não é de se espantar que os resultados tenham sido esses. Mas quais seriam
as respostas preponderantes se a pergunta dissesse respeito, por exemplo, à “consideração do
contexto e das consequências prováveis” no momento da decisão?
282
ȱ ǰȱ ęǰȱ ȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¨ȱ ȱ äȱ ȱ ȱ
seguinte: “Fica bem ao magistrado aludir às teorias recentes, mostrar conhecê-las, porém só
impor em aresto a sua observância quando deixarem de ser consideradas ultra-adiantadas, semi-
revolucionárias; obtiverem o aplauso dos moderados, não misoneístas, porém prudentes, doutos e
sensatos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed., p. 160, grifos no original).
283
Não concordamos com a posição de Diego Arguelhes e Fernando Leal, segundo a qual, basea-
dos na doutrina americana, a principal utilidade do pragmatismo jurídico é na condição de
metateoria. Ao menos no Brasil, ainda há espaço para a implementação de modelos de teorias
pragmatistas imediatamente normativos, desde que “sensíveis” à nossa tradição de operação
com o Direito. Cf. ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão
judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49, passim.
284
Assim, por exemplo, na Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal nº 9.099/95), o art. 6º determina
que o juiz deverá adotar, em cada caso, a decisão que lhe parecer mais justa e equânime,
ȱȱęȱȱȱȱȱ¥ȱ¡¹ȱȱȱǯȱȱȱȱȱ
também é expressamente autorizado ao conciliador (art. 25).
285
Em duas situações os argumentos consequencialistas assumem importância na prática jurídica:
quando a lei impõe um juízo de equidade, ou quando duas ou mais decisões são possíveis. V.
Dzȱǯȱȱȱȱęȱȱȱȱȱ-
ciales. Isonomía, p. 156. Por outro lado, quando o texto é claro, deve-se adotar o formalismo, ou,
ao menos, não se deve adotar o pragmatismo como teoria normativa da decisão.
286
Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos
seguintes objetivos: I - preservar o interesse nacional; II - promover o desenvolvimento, am-
pliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos; III - proteger os interesses do
ęȱȱȱȱȃȱ¤Ȅǰȱȱmodus operandi do
“princípio” do pragmatismo jurídico informa que ele deve incidir como mais
um argumento operado dentro das regras da teoria da argumentação. Ele não deve
entrar em contradição lógica ou material com nenhum outro argumento,
ȱę³¨ȱȱȱ¡ȱȱȱȱȱǰȱȱ¨ȱȱ
deve cometer nenhuma falácia.
Além disso, como terceiro e último passo desse modelo geral de
operação, o resultado indicado pelo “princípio” do pragmatismo deve ser uni-
versalizável. Com isso, pretende-se evitar o casuísmo, a decisão ad hoc, a
violação à impessoalidade. Ainda raciocinando com o Direito do Petróleo,
se, por hipótese, a fase de exploração do contrato de concessão foi esten-
dida para uma concessionária, em virtude do argumento prático quanto
à inexistência de sondas de exploração no mercado, tal decisão, tomada
naquele caso, deve ser capaz de ser estendida a casos semelhantes. Do
contrário, não teríamos pragmatismo jurídico, mas argumentação prática
“pura e dura”, juridicamente incontrolável e constitucionalmente agressora,
numa espécie de reversão do adágio clássico: cumpram-se os desígnios
do mundo, pereça a justiça.
Então, até aqui, temos o modo geral de operação do nosso “prin-
cípio”. Primeiro, fundamenta-se a possibilidade de seu exercício numa
atribuição legal ou constitucional de poder à autoridade julgadora. Depois,
£Ȭȱȱȱȱȱȱȱȱȱǯȱȱęǰȱ
vê-se se o resultado priorizado pode ser estendido a casos semelhantes.
Agora, as hipóteses especiais de incidência do “princípio” do prag-
matismo jurídico. São três: a proporcionalidade em sentido estrito, as hipóteses
de autonegação da norma e a “doutrina do absurdo”.
Quando da incidência da máxima da proporcionalidade — não vamos
entrar em discussões sobre se se trata de princípio, regra ou outra coisa287 —,
o senso comum brasileiro, tanto doutrinário quanto jurisprudencial, a partir
de decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, estabeleceu que
consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; IV - proteger o meio ambiente
e promover a conservação de energia; V - garantir o fornecimento de derivados de petróleo
em todo o território nacional, nos termos do §2º do art. 177 da Constituição Federal; VI - in-
ǰȱȱȱâǰȱȱ£³¨ȱȱ¤ȱDzȱȱȬȱęȱȱ³äȱȱ
adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; VIII - utilizar
fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponí-
veis e das tecnologias aplicáveis; IX - promover a livre concorrência; X - atrair investimentos
na produção de energia; XI - ampliar a competitividade do País no mercado internacional;
XII - incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustí-
veis na matriz energética nacional.
287
Para isso, ver, por todos, na doutrina brasileira, ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱȱę³¨ȱ¥ȱ-
cação dos princípios jurídicos. 4. ed. Na doutrina estrangeira, PULIDO. El principio de proporcio-
nalidad y los derechos fundamentales.
288
Há, também aqui, debate sobre a natureza jurídica desses testes. Seriam subprincípios? Regras?
Cf. ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, especialmente nota de rodapé n. 84, p. 112.
289
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 163.
290
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 182-183.
291
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 220.
292
ȱ ȃȱȱǰȱęǰȱȱ£ȱȱȱȱ³äȱ¹ȱÇȱȱ-
mente uma referência ao futuro, sua verdade ou falsidade depende do sucesso ou da derrota
ȱȱęȄȱǻ
ǯȱPragmatismo: teoria social e política, p. 47).
293
A Lei Federal nº 12.993, de 26 de dezembro de 2013, estabeleceu que a meia-entrada está limi-
tada a quarenta por cento do total dos ingressos. Resta saber se os valores da meia-entrada e da
entrada inteira, após a lei, serão reajustados até que, por exemplo, o valor da nova meia-entrada
corresponda ao valor da antiga entrada inteira, e a entrada inteira seja duplicada. Nesse cená-
rio, haveria uma despromoção da cultura, pois o cenário antes da meia-entrada possuía valores
totais menores do que aqueles posteriores a ela.
294
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político:
uma crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
295
GOLD. Absurdity Doctrine, Scrivener’s error and Statutory Interpretation. Unniversity of
Cincinnati Law Review. Nas nossas doutrina e prática jurisprudencial, o uso de tal argumento
é difundido. Carlos Maximiliano já dizia: “O Direito deve ser interpretado inteligentemente,
não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a
conclusões inconsistentes ou impossíveis” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito.
19. ed., p. 136).
296
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 108.
297
BUSTAMANTE. On the Argumentum ad Absurdum in Statutory Interpretation: its uses and
ȱ ęǯȱ In: FETERIS; DAHLMAN (Ed.). Legal Argumentation Theory: Cross-
disciplinary Perspectives. Springer, 2012.
298
FULLER. O caso dos exploradores de cavernas, p. 12.
299
Embora argumentos teóricos de exceção, como a ponderação de princípios ou de regras, ou
sentidos contraintuitivos de normas legais descobertos a partir de interpretações teleológicas
ou sistemáticas, apareçam de modo estranhamente comum em muitas obras jurídicas e em
pareceres. Neste último caso, como as opiniões jurídicas em relação a casos concretos não são,
ȱÇǰȱǰȱęȱȱ¤ȱȱȱȱȱȱȱȱȱDZȱ
fazendo do quadrado, redondo, e do preto, branco. A esse respeito, anotamos o seguinte: “A
ideia de que um parecer é uma ‘mera opinião’, embora verdadeira na essência, tem sido usada,
muitas vezes, como escudo retórico com base no qual se pretende imunizar todo e qualquer
arremedo de interpretação jurídica, inclusive e especialmente as que buscam transformar uma
ilegalidade candente num ‘caso difícil’ e, a partir daí, numa hipótese em que é aceitável ‘mais
ȱ¨Ȃǰȱęǰȱȁȱȱ·ȱȱȂǯȱ¨ȱ·ȱǰȱȱȱ
ȱȱ
ȱ-
fendiam limites para isso. O argumento dos casos difíceis é aplicável, quando muito, a um
ȱÇęȱȱàǯȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱ
são estatisticamente irrisórias” (MENDONÇA. A responsabilidade pessoal do parecerista pú-
blico em quatro standards. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro).
300
Nesse sentido, ainda, Mengoni, citando antiga parêmia segundo a qual adducere inconveniens non
est resolvere argumentum — “aduzir inconvenientes não é resolver o argumento” (MENGONI.
Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 94).
301
ÁVILA. Argumentação jurídica e imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário. É
particularmente instrutivo o trecho a seguir: “Os argumentos transcendentes ao ordenamento
jurídico passam a ser relevantes na interpretação no momento em que a linguagem e o sistema
¤ȱ¨ȱȱȱę³¨ȱȱȱ³¨ǯȱȱȱ·ȱȱȱ
ȱęȱȱȱȱȱÇȱȱ¤ǰȱ¨ȱ¤ȱ£¨ȱęȱ
para o recurso a outros argumentos. Não é noutro sentido que a doutrina constrói as etapas
ȱ³¨ȱÇDZȱàȱȱȱ¥ȱà¡ȱȱȱȱȱȱęȱȱȱ
ę³¨ȱȱ³¨Ȅǯ
302
ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma com-
patibilização, p. 9 et seq.
303
“Assim, não há qualquer incompatibilidade entre a ideia de obediência como promoção e o
caráter ‘deontológico’ da aplicação de normas jurídicas, que a tradição do pensamento jurídico
vê como uma exigência do ideal de Estado de Direito. Ao contrário, muitas vezes o órgão judi-
cante dependerá de uma análise das possíveis consequências de cada curso decisório para iden-
ęȱȱȱȱ³¨ȱȱȱ¡ȱȱȱǽǯǯǯǾǯȱ·ȱǰȱȱȱȱinterdependência
entre os estados de coisas deonticamente caracterizados por normas distintas, os argumentos
consequencialistas podem funcionar como argumentos sistemáticos (‘contextuais’, nos termos
de Ávila), pois tratam da combinação teleológica entre outros princípios e a norma objeto de
interpretação” (ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios
para uma compatibilização, p. 15, 17, grifos no original).
304
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103. Nossa proposta de “princípio” do
pragmatismo jurídico é compatível com a maioria das versões de positivismo jurídico e, de
fato, em muitas delas, pode vir associado às clássicas “interpretação sistemática” e “interpre-
tação teleológica”.
305
“Uma abordagem orientada para resultados em relação à interpretação constitucional é
ȱȱȱȱȱęȱ¥ȱ³¨ȱǰȱȱȱǰȱȱ³¨ȱ·ȱȱȱ
dos resultados que o intérprete pretende fazer valer” (BARBER; FLEMING. Constitutional
Interpretation: the Basic Questions, p. 186).
306
Por argumentação contra legem, entendemos, citando Thomas da Rosa Bustamante, “a forma
de argumentar contrária aos ęȱ Çȱ que possui um ou mais texto jurídico cuja
validade se mantém fora de dúvida”. V. BUSTAMENTE. Argumentação contra legem: a teoria
ȱȱȱȱę³¨ȱÇȱȱȱȱÇǰȱǯȱŗŞŘǯ
307
Dentro de nossa proposta incluem-se tanto as consequências extrajurídicas quanto as conse-
quências propriamente jurídicas (consolidação ou superação de precedentes, criação de diver-
gência de linha interpretativa etc.). É claro que há um processo complexo de inter-relação entre
elas: v. g., a reação a uma decisão impulsiona novas decisões contra ou naquele sentido.
308
Cf. trecho do voto da Ministra Relatora Ellen Gracie: “Quanto aos empresários, caso indefe-
rida a liminar mas no mérito julgada procedente a ação, terão condições de se ressarcir, pelas
regras de mercado, dos prejuízos que porventura julgarem haver sofrido, levando-se em conta,
·ǰȱȱ³¨ȱȱȱȱȱǻĚǯȱŞŗȬŗŖŖǼȱȱȱȱøȱȱ
da lei questionada corresponde a apenas 9% da população do Estado do Rio de Janeiro” (ADI
ķȱŘǯŚřśǰȱĚǯȱŘŘŘȬŘŘřǼǯ
309
Embora também aqui exista um fator complicador. Pode ser que os idosos, por poucos que
sejam no Estado do Rio, correspondam majoritariamente ao público consumidor de remédios,
ę³¨ȱÇǰȱȱ£ȱȱÇǰȱȱȱȱęȱȱȱȱȱȱ
lei abranja, digamos, sessenta por cento das vendas. Não importaria o percentual de idosos no
Estado do Rio, mas o percentual de idosos que, no Estado, consumissem remédios, e o quanto
ȱęȱȱ³¨ȱ¥ȱȱȱȱ¤ǯ
soa provável, porém, indo mais a fundo, talvez não seja bem assim. Quem
garante que, mesmo havendo repasse nos preços, considerando a abran-
gência da lei (apenas nove por cento dos idosos) e a própria diluição por
todos os compradores e por todos os itens, o aumento ainda assim será
ȱęǵȱȱȱȱȱȱȱȱ
ǰȱȱȱ¤ȱȱȱȱȱęȱ·ȱ
de acesso aos medicamentos.
ęDZȱȱÇ£ȱȱȱȱ¹ȱ·ȱȱȬȱ
do pragmatismo jurídico. É o diferencial entre a argumentação controlada
e a retórica ruim.
(v) Ele considera consequências imediatas e futuras, mas não as remota-
mente futuras. Há que se encontrar limite lógico-temporal razoável para
as consequências a serem apreciadas. Em tese, as consequências de uma
øȱ ³¨ȱ ¨ȱ ęǯȱ ȱ ȱ Êȱ ǰȱ ȃȱ ȱ
possível reunir o conjunto das consequências de que depende a aplicação
do argumento pragmático se cada consequência devesse, por sua vez, ser
apreciada consoante suas próprias conseqüências, pois a sequência destas
ȱęȄǯ310
O “princípio” do pragmatismo jurídico incide a partir de projeção de
consequências imediatas e de curto e médio prazo. Se estivermos falando,
como costuma acontecer, de consequências econômicas, projeções baseadas
em expectativas superiores a, digamos, dois anos não se prestam à análise.311
Tal standard vale também para limitar o número de eventos-causa
das consequências: a incidência se dá em relação a um deles, ou, quando
muito, a um grupo deles, mas desde que vinculados por uma mesma
situação fática de base.
(vi) Ele considera apenas consequências fáticas com razoável base empírica.
Esse é o standard que trata a questão da prova das alegações de fato em
que se baseiam as consequências com as quais se vai construir a incidên-
cia do “princípio”. Não deixa de ser, sob outra perspectiva, a questão da
probabilidade da ocorrência das consequências.
Se nosso “princípio” do pragmatismo jurídico se basear em qualquer
alegação, será, apenas, mais um artifício da má retórica. Tudo que se alega
deve ser provado, se não de modo cabal (as consequências prováveis não
podem ser assim comprovadas), ao menos de forma indiciária. Ainda
mais, tal standard requer que se analise crítica e institucionalmente os
dados empíricos trazidos como prova. A alegação deve ser apreciada em
ȱøȱȯȱȱ·ȱȱȱ¨ȱȯǰȱǰȱǰȱȱȱȱę-
bilidade técnica da fonte originadora. Uma situação é a concessionária ou
a empresa trazer relatório que ela própria elaborou; outra é uma entidade
310
PERELMAN. Retóricas, p. 17.
311
Esse dado é, como se deve imaginar, especulativo. O elemento temporal varia caso a caso.
312
Processo nº 0002176-24.2007.4.02.5105. Justiça Federal do Rio de Janeiro.
2.1 Introdução
Das atividades do Estado, a única que lida quase que exclusivamente
com a restrição e a conformação de liberdades individuais é o exercício do
poder de polícia.756 Natural que seja aquela que desperte maiores atenções:
ȱęȱȱȱȱȱȱȱȱÇȱ·ȱǯ757 No
capítulo que se inicia, percorremos questões conceituais acerca do poder
de polícia, sempre à luz do pragmatismo e da razão pública, mas tais
“princípios” aparecerão em especial na condição de novíssimos critérios
de controle do exercício de tal atividade pública. Seu eixo condutor é a
análise dos limites ao exercício da polícia administrativa.
Podem-se dividir os critérios de controle em duas categorias: quanto
à cronologia e quanto à abrangência do controle.
Há limites clássicos e limites novos ao exercício do poder de polícia.
Por limites clássicos referimo-nos aos elementos758 dos atos adminis-
trativos, ao respeito ao devido processo e à circunstância de o exercício
do poder de polícia dever ser precedido de uma habilitação legal clara e
756
“Trata-se do tema que mais diretamente se insere na encruzilhada autoridade-liberdade,
Estado-indivíduo, que permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se, pois,
muito sensível à índole do Estado e às características históricas, políticas e econômicas dos
países” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 89).
757
Na dogmática brasileira recente, recomenda-se, por todos, MEDAUAR; SCHIRATO (Coord.).
Poder de polícia na atualidade.
758
ȱ
¤ȱ³¨ǰȱȱǰȱȱȱȱȱȱȱȱȱ¹ǰȱȱǰȱȱę-
lidade, o motivo e o objeto do ato administrativo. Alguns chamam de elementos do ato; outros,
de requisitos (por sua vez, divididos em intrínsecos e extrínsecos); outros, de pressupostos.
Oȱ ȱ ȱ ȱ ¤ǯȱ ȱ ȱ ¹ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ àȱ ę-
ção dos elementos (ou seja lá como se chamem). Apenas registraremos a existência da polêmica,
mas adotaremos, por sua popularidade, os aspectos do ato administrativo indicados por
Hely Lopes Meirelles. E, por simplicidade, vamos chamá-los de “elementos”. V. MEIRELLES.
Direito administrativo brasileiro, p. 148-152. Para discussão sobre a variedade de nomenclatura
existente na matéria, v. OLIVEIRA. Ato administrativo, p. 73-77.
759
O respeito ao devido processo legal é critério, em princípio, formal. Diz-se em princípio porque
é comum a referência a um devido processo legal de natureza substantiva, expressão de origem
americana que possui índole material, confundindo-se com o juízo de razoabilidade e/ou de
proporcionalidade. A respeito do tema, v. CASTRO. O devido processo legal e os princípios da razoa-
bilidade e da proporcionalidade; MARTEL. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função e
características de aplicabilidade. Já o respeito à legalidade pode ser entendido em duas acepções,
ǰȱÇǰȱȱęDZȱȱȱȱȱȱȱȱǰȱ¤Ȭȱ-
sando num critério insubstancial, isto é, num critério que se presta à aplicação por intermédio
de subsunções simples. Quando se fala numa legalidade em sentido material, está-se referindo
à inclusão, na aplicação ou na interpretação da lei, de juízos de conteúdo.
760
LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 305-306.
761
ȱ ȱȱ³ȱȱàȱȱ³¨DZȱǰȱȱǰȱȱȱȃÇȄȱę-
cava a constituição do Estado ou da Cidade — isto é, o Ordenamento Político do Estado —,
seu uso na Idade Média acompanhou tal tendência ao menos até o século XI, quando, de seu
conteúdo, foi retirado o aspecto referente às relações internacionais. A autora informa que,
já na Idade Média, utilizava-se a noção em sentido próximo ao atual, e nesse uso medieval
estariam os antecedentes da concepção moderna, não nos regulamentos de polícia do Código
Geral da Prússia, de 1794, muitas vezes citados como precursores. V. MEDAUAR. Poder de
polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 90. Outra boa análise histórica acerca das origens
da polícia está em, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 24-46) (“La policía
ȱȱȄǼǯȱȱȱ¨ȱȱàȱȱȱęȱȱàȱǰȱ
v. MINET. Droit de la police administrative, p. 8-14.
762
ȱ ȱęȱȱǰȱȱǰȱȱşŘǰȱȱȱȱ³¨ȱȱ¤ȱȱȱȯȱȱ
funcionamento do Universo de acordo com o modelo das esferas de Ptolomeu — feita pela ninfa
Tétis a Vasco da Gama, ela lhe fala (grifos nossos): “Vês Europa Cristã, mais alta e clara/ Que as
outras em polícia e fortaleza”. O sentido do trecho é claro: a Europa cristã era superior às outras
regiões do mundo em poder (fortaleza) e na qualidade de sua administração. Há outros dois
usos da palavra ao longo do poema (no Canto VI, estrofe 2, e no Canto VII, estrofe 12), mas o
sentido relatado no corpo do texto aparece de modo mais evidente na estrofe que transcrevemos.
ȱȱǰȱȬȱęȱȱȱȱà¡ȱȱȱȱ
ȱęȱȱ³¨ȱȱÇDZȱ³¨ȱøȱȱ³¨ȱȱ¡Çȱ
de direitos individuais em favor da coexistência em sociedade. Ficaram,
contudo, resquícios dessa polícia como ação geral do Estado: até hoje,
police power, nos Estados Unidos, é uma atuação ampla do Estado, espe-
cialmente em sede legislativa.763 No Brasil, também há essa acepção de
polícia administrativa como edição de leis ou atos normativos, apesar de
que tal sentido, aqui, é bem menos comum.
De Camões, passando pelos Estados Unidos, até o Brasil de hoje,
fala-se num sentido amplo e num sentido estrito para a polícia administrativa.
O sentido amplo é o sentido de seu uso nos EUA, do qual, se adotamos a
expressão — “poder de polícia”, corrente no Brasil, é tradução do inglês,
e foi incorporada à nossa doutrina graças a Ruy Barbosa e Aurelino Leal
—, não adotamos o sentido: “no Brasil, poder de polícia é, sobretudo,
atividade administrativa”.764 O sentido estrito é o sentido próprio: ativi-
dade765 do Estado que consiste em limitar o exercício de direitos privados
em função do interesse coletivo. Da frase simples, temos três conteúdos
ęȱȯȱȱȱ·ȱȱǰȱȱȱȱ¡Çȱȱȱ
privados e ela se faz em virtude do interesse coletivo.
763
É nesse sentido que aparece na obra de Ernst Freund, Professor da Universidade de Chigaco
Police PowerȱǻŗşŖśǼǯȱÇȱDZȱǀĴDZȦȦřŜŖŜŖŞǯǯǯȦŗȦȦ ȱ
ŖŖĞȦ ŖŖĞǯǁǯȱȱDZȱŗŖȱǯȱŘŖŗŖǯȱȱȱǰȱȱ
¡ȱȱȱȯȱȱęȱȱȃȱȱȱÇȱȱȱ¨ȱȱ-
siderado morto e sepultado pela maior parte do século XX” —, v. REYNOLDS. The Evolving
Police Power: Some Observations for a New Century. Hastings Constitutional Law Quartely.
Caio Tácito informa-nos que a expressão police power surgiu, nos Estados Unidos, num voto
de Marshall havido em 1827 no caso Brown vs. Maryland (Temas de direito público: estudos e
pareceres, v. 1, p. 549). Ainda sobre a expressão americana, inclusive citando o trecho do voto
no qual a expressão aparece pela primeira vez (CRETELLA JÚNIOR. Tratado de direito adminis-
trativo: poder de polícia e polícia, p. 4-5).
764
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativoǰȱǯȱşśǯȱȱȱęȱ
ȱȱ¡¨ȱȃȱȱÇȄȱ¨ȱȱDZȱęǰȱǰȱȱȱÇȱȱȱ
objeto de atividade legislativa. “Mas a actividade pela qual o Estado cria as leis de polícia não
é, em si, actividade policial, pois esta tem natureza administrativa e aquela caráter legislativo”
(Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270). Eliezer Martins investe contra a deno-
minação “poder de polícia” (veremos que isso é comum entre os que escrevem sobre o assunto),
com base na ȱęȱȱ¡¨: “Trata-se de designativo manifestamente infeliz.
A expressão engloba, portanto, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas
a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos”. Ora, essa crítica aplicar-se-
ia a qualquer termo abrangente. Por exemplo: Justiça designa tanto um aparato institucional
quanto a qualidade dos atos justos. Seria a designação Justiça “manifestamente infeliz”? De
resto, a verdade é que ninguém nunca se confundiu quanto a qual polícia se esteja referindo:
em primeiro lugar, porque o uso de polícia no sentido de edição de leis é raro no Brasil; em
segundo, porque, nos casos em que é utilizado, ou o sentido é deduzido pelo contexto, ou se
usa o termo lei de polícia, que também não deixa dúvida acerca de sobre o que se está tratando
(MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de
direito administrativo econômico, v. 2, p. 345).
765
“Atividade” ou “função”, e não instituição ou grupo de funcionários públicos (CHAPUS. Droit
administratif général, t. I, p. 697).
766
“A polícia intervém nas actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais.
Só aquilo que constitua perigo susceptível de projectar-se na vida pública interessa à Polícia, e
não o que afecte interesses privados ou a intimidade das existências pessoais” (CAETANO.
Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270-271, grifos no original).
767
Falando de uma “polícia bromatológica” (higiene dos alimentos) e de uma “polícia genética”,
v. PESTANA. Direito administrativo brasileiro, p. 507.
768
LINOTTE. L’unité fondamentale de l’action administrative ou l’inexistence de la police admi-
nistrative en tant que catégorie juridique autonome. In: LINOTTE (Org.). La police administra-
tive: existe-t-elle?, p. 10-28, especialmente p. 10-19.
ȱ¤ǰȱȱęȱȱȱ·ȱ¤Dzȱȱȱ
Administrativo, como modo de ação administrativa, poder jurídico ou
poder administrativo; e no Direito Constitucional, como atuação do Estado
que se limita pelos direitos fundamentais e pela proporcionalidade. Pois,
por muito estudado que seja, e talvez até por isso, não lhe cessam as con-
trovérsias. Vejamos então.
O poder de polícia, ao contrário dos serviços públicos, não vive
em crise, o que é de se estranhar, já que pouca gente parece gostar dele.
Acusa-se-lhe de ser ou inútil ou equivocado (e se trataria de equívoco perigoso).
A primeira crítica, a da inutilidade, foi verbalizada por Agustín Gordillo
ȱŗşŜŖDZȱȱȱȱÇȱȱÇęDzȱȬȬȱȱȱ-
vidade administrativa em geral; com a ampliação da área de atuação da
Administração, e com a pluralidade de meios para isso, haveria uma in-
distinção entre a atuação “de polícia” e a atuação geral da Administração,
ontologicamente inseparável da função de condicionar direitos. O poder
de polícia seria inútil: confundir-se-ia com a atuação administrativa do
Estado.769 770
A segunda crítica não diz respeito ao conteúdo do poder de polícia,
mas à ascendência histórica da noção e a um mau uso potencial implícito na
expressão (e que se pretenderia exorcizar pela não utilizaçao).771 Explica-se.
O poder de polícia seria atributo essencial do Estado de Polícia, não
dos atuais Estados Democráticos de Direito. Por conta disso, a expressão
teria envelhecido mal. Mais ainda, haveria uma espécie de desvio con-
ceitual intrínseco no termo, já que a palavra “poder” remeteria à época
em que Administração Pública exercia-o antes e independentemente da
lei. Sem contar que a expressão poderia fazer supor a existência de um
poder discricionário implícito e ilimitado de interferir na vida privada.772
769
ȱ ȃ¨ȱ¡ȱȱȱȱȱȁ³¨ȂȱâȱȱęȱȱȁȱȱÇȂDzȱ¨ȱ¡ȱ
porque essa função se distribuiu amplamente dentro de toda uma atividade estatal. A coação
estatal atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os particulares para a conse-
cução de determinados objetivos de bem comum ou de ordem pública segue sendo uma rea-
lidade no mundo jurídico, porém não é que exista uma parte dessa coação, uma parte desses
órgãos e uma parte desses objetos que se encadeiem entre si diferenciando-se do resto da ação
estatal e institucionalizando-se no mencionado ‘poder de polícia’” (GORDILLO. Tratado de
derecho administrativo, t. II, p. V, 13, 14).
770
Outros autores, sem necessariamente aceitarem as conclusões de Gordillo quanto à não utili-
£³¨ȱȱ¡¨ǰȱ·ȱȱȱęȱȱȱȱȱȃȱȱÇȄȱ
diferenciado da atuação executiva geral. Assim, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría
jurídica, p. 9-10).
771
GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 104-106. A crítica
vem desde a doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola,
italiana e argentina.
772
“Daí o perigo da contaminação semântica que implica utilizar o conceito de polícia para en-
globar o que não é mais do que um conjunto inorgânico de atividades administrativas de li-
mitação; um conceito que gera uma tendência a supor a existência de potestades interventoras
onde não existem, que legitima a criação de poderes implícitos ou ‘naturais’ onde não podem
existir ou, quando menos, que propicia interpretações expansivas e ampliadoras das potesta-
des criadas pela lei, em prejuízo da liberdade” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general IIǰȱǯȱŘśŖǼǯȱ1ȱȱǰȱȱȱ¤ȱǰȱȱȱȱĴȱ
Mayer, o poder de polícia estava, sim, associado a um dever geral, imposto aos administrados,
de respeitar a boa ordem social — coisa que é incompatível com o Estado de Direito, ao menos
na forma como entendido hoje, em que corretamente se postula que só existem, para os admi-
nistrados, deveres legais.
773
PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade.
774
Santi Romano trata do tema no Livro IV de seus Princípios de direito administrativo italiano, sob a
rubrica “Teoria das Limitações Administrativas à atividade privada”. Apesar da referência da
Professora Odete a essa obra do autor italiano (em seu artigo Poder de polícia, já citado), parece-
nos que Santi Romano não elaborou, aqui, proposta substitutiva da expressão “polícia”, tanto
assim que, nos subitens do capítulo, e ao longo do texto, utiliza-se largamente da palavra (o
subitem 2 se chama “Polícia de Segurança”, o 3, “Polícia Sanitária”, o 4, “Polícia dos Costumes”,
o 5, “Polícia Rural”, etc.) (ROMANO. ȱȱĴȱȱ, p. 243 et seq.).
775
CASSAGNE. Derecho administrativo, v. 2, p. 319-325.
776
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 243-290.
777
SUNDFELD. Direito administrativo ordenador.
778
ȱ ȃȱ¹ȱęȱȱȱȱÇȱȱȱàȱȱ·ȱȱ
ǰȱȱ¨ȱȱȱȱȱ³¨DZȱȱǰȱȱȱȱȱęȱ
possuem habitualmente uma função prática capital; são veículos de expressão, mas também
¨ȱǰȱǰȱȱǰȱȱȱȱ£ȱȱàȱęȱ
pragmáticas” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 245).
779
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 70.
780
“Não parece adequado alterar o título de noções jurídicas consolidadas, mesmo que seu con-
øȱȱ³¨ǯȱȱ³ȱęȱȱȱȱȱȱęȱȱȱ-
ǯȱȱ·ȱȱȱ³¨ȱȱȱȱȱȱęȄȱǻǯȱȱ
de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 93).
781
Ao contrário de certa crítica à utilização da expressão, que, sem favor, faz parte do mal cuja
cura pretende ser: ao denunciar a ideologia das construções tradicionais, ingressa numa crítica
ideológica de sinal invertido.
782
Sempre vai ser possível insistir que, mesmo fazendo as ressalvas, o uso da expressão continuará
dando azo a um não sei o quê de autoritarismo. Alguns trechos de Luis Manuel Fonseca Pires
caminham nesse sentido, verbis: “[...] Não basta dizer que o Estado contemporâneo encontra-se
sob um arquétipo democrático e juridicamente axiológico de bens caros à sociedade [...], pois
ȱȱĚ¹ǰȱȱȱȱȱÇȱ³¨ȱȱ³¨ȱȱǰȱȱȱȱȱ
externa a origem e o evolver arbitrário deste instituto. [...] fatos históricos aliados ao antigo instituto
“poder de polícia”, os quais sugestionam, equivocadamente, a interpretação do direito — normalmen-
te, em prejuízo do administrado porque dissonante da ordem jurídica estabelecida na Carta
Magna”. Se for esse o caso — coisa que não acreditamos —, será a primeira vez que o elemento
histórico da interpretação, que, entre nós, possui reduzida importância, vai prevalecer contra
as advertências uníssonas da doutrina. E não se trata do uso do elemento histórico: tratar-se-ia
de completo mau uso ǯȱ1ȱȱ³ȱ·ȱȱȱȱȱęȱȱȱȃĚ¹ȱȱ
um atavismo”. Mas, para sermos honestos, o autor, em outro momento, traz o que considera
¡ȱȱȱĚ¹DZȱǻǼȱȱȱ¤ȱȱȱȱȱȱȱ
a autoexecutoriedade é ínsita à função da administração ordenadora; (ii) a ênfase no exercício
ȱ³ȱÇȱȱȱȱȱęȱȱȱȱÇDzȱǻǼȱȱ³¨ȱ¡ȱ
com a coação, o que conduz “a uma maior legitimidade do uso da força pública na interpretação
e aplicação do direito”; (iv) a confusão entre o instituto do poder de polícia e a ideia de sanção
administrativa; (v) o não desenvolvimento, ao menos com a magnitude que deveria ter, do estu-
do sobre os limites do poder de polícia, já que o pressuposto é a ação coativa da Administração
Pública. Continuamos discordando. Ponto por ponto: (i) não há relação biunívoca entre defesa
de uma interpretação restritiva da autoexecutoriedade e defesa da superação da ideia de poder
de polícia, o que seria o caso se houvesse relação entre os conceitos. Odete Medauar e José dos
Santos Carvalho Filho defendem a interpretação restritiva da executoriedade — aliás, tal posição
785
É curiosa a opinião de Farlei Martins e Alexandra Campos, para quem a tese de Gordillo
não é aceita, na doutrina e na jurisprudência brasileira, ou por “receio de alguns autores em
empreender uma análise crítica da noção jurídica”, ou porque o termo “poder de polícia”
consta da Constituição e das leis. Não acreditamos nisso. Em primeiro lugar, não há motivos
para se temer qualquer análise crítica. Se assim fosse, não se estaria questionando a ideia de
supremacia do interesse público, muitíssimo mais fundacional do que a de poder de polícia.
Além disso, em certas circunstâncias, é até mais difícil defender um conceito tradicional do
que aderir a posição que, com ou sem razão, coloca-se como inovadora. Se alguém tivesse
de temer algo, seria quem defende o “ultrapassado” poder de polícia, e não os que o atacam.
Em terceiro lugar, e objetivamente, o tema é tratado pela doutrina brasileira, ainda que não
necessariamente fazendo-se referência à posição de Agustín Gordillo (o que não é grave, já
ȱȱȱȱ³¨ȱȱȱȱÇȱȱȱȱȱȱǰȱȱĚ¡ȱ
na Itália e na Espanha). Numa rememoração rápida, tratam do assunto, entre outros, muitos
dos quais até citados por Farlei e Alexandra, os seguintes autores: Odete Medauar (rejeita a
posição), Celso Antônio Bandeira de Mello (concorda com Gordillo), José dos Santos Carvalho
Filho (rejeita o abandono da noção), Lúcia Valle (concorda e até mudou o título do capítulo
sobre poder de polícia em seu manual), Raquel Urbano de Carvalho (menciona a posição, mas
a rejeita), Carlos Ari Sundfeld (aceita, ainda que em seus termos), Luis Manuel Fonseca Pires
(concorda e baseou um livro na concordância), Alexandre Santos de Aragão (menciona). É
ȱęȱȱȃȱȱȱȱȱȱȱ³ȱ-
lógico de superação da noção”. O que é verdadeiro é que a doutrina brasileira, em sua maioria,
rejeita a tese da superação, cada autor com seus argumentos. O esforço metodológico existe;
o que não há é, em muitos casos, a concordância em relação à tese de Gordillo. Além disso, é
importante não supervalorizar a referência constitucional e legal a poder de polícia, já que o
que não faltam são posicionamentos doutrinários que interpretam referências legislativas de
modo “superador do texto legal”. Ou seja: a doutrina brasileira está ciente do debate e, em boa
parte, rejeita a ideia de superação da noção. É injusto chamá-la de medrosa ou de literalista.
Quanto à jurisprudência, vale o mesmo: se a tese não “pegou” na doutrina — pelo menos
com a força com que se esperava —, provavelmente também não vai ser incorporada tão
intensamente pelos tribunais (CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de
Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homena-
gem a Agustín Gordillo, p. 176-177).
moderna, seu passado, por pior que seja, será purgado.786 Seu risco virtual
é compensado por sua utilidade atual.
Dito isso, já podemos avançar o assunto. Da conceituação, saber
o que a polícia é, passamos agora às distinções apontadas pela doutrina:
ęȱȱȱȱȱȱÇȱnão é.
786
Nesse sentido, Cosculluela Montaner e Mariano Benítez: “Não se vê a vantagem que possa
ter denominar polícia como poder de ordenação e controle, uma vez que a polícia em um
Estado constitucional e democrático perdeu sua força expansiva, como título habilitante autô-
nomo, e conecta-se totalmente à defesa do status libertatis que o mesmo consagra” (BENÍTEZ;
MONTANER. Derecho público económico, p. 212).
787
“E cá estamos em pleno domínio da polícia administrativa. Num domínio onde as duas ideias
predominantes são a prevenção e o perigo. Evitar que os perigos se convertam em danos —
eis o campo onde se desenvolve o modo de agir administrativamente que se chama Polícia”
(CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 268).
788
Talvez seja o caso de se abandonar o critério. É o que faz René Chapus, que diz que elas podem
ter caráter tanto preventivo quanto repressivo, e que isso é ponto de identidade entre as duas polí-
cias. Ou seja, justamente o contrário do que diz a maioria da doutrina brasileira (para quem
ȱ·ȱ·ȱȱ³¨ǼǯȱȬȱȱDZȱȃęǰȱȱȱȱȱÇȱȱ
assumir tanto um caráter preventivo quanto repressivo. Sem dúvida, a polícia administrativa
tende a prevenir os problemas de ordem pública. Mas [...] ela também pode ser suscitada
ȱâȱęȱȱDZȱȱȱȱ³¨ǰȱȱ£ȱȱȱ³¨ȱ
perigosa ou insalubre ou ao suprimir uma causa de problema à tranquilidade pública. Sem
dúvida, também, a polícia judiciária é geralmente repressiva. Ela costuma ser posta em ação
depois do golpe, em consequência da ocorrência efetiva de certos fatos. Mas, como se verá, ela
também pode ser exercida para prevenir uma ocorrência” (CHAPUS. Droit administratif géné-
ral, t. I, p. 736-737). Na doutrina brasileira, crítico desse critério, v. FURTADO. Curso de direito
administrativo, p. 660.
789
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 466.
790
Art. 114, §5º: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;
ȱȱȱȱǰȱ·ȱȱ³äȱęȱȱǰȱȱȱ¡³¨ȱ
de atividades de defesa civil”.
791
Apesar disso, há livros cuja promessa do título não se cumpre em seu interior. Por exemplo,
o livro “Constituição e poder de polícia” é inteiramente devotado a uma análise crítica da
política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro nos anos oitenta. Ora, seria melhor
outro título (PINHEIRO. Constituição e poder de polícia). Há outros que cumprem o prometido:
A polícia no Estado de direito, do Professor português António Francisco de Sousa, trata tanto
do poder de polícia quanto dos aspectos mais tipicamente associados à corporação policial
propriamente dita (uso de arma de fogo, interrogatório policial etc.). A respeito do poder de
Çȱȱȱǰȱǰȱęǰȱ¡ȱ
ȱȱȱǻOs limites do
poder de polícia do policial militar). Ainda, Cláudio Pereira de Souza Neto (A segurança pública
na Constituição Federal de 1988: conceituação constitucionalmente adequada, competências
federativas e órgãos de execução das políticas. Revista de Direito do Estado, p. 19-73).
792
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 700.
793
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 144 et seq.
de limites também o será. Só que não é nesse sentido que serviço público
está na Constituição, no mínimo porque seria indistinguível de poder de
polícia, e, desse modo, a distinção feita no art. 145, II, da Constituição (entre
“poder de polícia” e “serviços públicos”), não faria sentido.
A diferenciação doutrinária clássica, então, diz o seguinte: serviços
públicos possuem caráter positivo, enquanto o poder de polícia tem caráter
negativo. O caráter positivo derivaria do fato de que o serviço público é o
oferecimento de uma utilidade ou de uma comodidade aos usuários; ele
“dá” alguma coisa. Já dizer que a polícia administrativa possui conteúdo
ȱęȱȱDZȱȱ£ȱȱȱȱȱȱ-
tando o exercício de direitos (ela “retira” algo, em sentido aproximado),794
ou dizer que ela impõe deveres de não fazer ou de tolerar. No segundo
ǰȱȱę³¨ȱ·ȱǰȱ¤ȱȱ¡ǰȱȱ¨ȱǰȱ-
ções de fazer dentro do contexto do exercício de poder de polícia,795 embora
também isso possa ser polemizado pela doutrina.796 Só que a complicação
não é exatamente essa.
Na prática, muitas vezes acontece uma integração material das ativi-
dades de polícia e de prestação de serviços públicos, na medida em que as
estruturas estatais de polícia também costumam prestar serviços públicos.
O inverso também é verdade: na prestação de serviços públicos pode haver
a adoção de medidas de polícia. A explicação para isso ou decorre da
794
“Mas repare-se no contraste que formam: os serviços de utilidade pública actuam fazendo
prestações ȱęȱȱÇǰȱȱȱȱȱDzȱȱȱÇȱ
é um sistema de restrições que limita a liberdade individual” (CAETANO. Princípios fundamen-
tais do direito administrativo, p. 267, grifos no original).
795
Assim, Eliezer Pereira Martins: “Caracterizar o poder de polícia, portanto, como positivo ou nega-
tivo depende apenas do ângulo através do qual se encara a questão. De um lado, o poder de
polícia tem, na quase totalidade dos casos, um sentido negativo, porém sentido de abstenção
(non facere). [...] De outro lado, no condicionamento do uso da propriedade imobiliária nos
termos do art. 5º, XXIII, c/c art. 182, §4º, da CF, temos exemplo típico de atuação de polícia
administrativa consistente num facere” (Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, v. 2, p. 349). No mesmo sentido,
citando, como exemplo de imposição de deveres de fazer dentro do poder de polícia a cons-
trução de saídas de emergência (na polícia das construções) e a adoção de providências que
impeçam a deterioração de alimentos perecíveis (na polícia sanitária) (JUSTEN FILHO. Curso
de direito administrativo, p. 464).
796
“Os exemplos apresentados pelo Professor Justen Filho devem ser entendidos como condições
ao exercício de atividades ou de direitos, e não como a imposição de obrigação de fazer, pura
e simplesmente. Se alguém decide construir prédio, somente poderá fazê-lo se forem observa-
das as normas técnicas de segurança. Se alguém decide comercializar alimentos, deve obser-
var as normas sanitárias relativas à conservação e à higiene dos produtos” (FURTADO. Curso
de direito administrativo, p. 669. Na verdade, Lucas Rocha até defende a possibilidade de que o
exercício do poder de polícia implique a imposição de obrigações de fazer, mas apenas quando
se utilize de técnicas de informação, sendo o administrado obrigado a prestar informações
sobre si ou sobre sua atividade para a Administração Pública; aqui Lucas Rocha Furtado está
se utilizando da tripartição das técnicas de polícia administrativa, proposta por Santamaría
Pastor, que fala em técnicas de condicionamento, técnicas ablatórias e técnicas de informação
(SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281).
ę¹ȱȱȱ³¨ȱȱ³äȱ¥ȱ³¨ȱȱȱȱ
produção de condutas constitucionalmente desejáveis — não basta impor
a polícia de trânsito, é necessário investir em campanhas educativas, que
é atividade de serviço público797 —, de uma maior aproximação entre as
esferas pública e privada,798 ou, no caso da prestação de serviços públicos
em que se incrustam medidas de polícia, da própria complexidade das
necessidades a serem atendidas pela prestação desses serviços: ao forne-
ȱ¤ȱ¤ǰȱ·ȱȱȱȱ¥ȱÇȱȱȱęȱȱ
prevenir e reprimir o desperdício.799 800
Ainda na tônica da diferenciação da polícia em relação a outras
atividades estatais: ela não se confunde com a regulação jurídica da economia.
Há, aqui, várias teorias.
Num ponto todos concordam: o poder de polícia seria o ancestral
da regulação.801 Só que a regulação pública seria mais abrangente do que
o poder de polícia — estamos falando, é claro, da polícia incidente sobre
atividades econômicas, já que ninguém nunca confundiu licença de obra
com ato de regulação econômica.
Seria mais abrangente por dois motivos: em primeiro lugar porque
o poder de polícia não incidiria sobre os serviços públicos, delegados ou
não, cuja titularidade é sempre pública (como se sabe, apenas seu exercício
·ȱȱȱ³¨ȱǼǯȱǰȱȱȱȱęȱȱȱ
poder de polícia incide, apenas, sobre atividades privadas, ainda que tais
atividades possam ser desenvolvidas por estatais. Já a regulação pública não
teria tal restrição: incidiria, também, sobre os serviços públicos delegados.802
Segundo motivo: o poder de polícia acabaria se resumindo a técnicas
de informação, de condicionamento do exercício de direitos (autorização,
797
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 467-468.
798
FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 646.
799
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 468.
800
Há uma quarta razão pela qual as atividades podem se misturar: são as hipóteses, comuns, nas
quais a prestação de um serviço público é, por assim dizer, o exaurimento do exercício da ativi-
dade de polícia. Isso ocorre quando o consentimento público se materializa na emissão de um
documento. Por exemplo: a atividade de polícia que é o consentimento quanto à prática da direção
veicular por uma pessoa — a licença para dirigir, espécie de ato vinculado de polícia — exaure-se
numa prestação de serviço público, que é o ato da expedição da carteira de habilitação. Seja como
ǰȱȱàȱ¨ȱ·ȱȱȱęǰȱȱ¤ǰȱǰȱȱȱǻÇǼȱȱ
predomina sobre outra (serviço público).
801
VENANCIO FILHO. A intervenção do Estado no domínio econômico: o Direito Público Econômico
no Brasil, p. 83.
802
“‘Regulação’, por sua vez, parece que assume sentido mais amplo do que se deu à administração
ordenadora e ao poder de polícia. A doutrina de Direito Econômico faz uso desse termo para
tratar da mecânica estatal de ordenação das atividades econômicas em geral, incluindo, por-
tanto, os serviços públicos e as atividades econômicas em sentido estrito” (MENDES. Reforma
do Estado e agências reguladoras: estabelecendo os parâmetros de discussão. In: SUNDFELD
(Coord.). Direito administrativo econômico, p. 116).
803
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281.
804
A discussão adquiriu relevância quando se tratou de saber qual era a natureza jurídica das
“taxas regulatórias”, instituídas pelas leis criadoras das agências reguladoras. Se a atividade
das agências fosse exercício de poder de polícia, as taxas seriam taxas de polícia, e, portanto,
espécie tributária, submetidas a todo o estrito regime constitucional e principiológico aplicável
aos tributos. Se a atividade das agências reguladoras fosse outra coisa que não poder de polícia,
as ditas taxas seriam enquadradas noutra categoria conceitual, de índole não tributária: seriam
preços públicos, ou seja, retribuições contratuais, devidas em razão do exercício de dever de
ę£³¨ȱǻȱ¨ȱȱȃȱÇȄǼǯȱ1ȱȱȱȱȱȱȱ¡ȱ¨ȱ
entende que a natureza das “taxas regulatórias” poderia ser ou de taxa propriamente dita, ou
de uma retribuição contratual, ou, ainda, de uma contribuição de intervenção no domínio eco-
nômico (nesse caso, a natureza jurídica só valeria para as agências federais, porque só a União
pode instituir CIDE). As retribuições contratuais seriam os valores cobrados por agências regu-
ladoras cuja atividade incidisse sobre serviços públicos delegados (já que o poder de polícia
não poderia incidir sobre atividades privadas). As taxas propriamente ditas seriam aquelas
cobradas por agências reguladoras cuja atividade incidisse na atividade privada em sentido
estrito (por exemplo, a taxa da ANVISA). Finalmente, as CIDES seriam as “taxas regulatórias”
que, cobradas sobre a regulação de atividades privadas, revertessem para o fomento e a pro-
moção do setor regulado (ARAGÃO. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico, p. 332-333). Ainda, SOUTO. Desestatização: privatização, concessões, terceirizações e
regulação, p. 461. Por outro lado, há autores que defendem a natureza tributária para todas as
“taxas regulatórias”, porque as agências reguladoras seriam autarquias, entes de direito público,
e, assim, jamais poderiam cobrar preços públicos pelo exercício de suas atribuições legais.
Com tal posicionamento, Marçal Justen Filho (O direito das agências reguladoras independentes,
p. 478). Ainda, CAL. As agências reguladoras no direito brasileiro, p. 128. A jurisprudência, de
modo geral, vem entendendo que as “taxas regulatórias” são tributos, e não preços.
805
Marcos Juruena relaciona os institutos da seguinte forma: a regulação atuaria dentro da polícia
administrativa, e não o contrário, como sustenta a maioria da doutrina. A “regulação de polí-
cia” — o termo é do autor — teria como propósito assegurar que “bens e serviços de interesse
geral” oferecessem duas coisas: “segurança” e “preços não abusivos”. Para fazer isso, o agente
regulador colaboraria na formulação da política setorial, e controlaria produto, fornecedor,
bens de produção e preços. Exemplo típico de regulação de polícia: a atividade da ANVISA
junto aos medicamentos. Não concordamos com tal opinião. Ou as atividades mencionadas
por Marcos Juruena se enquadram perfeitamente na noção de polícia (por exemplo, sanitária),
ou fazem parte dos deveres jurídicos gerais de defesa da concorrência (evitar preços abusivos),
ou escapam para a noção tradicional de regulação (auxiliar na formulação de políticas públi-
cas) (SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 76-77).
ęǰȱȱȱę³äȱ¨ȱ³äȱ¤ǯȱȱ¨ȱ¨ȱ
mais adaptativas, se incorporam “anomalias” e se exigem repostas ad hoc
para que continuem existindo, talvez seja hora de trocá-las.806
Desse modo, um novo entendimento do poder de polícia poderia
fazê-lo aplicável aos serviços públicos e aberto a técnicas mais consen-
suais (quanto a esse último ponto, já há até quem o admita desde agora).807
806
KHUN. ȱȱȱ³äȱÇę.
807
A discussão sobre a admissibilidade de técnicas consensuais no exercício do poder de polí-
cia é ampla. Para alguns, haveria um dever constitucional da adoção de técnicas consensuais
— como se houvesse um “princípio da consensualidade” inscrito em nossa Constituição. A
maioria dos autores, no entanto, ao tratar da consensualidade, fazem-no ligando-a à propor-
cionalidade-necessidade, em especial quando da aplicação de sanções: o Estado teria dever de
optar por soluções menos gravosas ao particular, o que frequentemente recairia na obrigação
da adoção de soluções negociadas entre Poder Público e administrado. Já outros autores acre-
ditam que o exercício do poder de polícia é incompatível com acordos de vontade: a fonte
da imposição de obrigações deve ser, sempre, e de modo direto, a lei. Em nossa opinião, há
de se descartar, por absurda, a ideia de um “princípio constitucional da consensualidade”,
banalização tanto da noção de princípio constitucional quanto da de consensualidade. Além
disso, tal princípio seria inútil: ele seria, apenas, uma manifestação do dever de proporciona-
lidade. O ponto é, precisamente, a incidência do dever de proporcionalidade. E o problema
no argumento da grande maioria dos autores de Direito Econômico, no Brasil, é que ele, inte-
ressadamente, só analisa a situação à luz das “medidas menos gravosas ao particular”, mas se
esquece da segunda parte da formulação da “regra” da necessidade (ou subprincípio, ou pos-
tulado normativo aplicativo, ou máxima, ou seja lá como se queira chamá-lo): devem-se adotar
as medidas menos compressivas de direitos fundamentais do particular, na medida em que
garantam, com intensidade semelhante, a realização do objetivo. Não foram poucas as vezes em
que se vindicou a adoção de medida administrativa “menos restritiva a direito fundamental
ȱÇȄȱȱȱȱȱȱ·ȱȱę¹ȱȱ³¨ȱȱàȱȱȱȱ
ȱȱǰȱȱȱ¨ȱ¡ȱȱȱǰȱȱÇȱȱȱę¹ȱ-
trativa também é princípio constitucional (art. 37, caput, CRFB/88). Não existe nada próximo a
um “dever constitucional genérico de suavidade no trato com o particular”. O dever de propor-
cionalidade-necessidade é uma exigência de minoração de efeitos lesivos diante de alternativas
que resultem em efeitos próximos. E, a par disso, muitas das propostas de “consensualização” e
ȱȃĚ¡£³¨Ȅȱȱȱȱǰȱ(i) ou não servirão para a obtenção de resultados
próximos às soluções de força, ou (ii) porque não há metodologia capaz de demonstrar que os
ȱȱ£¨ȱȱȱȱȱȱǻȱȱȱ¤ȱ¨ȱę³äȱ
ȱ¡ȱȱę³Ǽǯȱȱȱǰȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱ
falou, em nossa opinião há, sim, espaço para a adoção de técnicas consensuais de polícia. Não
vemos nenhuma contradição entre tais técnicas e a polícia administrativa. E a explicação é sim-
ples: o exercício do poder de polícia, como qualquer ocasião de limitação de direitos, far-se-á
conforme à máxima da proporcionalidade, a qual inclui a ideia de necessidade, ideia que, por
sua vez, pode sugerir a adoção de soluções consensuais como meios menos lesivos dos direitos
fundamentais dos particulares afetados pela medida em consideração. Defendendo a ideia de
que há um princípio constitucional da consensualidade, v. PESSÔA. Os paradigmas jurídicos
e as relações entre política e direito. Revista de Direito Administrativo, p. 115-131. Sobre o tema
em geral, v. MOREIRA NETO. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista
de Direito Administrativo, p. 129-156-132; ARAGÃO. A consensualidade no direito administra-
tivo: acordos regulatórios e contratos administrativos. Revista de Direito do Estado, p. 155-174;
Dzȱ
ǯȱȱ³¨ȱȱȱȱȱȱȱ³¨ȱ
Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação.
In: ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E ENSINO DE DIREITO
– CONPEDI. Para o uso do argumento da proporcionalidade no Direito Econômico, entre
tantos, v. ARAGÃO. O princípio da proporcionalidade no Direito Econômico. Revista de Direito
811
Art. 170, parágrafo único: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade eco-
nômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”
(grifos nossos). As atividades privadas autorizadas são, precisamente, os “casos previstos em
lei” nos quais se exige a prévia autorização.
812
Mas também, por exemplo, o usuário de uma biblioteca pública ou um aluno de um colégio
øǰȱȱȱ¥ȱȱÇęȱȱȱȱǰȱǰȱǰȱȱ£ǰȱ
são verdadeiros mini-estatutos.
ŘǯŘǯřȱÇȱȱę³¨ȱȱȱȱÇȱ
Diz-se que o poder de polícia é (i) discricionário, (ii) presumivelmente
válido e verdadeiro, (iii) eventualmente autoexecutório, (iv) exigível, (v) instru-
mental à realização dos direitos fundamentais, (vi) instrumental à realização da
democracia.
ȱȱȱęȱȱȱȱȱÇȱǻǼȱ“é, em prin-
cípio, discricionário”.814 Em sentido contrário, alguns autores passaram a
ęȱȱȱÇȱȱȱȱǯȱ
Tal modo de perceber a ação administrativa peca por exagero e por
ę³¨ǯȱ¡ǰȱȱȱȱȱȱę³¨ȱȱ³¨ȱàȱȱ
faz como reação à percepção de que, quando se fala em discricionariedade,
está-se falando em arbítrio — e não é nada disso. Não é preciso ingressar
no terreno da vinculação para que determinado ato administrativo possa
ser não arbitrário: basta o exercício correto da discricionariedade.
ȱ ȱ ȱ ¨ȱ ·ȱ ǯȱ 1ȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȃ·Ȅȱ
¤ȱȃȄȱȱäȱę³¨ȱȱȱȱ
administrativa. Os atos são mais ou menos vinculados, a depender dos
termos da lei com base na qual serão praticados. Há atos que, de fato, são
bastante vinculados, ou intensamente abertos à discricionariedade, mas,
no cotidiano do Direito Público, são exceções. A maioria dos atos está
entre os extremos.
Há, então, predominância estatística de atos de polícia mais vin-
ȱȱȱ¤ȱȯȱȱȱȱȱȱȱę³¨ǵ
813
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 271.
814
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134.
815
“A multiplicidade proteiforme das actividades individuais perigosas não permite que as leis
prevejam todas as oportunidades em que as autoridades policiais hajam de actuar e os modos
pelos quais devam fazê-lo. Nasce daí o caráter normalmente discricionário dos poderes de polí-
cia” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 272, grifos no original).
ęȱȱȱȱȱÇȱ·ȱȃȱ¤ȄȱǻqǯȱCurso
de direito administrativo, p. 992).
816
“A rigor, se nos dermos ao trabalho de examinar as situações em que o Estado exerce a ativi-
ȱȱÇǰȱęȱȱa quase totalidade delas se insere no âmbito vinculado da atuação
administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 653, grifos nossos).
817
Seria hipoteticamente possível elaborar um levantamento empírico que, para certos atos, em
ȱÇǰȱȱȱǰȱęȱȱ¦ȱȱȱȱÇȱȱ-
culados ou mais discricionários. A pesquisa, no entanto, seria metodologicamente bastante
¡ȱǻȱȱ·ȱȱȱȱȱȱ³¨ǵǼǰȱȱęȱ£ȱ-
nhecimento socialmente útil.
818
Cf. ALEXY. Teoria da argumentação jurídicaDZȱȱȱȱȱȱȱȱȱę-
³¨ȱÇǰȱǯȱŘśŚǰȱȱȱDZȱȃ1ȱÇȱ¥ȱę³¨ȱ¤ȱǰȱȱȱ
provisoriamente, itens que foram previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo
ȱ ȱ ęǰȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ¹ȱ ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ¡ȱ
ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a questão de valor em cada
caso. Essa função redutora de encargo não só é indispensável para o trabalho do tribunal que
ȱȱȱȱǰȱȱ·ȱȱ¦ȱȱȱ¨ȱÇȱÇęǯȱ
Também nessa esfera — como em todas as esferas — é impossível discutir tudo de novo em
todos os casos”. A função de descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela gra-
ças à qual, segundo Atienza, “não se precisa discutir tudo a cada vez” (ATIENZA. As Razões do
Direito: teorias da argumentação jurídica). Ainda, ver ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱȱę³¨ȱ¥ȱ
aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., p. 56-57.
819
Embora se possa aceitar o uso com base numa espécie de metonímia jurídica.
820
CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA.
Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordillo, p. 165.
ǯȱȱȱȱ·ȱ¤ȱęȱȱȱȱȱ·ȱ
compatível, tanto formal quanto materialmente, com o Ordenamento. A
presunção de veracidade implica assumir que determinada pressuposição
ȱę³¨ȱøȱȱȱȱ¦ǰȱÇȱȱ
evento realmente existente no mundo fenomênico.
Vamos analisar a presunção de validade e de veracidade.
Há três possibilidades de se entendê-las. Na primeira delas, signi-
ęȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱ¤ȱ·ȱȱȱ
contrário: o particular deve não apenas os impugnar, mas fazer prova de
sua invalidade. Nesse sentido, tal presunção é banal, já que quem alega
tem de provar a alegação em qualquer hipótese, seja questionando ato
administrativo ou não.
No segundo sentido, a presunção de validade (aqui, muito mais
³¨ȱȱǼȱęȱȱȱȱȱȱȱȱ
a fazer prova negativa em relação a fatos alegados pelo Poder Público: o
particular teria de provar a ocorrência dos fatos que alega e a não ocorrência
dos fatos alegados, em defesa, pelo Poder Público. O Poder Público pode-
ȱȱęȱȱ·ǰȱ¤ȱǰȱȱȱȱȱǰȱȱȱ
genericamente a presunção, a causa, em princípio, seria sua.
Nesse sentido, a presunção de veracidade é absurda e incompatível
com a ideia de publicidade, transparência, verdade material, contraditório,
ampla defesa, presunção de inocência, e, no limite do argumento, com o
próprio Estado de Direito.821 Todos devem provar o que alegam, e alegações
genéricas são, apenas, papel e tinta em vão.
No seu terceiro sentido, a presunção de validade e de veracidade sig-
ęȱȱȱȱȱȱȱȱ³¨ȱ
Pública, de tal modo que, na dúvida, a causa deveria ser julgada de modo
favorável ao Estado. É, talvez, o sentido mais profundo, argumentativo e
“material” da presunção: na dúvida, atos públicos são válidos e verdadei-
ros. Aqui, a presunção conecta-se com a ideia de presunção de legitimidade
do Estado e de presunção de boa-fé na atuação da Administração.
Embora, em princípio, sejamos contrários a distribuições não equita-
tivas de cargas argumentativas — sem falar no quão difícil é operacionalizar
isso, sem o transformar numa blindagem dos atos públicos —, parece-nos
que tal presunção como peso no argumento deva ser mantida, à conta do
caráter transindividual dos interesses buscados pela Administração.
Tal presunção como peso no argumento deve, no entanto, ser qua-
ęȱȱ¡¹ǯȱȱ³¨ȱȱȱȱȱȱȱȱ
ȱ ¨ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ę³¨ȱ ǰȱ
821
GUEDES. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação
que se impõe. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas,
p. 241-266, passim.
822
É claro que estamos falando de “outros poderes” em prol da simplicidade do texto, já que todas
as funções estatais — e não, tecnicamente, “poderes”, já que o poder estatal é uno — praticam
atos administrativos.
823
“A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de Administração decidir e executar diretamente
sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, é outro atributo do poder
de polícia” (MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134-135, grifos no original).
824
BORGES. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?. Revista de Direito
do Estado, p. 137-153.
825
Boa criterização continua sendo, na doutrina brasileira, a de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“a) Quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente para a
defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem
sacrifício ou risco para a coletividade; c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a
satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à
medida de polícia” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 829).
826
BOMFIM; FIDALGO. Releitura da auto-executoriedade como prerrogativa da Administração
Pública. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 267-309,
passim.
827
Ver, à frente, análise sobre a essencial incompatibilidade entre ponderação e núcleo essencial.
ȱǰȱęȱȱȱȃȱȱȄȱȱȱȱ³¨ȱȃȱȱ
ȱøȱȱȱȄȱ·ǰȱȱǰȱ·Ěǯ
828
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 459, grifos nossos.
829
Por todos, v. SARLET. ȱę¤ȱȱȱ: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional, passim.
830
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito
na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática.
831
Defendendo que, já hoje, o acesso à internet é direito humano, v. a excelente obra digital de
Bárbara Nascimento O direito humano de acesso à internet – Fundamentos, conteúdo e exigibilidade
(Amazon Digital Services, 2014). O autor deste livro elaborou o prefácio da referida obra.
ȱ ȱ ·ȱ ȱ Çȱ ȱ ę£ȱ ¥ȱ ȱ ȱ ȱ ȃȱ
para a realização” seja aplicável — o exercício do poder de polícia não
deve ser entendido apenas como instrumento de realização da democracia,
mas como competência que se realiza em conformidade com a democracia —,
no essencial, concordamos com o jurista. E avançamos na proposta: boa
forma de operacionalizar essa conformidade democrática é submetê-la ao
limite da razão pública. A conferir.
ȱȱęȱȱ¨ȱ¤ȱ·ȱȱę³¨ do poder
de polícia. O assunto é de origem francesa. Fala-se numa polícia geral e
numa polícia especial. A polícia geral seria aquela cujo objeto se voltasse ao
conteúdo tradicional da Ordem Pública, na acepção francesa: segurança,
tranquilidade, saúde. Já na abrangência da polícia especial estariam as
DZȱÇȱǰȱâǰȱȱęäȱǯȱ
¤ȱȱȱȃ·Ȅȱȱę³¨DZȱȱǰȱȱ¨ȱ
serve para nada. A ser verdadeira a lição de Ricardo Guastini segundo
ȱȱȱ³äȱàȱȱęȱȱȱǰ833ȱȱę³¨ǰȱ
no Brasil, perde sua razão de ser. Na França, o exercício da polícia geral
pode ser feito por regulamentos autônomos, já o da polícia especial, não.
No Brasil, não há essa diferenciação: ou se acredita nos regulamentos au-
tônomos, e aí eles são aceitos para o exercício da polícia como um todo,
ou não se aceita, e aí não será uma diferenciação pelo conteúdo que os
tornará admissíveis.834
Passemos ao assunto dos limites clássicos ao exercício do poder de
polícia.
832
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
833
GUASTINI. Distinguendo: estudios de teoría y metateoría del derecho.
834
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 824-826.
835
Marçal diz que a polícia administrativa é um conjunto de competências (p. 459).
836
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 276. “Não está no âmbito das
suas atribuições, por exemplo, ordenar a execução de um contrato ou fazer pagar uma dívida”
(p. 277). No mesmo sentido: “O exercício do poder de polícia deve ser submetido aos limites
que decorrem da Constituição Federal e das leis. A missão da polícia é a de proteger a ordem
pública, na medida em que se fala de polícia de segurança. Logo, a polícia não poderá colocar a
força de que dispõe à disposição da proteção de interesses exclusivamente privados” (LIMA. Princípios
de direito administrativo, p. 319, grifos nossos).
837
“É, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da
ȱȱęȱȱȱ³¨ȱȱȱȱǯȱȱȱ
à eliminação dos processos maliciosos e sub-reptícios (e, por isso mesmo, socialmente mais
nocivos) de arbítrio administrativo acobertado pelo aparente respeito à lei” (TÁCITO. Temas
de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 531).
838
Os motivos são tão importantes para o controle dos atos de polícia que, na França, há certas
condutas privadas que carreiam uma tradicionalíssima presunção (relativa) de ausência de motivo
de polícia em favor do particular: são as manifestações exteriores tradicionais de religiosidade
(procissões, comboios fúnebres etc.). Presume-se que tais condutas não ameaçam a tranqui-
lidade pública. Se o Estado pretender limitá-las, deve não apenas motivar tal propósito, mas
£¹Ȭȱ ȱ ȱ ȱ ęǯȱ ǯȱ ȱ ¨ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ Abbé Didier,
julgado em 1º de maio de 1914. Cf. GAUDEMET. Droit administratif, p. 313. De qualquer modo,
ȱę³¨ȱȱȱȱ¡ȱȱȱ¡ȱȱøȱ£¨DZȱȱ¹ǯȱȱ
sentido, MINET. Droit de la police administrative, p. 233-234.
839
A doutrina discute se a desapropriação e as demais limitações à propriedade poderiam ser
ȱȱȱȱȱÇǯȱȱȱȱǰȱęǰȱȱȱ
assunto à parte, embora alguns deem a entender que a desapropriação é o exercício extremo
de uma polícia da propriedade. Não entraremos no assunto.
840
“As decisões individuais de polícia devem ser precedidas de um procedimento contraditório,
que permite a seus destinatários apresentar suas observações e fazer valer seus direitos”
(MINET. Droit de la police administrative, p. 234).
841
“De todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, a de polícia é a que mais requer a obser-
vância da legalidade administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 657).
842
A respeito da submissão geral do Direito Administrativo ao regime dos direitos fundamen-
tais, v. SANTOS NETO. O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo.
ęȱȱȱ¨ȱȱȱȱÇȱȱȱȱȱȱȱ
mais “modernos”, além dos manuais, que hoje em dia já se referem ao assunto —, ver, por
exemplo, FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública e o reexame dos
institutos da autorização de serviço público, da convalidação e do “poder de polícia adminis-
trativa”. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, espe-
cialmente p. 326-332; FREITAS. Direito fundamental à boa administração, p. 114-125; MORGADO.
Direito à boa administração: recíproca dependência entre direitos fundamentais, organização
e procedimento. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 68 et seq.
843
Conséil d’État statuant au contentieux, nº 136.727, 27 de outubro de 1995. Da decisão, alguns
trechos merecem destaque: “Considerando que cabe à autoridade investida de poder de polícia
municipal tomar todas as medidas para prevenir um atentado à ordem pública; que o respeito
à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública; que a autoridade investida de
poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais particulares, interditar
uma atração que atente contra o respeito à dignidade da pessoa humana [...]; Considerando que, por seu
próprio objeto, uma tal atração atenta contra a dignidade da pessoa humana; [...] Considerando que o
respeito ao princípio da liberdade de trabalho e ao da liberdade de comércio e de indústria não
é obstáculo a que a autoridade investida de poder de polícia municipal interdite uma atividade,
mesmo lícita, se uma tal medida é a única capaz de prevenir ou fazer cessar um atentado contra
ȱ ȱ øȄȱ ǻ³¨ȱ ǰȱ ȱ Ǽǯȱ Çȱ DZȱ ǀĴDZȦȦ ǯǯ
ȦĜǯǵƽǭ¡ƽŖŖŖŖŖŝŞŝŝŝŘřǁǯȱ
Acesso em: 06 jan. 2010. A mesma decisão foi tomada para o caso Ville d’Aix-en-Provence, que
trata de hipótese idêntica (o prefeito desta outra cidade interditou a atração local de arremesso
de anões alguns meses depois do prefeito de Morsang-sur-Orge). No Brasil, ver o comentário
ao caso de Joaquim Barbosa Gomes (O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa
humana na jurisprudência francesa. ADV Advocacia Dinâmica – Seleções Jurídicas, p. 17 et seq.).
844
Embora tenha havido referência à dignidade humana em leis e decisões judiciais francesas
anteriores. O legislador francês, em lei de 30 de setembro de 1986 sobre liberdade de
comunicação, limitou-a “na medida requerida [...] ao respeito à pessoa humana”. No Código
Civil francês, lei de 1994 introduziu, no art. 16, dispositivo segundo o qual “a lei assegura a
primazia da pessoa, proibindo-se qualquer atentado a ela e garantido o respeito do ser humano
desde o começo de sua vida”. O Conselho Constitucional, também em 1994, com base na
primeira frase do preâmbulo da Constituição francesa de 1946, considerou que “a salvaguarda
849
“O que devemos, entretanto, assinalar é que, na ideia de garantia de um direito vai implícita a
possibilidade de limitação desse direito ou do respectivo exercício” (LIMA. Princípios de direito
administrativo, p. 304).
850
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
851
LIMA. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia
administrativa. Revista dos Tribunais, p. 123-127, passim.
852
“Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energica-
mente com a liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema
cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pre-
tendido por lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração”
(BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 830, grifos no original). Celso
Antônio ainda menciona dois modos de excesso: mais intenso ou mais abrangente do que
deveria ser. Mais intenso: o uso de violência para dissolver reunião não autorizada, porém
ÇęǯȱȱDZȱȱ¨ȱȱȱȱ³¨ȱȱȱǰȱȱȱÇȱ
ȱȱ³¨ȱȱ¨ȱÇęȱȱȱȱȱÇȱǯ
853
“[...] Proporcional à gravidade da possível perturbação — por exemplo: em locais de grande
Ě¡ȱȱȱ¨ȱȱ³äȱȱȱȱȱȱȱȱĚ¡ȱȱ
pessoas” (MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 339).
854
“Nenhuma restrição à liberdade individual deverá exceder jamais a medida absolutamente
necessária à preservação da ordem e da segurança públicas” (LIMA. Princípios de direito
administrativo, p. 307).
855
“O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que dispõe a
Administração ao praticar atos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção seja
utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada
onde não houvesse necessidade” (CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 83).
856
“O requisito da proporcionalidade no exercício da polícia administrativa impõe que a atua-
³¨ȱ ȱ ³¨ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ¤ȱ ¥ȱ ę¤ȱ ȱ ę£³¨ȱ ȱ ȱ
embora mencione o favor libertatis na polícia, que não é outra coisa senão
a proporcionalidade-necessidade, fala na proporcionalidade ao momento
da atribuição de faculdades para o exercício da polícia. Isto é, não apenas na
dosagem da sanção, ou genericamente nas medidas de polícia, mas a
proporcionalidade incidiria também ao vetar “a atribuição de poderes
ȱ¤ȱȱȱȱęȱȱȱȱ-
venção se propõe”.865
Desse recenseamento, vê-se que a proporcionalidade, decorrência
de sistema de direitos que assumem a estrutura, em muitos casos, de
normas-princípio, incide como graduadora da intervenção ordenadora do
Estado. É o guia da ponderação entre a necessidade de preservação dos
direitos individuais afetados e a necessidade de otimização da realização
dos interesses públicos.
ǰȱęȱȱȱ³¨ȱøǰȱȱ¡Çȱ
ȱÇǰȱ¤ȱȱȱȱ£ȱȱȱȱęȱ
pretendida, e, dentre esses meios, deve escolher aquele que, capaz de pro-
£ȱȱȱȱę¹ȱǰȱȱȱȱȱȱȱ
atingido. Duas outras exigências: o benefício atingido pelo uso da polícia
deve suplantar os gravames causados; e, ao planejar a ação de polícia, a
Administração Pública não deve se “empoderar” de mais capacidades e
atribuições do que as que realmente precisará.
O terceiro “novo” limite ao exercício da polícia costuma ser apresen-
tado em conjunção à proporcionalidade: é a necessidade de preservação do
núcleo essencial do direito que esteja sendo objeto da ação de polícia.
A razão para isso é singular: segundo uma das teorias a respeito
de tal conceito — a teoria externa, aplicável ao tema geral da restrição dos
direitos fundamentais —, o resultado de uma ponderação entre princípios
é, necessariamente, aquele que não afeta o núcleo essencial do direito que
está sendo restringido. O resultado da incidência da proporcionalidade
é o próprio núcleo dos direitos fundamentais. Fala-se, então, num núcleo
essencial relativo.
A teoria concorrente, a teoria internaǰȱ äȱ ȱ ȱ ę³¨ȱ ȱ
limites do Direito seja algo interno a ele, quer dizer, que não se faça de
modo relativo à incidência dos demais direitos e circunstâncias. Quando
se argumenta que certa situação “por óbvio” não está incluída na área de
proteção de determinado direito — na linha “andar pelado pelas ruas não
se inclui no direito à liberdade de expressão artística” —, está-se pressu-
ǰȱȱȱǰȱȱę³¨ȱ·Ȭȱȱȱȱ
direito fundamental. Daí que o núcleo essencial dos direitos fundamentais
não vai passar a depender das circunstâncias concretas e dos direitos em
jogo: tratar-se-á de núcleo essencial absoluto.
865
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 252.
866
Por todos, ver Jane Reis Gonçalves Pereira (Interpretação constitucional e direitos fundamentais,
p. 174-182).
867
ȱ ȃȱǰȱȱȱ¨ȱȱȱ·ȱÇęȱȱȱȱDzȱ
sua percepção é considerada quase intuitiva e está relacionada com a evidência desses limites
para o senso comum” (BARCELLOS. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 61).
868
“O que importa assinalar, no entanto, é que as limitações administrativas à liberdade e à proprie-
dade, por serem simples conformação do Direito, não geram qualquer direito à indenização, ao
contrário do sacrifício do direito que consiste na ação autorizada do Estado para diretamente
combalir o próprio direito do administrado (como ocorre com a desapropriação, a servidão e o
tombamento) [...]” (PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 319).
ȱ ȱ£ǰȱȱȱęǰȱȱ³äȱȱ¡ȱȱ¨ȱȱȱȱȱ-
869
viços públicos, que adota conceitos e percepções teóricas tributárias da teoria dos direitos fun-
damentais e da teoria dos princípios, mas que, aparentemente, acredita num núcleo essencial
absoluto, tanto que adota e menciona a distinção entre limitações e violações de direitos. Ao
tratar das atividades privadas autorizadas, informa que, em tais casos, o Estado poderá impor
obrigações de fazer aos particulares autorizatários de modo mais intenso ao que poderia nas
atividades privadas propriamente ditas — mas o limite a tal imposição é “o núcleo essencial
ȱȬȄǯȱǰȱ¨ȱȱȱȱȱęDzȱęǰȱǰȱȱȃ¤ȱȱ
mínimo daquele direito subjetivo de iniciativa privada que deverá sempre ser resguardado”. E
dá, como exemplos de imposição de obrigações de fazer que violassem o “núcleo essencial da
livre-iniciativa”, uma empresa privada de plano de saúde que fosse obrigada a tratar pessoas
que não fossem seus clientes, uma universidade privada que fosse obrigada a custear percen-
tagem mínima de bolsistas, cinemas obrigados a realizar sessões públicas ou à divulgação de
ęȱȱȱøDzȱȱȱ³¨ȱȱȱȱȱ
serviço à parcela mais pobre da população; banco obrigado a oferecer linhas de microcrédito.
Não concordamos que esses sejam, em todos os casos e circunstâncias, bons exemplos de inter-
venções públicas desproporcionais, e, por conseguinte, violadoras do núcleo essencial — sem-
pre relativo — da livre-iniciativa. As circunstâncias podem variar, os direitos em jogo podem
assumir importâncias distintas, a capacidade econômica da empresa pode comportar uma
³¨ȱøȱȱȱęȱǯȱȱȱǰȱȱȱȱȱȱ-
³¨ȱȱ¡³¨ȱȱęȱ·ȱǰȱȱęȱȱ¡³¨ȱȱȬȱ
ǵȱȱȱ³äȱęǰȱȱȱ£ȱȱ¥ȱȱȱ-
ção de seguro popular, elaboradas, padronizadas e eventualmente impostas pela SUSEP? Será
que violaria o núcleo essencial da livre-iniciativa se o maior grupo de universidades privadas
do país, o grupo Estácio de Sá, com mais de setenta e oito unidades ao longo do país, e mais
de cento e vinte mil alunos, fosse obrigado pelo Poder Público, caso já não contasse com um
programa de bolsas (o que é o caso), a oferecer um por cento de suas vagas a pessoas carentes?
Não existem respostas fáceis a essas perguntas, ou seja, não existem respostas prontas, tudo
é relativo, e o guia de tudo é a máxima da proporcionalidade (ARAGÃO. Direito dos serviços
públicos, p. 202 et seq., os exemplos estão nas p. 209-210).
870
SUNDFELD. Condicionamentos e sacrifícios de direitos: distinções. Revista Trimestral de Direito
Público – RTDP, p. 81.
871
As ideias dos últimos parágrafos são tributadas a Virgílio Afonso Silva (O conteúdo essencial
ȱȱȱȱȱę¤ȱȱȱǯȱRevista de Direito do Estado,
p. 23-51, passim e Direitos fundamentaisDZȱøȱǰȱ³äȱȱę¤ǰȱpassim). Sobre
núcleo essencial dos direitos fundamentais, v. GAVARA DE CARA. Derechos fundamentales y
desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley
Fundamental de Bonn; LOPES. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Revista de Informação Legislativa.
£³¨ȱȱàȱȱȱøȱę¤ȱ¥ȱ£ȱȱȱ
os seus standards de incidência (ver capítulo 1, primeira parte), isto é, à luz
(1) de sua inclusão nos sentidos textuais possíveis da Constituição, (2) de
sua compatibilidade material com a Constituição, (3) de tais propósitos
ȱȱȱęȱǻȱ³äȱǼȱȱȱ³¨ȱȱ
maior bem-estar social geral, (4) de a produção de tais consequências mais
ęȱȱȱǰȱȱÇǰȱȱ¤ȱǻȱ¤ȱ¨ȱȱ
ęȱȱ³¨ȱȱȱǼǰȱǻśǼȱȱȱ¹-
ȱȱęȱȱÇȱȱȱȱȱ
exercício ou, no máximo, num futuro próximo, (6) do fato de as alegadas
razões de interesse público para o exercício da polícia estarem baseadas
em razoável base empírica, (7) de tais razões de interesse público não se
basearem em alegações fundacionais (dogmas, pressuposições acríticas,
ȃȄǼǰȱǻŞǼȱȱȱęȱȱȱ¡ÇȱȱÇȱȱ-
textuais às circunstâncias de seu exercício.
Exemplos ilustrarão o ponto. Os números correspondem aos
standards.
(1) Não é possível pretender produzir resultados que não estejam
contidos nos sentidos textual e material da Constituição. No exercício da
polícia, não é possível, por exemplo, pretender exterminar raça de animais
por razões de conveniência estética (viola materialmente o art. 225, §1º,
VII, da CRFB/88).
(2) Não é possível a restrição de propriedades privadas com o
propósito da construção de espaçoportos (a facilitação do pouso de óvnis
não é propósito que consiga ser encaixado em qualquer dispositivo da
Constituição).872
(3) Não é possível proibir a circulação de veículos durante três
dias corridos por semana, sob o propósito da melhoria do trânsito ou da
ȱȱǰȱȱȱȱÇęȱ£ȱȱ
resultado semelhante.
(4) Seria inválido o exercício de polícia administrativa econômica
que, sem maiores estudos, a pretexto de apostar ȱȱȱĚ³¨ǰȱ
resolvesse tabelar os preços de bens e serviços, durante certo tempo, por
valores aleatórios. Entre tantas inconstitucionalidades de tal medida, uma
é a de que se trata de polícia antipragmática por raciocinar a partir da
produção de consequências incertas ou improváveis.
(5) Não é válida a ação de polícia de trânsito que, no início de janeiro,
ȱȱ¡ȱȱȱęȱȱȱȱȱǻȱàȱ¨ȱ
em meados de fevereiro), restringe a circulação em diversas vias públicas.
872
Embora, sob certas circunstâncias, a questão possa se reconduzir à promoção do turismo.
Exemplo: na cidade de Varginha, em Minas, seria pelo menos defensável a construção de tal
instalação.
ǻŜǼȱ1ȱħÇȱȱ³¨ȱȱÇȱǰȱȱȱÇȱȱ
Çęȱȱȱ³¨ȱȱȱ¥ȱ³¨ȱȱ-
baias, pretenda ingressar nas residências e exterminá-las. O problema
não é a possibilidade de ingressar em residências para combater a den-
gue — exemplo clássico de polícia —, é a falta de razoável base empírica
assecuratória da produção das consequências esperadas.
(7) Interditar a realização de atividades religiosas por fundamentos
materiais como a contradição aos “bons costumes” é exercício inválido do
poder de polícia, pois se baseia numa alegação fundacional (o fato de que
possa existir um padrão de “boa sociedade” com seus costumes próprios).
(8) Bailes de Carnaval não podem ser proibidos com o propósito de
ȱȱ³¨ȱȱ³ȱȱ³¨ǰȱȱȱȱȱȱę-
cativas não se referem às circunstâncias do exercício da polícia.
É claro que muitas incidências desses standards de nosso princípio
do pragmatismo jurídico indicam conclusões a que se chegaria por outros
argumentos. Assim, no caso (1), a simples incidência da legalidade já
resolveria o problema; em (3), a proporcionalidade-necessidade também
daria conta da solução. Mas o fato é que os argumentos se somam, não
se excluem. Em rigor, muitas das conclusões atualmente indicadas pela
incidência da máxima da proporcionalidade poderiam ser obtidas por
argumentos clássicos como a “interpretação sistemática”, a “interpretação
teleológica” e, no Direito Administrativo, a teoria dos desvios de poder.
A proposição de novos “princípios” e limites ao exercício da polícia ad-
ȱ¨ȱȱ¤ȱȱȱęȱȱȱȱęȱȱ
ǰȱȱȱȱȱȱȬȱȱȱȱȱ³¨ȱøȱęȱ
e controlada.
Falemos agora do limite consistente na razão pública. Como aplicar
a razão pública como limite ao exercício da polícia?
Também aqui, como no caso de nosso “princípio” do pragmatismo
jurídico, a razão pública funcionará como controle aos argumentos que
possam fundar o exercício da polícia. Só poderão ser aceitas razões uni-
versalizáveis, tendencialmente neutras, não polêmicas. Razões que não
pertençam, de modo exclusivo, a uma das doutrinas abrangentes. Se a
polícia é a atividade de impor condicionamentos a direitos individuais em
prol do interesse geral, é natural que se faça com argumentos capazes de
serem aceitos por todo o estrato social. Além disso, os requisitos de apelo
ȱ³ȱǰȱȱȱ³¨ȱȱȱ·ȱÇęȱ¨ȱ
controvertidos continuam válidos.
Observação interessante: a teoria francesa clássica do poder de
polícia sempre defendeu que a polícia só se ocupasse da “ordem material
e exterior, considerada como um estado de fato oposto ao da desordem,
o estado de paz oposto ao estado de confusão”. Hauriou escreveu que a
polícia “não persegue a ordem moral nas ideias e nos sentimentos”. Caso
isso ocorresse, aproximar-se-ia da Inquisição e da opressão de consciên-
cia.873 Embora a própria jurisprudência do Conselho de Estado francês
haja, em alguns casos, ultrapassado os limites defendidos pela lição — há
àȱȱȱęȱȱȱȱ³äȱȱȯǰȱȱ
menos a principal fundamentação dos acórdãos não foi a análise de con-
teúdo das obras, mas o grave comprometimento à ordem pública causado
por sua exibição.874
Ora bem: o critério da razão pública é, de certo modo, complementar
à lição de Hauriou. Em princípio, a polícia administrativa não deve se ocupar
de considerações subjetivas, íntimas, ideológicas ou morais. Não há razão de
ȱ øȱ ǰȱ ȱ ȱ ǰȱ ęȱ ȱ ³¨ȱ
de polícia “moral”.
Contudo, podem existir manifestações que, à luz das circunstâncias
ǰȱ ¡ħȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¡Çȱ ȱ ȱ
ȱȱȱȱȱȱøȱęȱȱ-
ções de conteúdo. Nesses casos, a polícia administrativa só poderá funcionar se
as suas razões para a ação forem razões públicas. Na excepcionalidade de ser
necessário atuar junto a um controle material, a Administração Ordenadora
só poderá se legitimar pelo apelo a argumentos neutros, universalizáveis,
capazes de serem aceitos por toda a sociedade.
¡DZȱ Ȭȱ Çȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
nazista ou fascista, porque, para além da previsão legal, as razões do
antinazismo e do antifascismo são conforme à razão pública. O mesmo
raciocínio serve para legitimar a repressão administrativa a manifestações
hiperchauvinistas, apologistas do totalitarismo e da violência. Poder de
polícia não é apenas licença para construção e repressão a barulho. A ati-
vidade é mais do que isso: é ordenar a vida em sociedade, nos limites em
que isso seja possível, sem pretender direcioná-la, mas mantendo, sempre,
ȱ³ȱȱȱĚ¹ȱȱȱȱäǯ
Por tal motivo, a razão pública é o critério de controle que melhor
sintetiza a relação entre polícia e democracia. Se o Estado só atua com base
em razões públicas, é um Estado Democrático de Direito do século XXI; se
o Estado, ao excepcionalmente ingressar no mérito das atividades sociais,
apenas restringe as que forem radicalmente antidemocráticas, e isso com
base em razões públicas e postas a público, é um Estado Democrático de
Direito do século XXI que se preocupa em continuar sendo um.
873
HAURIOU. Précis de droit administratif et de droit public, p. 549.
874
BRAIBANT et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 735. Por esse argumento,
tais decisões seriam pragmatistas.
3.1 Introdução
Como poucas atividades incluídas na expressão intervenção875 do
Estado sobre a economia, o fomento público arrisca-se a caminhar sobre o
ęȱȱȱȱȱ¡ȱ¨ȱȱ¡ȱȱȱǯȱǰȱȱ
nas expressões literárias, é atividade que arrisca tornar-se o que já se falou
da psicanálise: o mal cuja cura pretende ser.
Existem dois grandes problemas circundando o fomento público:
(i) os critérios de sua concessão e (ii) sua intensidade e duração.876 O fomento
875
Eros Roberto Grau discute, em certo ponto de A Ordem Econômica, se o designativo para referir-
ȱ ¥ȱ ȱ ȱ ȱ Ě¹ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ³¨ȱ ȱ ³¨ǯȱ
De um lado, toda atuação do Estado na economia é, de certa forma, interventiva, e, como se
trata de atuação do Estado numa área que não é sua — o mercado —, acabaria por assumir
contornos propriamente interventivos. Por outro lado, no caso da prestação ou da regulação
dos serviços públicos, área em que a titularidade é sempre estatal (art. 175, CRFB), o termo
intervenção ¨ȱȱę¤ȱȯȱȱȱ³¨ǯȱȱȱ¹ǰȱȱȱ
utilização intercambiável das expressões, a uma porque a distinção é de reduzido potencial
explicativo, a duas, porque o uso fungível já é comum em nossa doutrina, e, pensando em ter-
mos pragmáticos — sendo quase um campo de prova de nossa tese —, não se deve pretender
ęȱȱȱȱȱÇȱ¡ȱ¨ȱǯȱȱȱǰȱȱ
caso do fomento público, ter-se-ia precisamente uma intervenção, e não uma atuação, já que o
ȱøȱ¤ȱȱĚǰȱȱǰȱȱǯȱǯȱ ǯȱA Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93 et seq. Em sentido contrário àquele que foi aqui defendido, mas por
razões distintas, v. MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 129, grifos no original: “As interven-
ções estatais [...] podem ser ę em quatro tipos quanto a seu conteúdo: a regulatória, a
concorrencial, a monopolista e a sancionatória, não considerada como modalidade de intervenção
o fomento público, que não tem natureza impositiva”.
876
Outra questão importante circunda o fomento: a (ausência de) transparência. Por seu aspecto
difuso, deixaremos de tratá-la, neste capítulo, até porque, em certos casos, a simples adoção
A NEORREGULAÇÃO
PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
1059
O pressuposto operacional deste capítulo é o de que a regulação pública seja uma função
autônoma em relação ao poder de polícia. Como se sabe, esta não é, no fundo, nossa posição
(cf. capítulo 2 da segunda parte).
1060
Haverá algum benefício na função de descarga da argumentação jurídica com o uso do neolo-
gismo? Acredita-se que há algum benefício residual na utilização.
1061
Uma possível comprovação dessa alegação é o sucesso dos mercados de previsão (predicion
markets). Tratam-se de sites de previsão de eventos futuros e incertos, em que os interessados
apostam dinheiro em determinado resultado. O mais famoso deles é o Intrade (<www.intrade.
ǁǼǰȱǰȱȱȱȱȱȱȱȱȱǰȱȱȱ
mais precisos a respeito do resultado da eleição presidencial americana de 2012 (Barack Obama
vsǯȱĴȱ¢Ǽȱȱȱȱȱȱ¨ȱǯȱȱ¤ȱȱàȱȱ
ǰȱȱȱ£ȱ³¨ȱȱȱȱȱȱ¨ȱ¤ȱǻȱet al.
The Promise of Prediction Markets. Science).
1062
ȱ 1ȱȱȱȱę¹ȱȱ¨ȱȱ³¨ȱ¨ȱ·ȱȱøȱȱȱȱȱ
quando da adoção de um sistema de preços. Alguns sugerem, por exemplo, que uma bolsa
de apostas em relação a atividades terroristas conseguiria reunir informação de modo mais
ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¹ǯȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ȱ
rejeitam tal ideia, considerando-a bizarra. Michael Sandel traz uma série de exemplos em que
a introdução de sistemas de mercado soa contraintuitiva, em seu livro What Money Can’t Buy
(SANDEL. What Money can´t Buy: the Moral Limits of Markets). O problema parece se inserir
num debate mais amplo a respeito dos limites morais da economia dos incentivos. Ver, quanto
ȱǰȱȱǯȱ ȱǻȱĴ: Untangling the Ethics of Incentives).
1063
HAYEK. The Use of Information in Society. The American Economic Review.
1064
Por qual motivo o Poder Público haveria de propô-lo ou de mantê-lo? Aqui, novamente, ou
por um problema de informação — o Poder Público não possui domínio sobre os pressupostos
de fato —, ou por uma determinação de vontade dos órgãos deliberativos e/ou executivos, o
Estado acredita que sua mantença produzirá um efeito social global positivo. O Poder Público
acredita que a rejeição poderá ser superada no futuro, que seus benefícios superem seus
prejuízos, ou que há alguma razão simbólica para a manutenção da regulação.
1065
ȱ ǯȱȱĜȱȱȱȱ¢ȱěDZȱ¢ȱȱǰȱǯȱřǯȱȱ¨ȱ
consultada para a elaboração deste capítulo foi o primeiro rascunho. O artigo, com algumas
alterações, foi publicado, sob o mesmo título, na Harvard Law Review (v. 126, 1838, [2013]).
1066
ȱ ǯȱȱĜȱȱȱȱ¢ȱěDZȱ¢ȱȱǰȱǯȱŚǯ
1067
Trata-se da incidência da heurística da disponibilidade na avaliação dos riscos da regulação.
Ver discussão à frente no texto principal.
1068
Essa é, em termos de racionalidade econômica, a razão pela qual não existe diferença entre
sacrifício e limitação de direitos anteriormente a uma ponderação para o caso concreto (ver
capítulo 2 da segunda parte): está-se aplicando uma lógica formal a uma realidade dinâmica. O
resultado é, quase sempre, equivocado, porque ingênuo. Uma digressão ilustrativa a respeito
do ponto foi realizada quando se analisou o caráter probabilístico das consequências a serem
assumidas para a incidência de nosso “princípio” do pragmatismo (item 1.6).
1069
ȱ ȱàȱȱǰȱȱȱȱȱę³¨ȱÇǰȱ·ȱȱȱȱȱȱ
centralização de informação acabam sendo mais refratários à produção de novas regulações
do que estratégias de dispersão de informação.
1070
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law.
1071
Na fase conceitual e constitucional, discutia-se o que eram as agências reguladoras, seu encaixe
constitucional, e os limites e abrangência dos poderes que, desde então, foram-lhes atribuí-
dos. Lugares-comuns do debate eram a legitimidade democrática das agências, a discussão
sobre seu poder normativo, e a polêmica sobre a existência de mandato de seus dirigentes.
Atualmente, vive-se ȱę, com discussões sobre qualidade da regulação, governança
àǰȱ ¤ȱ ȱ ȱ àǰȱ ȱ ȱ ę³¨ȱ ȱ ³¨ȱ ȱ
agências, Judiciário e Legislativo etc.
1072
ȱ ¨ȱ·ȱǰȱȱǰȱęȱȱȱ¹ȱȱȱȱȱȱ
o problema do poder normativo das agências. Assim que as agências reguladoras federais
surgiram, em meados dos anos 90, havia decisões judiciais que rejeitavam a validade dos re-
gulamentos normativos por elas editados. Hoje, na maioria dos casos, tais regulamentos são
ȱȱ¤ǰȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱęȱȱȱȱ
indireto. Mas veja-se a ADI nº 4.874/DF. Ela ataca resolução da ANVISA que proibiu o uso de
ingredientes nos cigarros (acidulantes, sabores etc.), alegando que a vedação deveria vir por
·ȱȱǰȱȱ¨ȱȱǯȱȱŗřȱȱȱȱŘŖŗřǰȱȱȱȱȱ
ȱ ȱ ȱ ę¤ȱ ȱ ³¨ǯȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ¤ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
americanos chamam de “big deal principle”, tal como enunciado no voto condutor do justice
O’Connor no caso Food & Drug Administration v. Brown & Williamson Tobacco Corp (U.S. 120
ǽŘŖŖŖǾǼǯȱȱ£ȱęȱǰȱȃȱȱ¡¤ǰȱȱȱ£¨ȱȱȱȱ
de concluir que o Congresso pretendeu tal delegação implícita [para a agência]”. “Estamos
ęȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱȱȱȱ¨ȱȱȱ
ęȱâȱȱÇȱȱȱ¹ȱȱȱ¨ȱÇȄǯȱȱDZȱȱÇȱ
do big deal ęȱȱ¨ȱȱȱȱȱȱȱȱǰȱȱ
legislador, para que a agência possa deles normatizar. Tratar-se-ia de matéria que se espera
que o Congresso delibere por meio de lei. No entanto, no voto vencido do caso, os justices
¢ǰȱǰȱȱȱ ȱȱȱÇǰȱęȱȱȱ³äȱȱ-
sidentes da República são justamente sobre isso — sobre big deals. Quando o eleitor elege
Bush ou Bill Cliton, ele também elege um programa regulatório sobre questões importantes, e,
portanto, as agências por eles compostas possuem capacidade para editar normas que sigam
tais programas. No Brasil, a questão, como se disse, ainda está em aberto.
1073
ȱ ȱǯȱȱęȱȱDZȱȱȱȱȱȱęȱ. The
George Washington Law Review.
1074
Pode-se especular, no entanto, que as agências reguladoras brasileiras não estejam efetivamente
ęȱȱ£¨ȱDZȱȱ¨ȱȱȱ¹ȱȱȱøȱȱ·ǯȱȱȱ
ȱȱȯȱȱȱȱȱę³¨ȱÇȱȯǰȱȬȬȱȱȱǻȱ¤ȱȱ
ȱȱȱ¹Ǽȱȱȱȱ³¨ȱȱȱÇȱȱǻȱę³¨ȱȱ
processo regulatório normogenético).
1075
ȱ ǯȱǯȱȱ ȱǰȱĜȱȱȱǯ The New York Times. Nesta maté-
ǰȱȱȱȱȱǰȱȱȱ³ȱȱȱȱ³¨ȱǰȱ
ȱȱęȱȱȱȱÇȱȱ¹ȱ·ȱȃȱȱȱȱ³¨ǰȱȱȱ
período de consulta pública, e então agir como quiser” (typical agency behaviour is to “develop the
plan you want, announce a public comment period and then do what you want to do”).
1076
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law, p. 15.
1077
Uma forma institucional de resolver o dilema interesses econômicos privados organizados
versus interesses públicos/sociais desorganizados — o que pode implicar irresolúveis proble-
mas de ação coletiva destes — é evitar o modelo de agências ligadas a objetos econômicos
setoriais, e criar agências de jurisdição geral. É mais difícil capturar a agência se você torna di-
fusos os destinatários da regulação, já que isso agora lhes impõe, também, problemas de ação
coletiva (ainda que tais problemas não sejam incontornáveis: o que ocorre é que as indústrias
se organizam em associações ideológicas de ação comum).
ȱȱ¨ǯȱȱ¤ȱȱǰȱÇęȱȱȱǰȱ
que são perdidos nas audiências e consultas públicas de agências.
Primeiro: o debate parlamentar pode trazer temas à opinião pública
de uma forma que os limites de divulgação de uma audiência ou consulta
jamais permitirão. Basta ver que as manifestações do meio do ano de 2013
tinham como uma das bandeiras a rejeição à PEC 37. É de se duvidar se as
massas iriam às ruas se o assunto estivesse sendo tratado numa consulta
pública.
Segundo: em muitos casos, a perspectiva generalista é boa, e pode
corrigir vieses de foco gerados por análise especializada (sobre o viés de
foco, v. discussão à frente). Os técnicos das agências conhecem profunda-
mente seus setores, mas, às vezes, a melhor regulação é produzida por
quem conhece moderadamente vários setores. O debate parlamentar, que
por vezes é caótico, é, também, multifocal e agregador de informação.
Aceitar ou rejeitar antenas de celulares pode ser visto não só como assunto
de engenharia de telecomunicações, mas também como tema urbanístico,
de saúde pública, de desenvolvimento econômico; talvez a aceitação ou
³¨ȱȱȱȱǰȱęǰȱ·ȱȱǰȱȱ¨ȱàȱǻȱ
talvez nem mesmo especialmente) da profundidade da análise.1078 1079
Portanto, consultas e audiências públicas têm utilidade na obtenção
da adesão dos regulados. Mas não convém aceitá-las acriticamente.
1078
Este ponto também pode vir a ser corrigido por uma perspectiva mais centralizadora no que
toca ao problema da informação. Ver discussão acima.
1079
Há outro aspecto na contraposição entre agências reguladoras e Parlamento. A defesa do mo-
delo das agências se fazia por uma contraposição entre dois modelos caricaturais: o modelo
·Ȭ¹ȱȱȱȱȱȱÇǰȱȱȱȱęȱȱȱ-
zação de modelo técnico. Ora, quando se comparam uma caricatura e uma idealização, é claro
que a última sai vencendo. No entanto, a verdade é que não existe uma divisão em sentido forte
entre técnica e política. Aliás, o ideal democrático é que se coordenem propósitos políticos a
uma viabilização técnica. É possível encontrar argumentos técnicos para variados propósitos
políticos (a palavra “técnica” não equivale à palavra “precisão”). Também é verdade que a
alegação de se estar agindo tecnicamente pode esconder a pretensão de impor, para além do
debate democrático, opiniões isoladas de burocracias estatais. O argumento defendia o poder
normativo das agências pressupondo que elas agiriam de modo exclusivamente técnico, ao
passo que o Congresso atuaria de forma apenas política. A realidade, no entanto, é que tais
extremos raramente se apresentam no cotidiano da produção de normas.
1080
GIGERENZER; TOOD; ABC RESEARCH GROUP. Simple Heuristics that Make us Smart.
1081
O estudo clássico é “Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases” de Amos Tversky e
Daniel Kahneman (Science).
1082
Exercício clássico: imagine que João seja tímido, fechado em si mesmo, ainda que prestativo.
João é alguém que procura, antes de tudo, ordem e estrutura. É mais provável que João seja um
bibliotecário ou um fazendeiro? A resposta correta é fazendeiro — existem mais fazendeiros
do que bibliotecários no mundo. No entanto, muitos creem que João seria provavelmente um
bibliotecário apenas porque ele se pareceria com um.
1083
Num experimento de Kahneman e Tversky, perguntava-se a um grupo qual o percentual de paí-
ses africanos que participavam da ONU. Antes da resposta, rodava-se uma roda com números
que variavam entre um e cem, mas que estava “maceteada” para cair sempre ou no número 10
ou no número 65. Quando a roda parava de girar no número 10, os participantes respondiam
que, na média, vinte e cinco por cento dos países da ONU eram africanos. Quando a roda parava
em 65, a média das respostas era de que os países africanos compunham quarenta e cinco por
cento da ONU. Em outro experimento, pedia-se a dois grupos diferentes de estudantes do ensino
médio para, em cinco segundos, estimar os resultados de (8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1) ou de (1 x
2 x 3 x 4 x 5 x 6 x 7 x 8). O primeiro grupo chutava números maiores (estimativa média de 2.250)
do que o segundo (estimativa média de 512). A sugestão é a de que os estudantes tenham sido
guiados por uma âncora mental associada aos primeiros números de sua respectiva sequência.
1084
É por isso que, em geral, preocupa-se mais com furacões logo após haver-se passado por um; e é
por isso que riscos mais recentes ou mais espetaculares são mais combatidos do que riscos mais
triviais ou mais distantes no tempo. Piscinas domésticas são mais perigosas do que depósitos
de lixo nuclear, mas o público em geral não parece acreditar nisso (BREYER. Breaking the Vicious
CircleDZȱ ȱěȱȱǼǯ
1085
ȱ ȱ¡ȱȱȱȱȱȱȱĴ ȱȱǻ¢¢ȱȱǯȱ
Journal of Economic Literature).
1086
Estudos explicam a estrutura cognitiva que gera tais desvios usando um modelo bipolar. É
como se existissem dois sistemas de pensamento dentro de nós: um responsável pela intuição
e por processos mentais automáticos; outro, responsável por processos conscientes e delibe-
rados. Cabe ao sistema automático a maioria das tarefas cotidianas. Sua domesticação, pelo
sistema consciente, leva tempo e requer esforço. As interações entre os sistemas são o que ge-
ram os vieses (GILBERT. Thinking Lightly about Others: Automatic Components of the Social
Inference Process. In: ULEMAN; BARGH. (Ed.). Unintended Thought, p. 189-211).
1087
Outros exemplos podem ser obtidos em Cass Sunstein (Simpler: the Future of Government).
1088
THALER; SUNSTEIN. NudgeDZȱȱȱȱ
ǰȱǰȱȱ
ǰȱǯȱŜǯ
ȱȱęȱȱȱȱøȱȱǵȱ
Na opinião dos autores, quando as pessoas estão diante de situações nas
quais há probabilidade de que façam escolhas ruins. Quatro são os casos.
ǻǼȱȱ¤ȱ³ȱęȱȱȱȱȱȱȱȱÇȱ
da escolha (ir para a academia versus comer um chocolate). (ii) Quando é difícil
realizar escolha racional por ausência de informação ou de capacidade de
processamento daquele tipo de informação. Ao escolher entre dois produtos
ęȱ¡ǰȱȱ¨ȱ·ȱ¨ȱȱǰȱȱȱ
Ě¡¨ȱȱȱȱȱȱ³äȱǯȱǻǼȱȱ¨ȱ¤ȱ
qualquer feedback a respeito das escolhas (daí não existir qualquer curva de
aprendizado). (iv) Quando há pouca possibilidade de obtenção de informação
via repetição da prática (ex.: compra de imóveis).
É diante desse pano de fundo de escolhas equivocadas e agentes
enviesados que Thaler e Sunstein teorizam sobre sua proposta. Chamam-na
de paternalismo libertário. Há nela algo de paternalista, pois a arquitetura
de escolhas visa induzir comportamentos. Mas ela também seria libertária,
pois a possibilidade de escolha estaria presente.
Há quem critique a ideia. Pode-se resumir o conteúdo da crítica em
seis blocos de conteúdo, a seguir mencionados.
1. O paternalismo libertário é oportunista. O paternalismo libertário lida
ȱȱȱȱȱȱȱę¹ȱȱ¨ȱ
com o propósito de neutralizá-los, mas para tirar proveito deles.
2. Há dúvida sobre a realidade das “escolhas” que estão sendo oferecidas.
Talvez o elemento de “escolha” do paternalismo libertário seja apenas
ȱ ¨ȱ ęǯ Se noventa por cento das pessoas
escolhem a opção determinada pelo Poder Público, podemos
realmente falar em escolhas livres?
3. Há um problema moral no fato de as pessoas não saberem que estão
ȱĚȱȱ£ȱȱȱ ǯȱO Poder Público estaria
abusando da boa-fé dos cidadãos quando desenha escolhas sem
deixá-los informados a respeito disso.
4. O paternalismo libertário vai contra a experimentação. Talvez fosse
melhor que as pessoas fossem livres para aprender com o resul-
tado de suas — boas ou más — práticas.
5. O paternalismo libertário troca os vieses individuais pelos vieses dos
reguladores. O paternalismo libertário não leva em consideração
a possibilidade de falha de governo.
6. O risco do terreno escorregadio: o paternalismo libertário pode começar
certo, mas fornecer base para o abuso regulatório. Existem graus para
ȱȱęȱȱȱ¤ȱȱȱ¨ȱ¤ǵȱ
O nudge é novidade no Brasil. Ainda não há, por exemplo, teoria
brasileira da compatibilidade constitucional do empurrãozinho. Também
a abordagem que propõe — baseada em psicologia experimental — é-nos
1089
A hipótese da variância cultural no uso de nudges é secundada por uma série de estudos
comparativos. Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (The Good, the Bad, and the
Ugly: Assessing Nudging Initiatives From a Brazil-USA Comparative Perspective).
1090
O pioneirismo dos EUA na AIR se dá com a criação, nos anos 70, do Ĝȱȱȱȱ
Budget, e, posteriormente, do Ĝȱȱȱȱ¢ȱěǰȱȱȱ¥ȱȱ
Branca. Em 1974, no governo Nixon, publica-se a Ordem Executiva nº 11.821, a qual obriga a
³¨ȱȱȱ̤ȱȱȱàǯȱǰȱȱȱȱ-
mativo da AIR, nos EUA, é a Ordem Executiva nº 12.291, editada durante o governo Reagan, a
qual introduziu, no Ordenamento americano, o uso do método da análise de custo-benefício,
com o propósito de reduzir o fardo regulatório, aumentar a accountability das agências regu-
ladoras, estimular a supervisão presidencial do processo regulatório e diminuir as regulações
ȱ ȱ Ěǯȱ 1ȱ ȱ ȱ ǰȱ ǰȱ ȱ ȱ ¡ȱ ķȱ ŗŘǯŚşŞǰȱ ȱ
no governo Reagan, que estabeleceu um programa anula de regulação; a Ordem Executiva
nº 12.866, de 1993, já no governo Clinton, que, revogando as Ordens anteriores, estabeleceu
ȱȱ·ȱȱȱȱȱȱȬDzȱǰȱęǰȱȱȱ
Executiva nº 13.563, de janeiro de 2011, atualmente em vigor, e que estabeleceu novos propó-
sitos para as AIR. Sobre o tema, cf. FONTELLES. Avaliação de impacto regulatório e sua aplicação
no Brasil, f. 96-100. Ainda, MORALL III. An Assessment of US Regulatory Impact Analysis
Programme. In: DEIRGHTON-SMITH et al. Regulatory Impact Analysis: Best practices in OECD
ǯȱęȱȱàȱȱȱȱȱ¡ȱķȱŗŘǯŘşŗȱ·ȱȱȱȱȱȱ
se preocupar com a Análise de Impacto Regulatório com esse nome, v. HAHN et al. Assessing
Regulatory Impact Analysis: the Failure of Agencies to Comply with Executive Order 12,866.
1091
V. MIRANDA; BARTHOLOMEU; LIMA. A análise de impacto regulatório como novo instru-
mento de gestão pública no Brasil.
1092
Mas qual seria o encaixe jurídico das análises de impacto regulatório atualmente feitas? Elas
podem se reconduzir a cinco topoi. Eis nossa proposta.
a) ȱę¤ȱȱȱÇȱȱȱę¹ȱ. Tal princípio não ape-
ȱȱ³äȱøȱęȱȯȱȱȱę¤ȱȱȯǰȱȱ·ȱäȱȱ
dever de planejamento ao Estado. E tal planejamento se faz, na seara da regulação pública,
também e especialmente por intermédio de análises de impacto.
b) Ao teste da proporcionalidade em sentido estrito. O terceiro teste da proporcionalidade consiste
em ponderar os custos e benefícios da ação ou rejeição de certa linha de ação. Ou seja: trata-se
de proceder a uma análise de custo-benefício, método típico da análise de impacto.
c) Ao princípio democrático e ao dever de motivação dos atos administrativos. A análise de impacto,
em boa parte de suas etapas, requer a participação dos regulados. Embora a análise de impacto
não produza, por si só, a legitimidade democrática, ela pode auxiliar nisso, ao amenizar “silên-
cios políticos” e permitir que grupos de interesse — por exemplo, trabalhadores — contestem
ȱȱęȱȱ£ȱȱàȱ³äǯȱȱȱȱ³¨ȱ-
ȱĚȱȱȱȱÇȱ¤ǯ
Por outro lado, a análise de impacto serve como instrumento de controle do Estado. Só é
possível controlar os rumos daquilo que é fundamentado técnica e juridicamente. A análise de
impacto é procedimento útil por fomentar a tomada de decisões com conhecimento de causa
e não com base em conjecturas ou fundamentalismos.
Além disso, atualmente todos os atos administrativos que limitem ou condicionem direitos
— como o serão boa parte dos atos regulatórios —, nos termos do art. 50, da Lei Federal
nº 9.784/99, e do art. 93, X, da Constituição da República, devem ser motivados. E o que é moti-
ǵȱ1ȱȱȱ£äȱȱȱȱȱȱȱęȱȱ¤ȱȱǯȱȱȱǰȱ
em se tratando de atos regulatórios, especialmente por intermédio das análises de impacto.
d) A uma analogia com os instrumentos de medição de impacto ambiental. Institutos análogos à
Análise de Impacto Regulatório são o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de
Impacto Ambiental (RIMA), referidos no art. 225, §1º, IV da Constituição da República, na Lei
Federal nº 6.938 /81 e na Resolução nº 1/86 do CONAMA. O procedimento — tanto do EIA
ȱȱȱȯȱȱęȱȱ¡ȱȱȱȬÇȱȱȱ
que se pretende levar a cabo. Ora, nada impediria a extrapolação do argumento até a admissão
de relatórios de impactos regulatórios em sentido amplo. A própria Lei nº 6.938/81, vista de
forma global, indica a necessidade de mensurar os impactos sociais e humanos do projeto.
e) A uma referência normativa. Não há lei das AIRs. O que mais próximo há é o Decreto Federal
nº 4.176, de 2002, que estabelece, em seus Anexos I e II, conjunto de questões a serem anali-
sadas ao momento da elaboração de atos normativos. Além disso, o decreto cria um passo a
passo, em forma de questionário, com vistas a auxiliar na exposição dos fatos que motivaram
o ato. Considerando que muitos atos regulatórios são, antes disso, atos administrativos nor-
mativos, o Decreto seria aplicável, por analogia, como base normativa das análises de impacto.
1093
MENDONÇA. Análise de impacto regulatório: o novo capítulo das agências reguladoras.
Justiça e Cidadania, p. 30. Em sentido semelhante, mas mencionando três etapas — o proces-
so de tomada de decisão da política regulatória, a implementação e o monitoramento —, v.
VALENTE. A análise de impacto como mecanismo de controle do tabaco. Revista de Direito
Público da Economia – RDPE.
1094
OECD. Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), p. 10.
1095
ȱ DzȱǯȱȱȬęȱ¢ȱȱȱȱ. Journal
of Legal Studies, p. 1106-1147.
1096
ȱ ȱȱȱǰȱȱ¡ǰȱ¡Ȭȱȱȱȱ³äȱȃęȄȱȯȱ-
las que possuem impacto anual acima de novecentos mil dólares, impacto sobre mais de um
milhão de pessoas, restrição clara sobre a concorrência de mercado ou afastamento de padrões
internacionais. Já nos EUA, a AIR completa se faz quando os custos anuais da regulação exce-
dem cem milhões de dólares, ou quando as regras implicam acréscimo de custos para setor ou
¨ǰȱȱȱęȱȱȱȱ¹ǰȱȱǰȱȱǰȱ
na produtividade ou na inovação.
1097
MACRAE. Análise de Impacto Regulatório-AIR: a experiência do Reino Unido. In: RAMALHO
(Org.). Regulação e agências reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, p. 255 et seq.
1098
O Decreto Federal nº 4.176/2002 sugere, no segundo item de seu Anexo I, que um dos fatores
desfavoráveis, ao se considerar um projeto de ato normativo a ser encaminhado ao Presidente
da República, é a possibilidade de impugnações judiciais. Em outras palavras: a expectativa
ȱ¨ȱȱȱȱȱ·ȱȱȱĚ¹ȱȱ¨ȱȱ¤Ȭȱȱ¨ǯ
1099
ȱ ǯȱȱȱȱȬęȱ¢ǯȱThe Journal of Legal Studies, p. 935.
1100
ȱ ȱ¤ȱȱȱàȱ¨ȱ·ȱȱ¨ȱȱȱȱȱęȱȱȱ-
diariedade da intervenção do Estado na economia. Ela é um procedimento de transparência
da ação pública que, ao torná-la mais controlável e racional, torna-a, também, mais aberta
ȱĚ¡ȱ¤ǯȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱȱ
economia.
1101
No Brasil atual, pode-se imaginar que os Tribunais de Contas venham a atuar analisando a
qualidade das análises de impacto regulatório realizadas por agências. Os Tribunais de Contas
ȱȱęȱȱȱäȱàǯȱȱȱ¨ǰȱȱÇȱȱ
não impacta na autonomia dessas entidades — é claro que, no limite, há risco de que diálogos
técnicos escondam disputas de poder. Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (A
propósito do controle feito pelos Tribunais de Contas sobre as agências reguladoras: em busca
de alguns standards possíveis. Revista de Direito Público da Economia – RDPE).
1102
No Direito americano, é bom observar que as independent agencies — as agências independentes,
como o Securities and Exchange Comission e o National Labor Relations Board — não subme-
tem suas propostas de normas ao OIRA. Só as executive agencies — as agências excutivas — estão
ȱ ȱ ǯȱ ȱ ȱ ȱ ¡ȱ ȱ ǰȱ ·ȱ Çȱ ęȱ ȱ ȱ ¹ȱ
reguladoras estão mais próximas às independent agencies (embora sem gozar de toda a autonomia
destas) do que às executive agencies (que são, em muitos casos, órgãos públicos comuns). Outro
ponto interessante a se destacar é que, historicamente, os presidentes norte-americanos vêm ten-
tando submeter a atuação das agências independentes à análise do OIRA, até hoje sem sucesso.
1103
O exemplo foi sugerido pelo Professor Mark Tushnet em sala de aula.
1104
Em nossa experiência administrativa, o viés de comprometimento de missão encontra um
estado de “tempestade perfeita” a partir de certos exemplos de atuação do Ministério Público
1107
De lege ferenda, poder-se-ia pensar num opinamento prévio da racionalidade técnica de proje-
tos legislativos a ser exercitado pelas agências reguladoras. O Congresso consultaria as agên-
cias a respeito da tecnicidade de projeto de lei, e estas emitiriam parecer não vinculante.
1108
É importante observar, no entanto, que tais instâncias também podem acirrar tal viés. V. nota
de rodapé supra.
1109
Em sentido próximo (mas não idêntico), v. SUNSTEIN, Cass. Paradoxes of the Regulatory
State. University of Chicago Law Review, p. 407 et seq.
1110
BREYER. Breaking the Vicious CircleDZȱ ȱěȱȱǯ
1111
ȱ
¤ȱ ȱ ¡ȱ àȱ ęȱ ȱ ǯȱ ȱ ȱ ȱ ·ȱ ȱ
paradoxo “richer is safer”. A introdução de qualquer nova regulação possui um preço para a
sociedade. Na média, populações com mais renda livre se expõem a menos riscos. Assim, uma
regulação introduzida para reduzir certo risco pode, ao reduzir a renda disponível, agravar os
ȱȱȱȱȱȱȱȱȱ¡ȱǻ
ǯȱȱȱǯ
The Public Interest, 1980).
1112
V., por todos, SABEL; ZEITLIN. Experimentalist Governance. In: LEVI-FAUR (Ed.). The Oxford
Hanbook of Governance.
1113
Descrição da iniciativa Maine Top 200 e indicação de seus resultados pode ser encontrada
DZȱ
ȱȱȱȱ ȱȱǯȱÇȱDZȱǀĴDZȦȦ ǯ
ǯǯȦ ǯǵƽřŜşřǁǯȱȱDZȱŖşȱǯȱŘŖŗŚǯ
1114
Apesar dos bons resultados, o legalismo adversarial da cultura jurídica norte-americana
impediu a pretendida expansão do programa para o resto do país: a Câmara de Comércio do
Estado ajuizou demanda alegando que a iniciativa era regulação tão intensa que, na prática,
equivalia a uma norma regulatória, a qual teria sido criada de forma ilegal, sem a observância
do rito da consulta pública. A Corte de Apelação do Distrito de Colúmbia invalidou o programa
em 1999. Posteriormente, a administração Bush criou programa semelhante — o “Voluntary
Compliance Program” —, mas sem nenhum benefício atrelado (LOBEL. Interlocking Regulatory
ȱȱDZȱȱ ȱȱȱ¢ǯ Administrative Law Review).
Síntese objetiva
ȱęȱȱǰȱ·ȱÇȱǰȱȱȱȱȱ³äȱ
objetivas, algumas das ideias aqui defendidas.
I - Quanto ao pragmatismo
ŗǯȱȱȱȱȱęęȱȱȱǰȱȱ-
³¨ȱȱȱȱȱę³¨ǰȱȬǰȱȱȱȱ³¨ȱȱ
ȱȱȱȱǰȱȱȱȱǰȱǰȱęǰȱȱȱ
Dewey, uma teoria social. Afora discussões clássicas sobre o assunto — se
ȱȱ·ȱȱȱȱęęȱȱȱȱȱȱ£ȱęęDzȱ
ȱȱ¡ȱȯǰȱȱȱ·ȱȱȱȱęȱȱ¡-
tência de uma “matriz pragmatista” consistente no antifundacionalismo,
ȱȱȱȱ¡ǯȱȱȱȱȱęȱ
do século XIX, o pragmatismo desapareceu, só vindo a ressurgir, de modo
ęǰȱȱȱȱ·ȱǰȱȱȱ¢ȱȱȱęęǯ
ȱ¨ȱȱȱȱ·ȱȱȱȱȱȱęàęȱ
para o debate sobre o pragmatismo jurídico. Embora autores como Richard
ȱȱȱ ¢ȱȱȱȱȱęàęȱȱȱ
a contribuir ao mundo do Direito, pensamos que, ao contrário, é possível
aplicar a “matriz” pragmatista para examinar questões jurídicas. Além
ǰȱ ·ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęàęȱ ȱ ȱ ȱ
contextualizar as propostas das teorias do pragmatismo jurídico, que, em
ȱȱȱǰȱȱȱȱȱÇȱȱęęȱ
pragmatista. Todas as teorias do pragmatismo jurídico têm sua exposição
iniciada com explicações de por que possuem muita, alguma ou nenhuma
³¨ȱȱȱȱęàęǰȱÇȱȱ¹Ȭȱ·ȱøȱȱÇȱ
nesse momento.
2. O pragmatismo jurídico de Richard Posner é a mais famosa teoria
dentro da chave semântica dos “pragmatismos jurídicos”. Ela se diz uma
ȱȱȱȱȱȱäȱȱȱęàęǯȱ
Na essência, é uma teoria da decisão que sugere aos julgadores decidirem
com os olhos postos nas consequências de suas decisões. Os julgadores
devem decidir de modo a produzir as consequências mais razoáveis,
consideradas todas as variáveis relevantes para o caso — incluída a consi-
deração dos efeitos sistêmicos da decisão, isto é, os efeitos para o sistema
jurídico como um todo: a importância de se preservar a generalidade, a
previsibilidade, a segurança jurídica etc.
O pragmatismo jurídico de Posner possui seis características: é
(i) eclético — usa de diversas teorias sem maiores preocupações com
consistências —, (ii) instrumental — vê as normas jurídicas e a teoria jurí-
ȱȱȱȱȱęȱȯǰȱǻǼȱ¡ȱȯȱ¤ȱ¦ȱ
ȱ¡ȱȯǰȱǻǼȱȱȯȱ¨ȱ¹ȱȱȱȱȱęȱȱȱ
mesmo, ainda que na maioria das vezes opte por ela graças a uma decisão
de preservação de valores socialmente percebidos como importantes ao
Direito —, (v) empírico — importa-se com a experiência e com as ciências
experimentais —, e (vi) retórico: liberta-se das amarras do discurso formal
e formalizante do Direito.
Muitas críticas foram lançadas contra a teoria de Posner. Sele-
cionamos seis: (i) o pragmatismo de Posner estimularia uma amplíssima
discricionariedade judiciária; (ii) seria desrespeitoso para com os direitos
fundamentais; (iii) seria incompleto, pois mandaria decidir da melhor
forma possível, mas não diria como se chegar a isso; (iv) seria pouco prá-
tico, uma vez que o caminho mais fácil, seguro e barato, consideradas as
características do processo judicial e a aptidão institucional do Judiciário,
seria a adoção do formalismo como teoria da decisão. Ainda, (v) o pragma-
tismo posneriano estimularia o Legislativo a produzir leis “ruins”, já que,
de todo modo, elas poderiam ser “consertadas” pelos juízes pragmatistas.
ȱ ęǰȱ ȱ äȱ ȱ ȱ ȱ ǻȱ ȱ ȱ ȱ
posneriano seria exemplo) (vi) destruiriam a noção de bem comum,
porque estariam prontas a desconsiderar normas jurídicas em favor de
considerações utilitárias.
Diante de tais críticas, Posner provavelmente replicaria que seu
pragmatismo não concede discricionariedade aos juízes — apenas é
transparente em relação ao que efetivamente já ocorre — e não é menos
desrespeitoso para os direitos fundamentais do que um formalismo
manipulador. Ainda, diria que os juízes, ao decidirem com base no que
pensem ser o melhor para cada um, chegarão a decisões melhores do que
as determinadas pelo formalismo. Aliás, seu pragmatismo recomendaria,
por razões pragmáticas, a adoção do formalismo como teoria da decisão
na maioria dos casos. E o argumento da crítica referente às leis “ruins”
poderia ser revertido, uma vez que os legisladores, mercê das virtudes
do pragmatismo jurídico, poderiam se sentir convidados a elaborar leis
ȃȄǰȱȱęȱȱ³¨ȱȱȱ¤ǯ
ǰȱȱȱ³¨ȱ³ȱ¥ȱȱȱęàȱÇȱȱ
John Rawls.
Na proposta teórica de Rawls, as sociedades contemporâneas oci-
dentais, diante da existência de instituições livres, encontram-se diante
do fato do pluralismo, constituído pela coexistência de uma série de
doutrinas abrangentes razoáveis. Como tais doutrinas pronunciam-se
simultaneamente a respeito de ampla gama de assuntos — religiosos,
ǰȱâǰȱęàęȱȯǰȱȱ¨ȱȱȱȱȱȱ
mesmo tempo. Excluída a resolução de divergências pela força — o que não
seria razoável —, resta às sociedades apelarem a um consenso sobreposto,
ȱȱÇǰȱ¨ȱȱȱęàęǯȱȱȱ
aderirá ao consenso por suas próprias razões, que será estável e incluirá
alguns princípios procedimentais básicos e alguns direitos substantivos.
As razões públicas serão as razões que poderão orientar o debate
público numa sociedade que tenha aderido ao consenso. É um ideal cívico
dirigido a juízes, administradores, legisladores, candidatos em campanha
e eleitores (ao momento da votação) para que, quando argumentarem a
respeito de elementos constitucionais essenciais e questões básicas de
justiça, façam-no apenas com o uso de razões capazes de serem aceitas
por todas as parcelas da sociedade, e, se for o caso, baseadas em assunções
empíricas não polêmicas.
O uso das razões públicas fortaleceria dois ideais: o da estabilidade
social e o da legitimidade das decisões. Considerando que a ideia de razão
pública pode ser aplicada à doutrina jurídica, que é quase sempre norma-
tiva, e, portanto, busca guiar juízes e administradores em suas decisões,
e, ainda, que sua abrangência material pode dar-se para além dos limites
propostos por Rawls — em especial nos casos em que se trate de interpretar
um direito fundamental —, elaboramos uma proposta de razão pública
operacional e baseada na Constituição brasileira.
10. Nossa proposta de razão pública acredita em razões públicas
ȱ ȱ ǻǼȱ ȱ ȱ ȱ ¹ȱ Çęȱ ȱ
¤ǰȱȦȱǻǼȱȱȦ¨ȱęęȱǰȱǰȱȱȱ
caso, (iii) sejam universalizáveis e capazes de serem aceitas por todos os
participantes do debate político-econômico como razões que os respeitem
na condição de agentes igualmente dignos de consideração.
Será, quanto à sua natureza jurídica, um critério interpretativo ba-
seado, em termos dogmáticos, no art. 1º, V, da Constituição da República
— o “princípio do pluralismo político”.
11. Como nenhuma proposta é aceita sem críticas, muitas foram
lançadas contra o ideal da razão pública formulado por Rawls. Se nossa
proposta é dela tributária, as críticas deverão ser analisadas e, na medida
do possível, respondidas.
Diz-se que a razão pública é (i) estéril, pois foge dos principais
debates de uma época e de um lugar; (ii) impossível; (iii) ampla demais,
£ȱȱȱ£äȱęȱȱȱȱ³¨ȱ
diante de um tema polêmico; (iv) restritiva demais; (v) incoerente, e, no
fundo, ideológica.
ÇȱȱȱęȱȱǻǼȱȱȱ¨ȱ·ȱ·ȱ
— ele apenas exclui, e assim mesmo só para certos assuntos e pessoas,
visões ideologicamente carregadas e/ou baseadas em dados empíricos
duvidosos, deixando livre a maior parte dos conteúdos, polêmicos ou
não, em curso na sociedade —; (ii) ele não é impossível: é uma ideia
regulativa, e deve ser aproximado até o máximo possível, ainda que jamais
ȱȱȱ¤DzȱǻǼȱ¨ȱ¤ȱȱȱęȱȱȱ£¨ȱøȱ
ȱęȱȱȱȱ³¨Dzȱȱȱȱàǰȱȱ
ȱ³¨ȱȱȱ¡¹ȱ¤ȱȱę¤ȱȱ³¨ȱ
ȱę¤DzȱǻǼȱȱ¨ȱ·ȱDZȱ¤ȱȱ£äȱøǰȱȱ ȱ
admite mesmo o fornecimento de razões não públicas junto às razões
públicas; (v) ela não é “trapaceada”: só exige alguns requisitos mínimos,
mas permite a eclosão de diversos resultados.
A razão pública possui limites fáticos e psicológicos. Os fáticos seriam
incertezas quanto ao estado da ciência (e eventuais repercussões disso junto
à assunção da verdade ou da falsidade de ideologias). Os psicológicos
seriam a tendência a se autoconsiderar um emissor de razões públicas, e
de se perceber o esforço de acomodação das próprias razões como supe-
rior àquele despendido pelos outros participantes da deliberação. Contra
ȱǰȱàȱȱȱȱ·ȱȱȱÇęȱȱȱ
boa-fé e autoconsciência dos agentes deliberativos.
12. Uma compatibilização entre o “princípio” do pragmatismo
jurídico e o critério da razão pública — cujas proximidades e distancia-
mentos centram-se no caráter fundacional ou antifundacional do libera-
lismo político de Rawls, no que seria, ou não, um ponto de contato com o
pragmatismo — faz-se pelo apelo a acordos práticos teorizados de modo
incompleto — conceito de Cass Sunstein: acordos operacionais baseados
ȱȱȱȱ³äȱęàęȱȱȃ·Ȅȱǯȱȱ
£¹Ȭǰȱȱę¤ȱäȱȱȱȱȱȱȱ
ȱęàęȱȱȱ·ǯ
Encerramento
Fazer incidir o pragmatismo e a razão pública na interpretação
Çȱȱ³¨ȱâȱęȱȱȱ·ȱÇȱȱ
prático e democrático. Há nessa dupla proposta um caráter experimental
e criativo que se adapta às individualidades e coletividades plurais deste
início de século XXI. A história da Constituição Econômica está longe de
terminar: ela está sempre plena de retornos e de ciclos. Daí que, resguar-
dadas certas garantias civilizacionais, ela só se deve permitir capturar pela
vontade democrática de cidadãos livres e iguais. No mais, a História não
acabou. Na verdade é exatamente o contrário: é hoje — como em todos os
dias — que tudo começa.