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Princípio do prazer:
reflexões teóricas e clínicas*
O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre o artigo de Freud, “Além
do princípio do prazer”, ampliar a compreensão de sua dominância, de seus
dois pólos (desprazer-prazer), de sua relação com a compulsão à repetição. A
compulsão à repetição é uma atividade de ligação básica e fundamental do psi-
quismo, que constitui o terreno do próprio e cria condição para o princípio do
prazer. Quando há um excesso de energia livre invadindo o psiquismo, a ativi-
dade de ligação e a conversão da energia livre em energia tônica predominam,
levando o indivíduo a um nível de funcionamento que está aquém-além do prin-
cípio do prazer. O tema é problematizado por meio de material clínico, e uma
articulação da teoria e da clínica é apresentada.
Palavras-chave: Psiquismo, Freud, compulsão à repetição, Além do princípio do
prazer
princípio do prazer. Quando ocorre o com ele com a expectativa que lhe aten-
excesso de energia livre (vai além) da desse em seus anseios, em suas neces-
capacidade estruturante da energia sidades. Ficava muito deprimida quando
quiescente, a tarefa de ligação é funda- a realidade mostrava o contrário do que
mental e a compulsão à repetição apa- desejava. Se ele ia ao clube e não a con-
rece nitidamente. As repetições revelam vidava, se dava atenção especial a outras
que há experiências infantis não ligadas, colegas. Estava atenta a cada movimen-
que excedem e solicitam ligação. A mor- to seu no trabalho, nos passeios. Todo
te como um horizonte da vida e a vida o convite que recebia dele, estava pron-
como adiamento da chegada desse mo- ta para atendê-lo. Lamentava quando não
mento. saíam juntos, principalmente se ele ia sem
Uma das funções do aparelho mental é lhe contar. Entretanto, guardava para si
ligar as pulsões sexuais que incidem todos esses sentimentos. Não tinha co-
nele, substituir o processo primário pelo ragem de lhe falar tudo o que sentia. Jus-
secundário, converter a energia livre em tificava para os outros que sua proximi-
energia domesticada. É preciso tolerar dade se devia a uma grande amizade. Ele,
o desprazer para que as ligações possam por outro lado, alimentava essa relação
ser feitas. As ligações reduzem a inten- parasítica. Parece-me que um era hos-
sidade do prazer e desprazer. pedeiro do outro. Ela até supunha que al-
Se a repetição constitui uma compulsão guns amigos sabiam, pois já tinha ouvi-
ou um prazer, se ela se situa aquém ou do deles conselhos para partir para ou-
além do princípio do prazer, essas duas tra escolha. Mas nada disso era sufici-
perspectivas não se excluem. As liga- ente para afastar-se dele. Algo de mais
ções são em si fontes de prazer, e a vi- forte a impedia. Não percebia que havia
gência do prazer, a morte. Repetição e criado um quadro delirante e que se nu-
prazer estão estreitamente entrelaçados tria dele. Esse excesso libidinoso, e ao
como um jogo. mesmo tempo destrutivo, colocava-a per-
manentemente em cheque com a sua li-
REFLEXÕES SOBRE A CLÍNICA berdade e felicidade. Sentia-se presa e
Uma mulher aos quarenta anos procu- achava que a solução era mudar-se de
ra-me para fazer análise queixando-se de cidade.
um grande sofrimento por ter se apai- Fico a me indagar: o que de seu identifi-
xonado por um homem, um colega de cou com esse homem? Por que se iden-
trabalho que não lhe corresponde. Con- tifica com um parceiro sexual que apa-
sidera-se velha, feia, quer ser outra pes- ga os limites e as diferenças entre os
soa. No decorrer das sessões percebia dois? Como rastear o parasita que hos-
que ela se havia ligado eroticamente a peda em seu psiquismo?
ele, criando psiquicamente um casal Freud já destacou que em Eros pode ha-
imaginário, quase perfeito. Relacionava ver dois movimentos simultâneos, o de
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buscar ligações e ao mesmo tempo pro- seu relato sem cor, sem vitalidade, car-
duzir desligamentos. Da mesma forma em regado de negatividade, com sua vida.
Tanatos há dimensões e formas de uso O seu jeito colorido de vestir, sua atitu-
de forças de destruição que auxiliam de acolhedora para com a família, ami-
na tarefa de manter ligações e coesões. gos, o cuidado com seu carro, aparta-
Essa paciente dizia que procurava a aná- mento. Falávamos das coisas que fazia,
lise para buscar outras formas de rela- mas que não sabia. De sua alta sensibi-
ção, reduzir aquela excessiva erotização. lidade, de tudo que lhe doía, ardia como
Não agüentava mais sofrer. Sabemos que se tivesse uma pele de bebê, mas que ao
o esforço analítico visa capacitar o pa- mesmo tempo mostrava e se apresenta-
ciente a tolerar uma certa cota de des- va no dia a dia para si mesma e para os
prazer. Em sua análise se evidenciavam outros, como se fosse dura e enrijeci-
os conflitos e alianças entre Eros e Ta- da. Dois movimentos sempre estavam e
natos. Já tinha feito uma primeira tenta- ainda estão presentes nas sessões: deli-
tiva de psicoterapia com uma colega, cadeza-firmeza e passividade-agilidade.
que durou poucos meses. Em cada ses- Era comum ouvir dela que queria dor-
são comigo chegava desanimada, dizen- mir e não acordar mais, que não acha-
do que se obrigava a ir, que não estava va graça em viver, que não via sentido
ali por prazer, como às vezes ouvia co- em pessoas comemorarem datas festi-
legas dizerem com alegria e entusiasmo vas como: aniversários, Natal. Ficava
que iam para análise. Eu sentia na trans- cada vez mais nítido que a sua busca do
ferência tensão, angústia, aniquilamento, idêntico a si mesma, do igual, do está-
desvalorização de qualquer insight e in- vel, indicava a presença do princípio do
terpretação que eu formulava. No entan- prazer. Provavelmente na sua mente ha-
to, a função analítica de tolerar a expe- via uma forte tendência operando aquém
riência e investigar a tendência dessa pa- (forças produzindo desprazer) e além do
ciente de buscar o retorno ao paraíso e princípio do prazer. Sabemos que o de-
ao mesmo tempo a estadia no inferno da senvolvimento de uma pessoa não se
angústia, me evocavam muita paciên- sustenta quando partes dela e de sua his-
cia e muita cautela em não saturar mi- tória continuam comprometidas com
nha mente com nenhuma expectativa e uma tendência regressiva. Quando fala
desejo de cura. Deixava-me conduzir sobre seus pais traz muita mágoa. Quei-
pelo próprio material que ela trazia, com xa-se de experiências dolorosas, de au-
sua capacidade de apelo e ressonância sências vividas, sentidas. Não se lembra
daquilo que continha. Procurava as pos- de receber carinho, de ter colo. Era só
síveis ligações. Perguntava-lhe se acre- cobrança, brigas. Diz que seu pai não lhe
ditava mesmo em tudo aquilo que fala- dava sossego com tanta implicância.
va. Confrontava o que me dizia com o Nunca estava satisfeito com o que ela
que fazia. Achava importante contrapor fazia apesar de ter consciência de seu
50 Pulsional Revista de Psicanálise