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A polifonia nas letras das canções de Caetano Veloso

Márcia Maria de Moraes da Silva


UNITAU

“O texto escuta as vozes da história e não mais as representa


como uma unidade, mas como um jogo de confrontações.”
Tânia Franco Carvalhal.

0. Introdução

O tema abordado neste trabalho é a identificação da polifonia nas letras das


canções de Caetano Veloso.

Depois de fazer a leitura de várias canções de Caetano, observamos que, em


sua maioria, refletiam a realidade social, política e cultural vivenciada pelo sujeito
compositor. Não sendo possível analisar um grande número delas neste texto,
escolhemos analisar e tecer os comentários a partir de três canções: “Tropicália”,
“London, London” e “Língua”.

Ao lembrar que, para a Análise do Discurso de linha francesa, a linguagem só


se realiza se inserida em um contexto social, histórico e cultural, fizemos a seleção do
corpus levando em consideração o contexto sócio-histórico, ou seja, as diferentes
condições de produção em que as letras foram produzidas: a ditadura, o exílio do
compositor (que também se incluiu no período da ditadura) e a abertura para a
democracia brasileira, respectivamente.

Deste modo, os objetivos que motivaram este trabalho foram: analisar as


letras, relacionando-as a fatores externos, de ordem social, histórica e cultural
e levantar as vozes que compõem a polifonia (a heterogeneidade) do texto, de
modo a possibilitar a produção dos sentidos.

Para tanto, tomamos como base teórica os princípios da Análise do Discurso de


linha francesa. Inicialmente, pesquisamos a teoria polifônica de Bakhtin, a
teoria da heterogeneidade enunciativa de Authier-Revuz, bem como os
conceitos de formação discursiva, de memória discursiva e de interdiscurso. Em
seguida, levantamos a relação existente entre linguagem, sujeito e ideologia.
Posteriormente, procedemos à caracterização do sujeito e à identificação do
contexto político e cultural do Brasil e, finalmente, analisamos as letras,
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reconhecendo a presença das marcas de heterogeneidade que possibilitam a


criação de efeitos de sentido.

Os estudos realizados no começo do século XX pelo pensador russo, Mikhail


Bakhtin, apresentam, como característica fundamental da linguagem, a
natureza dialógica, afirmando que toda palavra está relacionada à outra, à de
um outro locutor, existindo assim uma interação entre um discurso atual e
outros formulados anteriormente. O discurso não existe independentemente
daquele a quem é endereçado, o que implica que a visão do destinatário é
incorporada e determinante no processo de produção do discurso. Assim,
segundo teoria polifônica de Bakhtin, a palavra é a revelação de um espaço no
qual os valores de uma dada sociedade se explicitam e se confrontam. De
acordo com o contexto em que a palavra surge, ela se transforma e possibilita
diferentes significados, revelando os sujeitos e a ideologia.

Baseada na teoria polifônica de Bakhtin e apoiada na visão psicanalítica


lacaniana da linguagem, a partir da releitura de Freud, Authier-Revuz elabora a
teoria da heterogeneidade enunciativa, distinguindo as formas mostradas
(marcadas ou não marcadas) da forma constitutiva, esta concebida no nível do
interdiscurso e do inconsciente.

Ao realizar o levantamento a respeito do assunto, pudemos observar que ainda


são poucos os trabalhos divulgados pelos analistas do discurso, tomando como objeto
de análise as letras de música, não obstante elas serem, na maioria das vezes, reflexo
da situação concreta de produção.

1. Considerações acerca da análise do discurso

Os conceitos, brevemente expostos, fundamentam-se nos princípios gerais da Análise


do Discurso de linha francesa.

1.1 A análise do discurso

De acordo com os princípios gerais da Análise do Discurso de linha francesa, a


linguagem só se realiza e faz sentido se inserida em um contexto social,
histórico e cultural.
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Segundo Orlandi (2001), a Análise do Discurso visa compreender como um objeto


simbólico, seja ele, por exemplo, um texto, um enunciado ou uma música, está
investido de significância para e por sujeitos.

Dessa forma, não há que se falar em discurso e deixar de lado o conceito de sujeito,
de formação discursiva e de ideologia, uma vez que todo uso efetivo da língua é
perpassado pelas condições de produção, que envolvem tais definições, as quais
oportunamente serão abordadas neste trabalho.

A partir de um objeto de análise, o analista do discurso remete aos fatores de


constituição daquele dado objeto, ou seja, aciona os conhecimentos de mundo a
respeito do sujeito, da época, e do campo ideológico ao qual o discurso é pertencente.

A Análise do Discurso de linha francesa apóia-se nas idéias de Bakhtin (filósofo russo),
para sustentar a heterogeneidade de um discurso e o fato de um sujeito ser
perpassado pela ideologia.

Para Bakhtin (1992), a palavra é o lugar privilegiado da ideologia, pois é


produto da interação social e meio para retratar a realidade. Dessa forma, o
sujeito (locutor) é aquele que dará expressão à palavra, refletindo a ideologia e
o meio social em que vive.

Nesse sentido, Bakhtin (1992) afirma que o enunciado, seu estilo e sua
composição são determinados pelo objeto do sentido e pela expressividade, ou
seja, pela relação valorativa que o locutor estabelece com o enunciado.

Tomando como sustentação as idéias de Bakhtin, é que será tecido brevemente o


conceito de Polifonia.

1.2 Noções de polifonia

Como já foi mencionado anteriormente, Bakhtin vê a linguagem como um


fenômeno social e histórico, que visa à comunicação entre os indivíduos. Assim,
para o filósofo, a palavra possui natureza dialógica. As palavras são usadas a
partir de um efeito de sentido que o sujeito pretende alcançar no momento da
enunciação, ou seja, no momento do uso concreto da língua.

De acordo com Bakhtin o dialogismo é característica essencial da linguagem:

O enunciado vivo, surgido pensadamente num determinado


momento histórico e num meio social determinado, não pode
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deixar de tocar milhares de fios vivos e dialógicos, tecidos pela


consciência social-ideológica em torno de um objeto dado de
enunciação, não pode deixar de tornar-se um participante ativo
do diálogo social. (BAKHTIN, 1992, p. 93)

Esclarece o autor:
O fato de ser ouvido, por si só, estabelece uma relação dialógica.
A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por
sua vez, responder a resposta, e assim ad infinitum. Ela entra
num diálogo em que o sentido não tem fim. (BAKHTIN, 1992, p.
357).
Esse diálogo vai além da troca de enunciados. Ele é construído em razão da
relação com o sentido, a partir da compreensão de um enunciado. Um discurso,
até atingir seu objetivo, que é o de persuadir e construir sentidos, baseia-se
nas relações que mantém com o Outro, com o interlocutor.

Segundo Frêitas:

O estudo da relação dialógica entre o eu e o tu compreende o


estudo das relações de persuasão e de interpretação que se
estabelecem no texto, e estas envolvem sistemas de valores
tanto do enunciador quanto do enunciatário, participantes da
construção dialógica do sentido. (FRÊITAS, 2000, p. 36)

Assim, as palavras não são exclusividade de um único enunciador. Elas são sempre
escolhidas, levando-se em consideração as palavras de um Outro. São palavras que já
foram ditas em algum lugar da história e, por isso, impregnadas de valores
ideológicos, modificando-se o sentido em função do momento do uso.

Baseado nesses pressupostos, é que Bakhtin elabora a sua teoria polifônica,


afirmando a existência de uma pluralidade de vozes que compõem um discurso,
sem que uma delas se sobressaia ou julgue as demais.

Apoiada na teoria polifônica de Bakhtin e na abordagem do sujeito e de sua


relação com a linguagem permitida por Freud e sua releitura por Lacan,
Authier-Revuz (1990) distingue a polifonia sob a forma de heterogeneidade
mostrada e de heterogeneidade constitutiva.

1.3 Noções de heterogeneidade

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Authier-Revuz (1990) estabelece o conceito da heterogeneidade enunciativa para


descrever o fato de a linguagem consistir em que todo dizer tem necessariamente em
si a presença do Outro.
Segundo a autora, existem duas formas de heterogeneidade enunciativa.
Dentre elas, destaca-se, como forma intencional, marcada ou não, visível,
facilmente reconhecida em um texto, a heterogeneidade mostrada.

1.3.1 A heterogeneidade mostrada

A autora caracteriza a heterogeneidade mostrada como um conjunto de formas


marcadas que inscrevem o Outro no discurso por meio do discurso direto, das aspas,
das formas de retoque ou de glosa ou do discurso indireto livre.

Para Authier-Revuz (1990), as formas da heterogeneidade mostrada são mecanismos


que traduzem a ilusão que o sujeito tem de domínio do discurso, dotado de escolhas,
de intenções, de decisões.

A voz do Outro fica explícita na superfície do texto, revelando-se a existência da


alteridade por meio de uma ruptura sintática que altera a unicidade aparente de um
discurso, no caso de um fragmento citado de um discurso direto, das aspas, dos
itálicos, por exemplo.

Outras vezes, porém, pode não ocorrer a ruptura sintática em um texto, ou


seja, o elemento exterior é incluído no fluxo sintático do discurso sem marcação
unívoca, representando uma incerteza com relação à descoberta do Outro. Em
função do ambiente discursivo, como é o caso de uma outra língua, de uma
variedade de língua ou de um discurso oposto, é que se remeterá à alteridade
existente no fragmento discursivo. É o caso do discurso indireto livre e da
ironia, por exemplo, em que se encontra uma forma de negociação com a
heterogeneidade constitutiva, porque diluem o Outro no Um. São formas não
marcadas de heterogeneidade mostrada.

Segundo Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade constitutiva é interna ao sujeito e


ao discurso, não localizável e não representável no discurso. O sujeito, ou o discurso,
não se delimita na pluralidade dos outros. Ela é concebida no nível do interdiscurso e
do inconsciente.

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1.3.2 A heterogeneidade constitutiva

De acordo com Authier-Revuz (1990), existe uma polifonia não intencional de todo
discurso, advinda do inconsciente, sob a visão da Psicanálise, na leitura lacaniana de
Freud. Esta concepção do discurso atravessado pelo inconsciente se articula àquela do
sujeito que não é uma entidade homogênea exterior à linguagem. O sujeito é
descentrado, dividido, clivado, barrado entre o consciente e o inconsciente.

O inconsciente é o capítulo censurado da história do indivíduo, podendo ser


recuperado ou reconstruído a partir de traços deixados por esses apagamentos. Para
a Psicanálise, o inconsciente é uma cadeia de significantes que se repete e insiste em
interferir nas fissuras que lhe oferece o discurso efetivo.

Segundo a concepção dialógica da linguagem articulada por Authier-Revuz, as


palavras carregam indícios do inconsciente. Existem outras palavras, já ditas,
incorporadas ao processo de produção de um discurso. Em um discurso, podem ser
ouvidas outras vozes, vozes do Outro.

É na relação com uma exterioridade que as palavras fazem sentido, porque já


fizeram sentido em algum lugar e em alguma época na História. Esquecidas no
inconsciente, são apreendidas por uma outra voz, fazem sentido em outras
vozes em função de sua escolha no momento do uso.

O sujeito é portador de uma ilusão subjetiva da fala, de sujeito autônomo, de


senhor de seu discurso, quando, na realidade, a exterioridade está presente no
interior daquele. No sujeito e no seu discurso está presente o outro.

Esclarece a autora:

O que, de fato Freud coloca é que não há centro para o sujeito


fora da ilusão e do fantasmagórico, mas que é função desta
instância do sujeito que é o eu ser portadora desta ilusão
necessária. É a tal posição, a da função do desconhecimento do
eu que, no imaginário do sujeito dividido, reconstrói a imagem
do sujeito autônomo, apagando a divisão [...]. (AUTHIER-REVUZ,
1990, p. 28).
Assim, a heterogeneidade constitutiva é aquela não localizável, na qual a
presença do Outro não é delimitada; a língua é atravessada pelo inconsciente e
pelo interdiscurso. O repertório cultural do interlocutor, dessa forma, é
essencial para a construção de sentidos no discurso.

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É necessário, assim, a partir deste momento, tecer algumas considerações acerca do


que é formação discursiva, memória discursiva e interdiscurso.

1.4 A formação discursiva, a memória discursiva e interdiscurso.

Torna-se necessário nesse momento remeter a um outro conceito importante: o de


formação discursiva.

Segundo Cardoso:

Formações discursivas são as grandes unidades históricas que os


enunciados constituem. Exemplos: a medicina, a gramática [...]
as formações discursivas são constituídas por práticas discursivas
que determinam os objetos, as modalidades de enunciação dos
sujeitos [...] todo discurso deve ser remetido à formação
discursiva a que pertence. (CARDOSO, 2003, p. 35)
O homem, como sujeito da linguagem, materializa a realidade a partir de um lugar
social, de uma identidade ideológica e histórica.

Assim, a Análise do Discurso considera, como elemento essencial na construção dos


sentidos, as condições de produção, o que se diz e para quem se diz.

A partir do tema, dos objetos, do tipo de enunciação é que a Análise do Discurso


distinguirá uma formação discursiva.

Nesse sentido, Pêcheux apresenta o conceito de Formação Discursiva em sua


correspondência com as Formações Ideológicas:

As palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido


segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam,
o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência às
formações ideológicas [...] nas quais essas posições se
inscrevem. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que,
numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de
classes, determina o que pode e deve ser dito [...]. (PÊCHEUX,
1975/1988, p. 160 apud FRÊITAS, 2000, p. 23).
Já foi mencionado anteriormente que os discursos são construídos por elementos
externos à voz do sujeito enunciador. Outras vozes, advindas do inconsciente e da
memória, são inscritas no interior de um discurso, isto é, constroem sentidos por meio
de outras palavras já ditas por alguém, em algum lugar e tempo da história.

Orlandi (2001) denomina essa memória como memória discursiva, designando-a


como o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do

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pré-constituído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da


palavra.

Ainda segundo Orlandi (2001), a memória, quando disposta em função de um


discurso, é tratada como memória discursiva, ou seja, como interdiscurso. De
acordo com a autora, o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e
já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que nossas palavras
tenham sentido é preciso que elas já façam sentido.

Uma vez que as palavras não são propriedade exclusiva de ninguém, elas são
perpassadas pela História e podem ser apreendidas por outras vozes,
inconscientemente, quando da elaboração de um discurso.

Cabe, assim, ao sujeito a escolha das formulações que se tornarão parte de seu
discurso, mobilizadas para a construção de sentidos, de acordo com as condições de
produção.

É dessa forma que não se pode distanciar o sujeito da História e da Ideologia, bem
como da relação que ele mantém com a língua, conforme exposto a seguir.

2. Linguagem, sujeito e ideologia

Consoante com o que foi explicitado anteriormente, sob a ótica da Análise do


Discurso de linha francesa, o homem, como sujeito organizador do discurso,
está inserido em um contexto histórico, social e ideológico. Assim, necessário se
faz estabelecer a relação entre o sujeito, a linguagem e a ideologia.

Linguagem e sujeito

A interação social, por intermédio da língua, é que proporcionará a organização


de um discurso, identificando, assim, a formação discursiva a que o sujeito
pertence.

Para Bakhtin (1992), o processo de interação verbal é uma realidade


fundamental da língua. Nesse sentido, ele afirma que a língua penetra na vida
por meio dos enunciados concretos que a realizam, e é também por meio dos
enunciados que a vida penetra na língua.

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Dessa forma, o filósofo vê a língua como um fato social, concreto, como expressão
individual que se realiza por meio das necessidades de comunicação. Por meio do
emprego da linguagem, o sujeito exprime sua capacidade de criação, sua
expressividade.

Segundo Bakhtin (1992), a língua se deduz da necessidade do homem de expressar-


se, de exteriorizar-se. A essência da língua, de uma forma ou de outra, resume-se à
criatividade espiritual do indivíduo.

O homem, quando emprega sua língua socialmente, o faz orientado pelo contexto
social presente, buscando sempre se adaptar ao contexto imediato da fala.

Além da orientação pelo contexto social presente, Benveniste propôs também a


característica de subjetividade (1974 apud BRANDÃO, 1998). Para ele, a língua ganha
concretude somente no ato da comunicação, somente enquanto emprego e expressão
de uma certa relação com o mundo. Os pronomes pessoais são o ponto de apoio na
revelação da subjetividade que o sujeito mantém em seu discurso.

Benveniste acredita ainda que a constituição do sujeito subjetivo vai se concretizando


à medida que se tem capacidade de usar a marca lingüística da primeira pessoa.

De acordo com Brandão (1998), tal afirmação suscita muita crítica. Atualmente, os
analistas do discurso acreditam que a subjetividade é inerente a toda linguagem e o
caráter subjetivo existe, mesmo quando não se enuncia o “eu”.

O homem, quando constrói seu discurso, apropria-se da linguagem, toma-a como sua,
tornando-se sujeito da linguagem. Coloca nela toda sua capacidade de criação, de
expressão. Revela-se, mesmo descentrando-se, não usando a marca lingüística de
primeira pessoa.

Brandão (1998) apresenta ainda, como outras abordagens a respeito do sujeito,


aquelas que o concebem como essencialmente histórico. Isso porque sua fala é um
recorte das representações de uma época histórica e de um lugar social. Essa
concepção articula-se com a noção de sujeito ideológico.

Assim, estando o sujeito inscrito num espaço e num tempo, e sua fala sendo
orientada para o social, ele planeja e situa seu discurso em relação aos discursos do
outro, bem como, pela memória discursiva, apropria-se de outros discursos já
constituídos na história. Conforme já foi exposto no subtítulo “Noções de Polifonia”: na
fala de um sujeito, outras vozes também falam; o discurso é polifônico.

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É nessa perspectiva dialógica, na qual existe a preocupação com o Outro, que as


condições de produção ganham maior importância. Os fatores histórico e ideológico
incorporam-se à noção de sujeito, à medida que a linguagem se materializa em
função dos discursos.

A linguagem é, pois, o local de conflito, de confronto ideológico. Enquanto


instrumento de interação revela o sujeito e a ideologia, materializando-os.

2.2 Sujeito e ideologia

Conforme explicitado anteriormente, no processo de elaboração do discurso estão


envolvidos a memória discursiva e o contexto ao qual ele está vinculado. É esse
contexto que determinará como deverá ser organizado esse discurso.

Uma sociedade é organizada de acordo com uma hierarquia. Existe aquele que
domina e aquele que é dominado. Assim, em uma formação social existem classes
sociais.

Pêcheux (1975 apud BRANDÃO, 1998), a partir do trabalho de Althusser sobre as


ideologias, afirma a existência de uma “interpelação ou assujeitamento do sujeito
como um sujeito ideológico”, que faz com que os indivíduos ocupem seu lugar em um
dos grupos ou classes de uma determinada formação social, sem que tenham
consciência disso, com a impressão de que agem por vontade própria.

Cada classe social mantém relações reproduzidas e garantidas por instituições, como
a religião, a escola, a família, o Direito, a política, nomeadas por Althusser como
“aparelhos ideológicos”.

Tais relações podem se caracterizar pelo afrontamento de posições políticas e


ideológicas. O modo de organização de posições políticas e ideológicas é que constitui
a formação ideológica.

Segundo Brandão (1998), a formação ideológica tem necessariamente como um de


seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Isso significa
que os discursos são governados por formações ideológicas.

Os discursos político, religioso, jurídico, entre outros, cada qual fará um recorte da
realidade. Eles podem, assim, omitir, atenuar ou mesmo falsear dados, pois estarão
promovendo seus discursos de acordo com formações discursivas diferentes.

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Nesse sentido, Brandão (1998) afirma que tais discursos são governados por
determinadas formações ideológicas. Selecionam elementos da realidade, modificando
as formas de articulação do espaço da realidade. Elas têm sua própria percepção de
mundo, têm sua própria ideologia.

O termo ideologia, de acordo com Chauí (1996), surgiu pela primeira vez no livro
Eléments d’Ideologie (Elementos de Ideologia), em 1801, escrito por Destutt de
Tracy. O autor pretendia elaborar uma ciência da gênese das idéias e elabora, nesse
livro, uma teoria sobre as faculdades sensíveis responsáveis pela formação de todas
as nossas idéias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar
(memória).

O filósofo entendia a ideologia como atividade científica, tratando as idéias como


fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano com o meio ambiente.

Em 1812, no entanto, o termo ganha um sentido pejorativo, isto devido a uma


declaração de Napoleão Bonaparte, em um discurso ao Conselho de Estado. Napoleão
qualifica os ideólogos como tenebrosos metafísicos, e, dessa forma, a ideologia passa
a ser vista como perigosa para a ordem estabelecida.

Ainda segundo Chauí (1996), Augusto Comte, no Cours de Philosophie Positive, dá


dois significados para o termo ideologia. O primeiro, como o descrito por Destutt de
Tracy, e o segundo, como o conjunto de idéias de uma época.

Em Marx e Engels, no entanto, não existe a separação entre a produção de idéias e as


condições sociais e históricas. De acordo com a concepção marxista de ideologia, o
termo, daquela forma conceituado, está reduzido a um “escamoteamento” da
realidade, em que a classe dominante faz de suas idéias um instrumento de
dominação, em razão do sistema capitalista vigente.

Baseada na concepção marxista é que Chauí atribui o seu conceito à ideologia:

Os homens produzem idéias ou representações pelas quais


procuram explicar e compreender sua própria vida individual,
social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas
idéias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos
homens o modo real como suas relações sociais foram
produzidas e a origem das formas sociais de exploração
econômica e dominação política. Esse ocultamento da realidade
social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens
legitimam as condições sociais de exploração e de dominação,
fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. (CHAUÍ, 1996,
p. 21)

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A ideologia dominante, portanto, por meio das formações discursivas, norteará o


sujeito na produção de seu discurso. A liberdade de criação de um sujeito está presa
às determinações impostas pelas formações discursivas, e a ideologia é o principal
instrumento de dominação, que, por meio da linguagem, diferencia as formações
ideológicas na sociedade, invertendo ou modificando a realidade.

3. O sujeito, o corpus e as condições de produção

Agora, traçamos um percurso histórico breve da vida e da trajetória de Caetano


Veloso. Também situamos o corpus de acordo com as condições de produção do
discurso.

Caetano Emmanuel Vianna Telles Veloso

De acordo com Franchetti e Pécora (1981), Caetano Veloso, filho de “Dona


Canô” e de “Zezinho Veloso”, funcionário dos Correios e Telégrafos, nasceu aos
07 de agosto de 1942, em Santo Amaro da Purificação, Bahia, cidade pequena e
aconchegante, conhecida pela tradicional produção do açúcar.

Aos catorze anos, muda-se para o Rio de Janeiro, onde pôde usufruir, desde
cedo, de seus programas favoritos, como a música e o cinema.

Caetano apreciou a arte do cinema desde muito jovem. Segundo o próprio


Caetano Veloso (1997), um dos acontecimentos mais marcantes em sua
formação pessoal foi a exibição de La Strada, de Fellini. O Neo-realismo e seus
desdobramentos oferecidos pelo cinema italiano eram recebidos por ele com a
emoção de quem reconhece os traços do cotidiano nas telas gigantescas.

Em 1960, de volta à Bahia, passa a morar em Salvador, onde aumenta o


interesse pelo cinema, desta vez especialmente com relação à crítica.

Nessa mesma época, escrevia crítica e dirigia a página artística e literária, bem
como o caderno literário do Diário de Notícias.

Começa também a cantar com Maria Bethânia, sua irmã, e a produzir algumas
canções, quando é convidado a escrever uma música para uma peça de teatro
de Álvaro Guimarães.

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Participa do primeiro show “Nós, por exemplo”, ao lado de Gal Costa, Gilberto
Gil, Maria Bethânia e Tom Zé, na inauguração do Teatro Vila Velha, no ano de
1964.

Em 1966, recebe o prêmio pela melhor letra, “Um Dia”, no II Festival de Música
Popular Brasileira da TV Record de São Paulo.

Grava seu primeiro disco Domingo, em 1967, no qual inclui a canção “Alegria,
Alegria”. Com esta música, ganha o quarto lugar no III Festival de Música
Popular Brasileira da TV Record, festival que foi o ponto de partida para o
movimento tropicalista, movimento que reuniu Torquato Neto, José Carlos
Capinam, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé e Rogério Duprat.

No ano de 1967, também grava o disco-manifesto Tropicália ou Panis et


Circensis, que teve participação de Gil, de Gal, d’Os Mutantes, de Tom Zé, de
Torquato Neto, de Nara Leão e de Rogério Duprat, entre outros.

Em fins de 1968, Caetano é preso, seguindo para o exílio em 1970.

Volta definitivamente ao Brasil em 1972, continuando sua extensa e intensa


produção até os dias atuais.

O corpus

Para os comentários das canções, foram escolhidas duas letras de músicas


produzidas durante o período da ditadura militar e uma do período de abertura
para a redemocratização brasileira. São elas: “Tropicália” (1967), “London,
London” (1971) e “Língua” (1984).

3.3 O contexto político e cultural

De acordo com a Análise do Discurso de linha francesa, a linguagem só se


realiza se inserida em um contexto histórico e social.

As letras das canções a serem analisadas foram produzidas durante o período


da ditadura e o período de abertura democrática. Assim, passamos a apresentar
alguns fatos históricos e culturais marcantes dos referidos períodos, a fim de
situar o corpus objeto do estudo.

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Os fatos apresentados são fundamentados em Piletti (1989) e Domingues e


Fiusa (2000).

O regime militar

A política da ditadura teve início logo nos primeiros dias do mês de abril de
1964, após o golpe que derrubou o presidente João Goulart.

O país apresentava problemas como a inflação e a má distribuição de renda. O


governo de Goulart necessitava tomar medidas de amplo alcance social; todas
as medidas contrariavam os interesses de poderosos empresários e de grupos
estrangeiros, que o acusavam de estar “comunizando” o país. Sendo assim, as
elites conservadoras lutariam para que a situação continuasse como estava.

Houve confronto entre os movimentos populares e as forças conservadoras, e a


vitória foi deste último. Assim, foi decretado o golpe militar e os golpistas
depuseram o então presidente.

Os ministros militares do governo provisório: Brigadeiro Correia de Mello, da


Aeronáutica, o Almirante Augusto Rademaker, da Marinha, e o General Arthur
da Costa e Silva, do Exército, com a autoridade que tinham assumido
arbitrariamente, publicaram um Ato Institucional, cujos dispositivos
estabeleciam a eleição indireta do presidente da República e davam-lhes
poderes para decretar o estado de sítio, suspender as garantias constitucionais
e suprimir direitos políticos até por dez anos.

Humberto de Alencar Castelo Branco, chefe do Estado Maior do Exército e


coordenador da conspiração contra Goulart, após ser eleito pelo Congresso, aos
11 de abril de 1964, assumiu o governo quatro dias depois.

As primeiras medidas do governo de Castelo Branco foram: anular atos do


governo anterior e reprimir aqueles que poderiam opor-se ao novo regime, além
de cassar e suspender os direitos políticos de 378 pessoas e demitir dez mil
funcionários públicos.

O período militar compreendeu também os governos de Arthur da Costa e Silva


(1967-1969), Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-
1979) e João Baptista Figueiredo (1979-1985).

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Segundo Piletti (1989), os governos militares tiveram como principais objetivos


os seguintes: levar o país a um maior crescimento econômico; exercer maior
controle sobre a inflação; diminuir as diferenças regionais em termos de
desenvolvimento; diminuir o déficit de nossa balança de pagamentos; incentivar
as exportações e atrair capitais estrangeiros.

No entanto, tais objetivos não foram alcançados em sua plenitude, uma vez que
não foi possível diminuir o déficit da balança de pagamentos e as diferenças
regionais, bem como não houve também o controle da inflação, que chegou a
223% em 1984.

É importante ressaltar ainda que, durante o período militar, houve um aumento


considerável no número das empresas multinacionais presentes no país e, com
elas, vieram dois aspectos agravantes para a situação nacional: as
multinacionais levavam mais dólares do que traziam, sendo que desenvolviam
seus projetos com incentivos fiscais, isto é, com dinheiro do povo brasileiro.

Dessa forma, o governo militar precisava de poderes excepcionais, que não


constavam na Constituição, numa tentativa de sustentar a situação. Assim, os
Atos Institucionais foram editados: AI nº 1, de 09.04.1964; AI nº 2, de
27.10.1965; AI nº 3, de 05.02.1966; AI nº 5, de 13.12.1968 e o AI nº 12, de
31.08.1969.

Dentre os Atos Institucionais editados, o AI nº 5 é tido como o mais repressivo,


é aquele, inclusive, responsável pela prisão e exílio de Caetano Veloso. O AI nº
5 é visto pela maioria dos jovens como o fechamento dos meios de resistência
pacífica ao regime. Assim, lançaram-se à luta armada. Políticos, trabalhadores e
estudantes opuseram-se ao governo e lutaram contra a repressão.

O governo de Médici, conhecido como o período do “milagre econômico”,


promovido em associação com as multinacionais, dá-se em condições de estrito
autoritarismo e repressão política a todo e qualquer tipo de contestação.
Qualquer movimento social ou cidadão que se rebelasse era punido com a
censura, a tortura, a expulsão, a perda de direitos e a morte.

Em virtude da extrema repressão e controle, a imprensa e as artes em geral


sofreram rigorosa censura, foram impedidas da livre manifestação e cerceadas
as manifestações culturais, conforme é apresentado na parte final deste
capítulo.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
126

A um passo da abertura

Ao longo de um período de dez anos, foram gigantescas as mobilizações


populares dos mais diversos segmentos da sociedade brasileira para que
acontecesse a abertura.

O processo de abertura teve início em março de 1974, quando o então


presidente, Ernesto Geisel, apresentou aos brasileiros a proposta de um
“gradual, mas seguro, aperfeiçoamento democrático”.

O mais importante fato que consolidou a abertura gradual foi a extinção de AI


nº 5, por meio da Emenda Constitucional nº11, aprovada em 13 de outubro de
1978, para vigorar a partir de 1º de janeiro de 1979.

Em 15 de março de 1979, João Baptista Figueiredo assumiu a presidência,


continuando o processo de abertura. Seu primeiro passo foi a Lei da Anistia,
aprovada em 28 de agosto de 1979, após ampla campanha popular, iniciada já
nos primeiros dias após o golpe militar de 1964.

A Anistia, não obstante restrita e parcial, foi um instrumento efetivo de


redemocratização, pois possibilitou a volta de numerosos exilados.

Após muita resistência, alguns atentados e retrocessos, o povo volta a escolher


os governadores em 15 de novembro de 1982, muito embora com algumas
limitações, como a cédula eleitoral sem o nome dos partidos.

O longo processo de retorno à normalidade democrática culminou com as


eleições diretas para presidente de República, em 1989, nas quais foi eleito
Fernando Collor de Mello.

Paralelamente à rígida censura e autoritarismo do regime militar, acontecia em


todos os setores artísticos uma forte participação em busca da redemocratização
brasileira, conforme ficará demonstrado a seguir.

3.4 Contexto cultural

A década de 60 foi marcada como a década do protesto. Fosse nas artes


plásticas, no teatro, no cinema, na literatura ou na música, havia a formação de

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
127

grupos interessados em produzir uma arte mais questionadora e participativa


da realidade nacional.

Consoante Domingues e Fiusa (2000), as artes plásticas sofriam a influência


dos padrões da sociedade de consumo norte-americana, principalmente no que
se referia à publicidade, às histórias em quadrinhos, à televisão e ao cinema.
Tais padrões internacionais já estavam se infiltrando no modo de vida da
população urbana das metrópoles brasileiras, servindo como modelo para os
artistas plásticos do período.

Também marcaram a década a Pop Art, que consistia em usar o “lixo” para
criar arte, e a Arte Ambiental, que buscava o envolvimento com o público de
modo mais direto e agressivo.

Com referência ao teatro, em São Paulo, no ano de 1966, era encenada Morte e
Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de
Holanda. O espetáculo ganhou o prêmio maior do Festival de Teatro Amador de
Nancy, na França.

No teatro profissional, havia os grupos Teatro de Arena e Teatro Oficina, em


São Paulo, Grupo Opinião, no Rio de Janeiro, Teatro Popular, em Recife, e o
Teatro de Equipe, em Porto Alegre. Todos se empenharam em um trabalho
teatral político, visando à transformação da realidade nacional.

Assim como o teatro, a arte cinematográfica destacou-se com o chamado


Cinema Novo. Em 1963-1964, aparecem Vidas Secas, de Nélson Pereira dos
Santos, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Pouco tempo
depois, vieram outros filmes: Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, O
Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl, e Macunaíma (1969), de Joaquim
Pedro de Andrade, os quais receberam premiações em sucessivos festivais
internacionais.

As décadas de 60 e 70 assistiram a uma produção cultural bastante intensa


também no setor literário.

Na poesia, havia, cada vez mais, uma apurada reflexão sobre a realidade e a
busca de novas formas de expressão. Mantinha-se a tradição da poesia
discursiva e tinha-se a permanência de nomes consagrados como João Cabral
de Melo Neto, Adélia Prado, Mário Quintana e Ferreira Gullar.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
128

No romance, o regionalismo continuava produtivo com autores como Mário


Palmério, Bernardo Élis, Antônio Callado, Josué Montello e José Cândido de
Carvalho.

É importante destacar que foi durante o mesmo período que a Poesia Concreta
foi lançada oficialmente. Ela propunha o poema-objeto, em que se utilizavam
múltiplos recursos: o acústico, o visual, a carga semântica, o espaço tipográfico
e a disposição geométrica dos vocábulos na página, refletindo, tanto na forma
quanto no conteúdo, as mudanças ocasionadas pela acelerada industrialização.
Os principais precursores dessa tendência foram Oswald Andrade e João Cabral
de Melo Neto, e os principais realizadores, Décio Pignatari, Haroldo de Campos
e Augusto de Campos.

Da mesma forma que as artes plásticas, cênicas, cinematográficas e literárias, a


música popular brasileira teve intensa participação na vida intelectual do país.

A década de 60 foi de ampla divulgação de nomes de cantores e compositores,


tais como, por exemplo, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Chico Buarque de
Holanda.

A platéia dos programas e dos festivais era formada pela juventude estudantil,
que aplaudia e participava ativamente da contestação ao regime militar.

Após o golpe de 64, a Música de Protesto, de inspiração populista, obteve muito


sucesso, pois queria dizer a verdade da realidade brasileira, fixando-se no
presente. Caracterizava-se pela tônica agressiva e pela expressão de
inconformismo, basicamente universitário e intelectualizado.

Por volta de 1965, surgiu a Jovem Guarda. Tal movimento, no entanto, foi o
menos transgressor dentro da Música Popular Brasileira. Conforme afirma
Oliveira e Silva (2004), as músicas da Jovem Guarda não eram engajadas, pois
não denunciavam a política social que o país vivia, bem como não propunham a
participação popular.

Posteriormente à Jovem Guarda, aproveitando-se da idéia da Poesia Pau-brasil


e do Antropofagismo de Oswald de Andrade, surgiu o Tropicalismo. O
movimento teve início com o III Festival da TV Record, em setembro de 1967,
com a premiação do segundo lugar para o arranjo de “Domingo no Parque”,
feito por Rogério Duprat, e do quarto lugar para “Alegria, Alegria”, de Caetano
Veloso.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
129

Uma das fontes inspiradoras do movimento foi a exposição Tropicália, que o


artista plástico Hélio Oiticica realizou em abril de 1967, no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro. A exposição inspirou também o nome dado ao
movimento.

É importante salientar ainda que, para Caetano Veloso (1997), nada do que
veio a se chamar Tropicalismo teria tido lugar sem o filme Terra em Transe, de
Glauber Rocha. No filme, o poeta-protagonista trazia uma visão amarga e
realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus
companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada. Imagens de
grande força confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa
realidade estavam à beira de se revelar.

De acordo com Villaça, o movimento surgiu a partir das idéias de Caetano


Veloso e de Gilberto Gil. Nesse sentido:

O salto para que o grupo baiano abraçasse a idéia de ser


tropicalista foi impulsionado pelo entusiasmo de Caetano e Gil
(que nutriam o desejo declarado de revolucionar a música
popular) e pelo estímulo dos artigos e manifestos que criaram
uma expectativa diante do nome e definiram como sendo traços
principais a intenção de expor as contradições do país, o
deboche, o discurso fragmentário, a utilização da colagem e da
alegorização como recursos estéticos, a busca da conjugação
entre moderno e arcaico, local e universal, etc. (VILLAÇA, 2004,
p.144)

A atividade dos tropicalistas foi definida por Favaretto (1979) como uma relação
entre fruição estética e crítica social, em que esta se deslocou do tema para os
processos construtivos. O autor continua afirmando que a linguagem leve e a
tranqüilidade do acompanhamento dos Beat Boys e da interpretação de Caetano
surpreenderam o público, acostumado a vibrar diante de canções com declarações de
posição agressiva e trágica frente à miséria e à violência.

As canções tropicalistas buscavam, assim, fundir elementos da tradição da


Música Popular Brasileira e elementos da modernidade, criando canções que
apresentassem um modo diferente de ver o Brasil. Os temas básicos eram a
redescoberta do Brasil, a volta às origens nacionais, a internacionalização da cultura,
a dependência econômica, o consumo e a conscientização, deixando de lado o
discurso explicitamente político.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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Nesse sentido, Favaretto (1979) destaca também que o trabalho dos


tropicalistas, quando justapõe elementos diversos da cultura, obtém uma suma de
caráter antropofágico, em que as contradições históricas, ideológicas e artísticas são
levantadas, para obter uma operação desmistificadora. O autor ainda afirma que esta
operação, segundo a teorização oswaldiana, efetua-se através da mistura dos
elementos contraditórios – enquadráveis basicamente nas oposições arcaico/moderno,
local/universal – e que, ao inventariá-las, as devora.

Ao valorizar fragmentos justapostos, o tropicalismo suprimiu a cultura veiculada


pelo nacionalismo burguês e de classe média que, freqüentemente, opunha o Brasil ao
capitalismo internacional e à indústria cultural.

Segundo Villaça (2004), o movimento teve fim com a prisão de Caetano e Gil,
em fins do ano de 1968, provocada pela acusação formal do apresentador Randhal
Juliano de que Caetano havia queimado a bandeira brasileira e plagiado o hino
nacional em um dos shows realizados na Boate Sucata. No entanto, muitas das
canções produzidas posteriormente ao momento tido como o marco final ainda
expressam, de maneira muito explícita, características tropicalistas.

Baseados nos pressupostos teóricos e neste resumo do contexto político e


cultural que acabamos de expor, passamos a tecer os comentários acerca do corpus.

4. Um breve estudo do corpus: comentários sobre as canções

As três letras das canções, objetos de estudo, foram escolhidas de acordo com
os períodos retratados anteriormente.

Primeiramente, fizemos a escolha de uma letra do início do período da ditadura


(“Tropicália”, 1967), período este coincidente com o marco inicial do
Tropicalismo; em segundo lugar, uma letra produzida no período do exílio do
compositor (“London, London”, 1972); e, por fim, uma correspondente ao
período de abertura para a democratização do país (“Língua”, 1984).

“Tropicália” (Ditadura)

(Quando Pêro Vaz de Caminha/ Descobriu que as terras


brasileiras eram férteis e vermelhas/ Escreveu uma carta ao Rei/

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Tudo o que nela se planta, tudo cresce e floresce/ E o gaus da


época gravou)

Sobre a cabeça os aviões


Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central
Do país

Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça

O monumento é de papel crepom e prata


Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada de uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão

Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta

No pátio interno há uma piscina


Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis

Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia

No pulso esquerdo bang-bang


Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhora e senhores ele põe os olhos grandes
Sobre mim

Viva Iracema-ma-ma
Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma

Domingo é o Fino da Bossa


Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém o monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a banda-da-da
Carmem Miranda-da-da-da-da

A canção “Tropicália” foi composta no ano de 1967.

A princípio, conta Caetano (1997) que a canção não tinha nome, mas que
justificava para ele a existência do disco, do movimento e de sua profissão que
ainda lhe parecia provisória. Era também a que mais se aproximava do que lhe
fora sugerido pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.

“Tropicália” foi um nome proposto por Luís Carlos Barreto, fotógrafo jornalístico
que tinha se tornado produtor de cinema, depois de trabalhos como diretor de
fotografia em Vidas Secas e em Terra em Transe. A sugestão explica-se pelo
fato de que Barreto havia encontrado afinidades entre a música de Caetano e o
trabalho de mesmo nome apresentado pelo artista plástico Hélio Oiticica.

Antes de tecer os comentários acerca da letra da música, cabe ressaltar sua


significativa introdução, que apresenta sons, como a percussão, os cantos de
pássaros e as intervenções do naipe de metais que se superpõem. Há ainda,
simultaneamente, a fala do baterista Dirceu, que, quando da gravação da
canção, ouvindo os sons, lembrou-se da carta de Pero Vaz de Caminha e fez
uma declamação parodiada de um trecho da carta. É possível inferir assim, logo
de início, que Caetano também quer apresentar um Brasil tropical, mas
culturalmente novo: um país do pós-moderno.

A letra da canção é poesia e crítica, reunindo os fragmentos arcaicos e


modernos, apresentando, lado a lado, as contradições da realidade brasileira.

Além dos signos que constroem o contexto da realidade do país, Caetano aciona
vozes já ditas por um outro sujeito, e as coloca em contradição.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
133

Assim, a polifonia faz parte da construção da imagem do país, uma vez que as
vozes utilizadas visam à construção de um significado, de uma ideologia, que
deve ser de entendimento do sujeito interlocutor inserido naquele contexto
sócio-histórico.

Como o descontentamento com a realidade nacional era geral, mormente entre


os jovens estudantes e os intelectuais, “Tropicália” veio inovar o modo de fazer
música, deixando de lado a crítica direta, reinventando e construindo a crítica à
realidade por meio de fragmentos.

Em “Tropicália”, a imagem do país é construída, ao mesmo tempo em que é


desmontada pelas contradições, confirmando assim a idéia dos tropicalistas de
desmistificar a imagem do “Brasil país tropical”, “do país do carnaval”, “do país
em que tudo acaba em festa” e “do país do futebol”. Enfim, o desejo de destruir
a ideologia nacionalista-populista existente no país de então, de maneira irônica
e crítica.

A letra da música é composta de cinco estrofes, intercaladas por refrões que


dão “vivas” a elementos nacionais, que também são destacados pela
contradição.

A primeira estrofe apresenta um painel geral de como se estruturará a canção-


metáfora do Tropicalismo. O eu-lírico, enunciador da canção, apresenta-se nos
versos por meio da marca lingüística de primeira pessoa do singular. O sujeito
se anuncia como o apresentador dos quadros que se auto-apresentarão: “Eu
organizo (...)/ Eu oriento (...)/ Eu inauguro (...)”.

A partir do primeiro refrão, é perceptível o sujeito fragmentado. O sujeito


apresenta as contradições falando por si mesmas, a partir de construções
simbólicas, metonímias e citações já conhecidas e internalizadas pelos sujeitos
interlocutores.

“A bossa” faz referência à Bossa Nova e ao programa de TV O Fino da Bossa, de


Elis Regina e Jair Rodrigues, programa que denotava a modernização burguesa,
a voz do homem urbano. Em contraste, “a palhoça” do homem simples do
campo. “A bossa e a palhoça”, construindo o confronto do moderno com uma
população que mal deixava de ser rural.

Na segunda estrofe, acontece com maior nitidez a paródia do nacionalismo


sentimental. “O monumento”, citado na primeira estrofe, representando o
moderno centro do país (Brasília), aqui é ironizado, afirmado como “de papel
Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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crepom e prata”, materiais típicos da construção das figuras carnavalescas. Ele


também é situado com o marcador espacial “planalto central”, fazendo a
recorrência à nomenclatura geográfica, marcadora de um discurso que quer
primar pela exatidão conceitual, pelo científico.

“Os olhos verdes da mulata”, alusão de José de Alencar, “A cabeleira esconde


atrás da verde mata”, de Gonçalves Dias, e “O luar do Sertão”, de Catulo da
Paixão Cearense, alusões que representam a visão do nacionalismo brasileiro,
estão em contraste com a modernidade do “monumento”, que não tem porta.

A mesma estrofe é finalizada pelas visões que contradizem a maravilha


representada pelos nacionalistas, deixando entrever o arcaico: “rua antiga,
estreita e torta”, estilo típico dos centros urbanos que cresceram rapidamente,
deixando entrever a miséria, o grotesco, por entre antíteses: “no joelho uma
criança sorridente, feia e morta / estende a mão”.

Logo mais, há o refrão que dá “vivas” à “mata” e à “mulata”, duas entidades


múltiplas, misteriosas. A mata, índice do nacionalismo, e a mulata, símbolo do
carnavalesco, uma espécie de “carnavalização racial” fabricada no Brasil.

Na terceira estrofe, novamente opõem-se a nacionalidade e a modernização


burguesa: “No pátio interno há uma piscina”, alusão típica do universo do
homem burguês, do capitalismo, do mito urbano, posta em contraste com a
simplicidade dos elementos naturais do país: “água azul de Amaralina”,
“Coqueiro, brisa e fala nordestina”. Tais elementos também são típicos da
paisagem da Bahia, são signos do subdesenvolvimento dentro do
desenvolvimento, além de remontar à origem de Caetano.

Na segunda parte desta mesma estrofe, ocorre uma mudança de nível


ideológico. Caetano delineia posturas políticas em “Na mão direita tem uma
roseira”, citação de uma cantiga de roda, que, logo mais, Caetano substitui “dá
flor na primavera” por “autenticando eterna primavera”. Segundo Favaretto
(1979), desmonta-se aqui o caráter mítico da direita, que manipula signos da
natureza para validar a sua pretensa universalidade.

A “eterna primavera”, no entanto, é desmistificada pela imagem dos “urubus”,


que passeiam pelos jardins, que estão sempre à espera da tragédia, que são
símbolos do mau-agouro, segundo a voz da crendice popular.

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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O refrão de “vivas” quebra a imagem agourenta dos urubus, fazendo alusão à


“Maria”¸ filme de Louis Malle, que faz referência às mulheres e aos
revolucionários na América Latina, e à Bahia, reduto da tropicalidade.

Há que se ressaltar, também, a voz dos homens negros da Bahia, e de boa


parte do Brasil, presente neste refrão: “iá-iá”, que é como chamam a patroa, a
senhora a quem servem.

A próxima estrofe, a penúltima, contrapõe-se à anterior e apresenta como a


imagem da esquerda é vista no Brasil. Já não existe mais a mão, existe o pulso,
o qual não tem a mesma força da mão, que é, evidentemente, superior. Porém,
a fraqueza é superada pela alegria do samba: “mas seu coração balança a um
samba de tamborim”.

Nesta mesma estrofe, existe a voz do apresentador típico dos grandes


programas de televisão e das chamadas do circo: “Senhoras e senhores”, pois o
sujeito interlocutor, acostumado às chamadas dos programas, logo faria a
relação de que logo mais seria anunciado um fato importante. Em “ele põe os
olhos grandes sobre mim”, o pronome pessoal ‘ele’ vem confirmar o fato de que
a interlocução “Senhoras e senhores” é o grande recurso para que os olhos do
Brasil se voltem para ver tudo.

Posteriormente à estrofe, o refrão dá “vivas” novamente aos opostos: de um


lado, “Iracema”, a índia de José de Alencar, um dos mais importantes símbolos
de brasilidade; de outro, “Ipanema”, que remete à “garota de Ipanema”, de
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, mundialmente conhecida. Citações do século
XIX e século XX, uma índia e uma branca, um tempo e outro, dois imaginários
em convivência.

A última estrofe inicia-se por uma seqüência temporal de vozes do homem


comum. No domingo, tem-se o alívio das pressões políticas pelas diversões que
os meios de comunicação propiciam, fazendo alusão ao programa O Fino da
Bossa, que acontecia aos domingos e era comandado por Elis Regina e Jair
Rodrigues, conforme já foi dito. Na segunda-feira, esse mesmo homem “está na
fossa”, expressão da voz popular que significa o desânimo diante das situações
do cotidiano. Por fim, na terça-feira, é preciso retornar ao arcaico, pois a
população daquele contexto guarda traços medievos patriarcais rurais.

O meio da estrofe é interrompido por uma adversativa, marcando bem o


contraste entre a situação arcaica e alienada do homem, anteriormente

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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descrita, e a modernização de Brasília, cidade planejada para o futuro: “O


monumento é bem moderno”, ou seja, o dado moderno, o mito do urbano,
recobrindo a alienação.

Por último, Caetano traz a citação de Roberto Carlos “Que tudo mais vá pro
inferno, meu bem”, fazendo referência à Jovem Guarda, completando o esboço
do panorama da Música Popular Brasileira dos anos 60.

Terminando a canção, os “vivas” agora são para a “banda” e para “Carmem


Miranda”. Chico Buarque de Holanda e o militarismo, Carmem Miranda e o
nacionalismo, duas realidades nacionais.

Confirmou-se, dessa forma, o uso da polifonia advinda dos mais diferentes


setores do contexto histórico-social, pois o sujeito tomou como sua as vozes de
um Outro, inscrevendo-as na seqüência do discurso, as quais somente são
identificadas de acordo com o conhecimento da história e da sociedade daquela
realidade vivida por aquele sujeito, em função do ambiente discursivo.

O compositor usa da ironia, das metáforas e da polissemia como formas da


heterogeneidade mostrada não marcada, além de justapor vozes para construir
a imagem do Brasil e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo
ufanista e do Brasil como o país ‘onde tudo acaba em carnaval’.

Assim, o sujeito, ao arregimentar os discursos e os imaginários, cria um supra-


efeito de Carnavalização. Pelos contrastes, Caetano monta um retrato, uma
nova imagem, um novo país, de ‘cabeça para baixo’.

No próximo item, passamos aos comentários de “London, London”, letra


produzida no período de exílio do cantor.

“London, London” (Exílio)

Caetano Veloso. Tradução de Nestor Deola.

Eu vagueio pela cidade


Sem destino
Estou só em Londres, Londres é tão simpática
Atravesso as ruas sem receio
Todos conservam o caminho desimpedido
Sei que não conheço ninguém para dizer-lhe alô
Sei que eles conservam o caminho desimpedido
Estou sozinho em Londres sem receio
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Estou vagando por aqui


Sem destino
Enquanto meus olhos procuram por discos voadores no céu

Oh! Passam dias e também o outono


E as pessoas se apressam ordenadamente
Um grupo se dirige a um policial
Este parece muito satisfeito em poder servi-los
É bom estar pelo menos vivo e eu concordo
Ao menos ele parece muito satisfeito e
É bom viver em paz todos os dias
Todos os anos e eu concordo
Enquanto meus olhos procuram por discos voadores no céu

Eu não escolho rosto para olhar


Não escolho caminho
Apenas estou aqui e está tudo bem
Grama verde, olhos azuis, céu carregado
Deus abençoe o sofrimento oculto e a felicidade
Vim aqui para dizer sim e digo
Mas meus olhos continuam procurando por discos voadores no
céu.

“London, London” foi composta no ano de 1971, período em que, em razão do


exílio, Caetano residia em Londres, encontrando-se fora de seu país de origem.

O sujeito enunciador produziu a canção em língua inglesa, motivo que deixa


evidente a forma marcada de heterogeneidade mostrada pela opção da língua
estrangeira usada pelo cantor. Ela própria expõe uma alteridade em relação ao
sujeito, afirmando a figura de um sujeito enunciador exterior ao seu discurso,
visto que não se trata da língua nativa daquele. Estando o sujeito exilado,
exilou-se também de sua língua de origem.

Ao mesmo tempo, no nível interdiscursivo, existe a forma de heterogeneidade


constitutiva. Por se tratar de uma língua de outro país, o sujeito enunciador não
tem o controle absoluto de seu discurso, pois a construção dos sentidos pode se
dar nos mais variados níveis. Segundo Franchetti e Pécora (1981), Caetano
comentou a respeito de “London, London” dizendo que ele não saberia dizer se
estava dizendo aquilo que realmente queria dizer, pois não era a sua língua
nativa.

Enquanto em “Tropicália”, há o sujeito fragmentado, pois a ideologia que


motivava a canção era a de apresentar as contradições da realidade brasileira,
em “London, London” o sujeito enunciador encontra-se mais concentrado. O
espaço social e a situação vivida pelo sujeito não são mais os mesmos da
Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal, SP, v.2, n.2, jan./dez. 2005
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canção tropicalista, as condições de produção são diferentes. Da mesma forma,


os tons são diferentes: na primeira, o tom predominante é o de exaltação,
enquanto, na segunda, o tom é o de ressentimento.

Em “London, London”, o grau de liricidade é maior. Caetano não se predispõe a


incorporar, conscientemente, vozes de um Outro, permanecendo as mesmas
apenas mais próximas do nível interdiscursivo, sob a forma de uma
heterogeneidade constitutiva, inconsciente.

Nesta canção, o sujeito parece ser mais lírico, mais único e mais observador,
limitando-se ao registro do que vê e do que sente. Como exemplo disso, cito
alguns trechos da tradução de Nestor Deola (apud FRANCHETTI e PÉCORA,
1981).

Caetano inicia a letra da música com o pronome do caso reto em primeira


pessoa do singular, centralizando o discurso em si mesmo, marcando, assim, a
forte pessoalidade do eu-lírico: “Eu vagueio (...)/ Estou só (...)/ Atravesso (...)/
Sei (...)/ Estou sozinho (...)/ Estou vagando (...)”.

Na primeira estrofe, o sujeito procura situar o espaço onde ele está produzindo
a letra, repetindo por três vezes o nome da cidade: “Londres”.

O uso de pronomes indefinidos, como “todos” e “ninguém”, produz efeitos de


sentido de o quanto estranho ele se sente em relação às pessoas daquele lugar.
Ele as desconhece, por estar em um país que não é seu, reafirmando o
sentimento de solidão por duas vezes na mesma estrofe: “Estou só (...)/ Estou
sozinho (...)”.

Concomitantemente à observação da realidade ao redor, Caetano volta-se para


seu lugar de origem, demonstrando estar ainda preso sentimentalmente ao
país. Ele escreve: “Atravesso as ruas sem receio”, ou seja, o receio que ele
teria se tivesse permanecido no Brasil, em razão da forte repressão do regime
militar que o exilara.

A segunda estrofe se inicia com a marca da passagem do tempo: “Passam dias


e também o outono”, denotando que, para o sujeito lírico, os dias longe de casa
passam lentamente. Ele sente a passagem das estações e que o inverno,
período mais escuro e frio, está por vir.

Nesta mesma estrofe, ele torna a fazer referência às pessoas de Londres, só


que desta vez ele focaliza a observação: “um grupo” e “um policial”. Já não é o

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indefinido plural, já não existe a generalização, pois ele se refere a um grupo e


a um policial em particular.

É interessante observar também o foco de observação do sujeito enunciador:


“Um grupo se dirige a um policial”, ele poderia usar qualquer outro fato para
ilustrar a cidade de Londres, no entanto fixa a atenção na figura do policial, que
ainda é uma forte lembrança levada do Brasil.

Completa: “Este parece muito satisfeito em servi-los”, divagando logo em


seguida com a expressão: “É bom estar pelo menos vivo e eu concordo”, para
posteriormente repetir: “Ao menos ele parece muito satisfeito”. Aqui, Caetano
traz a voz do sujeito que viveu a censura e a repressão da ditadura militar.
Recém-chegado, após ser expulso de seu país, ele ainda conserva a imagem do
policial violento e repressor.

Para ele, a figura do policial amigável e satisfeito em servir as pessoas é


imensamente estranha, tanto é que modaliza a afirmação por duas vezes:
“parece muito satisfeito”: ele ainda tem dúvidas e não faz afirmações
categóricas.

Entre as duas frases que fazem referência ao policial, existe uma espécie de
divagação: “É bom estar pelo menos vivo e eu concordo”, expressão da qual se
pode inferir o sentimento de alívio. O fato de estar vivo causa alívio, apesar de
aparentemente não estar feliz. Pode-se inferir tal fato porque o sujeito
enunciador usou a expressão “pelo menos”.

Logo mais, a expressão “É bom viver em paz todos os dias/ Todos os anos e eu
concordo” permite a inferência de que o sujeito está relacionando o fato de ter
visto a atitude cordial do policial, comparando-o ao passado de ditadura vivido
dentro do Brasil. Existe ainda, como se fosse uma segunda voz, a afirmação “e
eu concordo”. Ela foi trazida como uma resposta do sujeito consciente ao
inconsciente, como um discurso interior, ou seja, do sujeito que precisa estar
presente ali, ao sujeito que ainda traz muita angústia e mágoa por não ter sido
aceito em seu próprio país.

Na última estrofe, ele reafirma o sentimento de ser estranho, fora de seu país:
“Eu não escolho rosto para olhar”. As pessoas a seu redor lhe são indiferentes.
Assim como o caminho é indiferente: afinal, ele não se encontra em sua pátria,
onde deixou os familiares, os amigos e a Bahia, onde provavelmente os rostos e
os caminhos são mais interessantes.

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“Apenas estou aqui e está tudo bem”: tal afirmação denota o tom melancólico,
permitindo a inferência de que o sujeito se encontra com o sentimento de
conformidade com uma situação que o contraria.

Em “Grama verde, olhos azuis, céu carregado”, parece haver a montagem de


um cenário. É possível inferir que o sujeito está caminhando, olha para o chão e
vê a “grama verde” (não há nenhum caminho a escolher); olha à sua frente, vê
“olhos azuis”, (como metonímia do outro, de outra raça, de outra cor); por fim,
olha para o céu, e vê o “céu carregado”, a chegada do inverno e o período de
recolher-se.

Ao olhar para o céu e fazer a prece: “Deus abençoe o sofrimento oculto e a


felicidade”, a voz do sujeito clama, provavelmente fazendo referência ao seu
próprio sentimento e ao sentimento das pessoas de Londres, que
aparentemente estão felizes.

No fim de cada uma das duas primeiras estrofes, existe o verso: “Enquanto
meus olhos procuram por discos voadores no céu”, reafirmando o sentimento
de solidão, o sentir-se como um objeto não identificado, fora de seu país. A
conjunção subordinativa temporal causa o efeito de sentido de movimentos que
acontecem concomitantemente. Neste caso, o descrever as pessoas e a cidade
de Londres acontece ao mesmo tempo em que existe o sentimento de estar só
e estranho.

Na última estrofe, ele repete a expressão, trocando, no entanto, a conjunção


subordinativa temporal pela conjunção coordenativa adversativa, causando,
dessa forma, o efeito de sentido de oposição, de contraste à afirmação anterior:
“Vim aqui para dizer sim e digo”: ele não diz isto satisfeito, encontra-se
contrariado.

Confirma-se, assim, que o sujeito enunciador, mesmo estando infeliz pela


condição do exílio e por se achar em local estranho, reflete sua ideologia por
meio da insatisfação com a situação presente, apresentando fatos observados
que denotam as marcas da contrariedade sofrida no Brasil durante o período do
regime militar.

“Língua” (Abertura)

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões

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Gosto de ser e de estar


E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa, da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está
para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixe os portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua” Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó


O que quer o que pode essa língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas


E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Adoro nomes, nomes em Ã
De coisas como Rã e Ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé e Maria da Fé e Arrigo Barnabé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó


O que quer o que pode essa Língua?

Incrível! É melhor fazer uma canção


Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco, Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo, meu medo!
A língua é minha pátria e eu não tenho pátria: tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ela está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu, lhe amo
Qué qu’eu te faço, nego?
Bote ligeiro
Arigatô, arigatô
Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

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“Língua” foi composta no ano de 1984, quando o período de ditadura militar já


se aproximava de seu fim.

O sujeito se apresenta em seu discurso de maneira menos subjetiva como em


“London, London”, voltando a fragmentar-se, como em “Tropicália”, deixando
marcas da polifonia por meio da heterogeneidade mostrada não marcada, de
acordo com a interpretação dada segundo o contexto de produção.

As escolhas discursivas, no caso de “Língua”, revelam um sujeito preocupado


com a realidade da língua nacional, sua língua dentro de sua pátria. A partir do
próprio título da canção, é possível vislumbrar a importância que Caetano quer
dar à língua do Brasil, pois ele não adjetiva a língua, apresentando somente a
noção substantiva “Língua”.

Caetano, sempre atento às mudanças de seu tempo, não deixa de fazer aqui
também, assim como em “Tropicália”, associações entre a atualidade e a
tradição.

Quando inicia a letra da canção com “Gosto de sentir (...)/ Gosto de ser e de
estar (...)/ Gosto do Pessoa (...)”, 1º, 2º e 6º versos respectivamente, traz
para o corpo de sua música a voz de Bernardo Soares (Fernando Pessoa), que
no Livro do Desassossego afirmava “Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de
palavrar”.

No último verso antes do refrão, traz novamente a voz de Bernardo Soares, que
na obra anteriormente mencionada diz: “Minha pátria é a língua portuguesa”, e
que Caetano modifica para “Minha pátria é minha língua”, remetendo o sujeito
interlocutor ao fato de que o Brasil não fala o português de Portugal, e sim a
língua brasileira, português do Brasil, caracterizada pela heterogeneidade
lingüística, em virtude se ser um país colonizado.

Outro dado relevante a ser observado é a marca lingüística de primeira pessoa


do singular no primeiro refrão da música, denotando que Caetano quer falar de
seu próprio eu, da ideologia de amor à língua e à pátria, a mesma ideologia que
o fez lutar contra a repressão da ditadura, que impunha valores nacionais como
ilusórios de uma realidade aparentemente comum, quer lutar pela singularidade
de sua língua, que não é a mesma de Portugal.

No primeiro verso, o sujeito enunciador afirma: “Gosto de sentir a minha língua


roçar a língua de Luís de Camões”. A citação do nome do poeta português e a
metáfora de “roçar a língua” permitem construir o sentido de que a língua
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portuguesa do Brasil assemelha-se ao português de Portugal, entretanto, não é


a mesma.

Outros dois grandes nomes da Literatura são citados ainda no primeiro verso:
“Gosto do Pessoa na pessoa, da rosa no Rosa”. Jogando com as palavras, de
maneira lúdica, ele faz referência a Fernando Pessoa, que escrevia por meio de
seus muitos heterônimos, dividindo-se em diversas vozes poéticas, e a
Guimarães Rosa, que criou a personagem “Diadorim”, a qual Caetano nomeou
de “rosa”, e que também não tinha, a princípio, identidade definida.

Ressaltamos, também, que o primeiro é poeta do Modernismo português e o


segundo, escritor do Modernismo brasileiro; produzem discursos distintos:
poesia e prosa: “E sei que a poesia está para a prosa assim como o amor está
para a amizade”, poesia e prosa que se encontram inseparáveis na obra de
Guimarães Rosa, na sua prosa poética.

No próximo verso, “E quem há de negar que esta lhe é superior”, Caetano quer
conferir superioridade à prosa de Guimarães Rosa, à língua nacional,
confirmando tal efeito de sentido pela expressão: “E deixe os portugais
morrerem à míngua”.

Importante salientar também o pronome demonstrativo “esta”, que sustenta


uma equação: poesia/amor, prosa/amizade. “Esta” faz referência à amizade e à
prosa, conferindo-lhes superioridade.

No refrão “Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó” há a citação de


um verso do poema Língua Portuguesa, de Olavo Bilac, poeta do século XIX e
início do século XX. O verso do poeta: “Última flor do Lácio, inculta e bela” foi
utilizado para designar o nosso idioma. A “última flor” é a língua portuguesa,
considerada a última das filhas do latim.

O termo “Sambódromo” é um neologismo da língua portuguesa, palavra


convencionada para designar o local por onde passam as escolas de samba,
palco de uma cultura carnavalizada. Construção da modernidade, que também
exige a convenção da modernidade.

“Lusamérica” é o termo que remete à mistura que ocorre da língua portuguesa


com a americana dentro do Brasil. Logo após, confirmando essa pressuposição,
tenho a expressão “latim em pó”, que representa a fragmentação da língua
latina que originou a língua portuguesa.

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O conjunto de expressões que compõem o refrão constrói a imagem do que é a


língua portuguesa dentro da nação brasileira: língua nova, composta de
aportes, neologismos, estrangeirismos e variedades lingüísticas.

Na segunda estrofe, Caetano insere a primeira pessoa do plural: “Vamos (...)/


Sejamos (...)”, que remete à voz típica daqueles que promovem uma campanha
em favor de uma conscientização ou que querem convencer por um outro
motivo. Caetano demonstra o objetivo de conscientizar o sujeito interlocutor
para que não deixe de valorizar a língua nacional, chamando atenção para “a
sintaxe dos paulistas” / “o falso inglês relax dos surfistas”, chamando a atenção
para a influência dos estrangeirismos, que são próprios da língua brasileira.

“Sejamos imperialistas” clama pela participação dos sujeitos interlocutores,


trazida pela voz da ideologia de conscientização. Nesse caso, com relação à
língua nacional, que deve predominar perante a língua estrangeira. Além disso,
essa expressão lembra as exclamações da ideologia de luta de classes, que são
manifestadas pela luta de direitos.

Outra marca, que remete ao exterior discursivo nesta estrofe, é a variedade de


língua representada nesta estrofe: “Vamos na velô da dicção choo choo de
Carmem Miranda”. Uma das grandes tendências do homem moderno é a de
reduzir as palavras, transformando-as em neologismos, em virtude da rapidez
das informações. Assim, as palavras vão perdendo sílabas, a fim de permitir
uma comunicação mais rápida, como no caso de velocidade, representada pela
própria metáfora: “velô”. “Velô” remete também ao nome de família de Caetano
Veloso, como forma abreviada.

A citação de “Carmem Miranda” remete também à construção de outro sentido:


Carmem Miranda foi a cantora portuguesa que saiu do Brasil, permanecendo
nos Estados Unidos. Seu inglês era com sotaque português, a expressão “dicção
choo choo” ironiza o sotaque adquirido pela cantora, no qual remanescia, no
lugar do som linguodental, o viciado.

Nesta mesma estrofe, Caetano traz o nome de uma emissora de TV que é


referência nacional, a “TV Globo”, e pede: “Ouçamos com atenção os deles e os
delas da TV Globo”/ “Sejamos o lobo do lobo do homem”, chamando a atenção
para que o sujeito interlocutor não seja mero receptor, mas que analise o uso
da língua que é transmitida pela TV.

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A expressão “lobo do lobo do homem” permite também construir sentidos


relacionados à antropofagia oswaldiana. Ser o “lobo”: ouvir com atenção tudo o
que é dito pela TV Globo e assimilar no velho o novo.

Caetano faz citações também dos nomes: “Scarlet Moon”, jornalista e atriz
carioca, que acompanhou o nascimento do rock pop; “Glauco Mattoso”, poeta,
ficcionista, ensaísta e articulista em diversas mídias; “Arrigo Barnabé”,
compositor singular da Música Popular, com características que vão do
dodecafonismo à atonalidade; e “Maria da Fé”, poeta portuguesa que se dedicou
a ler e a escrever desde muito nova, e que era admiradora de Antero de
Quental e de Fernando Pessoa.

A terceira estrofe inicia-se com uma exclamação: “Incrível!”, expressão que


constrói o sentido de ironia, voz sempre presente quando diante de situações
aparentemente sem solução. Depois de apresentar um rol de escritores na
estrofe anterior, o sujeito enunciador ironiza, afirmando: “Incrível! É melhor
fazer uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão/ Se você
tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção”.

Neste caso, ele parte da referência a um filósofo alemão: Friedrich Nietzsche.


Segundo o filósofo alemão (1978 apud Gama, 1995), a linguagem, dada a sua
própria natureza de lei, estará sempre a demonstrar o poder dominador sobre o
grupo de falantes dominados. Dessa forma, retoma novamente o tema das lutas
de classes e o tema de que a língua nacional é tão superior quanto à língua
estrangeira.

Tomando a referência anterior, é possível construir o efeito de sentido de que a


canção é uma das principais fontes para se veicular a ideologia. Por meio da
música, é possível dizer, construir a realidade, mostrar as contradições, criticar
e poetizar, características marcantes da música de Caetano.

Em “Blitz quer dizer corisco, Hollywood quer dizer Azevedo”, Caetano coloca
termos da língua inglesa com significados aleatórios. Podemos inferir que se
trata de uma ironia em razão do uso aleatório de estrangeirismos dentro do
Brasil. Neste caso, para o sujeito enunciador, a língua nacional deve ser
investida de significados por e para sujeitos, ainda que existam as variedades
lingüísticas.

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No próximo verso, “E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo!”,


a repetição confere ênfase à preocupação que o sujeito tem em relação ao seu
país. O “Recôncavo” faz referência ao Recôncavo Baiano, à Bahia, reconhecida
historicamente como o princípio da identidade brasileira. Daí as rimas
“Azevedo” e “medo”, graves, sofrerem o eco esdrúxulo em “E o Recôncavo, e o
Recôncavo, e o Recôncavo”, reiterativo, polissindético.

Em “A língua é minha pátria e eu não tenho pátria: tenho mátria/ E quero


frátria”, Caetano retoma Bernardo Soares (Fernando Pessoa): “Minha pátria é a
língua portuguesa”, invertendo a ordem sintática e ironizando, concluindo que
não tem pátria, tem “mátria”, fazendo referência ao Hino Nacional, letra de
Joaquim Osório Duque Estrada: “Dos filhos deste solo és mãe gentil”.

Conclui, criando um neologismo: “frátria”, que estabelece uma relação de


sentido com a palavra ‘fraternidade’, voz que expõe o desejo de Caetano Veloso
em ver a língua nacional e as demais línguas em fraternidade, pois todas
significam, apenas produzem discursos diferentes, significam diferente.

O sujeito enunciador traz ainda para a canção uma série de outros registros
discursivos, remetendo a diversas outras vozes exteriores ao discurso como:
“Tá craude brô/ Você e tu lhe amo/ Qué qu’eu te faço, nego?/ Bote ligeiro/
Arigatô, Arigatô”, registros da linguagem coloquial comumente encontrada em
diferentes regiões do Brasil, berço que acolhe as etnias e variedades lingüísticas
ímpares.

Na expressão: “Nós canto-falamos como quem inveja negros”, Caetano


metaforiza a fala dos brasileiros, incluindo-se por meio da marca lingüística de
primeira pessoa do plural ‘nós’. Faz, também, uma comparação com a fala dos
“negros que sofrem horrores no gueto do Harlem”, bairro de Nova York, onde a
maioria é de negros, que estão fora, portanto, de sua origem étnica.

A expressão “canto-falamos” remete também à característica da voz do rap


(rithm and poetry), música dos negros americanos que se caracteriza pelo
canto-falado (anos depois, Caetano faz um filme Cinema Falado). O rithm and
poetry é a música do Harlem.

A partir da seqüência: “Livros, discos, vídeos à mancheia/ E deixa que digam,


que pensem, que falem” é possível inferir que o sujeito quis reafirmar a língua
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nacional como cheia de vida. Que é possível falar dentro dos livros, dos discos e
dos vídeos. Estes meios de comunicação transmitem, respectivamente, o texto
escrito, a música e o texto oral (programas de TV, filmes, telejornais). Por meio
deles, é possível falar todas as línguas, refletir ideologias, construir sentidos,
ser fraternos diante da imensa variedade lingüística presente no país.

A preocupação dos lingüistas com relação à lingüística aplicada, e os estudos


voltados para a pragmática e para a sociolingüística, começou a ter um papel
progressivamente mais visível a partir da década de 80 (MARCUSCHI, 2004, p.
280). A letra da canção comprova, por meio do uso das citações, das
metáforas, das alusões, da pluralidade de vozes, a existência de um sujeito
enunciador que está perpassado por uma ideologia. Caetano reflete sua
preocupação com o uso da língua, que deve ser feito a partir de cidadãos
críticos, sabendo discernir o que é o bom uso, do que é mera cópia, e que por
isso, não constrói sentidos. Há sentidos a partir do intenso e intermitente jogo
polifônico, carnavalizado, avatar das múltiplas intertextualidades.

5. Considerações finais

A construção dos sentidos a partir do levantamento das vozes em uma obra,


como é o caso da letra de música, ressalta a complexidade de um texto. Por meio da
exploração dos elementos que compõem a heterogeneidade, chega-se aos sentidos
que ela abrange, seja em favor do social, do político ou do cultural.

Fundamentando-se, basicamente, na teoria polifônica de Bakhtin e na teoria da


heterogeneidade de Authier-Revuz, este trabalho teve como objetivos analisar as
letras das canções de Caetano Veloso, relacionando-as às condições de produção, e
levantar as vozes que compõem a polifonia (a heterogeneidade).

A multiplicidade de vozes presentes nas letras de Caetano revela um sujeito


socialmente constituído. Confirmou-se, assim, que o compositor serviu-se da polifonia
para retratar a ideologia e as situações da realidade vividas.

A pesquisa mostrou também que as letras “Tropicália”, “London, London” e


“Língua” não podem ser compreendidas, de acordo com o sentido provavelmente
pretendido pelo autor, sem serem relacionadas aos fatores históricos e sociais, pois é
a partir destes que elas permitem a construção de sentidos.

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No entanto, é importante ressaltar também a noção de sujeito inconsciente,


conforme Authier-Revuz apresenta na teoria da heterogeneidade constitutiva, apoiada
na visão psicanalítica lacaniana da linguagem, a partir da releitura de Freud. Caetano
não tem acesso ou controle total sobre o modo pelo qual os sentidos nele se
estabelecem.

Diante do exposto, fica claro que a linguagem só faz sentido e só se realiza se


inserida em um contexto sócio-histórico e cultural. Para levantar os elementos que
compõem a heterogeneidade, é indispensável o conhecimento das relações
estabelecidas entre o texto e a realidade. Mobilizando os dispositivos da Análise do
Discurso, é possível trabalhar os limites dos processos de significação e de
compreensão para a construção dos sentidos.

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Anexo

London, London – Caetano Veloso

I’m wandering round and round nowhere to go


I’m lonely in London and London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know, I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I’m wandering round and round here nowhere to go
While my eyes
Go looking for flying saucers in the sky

Oh Sunday, Monday, autumn pass by me


And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
He seems so pleased to please them
It’s good at least to live and I agree
He seems so pleased at least
And it’s so good to live in peace and
Sunday, Monday years and I agree
While my eyes
Go looking for flying saucers in the sky

I choose no face to look at, choose no way


I just happen to be here and it’s ok
Green grass, blue eyes, gray sky, god bless
Silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say
But my eyes
Go looking for flying saucers in the sky

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