Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Rogério Arantes1
Alberto Caeiro2
1. Introdução
1
clara a distinção entre as duas estéticas: na primeira Crítica o termo aparece referindo-
se às capacidades sensíveis de conhecimento do ser humano, é uma estética passiva, que
somente recebe os dados da experiência. Já no sentido em que aparece na terceira
Crítica e também no qual usarei aqui, a Estética é uma tentativa de pensar o que há de
racional no sensível e não sem motivo tem sua ''segunda vinda'' datada justamente no
pensamento alemão de meados do século XVIII3. Sobre a extrema importância ocupada
pela obra que trabalharei a seguir, é esclarecedor o comentário de Marco Aurélio Werle:
Com Kant, […] acaba o domínio das estéticas prescritivas, das poéticas e das teorias
da arte, da ideia de imitação como cópia do exterior e ganham espaço as estéticas
especulativas, pois agora a tarefa da estética consiste em partir do próprio sensível
para examinar como nele se instaura a racionalidade. A operação de Kant liquida
com a ideia de que para fazer arte se deve partir de uma teoria pré-estabelecida,
anterior à sensibilidade (WERLE, 2005, p. 138).
3
A ideia de uma ''segunda vinda'' da Estética no século XVIII aparece em Benedito Nunes. Cf.
FIGUEIREDO, 2010, p. 75.
2
Ainda que na verdade subsista um abismo intransponível entre o domínio do
conceito da natureza, enquanto sensível, e o do conceito de liberdade, como supra-
sensível, de tal modo que nenhuma passagem é possível do primeiro para o segundo
(por isso mediante o uso teórico da razão), como se se tratasse de outros tantos
mundos diferentes, em que o primeiro não pode ter qualquer influência no segundo,
contudo este último deve ter uma influência sobre aquele, isto é, o conceito de
liberdade deve tornar efetivo no mundo dos sentidos o fim colocado pelas suas leis e
a natureza em consequência tem que ser pensada de tal modo que a conformidade a
leis da sua forma concorde pelo menos com a possibilidade dos fins que nela atuam
segundo leis da liberdade (KANT, 1993, p. 20).
Kant, também na primeira Crítica, já nos fala acerca dos juízos, porém, na
referida obra, os juízos são determinantes, quer dizer, são juízos que apontam
diretamente para o objeto, determinando o que ele é, gerando conceitos. Não é sem
motivo que as preocupações de Kant, nesta obra, estejam voltadas especificamente ao
âmbito do conhecimento, à legislação do entendimento. Os juízos determinantes, no seu
atuar, fazem com que a imaginação fique mecanicamente subordinada ao entendimento,
como uma vassala. Já no caso dos juízos reflexionantes, trabalhados por Kant nas duas
Introduções da terceira Crítica, essa subordinação deixa de existir e o contato entre
imaginação e entendimento passa a ocorrer de maneira harmônica. O caráter mecânico é
abandonado, dando lugar a um caráter técnico, não conclusivo, mas sim reflexionante.
Tendo mente essa distinção entre a causalidade da liberdade e a causalidade da
necessidade, bem como a distinção entre os juízos determinantes e os juízos
reflexionantes podemos adentrar então na terceira Crítica. Para além das Introduções, a
obra é dividida em duas grandes partes: a Crítica da faculdade do juízo estética e a
Crítica da faculdade do juízo teleológica. Nessa apresentação falarei da primeira parte.
Como Kant procurou mostrar que é possível a causalidade da liberdade possuir efeitos
dentro da natureza? Por que sentimos prazer quando da relação harmônica entre
imaginação e entendimento? Pode o sentimento do belo reivindicar uma universalidade?
E onde, nessa estrutura estética do juízo, entraria a arte? A busca de dar indicações para
essas questões é a meta da minha apresentação.
3. A Analítica do Belo
3
A Analítica do Belo, parte inicial da Crítica da faculdade do juízo, é constituída
de quatro momentos distintos que fazem referência à tábua de categorias da Analítica
Transcendental, sendo assim, os momentos da qualidade, quantidade, relação e
modalidade. Kant procura definir, assim, o que seria o sentimento do belo,
posicionando-se em relação à discussão estética de sua época, que contrapunha uma
visão sensualista e outra visão perfeccionista do belo (rejeitando, como veremos,
ambas) e fazendo valer o dado transcendental de sua Estética.
No primeiro momento do juízo de gosto (§§1-5), segundo sua qualidade, Kant
estabelece que o juízo de gosto deve ser independente de todo interesse. Para justificar
essa característica, ele procura mostrar que quando se ajuiza acerca da beleza, não se
leva em conta a existência de qualquer objeto, mas somente a disposição de ânimo
causada pela complacência que determina o juízo, nesse sentido, Kant diferencia e
compara, nos §3-5, os juízos acerca do belo, do agradável e do bom. [explicar/exemplo
da fome/do palácio].
No segundo momento do juízo de gosto (§§6-9), segundo sua quantidade, Kant
diz que o juízo de gosto, paradoxalmente, é um tipo de juízo que pode reivindicar
universalidade, sendo, ao mesmo tempo, subjetivo e sem conceito. Por ser
completamente livre e desinteressado, tem-se o direito de esperar que a complacência
sem interesses presente no juízo de gosto, ocorra de forma semelhante em todos que
ajuizam. [explicar/exemplo do vinho, cada um tem seu gosto].
No terceiro momento do juízo de gosto (§§10-17), segundo a relação, a beleza é
entendida como a forma da conformidade a fins de um objeto. Ou seja, para Kant, não é
exatamente em um objeto (seja ele uma flor, um rio ou uma montanha) que se encontra
a beleza, mas sim na promessa de conformidade a fins que esse objeto nos dá [favor da
natureza (Gunst der Natur)]. Por não ser nenhum juízo de conhecimento, o juízo de
gosto relaciona-se com os objetos atraído por essa promessa, mas de fato não alcança o
que foi prometido, no entanto, a simples manutenção do estado dessa promessa é o que
causa prazer e propicia um clima harmonioso entre as faculdades do entendimento e da
imaginação, gerando assim a beleza. [mais do que a cor (que é carregada de
materialidade), a composição de tal coisa, sua forma, é o que faz a imaginação
4
reflexionar sobre o objeto e aí então, em sua relação harmônica com o entendimento,
julgá-lo capaz de despertar um sentimento de beleza (formalismo kantiano)]. Mostrarei,
mais adiante, que em relação aos objetos artísticos o raciocínio kantiano muda um
pouco, com o aparecimento das ideias estéticas.
No quarto e último momento do juízo de gosto (§§18-22), segundo a
modalidade, Kant procura mostrar que o juízo de gosto pressupõe uma necessidade de
que ele ocorra em todos os seres humanos. Como tal juízo não é objetivo, nem sequer
gera conceitos, como foi mostrado nos outros momentos, essa necessidade é subjetiva e
condicionada, e só pode ser esperada através da ideia de um senso comum da
humanidade. Daí a explicação kantiana desse quarto momento: ''Belo é o que é
conhecido sem conceito como objeto de uma complacência necessária'' (KANT, 1993,
p. 86). Essa universalidade subjetiva do belo toca num ponto abordado pelo comentador
português Leonel Ribeiro dos Santos:
4. A Analítica do Sublime
5
reflexionante, como todo juízo estético, pelo fato de não possuir conceito, ocorre
levando em conta não a relação entre imaginação e entendimento, mas sim entre a
faculdade da razão e a imaginação. No sublime, a faculdade da imaginação é levada a
seguir adiante na apreensão de novas intuições – até que seja atingido um ponto máximo
a partir do qual não é possível mais compreendê-las simultaneamente no ânimo. O
sujeito percebe, então, esse fracasso através de um sentimento de desprazer ao qual se
segue o prazer de tomarmos consciência de que somos entes morais. Em outras
palavras: se para a obtenção do sentimento do belo ocorre um livre jogo entre a
faculdade da imaginação e o entendimento, para que possamos obter o sublime o que
deve ocorrer é uma inadequação sensível da imaginação, um limite, que é como que
suplantado pela razão. A harmonia entre imaginação e entendimento nos proporciona o
belo, o conflito entre imaginação e razão, o sublime.
6
mecânica e causal, mas sim nessa natureza que nos dá uma promessa, sempre e
novamente reafirmada pela relação harmônica entre imaginação e entendimento. Ora,
essa maneira de se relacionar com a natureza, faz com que ela, em seus objetos
considerados belos, como a flor, a serra mineira ou qualquer outro, nos passe uma
sensação de que ela possui – misteriosamente – uma certa liberdade, que poderia ser
pensada como se fosse a liberdade que a arte, através da vontade do artista, possui, quer
dizer, como se tivesse a capacidade de gerar espontaneamente uma série causal, e isso
nos dá prazer. O que Kant vai nos dizer no §45 é que, além dessa suposição de pensar a
natureza como se fosse arte, também podemos fazer o caminho contrário, e pensar a arte
como se fosse natureza, ou seja, como se não tivesse que obedecer nenhuma regra
interna do ânimo, como têm de fazer, por exemplo, a faculdade do entendimento, para
que possa gerar conceitos, mas também a arte, dado que uma arte sem nenhuma regra,
segundo Kant, também não configura-se como arte.
Quem realiza, de fato, a obra de arte, para Kant, é o gênio (§46). E mais uma vez
a relação direta com a natureza aparece, pois a definição kantiana do gênio é a seguinte:
''Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte''
(KANT, 1993, p. 153). O que Kant pretende mostrar é que o gênio não cria suas obras a
partir de regras próprias, que passariam a servir de modelo a ser imitado por outros, isso
seria a negação de toda a estética kantiana, pelo contrário, o gênio apenas recebe da
natureza a disposição para criar uma arte bela e, ao fazê-lo, não consegue explicar
conceitual e racionalmente como o fez. É nesse sentido que Kant distingue, por
exemplo, a arte da ciência: um cientista consegue remontar, passo a passo, todo e
qualquer experimento que ele porventura venha a realizar, o gênio, por sua vez, pode
criar uma belíssima obra de arte hoje e amanhã, se vierem lhe perguntar como fez tal
coisa, ele não saberá recompor todo o caminho, e isso não será nenhum demérito, mas
sim a confirmação de que a arte, para Kant, não pode ser reduzida a explicações teóricas
e racionais, ela é singular.
Por fim, o que marca de maneira forte essa disposição do gênio e faz da arte algo
inesgotável, dentro do pensamento kantiano, é o aparecimento, no §49, das chamadas
ideias estéticas. Tais ideias seriam justamente as ideias originais do artista, que, tanto no
7
contato com outras obras geniais, quanto no contato direto com a natureza cria
representações que não podem ser determinadas, enclausuradas em um conceito, mas
sim, dão muito o que pensar, isto é, geram obras que nos dão uma infinita e inesgotável
possibilidade de interpretação, mostrando assim a diferença entre o belo natural e o belo
artístico: aquele nos dá prazer por uma promessa de conformidade a fins, que nunca é
alcançada, mas que justamente por isso mantém imaginação e entendimento em uma
relação harmoniosa, prazerosa, que não chega a nenhum conceito, este, por sua vez,
através das ideias estéticas concebidas pelo artista genial, nos dá infinitas
possibilidades, não ficando na mera promessa, porém estas possibilidades também não
se determinam, não podem ser conceituadas.
8
Referências