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RENATO RUSSO E SUAS MÚSICAS: PONTES

LITERÁRIAS, SOCIAIS E MÍTICAS.

Autora: Mariana Denize Muniz Bezerra

Porto Alegre/2006
Renato Russo é um ícone claro do rock brasileiro. Sua banda
surgiu na década de 80 na cidade de Brasília, a capital do Brasil.
Com um ritmo aguçado de crítica social Renato Russo alçou sua
banda às paradas de sucesso em todo o Brasil. Legião Urbana foi
uma das bandas mais importantes do movimento conhecido como
BRock. Surgiu em Brasília em 1983.
A origem do grupo se deu a partir da banda punk intitulada
Aborto Elétrico, integrada por Renato Russo. Juntaram-se com
Dado Vilalobos e o baterista Marcelo Bonfá para construir assim o
Legião Urbana. Tocavam em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Em um dos shows da banda, no Circo Voador no Rio de Janeiro,
lançaram o hit “Que país é esse?” com uma letra crítica e bastante
contundente sobre a sociedade brasileira.
A partir daí se tornaram uma das bandas mais famosas da
década de 80 e 90. Saindo da área midiática podemos assim
analisar a composição de grande cantor. As composições de
Renato Russo revisitaram vários temas: desde amor à crítica social.
Renato Russo sempre se interessou pelos mais variados temas. Lia
muito, sabia várias línguas. Tornou-se um exímio conhecedor dos
mais variados assuntos. Inspirou-se no movimento punk da
Inglaterra buscando assim a raiz de sua critica social manifestadas
em varias musicas compostas por ele mais tarde. Em 1978 ele
conhece André Petrorius e Felipe Lemos, dando inicio assim às
primeiras idéias de criar a banda Aborto Elétrico.
Renato Manfredini Junior nasceu em março de 1960 no Rio
de Janeiro. Morou na ilha do governador e no bairro Leopoldina.
Filho de um economista do Banco do Brasil e de uma professora de
inglês teve uma infância tranqüila e de classe média. Adquiriu assim
muito estudo. Aos sete anos mudou-se para Nova Iorque
acompanhando o pai num curso. Foi nessa época que ele e sua
irmã ampliaram seus conhecimentos na língua inglesa.
Retornaram ao Brasil e foram morar em Brasília. Na capital
começava a fase mais difícil para Renato Russo. Em 1975, aos 15
anos, sofreu de epifisiolise, uma doença rara que atacava os ossos.
Voltou a caminhar aos 17. Gostava de ler e chegou a criar uma
banda fictícia que ele dizia ser seu alter-ego. O vocalista de sua
banda fictícia se chamava Eric Russel. O sobrenome era uma
homenagem ao filósofo Jean Jacques Rousseau e o filosofo
Bertrand Russel. Dessa mistura nasceria o sobrenome artístico do
cantor, Russo.
Trabalhou como professor de inglês, programador de radio e
jornalista. Deu aulas na Cultura Inglesa em Brasília. Fazia parte da
“turma da colina”, rapazes e moças que se reuniam em um conjunto
de prédios construídos para abrigar professores e funcionários da
Universidade de Brasília. Nesse meio, surgidos dentro do
movimento punk, nasceram suas músicas e a banda.
Freqüentava festas e tinha acesso à cultura musical, discos
importados etc. O gosto geral de Renato Russo sempre foi o punk.
Ouvia também rock progressivo como Genises e Yes. Sua banda
teve influencias do The Clash e do Eddie and The hot Rods.
O primeiro cd da banda foi lançado em 1985 e se chamava
Legião Urbana. Os hits desse cd foram as musicas: Será; Ainda é
cedo e Geração Coca-cola, músicas essas que serão analisadas na
sua composição lírica e formal.

1. SERÁ:
A música “Será” tem letra de Renato Russo e música de dado
Villa-Lobos, Renato Russo e Marcelo Bonfá. A musica apresenta 4
estrofes e 1 refrão. Vamos analisar a primeira estrofe:

Tire suas mãos de mim


Eu não pertenço a você
Não é me dominado assim
Que você vai me entender
Eu posso estar sozinho
Mas eu sei muito bem aonde estou
Você pode até duvidar
Acho que isso não é amor.

O começo da estrofe marca uma negação de uma ação, se


destaca os verbos tirar e pertencer. Nesse momento, se mostra
uma situação de poder ocorrendo entre duas pessoas. Traz a tona
a relação entre duas pessoas, ainda sem sexos definidos. Durante
toda a estrofe mostra a luta de uma da pessoas contra a dominação
de outra. O mais interessante que se percebe que a ambigüidade
de sexos também cria uma situação onde não se sabe se trata de
uma relação entre namorados ou entre pais e filhos. Renato Russo
usa muito da ambigüidade e da ironia em suas músicas. Ao final da
primeira estrofe se mostra o sentimento de amor, fazendo ligação
para a próxima estrofe da canção.

Será isso imaginação?


Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

Na segunda estrofe percebe-se um excesso de perguntas. As


perguntas surgem no momento de dúvida, de busca de
conhecimento sobre o mundo. Nessa estrofe percebe-se um tom
mais coletivo com o uso do termo vamos. Mais uma vez mostra um
momento de intimismo onde duas pessoas ou mais se perguntam
sobre os caminhos da vida ou da relação entre os seres humanos.

Nos perderemos entre monstros


Da nossa própria criação
Serão noites inteiras
Talvez por medo da escuridão
Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução
Prá que esse nosso egoísmo
Não destrua nosso coração.

Na terceira estrofe se mostra um processo de perturbação


causada por um movimento social ou por uma situação criada pelo
mundo. Mostra uma situação de crise causada pela própria
humanidade. Os substantivos monstros, criação, noite, escuridão e
egoísmo mostram um aspecto depressivo de ver o mundo. Ao
mesmo tempo questionador do mundo que está vigente, com todas
as suas injustiças. As palavras solução e coração criam uma rima
simples retomando a uma esperança da situação atual se reverter,
mantendo assim a beleza dos sentimentos puros, como o amor
citado nas estrofes anteriores.

Brigar prá quê


Se é sem querer
Quem é que vai
Nos proteger?
Sera que vamos ter que responder
Pelos erros a mais
Eu e você?
A última estrofe retoma o ato de discussão entre dois seres
que acontece na primeira estrofe. Os questionamentos sobre a vida
continuam nessa estrofe. As perguntas são relacionadas a relação
de duas pessoas, sempre questionando o caso da perda de algo
puro e bonito que existe entre as pessoas. Ao mesmo tempo, os
verbos proteger e responder suscitam seres frágeis, que precisam
de outros para viver. Mais uma vez, suscita questões existenciais
do homem como a instabilidade emocional e a fragilidade diante
das dificuldades naturais da vida.

2. AINDA É CEDO:

A música a seguir também teve letra de Renato Russo. O


tema central é sobre a relação de duas pessoas, nesse caso é
mostrado o sexo de uma delas. O narrador se mostra um ser
masculino e o objeto de suas súplicas é uma menina. Analisemos a
primeira estrofe.

Uma menina me ensinou


Quase tudo o que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei
Ela fazia muitos planos
Eu isso queria estar ali
Sempre ao lado dela
Eu não tinha aonde ir

Na primeira frase se percebe mais uma vez de uma relação


de poder entre duas pessoas. Ao dizer que uma menina me ensinou
mostra uma visão de tutora de uma pessoa, sucitando assim
discussões sobre poder e persuasão. Na frase era quase
escravidão se prova essa situação de poder entre os dois. O
narrador se encontra numa situação em que uma menina lhe
ensinou coisas sobre a vida. E desse conhecimento a menina em
questão tornou-o um escravo dela.

A relação ambígua entre os dois se prova na frase ela me


tratava como um rei. Apesar de ser escravo dela, ela o tratava como
um rei, mostrando a oposição entre os dois termos. Ao final, o
narrador diz que não tinha aonde ir provando a dependência deste
para com a menina em questão comprovando mais uma vez uma
relação de dependência entre os dois. Ao mesmo tempo que a
menina o fazia escravo, o tratava como um rei, mostrando assim a
dependência de ambos e vice-versa.

Mas, egoísta que eu sou,


Me esqueci de ajudar
A ela como ela me ajudou
E não quis me separar.
Ela também estava perdida
E por isso se agarrava a mim também
Eu me agarrava nela
Porque eu não tinha mais ninguém.

A segunda estrofe é a mais interessante da composição. O


narrador nessa estrofe mostra uma reversão dos papeis antes
tomados no início da música. O narrador ao dizer egoísta que eu
sou afirma que tal tomou uma atitude egocêntrica diante da menina.
Na segunda frase ao dizer que esqueci de ajudar / a ela como ela
me ajudou mostra a dificuldade do narrador de retribuir ao que a
menina lhe proporcionou. E, como num estão de elucidação da
questão do relacionamento entre os dois, ele afirma que ela
também estava perdida como ele. E nisso, ambos de reconhecem
como dependentes de um e de outro. E afirma ao final que não
tinha mais ninguém.
E eu dizia: - Ainda é cedo cedo cedo cedo cedo

Sei que ela terminou


O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei.
Ela falou: - Você tem medo.
Ai eu disse: - Quem tem medo é você.
Falamos o que não devia
Nunca ser dito por ninguém
Ela me disse: "- Eu não sei mais o que eu sinto por você.
Vamos dar um tempo, um dia a gente se vê."

Nesse trecho percebe-se o fim do relacionamento entre as


duas pessoas descritas na letra, mostrando a fragilidade de ambos.
Tal fragilidade ocorre principalmente em relacionamentos amorosos
e o trecho falamos o que não devia mostra a irracionalidade do ser
humano ao se deparar com seus sentimentos e principalmente a
falta de conhecimento de como lidar com sentimentos
contraditórios.

O uso do advérbio nunca traz a idéia de temporalidade,


mostrando a relação de tempo entre o que havia acontecido na vida
do casal até aquele momento, marcando assim aquele momento
como um marco. A dúvida também é destacada no trecho eu não
sei o que eu sinto por você transparecendo a mutabilidade do ser
humano e sua característica inerentemente instável.

Renato Russo com suas musicas fazia sucesso entre os


jovens exatamente por mostrar o lado humano das pessoas, as
relações amorosas, a crítica social emergente e principalmente o
aspecto depressivo de se enfrentar a realidade. Sabe-se que a
adolescência é uma fase em que o jovem precisa se firmar e se
formar enquanto pessoa. É uma época de dúvidas e descobertas. E
isso Renato Russo soube passar em suas músicas de forma muito
interessante.

3. GERAÇÃO COCA-COLA:

Ao mesmo tempo em que o cantor escrevia músicas


sentimentais, ele também abordava a situação social do Brasil em
suas composições. Abordaremos agora a música que leva o nome
de Geração Coca-Cola, que faz alusão ao refrigerante mais vendido
no mundo.

Quando nascemos fomos programados


A receber o que vocês nos empurraram
Com os enlatados dos USA, de 9 às 6.
Desde pequenos nós comemos lixo
Comercial e industrial
Mas agora chegou nossa vez
Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês.

Na primeira estrofe se percebe a alusão à um grupo social,


principalmente a juventude que tem acesso ao refrigerante, público-
alvo do produto. No trecho com os enlatados dos USA se mostra a
dominação cultural norte-americana sobre o país. Ao dizer que
desde pequenos nós comemos lixo destaca a pobreza ainda
remanescente no nosso país, pobreza essa não material, e sim de
falta de idéias e a aceitação de tudo que vem de fora,
desvalorizando assim a cultura nacional.

É destacado também o tipo de lixo consumido pelos jovens


brasileiros com os adjetivos comercial e industrial. Como um
chamativo de luta para os jovens no trecho mas agora chegou
nossa vez chama os jovens para a luta contra a dominação norte
americana na sociedade brasileira. E como num ato de revolta o
trecho termina com a frase: vamos cuspir de volta o lixo em cima de
vocês.

Somos os filhos da revolução


Somos burgueses sem religião
Nós somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola.

No trecho somos os filhos da revolução o autor faz alusão à


revolução francesa, época em que a sociedade francesa se voltou
contra a monarquia em busca de um governo mais democrático e
igualitário. Mas, no mesmo trecho, Renato reclama da situação
social e poltica brasileira com o trecho nós somos o futuro da
nação, frase essa muito vinculada na imprensa brasileira querendo
vincular a idéia que o Brasil é um país ainda novo e que tem um
futuro brilhante, sem prestar atenção nas atrocidades e injustiças do
presente. A Geração Coca-Cola citada seria os jovens se voltando
contra a dominação acima explicada.

Depois de vinte anos na escola


Não é difícil aprender
Todas as manhas do jogo sujo
Não é assim que tem que ser?
Vamos fazer nosso dever de casa
E aí então, vocês vão ver
Suas crianças derrubando reis
Fazer com‚dia no cinema com as suas leis.

Esse trecho é o mais interessante da composição pois traz


várias imagens e respostas sobre a dominação cultural norte
americana. Ao dizer depois de vinte anos na escola é mostrada a
idade em que a juventude precisa estar ciente da realidade e se
colocar de forma critica diante desta. O jovem, com 20 anos, já tem
conhecimento suficiente do mundo para formar sua crítica social
sobre seu país.
Além disso, no trecho Não é difícil aprender mostra a
ingenuidade do jogo dos americanos a fim de buscar a alienação do
jovem. Mais uma vez incitando o jovem à luta no trecho suas
crianças derrubando reis alude aos jovens críticos que tirarão do
poder aqueles que os subestimaram. E, como retrato de
independência, o cinema seria feito mostrando o fim da dominação
norte-americana. O cinema surgiu nos Estados Unidos e se tornou
um veículo da ideologia norte-americana.

4. BAADER-MEINHOF BLUES

Tal música agora a ser analisada fala um pouco sobre a


violência e o cotidiano das pessoas. Analisemos então:

A violência é tão fascinante


E nossas vidas são tão normais
E você passa de noite e sempre vê
Apartamentos acessos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também.

Na primeira estrofe se caracteriza a violência como algo


fascinante. O autor mostra que a vida, em sua normalidade, com
seu cotidiano, não espera que a violêcia entre em nossas vidas. O
cotidiano é mostrado nas frases: apartamentos acessos/ tudo
parece real.

Andando nas ruas


Pensei que podia ouvir
Alguém me chamando
Dizendo meu nome.
JÁ estou cheio de me sentir vazio
Meu corpo é quente e estou sentindo frio
Todo mundo sabe e ninguém quer mais saber
Afinal, amar ao próximo é tão demode.

O sentimento de amor ao próximo é o núcleo das estrofes


acima. Apesar do cotidiano e das pessoas, com a violência, fica
difícil praticar a tolerância num mundo tão desigual e cheio de
injustiças. O ser humano padece como diz na frase: Já estou cheio
de me sentir vazio/ meu corpo é quente e estou sentindo frio. A
oposição quente/frio mostra bem o lado da vida da pessoa e a
vontade de mudar enquanto a frieza traz a tona as injustiças e as
tristezas do dia a dia. E termina por afirmar o amor ao próximo
como um sentimento fora de moda (démodé).

Essa justiça desafinada


É tão humana e tão errada
Nós assistimos televisão também
Qual é a diferença?

Não estatize meus sentimentos


Prá seu governo,
O meu estado é independente

As estrofes finais concluem a revolta do ser humano em


relação à sociedade em que vive. Ao dizer essa justiça desafinada
mostra o quanto a realidade esta dissonante ao que o cidadão
merece enquanto respeito e qualidade de vida. Por fim, reclama
também do governo , instituição importante nas mudanças mas que
hoje em dia anda muito passiva, apenas atendendo às demandas
de outros países sem pensar em ser povo. De forma bem resumida,
Renato Russo escreveu essa música a fim de continuar criticando a
situação do Brasil como um todo, colocando o jovem a pensar e se
tornar agente crítico de seu país.

5. QUASE SEM QUERER:

O cd Legião Urbana 2 foi gravado de janeiro a março de 1986.


O cd foi lançado em 1986. E apresenta os mais variados temas nas
músicas: tom religioso, crítica social e sentimentos como angústia,
amor e amizade. Comecemos a analisar a música Quase sem
querer com letra de Renato Russo.

Tenho andado distraído,


Impaciente e indeciso
E ainda estou confuso.
Isso que agora é diferente: Estou tão tranqüilo
E tão contente.

O trecho é composto por vários adjetivos: distraído,


impaciente, indeciso, confuso, tranqüilo e contente. Mostra assim
um ser que certas horas está feliz, em outras esta triste e dentro
dessa ambigüidade de sentimentos tenta se encontrar. O trecho
tenho andado distraído mostra a distração da pessoa ao caminhar
pela vida e ao se encontrar tão confuso em relação aos seus
sentimentos. O título da música Quase sem querer alude à
ambigüidade inerente à música. O advérbio quase mostra a não
conclusão de algo e sem querer quer dizer o ato irracional, não-
pensado, a ação sem pensar na reação. E por toda a letra da
música percebe-se o tom de irracionalidade e ambigüidade de
sentimentos em relação à vida.

Quantas chances desperdicei


Quando o que eu mais queria
Era provar pra todo o mundo
Que eu não precisava
Provar nada pra ninguém.

Nesse trecho se percebe o momento de afirmação que todo


jovem precisa passar para entender o mundo em que vive. No
trecho quantas chances desperdicei mostra o curso normal da vida
das pessoas com seus obstáculos e descobertas. No trecho quando
o que eu mais queria/era provar pra todo mundo o verbo provar
retrata bem esse processo de afirmação que o jovem tem que viver.
Desse processo de afirmação prepara-se o futuro adulto, com sua
personalidade e estruturas.

Me fiz em mil pedaços


Prá você juntar
E queria sempre achar
Explicação pro que eu sentia.
Como um anjo caído
Fiz questão de esquecer
Que mentir prá si mesmo
É sempre a pior mentira.

Mas não sou mais


Tão criança a ponto de saber
Tudo.

Neste trecho, o processo de descoberta e afirmação do jovem


continua. No trecho me fiz em mil pedaços/ pra você juntar faz uma
metáfora intrigante sobre as tentativas normais do jovem de se
separar dos pais para buscar sua própria imagem. E o verbo juntar
mostra que esse processo é feito junto com a atitude dos pais, que
precisam ajudar seus filhos a encontrar seus próprios caminhos.
Já no trecho Eu queria sempre achar explicação pro que eu
sentia mostra o caminho que o jovem percorre pra entender o que
sente, mesmo com suas ambigüidades e dificuldades normais de
qualquer jovem. O aspecto da mentira entra como núcleo nesse
processo de descoberta e de passagem de jovem para criança. O
ser jovem ainda não sabe o que quer, usa de mentiras para
descobrir caminhos e verdade, por mais contraditório que seja esse
processo. Essa música mostra bem isso e Renato Russo soube
captar muito bem a personalidade da juventude brasileira com seus
dilemas e problemas.

Já não me preocupo
Se eu não sei porquê às vezes o que eu vejo
Quase ninguém vê
E eu sei que você sabe
Quase sem querer
Que eu vejo o mesmo que você.

Nesse trecho, a frase se eu não sei porquê às vezes o que eu


vejo/ quase ninguém vê surge o aspecto de busca do jovem em se
descobrir e construindo imagens que só os jovens tem em seu
mundo. Mostra as peculiaridades de cada um, com seus sonhos e
vivência, que é individual a cada um. E ao final do trecho se destaca
o papel dos pais em participar desse mundo e ao mesmo tempo
respeitando-o sem julgar ou prejudicar os filhos nas descobertas da
vida.

Tão correto e tão bonito:


O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos.
Sei que às vezes uso
Palavras repetidas
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?
Neste trecho da música faz alusão à várias imagens literárias
e da cultura universal como os deuses, o infinito e o poder das
palavras. De forma simplificada e bastante forte constrói a imagem
do infinito como algo correto e bonito. Dessa descoberta os deuses
também são lindos. O poder da palavra entra no momento de saída
da oralidade para a literalidade, para o estado de contar para outro
a descoberta que fez. Ao final conclui esse processo sobre o poder
da palavra ao dizer mas quais são as palavras / que nunca são
ditas ?, valorizando o poder da palavra e o seu uso. A lírica desta
música especificamente é muito bem construída, criando metáforas
fortes e principalmente mostrando os caminhos de descobertas que
todo ser humano passa na vida.

6. EDUARDO E MÔNICA

Eduardo e Mônica é uma outra bela música de Renato Russo


e fala sobre a juventude de Brasília. De forma bastante suave e
conhecedor da realidade brasiliense o poeta passa para a
composição o grande conhecimento que sempre teve sobre o jovem
brasileiro. Vamos a análise:

Quem um dia ira dizer


Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem ira dizer
Que não existe razão?

Neste primeiro trecho se cria uma oposição entre dois


substantivos razão e coração. Devido à natureza irracional dos
sentimentos vemos que ocorre uma oposição entre o que o coração
sente e o que o cérebro pensa. Tal oposição vai seguir durante toda
a composição mostrando as divergências e as convergências que a
razão e o coração constroem dentro do ser humano.
Eduardo abriu os olhos mas não quis se levantar:
Ficou deitado e viu que horas eram
Enquanto Mônica tomava um conhaque,
Noutro canto da cidade,
Como eles disseram.

Nesse momento os dois personagens a ser caracterizados


são apresentados: Eduardo e Mônica. Como num flash
cinematográfico, se mostra dois momentos: o de Eduardo em casa
e de Mônica em outro lugar da cidade tomando um conhaque.
Ambos se conhecem e marcaram um encontro. Ainda não se sabe
a idade de cada um ou o que fazem na vida, só se sabe que moram
na mesma cidade. Esse clima de suspense já é criado a fim de
fazer com que na música surjam imagens fortes a fim de
caracterizar o casal, levando em conta a relação razão/coração
criada no começo da composição.

Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer


E conversaram muito mesmo prá tentar se conhecer.
Foi um carinha do cursinho do Eduardo que disse:
"- Tem uma festa legal e a gente quer se divertir."
Festa estranha, com gente esquisita:
"- Eu não estou legal. Não aguento mais birita."
E a Mônica riu e quis saber um pouco mais
Sobre o boyzinho que tentava impressionar

E o Eduardo, meio tonto, isso pensava em ir prá casa:


"- É quase duas, eu vou me ferrar."

A partir dessa parte da música se percebe uma localização


temática da música com a realidade da juventude brasiliense da
década de 80, época em que Renato Russo morou na capital do
país. No trecho e conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer
traz uma ligação com o início da música e ao fato de ocorrer o
encontro entre os dois personagens. A partir da frase Foi um cara
do cursinho do Eduardo que disse/ tem uma festa legal e a gente
quer se divertir mostra bem a realidade da juventude de Brasília, se
preparando para o vestibular das faculdades na capital.

No trecho sobre o boyzinho que tentava impressionar retrata a


imagem que Mônica compõe de Eduardo adequando essa imagem
a vida que ele leva na cidade, o tipo de lugares que freqüenta, o
estilo de música etc. Em Brasília, como em qualquer outra cidade,
existem grupos de jovens que se identificam pelo jeito de se vestir,
pelo estilo de saídas etc. Por ser uma cidade ainda nova e sempre
recebendo pessoas dos mais variados estados o fator da busca de
identidade do grupo se intensifica ainda mais entre os jovens
brasilienses. Se percebe até agora na composição a colocação de
diferenças entre os dois personagens e ao mesmo tempo a
intencionalidade de ambos se conhecerem, apesar das diferenças
de cada um.

Eduardo e Mônica trocaram telefone


Depois telefonaram e decidiram se encontrar.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete
Mas a Mônica queria ver o filme do Godard.

O encontro ocorre e na frase O Eduardo sugeriu uma


lanchonete/ mas a mônica queria ver o filme do Godard se percebe
de forma clara as diferenças entre os dois. Eduardo faz parte de um
mundo mais juvenil, com uma rotina de cursos e lanchonetes.
Enquanto Mônica parece ser uma mulher antenada com aspectos
culturais como cinema (filme de Godard) e outros assuntos mais
adultos, saindo um pouco da jovialidade marcante de Eduardo.

Se encontraram então no parque da cidade


A Mônica de moto e o Eduardo de camelo.
O Eduardo achou estranho e melhor não comentar
Mas a menina tinha tinta no cabelo.

Já na estrofe acima se percebe a alusão a lugares de Brasília


como o Parque da cidade, até hoje ponto de encontro da juventude
brasiliense que busca manter a forma e a saúde. Um fator
interessante nessa estrofe ocorre na surpresa de Eduardo ao
perceber a tinta no cabelo de Mônica. Tal fator mostra mais uma
vez um lado mais conservador de Eduardo enquanto Mônica é
colocada através de uma imagem de liberdade, conhecimento e
maturidade.

Eduardo e Mônica eram nada parecidos


Ela era de Leão e ele tinha dezesseis.
Ela fazia Medicina e falava alemão
E ele ainda nas aulinhas de inglês.

Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus,


De Van Gogh e dos Mutantes,
De Caetano e de Rimbaud
E o Eduardo gostava de novela
E jogava futebol-de-botão com a seu avô.

Ela falava coisas sobre o Planalto Central,


Também magia e meditação.
E o Eduardo ainda estava
No esquema "escola - cinema - clube - televisão."

Nas estrofes acima fica comprovada a falta de conexão em


alguns aspectos dos dois personagens. Na frase Eduardo e Mônica
eram nada parecidos prova esse aspecto. Logo após, ao dizer a
idade de Eduardo fica comprovada a juventude de Eduardo
enquanto Mônica seguia o caminho da faculdade (ela fazia
Medicina e fala alemão).

Toda essa contraposição dos gostos e jeitos de cada um é


colocada nessa parte da composição musical. Mônica falava dos
mais variados assuntos, desde meditação a coisas do Planalto
Central enquanto Eduardo falava de trivialidades e mantinha a sua
rotina (escola – cinema – clube – televisão).

Nessa parte da estrofe fica característica um fator bastante


perculiar da juventude brasiliense. Por ser uma cidade nova,
Brasília ainda apresenta poucas opções de diversões para seus
habitantes. Construída de forma setorizada, as pessoas acabam se
deslocando da mesma forma, em setores. Ao resumir a vida de
Eduardo entre escola, cinema, clube e televisão o compositor esta
fazendo uma crítica ao estilo de vida da juventude brasiliense. É
uma cidade que não apresenta muitas pessoas nas ruas,
passeando, procurando lugares novos, ou freqüentando bares. Não
é uma cidade com um ritmo parecido aos das outras capitais mais
antigas no Brasil.

E, mesmo com tudo diferente,


Veio mesmo, de repente,
Uma vontade de se ver
E os dois se encontravam todo dia
E a vontade crescia,
Como tinha de ser.

A partir dessa estrofe o sentimento entre os dois se completa


pois provam que apesar das diferenças passam a estar juntos. O
sentimento do amor citado no começo da composição mostra que
apesar da razão ver as diferenças entre os dois, o coração acaba
por se apaixonar, o coração se entrega ao sentimento, superando
as diferenças de cada um.

Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia,


Teatro e artesanato e foram viajar.
A Mônica explicava pro Eduardo Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar:
Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer
E decidiu trabalhar;
E ela se formou no mesmo mês
Em que ele passou no vestibular.
E os dois comemoraram juntos
E também brigaram juntos, muitas vezes depois.
E todo mundo diz que ele completa ela e vice-versa,
Que nem feijão com arroz.

Construíram uma casa uns dois anos atrás


Mais ou menos quando os gêmeos vieram
Batalharam grana e seguraram legal
A barra mais pesada que tiveram.

Logo após a confirmação do sentimento entre os dois e a


superação de suas diferenças, os personagens começam a viver
uma bonita relação de amor. Eduardo se forma, passa n o
vestibular, comemoram juntos as conquistas dele. Mônica, com sua
inteligência e sagacidade, sempre interessada pelos mais variados
assunto ajuda Eduardo em suas novas descobertas. Os verbos
trabalhar, decidiu, comemoraram, brigaram, construíram,
batalharam e tiveram fazem um apanhado de todo um caminho de
descobertas que o casal promoveu juntos.

Eduardo e Mônica voltaram prá Brasília


E a nossa amizade da saudade no verão.
Só que nessas f‚rias não vão viajar
Porque o filhinho do Eduardo tá de recuperação.

E quem um dia ira dizer


Que existe razão
Nas coisas feitas pelo o coração?
E quem ira dizer
Que não existe razão?

Ao final da música, as últimas estrofes destacam o papel do


narrador dentro da história por ele contada na composição. Mostra
que o narrador é amigo do casal e esse, está de fora, vendo a
relação dos dois. E continua se perguntando sobre a contraposição
entre a razão e coração, provando que a racionalidade natural do
ser humano abre brechas para que o coração aja, fazendo com que
abandonemos a racionalidade por alguns instantes. Renato Russo,
em suas composições, sempre trabalhou com a idéia da salvação
pelo amor, a salvação pelo sentimento, sendo o sentir a única forma
de legitimação da realidade, aludindo aos poemas de Fernando
Pessoa, poeta bastante lido por Renato Russo durante sua
juventude.

7. ÌNDIOS

A música índios é uma das mais belas composições de


Renato Russo. É toda composta com várias imagens históricas,
relatando a dominação cultural da Europa sobre a América, partindo
de uma visão geral (América) para uma visão específica (Brasil).
Vejamos a análise das estrofes:

Quem me dera, ao menos uma vez


Ter de volta todo o ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano-de-chão
De linho nobre e pura seda.

As estrofes começam com a expressão quem me dera, dando


um aspecto de lembrança ao narrador dos fatos na composição.
Por toda a composição o narrador foi criado a fim de parecer um
índio comentando sobre a dominação que seu povo sofreu nas
Américas. O aspecto do ouro, amizade, brincadeira, pura seda, traz
a tona o aspecto de convencimento usado pelos europeus,
apresentando aos índios seda e linho a fim de chamar atenção
daquele povo ao que eles chamavam de civilização.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Explicar o que ninguém consegue entender:
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
E fala demais, por não ter nada a dizer

Nas estrofes acima o que se destaca é a contraposição entre


os verbos explicar e acontecer e provar e dizer. Na primeira
oposição se vê a vontade que o índio, hoje, tem que mostrar a
civilização brasileira ou latina o que aconteceu com seu povo. Mas,
o que realmente aconteceu, como genocídios e mortes, são fatos
muitas vezes apagados dos livros e documentos da história. O índio
perdeu seu espaço de reivindicação assim como perdeu seu
espaço de memória dentro do âmbito da conjuntura política atual.

Já a segunda oposição, entre os verbos provar e dizer mostra


a vontade do índio de falar ao mundo e ser ouvido. Porém, o que
acontece é uma total marginalização do índio em seus direitos.
Renato Russo faz uma crítica aos povos americanos, e também à
sociedade brasileira que não respeita o índio na sua individualidade
e na sua importância histórica.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Que o mais simples fosse visto como o mais importante,
Mas nos deram espelhos
E vimos uma mundo doente.

Na frase mas nos deram espelhos faz alusão ao modo de


convencimento usado pelos europeus chegados em terras
americanas, cedendo quinquilharias como espelhos para que os
índios estranhassem ou se sentissem comprados. Dessa forma, o
mundo deles passava a ser manipulado pelos europeus. A
manipulação muitas vezes era pacífica, pois alguns índios cederam
à dominação enquanto outros ditos mais “rebeldes” eram mortos ou
presos.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Entender como isso
Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
É isso maldade então, deixar um Deus tão triste.

Já nessa estrofe o principal ponto é a discussão religiosa. A


catequização dos índios foi também uma forma de dominação
européia, já que os índios tinham suas próprias crenças e tradições,
bem diferente da tradição cristã européia. A dúvida é mostrada no
trecho entender como isso/ Deus ao mesmo tempo é três. O
narrador é criado como um índio esclarecido e crítico de sua
posição na história, se perguntando sobre os caminhos tomados
pela história.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho.


Entenda - assim pude trazer você de volta para mim,
Quando descobri que é sempre isso você
Que me entende do início ao fim
E é isso você que tem a cura do meu vício
De insistir nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi.

A partir da estrofe a música toma um tom mais intimista e


melancólico. O narrador afirma as dificuldades que passou e que
com outra pessoa ao seu lado ele estaria melhor. E resume seu
sentimento de amor como um misto de amor e perda, saudade e
recordação, como mostrado na frase: E é isso você que tem a cura
do meu vício / de insistir nessa saudade que eu sinto/ de tudo que
eu ainda não vi.

A saudade acontece, porém o eu lírico sente falta também das


coisas que não conheceu ou lhe foram negados em conhecer. Faz
uma alusão também à vida dos índios em países americanos
mostrando o aspecto dominante a qualquer custo, sem respeitar
aspectos culturais ou religiosos.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Acreditar por um instante em tudo que existe
E acreditar que o mundo é perfeito
E que todas as pessoas são felizes.

Nessa estrofe se destaca o instinto de esperança perdida no


narrador. Apesar de ter sofrido enquanto povo, ainda quer acreditar
num mundo perfeito. Porém o que se vê não é felicidade ou
perfeição.

O esclarecimento crítico se mostra mais uma vez através de


uma fuga da realidade. Imaginando um mundo perfeito não
precisaria ver as atrocidades que os índios sofreram. Porém, o
passado já aconteceu e isso não se pode mais mudar.

Quem me dera, ao menos uma vez,


Fazer com que o mundo saiba que seu nome
Esta em tudo e mesmo assim
Ninguém lhe diz ao menos obrigado.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.

Imagens como tribo e índios são trazidas nessa estrofe. O


narrador afirma a possibilidade do mundo respeitar a natureza dos
índios, agradecendo pela sua contribuição na história e na formação
dos povos americanos. Mas, logo se encaminhando ao final da
estrofe, percebe a falta de educação das pessoas em relação ao
índio com a frase: ninguém lhe diz ao menos obrigado. A inocência
é mostrada como característica natural dos índios que moravam
nas Américas, porém, a inocência foi a principal arma contra eles
próprios.

Nos deram espelhos e vimos um mundo doente


- Tentei chorar e não consegui

A música termina com uma bela afirmação, retomando o


acesso dos índios ao espelho, objeto da civilização cedido pelos
europeus como presente. O sofrimento surge ao afirmar que o
choro não é mais suficiente para mostrar a grande decepção do
índios em relação à histórica dizimação de seu povo: tentei chorar e
não consegui. O eu lírico da composição perdeu a própria
capacidade de se emocionar, pois o que aconteceu não muda mais,
destacando mais uma vez o esclarecimento crítico do narrador.

8. FAROESTE CABLOCO

Faroeste Cabloco foi e é até hoje umas das músicas mais


tocadas da banda. Conta a história de um personagem que sai da
Bahia em busca de emprego na capital do Brasil. Durante toda a
composição, espaços e ações são construídos a fim de mostrar a
vida e o sofrimento do migrante brasileiro. A migração é destacada
com suas verdades colocando aquele que ouve a música num
processo de pensamento sobre a situação social do Brasil. Vamos à
análise das estrofes:

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo


Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou prá trás todo o marasmo da fazenda
Só prá sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
Quando criança só pensava em ser bandido
Ainda mais quando com tiro de soldado o pai morreu
Era o terror da cercania onde morava
E na escola até o professor com ele aprendeu

O personagem é apresentado com o nome de João de Santo


Cristo. Na segunda frase dizem que tal nome lhe era dado porque
os outros lhe chamavam assim quando ele se perdeu. Mostra que o
personagem saiu do marasmo do interior e foi buscar vida na
cidade. Alguns sonhos de criança são relatados como na frase:
quando criança só pensava em ser bandido / ainda mais quando
com tiro de soldado o pai morreu . Nessa última frase, conta-se um
fato familiar do personagem, marcante fato, que o fez tomar atitudes
em busca de justiça mostrando um país falho em relação ao
cuidado da segurança com seu povo. Na última frase faz alusão ao
professor e à escola, dizendo que ambos aprenderam com João,
passando a idéia de que João era uma pessoa que conhecia a vida,
na sua prática, nas tristezas e nas dificuldades, longe dos
problemas idealizados em livros de escola, afastados do dia-a-dia
dos alunos.

Ia prá igreja só prá roubar o dinheiro


Que as velhinhas colocavam na caixinha do altar
Sentia mesmo que era mesmo diferente
Sentia que aquilo ali não era o seu lugar
Ele queria sair para ver o mar
E as coisas que ele via na televisão
Juntou dinheiro para poder viajar
E de escolha própria escolheu a solidão

Na segunda estrofe o relato sobre as ações de João continua.


Cita as idas à igreja feitas pelo personagem apenas com o intuito de
roubar o dinheiro que as velhinhas colocavam na caixinha do altar.
Desse fato, mostra que o personagem se encontrava marginalizado
dentro da sua pequena cidade, não se identificava com as pessoas
que iam a igreja por exemplo. Mostra-se assim uma personalidade
questionadora e revoltada com alguns fatos da situação atual de
sua cidade. E a prova de que estava cansado daquela cidade está
na frase: sentia que aquilo ali não era o seu lugar.

O sentimento de não-pertencimento é bastante forte nesta


composição. Por toda a composição, o personagem, mesmo na
cidade grande (Brasília) ainda se sente marginalizado e procura
formas de fazer parte da grande massa. O que acontece hoje no
Brasil é uma eterna busca de pertencimento do cidadão, muitos
apelam para a violência e para o roubo para ter aquilo que não
podem ter, vivemos num país desigual e isso é uma idéia concreta
na música faroeste cabloco.

Apesar de não concordar com idéias das pessoas onde


morava ele continua a ter sonhos. Seus sonhos são citados nas
ultimas frases da estrofe: ele queria sair pra ver o mar/ e as coisas
que ele via na televisão. E partiu para sua jornada em busca de
outros sonhos e caminhos pelo país.

Comia todas as menininhas da cidade


De tanto brincar de médico aos doze era professor
Aos quinze foi mandado pro reformatório
Onde aumentou seu ódio diante de tanto terror

Não entendia como a vida funcionava


Descriminação por causa da sua classe e sua cor
Ficou cansado de tentar achar resposta
E comprou uma passagem foi direto a Salvador

Nas duas estrofes acima percebe-se dois temas centrais: a


precocidade e o preconceito. Na primeira parte ao dizer comia todas
as menininhas da cidade mostra a realidade social da pequena
cidade: meninas que muitas vezes são regradas pelos pais mas não
formam um senso crítico sobre gravidez, sexo e outros assuntos
relacionados à sexualidade. Isso não ocorre apenas com meninas,
mas também com meninos. A falta de informação de torna geral,
fazendo com que conheçam o sexo cedo demais, sem pensar a
respeito do assunto ou se proteger. A frase: de tanto brincar de
médico aos doze era professor mostra que ele desde cedo já
conhecia as artes do amor, do sexo. O fator reformatório traz a tona
novamente a revolta que ele sente do mundo em que vive, virando
assim o motor que o leva a sair daquela pequena cidade.

Na frase: Não entendia como a vida funcionava


Descriminação por causa da sua classe e sua cor mostra o início de
um processo de esclarecimento sobre sua etnia e sua posição na
sociedade. Faz alusão a sua cor, colocando em xeque a questão do
preconceito racial ainda presente na sociedade brasileira. Mostra
que ele buscava as respostas ali naquela cidade e partiu para
buscar tais respostas em Salvador.

E lá chegando foi tomar um cafezinho


E encontrou um boiadeiro com quem foi falar
E o boiadeiro tinha uma passagem
Ia perder a viagem mas João foi lhe salvar:
Dizia ele "- Estou indo prá Brasília Nesse país lugar melhor não há
Tô precisando visitar a minha filha
Eu fico aqui e você vai no meu lugar"

O processo de migração de João é mostrado na estrofe acima


na frase: estou indo pra Brasília. Nesse país lugar melhor não dá. O
boiadeiro iria lhe dar uma carona até a capital.

E João aceitou sua proposta


E num ônibus entrou no Planalto Central
Ele ficou bestificado com a cidade
Saindo da rodoviária viu as luzes de natal
"- Meu Deus mas que cidade linda!
No Ano Novo eu começo a trabalhar"
Cortar madeira aprendiz de carpinteiro

João parte para o planalto central. Mostra-se assim a época


em que Brasília foi criada, vista assim como o eldorado do Brasil.
Brasília foi criada com o intuito de demonstrar a modernidade do
país. Apesar disso, Jucelino Kubtcheck, criador da capital, usou de
vários empréstimos norte-americano para construir a nova capital.
Ironia do destino mas o país continuava sofrendo com a dominação
política e econômica de outros países. João se mostra fascinado
com a cidade, apesar de tudo.

Ganhava cem mil pro mês em Taguatinga


Na sexta feira foi prá zona da cidade
Gastar todo o seu dinheiro de rapaz trabalhador
E conhecia muita gente interessante
Até um neto bastardo do seu bisavô
Um peruano que vivia na Bolívia
E muitas coisas trazia de lá
Seu nome era Pablo e ele dizia
Que um negócio ele ia começar

Nesta estrofe mostra o dia a dia de João na capital. Passou a


morar em Taguatinga, importante cidade-satélite do Distrito Federal.
Ia para a zona gastar o dinheiro do seu trabalho. Conheceu
pessoas que viviam na cidade, os tipos mais variados: peruanos,
bolivianos. Outro fator importante é a iniciação na vida do tráfico ao
dizer: e muitas coisas trazia de lá/ seu nome era Pablo e ele dizia/
que um negócio ele ia começar.

E Santo Cristo até a morte trabalhava


Mas o dinheiro não dava prá ele se alimentar
E ouvia às sete horas o noticiário
Que dizia sempre que seu ministro ia ajudar
Mas ele não queria mais conversa
E decidiu que como Pablo ele ia se virar
Elaborou mais uma vez seu plano santo
E sem ser crucificado a plantação foi começar

João buscou em Brasília a forma de crescer na vida, porem se


deparou que na capital ainda sofria com a marginalização. Nesta
estrofe mostra a dificuldade de João em conseguir se manter na
capital, a capital de maior custo de vida do país. O noticiário mostra
a política e os fatos porem os pobres continuam mais pobres e o
ricos mais ricos. Renato Russo insere uma crítica ao setor social e
econômico do Brasil a fim de demonstrar a dificuldade de uma
grande maioria de brasileiros manterem uma qualidade de vida
digna.
Dessa forma, João parte para a ilegalidade. Na frase: e
decidiu que como Pablo ele iria se virar. E partiu para o tráfico a fim
de conseguir um dinheiro rápido para suprir suas necessidades.

Logo, logo os maluco da cidade


Souberam da novidade "- Tem bagulho bom ai!"
E João de Santo Cristo ficou rico
E acabou com todos os traficantes dali
Fez amigos, freqüentava a Asa Norte
Ia prá festa de Rock prá se libertar
Mas de repente
Sob um má influência dos boyzinhos da cidade
Começou a roubar

João passa a frequentar bairros mais abastados de Brasília,


mais especificamente no Plano Piloto, setores como a asa norte, a
asa sul, etc. Nas festas de rock achava a forma de vender a droga e
muitos boyzinhos compravam com ele. Na estrofe mostra a
influencia das pessoas do crime nas atitudes de João, como é visto
na frase: sob uma má influência dos boyzinhos da cidade/ começou
a roubar.

Já no primeiro roubo ele dançou


E pro inferno ele foi pela primeira vez
Violência e estupro do seu corpo
"- Vocês vão ver, eu vou pegar vocês!"

Agora Santo Cristo era bandido


Destemido e temido no Distrito Federal
Não tinha nenhum medo de polícia
Capitão ou traficante, Playboy ou general

Em tais estrofes mostra a realidade dos crimes em que João


entrou. Diz que: já no primeiro roubo ele dançou/e pro inferno ele foi
pela primeira vez mostra que a vida do crime não era fácil. Violência
e estrupo foram algumas das conseqüências, fazendo com que a
revolta de João aumentasse. Aos poucos ganhou fama no mundo
crime se tornando um criminoso temido no Distrito Federal. E assim,
foi garantindo seu lugar na sociedade, apesar de estar ainda à
margem desta.

O problema dos narcóticos no Brasil envolve desde camadas


mais altas até os mais pobres. Dessa forma, Renato Russo escreve
na música os mais variados tipos de pessoas que procuravam João
como: capitão ou traficante, playboy ou general. Mostra-se assim
que o problema está em todas as camadas, há inserido enquanto
vício ou negócio bastante lucrativo para alguns.

Foi quando conheceu uma menina


E de todos os seus pecados ele se arrependeu
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele prá ela o Santo Cristo prometeu
Ele dizia que queria se casar
E carpinteiro ele voltou a ser
"- Maria Lúcia eu prá sempre vou te amar
E um filho com você eu quero ter"

Nessa estrofe fica clara a idéia de redenção pelo amor.


Renato Russo, como sempre foi muito estudioso e leitor dos mais
variados autores da literatura mundial traz um aspecto medieval à
suas músicas: a salvação pelo amor. As canções da Idade Média,
cantadas pelos menestréis eram feitas a fim de valorizar a mulher e
buscavam no amor a salvação da vida, correndo contra as injustiças
normais da vida. O ser humano seria salvo apenas pelo sentimento
puro, representado pelo amor. E João não foge disso, conhece uma
menina e se apaixona. Com Maria Lúcia busca “entrar nos eixos” e
um filho seria a prova de sua redenção.

O tempo passa e um dia vem na porta um senhor de alta classe com dinheiro na
mão
E ele faz uma proposta indecorosa
E diz que espera uma resposta, uma resposta de João
"- Não boto bomba em banca de jornal
E nem em colégio de criança
Isso eu não faço não
E não protejo general de dez estrelas
Que fica atrás da mesa com o cú na mão
E é melhor o senhor sair da minha casa
Nunca brinque com um peixe de ascendente escorpião"
Mas antes de sair, com ódio no olhar
O velho disse: "- Você perdeu a sua vida, meu irmão!"

A estrofe acima se situa na época da Ditadura militar, já que


em Brasilia a força do movimento foi bem grande. João se recusa a
trabalhar a favor dos militares, mesmo sabendo que sofreria
conseqüências fortes. O caminho de João na capital já estava
marcado após a negação da ordem dada pelo general.

"- Você perdeu a sua vida, meu irmão"


"- Você perdeu a sua vida, meu irmão"
Essas palavras vão entrar no coração
"- Eu vou sofrer as conseqüências como um cão."
Não é que o Santo Cristo estava certo
Seu futuro era incerto
E ele não foi trabalhar
Se embebedou e no meio da bebedeira
Descobriu que tinha outro trabalhando em seu lugar
Falou com Pablo que queria um parceiro
Que também tinha dinheiro e queria se armar
Pablo trazia o contrabando da Bolívia
E Santo Cristo revendia em Planaltina

A partir desse momento da composição, João começa a sofrer


as conseqüências de ter se envolvido no mundo da ilegalidade do
tráfico. Recebe e faz ameaças, começa a lutar para sobreviver
dentro desse mundo específico dos crimes e do tráfico. Como diz a
frase: seu futuro era incerto. A partir do momento em que começa a
querer se firmar dentro do mundo da ilegalidade, seu futuro não tem
mais rota. Abandona aos poucos o trabalho e começa a beber, se
envolvendo ainda mais com o tráfico e com o mundo do crime.

Mas acontece que um tal de Jeremias


Traficante de renome apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que com João ele ia acabar.
Mas Pablo trouxe uma Winchester 22
E Santo Cristo já sabia atirar
E decidiu usar a arma só depois
Que Jeremias começasse a brigar

O encontro com Jeremias é o primeiro e principal problema


enfrentado por João, relatado na música. Jeremias é classificado
como: traficante de renome apareceu por lá/ ficou sabendo dos
planos de Santo Cristo. João já tinha a arma que Pablo havia lhe
dado e queria brigar para garantir seu espaço.

Jeremias maconheiro sem vergonha


Organizou a Roconha e fez todo mundo dançar
Desvirginava mocinhas inocentes
E dizia que era crente mas não sabia rezar
Nesta estrofe, continuam a personificação de Jeremias como
maconheiro, sem vergonha bem diferente de João. A Roconha era
um grupo de jovens que se metia no tráfico de drogas nos bairros
de Brasília. A historia de Jeremias, por ironia do destino, é muito
parecido com a de João. E o confronto entre os dois estava por vir.
Ambos precisavam desse confronto para se afirmar no grupo.

E Santo Cristo há muito não ia prá casa


E a saudade começou a apertar
"- Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já está em tempo de a gente se casar"

Chegando em casa então ele chorou


E pro inferno ele foi pela segunda vez
Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez

Nesse ponto da composição se percebe a desilusão de João


ao ver que seu único amor, puro e salvador, já não era mais seu.
Ele via em Maria Lúcia sua redenção, tudo aquilo que ainda tinha
de bom para acreditar na vida e seguir o caminho da honestidade.
Porém, Jeremias estava com Maria Lúcia. Tal fato o marcou e o
deixou bastante revoltado. Além disso, Jeremias casou com ela e a
engravidou, deixando João sem chão.

Santo Cristo era só ódio pro dentro


E então o Jeremias prá um duelo ele chamou
"- Amanhã, as duas horas na Ceilândia
Em frente ao lote catorze é prá lá que eu vou
E você pode escolher as suas armas
Que eu acabo com você, seu porco traidor
E mato também Maria Lúcia
Aquela menina falsa prá que jurei o meu amor"
Na frase: Santo Cristo era só ódio por dentro/ E então
Jeremias pra um duelo ele chamou mostra bem a reação de João
em relação ao fato de Maria Lúcia o abandonar. Marcaram o
confronto em uma cidade satélite de Brasília, na Ceilândia e pra lá
partiram a fim de resolverem seus problemas um com o outro. Com
muita raiva, ele se sentia traído por Maria Lúcia: e mato também
Maria Lúcia / Aquela menina falsa pra que jurei o meu amor.
Percebe-se aqui que o céu de João era Maria Lúcia e o inferno era
viver no mundo das drogas, procurando formas de conseguir
dinheiro e viver.

E Santo Cristo não sabia o que fazer


Quando viu o repórter da televisão
Que a notícia do duelo na TV
Dizendo a hora o local e a razão

No sábado, então as duas horas


Todo o povo sem demora
Foi lá só prá assistir
Um homem que atirava pelas costas
E acertou o Santo Cristo
E começou a sorrir
Sentindo o sangue na garganta
João olhou as bandeirinhas
E o povo a aplaudir
E olhou pro sorveteiro
E prás câmeras e a gente da TV que filmava tudo ali

O confronto foi marcado e a TV aparece para ver aquilo.


Jeremias parte primeiro com sua ação, atirando em João ainda de
costas. João se sente traído duplamente: por Maria Lúcia e por
Jeremias estar atirando sem ele poder se defender (enquanto
estava de costas). O espetáculo da violência é visto pelas pessoas.
Os transeuntes nada sentem pelos dois que brigam, vêem aquilo
apenas como um espetáculo, ou como mais um crime na cidade.
Nas frases percebe-se a banalização da violência: e o povo a
aplaudir/ E pras câmeras e a gente da TV que filmava tudo ali.

Renato Russo, nessa música, faz uma importante crítica aos


meios de comunicação e principalmente à população que hoje não
vê mais o próximo como cidadão. Vivemos hoje fechados em
nossas casas, cuidando apenas de nossas vidas, sem nos
preocupar com a realidade lá fora, de pessoas iguais a nós. A TV
ajuda nessa banalização dos crimes ao mostrar sem criticar ou
propor mudanças, apenas como um frio espetáculo do cotidiano.

E se lembrou de quando era uma criança


E de tudo o que viveu até aqui
E decidiu entrar de vez naquela dança
"- Se a via-crucis virou circo, estou aqui."

Em tal estrofe João compara o espetáculo de violência ao


momento da crucificação de cristo. Faz-se assim alusão à aquele
que morreu em pró dos outros que ficavam no mundo, apesar da
maioria não ter lutado para defender Cristo. O próprio nome criado
por Renato Russo para o personagem, João de Santo Cristo, faz
alusão ao aspecto religioso. A música se assemelha a uma
reinterpretação da via crucis de Jesus Cristo na cidade grande, e
João seria Cristo.

E nisso o sol cegou seus olhos


E então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a Winchester 22
A arma que seu primo Pablo lhe deu
"- Jeremias, eu sou homem.
Coisa que você não é
Eu não atiro pelas costas, não.
Olha prá cá filha da puta sem vergonha
Dá uma olhada no meu sangue
E vem sentir o teu perdão"

E Santo Cristo com a Winchester 22


Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor

João ainda se levanta e dá tiros em Jeremias. Critica a


covardia daquele que lhe deu o tiro nas costas: Jeremias, eu sou
homem/ Coisa que você não é/ Eu não atiro pelas costas não. Maria
Lúcia tenta o salvar e sofre com os tiros também. A situação para
João fica ainda pior ao ver que sua amada também esta atingida.
Como num Romeu e Julieta urbano, a composição vai chegando ao
fim.

O povo declarava que João de Santo Cristo


Era santo porque sabia morrer
E a alta burguesia da cidade não acreditava na história
Que ele viram da TV
E João não conseguiu o que queria
Quando veio prá Brasília com o diabo ter
Ele queria era falar com o presidente
Prá ajudar toda essa gente que só faz
Sofrer

A crítica social da composição continua na ultima estrofe da


música quando a TV olha João e não entende seus motivos e sua
vinda para a capital. Critica também a alta burguesia que banaliza a
violência e apenas assiste a essa enquanto espetáculo: E a alta
burguesia da cidade não acreditava na historia/ que eles viram na
TV. João tinha a ingênua idéia de falar com o presidente a respeito
da vida sofrida dos brasileiros, seus amigos e familiares. Porém,
morreu e o que ganhou foi apenas uma noticia de óbito no jornal da
cidade.

O CD intitulado As Quatro Estações foi gravado e lançado em


1989. Apresentam música ainda com a crítica social forte,
marcante, criada por Renato Russo e o tema do amor e seus
confrontos entre sentimentos e razão.

9. HÁ TEMPOS

Nesta composição, Renato Russo trabalha com temas que


assolam a juventude: solidão, amizades, drogas. E começa
descrevendo as principais idéias nas primeiras estrofes.

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidade.


Muitos temores nascem do cansaço e da solidão
E o descompasso e o desperdício herdeiros são
Agora da virtude que perdemos.

Nesse trecho o autor analisa a situação urbana e seu


cotidiano. Os substantivos descompasso e desperdício mostram
bem a realidade urbana, com seus engarrafamentos, e pessoas
correndo. Faz alusão ao passado abadonado ao dizer: agora da
virtude que perdemos.

Há tempos tive um sonho


Não me lembro não me lembro

Tua tristeza é tão exata


E hoje o dia é tão bonito
Já estamos acostumados
A não temos mais nem isso.
Entrando num clima intimista, o narrador começa a falar sobre
os sentimentos que tomam conta do seu ser: tristeza, não-costume.
Para ele, os sentimentos são reais e concretos, apesar do dia
parecer bonito. E ainda afirma a dureza do mundo ao dizer que não
existe esses sentimentos no cotidiano atribulado das pessoas: a
não temos mais nem isso.

Os sonhos vêm e os sonhos vão


O resto é imperfeito.

Disseste que se tua voz tivesse força igual


À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira.

Tal sentimento de revolta e crítica com o cotidiano pode se


tornar um grito de rebeldia, ou de aviso à aqueles que se encontram
inertes, passivos. Na frase: Disseste que se tua voz tivesse força
igual / À imensa dor que sentes mostra a grandeza da revolta e dos
sentimentos do narrador, tão grande que ultrapassa os limites de
ser o corpo. Renato Russo sempre teve em sua voz o auto-falante
capaz de falar de sua revolta, de sua crítica, e ele sabia do poder da
voz e do poder de suas músicas. No trecho: teu grito acordaria/ não
só a tua casa/ mas a vizinhança inteira mostra bem a força da voz e
da revolta na busca de tirar uma maioria da passividade, buscando
levar as pessoas aos questionamentos sobre a vida e sobre o
cotidiano.

E há tempos nem os santos têm ao certo


A medida da maldade
Há tempos são os jovens que adoecem
Há tempos o encanto está ausente
E há ferrugem nos sorrisos
E só o acaso estende os braços
A quem procura abrigo e proteção.
Se encaminhando para as ultimas estrofes da composição
vemos a força de algumas metáforas como: Há tempos são os
jovens que adoecem / há tempos o encanto está ausente/ E há
ferrugem nos sorrisos. Tais metáforas mostram a decadência em
todas as esferas, desde da juventude ate os idosos, mostrando que
a decadência do mundo é transmitida para as pessoas. Destaca
também a falta de cordialidade e ajuda do ser humano, hoje
fechado apenas no seu mundo individual, pensando egoisticamente
em si só: A quem procura abrigo e proteção (apesar das pessoas
estenderem o braço).

Meu amor, disciplina é liberdade


Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem
E ela disse:
- Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa.

Na ultima estrofe da musica, o compositor mostra o resumo


de suas idéias e sonhos, também usando metáforas fortes como:
Compaixão é fortaleza, ter bondade é ter coragem. E traz a imagem
do poço, que armazena água, simbolizando segredos e
esquecimento, pois a água do poço fica ali, para sempre,
esquecida. Segundo o Dicionário de Sonhos escrito por Pedro de
Lara, a imagem do poço quer dizer: perigo, necessidade, ameaça,
intrigas, decadência moral, poço simboliza perigo, jazigo de
impureza. A partir dessa imagem vemos que o poço simboliza algo
guardado, escondido, sujo. Porem, o narrador cria um paradoxo,
dizendo que a água do poço está limpa, mostrando que tal poço
guarda segredos, porém a limpidez da água representa beleza
guardada, aspectos bons, etc.

Mais uma vez Renato Russo cria novas intepretações para


velhas imagens, revisitando mitos a fim de mostrar que o mundo
não apenas o que vemos. Quer mostrar o mundo como algo
instável, sujeito as mais variadas forças e sentimentos, e o ser
humano teria assim um papel renovado, não o de apenas viver seu
cotidiano e sim de questionar e reconstruir imagens sobre o mundo
e sobre a vida.

10. PAIS E FILHOS

A música a seguir faz uma metáfora da relação dos pais com


os filhos e vice versa. Mostra o que cada um (pais e filhos) imagina
um do outro e as dificuldades de entendimento entre os dois, que
parte para algo universal como o entendimento do ser humano com
o outro.

Estátuas e cofres e paredes pintadas


Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender.

Dorme agora:
É só o vento lá fora.

Nessa estrofe se destaca a conseqüência de uma situação: o


suicídio de alguém. O suicídio é uma morte sozinha e bastante
questionável em suas razoes. Varias razoes tomam conta da mente
de um suicida, desde os problemas que enfrenta em vida até o
abandono da vida através do ato de se matar. O ser coloca fim na
própria vida. Tal fato traz grandes questionamentos existenciais e
filosóficos. No trecho: Não é fácil de entender/ dorme agora/ é só o
vento lá fora mostra a situação daqueles que ficam em vida
relembrando daquele que se foi buscando razoes racionais para se
entender a morte.
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo
Tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três.

Nessa estrofe se encontra a oposição entre sonho e pesadelo.


Mostra o jovem querendo colo, ajuda dos pais. Mostra o jovem
como um ser frágil, em formação. O medo é prova dessa fragilidade
ao dizer: estou com medo / tive um pesadelo. A fuga se mostra
atraente no momento em que não se quer enfrentar com
maturidade os problemas: vou fugir de casa. Porém, a fuga não é a
resolução dos problemas.

Meu filho vai ter nome de santo


Quero o nome mais bonito.

É preciso amar as pessoas


Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar para pensar,
Na verdade não há.

A religiosidade é bastante presente nas composições de


Renato Russo. Ao dizer que meu filho vai ter nome de santo é a
vontade instintiva do ser humano de se equiparar aos santos.
Porem, o ser humano, nas suas fragilidades e principalmente na
sua imperfeição, nunca será igual aos santos. Os santos foram
criados como um contraponto da humanidade, mostrando que o ser
humano, apesar de suas deficiências naturais de caráter, deve
buscar a perfeição dos santos. E todo pai vê no filho sua forma de
redenção e ligação espiritual com o mundo, o filho seria seu fruto no
mundo, gerado de forma carnal e espirtiual ao mesmo tempo.

O amor incondicional dos pais em relação aos filhos também


é dito nessa composição. Os pais amam incondicionalmente seus
filhos, como se não houvesse amanhã. Os filhos, muitas vezes, se
colocam contra seus pais. A composição recomenda que o amor
deve sempre existir apesar dos problemas passados ou dos
problemas que poderão surgir no futuro. A composição faz uma
Ode ao momento presente.

Me diz porque é que o céu é azul


Me explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim
Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais,
Eu moro com meus pais.

Num momento de questionamento sobre as coisas da vida, a


estrofe destaca as dúvidas do ser humano: me diz porque é que o
céu é azul/ me explica a grande fúria do mundo/ são meus filhos
que tomam conta de mim. Nesses trechos o jovem esta
amadurecendo idéias sobre o mundo e sobre sua família.

Depois há um relato da modernidade das relações familiares


hoje: eu moro com a minha mãe/ mas meu pai vem me visitar/ eu
moro na rua, não tenho ninguém/ eu moro em qualquer lugar/ já
morei em tanta casa que nem lembro mais/ eu moro com meus pais
sintetizam a modernidade, com pais separados, filhos
abandonados, filhos que moram com as avós e assim por diante.
Mostra a flexibilidade das relações familiares e ao mesmo tempo os
mesmos questionamentos que toma conta da relação de filho com
pai, questionamentos sobre a vida.

É preciso amar as pessoas


Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar para pensar,
Na verdade não há.
Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo: são crianças como você

O que você vai ser quando você crescer?

O fim da música é a parte mais bela da composição. As


seguintes metáforas: sou uma gota dagua/ sou um grão de areia/
mas você não entende seus pais/ são crianças como você mostram
exatamente o que representa a relação pai-filho na vida de qualquer
ser humano. A gota dagua seria a composição da imensidão, seria
um filho no meio de tantos filhos, tantos problemas, tantas famílias.
Mostra que os problemas e questionamentos humanos ocorrem a
séculos, de geração em geração. E que pais também passaram por
momentos de questionamentos quando jovens.

A reclamação dos filhos em relação aos pais mostra um


egoísmo de não tentar entender os pais, de buscar conversar com
os pais, pois esses também foram jovens um dia. A culpa reina
como soberana numa relação em que os filhos apenas querem
receber atenção. Porém, os pais também merecem o entendimento
dos seus filhos.

11. QUANDO O SOL BATER NA JANELA DO SEU QUARTO

Nessa música percebesse a presença da natureza


relacionando a vida do ser humano em consonância com os fatos
da vida. Mais uma vez, Renato Russo nos mostra visões bem
peculiares sobre a realidade das coisas.

Quando o sol bater


Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só.

Nesse trecho o sol marca o momento de recordação do


narrador. O sol bater/ na janela do teu quarto alude a um momento
de lembrança sobre algo que aconteceu, sobre os caminhos que a
vida nos proporciona.

Porque esperar se podemos começar tudo de novo


Agora mesmo
A humanidade é desumana
Mas ainda temos chance
O sol nasce pra todos
Só não sabe quem não quer.

Nesta estrofe o narrador afirma que na vida tudo pode


começar de novo. Mesmo analisando a humanidade, com suas
deficiências e injustiças, a esperança ainda existe como se mostra
no trecho: Mas ainda temos chance / o sol nasce para todos / só
não sabe quem não quer. Usando de frases otimistas, a
composição vai montando uma revelação otimista sobre a vida e
sobre como levar a vida e o cotidiano.

Até bem pouco tempo atrás


Poderíamos mudar o mundo
Quem roubou nossa coragem?
Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
De não sentimos dor.

Já nesta estrofe o eu lírico faz uma pequena crítica ao


momento histórico vivido por ele, ao dizer que? Até bem pouco
tempo atrás/ poderíamos mudar o mundo/ quem roubou nossa
coragem. Ao usar o substantivo coragem junto ao verbo roubar
mostra exatamente o que acontece no momento atual, com os
jovens inertes, sem saber o que acontece na política do seu país,
se colocando alheio a qualquer questionamento social ou político,
tornando-se apenas uma massa de consumidores, sem questionar
padrões ou comportamentos. Inconscientemente, se sente dor / e
toda dor vem do desejo / de não sentimos dor. Nesse trecho o eu
lírico quer mostrar que o ser humano não busca o sofrimento, mas
quando se depara com ele, a dor aumenta não pela intensidade
natural da dor e sim pela vontade do homem de não sofrer, pois não
somos acostumados a sentir dor ou enfrentar situações de risco em
nossas vidas. Renato Russo analisa que tais situações de risco
ocorrem todo dia, no trabalho, em casa, na escola, na família, e que
o ser humano tem que aprender junto com a dor, e vê-la como algo
inerente da nossa capacidade de enfrentar o mundo.

Quando o sol bater


Na janela do teu quarto
Lembra e vê
Que o caminho é um só.

Ele termina a música retomando à primeira estrofe, mostrando


que o caminho é um só se for seguido respeitando as pessoas e
buscando sempre o bem estar humano. A música é uma grande
metáfora sobre os caminhos da humanidade e as atitudes do
homem diante dos problemas existentes e muitas vezes causados
por nós mesmos.

12. MONTE CASTELO

Monte Castelo é mais uma bela composição de Renato


Russo, cheia de intertextos retirados de poemas de Luis Vaz de
Camões, grande poeta português e escritor da grande obra Os
Lusíadas. Assim como Camões, Renato Russo sempre colocou o
amor e os sentimentos humanos em suas músicas a fim de criar
críticas, metáforas e significações para um sentimento tão bom e ao
mesmo tempo tão contraditório em sua natureza. Como a busca de
qualquer ser humano é a de entender o que nos leva a amar,
Renato Russo soube expressar essa dúvida humana de forma
muito precisa nessa composição. Vamos a análise:
Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.

Nesta estrofe se destaca a frase: ainda que eu falasse a


língua dos homens dando ênfase ao poder da linguagem, essencial
para o homem viver e expressar suas concepções de mundo. A
língua é diversa no mundo, mas o sentimento amor é sempre o
mesmo, na sua mesma natureza bela e instigante. E ele completa
nesta estrofe a valoração do amor: sem amor eu nada seria.

Outra imagem importante a ser analisada nessa estrofe é a do


anjo. Ao dizer E falasse a língua dos anjos ele quer fazer um
paralelo ao mundo que não existe, ao mundo dos céus, aquele que
o homem em sua crença religiosa busca enquanto perfeição. O anjo
seria a materialização do poder dos céus, do infinito. Além disso, o
anjo ligaria o homem (na terra) a Deus (no céu). O proprio dicionário
Houaiss diz: o anjo seria o mensageiro celestial entre Deus e os
homens. Tal mensageiro, através da linguagem, mostra o que há de
mais divino do amor. Interessante também é analisar a idéia do
cupido que seria o anjo que representa o amor. Só que o cupido
seria o Deus do amor, apesar de não ser citado na música, também
alude à mitologia grega com seus significados abrangentes.

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é venerado enquanto a única verdade que o homem


tem acesso em vida. E nesta estrofe começa a intertextualidade
com o poema de Camões. Ao dizer que o amor é bom, não quer o
mal/ não sente inveja ou se envaidece mostra que o sentimento
toma conta do ser humano no que há de mais puro, sem mentiras
ou máscaras.

Amor é fogo que arde sem se ver


É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer.

O poema de Luis de Camões leva o nome de Amor é um fogo


que arde sem se ver, frase usada na música analisada. E Renato
Russo usa toda uma estrofe do soneto, que trata exatamente da
contradição do amor: amor é fogo que arde sem se ver/ é ferida que
dói e não se sente/ é um contentamento descontente/ é dor que
desatina sem doer. Tal estrofe representa o primeiro quarteto do
soneto em questão de Luiz Vaz de Camões, poeta português que
viveu em Lisboa entre 1524 e 1580.

Mais uma vez se mostra a intertextualidade criada por Renato


ao escrever suas músicas, mostrando sua alta cultura e
principalmente sua busca em entender as coisas do mundo e do ser
humano.

É um não querer mais do que bem querer


É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade


É servir a que vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.

As duas estrofes acima foram retiradas do soneto de Camões.


Apenas a frase: Tão contrário a si é o mesmo amor foi criada por
Renato Russo. O amor continua sendo mostrado como um
sentimento de natureza contraditória, pois mostra que o homem,
apesar de sofrer, quer sentir o amor, e precisa do amor para
continuar vivendo. Mostra também o insaciável desejo de sempre
amar, ou sempre estar amando, sendo esse desejo o que o liga
com a perfeição dos céus, de Deus.

A lealdade com aquele que o mata também é uma bela


comparação ao ver que o ser amado mata de amor aquele que o
ama. Todo dia é uma pequena morte que acontece, e um novo
amor que se constrói, pois a vida não se repete. O aspecto único da
vida também é citado nessa música, ao mostrar que a vida deve ser
vivida, pois ela é apenas uma.

Estou acordado e todos dormem


Todos dormem todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face.

Neste trecho o narrador afirma que não vê a completude do


amor, vê apenas partes do grande sentimento. Mas, que em algum
momento, na morte ou em vida, se sentir o amor em sua plenitude,
verá de frente esse sentimento tão contraditório e tão belo.

É só o amor, é só o amor,
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse a língua dos homens


E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.

E ao final ele retoma as primeiras estrofes, relembrando a


natureza do amor e o poder da linguagem em relação à análise da
existência do homem.

13. MENINOS E MENINAS

Meninos e meninas é uma música muito interessante para se


analisar a natureza do jovem. A música traz um pouco da discussão
sobre o que é ser diferente em nossa sociedade. Traz para a
discussão temas como: sexualidade, religião, idade, sentimentos,
gerações etc. Faz um apanhado metafórico sobre o que viver em
sociedade e sobre as imagens que os outros fazem de si e de
outras pessoas.

Quero me encontrar mas não sei onde estou


Vem comigo procurar algum lugar mais calmo
Longe dessa confusão
E dessa gente que não se respeita
Tenho quase certeza que eu
Não sou daqui.

Já na primeira estrofe da música percebe-se o estranhamento


do narrador em ficar em certos lugares, na vontade de se encontrar,
apesar de não saber onde está. Tal estranhamento ainda não é
mostrado em todas as suas razões, apenas é colocado como um
sentimento que existe. Durante a música, as razoes que levam o
narrador a sentir tal estranhamento, são colocadas em discussão.
Na frase: tenho quase certeza que eu não sou daqui dá ênfase aos
questionamentos existenciais do narrador, de se deparar com um
mundo muito diferente do que ele espera, do que ele imagina,
buscando fugir dessa realidade ruim para algo diferente.

Acho que gosto de S. Paulo


E gosto de S. João
Gosto de S. Francisco
E S. Sebastião
E eu gosto de meninos e meninas.

Neste trecho percebe duas linhas de interpretação: a linha


religiosa e a linha tematizada pela descoberta da sexualidade. São
dois temas que tomam conta do mundo dos jovens. A relação com
a religião mostra o reconhecimento da natureza humana,
reconhecendo assim o contraponto da religião, que mostra o céu
enquanto redenção e os santos como representantes da perfeição
divina. Ao citar santos como: São Paulo, São João, São Francisco e
São Sebastião, o narrador quer especificar a característica de cada
um deles. De acordo com o livro Tarô dos Santos que faz uma
abordagem da característica mítica de cada santo, analisamos a
seguinte concepção: De todos os santos, São Francisco de Assis é
um dos mais amados. O seu exemplo de devoção altruísta ao
próximo tem sido inspiração para todas as gerações. Ele e São
Tomás são reconhecidos no panteão hindu como curandeiros e
mestres iluminados. É celebrados como aquele que cuida dos
animais e de toda a natureza.

Vemos assim, que o narrador quer destacar o altruísmo


exemplar do santo, mostrando uma característica que toda pessoa
deve ter na vida e na convivências com os seus semelhantes. Já
São Sebastião, de acordo com mitos portugueses, seria um rei
português que aclamado pelo seu povo que morreu na grande
batalha de Alcacer-Quibir. Sua morte ainda é uma incógnita na
historia portuguesa, pois muitos dizem que ele sumiu, já outros
dizem que ele morreu. Vive-se hoje do mito de São Sebastião,
como aquele que voltará para salvar Portugal. Já São João foi um
dos doze apóstolos de Cristo. Era o mais novo dos 12 apostolos,
Era solteiro e pescador. Ele era uma pessoa imaginativa e muito
respeitadora, ajudava o próximo e sempre estava ao lado de Jesus.
Dessa forma, faz alusão também a piedade e à honestidade de São
João.

São Paulo também era discípulo e apóstolo de Jesus, e foi


umas das figuras mais importantes para o desenvolvimento do
cristianismo. Era um homem culto e se destacava pela sua cultura e
erudição. Dessa forma, Renato Russo cita 4 grandes personagens
bíblicos a fim de traduzir os sentimentos e o poder da religião ainda
nos nossos dias.

Em relação ao tema da sexualidade, vemos na frase: e gosto


de meninos e meninas traz um tom de ambigüidade. A seguinte
frase mostra duas interpretações: o narrador gosta de ambos os
sexos porque todos são iguais e merecem o amor de Jesus ou a
compaixão de todos nós e a outra interpretação leva à questão da
descoberta da sexualidade, ocorrente na fase da juventude, onde
jovens beijam meninos e meninas, buscando entender a
sexualidade, descobrindo o desejo e a atração.

Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
Vai ficando complicado e ao mesmo tempo diferente
Estou cansado de bater e ninguém abrir
Você me deixou sentindo tanto frio
Não sei mais o que dizer.

Nessa estrofe o narrador afirma a dificuldade de sobreviver


em sociedade, em que as pessoas não se ajudam e não se ouvem.
No trecho: Vai ver que é assim mesmo e vai ser assim pra sempre
mostra um pouco pessimismo diante do individualismo social. Na
frase: Estou cansando de bater e ninguém abrir também faz alusão
a falta de altruísmo das pessoas, bem diferente das características
dos santos citados por ele na música.

Te fiz comida
Velei teu sono
Fui teu amigo
Te levei comigo e me diz:
Pra mim o que é que ficou?

Nessa estrofe o narrador continua questionando a falta de


retribuição do ser humano. Muitas pessoas fazem de suas vidas o
cuidado com as outras, porém não recebem o mesmo em troca.
Me deixa ver como viver é bom
Não é a vida como está e sim as coisas como são
Você não quis tentar me ajudar
Então a culpa é de quem?
A culpa é de quem?

A mais bela estrofe na minha opinião é essa a ser analisada.


Ao dizer que: me deixa ver como viver é bom mostra a vontade do
eu lírico ver que o mundo ainda tem jeito, apesar das injustiças que
tomam conta de seu olhar. Na frase: Não é a vida como está e sim
as coisas como são o narrador quer mostrar que a vida muda
sempre, com seus fatos diferentes, porém, a in justiça prevalece,
mostrando que a natureza do mundo é ser injusto, apesar de existir
pessoas boas com a vontade de mudar. Os verbos estar e ser criam
uma relação precisa de mutabilidade e imutabilidade. A relação fica
entre justiça e injustiça, entre fatos e natureza do mundo.

A culpa surge. Freud já dizia que o ser humano é racional


devido a existência da culpa. O animal irracional, aquele que mata
para se alimentar, não se sente culpado ao matar outro ser para se
alimentar. Ele é movido pelo seu instinto primordial, o de se
alimentar, procriar e viver. Porém, o ser humano, exatamente por
ser racional e ter um intelecto moldado pelo meio social, muitas
vezes sente culpa. A culpa surge na educação familiar, no histórico
de vida do ser e até antes da pessoa nascer, ainda na barriga da
mãe. Mostra-se assim a influência de vários aspectos do ser
humano, e na construção desse ser dentro da sociedade.

O educador Sergio Luiz Giannico, em seu site sobre educação


fala um pouco sobre a culpa na educação do ser social:

Culpa é um sentimento que causa o ódio de si mesmo e com isso a autopunição e o


desequilíbrio emocional. Isso acontece porque geralmente nasce de uma exigência, de algo
que não queremos fazer e com isso nos leva a submissão. A culpa é o método mais eficaz de
fazer com que uma pessoa se submeta aos caprichos ou desejos de outra pessoa. Esse
sentimento recebeu requintes medievais por muitas religiões, primeiro fantasiavam a culpa de
forma a bater por dentro nas pessoas, depois garantiam que tinham o elixir do perdão ou da
salvação, muitas vezes deixando o sentimento de fé em segundo plano.

A exigência de algo ou a cobrança que fazendo a nós


mesmos faz com que a culpa surja nas mais variadas relações
sociais. A anulação do próprio eu é comentada pelo educador:

Na medida que as pessoas culpáveis iam se frustrando em não conseguir ser o outro, iam
conquistando mais submissão aumentando o sentimento de culpa e anulando seu próprio Eu.
Conseqüentemente adquiriam uma personalidade robotizada ou de eterno revoltado

Mostra-se assim que a culpa é forma de controle social, de


manter as pessoas agindo sob as mesmas regras sociais. Porém,
se perde muito com a prática do sentimento de culpa. Renato
Russo questiona também essa perda, essa falta de sentimentos
puros no ser humano.

Eu canto em português errado


Acho que o imperfeito não participa do passado
Troco as pessoas
Troco os pronomes.

Nessa estrofe o narrador faz referência à língua portuguesa e


seu poder social, ao dizer: eu canto em português errado ele quer
fazer alusão ao português falado, dito pelas pessoas, que foge das
regras gramaticais. Ele seria um ser que quer antes de tudo se
fazer entender, desvinculado às regras gramaticais que amarram o
uso da língua. E começa dizendo: acho que o imperfeito não
participa do passado faz alusão ao pretérito imperfeito que consta
em gramáticas do português. O narrador vê o passado como algo
que já passou, perfeito, redondo, que não voltará mais. Mostra-se
assim uma crítica às nomenclaturas gramaticais existentes.

Preciso de oxigênio
Preciso ter amigos
Preciso ter dinheiro
Preciso de carinho
Acho que te amava
Agora acho que te odeio
São tudo pequenas coisas
E tudo deve passar.

Destaca-se agora o uso do verbo precisar. O narrador quer


mostrar a necessidade do ser humano em sempre buscar formas de
se completar, de completar suas necessidades. Busca-se assim
necessidade em coisas materiais como dinheiro e em pessoas
como amigos e sentimentos como carinho. O oxigênio entra como o
combustível essencial da vida.

Na frase: Acho que te amava/ agora acho que te odeio mostra


a instabilidade do ser humano e a falta de certeza diante dos seus
sentimentos. O aspecto transitório da vida é visto na frase: e tudo
deve passar.

14. O TEATRO DOS VAMPIROS

A seguinte composição recebe um título que nos leva a uma


bela imagem: teatro dos vampiros. O teatro, a criação maior do
gênero da dramaturgia, recebe variadas discussões até hoje devido
seu caráter de transmitir as mais variadas idéias, usando atores,
dançarinos, se tornando palco das manifestações mais importantes
da cultura de qualquer povo. E os vampiros já um mito sagrado e
famoso da literatura mundial, carregando consigo mitos religiosos e
história. As estrofes da composição mostram sentimentos
contraditórios (bastantes presentes na imagem do vampiro) e nos
tablados de teatros.

Sempre precisei de um pouco de atenção


Acho que não sei quem sou
Só sei do que não gosto
E destes dias tão estranhos
Fica a poeira se escondendo pelos cantos.

Ao dizer: sempre precisei de um pouco de atenção mostra o


jogo que o ator de teatro cria com seu público. A atenção do público
é essencial para que ele surja em cima do palco e passe sua
representação. E começa afirmando as certezas e seus desejos:
acho que não sei quem sou/ só sei do que não gosto. Os dias
estranhos colocam o ser a questionar seus sentimentos e sua visão
da sociedade. E o ato de conviver com a sociedade, com suas
mazelas e injustiças se resume na frase: fica a poeira se
escondendo pelos cantos.

Este é o nosso mundo:


O que é demais nunca é o bastante
E a primeira vez é sempre a última chance.
Ninguém vê onde chegamos:
Os assassinos estão livres, nós não estamos.

E nesta estrofe o mundo em que vivemos, em sua estrutura e


natureza, começa a ser questionado: este é o nosso mundo/ o que
é demais nunca é o bastante. O fato da vida ser apenas uma,
fazendo com que o ser humano tente apenas uma vez, sem poder
voltar atrás de suas decisões se resume a frase: e a primeira vez é
sempre a última chance. A injustiça se estabelece diante da
honestidade das pessoas: ninguém vê onde chegamos/ os
assassinos estão livres, nós não estamos. Quer dizer que a
liberdade de hoje esta contrária, sem a justiça eficiente vivemos
presos em nossas casas enquanto os ladrões estão soltos tentando
viver pelo crime.

Vamos sair - mas não temos mais dinheiro


Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas.
Já nessa estrofe se destaca a realidade dos fatos, a juventude
que tem que se adequar ao mundo capitalista: vamos sair – mas
não temos mais dinheiro/ os meus amigos todos estão procurando
emprego/ voltamos a viver como há dez anos atrás. Tais frases
mostra o quanto a juventude tem data de validade para passar,
cedo os adolescentes já estão se preocupando com carreiras
profissionais, vestibulares, entrando na competição social que está
se tornando fator natural do mundo capitalista. A adequação se dá
através do dinheiro, da busca pelo emprego, na busca por melhores
condições financeiras já que o Estado abre mão de muitos direitos
que o cidadão merecia como moradia, justiça, saneamento básico.
Renato Russo faz uma crítica feroz à situação social do país. E o
envelhecimento precoce da juventude ele resumiu no trecho:
envelhecemos 10 semanas.

Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir.


Esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E esperamos que um dia
Nossas vidas possam se encontrar.

Nesta estrofe ele pede que o encontro entre as pessoas


aconteça, longe das mazelas sociais, longe dos problemas do
mundo. Na frase: vamos lá, tudo bem – eu só quero me divertir. Na
frase mostra a vontade de seguir, esquecer os problemas por
alguns minutos para sobreviver. O verbo esquecer é usado na
frase: esquecer, dessa noite ter um lugar legal pra ir. A imagem do
alvo e artilharia na frase: já entregamos o alvo e a artilharia faz
alusão à guerra que se trava todo dia, na rotina, no cotidiano. O
cotidiano ainda é a pior guerra do ser humano, porque a todo
momento os dias pedem novas atitudes, novas concepções, tudo
muda.E o trecho acaba em tom de esperança, em tom de encontro:
e esperamos que um dia/ nossas vidas possam se encontrar.

Quando me vi tendo de viver comigo apenas


E com o mundo
Você me veio como um sonho bom
E me assustei

Nessa estrofe o narrador destaca a solidão e a melancolia


como características inerentes a ele. O sentimento de melancolia
sempre foi bastante discutido por filósofos e psicólogos. O filosofo
David Hume assumia a instabilidade do homem como a principal
razão que faz o homem se tornar um ser melancólico:

A condição debilitada, a fraqueza e a desordem das faculdades que devo utilizar em minhas
investigações aumentam a minha apreensão. E a possibilidade de emendar e corrigir tais
faculdades leva-me quase ao desespero, e quase a preferir perecer nas pedras em que me
encontro no momento, do que aventurar-me na imensidão do alto mar. Esta súbita visão de
perigo em enche de melancolia; e como ocorre com essa paixão, dentre todas as demais,
perder-se em si mesma, eu não posso deixar de alimentar o meu desespero com todas essas
reflexões desanimadoras que o presente assunto me oferece com tamanha abundância.

Dessa forma, se percebe que a melancolia aparece em


situações em que estamos alheios ao mundo exterior, quando nos
fechamos em nosso mundo interior. Soa como um egoísmo. Nesta
estrofe o narrador afirma: você me veio como um sonho bom/e me
assustei.

Não sou perfeito


Eu não esqueço
A riqueza que nós temos
Ninguém consegue perceber
E de pensar nisso tudo, eu, homem feito
Tive medo e não consegui dormir.

Nesta estrofe ele continua questionando a instabilidade do ser


humanos, suas fraquezas ao dizer: não sou perfeito/ eu não
esqueço/ a riqueza que nós temos. O excesso do uso do verbo
esquecer mostra que o narrador não se cansa em lembrar, ter
recordações do que viveu, mostrando que o recordar esta também
inerente ao viver humano, pois a vida é transitória e relembrar é a
única forma que nos faz viver de novo algo que passou.

Vamos lá, tudo bem - eu só quero me divertir


Esquecer, dessa noite ter um lugar legal p'rá ir
Já entregamos o alvo e a artilharia
Comparamos nossas vidas
E mesmo assim, não tenho pena de ninguém.

A frase: e mesmo assim, não tenho pena de ninguém mostra


a piedade que o homem sente com o próximo. A piedade é um
sentimento ausente do mundo moderno. Atribulado em sua rotina, o
homem não sente pena do outro, não ajuda o outro. Renato Russo
discute o egoísmo e o processo de esquecimento do homem, em
relação aos outros semelhantes seus. É uma bela composição que
sucita grandes discussões.

15. VENTO NO LITORAL

Vento no Litoral é uma música bem sentimental, com


destaque ao eu lírico. Num tom de recordação e melancolia se
começa o relato sobre situações vividas.

De tarde quero descansar, chegar até a praia


Ver se o vento ainda está forte
E vai ser bom subir nas pedras.
Sei que faço isso para esquecer
Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora

Neste trecho há uma consonância do ser com a natureza.


Mostra-se que a natureza, com suas pedras, vento, praia, faz com
que o eu lírico se sinta em contato com a natureza, se sinta mais
leve. Na frase: sei que faço isso para esquecer/ eu deixo a onda me
acertar mostra um lado de fuga da realidade, de se refugiar na
natureza para encontrar as respostas sobre alguns
questionamentos existenciais.

Agora está tão longe


Vê, a linha do horizonte me distrai:
Dos nossos planos é que tenho mais saudade,
Quando olhávamos juntos na mesma direção.

Na frase: vê, a linha do horizonte me distrai traz a imagem do


horizonte, como se fosse a linha que corta dois mundos ou algo
inalcançável. Nesse momento o eu lírico ainda esta sendo levado
pelos seus devaneios e pensamentos. E traz consigo o momento da
recordação: dos nossos planos é que tenho mais saudade/ quando
olhávamos juntos na mesma direção.

Aonde está você agora


Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer


Foi só o tempo que errou
Vai ser difícil sem você
Porque você está comigo o tempo todo.

Num processo de saudade e de lembrança a escritura da


composição trespassa por um processo de lembrança do que se
passou, do que ele viveu com alguém. Esse alguém não é
distinguido em nenhum dado técnico como idade, sexo etc. Há
sempre um destaque ao processo de recordação e saudade
daquele que não esta mais ao lado ou presente. O eu lírico fazia
planos de estar sempre com essa pessoa, porem a realidade não é
a que ele quer como dito na frase: vai ser difícil sem você/ porque
você está comigo o tempo todo. O tempo verbal presente e pretérito
é muito usado na composição para destacar o momento em que o
eu lírico perdeu a pessoa amada e o estado de recordar essa
pessoa, tornando-a presente em seus pensamentos mas não na
vida real ou no cotidiano.
Quando vejo o mar
Existe algo que diz:
- A vida continua e se entregar é uma bobagem.

A imagem do mar traz à tona a idéia de imensidão, de eterno,


de algo que não tem começo nem fim. Lara diz em seu livro sobre a
interpretação de imagens oníricas:

ver o mar revolto: vida agitada, problemas íntimos, desespero de causa. Calmo: romance e
amor tranqüilo. O mar simboliza a paz, tormento, sexo. (p.194)

Dessa forma, percebe-se que o eu lírico vê o mar e associa


com sua vida, com o estado de seu espírito. A linha do horizonte,
destacada no começo da música mostra a relação do mar com o
horizonte, fazendo uma ponte com a vida e o futuro. A linha seria
aquilo que está além, que busca algo futuro. E o mar representa o
que se vive hoje, no agora, momentâneo.

Já que você não está aqui,


O que posso fazer é cuidar de mim.
Quero ser feliz ao menos.
Lembra que o plano era ficarmos bem?

- Ei, olha só o que achei: cavalos-marinhos.

Sei que faço isso para esquecer


Eu deixo a onda me acertar
E o vento vai levando tudo embora.

Ao final da música o narrador continua em seu estado de


devaneio e recordação, repleto de melancolia. Afirma que busca a
felicidade apesar de tudo: o que posso fazer é cuidar de mim/ quero
ser feliz ao menos/ lembrar que o plano era ficarmos bem. De forma
otimista e sozinha, o narrado toma as rédeas dos planos que fez.
Continua observando a natureza, se comparando ao estado das
coisas: ei, olha só o que achei: cavalos-marinhos. E confirma que
seu estado melancólico existe como tática de esquecimento sobre o
que perdeu: sei que faço isso pra esquecer/ deixo a onda me
acertar. E o ritmo natural do mar, com maré e ondas, leva de forma
também natural as lembranças que retomam sua mente.

Vemos assim mais uma bela composição de Renato Russo,


usando imagens poéticas com variados significados quando usadas
nos mais variados contextos. Cada imagem representa algo
diferente, em cada gênero. E Renato Russo sabia muito bem migrar
pelos mais diversos temas: desde temas amorosos até a crítica
social e política.

16. O MUNDO ANDA TAO COMPLICADO

Na música O mundo anda tão complicado ocorre uma análise


do cotidiano cheio de tarefas do ser humano. Como que buscando
alternativas para fugir do caos, a composição mostra pessoas que
buscam significados existenciais além do que é dado pela
vulgaridade das coisas materiais. Percebe-se também nesta música
uma ode à simplicidade e a busca de uma vida simples e honesta.

Gosto de ver você dormir


Que nem criança com a boca aberta
O telefone chega sexta-feira
Aperta o passo por causa da garoa
Me empresta um par de meias
A gente chega na sessão das dez
Hoje eu acordo ao meio-dia
Amanhã é a sua vez

A imagem da criança usada na frase: gosto de ver você


dormir/ que nem criança com a boca aberta faz alusão ao momento
em que somos seres frágeis e despreocupados com as obrigações
da vida. Na infância podemos curtir brincadeiras e aproveitar
momentos lúdicos e simples. Logo depois nas frases: o telefone
chega sexta-feira/ aperta o passo por causa da garoa/ me empresta
um par de meias associa a vida de duas pessoas, que estão
começando uma vida juntas, dividindo o dia a dia, os horários e as
coisas materiais como meias, telefone etc.

Os horários são colocados como marcos: meio dia, acordar


mostrando o cotidiano do ser humano, com suas tarefas e sempre
com o relógio a marcar os passos de cada um.

Vem cá meu bem, que é bom lhe ver


O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Neste trecho o narrador destaca a vontade de sentir a


simplicidade da vida, fugir do mundo complicado. Na frase: vem cá
meu bem, que é bom lhe ver/ o mundo anda tão complicado mostra
o embate entre o cotidiano e a existência, aquilo que o homem luta
para conseguir como emprego, dinheiro, sobrevivência e o que
homem tem enquanto natureza existencial, procurando equilíbrio e
paz.

Temos que consertar o despertador


E separar todas as ferramentas
A mudança grande chegou
Com o fogão e a geladeira e a televisão
Não precisamos dormir no chão
Até que é bom, mas a cama chegou na terça
E na quinta chegou o som.

Neste trecho o eu lírico continua falando da rotina do casal


como algo bucólico e agradável. O cotidiano dos dois se torna
interessante nas pequenas ações de receber os objetos da nova
casa.

Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo


E até que é fácil acostumar-se com meu jeito
Agora que temos nossa casa
É a chave o que sempre esqueço.
Nessa estrofe mostra bem o momento que ambos estão
vivendo: o momento de morarem e compartilharem uma casa
juntos. As mudanças na vida são marcadas pelos esquecimentos
mas o eu lírico vê a nova casa e a nova rotina como algo bom.

Vamos chamar nossos amigos


A gente faz uma feijoada
Esquece um pouco do trabalho
E fica de bate-papo.
Temos a semana inteira pela frente
Você me conta como foi seu dia
E a gente diz um p’ro outro:
- Estou com sono, vamos dormir!

As mudanças normais que ocorrem na rotina de um casal são


novamente mostradas. Antes, o casal de namorados não recebia os
amigos ou apenas se encontravam esporadicamente. Agora podem
dormir juntos, bater papo pela semana inteira e receber amigos.

Vem cá meu bem, que é bom lhe ver


O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Quero ouvir uma canção de amor


Que fale da minha situação
De quem deixou a segurança do seu mundo
Por amor
Por amor.

A canção termina sugerindo a felicidade do narrador em viver


aqueles novos momentos com seu parceiro. Na frase: O mundo
anda tão complicado / que hoje eu quero fazer tudo por você mostra
que o eu lírico quer se afastar do cotidiano do trabalho ou dos
problemas e viver o cotidiano pessoal, com a sua ou o seu parceiro.
E diz: quero ouvir uma canção de amor / que fale da minha situação
/ de quem deixou a segurança do seu mundo / por amor , neste
trecho ele reafirma a mudança que se deu em sua vida, ao sair da
casa dos pais representando a segurança para poder viver com
uma pessoa ao seu lado, dividindo um lar e os problemas normais
que ocorrem no dia a dia de qualquer casal.

17. GIZ

Nessa composição percebe a imagem forte do giz que será


usada em várias situações dentro do texto. Vamos a análise:

E mesmo sem te ver


Acho até que estou indo bem
Só apareço, por assim dizer,
Quando convém
Aparecer ou quando quero.

Neste trecho passa um tom de dúvida e inconstância através


das frases: só apareço, por assim dizer, quando convém/ aparecer
ou quando quero dando destaque a individualidade do eu lírico e ao
momento de inconstância que poderia estar vivendo.

Desenho toda a calçada


Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol que a chuva apagou

O giz aparece neste trecho como aquele que marca, que


desenha, que simboliza algo. O desenho por toda a calçada mostra
o eu lírico marcando sua posição, mostrando ao mundo exterior o
que pensa. O tijolo de construção simboliza a idéia da construção
eterna do ser humano, da vida concreta. E o giz continua mostrando
os sonhos e as idéias do eu lírico, ao desenhar sol apesar da chuva
que cai, que aos poucos apaga o sol imaginado pelo narrador.
Contrapõe-se assim a idéia de sonho e realidade, o giz desenha o
que se quer, o que se imagina, enquanto a chuva e o tijolo de
construção representam o mundo concreto, que apaga o sonho,
que apaga a imaginação.

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