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O FILHO DO CÃO

GIANFRANCESCO GUARNIERI
Ato I

Três figuras de camponeses lembrando as estatuetas


populares de Vitalino, em atitudes quase-estáticas.

FIGURA 1 — Diz que o homem vai ficá dois anos lá pelo além-mar!

FIGURA 2 — Isso é pra quem tem!

FIGURA 3 — Pois...

FIGURA 1 — Filho dele é que tá fulo! Maginou? Da cidade praquele fim de


mundo de fazenda!

FIGURA 2 — Também não sei como é que deixa... Pra cuidá de terra precisa
ter entendimento...

FIGURA 1 — O pai deixou ele lá não foi pra cuidá não. Foi castigo. Zé
Toledo é que conta...

FIGURA 3 — Um homão daquele de castigo, sô!

FIGURA 1 — Então não? Esses ricos têm disciplina. Diz Zé Toledo que o pai
deu-lhe uma tal arenga que o rapaz se viu tonto. O velho garantiu que
preferiu ver o filho morto que sustentá estroinice dele no sul!

FIGURA 3 — Pra cuidá das terra combinaram com o doutô Afrânio.

FIGURA 2 — O doutorzinho? Ei cabra da peste! Sujeito ruim t’ali!

FIGURA 3 — Não é bem ruim não. É seco só. Quer tudo nos direito.
Homem de confiança do patrão precisa ser assim: senão, perde a
freguesia.

FIGURA 2 — Sei lá pra que providenciá sustento aperriando os outros!...

FIGURA 1 — Diz que nas terras dos Lagoa aumentaram o foro!

FIGURA 2 —Aumento de foro e cambão. Já é demais, compadre!

FIGURA 1 — Deixa eles... Querem tirá o sangue!

FIGURA 3 — Reclama que te acontece que nem o Matoso!

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FIGURA 1 — Foi coisa mandada, é?

FIGURA 3 — Tocaia mandada por Alfredo Albuquerque. Pegaram até os


tocaieiros: um cabo, aquele safado do Jerimum e mais outro franzino
que ninguém sabe quem é.

FIGURA 2 — Prenderam?

FIGURA 3 — Esperança! Se meteram uns deputado da Capital... Vai ficá por


isso mesmo.

FIGURA 1 — Diz que foram três balaço no bucho que deixou um rombo só.

FIGURA 3 — Pois. Mas diz que ele quase que ainda pega um!

FIGURA 2 — Matoso era sanhudo!

FIGURA 1 — Que adianta? T’aí, pasto de verme!

FIGURA 3 — Morre um vem outro... Esses cabra são duro. Não leva
desaforo...

FIGURA 2 — Eu admiro!

FIGURA 1 — São uns cabra de coragem...

FIGURA 3 — Com uns cem desses, isso não era desse jeito não!

FIGURA 2 — Nem quero pensá no foro!

FIGURA 1 — Ah!

FIGURA 3 — Negócio era soltá uns desses decididos por esses mundão aí
pra dentro... Queria ver o Feliciano ir pras Europa!...

FIGURA 1 — Qual! Ia do mesmo jeito!

Estrada. Música. Cavalgada, gritos de aboio. Ilumina-se em


resistência um estandarte santo. Surge o Santo Homem
arrimando-se a um bordão, trazendo água barrenta num
chapéu de couro. De perto, segue-o Cordeirinho — uma
menina maltrapilha que leva uma grande saca às costas. O
Santo Homem senta-se numa pedra.

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SANTO HOMEM — Cordeirinho!...

CORDEIRINHO — Meu pai!...

SANTO HOMEM — Bebe, meu santo, gradecendo em Deus!

CORDEIRINHO — Em Deus agradeço... (Pega o chapéu e bebe.)

SANTO HOMEM — Pouco só, meu santo... Me dá.

A menina devolve-lhe o chapéu. O Santo Homem bebe aos


pouquinhos, lentamente. Depois, sacode o chapéu.

SANTO HOMEM — Ninguém na estrada?

CORDEIRINHO — Ninguém meu pai.

SANTO HOMEM — Nem poeira?

CORDEIRINHO — Ninguém, meu pai.

SANTO HOMEM — Cada vez dá menos pra enxergá!... Corderinho, meu


santo, é você o arrimo desse pecador!

CORDEIRINHO — Assim seja, meu pai!

SANTO HOMEM — Assim será. Não vem ninguém mesmo?

CORDEIRINHO — Não, meu pai...

SANTO HOMEM — Tempos de dificuldade, meu santo. Ninguém mais quer


ouvir a palavra do profeta!
CORDEIRINHO — Só na feira, meu pai.

SANTO HOMEM — Livre-me Deus! Você viu, Cordeirinho? Não se


encontra mais temente. As vilas estão na mão do Cão. Os homens riem
do seu profeta... Ninguém mais acredita na palavra da verdade.
Ninguém! Não é, Cordeirinho?

CORDEIRINHO — É...

SANTO HOMEM (Repreendendo-o) — É, meu pai!

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CORDEIRINHO — É, meu pai!

SANTO HOMEM — Respeito é virtude, respeito é humildade! Me dê


minhas tábuas...

A menina tira da saca um toco de lápis, alguns papéis


amassados e uma tábua, entregando-os ao velho.

SANTO HOMEM (Escrevendo sobre a tábua e lendo em voz alta)


— “E a quem rir de seu profeta se abrirão as fornalhas do inferno para
eterna danação.” — “E a quem rir de seu profeta se abrirão as
fornalhas do inferno para eterna danação.”
— Eis uma verdade! Diz, Cordeirinho — “E a quem rir do seu
profeta...”

CORDEIRINHO — E a quem rir de seu profeta, meu pai?!

SANTO HOMEM — Continua, estúpida!

CORDEIRINHO — E a quem rir de seu profeta...

SANTO HOMEM — ...vão se abrir as fornalhas do inferno!...

CORDEIRINHO — ...vão se abrir as fornalhas...

SANTO HOMEM — Do inferno!

CORDEIRINHO — Do inferno, meu pai!

SANTO HOMEM (Mudando de atitude, com um sorriso melífluo)


— ... para eterna danação!

CORDEIRINHO — Para eterna danação!


SANTO HOMEM — É uma verdade! Repete a verdade.

CORDEIRINHO — Sim, meu pai.

SANTO HOMEM — Então, repete!

CORDEIRINHO — E para quem rir do profeta, se abrirão as boca do


inferno...

SANTO HOMEM — Fornalha, sua peste! Fornalha!

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CORDEIRINHO — ... as boca da fornalha!

SANTO HOMEM — Que boca de fornalha é essa?

CORDEIRINHO — Sei não, meu pai!

SANTO HOMEM — Caçoando do seu santo?

CORDEIRINHO — Não, meu pai!

SANTO HOMEM — Lhe ensino a brincar com o sagrado!

Arranca o cinturão que lhe envolve a bata e bate de rijo na


menina.

CORDEIRINHO — Perdão em Deus, meu pai!

SANTO HOMEM — Repete!... Repete!...

CORDEIRINHO — Num aprendi, meu pai!... Ai, meu santo! Perdão em


Deus!

SANTO HOMEM — Repete!

CORDEIRINHO — E para quem rir do profeta...

SANTO HOMEM — Anda, repete, repete a verdade!

CORDEIRINHO — Vão se abri as fornalha! Ai, meu pai!

SANTO HOMEM — Caçoa do santo que o inferno te consome, peste


danada!

CORDEIRINHO — Perdão em Deus por meus pecados!...

SANTO HOMEM — Continua, peste ruim! — “Pra eterna danação!”

CORDEIRINHO — Pra eterna... Vem gente, meu pai!... Ai! Vem gente na
estrada!...

O Santo Homem, sem interromper o gesto, desvia o golpe


para as próprias costas, flagelando-se. Bate resolutamente,
agora ajoelhado.

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CAMPONÊS (Respeitoso) — Bênção, seu Santo!

SANTO HOMEM (Continuando a flagelar-se. Mártir)


— Deus te abençoe, meu filho, e que te ajude a fugir do pecado!

CAMPONÊS — Amém!

O camponês se afasta e o beato continua a fustigar-se.

SANTO HOMEM (A Cordeirinho que chora escondendo o rosto)


— Vai! A obrigação do servo!

A menina corre em direção ao camponês.

CORDEIRINHO — Meu irmão em Deus!... Meu irmão! (Automaticamente,


cantando.)

Cordeirinho sou de Santo Homem viajor!


Da sua caridade depende prosseguimento
do bem que faz, que fez e que vem fazendo, meu senhor,
de sua bondade tenha algum provento!

CAMPONÊS — Amém, meu filho! (Continua andando.)

CORDEIRINHO (Atrapalhado, procura interceptá-lo.)

— Cordeirinho sou de Santo Homem viajor!


Da caridade depende prosseguimento
Do bem que faz, que fez e que vem fazendo, meu senhor,
de sua bondade tenha algum provento!

CAMPONÊS — Que me perdoe o Santo Homem, mas o que tinha já se foi...


Fica com Deus, minha filha!
SANTO HOMEM — Da falta de pão não morra um homem,
bem supremo da criação.
Quando não se encontra caridade
é hora de muita maldição!
Siga na estrada quem é surdo
ao pedido de um inocente.
Que a paga do malfeito
vem sem aviso e de repente!

CAMPONÊS — Não troque sua bênção por maldade, Santo Homem. Se


nada dou é porque não tenho!

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SANTO HOMEM — Quem tem roupa já tem muito em vista de quem anda
nu. O homem quando pede é que nada tem. Quem tem pra não pedir
pode se dar ao bem de dividir!

CAMPONÊS — Bom! Pra não dizer que sou avarento e pouco cristão, aqui
lhe dou meu pito, meu santo, que é só do que disponho!

SANTO HOMEM — O que vale não é a coisa, é o empenho! Tem minha


bênção, irmão, e que o céu o livre de castigo!

CAMPONÊS — Amém! (Sai.)

Santo Homem e Cordeirinho ajoelham-se de mãos postas e


cantam aos berros.

CORDEIRINHO — Canta o anjo!

SANTO HOMEM — E o arcanjo

OS DOIS — Entoando um hino pela sua caridade...


Enquanto houver no mundo.
Tal esp’rito de bondade
Estará o céu bem garantido
Pros irmão de boa vontade!

SANTO HOMEM — Guarda a dádiva.

A menina obedece. O velho pega o estandarte. Imponente.

SANTO HOMEM — Pé na estrada, Cordeirinho! Vem, repete comigo: “E


para quem rir do profeta...”

CORDEIRINHO — E para quem rir do profeta...

SANTO HOMEM — Vão se abrir as fornalhas do inferno...

CORDEIRINHO — Vão se abrir as fornalhas do inferno...

Os dois vão saindo lentamente.

Palhoça do Osmar. Osmar está deitado na rede. Aurélia bate


pilão.

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AURÉLIA (Depois de uma pausa) — Pelo visto, Santa Luzia mentiu!

OSMAR (Calmamente levanta-se e vai até a janela, olhando para o céu)


— Sabe-se lá? A santa não mente, nós é que não entende direito os
sinal!

AURÉLIA — Hum, hum! Tava bem certinho. Chuva!

OSMAR — Tem tempo.

AURÉLIA — Vem a estia, meu velho!... É bom se prepará!

OSMAR — Tenho fé!

AURÉLIA — É o que não falta. Mas não tem dado efeito!

OSMAR — Pára de resmungá, Aurélia, Quanto mais se vê escuro pra frente,


quanto mais escuro fica.

AURÉLIA — É o que tem sido.

OSMAR — Tanto agouro chega a dá calafrio. Põe um sorriso e espera... As


coisa sempre encontram boa solução!

AURÉLIA — Pode falá desse jeito quem vence na vida!

OSMAR — Tem sido bem. Outros nem resistir puderam. Despiram a alma.

AURÉLIA — Foi a boa solução!

OSMAR — Vote! Que quando ocê começa a magicá desgraça, não há o que
segure. Isso me desalenta. Quem volta do trabalho precisa descanso de
corpo e de cabeça. Mulher lamuriosa envenena mais que raiz danada!...
AURÉLIA — Descansa.

OSMAR — É o que estava procurando fazer.

AURÉLIA — Pois faz.

OSMAR — Faço, faço sim. Não há o que vá me impedi!

AURÉLIA — Dorme. Faz bem.

OSMAR — Não dá pra pará com essa socadura?

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AURÉLIA — Já parou.

Vai até o lampião e o acende. Osmar, na rede, fecha os olhos.


Aurélia envolve o pilão num pano para abafar o barulho. Em
surdina começa a entoar uma cantiga tristonha que segue o
ritmo lento da socadura.

OSMAR (De olhos fechados) — Que é de Rosinha?

AURÉLIA — Cuidando do animal.

OSMAR — Já é hora dos dois se recolhê. Não adianta perdê tempo com o
burro. Velhice não se cura...

Pausa.

AURÉLIA — Osmar!... Osmar!...

OSMAR — Hum!

AURÉLIA — Sem querê te estragá o descanso... mas não gosto do que vejo!

OSMAR (Farto) — E o que é que você vê, mulher!?

AURÉLIA — Tá tudo rolando vida abaixo, Osmar. As coisas que iam


melhorando começaram a mudar de rumo. Uma a uma depois da outra...

OSMAR — Se a gente começa a vê tudo com exagero!...

AURÉLIA — Sei! As condição do foro?

OSMAR — Ainda se agüenta....


AURÉLIA — Ficando sem nada...

OSMAR — Se discute e se arruma...

AURÉLIA — Até hoje, nada.

OSMAR — Espera por amanhã...

AURÉLIA — E assim vai o sempre.

OSMAR — São coisa que leva tempo. E o tempo tá em meu favor!

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AURÉLIA — Então me diz, por que é que vem diminuindo a colheita?

OSMAR — Porque às vez diminui!...

AURÉLIA — Assim, por um acauso?

OSMAR — Assim porque tem de ser! Falta de esforço e braço é que não é!
Que tá querendo dizer? Que há moleza no trabalho? Só porque um
cristão pede tempo pra descanso, e mesmo assim quando tá escuro de
nada mais podê fazê?! Arre! Como termina um filho de Deus,
arruaçando em casa, com mulher por inimigo!

AURÉLIA — Se acalma. Não foi isso que eu falei. Que tem razão eu sei!

OSMAR — É certo que tem razão! Ou pensa que terra também não cansa,
que é só plantá, plantá! Pra vendê precisa aumento. Mais terra e
semeadura! Mais braço que é o que não tem!

AURÉLIA — Pedro prefere ganhá sustento trabalhando pra estranho.

OSMAR — Assim quis...

AURÉLIA — Assim quis porque daqui não se tira nada. Amaldiçoado que
está o sítio...

OSMAR — Amaldiçoado coisa nenhuma! Uma casa forte de santo e santa.


Tem por todo lado. Vai dizer que não é de valia? Imagem e bentinho é o
que não falta nessa casa...

AURÉLIA — Mas tudo continua a rolá...

OSMAR — Rolá coisa nenhuma, que tá tudo como sempre foi!


AURÉLIA — E a doença do gado? Vai me dizer que é como sempre foi?
Assim, tudo junto, de uma vez só?

OSMAR — Acontece... A doença do gado não é só aqui não. A manada de


seo Feliciano tá se perdendo aos poucos. Diz que é um bicho que dá, um
tal de epidemia...

AURÉLIA — No meu tempo era azarão! Coisa dos maus esp’rito!

OSMAR — Teu tempo já passou. Hoje é bicho. Cura!

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AURÉLIA — Pois fique esperando a cura. De antes os dias azíago eram só
alguns. Agora tão aumentando, tomando conta do ano. Não há dia que
não seja mau. Nenhum! Nem os mais santificado...

OSMAR — Credo em Cruz, preferível agouro de anum! Vira essa boca


miserenta pra lá!

AURÉLIA — Estou com medo, Osmar.

OSMAR — É ter e dester. Quanto mais bobajada tiver na cabeça, mais difícil
agüentá. Qualquer sinalzinho de coisa ruim vira marotice de alma do
outro mundo, qualquer besteira em feitiço! Fé na Virgem e olho pra
frente, que enquanto houver saúde e crença em Deus, se vive em paz e
com honra.

AURÉLIA — Quisera ouvir o amém dos anjos!...

Entra Pedro carregado de mercadorias. Alegre.

PEDRO — Bênção, meu pai!

OSMAR — ... te bençoe!

PEDRO — Bênção, minha mãe!

AURÉLIA — ... bençoe!

PEDRO — Tiveram altercando?

OSMAR — Não se meta.

AURÉLIA — Teu pai vê o mundo com luneta colorida!

PEDRO — Bom pro pai!

AURÉLIA — Você é outro que cai no laço e diz “bom-dia”!

PEDRO — Tem porque! (Atirando os fardos no chão.) Fruto de dois dias de


trabalho. Capina dura!...

OSMAR — Que vem a ser isso?

PEDRO — O que se ganha pelo bem feito, pai! Farinha... Charque... peixe
seco... arroz, mais farinha... arreios! Tem mais, até latinha colorida!

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(Descobre algumas latas de conserva.)

AURÉLIA — Pra que serve isso?

PEDRO — Tem dentro o que comer!

AURÉLIA — Tantinho assim?

PEDRO — Pois é muito! Essa aqui é de leite...

AURÉLIA — Não enche nem meia gamela...

OSMAR — Esse é o tal de pó!

PEDRO — Isso mesmo! Tantinho de pó, mistura com água e tem leite pra
sustento por um mês.

AURÉLIA — Não dá pra crer!

OSMAR — Mostra como é que é.

PEDRO — Desperdício!

OSMAR — Mostra!

AURÉLIA (Voltando para o pilão) — Marotagem de Pedro. Brincadeira de


peste pra enganá quem é mais velho.

PEDRO — Descrença, mãe. O que é verdade se experimenta!


(Representando.) Venham vê o que olho de homem jamais viu! Ei, povo
de minha feira! Do pó veio o homem e do pó ele faz o que bem entende!
Da latinha viva de cor sai alimento que vossemecê quiser. Peça o irmão
o que lhe é de mais agrado! Então, irmão, o pedido!
OSMAR (Entrando no jogo) — Quero leite, seo moço!

PEDRO (Preparando o leite) — Pois leite pro amigo, doutor! Zarapinha


babaluê!... E pronto! Pode beber, irmão, que é leite purinho que nem o
espremido de vaca!

AURÉLIA — Prova não, Osmar!

PEDRO — Prove a senhora também que lhe dá força e beleza! Leite que vem
do pó faz bem pra saúde. Cura de tudo: bexiga, maleita e terçã, ferida,
ciúme, inveja e até mesmo veneno de cobra!

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AURÉLIA — Palavroso ele é!

OSMAR — Me dê que eu provo. Mas veja lá, se for pilhéria vai se haver
comigo!

PEDRO — Sem susto, meu pai!

OSMAR (Bebe e saboreia) — É!... Tem jeito de leite. Mas o sabor é


diferente..

AURÉLIA — Falei!

OSMAR — Mas bom, Aurélia. Prova.

AURÉLIA — Deus que me livre!

OSMAR — Vexame, Aurélia!

AURÉLIA — Me dá. (Prova.) Puf! Porcaria... porcaria!

PEDRO — Bobagem, mãe... É leite do bom!

AURÉLIA — Eu fico com o de vaca que vem da lei de Deus!... Vôte!

OSMAR — Bom. O reforço veio bem na hora! Vamo fazer economia.


Parcimônia no consumo.

AURÉLIA — Minha parte já não toco!

OSMAR (Examinando as mercadorias) — Dispensa sortida!... (Com um


sorriso maroto.) Onde é a fartura, Pedro?

PEDRO — Segredo, meu pai. Compromisso que tomei com quem me deu a
indicação!

OSMAR — Se um sozinho consegue tanto, em dois se vencia qualquer


dificuldade....

PEDRO — Já tem muitos no trabalho. A notícia espalhando, não há quem


não queira ir pra lá!

OSMAR — Melhor! Fica pra todo mundo...

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PEDRO — Pra todo mundo não dá. O homem lá tá agindo no descaso. Se
descobre interesse, dana a diminuir o trato. Não é bom que se saiba.

OSMAR (Amuado) — Está certo.

AURÉLIA — É longe essa terra?

PEDRO — Pouquim!

AURÉLIA — Fartura assim é difícil de se ver!

PEDRO — É nova plantação!

OSMAR — De quê?

PEDRO — Cana.

OSMAR — Cana?

AURÉLIA — E onde corte de cana paga tanto?

PEDRO — Lá, aui!

AURÉLIA — Lugar milagroso!

PEDRO — Sorte minha de descobri. Como se vê, é bom ter amizades!

OSMAR — Pedro, juro em Deus não abrir a boca! Onde é que é?

PEDRO — Perdão, meu pai, mas não posso. Jurei em Deus não revelá.

AURÉLIA — Pois se cale que jura não se quebra...

OSMAR — É. Está certo. (Amuado balança a rede.)

PEDRO — Ói, trouxe fumo!

OSMAR — Ei, sô! Presente?

PEDRO — Lembrança...

OSMAR — Bom. Me deu gosto... (Pedro sorri.) Um pito vai bem!

PEDRO — Pra mãe, veio isso! (Entrega-lhe um corte de pano.)

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AURÉLIA — Mas o que está acontecendo? Festa de que, meu filho?

PEDRO — Festa do “deu vontade”, minha mãe. Deu vontade de trazê,


trouxe! Faça aí o seu vestido; pra semana ponha espanto na casa de D.
Dita, toda nova de dá inveja!

AURÉLIA — ‘Doideceu!

OSMAR — Trabalho rendoso é felicidade!

AURÉLIA — Melhor deixá pra Rosinha. Quem é velha não precisa ser
catita!

OSMAR — Como é que não? Os velho também precisam ter pra onde olhá!

AURÉLIA — Velho não olha, lembra! Deixa pra Rosinha, filho... Quem sabe
ajuda pra arrumá namorado!

PEDRO — Pra Rosinha eu também trouxe!

OSMAR — Só falta presente pros animal!

PEDRO (Sorrindo) — Os arreio!...

AURÉLIA — Desperdiçou o suor, meu filho!

PEDRO — Ora, mãe...

AURÉLIA — Esses não são tempo pra luxo!

PEDRO — E quando se vestir foi luxo?

AURÉLIA — Desde que tenho entendimento. Me desculpe; me dá prazer


mas também me dá desgosto...

OSMAR — Lá vem agouro!

AURÉLIA — Agouro coisa nenhuma! Você está com a cabeça no céu, Pedro.
Dá presente é gostoso — pra quem recebe e quem dá, mas é dinheiro
que se perde. Comida está certo... Mas arreio e pano é desperdício, sinal
de cabeça avoada. Põe tento na vida, vende isso! É o melhó presente que
pode me dá!

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OSMAR — Os arreio eu também acho!

AURÉLIA — E o pano também. Em dias melhor você me dá um vestido já


feito, de bordado... Agora não é tempo.

PEDRO — E quando será, mãe?

AURÉLIA — Quando for!

Entra Rosinha abatida.

ROSA — ‘Noite! Chegou, Pedro?

PEDRO — Carregado de coisa boa!

OSMAR — Demorou, menina!

ROSA — Cuidando do burro!

OSMAR — Vem.

ROSA (Como todos os dias, vai até à rede e faz cafuné no pai)
— Ele não está bom não.

PEDRO — O burro piorou?

ROSA — Não consegue abrir os olho.

PEDRO — Coitado do Pitoca!... Deixe estar, próxima saída trago um burro


na volta, novinho!

OSMAR — Já é ser gabola!

PEDRO — Prometido!... (A Rosa.) Tome. Isso é seu! (Entrega-lhe um


embrulho feito de pano.)

ROSA — Meu?

PEDRO — É.

ROSA (Abre o embrulho devagar. É também um corte de pano e um rosário)


— Que lindo, Pedro! (Pega o rosário.) O rosário que eu tanto pedi!...
Ai, Pedro, meu irmão! (Começa a chorar.) Ai, Pedro, meu irmão!
(Chora copiosamente)

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OSMAR — Mas o que foi? O que é que deu?

PEDRO — Rosinha pra que o choro?

Rosa continua chorando, agora procurando conter-se.

AURÉLIA — Essa não sabe fazer outra coisa! Beijo ou pancada, cai no
pranto!

PEDRO — Rosinha, que foi?

ROSA — Nada, não!

PEDRO — Diz!

ROSA — Deus te abençoe, irmão! (Sai segurando fortemente o rosário.)

AURÉLIA — Eu digo, Osmar, tem coisa nesse sítio! Donzela e animal


pressente os maus esp’rito!

PEDRO — Tá agoniada sim!

AURÉLIA — Foi bom trazê o rosário, mas o resto você vai vendê!

OSMAR (Num resmungo) — Esquisitice da moça...

PEDRO — Trabalho é meu, minha mãe, e disponho dele... São lembranças


que eu trouxe e que vão ficá. (Sai na mesma direção da irmã.)

AURÉLIA — Pedro é portador de sorte. O jeito dele me aquieta...

OSMAR — Prepara o que comer que é melhor! (Vira-se na rede.)


Aurélia pega um pouco de farinha, examina a carne-seca
entoando a mesma toada do início.

Casa de Jeremias. Gertrudes surge após um grito. Está com o


vestido rasgado. Atiram-lhe um cabo de enxada que por
pouco não a atinge. Logo aparece Jeremias furioso.

GERTRUDES — Não, meu pai, não! Não me bata!

JEREMIAS — Mulher-dama, safada! Te mato miserenta!

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GERTRUDES — Eu explico, meu pai! Eu explico!

JEREMIAS — Tem nenhuma explicação! Tem pancada que te dou até rachá
esse corpo maldito!...

GERTRUDES — Não me culpa, meu pai!

JEREMIAS — Não nega, não nega!

GERTRUDES — Nego sim que não tive culpa!

JEREMIAS (Espancando-a) — Pois tome se não teve! Mulher à-toa! Melhor


ter morrido tua mãe pra não passar por essa vergonha!

GERTRUDES — Me ouve, meu pai!

JEREMIAS — Quero ouvi nada! Peçonhenta! Que é que você fez dos ensino
que te ensinei? Que é que você fez?

GERTRUDES — Me dê uma oportunidade que explico!

JEREMIAS — Diga lá, quem foi... quem foi!?

GERTRUDES — Não posso, meu pai! Eu explico tudinho!

JEREMIAS — M’... não interessa! Quem foi o desgraçado! Eu chumbo esse


descarado. Esgano os dois!

GERTRUDES — Não houve nada, meu pai!

JEREMIAS — Não nega que eu fico louco! Não nega que eu acabo te
matando agora com essas mão! Pois se foi tu mesma que disse! Falá pra
estranho de tua vergonha, deixando teu pai nas inocência... Miserenta!...
Falô ou não falô?! Foi ou não foi procurá a comadre Marieta?! Diz lá!
Foi ou não foi?

GERTRUDES — Fui sim, meu pai!

JEREMIAS (Apertando-a) — Pois foi, não é? Que é que foi fala pra
comadre? (Sacudindo-a) — Que é que foi falá?

GERTRUDES — De aflição minha, meu pai!

JEREMIAS — Aflição é nome agora de pouca-vergonha?! Arre! Que eu fiz

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pari minha desgraça! Que é que você foi falá? Que tava prenhe! Que
tava prenhe né, desgraçada?! Diz que não!

GERTRUDES — Foi não, pai!

JEREMIAS — E nega, a vagabunda! Ainda nega! A comadre me falou!

GERTRUDES (Aterrorizada) — Não pode ter falado, não pode!

JEREMIAS Pediu segredo, pestinha? Pra escondê do pai, pediu segredo?

GERTRUDES — Não estou nada disso, não estou!

JEREMIAS — Como é que não está? Comadre garantiu! Comadre não é


doida de atiçá pai contra filha!... Não minta, mulher do diabo, não
minta!

GERTRUDES (Ao ouvir a palavra “diabo”, dá um salto livrando-se


miraculosamente das mãos do pai e grita possessa) — É minha
danação!... Me atiraram no inferno! Não fui eu que falei, não fui eu!...
Meu príncipe, não fui eu que falei! Me atiraram no inferno, meu pai!
Estou danada!... Não há o que me salve!

JEREMIAS — Confessa, miserenta! Confessa, não é!

GERTRUDES — Não falei nada! Comadre não podia saber! Não podia
saber!

JEREMIAS — Se explique, peçonhenta! Se explique!... Ai, Deus meu, se


explique!

GERTRUDES — Me atiraram no inferno, meu pai!

JEREMIAS — Veja seu jeito! Que é que você está dizendo?

GERTRUDES — O Cão, meu pai! O Cão, meu pai! o CÃO!

JEREMIAS — Pára de berrar que nem possessa! Fala pra teu pai! Que
aconteceu com minha filha?...

GERTRUDES — Não quero saber do fogo do inferno! Não quero saber!


(Foge.) Me dá uma igreja!... Uma igreja!...

JEREMIAS (Seguindo-a) — Gertrudes... Volte já!... Volte já, minha filha!

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Gertrudes!...

Fazenda de Ciro.
Aparece Ciro de short e camisa esporte. Bate bola no chão —
uma pequena bola de borracha —, fazendo largos gestos de
jogador de basquete. É quase um balé. Enquanto joga
murmura:

CIRO — Aproxima-se do garrafão! Numa jogada rápida passa a esfera para


Algodão; Algodão bate uma, duas, três e imediatamente para as mãos de
Formiga que salta e... Cesta! Cesta para o Brasil! 4.598 a zero no
marcador! Performance do selecionado verde-amarelo! Cirinho
Medeiros em perfeita forma nesta importante tarde desportiva!

AFRÂNIO (De fora) — Seu Ciro!... Seu Ciro!...

Ciro pára. Olha na direção da voz e sorrindo esconde-se.

AFRÂNIO (Aparecendo) — Seu Ciro!

Afrânio é o protótipo do administrador. Calça botas e veste


culote, usa camisa tipo militar. É franzino e usa óculos. Olha
um instante para os lados e dispõe-se a sair quando Ciro
salta-lhe rente às costas com um berro:

CIRO — “Camoni” boy!

AFRÂNIO (Sobressaltando-se) — Ora! Por favor, seu Ciro!

CIRO — Fica zangadinho não! Calma, autocontrole!... Isso! Agora fala. Que
é que você quer?

AFRÂNIO — Que o senhor se digne a ir até o escritório para assinar uns


papéis.

CIRO — Deixa isso pra lá!

AFRÂNIO — É urgente!

CIRO — Que papéis são?

AFRÂNIO — Requerimentos.

CIRO — E o que eu tenho a ver com isso?

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AFRÂNIO — É a parte que seu pai deixou a seu encargo. Já redigi os
documentos. O senhor poderia, ao menos, assiná-los!

CIRO — Você é um exausto, Franinho. Como você trabalha, não?

AFRÂNIO — Bastante. E gosto.

CIRO — É. Cada um como cada um.

AFRÂNIO — Então?

CIRO — Daqui a pouco eu vou lá. ‘Té já, viu?!

Ciro começa a caminhar como um funâmbulo, um pé diante


do outro, braços estendidos.

AFRÂNIO — Não querendo me intrometer na sua vida, seria melhor que o


senhor trocasse de roupa. D. Santa fica doente quando o vê assim!

CIRO — Pois sem querer desrespeitar a bondosa senhora, eu gostaria que


ela fosse à merda!

AFRÂNIO — Que é isso, seu Ciro?

CIRO — Que é o que? Vive todo mundo me enchendo!

AFRÂNIO — O senhor é quem sabe... Mas tratar os empregados com tanta


familiaridade não é aconselhável!

CIRO — Quem é que estou tratando com “tanta familiaridade”?

AFRÂNIO — A mim.
CIRO — Deixa de onda!... Você aqui é mais que o patrão!

AFRÂNIO — Comigo não tem problema que eu compreendo essas coisas.


Mas os outros... eles vão acabar perdendo todo o respeito pelo senhor...

CIRO — Perdem coisa nenhuma!

AFRÂNIO — Eu é que os aturo, seu Ciro.

CIRO — Problema teu. O velho não deixou tudo contigo? Pois se vire! Por
falar nisso, minha mesada já atrasou!

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AFRÂNIO — No escritório eu acerto com o senhor...

CIRO — Boa! Colabora comigo.

AFRÂNIO — O ideal seria que o senhor colaborasse comigo um pouco


mais!...

CIRO — Em que, Franinho, em que?

AFRÂNIO — Evitando que eu tenha de ouvir certas espécies de


reclamações, por exemplo. É muito desagradável ouvir queixas dos
empregados contra o filho do patrão.

CIRO — Que frescura de reclamação é essa?

AFRÂNIO — Um dia o senhor esconde uma cobra na cozinha que quase


provoca um colapso na pobre Tolentina; no outro, o senhor simula uma
tocaia e só não feriu o Zé Toledo porque os dois são homens de sorte.
Há de convir comigo que existe razão para as queixas...

CIRO — Umas brincadeiras de pura inocência!... Foram reclamar, é?

AFRÂNIO — É compreensível.

CIRO — Nunca vi maior falta de senso de humor. Qual foi o delicado?

AFRÂNIO — Não vem ao caso! Para mim é que é profundamente


desagradável... Não posso defendê-lo, pois a coisa é evidente, e devo
puni-los para evitar indisciplina... O senhor poderia se divertir de outra
forma...

CIRO — Divertir como? Não tem nada nessa porcaria de terra! Me sinto
num túmulo, eu!

AFRÂNIO — Também custei para me acostumar aqui...

CIRO — É, Franinho! Nesse Brasil, fora Rio-São Paulo, pode jogar tudo no
lixo... Escuta, vamos fazer um trato. Coisa honesta. Você solta uma nota
pra mim e eu me arranco. Te deixo em sossego. Antes do velho chegar,
eu volto e fico quietinho, como se nunca tivesse saído! Bem bolado,
hein?!

AFRÂNIO — Sinto muito, mas ordens são ordens!

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CIRO — Ô durão! Deixa isso pra lá... Na hora da herança, juro que não te
esqueço! Fale que eu te ameacei, que disse que ia te matar!

AFRÂNIO — O senhor nunca fala a sério!

CIRO — Aí está seu equívoco. Nunca falei tão sério em minha vida!

AFRÂNIO — O senhor é um humorista, seu Ciro!

CIRO — Ora, papelão, hein!... Eu confiava em você, achava que você


nunca ia abusar do que o velho falou! Agora fica aí, bancando
latifundiário: “Assine aqui!” — “Não trate os empregados assim!” —
“Vista-se decentemente.” — Papelão, rapaz!

AFRÂNIO — Vamos lá, seu Ciro! Daqui a mais algum tempo, o senhor
poderá viajar pra onde quiser. Seu pai deixou tudo programado. E só ter
mais um pouco de paciência...

CIRO — Não vem falando com esse ar paternal comigo não, hein! Não
gosto disso não! Que é que eu sou, bebê agora?

AFRÂNIO — Mas que o senhor cria caso, cria!

CIRO — Coisa velha, negócio de estudante. Agora não tem cabimento. Sou
um homem sério, ouviu? Um rapaz formado. Ó! (Mostra o anel de
rubi.) Somos colegas, Afrânio! Você não vai tratar um colega desse
jeito, vai?

AFRÂNIO — É um gozador!

CIRO — Agora você se pendurou nessa chave de me chamar de gozador


que não há quem o tire!
AFRÂNIO — Eu, no seu lugar, com dinheiro, prestígio e essa lábia, fazia
uma bela carreira política!...

CIRO — Chi! Deixa isso pra lá... Doido sim, safado nunca!

AFRÂNIO — Bem, com sua licença, tenho muitas coisas ainda para tratar!

CIRO — Vai, meu anjo. Vai com Deus... Não precisa ter esse formalismo
todo comigo não, viu? Economiza!

AFRÂNIO — Ah, seu Ciro! Nós dois poderíamos transformar essa fazenda!

24
CIRO (Com ênfase, gozador) — Ai que ótimo! Os dois “juntos”!

AFRÂNIO — Falo seriamente!

CIRO — Não, assim não. Assim não que eu choro!...

AFRÂNIO — Derrotado!... Espero no escritório!

CIRO — Lá estarei... Tchau! (Gritando.) Zé Toledo!... Zé Toledo!

ZÉ TOLEDO — Pronto, seu Ciro!

CIRO — Foi fazer queixa de mim pro Afrânio, foi?

ZÉ TOLEDO — Queixa de que, seu Ciro?

CIRO — Vocês não abusem comigo! Foi fazer queixa sim senhor. Dizer que
eu atirei em você!

ZÉ TOLEDO — Disse nada!

CIRO — Dá próxima vez, atiro pra valer!

ZÉ TOLEDO — Mas que é isso, seu Ciro! Não disse nem fiz nada de mal
pro senhor!

CIRO — Ei, cabra burrão! Mas você é simpático, peste!... Liga não, Zé
Toledo, ando nervoso! É muito sertão pra meu gosto! (Pequena pausa.)
Quer saber? Próxima viagem minha pro sul, levo você!

ZÉ TOLEDO — Qual, seu Ciro!

CIRO — Levo sim... Imaginou você numa buate!? Imaginou?

ZÉ TOLEDO — Onde, seu Ciro?

CIRO — Umas casas de festa que tem por lá!... Cada mulherão, seu moço,
que você ia cair só de sentir o perfume!

ZÉ TOLEDO — Deus que me livre! Que que eu havera de fazer lá?

CIRO — Coisa de sonho, Zé Toledo!... Você entra na buate e tem torneira pra
tudo... Você abre uma, sai pinga. Sai tanta que chega a formar um

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riacho! Abre outra, sai vinho, limonada... O que você quiser, tem!

ZÉ TOLEDO — Coisa de louco!

CIRO — É bem verdade que lá quase todo mundo é mágico!...

ZÉ TOLEDO — O senhor deve ter aprendido muito nessas cidades, não é,


seu Ciro?

CIRO — Qual! Eles não ensinam nada... Quis aprender a voar, eles disseram
que eu podia: levei um tombo que quase morro!

ZÉ TOLEDO (Com ar superior) — Também, seu Ciro, idéia sua: voar! Pra
isso tem máquina!

CIRO — Como você é burro, rapaz! Lá todo mundo voa. Pensa que vão andá
pela rua pra cansar as pernas? Voa. Tem uma ginástica pra isso... Eu
estou treinando. Um dia te ensino.

ZÉ TOLEDO — Deus me livre!

CIRO — Vai por mim, rapaz! Imaginou você voando por aí, o sucessão que
ia fazer!

ZÉ TOLEDO — Sei disso, não. Deixe pra lá!

CIRO — Por essas e outras é que vocês não saem desse atraso! Precisa ter
coragem!... Um dia te ensino, pode deixar! (Zé Toledo ri.) Não é pra rir
não. É sério!... Ó, corre lá e manda a Tolentina me arrumar alguma coisa
pra beber. Até bebida o Afrânio está trancando! Vai, topeira!

Zé Toledo sai. Ciro abaixa-se para pegar a bola; não


conseguindo sem curvar os joelhos, tenta novamente. Não
conseguindo, dá um leve chute e começa a irradiar:

CIRO — Avança pela área sozinho. Só tem o goleiro pela frente. Avança
mais, finta Duílio, atira... Perdeu!... Ruim de bola está aí! Frente a frente
com o goleiro, não marcou!... (Com a boca faz barulho de torcida.)

Palhoça de Osmar. Aurélia, Osmar, Rosa, Pedro e Zé Toledo


comem em gamelas.

ZÉ TOLEDO — Lá na fazenda do “Cascalho” também vem comida desse


jeito de quando em vez.

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AURÉLIA — Não sei pra que! Quem tem posses não devia se dar a essas
esquisitices. Isso é bom pra tempo de estio, quando não tem mesmo o
que pôr na boca. Nunca vi sabor mais sensaboroso!...

OSMAR — O que me espanta é que não azede! Esse feijão! Se deixá solto
no vento que é coisa pura, depois de dia, tá com uma fedentina que
ninguém pode, enquanto que trancafiado nessa latinha sem ar se
conserva por mês e ano. Esses cabra não sabem mais o que inventar!...

AURÉLIA — Isso me deu uma desinteria que eu nem conto. Agora é que as
tripas estão se acomodando!

OSMAR — Tudo é costume... Sem ter costume fui comer carne fresca, que
comia da seca que era mais do meu gosto e porque da outra também eu
nem via. Pois olhe, umas tontura, uma água fria pelos peito, uma zoada
nas orelha, que foi atentá onde estava e caí de comprido. Quase me fui,
não é, Aurélia?

AURÉLIA — Pois foi.

PEDRO — Deixe estar que aqui de comer ninguém tem muito costume.

ZÉ TOLEDO (Rindo) — Isso é fato!

PEDRO — Lá no “Cascalho” como e que é?

ZÉ TOLEDO — Ah, fartão! Tolentina chega a ter espanto. Três a quatro


prato no almoço e na janta. Agora, então, que seu Feliciano viajou, é um
gasto sem limite... Seu Ciro é danado pra se entochar. Come que o
benza Deus! Dr. Afrânio também não deixa por menos. Ficam os dois
naquela mesona por mais de hora que só se escuta nhoc-nhoc-nhoc,
dando cabo das terrina... Coisa de pasmar!
PEDRO — Você é que se espoja, hein, velhaco!?

ZÉ TOLEDO — Que esperança! Não que falte vontade, mas mais parece a
casa dos mistério — tudo trancafiado a treze chaves. Entrá na casa
propriamente dita ninguém pode que é pra molde de não sujar. Só
Tolentina e Maria que tem permissão pra passá da soleira. E mesmo
assim, tem cômodos onde não entram. Naquele só põe o pé D. Santa!

AURÉLIA — Essa faz justiça ao nome!

ZÉ TOLEDO — Pobre dela. Tolentina garante que aquilo não é só bondade e

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bom gênio não...

OSMAR — Como é que não! Aquela devia estar num andor!

ZÉ TOLEDO — Diz a comadre que aquele jeito mais é doença. Cancro


comendo as entranha. E que esperando a hora da passagem, resolveu-se
pela humildade.

OSMAR — Tanta coisa que se diz!...

AURÉLIA — Bem pensando tem seu fundo de possível. Castigo!

OSMAR — Até bondade, agora, é castigo?

AURÉLIA — Bondade, não. O cancro roendo a dita. Deus que me perdoe!

ZÉ TOLEDO — Como assim?

AURÉLIA — Pois seo Feliciano nem bem tinha esfriado o corpo da mulher,
não pôs D. Santa em casa, num desrespeito de monstro?

OSMAR — Aurélia, cuida com a maldizência! Pôs D. Santa em casa


justamente pra ter quem cuidasse dos pertences. Não tinha outra
intenção!

AURÉLIA — Não é o que dizem...

OSMAR — Tanta coisa que se diz!

AURÉLIA — Mas tem aquelas que se diz e se comprova, isso foi castigo.
Onde já se viu ocupar o lugar da defunta sem o defunto sem o devido
prazo?

ZÉ TOLEDO — Aqueles tem outro modo de tratá com o mundo! Eles lá e


nós aqui. Inútil tentá compreensão!

PEDRO — Compreender tem seu lado perigoso!

OSMAR — É. Tem coisa que não foi feita pra entendimento.

PEDRO — É.

AURÉLIA — Que foi, Rosa?

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ROSA — Hum?

AURÉLIA — Que é que foi?

ROSA — Nada...

AURÉLIA — Ficou branca de repente!

ROSA — Tenho nada não!

AURÉLIA — Olhe, Osmar. A menina não tá branca de boca arroxeando?

OSMAR — Um pouco sim. Que é, a comida?

ROSA — Nada não. Uma apertura só que tá passando!

PEDRO — Vai lá pra fora no vento.

AURÉLIA — Vá sim!

ROSA — Tou boa, mãe!

AURÉLIA — Essa menina tá enfermiça que só vendo. Há dias que vem


assim!

ROSA — Cisma sua, mãe!

AURÉLIA — Todo o jeitinho de quebranto!

OSMAR — Mole ela tá mesmo!

AURÉLIA — Tá precisando é de uma boa rezadeira... Siá Dorata não passa


mais por essas banda, Zé Toledo?
ZÉ TOLEDO — Tempo que não aparece. O Zé Quim é que vem cuidando
dos casos mais precisados...

OSMAR — O Zé Quim não é lá essas coisas!

AURÉLIA — Uma rezinha de berne, coisinha à-toa que pedi pra ele, não foi
capaz de fazê. Ficou os berne e mais triste ainda o animal...

Rosa indisposta leva a mão à boca e sai apressada.

OSMAR — Chii! Descomeu...

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PEDRO — É! Pra gente só farinha de mandioca mesmo! (Sai atrás da irmã.)

AURÉLIA — Qual! Tá baqueada, vem definhando!

ZÉ TOLEDO — Coisa à-toa, comadre!

AURÉLIA — Zé Toledo, não me canso de dizer pra Osmar, esse sítio tem
coisa. Nada vai nos seus direito.

ZÉ TOLEDO — E me diga? Onde é que vai nos direito, comadre?

OSMAR — Isso Zé, tira a cisma dela...

ZÉ TOLEDO — É sim, comadre. Eu que ando por aí tudo, vejo com esses
olhos. Não há lugar onde haja coisa certa. Ou é o plantio que não vinga,
ou os animal que definha, ou a estia... Uma coisa e outra, tudo leva pra
descrença.

AURÉLIA — Então, é coisa ruim que tá em tudo. Bem que diz: “Do ano mil
passa, mas ao dois mil não chega”.

ZÉ TOLEDO — Que nada! As dificuldade são as mesmas que sempre foram!

AURÉLIA — Não, comadre. O que piora vem piorando mais. O pior de hoje
é mais pior que ontem...

ZÉ TOLEDO — A gente é que pensa assim. Mas é sempre a mesma coisa,


comadre!

AURÉLIA — Não falo por falar, falo por saber. Tem coisa ruim nessa terra,
mais ruim do que se pode imaginar. E olhe que comigo é difícil de ter
engano!

OSMAR — Pois é, virou profeta!

AURÉLIA — Menina ainda, vi Nossa Senhora que me disse que chuva


vinha. E veio. Avisei em casa três dias antes da chuva cair: sol de rachá,
nenhuma nuvem no céu! Depois de casada, fiz uma prece pra livrá o
Osmar da ferida na perna. Do telhado voou um pássaro preto de pio
comprido. Nem bem sete dias, a ferida fechou. Sinto em mim quando há
coisa. E eu sinto que aqui tem coisa.

ZÉ TOLEDO — Eu acredito sim.

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OSMAR — Eu também que não sou descrente, mas ficá falando a todo
instante é coisa que dá nó no peito. Um cristão vive assombrado. Vamo
rezá. Pra rezá tou aqui. Mas não fica falando... isso pra mim alimenta os
mau esprito!

ZÉ TOLEDO — Pode ser!... Mas o que eu sei que vem de ruim é coisa bem
desse mundo!

AURÉLIA — Tava achando que o compadre entrou com cara de má notícia!

OSMAR — Má-nova, Zé Toledo?

ZÉ TOLEDO — Também não é o fim do mundo!

OSMAR — Do que se trata?

ZÉ TOLEDO — Coisa do dr. Afrânio. Tá acabando com os arrendamento.


Pôs pra fora todo o pessoal lá do lado do Jirau...

AURÉLIA — Pôs pra fora, sem mais?

ZÉ TOLEDO — Deu prazo. Curto. E tomou as terra...

OSMAR — Quer dizer que aos pouco ele põe todo mundo pra fora!

ZÉ TOLEDO — É o que tá parecendo...

AURÉLIA — Assim, de repente? Pra quê?

ZÉ TOLEDO — Cana. Quer inundar isso de cana. Parece só deixa quem


queira ficar como camarado!
AURÉLIA — Tendo vantagem?!

ZÉ TOLEDO — Aviso pra que tome suas providências!...

OSMAR — Tu sabe bem que não tem...

OSMAR — Mais essa!... É, Aurélia! Acho que você é quem está com a
razão! Parece que tem uma trava na vida da gente.

ZÉ TOLEDO — Isso é assim mesmo!

AURÉLIA — Isso é mau que fizemo e tamo pagando!

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OSMAR — Que mau, Aurélia?

AURÉLIA — Sabe-se lá? Vem dos antigo. Parentes nossos devem ter feito
muito estrago. Os que vem depois é que paga...

OSMAR — Se for assim, ainda que bem, que pra neto nosso poucas conta
vão sobrá!

Ouvem-se tiros.

ZÉ TOLEDO (Sobressaltando-se) — Epa!

Todos correm para a porta.

OSMAR — Pedro!...

PEDRO (De fora) — Foi aqui perto, pai!

ZÉ TOLEDO — Tiro de rifle!

Repetem-se os disparos.

AURÉLIA — Virgem Santíssima! Cadê Rosinha?

PEDRO (Entrando) — Aí fora. Já tá melhor. Espere aqui que eu vou ver o


que que é.

AURÉLIA — Não se intrometa que com as coisas como andam uma bala
ainda te pega!

OSMAR — Mas precisa ir ver!


ZÉ TOLEDO — Vou eu que é meu trabalho!

AURÉLIA — Se cuide, compadre!

Outro estampido forte.

PEDRO — Esse foi pertinho!

AURÉLIA — Santa Mãe dos Aflitos! Rosa, Rosinha! Vem pra dentro!

ROSA (Entrando alarmada) — Esse foi tão pertinho que cheguei a ver o
clarão!

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PEDRO — De que lado estão atirando?

ROSA (Apontando) — De lá!

PEDRO — Só pode ser.

OSMAR — O quê?

PEDRO — Todo mundo pra dentro... Faz o que eu digo!

OSMAR — Que é que você sabe, Pedro?

PEDRO — Fecha a porta!

OSMAR — Se explique!

PEDRO (Correndo para pegar um fuzil) — Depois, se der tempo!

AURÉLIA — Endoidou!

OSMAR — Quem deu ordem pra pegar na arma?

PEDRO — Deixe estar, pai!

Posta-se na porta, armando o fuzil.

ZÉ TOLEDO — Que nervosia é essa, menino? Brinca com isso não, que é
perigoso.

PEDRO — Tem arma, Zé?

ZÉ TOLEDO — Tenho.

PEDRO — Pois pegue ela que a coisa vai enfeiar!

OSMAR — Agora quero explicação!

PEDRO — Depois, pai!

Outro tiro.

AURÉLIA — Depois coisa nenhuma! Ninguém vai ficá aturando bala sem
saber porquê.

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PEDRO — É soldado que tá aí fora, pronto!

ZÉ TOLEDO — Soldado de polícia?

PEDRO — Pois.

AURÉLIA — E como é que você tem conhecimento?

OSMAR (Agarrando-o) — Que é que você fez, danado?

PEDRO — Agora não é hora, pai!

OSMAR (Sacudindo-o) — Me responda!

PEDRO — Cuidado, pai. Tá carregado!

OSMAR — Descarrego ele no teu bucho, desgraçado!

ZÉ TOLEDO — Deixe o corretivo pra mais tarde, compadre! Que se é


soldado a coisa enfeia!

OSMAR — Pois vai enfeiar desde já. (Num repelão arranca a arma do
filho.) Agora fala. Fala!

PEDRO — Foi briga. Briguei na plantação. Feri um cabra!

OSMAR — Fala a verdade, Pedro!

PEDRO — Estou dizendo!

AURÉLIA — Ocê matou o homem?!


PEDRO — Matei não. Foi com a faca...

OSMAR — Fala a verdade, Pedro, que é melhor!...

PEDRO — É a verdade!

AURÉLIA — E só por causa de um corte vão fazê todo esse escarcéu? Ói


que duvido!...

JEREMIAS (Fora) — Ó de casa!

Zé Toledo impõe silêncio.

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JEREMIAS — Ó de casa!

OSMAR (Resolvendo-se abre a porta) — Ó de fora!

JEREMIAS — É Jeremias, irmão!

OSMAR — Jeremias de Bom-Santo?

JEREMIAS — Jeremias de Gertrudes!

OSMAR — Ah! Pois se achegue! Vem tocado pelos tiros?

JEREMIAS — Fui eu que andei atirando!...

OSMAR — Se achegue!

PEDRO (Com profundo alívio) — Ai, mãe de Deus!

OSMAR (Olhando o filho com um sorriso) — Soldado, é?

PEDRO — Pensei!

OSMAR — Pensou de frouxo!

AURÉLIA — Rixinha à-toa ninguém mete polícia. Precisa se cuidá é com a


vingança!

PEDRO — Pois é. A gente fica assustado!...

ZÉ TOLEDO — Até que eu fiquei em aflição!

OSMAR — Só quero ver em que esse homem anda atirando no escuro!

AURÉLIA (À Rosa) — Ei, minha filha, deixa voltá a cor que já passou!

JEREMIAS (Surgindo na porta) — Com licença, irmão?

OSMAR — Vamo entrando!

JEREMIAS (Extremamente transtornado) — Com sua licença e com o


perdão pelo transtorno!...

AURÉLIA — Tá que parece ter visto assombração, seu Jeremias!

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OSMAR — Calma, homem, se aquiete. Que é que andou vendo?

JEREMIAS — Coisa difícil de se acreditá. Mas juro pela minha vida!

ZÉ TOLEDO — Que é isso, homem? Nem precisa jurá. De homem sério


basta a palavra!

JEREMIAS — Pois eu vi! Segui ele, atirei no danado!

AURÉLIA — Ai, Santo Espírito! Ele quem?

JEREMIAS — O Cão, D. Aurélia! O danado do Cão!

Rosa deixa escapar um grito e desmaia.

FIM DO PRIMEIRO ATO

Ato II

Palhoça de Osmar. Aurélia defuma a palhoça. Usa


o defumador fazendo no ar grandes gestos em forma
de cruz. Depois, vai até a imagem da Santa e acende
a vela, copo com água ao lado. Acocora-se no chão
e fica espiando o mundo.
SANTO HOMEM (De fora) — Salve em Deus, ó de casa!

AURÉLIA (Indo até a porta) — Quem chama?

SANTO HOMEM — Um pobre pecador implorando paz pra esta casa.

AURÉLIA — Se é de bem, vá se chegando!

SANTO HOMEM — É em nome do bem que caminho, levando a palavra


dos santos e dos profetas!

AURÉLIA — Sua bênção, meu pai!

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SANTO HOMEM — Que Deus abençoe... Vem, Cordeirinho. Encontramos
pouso de muita caridade.

AURÉLIA — Se assente.

CORDEIRINHO (Quase recitando) — Bem faz quem recebe o Santo


Mostrando bom coração.
Caminho do céu está aberto.
Terminadas as aflição.

AURÉLIA — Bem sei, minha filha.

SANTO HOMEM — Cordeirinho é o nome dela, e bem diz de sua candura.


Enviada dos céus, quem sabe? Encontrada um dia cuidando de
azarentos, seguiu meus passos achando um pai. Não é, Cordeirinho?

CORDEIRINHO — Assim é, meu pai.

SANTO HOMEM — Santinha inocente está aqui. Obra divina!

AURÉLIA — Se há o que eu possa servir?

SANTO HOMEM — Um peregrino não tem necessidades. Se não for de


moléstia, um pouco d’água só, e, sobrando, um punhado de farinha.

AURÉLIA — É pra já. Querendo pernoite, não se acanhe, meu santo. Daqui
a pouco chegam os outros pra janta...

SANTO HOMEM — Nossa vida é caminhar levando esperança onde não


tem... Mas a convite tão jeitoso é até pecado recusar...

AURÉLIA — Pois fique, meu santo! Fique que me dá paz!

SANTO HOMEM — Sinto cheiro de Deus nesta casa!

AURÉLIA — É do defumador!

SANTO HOMEM — Vejo o ar purificado... Vejo também a casa tentada...


Há coisa negra voando pelo espaço, minha filha... Se arredou com
minha presença...

AURÉLIA — Pois olhe, meu santo, que o que diz me alegra!

37
SANTO HOMEM — Devia temer, minha filha.

AURÉLIA — De temor já definhei! Digo sempre pra meu homem que aqui
tem coisa, mas ninguém parece acreditar. Precisava vir um beato pra
confirmar meus sentimentos.

SANTO HOMEM — Pois se o sentia, minha filha, é que tem lá suas


iluminação. Porque fato é fato; e aqui há maus espritos andejando que o
sinto na pele em forma de arrepio! (Mostra o braço.)

AURÉLIA — Que se faz, meu santo?

SANTO HOMEM — Penitência é o indicado. Muita penitência... Rezas nas


horas máximas do dia, contrição, pensar no mal feito ao longo dos
tempos e pedir perdão. Sendo de alma e com fé, afasta a coisa ruim e o
mundo voltará à sua cor!

AURÉLIA — Que Deus o ouça!

SANTO HOMEM (Com certo orgulho) — Tem ouvido, minha filha! Com a
graça dos Céus tenho conseguido acabar com agouros e desgraças! Já
fiz muito velho encontrar mocidade, muita criança voltar a sorrir. É do
bem que me alimento!
Cordeirinho adormeceu.

AURÉLIA — Então, me pegue essa casa sob a sua proteção, meu santo!
(Vendo a menina adormecida.) Pobre anjo, dormiu. Posso imaginar a
canseira!

SANTO HOMEM — Muitos dias caminhando por esses sertões, sem


descanso. Tem direito a um sono...

AURÉLIA — Quer ser servido agora ou espera a janta?

SANTO HOMEM — Se não for estorvo, espero a janta. Até me acanho de


me intrometer no sossego da família.

AURÉLIA — É um bem que nos faz, meu santo.

SANTO HOMEM — Caridade sua, minha filha.

Entra Rosa.

ROSA (Vendo o Santo Homem) — Boa-noite.

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AURÉLIA — Pede a bênção pro Santo Homem, Rosa!

ROSA — Sua bênção, meu santo.

SANTO HOMEM — Deus a abençoe. Filha sua, não é?

AURÉLIA — Pois, a mais nova. Tenho filho homem também.

SANTO HOMEM — Com a graça de Deus. Que não se prenda por minha
presença. Continue nos seus afazer.

AURÉLIA — Tem pouco o que cuidar, Santo Homem...

Rosa olha fixamente para o estandarte santo que


está apoiado a um canto.

SANTO HOMEM (Percebendo o interesse de Rosa) — Estandarte de muita


andança, filha. Pegou sol e muita chuva. Já viu coisa de estarrecer. Foi
portador de felicidade e de medo também. O pecador treme diante
dele...

ROSA — Traz castigo?

SANTO HOMEM — Pra quem merece.

ROSA — E paz, não dá?

SANTO HOMEM — A quem muito necessita e pede com fervor.

ROSA (Ajoelhando-se) — Posso fazer um pedido?

SANTO HOMEM — Quantos quiser.

ROSA — Qual é o santo?

SANTO HOMEM — De tanta interpérie já perdeu a figura. Peça pros santos


todos. É imagem de bem...

Rosa curva a cabeça e reza baixinho,


fervorosamente.

AURÉLIA — Menina devota está aí, meu santo.

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SANTO HOMEM — O que, pra mãe, deve ser felicidade.

AURÉLIA — É um descanso. Mas o jeito da moça me dá cuidado. Parece ter


pavor escondido.

SANTO HOMEM — O temor a Deus traz bem.

AURÉLIA — Mas acaba com a gente.

SANTO HOMEM (Autoritário) — Ninguém se acaba por ter crença.

AURÉLIA — Bem sei, meu santo, que me perdoe.

SANTO HOMEM (Pequena pausa) — Se não for muito pedir, poderia tirar
um nadinha disso aí que prepara?

AURÉLIA — Oxente, à sua vontade!

SANTO HOMEM — Agradeço... Hum... Belo sabor...

Rosa levanta-se e vai ajudar a mãe.

ROSA (Indicando Cordeirinho que dorme) — Quem é?

SANTO HOMEM — Um anjinho que me acompanha.

ROSA — Tão cansada parece...

SANTO HOMEM — A caridade também cansa... Mais um nadinha, me


perdoando a gula?

AURÉLIA — Ora, meu santo, tire tudo que quiser.


SANTO HOMEM — Não, não. Um nadinha só.

Ouvem-se as vozes de Osmar, Pedro e Zé Toledo


que se dirigem à casa.

OSMAR — Eu bem estranhei e estava achando a história mal contada...

ZÉ TOLEDO — Pois foi vergonha que deu nele de contá todo o acontecido.

OSMAR — Coisas assim não há porque ter vergonha.

PEDRO — Isso foi marotice da moça.

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OSMAR (Entrando) — Aurélia... (Pára ao ver o Santo Homem.)

AURÉLIA — Um beato santo me pediu pouso! Meu homem... Meu filho...


Compadre Zé Toledo...

SANTO HOMEM — Que estejam com a bênção de Deus. E já que chegou o


senhor, renovo o meu pedido. (Com o pé cutuca Cordeirinho que
desperta.) Um instante de pouso para um pecador andante e o anjo de
bem que o acompanha.

OSMAR — Minha mulher falou por mim, beato. Que a casa seja sua.

SANTO HOMEM — Lhe agradeço na humildade.

CORDEIRINHO (Sonolento) — Bem faz quem recebe o santo,


Mostrando bom coração.
Caminho do céu está aberto,
terminadas as aflição...

ROSA (Sorri) — Parece um anjo de verdade...

SANTO HOMEM — É de carne e osso, mas tem alma do céu!

OSMAR — Pois olhe, meu santo, que é até bom ter quem conheça os
mistérios. Soubemos agora de coisas que fazem arrepiar.

AURÉLIA — Que foi de novo?

ZÉ TOLEDO — O que se espalha por esses mundos. Agora se entende o


jeito estranho de Jeremias.

AURÉLIA — Pra mim é demência. Ficá atirando no escuro, procurando


acertar o demo... Onde já se viu?

Santo Homem se benze, imitado por Cordeirinho.

OSMAR — Mas agora tudo tem explicação.

AURÉLIA — Que foi?

ZÉ TOLEDO — Jeremias ficou avexado de contar todo o sucedido. Por isso


é que foi embora sem mais aquela, dando conta de doido. Mas agora tá
o fato esclarecido!

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PEDRO — Ou bem inventado.

OSMAR — Não põe suspeição que quem falou é gente de todo o respeito.

SANTO HOMEM — Pode-se saber o sucedido?

ZÉ TOLEDO — Pode, que agora é coisa dita e não escondida.

ROSA — Hein?

AURÉLIA — Vai pra dentro, Rosa! Essa não pode ouvir falar nessas coisas
que se derrama.

OSMAR — Deixa ela ficar que tem interesse.

ZÉ TOLEDO — Pois diz que é... O danado do Cão resolveu ter o direito da
pernada. Diz que de vingança por causa da profissão; não quer deixar
moça donzela!

PEDRO — Pra mim é léria!

SANTO HOMEM — Que não se duvide dos mistérios!

PEDRO — Qual mistério, meu santo! Essas danadinhas não podem explicar
o sucedido e põem a culpa no Cão. Quando não é o Cão é soldado!

AURÉLIA — Cala a boca, Pedro. Conta, compadre.

ZÉ TOLEDO — Foi o acontecido com a Gertrudes, daí o jeito apavorado do


Jeremias que em tudo que se mexe vê agora a figura do Tinhoso!

AURÉLIA — Mãe do Céu!

ROSA (Tremendo) — É mentira! Só pode ser mentira!

PEDRO — Tá se vendo que é.

AURÉLIA — Gertrudes foi sempre boa menina, exemplo de inocência.

PEDRO — Um dia desinocenta e o Cão paga o malfeito.

SANTO HOMEM — Não fale assim com leviandade! Que se cuidem da


descrença que mal maior está chegando!

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OSMAR — Verdade, meu pai?

SANTO HOMEM — Agora me explico o arrepio que senti! A presença do


Cão é coisa certa!

AURÉLIA — Valha-nos, Jesus!

ZÉ TOLEDO — E não foi só Gertrudes não! Parece que Doralice, filha do


Diorandir, e também a sobrinha de D. Ernesta. As famílias estão que é
um medo só.

ROSA — Que Deus me proteja!

AURÉLIA — Tem descanso, minha filha, que com um Santo Homem dentro
de casa, não há Tinhoso que se atreva!

OSMAR — Mas olho nela, Aurélia, olho nela.

PEDRO — Vai ver já é mulher do Cão.

AURÉLIA — Virgem cruz!

OSMAR — Mais respeito, seu peste.

SANTO HOMEM — Que tua alma encontre perdão.

PEDRO — Esse negócio de demo tá mal arranjado.

ZÉ TOLEDO — Ocê é moço e vê as coisa no impulso. Mas por falar demais


muita gente já se arrependeu.

PEDRO — Não é desrespeito. Tou falando como me dá a razão.

SANTO HOMEM — Há coisas que um cristão nem desconfia.

PEDRO (Intencional) — Pois é o que eu digo, meu santo.

ZÉ TOLEDO — Até lá na casa de seu Feliciano tão tomando suas precaução.


Chamaram padre pra benzê...

PEDRO — Não sei pra que! Seu Feliciano só tem filho homem. Será que o
demo tem desses gostos?

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AURÉLIA — Tranca essa língua, desgraçado.

SANTO HOMEM — O que o demo tem é um escravo nesta casa.

ROSA — Tem não, meu pai, tem não.

SANTO HOMEM — Pois parece. Esse moço fala com um destempero, com
orgulho de coisa ruim.

OSMAR — Pede perdão, Pedro.

PEDRO — Não vejo bem porque.

ZÉ TOLEDO — Pede perdão, garoto, que mal não faz.

AURÉLIA — Osmar, tomaram conta do nosso filho!

PEDRO — Pedir perdão por causa de quê?

SANTO HOMEM — Pergunta pra tua alma, menino. Ela te responde.

PEDRO — Tá mudinha, meu santo. Sou homem de crença e devoto na


medida do meu possível. Mas não faço nada sem entender.

SANTO HOMEM — Pois pede perdão por ser soberbo. Já não se entende as
coisas sagradas, quanto mais os artifícios do Cão. Ajoelha e pede perdão
pra Deus, que ainda pode haver salvamento.

ROSA (Aterrorizada) — Pede perdão, Pedro.

PEDRO — Tá todo mundo assanhado. (Ajoelha.) Perdão, meu pai.

AURÉLIA — Assim, meu filho.

SANTO HOMEM — Que o céu te lave o espírito e te proteja de todo o mal.

AURÉLIA — Tão vendo? Eu não dizia que tinha coisa ruim? Não dizia?

SANTO HOMEM — Ouçam essa mulher. O que ela diz tem sentido. Aurélia
tem boa luz. Vem, Cordeirinho, vamos rezar ao relento enquanto a janta
não vem. (Sai, imponente, com a menina.)

AURÉLIA — Minhas preces é que trouxeram esse Santo Homem.

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ROSA — Quem contou isso da Gertrudes?

OSMAR — Essas coisas se sabem por si...

ZÉ TOLEDO — Quem falou mesmo foi Marieta, amiga dela. Gertrudes foi
lá procurar desabafo. Daí é que se ficou sabendo dos outros casos
também.

ROSA — Mas como é que foi?

ZÉ TOLEDO — Caiu nas garras do Cão, ué! Aparecia em dia de sexta-feira.


Ninguém em casa, o demo aparecia e fazia de Gertrudes sua mulher. A
moça ficou em desespero quando teve que contá. Diz que o demo fazia
de tudo pra que ela contasse, porque assim ganhava a alma dela pro
inferno!

ROSA — Então, ela tá danada?

ZÉ TOLEDO — Sabe-se lá!

OSMAR — Bem vi que a agonia do Jeremias não era natural. Pobre homem!

AURÉLIA — Me lembro de caso parecido, foi há tempos! Mas aí o Tinhoso


só perseguia a mulher do “coronel”!

ZÉ TOLEDO — É por causa da procissão. Sou capaz de jurá. Uma das


primeiras que se faz nessas paragens!

ROSA (Aos poucos vai caindo de joelhos. Num sussurro.) — Que perca
minha alma, que perca meu siso! Não agüento mais esse peso em meu
corpo. Com o perdão vosso, meu pai e minha mãe! Com o perdão de
meu irmão!
AURÉLIA — Virgem minha! Que foi, Rosa?

ROSA — Com o perdão de Deus! Não posso agüentar o peso. Não posso,
minha mãe!

PEDRO — Que foi, minha irmã? Fala!

ROSA — Pouco me importo com minha alma. Só quero vosso perdão!

OSMAR — Rosa, não diz coisa à-toa. Que aconteceu?

ROSA — É só perdão que eu quero. E livrá meu corpo desse peso!

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PEDRO — Confia em nós. Fala o que te aconteceu!

ROSA — Dá vontade de morrer, Pedro!

ZÉ TOLEDO — A menina tá impressionada. Da outra vez que ouviu falá


nisso também não resistiu!

OSMAR — Tá impressionada, não é, minha filha?

PEDRO — Deixa ela falá, pai! Que aconteceu, Rosinha?

SANTO HOMEM (Surgindo) — Em nome do Padre, do Filho e do Espírito


Santo que eu te ordeno, Satanás, deixa esse corpo!

Todos se voltam. Santo Homem imponente na porta.

AURÉLIA — Que disse, meu pai?

SANTO HOMEM — Chit!... É ordem de quem é mais forte. E mais força


tem o bem. É uma, é duas, é três: na Santíssima Trindade, para o bem e
para a verdade — Satanás, deixa esse corpo!

Rosa curva-se até o chão. Chora baixinho, um


gemido prolongado.

AURÉLIA — Coitadinha de minha filha!

SANTO HOMEM (imperativamente, quase num sussurro) — Todo mundo


de joelhos. Testa no chão!

Todos obedecem.

SANTO HOMEM — É ordem de quem é mais forte! Obedece, Satanás!


Cordeirinho, a obrigação do servo!

Cordeirinho pega o estandarte e cobre com ele a


cabeça de Rosa.

SANTO HOMEM — Todo mundo rezando o Padre-Nosso, olho cerrado em


total união com o céu!

Todos começam o Padre-Nosso. Ambiente de pânico.

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Enquanto rezam, Cordeirinho caminha pela casa pegando o
que pode e enfiando na saca. Durante o Padre-Nosso.

SANTO HOMEM — Pras trevas é teu retorno! Deixa esse corpo que não te
pertence. São tudo almas do Senhor! É ordem de quem é mais forte.
Faça o que te mando, Satanás!

ROSA (Sacudindo o estandarte e levantando-se) — Não adianta! Não


adianta, meu santo!

Cordeirinho quase é pilhada em flagrante. O Santo Homem


também se desconcerta.

SANTO HOMEM — Mantém a calma, filha minha. Dê prosseguimento à


oração!

ROSA — Não adianta, fui dele! Eu fui dele!

AURÉLIA (Num berro) — Rosinha!

OSMAR — Dele quem?

PEDRO — Deixem ela falá!

ZÉ TOLEDO — Fala, Rosa. Que te aconteceu?

ROSA — Fui mulher do Cão! Que leve minha alma mas me livre desse
peso!

AURÉLIA (Aflita) — Não apela pra ele! Roga a Deus!

ROSA — A quem me livrá do peso! A quem me livrá do peso!


Rosa exausta cai novamente.

SANTO HOMEM — Agradeço a caridade, deixo a família com sua dor!


Vem, Cordeirinho! (Procura sair.)

OSMAR (Detendo-o) — Não deixe a gente agora, Santo Homem!

AURÉLIA — Pelo bem que meu santo faz, ajude a gente!

Santo Homem não sabe ao certo o que fazer.


Fica indeciso.

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ROSA — Meu santo, meu santo, me livre desse peso!

SANTO HOMEM — Qual peso, minha filha?

ROSA — O que toma conta do meu corpo, que não me deixa dormir! Peso
em mim inteira, Santo Homem, que já não agüento mais!

PEDRO — Fala o que te aconteceu, Rosa!

SANTO HOMEM — Quieto, menino! Vem minha filha, Levanta!

ROSA — Não posso. Não tenho força!

OSMAR (Que vinha contendo-se, perde a cabeça e pega-a rudemente pelo


braço) — Mas fala de uma vez, conta tudo!...

ROSA — Fui mulher do Cão, meu pai. Só peço perdão!... E que me livrem
desse peso!

OSMAR — É coisa de doido. Virou inferno essa casa! Rosinha, mulher do


Cão? É coisa que nenhuma imaginação pode crer! Minha Rosinha,
mulher do Cão! Mas fala de uma vez, desgraçada!

ROSA — Que nem com Gertrudes, meu pai. Que nem com ela!

AURÉLIA — Diz que é invenção. Diz que é invenção do susto que você
sentiu, diz!

ROSA — Verdade, minha mãe!

OSMAR (Sacudindo-a) — Mas se explique!

PEDRO — Não adianta sacudi a menina, pai!

OSMAR — E você não se meta que é também presa do demônio! Tudo aqui
tá na mão do Tinhoso!... Mas, ah! desgraçado, que te roubo o conforto...
(Saca da peixeira.)

Pedro segura-lhe o braço.

AURÉLIA — Piedade, meu velho!

ZÉ TOLEDO — Osmar, tá perdendo a cabeça!

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ROSA — Fere, meu pai!... Fere de vez!

SANTO HOMEM — Alto! Que isso tudo é manha do Cão! É ele que tá
mandando no seu gesto! Deixe a arma!... Largue a moça!... Descanse...
Pra tudo se põe remédio!

PEDRO — Fala, Rosa. Diz como é que foi. Pode confiar!

Sem interrupção no tempo. Somente mutação de luz.


Ouve-se som de um violão. Logo depois uma
gargalhada. Rosa se sobressalta e vai até a janela.
Novamente uma gargalhada. Rosa persigna-se.
Continua o violão.

DIABO (De fora. Quase um recitativo, parte falada, parte cantada)


— Oi quem? Oi quem foi que mandou?
Rei do mundo é ordenança!
Cala o vento na folhagem,
Sobra nuvem no céu.
De animal não vem ruído
o sol já está esquecido,
é a hora do rei!
Quem foi que mandou?
Satanás usou de mando,
quer ser obedecido.
Salve as moças sem marido!
Seu príncipe já chegou!

Rosa encolhe-se apavorada.

Satanás senhor das coisas,


protetor dos aflitos,
das moças desamparadas!
Satanás da hora certa,
Satanás do esquecimento!
Satanás que manda no bem,
Satanás senhor do bom!

ROSA (Horrorizada) — Pedro!... Pedro!... Ói, Pedro, que não tem graça
nenhuma!

DIABO — Chegou o príncipe do fogo!

ROSA — Pedro, não brinca assim que já tô com susto!

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DIABO — Não há tranca que me impeça! O mundo é meu! Ó de casa!

ROSA — Quem vem lá... Pedro!... Não brinca, Pedro!

DIABO — Não é preciso ter susto! Bem sei que minha menina está em casa
sem ninguém. Esse Pedro está bem longe... Não há ouvido por perto,
que tudo foge ao meu encanto!

ROSA — Quem é o senhor?!

DIABO — Pois não está me reconhecendo? Satanás na hora certa! Satanás


do esquecimento!

ROSA — Valha-me minha Nossa Senhora! Me livre do mal!

DIABO (Deixa escapar uma gargalhada humana) — Sou portador do bem!


Do gosto que traz consolo...

ROSA — Segue teu caminho, seja quem for!

DIABO — Meu caminho é tua formosura! Satanás só quer teu bem!

ROSA — Ave-Maria...! Pedro! Me acode!

DIABO (Aparecendo) — Psiu!... Vai ficar rouca! Em lugar de berrar podia


trancar a porta, era mais seguro... mas não há tranca que me impeça!

Rosa fica estarrecida diante do homem. Grande


chapéu negro, uma grande capa (toga de
formatura), botas. Uma máscara esconde parte do
rosto.
ROSA — Me deixa em paz, pelo amor de Deus!

DIABO — Não me toque nesse nome!

ROSA — É em nome de Deus que eu peço, desapareça daqui!

DIABO (Com gesto característico) — Tó que eu desapareço! (Levanta os


braços, mãos crispadas.) E pára de falar nesse nome que eu acabo essa
casa em fogo!

ROSA — Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo!

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DIABO (De um salto agarra-a pelos ombros) — Vamos parar com isso!
Vamos parar! (Empurra-a.)

Rosa, vendo-se livre, pega a medalhinha que tem ao


pescoço e mostra-a, olhar suplicante.

DIABO (Estoura numa gargalhada) — Poor Pretty Girl!... Tão


desamparada!

ROSA (Atira-se ao chão em desespero) — Me deixa! Me deixa! Some-se


daqui! (Rapidamente.) Ave-Maria, cheia de graça, o senhor é convosco,
bendita sois Vós entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre,
Jesus!

DIABO (Começa a dar passinhos, e canta:) — Oxerém — O bem-


[bem-bem
ba-lá-lá
Ditiram cutú sata-
[bá,
Juscá sabá, riquem,
oi tá, demoninho...
Ziguidum zés-zés.
Urfatá-urfatá!
Zés-zés-zés-zés!

(Tem um frêmito. Ergue os braços, e com voz cava:) Teu


nome é Rosa, Rose is your name, Osmar e Aurélia te
geraram, sendo teu nome o escolhido. Assim como —
remember Rose —, assim como o de cima mandou seu
filho, o das trevas manda seu mensageiro que te escolheu.
Tua alma é pura e santa e ainda não me pertence, mas me
pertencerá. Quando contares que fostes escolhida pelo
Demônio, sua alma será minha! E você vai contar! Vai
contar!

ROSA — Não dou minha alma. Minha alma não dou! Não conto! Não conto!

DIABO — Vai contar!

ROSA — Não conto. Nem que me mate, não conto! Me deixa em paz! Vai
embora, por caridade!

DIABO — Oxerém — baragulê


Coitacá sembem barampa

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Oiteguê...

Aproxima-se da moça que recua. Encurrala-a junto


à parede, pega-lhe a ponta dos dedos e puxa-a para
a dança, sempre cantando a estranha melodia; num
repente beija-lhe a boca. Rosa dá um grito e pula
para trás caindo no chão.

DIABO — Menina boba! Satanás não te quer mal. Espera o dia de ter tua
alma. Satanás quer só ser obedecido. Sendo obedecido é tão doce quanto
um anjo! Satanás foi anjo, sabia? Mas faz tempo!... Quantos anos você
tem?

ROSA — Num sei...

DIABO — Como é que não sabe, responde!

ROSA — Num sei...

DIABO — Obedece!

ROSA — Num sei... Perderam as contas!

DIABO (Ri) — Sabe que pra quem vive nesse fim de mundo você até que é
bem jeitosa, sabe?

ROSA — Num sei não! Ai, meu Deus, que isso é sonho mau que tou tendo!

DIABO — Isso é verdade, demoninha! Verdade pura!... Mas o diabo não é


tão feio quanto se pinta, é?

ROSA — Num sei!...


DIABO (Imitando-a) — Num sei... num sei... Num está me vendo? Fala!

ROSA — Não quero falá!

DIABO — Obedece!

ROSA — Não quero falá!

DIABO — Pois então canta!

ROSA — Eu não sei cantá!...

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DIABO — Ah, não! Cantar você vai!

ROSA — Mas eu não sei!

DIABO (Terrível) — Estou mandando. Canta!

ROSA — Cantá o quê?

DIABO — Não me interessa, canta!

ROSA (No máximo da confusão) — Senhora, senhora minha,


senhora vou pentear
os cabelos da Rainha
que mandou me procurar... (Pára.)

DIABO — Continua...

ROSA — Mas...

DIABO — Continua!

ROSA (Chorando) — Sobe ao Monte Santo


E lá vai encontrar
Aquela que é um encanto...
E roubou todo teu olhar...

DIABO — Bom. Viu como não é difícil? Você tem boa voz. Canta bem! Não
te faço mal nenhum, está vendo? Dizem por ai que o diabo faz e
acontece... Conversa! Não é o diabo, não!

ROSA — Não.

DIABO — Eu sei que você não entende nada! (Rosa no máximo da confusão
de sentimentos sorri.) Sorriu! Ah, meu pai, ela sorriu! Não fosse eu o
diabo, você chegaria a me comover!

ROSA — Já não sei mais o que faço... Nem o que penso...

DIABO — Tá, tá, quietinha!

DIABO — Já está amansando, hein!... Vida besta, não é, bem? Mas não ligue
não. Isso já é assim faz tempo. Vida de vocês há quatrocentos anos que
não muda... Deixa pra lá! (Acariciando-a procura desabotoar-lhe o
vestido, ela o olha apavorada retraindo-se.) Que foi? Quietinha!...

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Sempre a mesma coisa; nunca nada que dê prazer, nada de novo nunca...
nunca nada de novo... (Suas mãos encontram-lhe o seio. Ela estremece
olhando-o fixamente. Depois deixa pender a cabeça no ombro dele. Ele
acaricia-a levemente, com ternura.) Isso... Quietinha!

Sai a luz em resistência. No escuro.

VOZ DE ROSA — Me procurou mais três vezes e depois sumiu! Sempre às


terças-feiras, aproveitando a saída de vocês pro cambão!

OSMAR — Chega que isso já é muito pra meu peito!

Acendem-se as luzes.

ZÉ TOLEDO (Persigna-se) — Vote! Que ouvi de quem ouviu é uma coisa,


mas ouvi de quem sofreu mete arrepio!

PEDRO — Como é que você pode saber que ele é o diabo, Rosa?

AURÉLIA — Pois não contou tintim por tintim, minha pobre filhinha!

PEDRO — Mas quem garante que não era um andarilho qualquer?

SANTO HOMEM — Era Satanás!

PEDRO — Mas por quê? Por que é que tem de ser?

ROSA — Não tinha jeito de gente. Também pensei numa certa hora. Mas
não! Era coisa do outro mundo. Todo ele era diferente... Me arrepiava
inteira toda a vez que ele chegava!...

ZÉ TOLEDO — Pobre criatura!


PEDRO — Era arrepio de chegada do diabo ou de chegada de homem?!

AURÉLIA — Fala assim dela não, que Rosa é pura inocência!

PEDRO — Que nem a outra! Que nem Gertrudes! Queria saber que trança
andaram vocês fazendo!

ZÉ TOLEDO — E Doralice? E a sobrinha de D. Ernesta? Vai ser tudo


combinado?

AURÉLIA — Mas quem é que pode duvidar? Não vê a dor da menina? É


certo que foi o Cão, já houve caso parecido!

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PEDRO — Rosa, te juro que ninguém te faz mal, fala a verdade!

ROSA — Pode não acreditar, meu irmão! Meu sofrimento só eu que sei. E o
peso que tenho em meu corpo não desejo pra pior inimigo!...

OSMAR — Ai, ai, ai, ai! Que eu já não me entendo, que eu já não sei o que
faço!

ZÉ TOLEDO — Dê uma palavra, Santo Homem!

SANTO HOMEM — Já falei não tive crédito!

CORDEIRINHO — E para quem rir do profeta se abrirão as fornalhas do


inferno para eterna danação!

SANTO HOMEM — Psit! Mas quem duvida de um pecador não pode


duvidar de um anjo. Cordeirinho que o diga. Olhe bem pra ela,
Cordeirinho. Faz apelo de tua pureza, alarga tua visão e diz. Diz se não
é o demo que habita aqueles olhos!

Cordeirinho hesita. Vai até Rosa e fixa-a. Olha


confusa para o Santo Homem.

SANTO HOMEM (Perguntando, mas abanando a cabeça afirmativamente)


— É?

CORDEIRINHO — É o demo, meu pai!

AURÉLIA — Taí, pronto. Não há como duvidar. É um inocente que falou!

PEDRO (Com voz surda) — É gente, comete engano...


SANTO HOMEM — Pois em verdade vos digo e duvide quem quiser que a
verdade é essa. Satanás tomou conta da região. Habita em gente dessa
casa, na moça que fez sua mulher e no irmão que tomou por advogado!

Todos instintivamente se afastam de Pedro.

PEDRO — Epa, isso não!

SANTO HOMEM — Os dois, presas do Cão. Sem o saber, mesmo sem o


sentir! Essa é a verdade, meus filhos. Mas com oração a tudo se põe
fim!

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PEDRO — Não me confunda com o demo, meu santo. Não tenho diabo
nenhum!

SANTO HOMEM — O Cão fala pela tua boca. Pela tua boca quer evitar que
eu tire ele do corpo da infeliz. E enquanto eu não tirar a infeliz vai sentir
esse peso que é o peso do demo. Meus filhos, Deus guiou meus passos
até essa casa. Não vou ter descanso enquanto não puser o Tinhoso pra
fora, pras suas bandas de treva... Que alguém me acompanhe até a outra
desditada...

OSMAR — Gertrudes mora longe...

SANTO HOMEM — É preciso que eu vá!

ZÉ TOLEDO — Eu lhe levo lá!

SANTO HOMEM — É uma caridade. Com a permissão dessa boa gente,


deixo Cordeirinho, pra lhe poupá a caminhada!

AURÉLIA — Deixa ela sim que é proteção!

OSMAR — Por favor, meu santo... Você também, Zé Toledo! Não é preciso
que se saiba o que aconteceu... Não quero minha filha na boca do
mundo...

SANTO HOMEM — Ninguém precisa saber!

ZÉ TOLEDO — Não se preocupe, compadre. Eu compreendo!

Santo Homem e Zé Toledo vão saindo.

AURÉLIA — Santo Homem! (Ele pára e volta-se.) Que trato é pra dá pros
dois?

SANTO HOMEM (Depois de um instante de reflexão) — Deixe os santos


bem expostos... e uma cruz no peito dos dois. No mais fica no mesmo
que assim o Cão não se manifesta. (Saem.)

AURÉLIA (Apressada) — Osmar, me ajuda!

De um canto tira mais duas imagens. Uma estatueta sem


cabeça. Verifica se Rosa está com o cordão, com as santinhas
e o crucifixo. Certificando-se, vai até Pedro. Notando que o
rapaz não tem nada no pescoço, tira seu cordão e coloca-o

56
no rapaz.

AURÉLIA — Fica com isso, meu filho! Não se preocupa, nós pomos esse
Tinhoso pra fora! (Vai até o de fumador e aviva o fogo.) Fiquem os dois
aqui, procura rezá. Rezem com fervor! Vem, meu velho, deixa eles!...

OSMAR — Ah, Aurélia, que isso tudo é demais pra mim!... Como se não
bastasse, vão acabá com o arrendamento!... Tá tudo caindo, Aurélia!

AURÉLIA — Deixa ganhá do Tinhoso pra ver como melhora!

OSMAR — Me dá até canseira. Vontade de embicá na rede e ficá até que


nem sei...

AURÉLIA — Deixe estar, a chegada do beato foi sinal do céu! Vem, meu
velho, vem!

OSMAR — Estou com fome...

AURÉLIA — Depois... depois! Vem... Rezem, meus filhos. O Cão foi


descoberto, é só pôr ele pra fora! (Saem.)

ROSA — Adiantou de nada, irmão! Entreguei minha alma e o peso não


diminuiu!

PEDRO — Entregou a alma coisa nenhuma. Isso é léria!

ROSA — Fala assim não, Pedro, que vem castigo! Eu é que sei!...

PEDRO — Rosinha, minha irmã, agora você pode falar... Eu sei que você
deve tá achando que tudo isso é verdade, que veio o CÃO e fez o que
fez. Mas não pode ser, confia em mim!
ROSA — Não pode dizer mentira só pra te dar calma, Pedro. Foi como eu
falei. Você não acredita?

PEDRO — No diabo eu acredito! Não acredito é que ele esteja em você, em


mim!...

ROSA — A gente nem sabe... Depois, fica esse peso!...

PEDRO — Você acha que ele está em mim?

ROSA — O Santo Homem falou. Esses beatos estão sempre com Deus.

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PEDRO — Ei, Cordeirinho, vem cá!

CORDEIRINHO — Não!

PEDRO — Quero falar com você!

CORDEIRINHO — Não falo com danado!

PEDRO — Diz de coração. Você vê o diabo nos olhos dessa moça?

CORDEIRINHO — Satanás e o fogo do inferno! Nos dela e nos seu! (Sai.)

ROSA — Ainda duvida?

PEDRO — Já não sei o que pense...

ROSA — Sabe o pior, Pedro?

PEDRO — O quê?

ROSA — Quando ele deixou de vir, senti falta. Tinha medo que ele viesse e
também queria que ele viesse.

PEDRO — Diabo nada. Isso é gente, Rosa!

ROSA — Diabo com figura de gente! E ele parecia de fogo, me abrasava.


Sabia de tudo, falava de tudo. Conhecia minha vida, coisas minhas de
pequena. Sabia do pai, coisas da mãe. Sabia passado e futuro, e a voz
me embalava. Comecei a percebê que com ele eu ficava contente...

PEDRO — Você precisa é de um namorado!

ROSA — Nunca mais, Pedro. Nunca mais. Dessa eu não saio viva. Minha
esperança só é livrar minha alma. Do resto não espero nada!

PEDRO — Escuta, me conta! Ele aparecia e desaparecia de repente, ou


entrava e saía pela porta como todo mundo?... Tinha medo que chegasse
gente?

ROSA — Às vezes ele ficava na porta assuntando, olhando a estrada!

PEDRO — E o corpo dele como é que era? Igual ao meu, assim?!

ROSA — Como igual?

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PEDRO — Assim, com músculo, nervo, igual ao corpo de gente, sem
diferença?

ROSA — Era sim...

PEDRO — Então é gente, Rosa! É um cabra safado abusando de tua


inocência. Eu pego esse maldito e rasgo ele à faca!

ROSA — Não é não! Se fosse gente igual a nós te garanto que eu sabia. É
diferente: no jeito, na fala!... Os olhos dele, já de longe, começavam a
metê medo.

PEDRO — Não há o que me convença!

ROSA — É que ele tá em você também! Ele é que não te deixa acreditá!

PEDRO — Nossa mãe!... Que estou com a cabeça fervendo!

ROSA — Vamo rezá, Pedro. E confiá no Santo Homem.

PEDRO — Se eu tiver em pecado que Deus me livre!

Rosa reza baixinho, contrita.

PEDRO — Bem pensado, é possível que eu tenha deixado o demo tomá


conta do meu corpo!

ROSA — Pois reza!...

PEDRO — Preciso te falar! Mas não vai contá pra ninguém!

ROSA — Fala.

PEDRO — Jura que não conta.

ROSA — Meu juramento já não vale. Fale se quisé!

PEDRO — As coisas que venho trazendo... não é de trabalho nenhum. Eu e


mais quatro caminhamos até a vila. De lá pegamo cavalos e vamos bem
mais pra frente... Limpamos os armazéns!

ROSA — Coisa de cangaço, Pedro!

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PEDRO — Cangaço sem fardamento. Sem espelhinho nem estrela. Só peito
pra fazê. Enfrentamos três tiroteio...

ROSA — E você ainda duvida que está com o diabo no corpo?

PEDRO — Se não fosse isso queria ver o que é que se comia!

ROSA — Se comia o que sempre se comeu. Desde o tempo que entrou essas
latas em casa é que tudo foi piorando!

PEDRO — Era o diabo, agora são as latas que têm a culpa?

ROSA — Ele atenta de todo jeito. Reza bem, Pedro, que você está na
perdição!

PEDRO — Só sei que já não entendo!...

ROSA — Ai, Pedro, esse peso!... Ai!... é como se fosse saí a alma pela
boca!...

PEDRO — Deita a cabeça no meu joelho. Assim. Agora fica quieta!...


Também esse cheiro de defumador!... Estava me sentindo tão livre e
agora...

Frente da palhoça. Osmar e Aurélia.

AURÉLIA — Tudo nesse mundo é um feitiço!

OSMAR — Quisera saber por quê!

AURÉLIA — Não adianta indagar!

OSMAR — Pois. As coisas vêm numa desordem, e depois a gente nota que
elas têm um entrelaçamento. Mas só depois de já ter acontecido...

AURÉLIA — É a mão de Deus!

OSMAR — É uma luta de dois mundos, não é, Aurélia? Deus de um lado


benzendo, o Cão do outro atazanando o espírito. Nós no meio. Quando a
sorte começa a tomá jeito de coisa boa: bumba! Lá vem o demo dando o
troco!

AURÉLIA — Pois aí está porque é preciso tomá partido. Ficá do lado de um


ou de outro! Quem fica com o diabo consegue uma aparência de boa

60
sorte. Quem fica com Deus tem o descanso garantido.

OSMAR — O que me agonia é saber porque é que Deus tendo criado tudo
tão certinho resolveu dá vez pro Tinhoso. Devia ter capado ele de
início...

AURÉLIA — Tá se pondo no lugar de Deus, Osmar? Já é petulância!

OSMAR — Que o quê!... É que sou burro, não entendo as coisas!... Não
entendo e quero entender!... Eis onde me atrapalho!

AURÉLIA — O jeito só é ter fé: cumpri com os mandamentos, pegá o que


ensina os mais velhos e ir vivendo de acordo... Sem muita pergunta, sem
muita questão!

OSMAR — Pois veja só: o diabo vem, encontra brecha e se instala, já é um


ponto pro Tinhoso. Pega Deus e já respondendo, manda um Santo
Homem que sabe lidá com o demo... Mas, enfim, quem manda mais —
Deus ou o diabo?

AURÉLIA — Isso nem é coisa que se pergunte. Se diabo existe é que Deus
criou...

OSMAR — Pois pra quê? Pra ter mais trabalho?

AURÉLIA — Sei lá que não peço satisfação pro Altíssimo. Ele lá sabe o que
faz. Já no meu pobre entendimento acho que é pra ter como castigá a
gente...

OSMAR — Mas Deus mesmo castiga...

AURÉLIA — Mas não castiga “Ele”, Deus! Castiga com o diabo. Deus
sendo bom, não pode fazê mal... Mas é preciso fazê mal pra dá castigo.
Então, Ele criou o diabo...

OSMAR — Que seria assim como que uma polícia de Deus!

AURÉLIA — Olhe, que mais ou menos!

OSMAR — É!... Teu pensamento tem justeza. Mas em assim sendo como é
que a gente tem de lutá contra o diabo?

AURÉLIA — E vai deixá de lutá, Osmar?! Onde já se viu?

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OSMAR — Mas se o diabo castiga por mandado de Deus, tem de agüentá o
castigo!...

AURÉLIA — Ora, Osmar!

OSMAR — Ora não, que o que digo tem cabimento! Veje o negócio do
Pedro. Se os soldado tivesse vindo pra castigá ele, e a gente fosse lutá
contra os soldado, quem tava no errado era a gente, que o castigo vinha
em cumprimento da lei. E lutá contra os soldado era luta contra a lei.

AURÉLIA — Aí não pode não...

OSMAR — Mas o caso é o mesmo. Se a coisa se dá como você tá dizendo,


lutá contra o diabo é lutá contra a lei de Deus. Então, não pode!

AURÉLIA — É, sendo assim, de fato não pode...

OSMAR — Então, teu pensamento tá errado...

AURÉLIA — Vai vê, tá mesmo...

OSMAR — Mas tando errado, Deus e o diabo tem o mesmo valor!

AURÉLIA — Diz isso não, velho!

OSMAR — Então como é que é?

AURÉLIA — É ir vivendo, Osmar. Sem muita pergunta, sem muita questão!

OSMAR — Hum!... Mas Deus tem de ser mais forte...

AURÉLIA — Tem de ser...


OSMAR — É terrível tá com o diabo dentro de casa, não é Aurélia?

AURÉLIA — Dá um abafamento!...

OSMAR — Sinto que parece chumbo nos peitos!

AURÉLIA — Pra mim chega a dá gosto ruim na boca!

OSMAR — Os dois tão quietinhos lá dentro...

AURÉLIA (Rezando) — São boas almas. Eles se livram!

62
OSMAR — Deus permita!

AURÉLIA — Há de permitir sim!

OSMAR — Vê? A gente cuida dos filhos nas medidas do possível. Ensina
pra eles o que aprender — que é pouco mais útil — cresce eles no
esforço... Vem o Cão e toma conta. Mas ainda bem que foi ele!

AURÉLIA — Não blasfema, homem!

OSMAR — Ainda bem mesmo!... Que se fosse qualquer pilantra que tivesse
abusado de filha minha, não quero pensá nem na desgraça que ia ser.
Enterrava o ferro na barriga dos dois. Abafava a pouca-vergonha em
sangue!...

AURÉLIA — Gente só toma conta do corpo. O Cão quer ficar com a alma. É
muito pior... É que tem coisa que você nem imaginou!

OSMAR — O que agora?

AURÉLIA — O Cão tem artes pra tudo. Em tanto tempo não fez ainda um
tantinho assim de toda a maldade que pode fazer...

OSMAR (Apreensivo) — Sei, e aí?

AURÉLIA — O Tinhoso bem que podia... Nem quero falá!

OSMAR — Que é que você tá pensando, Aurélia?

AURÉLIA — Pensamento tão medonho que nem quero mais pensá!

OSMAR — Então é o mesmo que me passou agora, pois mais medonho não
pode haver...

AURÉLIA — Tá pensando que o Tinhoso bem que podia... que Rosinha...


não é de todo impossível...

OSMAR — Fala mais não, Aurélia. É isso mesmo que pensei...

AURÉLIA — Então pensamo os dois... Quer dizer que há desconfiança...


Não, é bobagem!...

OSMAR — Só pode ser bobagem. Que coisa assim pra nenhum cristão
acontece...

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AURÉLIA — E a Virgem Maria?!

OSMAR — Mas lá foi coisa Santa... Não há coisa ruim, nem fantasmas, que
tenha tal poder...

AURÉLIA — Mas tem o que violentar... Uma coisa puxa outra!

OSMAR — Se for eu me mato!

AURÉLIA — Imaginou... Se da Virgem veio coisa tão linda e doce... Dali


saía besta-fera, que nem figura de gente ia ter!

OSMAR (Abraçando Aurélia fortemente) — Aurélia me acorda, me acorda...


Só posso tá dormindo... Um mau jeito na rede... Me acorda...

AURÉLIA — Estamo os dois de olho aberto, Osmar...

OSMAR — Não, não. Não é possível. Besteira que a gente pensa. É isso
tudo que deixa a gente sacudido... Pobre da infeliz! Coisa assim não
acontece. Até pro horrível tem limite!

AURÉLIA — Será que tem? Tanta coisa estranha acontecendo. Vou falá com
ela direitinho. Tem coisa que ela não explicou!

OSMAR — Vai não, Aurélia. Deixa!

AURÉLIA — Adianta não querê ver?

OSMAR — Deixa... deixa!

AURÉLIA — Vou falá com ela, Osmar!


Mudança de luz. Aurélia vai até Rosa que continua nos
joelhos de Pedro.

AURÉLIA — Rosinha!

PEDRO — Psit!... Conseguiu dormir!...

AURÉLIA — Acorda ela!

PEDRO — Deixa ela dormir, mãe!

PEDRO — Há tempos que a pobrezinha não dorme, mãe!

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AURÉLIA — Preciso falar com Rosa. Vai rezar mais pro canto, que o que eu
tenho de saber não quero que ninguém mais ouça!

PEDRO — Maldade, mãe...

AURÉLIA — Vai, Rosa!

ROSA (Acordando sobressaltada) — Não! Hoje não... não!...

AURÉLIA — Escuta, Rosinha... É sua mãe. (Rosa continua resmungando


baixinho.) Rosa!

ROSA — Mãe?... Ah, mãe, esse peso!

AURÉLIA — Quietinha. Ouve, fala comigo direito...

ROSA — Sim, mãe!

Mudança de luz para Osmar que olha atentamente para o


céu.

OSMAR — Tão cheio de mistério e tão bonito!

Surge Cordeirinho. Traz na mão dois gravetos amarrados


em forma de cruz e um pedaço de pano de saco.

OSMAR — Cordeirinho, minha santa. Vem cá falar um pouco com o velho,


vem... (Cordeirinho vai até ele.) Você me dá descanso criatura... Estou
precisando de coisas boas perto de mim.

CORDEIRINHO — O bem sempre trago por seguir ensinamentos de meu


pai.

OSMAR — Tudo que você diz é importante, Cordeirinho... Não é que nem
essas crianças que nem sabe bem o que fala...

CORDEIRINHO — Deus deu a fala pra entendimento, usai da palavra só pra


dizer verdade...

OSMAR — Sabe que perto de você, minha santa, chego a sentir vergonha!
Diz pra mim que isso tudo passa, diz!

CORDEIRINHO — Pergunte pra meu pai!

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OSMAR — Tomara que ele volte logo.

CORDEIRINHO — Ele sempre volta pra bem de quem está em pecado!

OSMAR (Acariciando-a) — Meu anjo!

Cordeirinho num repente encosta a cabeça no ombro do


velho.

OSMAR — Me dando consolo, santinha? Que Deus te pague!

CORDEIRINHO (Envolvendo os gravetos no pano) — Ói que eu fiz!

OSMAR — Bonito! O que é?

CORDEIRINHO — O menininho Jesus!

OSMAR — Hum! O menininho Jesus...

CORDEIRINHO — Eu tomo conta dele. Não deixo senti frio nem calor...
Escondo ele do sol... Dia de chuva ponho ele quietinho na saca...

OSMAR — Ele gosta muito de você, não é?

CORDEIRINHO — Gosta sim. Agora tá com reima-de-dente!

OSMAR — Não! Deixa eu ver. (Finge examinar a cabeça do boneco.)


Feridinha à-toa. Logo sara!...

CORDEIRINHO — É reima-de-dente sim. Tão nascendo os dentes dele e é


por isso que dá escama no cabelo.
OSMAR — Coisinha de nada. Não precisa entristecer...

CORDEIRINHO — Meu pai disse que não reza ele, que é heresia... Meu pai
não gosta dele. Diz que o sagrado não é brinquedo!...

OSMAR — Então, tem de obedecer ao pai.

CORDEIRINHO — Mas não é brinquedo, é o menininho Jesus!

VOZ DE AURÉLIA — Osmar, meu velho! Maldito pressentimento! Ai que a


desgraça não vem sozinha! Chama o beato, Osmar!

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OSMAR — Aurélia!

Ela surge na luz.

AURÉLIA — Tá sim, Osmar. Tá que eu vi!

OSMAR — Não. Isso não é possível!

AURÉLIA — Que a menina tá prenhe é mais verdade do que eu tá viva...

OSMAR — Minha Nossa Senhora!

AURÉLIA — É o Filho do Cão, Osmar. É uma fera!

OSMAR — Mata essa mulher!... Mata essa mulher!

AURÉLIA — A coitada da infeliz tem lá culpa? Cadê o beato? Cordeirinho,


meu santo, onde está o Santo Homem?

OSMAR — Perseguição danenta! Pois me ouça, seu diabo! Me ouça! Luto


consigo que não lhe dou minha família pra pasto. Vem pra mim,
porqueira, e larga dos inocente. Por que que não vem pra mim, Tinhoso
do inferno?!

AURÉLIA — Não provoca o demo, Osmar! Não provoca!

OSMAR — Me explica por quê? Por que não vem esse Tinhoso pra cima de
mim, largando mãos dos meus filhos?

AURÉLIA (Começando a choramingar) — Rosinha com um filho do Cão!...

OSMAR — Cadê essa cadela?!... Cadê essa cadela!


AURÉLIA — Deixe a menina agora, Osmar, que não tem culpa!

OSMAR — Quero olhá pra essa cadela!...

Sai, seguido de Aurélia. Cordeirinho fica só. Persigna-se e


continua a brincar com seu boneco.

FIM DO SEGUNDO ATO

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Ato III

Três figuras com máscaras, nas posturas das figuras


populares de Vitalino.

FIGURA 1 — É o que mais se fala!

FIGURA 2 — Eu custo a acreditar!

FIGURA 1 — Mas é a verdade!

FIGURA 3 — Mas as duas assim, de uma vez só?

FIGURA 1 — Pois sim senhor. Não satisfeito em roubar a honra das moças,
resolveu dar perpetuidade e criá família!

FIGURA 2 — Bobageira!... Então isso é possível?

FIGURA 1 — Tem coisa que até Deus duvida!...

FIGURA 3 — Credo em Cruz, que esse mundo tá acabando!

FIGURA 2 — E elas onde é que estão?

FIGURA 1 — Há léguas daqui!... Na casa de um tal de Osmar que é o pai!...

FIGURA 3 — As duas, filhas do mesmo pai?

FIGURA 1 — Nada. Tão juntas pra mode de um Santo Homem que lá se


encontra poder fazer suas rezas. Diz que é de hora em hora que o beato
pega as duas e dana numa rezadeira das mais intrincadas...
FIGURA 2 — Qual! Quanto mais se vive mais se aprende!

FIGURA 1 — Parece que o tal beato é na verdade figura de Deus. Contam


muitas proeza dele, sempre vencendo o demo onde for que ele se
encontre!

FIGURA 3 — Pois essa parada garanto que ele perde...

FIGURA 1 — Tenho lá minhas dúvidas... Palavra de santo tem valor.


Sabendo reza forte, não há o que agüente.

FIGURA 2 — Mas se o Cão resolveu ser pai, é porque tem tenção de cuidá

68
dos filhos. Não tem t’esconjuro que valha...

FIGURA 3 — Pagava não sei o que pra ver o jeito das crianças...

FIGURA 1 — Chega a me dá calafrio. ‘Maginou que jeito pode ter o filho do


Cão?

FIGURA 2 — Pra mim nasce com cauda e chifre!...

FIGURA 3 — Orelha em ponta!

FIGURA 2 — E o pé? O que se tem de olhá é o pé. Se tivé pé torto, não há


como duvidá!

FIGURA 1 — Vai ver eles nascem até de garfo na mão!...

FIGURA 2 — ‘Tou falando sério!...

FIGURA 3 — Vai ver que todas as crianças que tem aleijão por aí, é por arte
do Tinhoso...

FIGURA 1 — Não vejo despropósito!...

FIGURA 2 — Minha vontade era ir até lá pra ver o nascimento.

FIGURA 1 — Pois vai! São dias e dias de caminho!...

FIGURA 3 — Já é no fim do mundo.

FIGURA 1 — Mas ao nascer a gente sabe. Essas coisas correm com o


vento!...

FIGURA 2 — Virgem Maria! Vai me dar sonho ruim pela noite!

FIGURA 3 — Toma banho de água benta...

FIGURA 1 — O que eu não quisera é estar na pele dos pais...

FIGURA 2 — Não quisera eu ser elas!...

FIGURA 1 — Muita maldade que devem ter feito!

FIGURA 3 — É sim, família excomungada!

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FIGURA 2 — Não devia ter perdão mesmo!...

FIGURA 1 — Pois olhe, pra dar sentido ao papo, caso aqui duas cédulas em
como nasce de chifre!

FIGURA 3 — Suas duas mais uma em como vai nascê de rabo e chifre!

FIGURA 2 — Pois eu aceito, apostando que nasce com o pé virado...

FIGURA 1 — Valendo pros dois?

FIGURA 3 — Basta um. Se os dois nasce estropiado, ganha o que acertá em


um ou em outro...

FIGURA 1 — Se os dois nascê igual, o ganhador vence dobrado!

FIGURA 2 — Feito!

FIGURA 3 — Vamo deixá na mão de quem?

FIGURA 1 — Não mão do Zé Tropeiro.

FIGURA 3 — Vamo lá!

Casa de Osmar. Gertrudes e Rosa ajoelhadas. Estão em


adiantada gestação. Cercadas de santos e santas, bentinhos,
figas, estatuetas e medalhinhas. O defumador está aceso. O
Santo Homem adormecido na rede. Entra Cordeirinho
trazendo uma gamela cheia.

CORDEIRINHO — Meu pai!... Meu pai!...

SANTO HOMEM — Hum?!... Ah!... Deus te abençoe, meu anjo!...

CORDEIRINHO — Amém, meu pai!

SANTO HOMEM (Comendo) — Como vão minhas pecadoras?

ROSA — Rezando, meu santo!

GERTRUDES — Meu pai, não consigo ficá de joelho, dói tudo!...

SANTO HOMEM — Bom doer. Sinal que está incomodando o demo!...

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GERTRUDES — Dói em mim, meu pai!...

SANTO HOMEM — É que a penitência dá seu efeito! (Continua a comer.)

GERTRUDES — Queria sentar um pouco só!...

ROSA — Agüenta, Gertrudes!... Pra mim também dói, mas é preciso


agüentar!...

SANTO HOMEM — Peguem agora o rosário. Ânimo, minhas pecadoras.


Deus tem piedade... Vem, Cordeirinho... (Sai continuando a comer,
seguido de Cordeirinho.)

GERTRUDES — Não agüento mais, Rosa, vou sentar!

ROSA — Não faz isso que estraga toda a penitência! Ele falou!

GERTRUDES — Estou cansada!... Dele, das penitências, de tudo! Quero


descanso!...

ROSA — Agüente, Gertrudes. É ele que está te tentando!...

GERTRUDES — Que esteja... Eu sento... (Senta-se.) Ah, que bom!... Olha


como está meu joelho!

ROSA — Você vai se arrepender!... Ajoelha e reza...

GERTRUDES — Um pouquinho só... Há quanto tempo essa perseguição.


Danação já é isso!

ROSA — Desparate, Gertrudes!...

GERTRUDES — Não sei como é que você agüenta!

ROSA — Não quero é ver minha alma danada... Fazendo penitência vem
algum sinal de Deus. Tem de vir!

GERTRUDES — Há tantos mês que a gente espera... Todo dia isso, reza e
mais reza... Coisa de endoidecer a gente... Veio sinal é nas minhas
pernas que já não me agüentam em pé...

ROSA — Tem de vir!

GERTRUDES — Por mim já desisti... Quero dá a luz logo e, depois, chega!

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Que seja o que for!...

ROSA — Não posso... Eu não posso... Isso vai ter de sumi por milagre à
custa de muita reza... Mai vai tê de sumi!...

GERTRUDES — Cada dia maior, Rosa...

ROSA — Cada dia maior... Oh!... (Chora.)

GERTRUDES — Adianta choro... Já me consumi!... Acho que de tanto chorá


não sai mais água nenhuma desses olhos... Eu desisti. Não me interessa
mais...

ROSA — Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores...

GERTRUDES — Queria só que ele aparecesse agora!

ROSA — Não fala assim, Gertrudes!...

GERTRUDES — Queria sim!... Com seu “Oxexem-babambalá” —


Senhor das trevas! Sei o que eu lhe fazia!... Sei eu!...

ROSA — Ele tomou conta de ti inteira!...

GERTRUDES — Lhe estragava aquele corpo que tinha de ir correndo


arrumá outro se quisesse ter mulher!...

ROSA — Ave-Maria cheia de graças, o Senhor é convosco...

GERTRUDES — Tinha pavor dele... Um medo tamanho que me deixava


parada, agora tenho nojo.

ROSA — Bendito filho de vosso ventre, Jesus!...

GERTRUDES — Você se apavora ainda, não é? O que tinha de sofrê já


sofreu, menina... Vai tê medo mais de quê?

ROSA — Disso que vai nascê...

GERTRUDES — Se mata! Se mata!

ROSA — Hã!

GERTRUDES — Se mata, ué!... Se é o Cão, se mata!

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ROSA — Tem de vir sinal de Deus!

GERTRUDES — Vai esperando!

ROSA — É ele quem te dá descrença! Tem fé que vem o sinal e a gente se


salva!...

GERTRUDES — Quero lá sabê de salvação! Quero me livrá disso!... Quero


ir embora!...

ROSA — Rezo por nós duas!

GERTRUDES — Reza, anjinho!... Reza bem! Não era eu que tinha saudades
da visita do Cão!

ROSA — Não fala assim, Gertrudes!...

GERTRUDES — Eu nunca senti saudade do Tinhoso! Tinha pavor dele, só!


Você, não. Chegou a ficar na porteira pra ver se ouvia o canto...

ROSA — Por favor, Gertrudes!

GERTRUDES — Mas não foi mesmo? Você é que me contou!... Ficava tão
contente com o demo, não é, santinha?!

ROSA — Nunca disse isso!

GERTRUDES — Como é que não disse? Falou sim, pra mim. Aqui de
joelho, como de joelho a gente fica todos esses santos dias. Disse que
tinha saudade do demo! Disse que tinha!

ROSA — Não sabia o que estava dizendo!...

GERTRUDES — Não sabia!... Falava a verdade. E agora mente, medrosa, se


fazendo de anjo bom! Pecadora sou eu que falo que não agüento mais!...

ROSA — Somos as duas pecadoras... Escolhidas do Cão!...

GERTRUDES — Vai me dizer que você está esperando sinal do céu?

ROSA — Com fé, com muita fé!

GERTRUDES — Você está esperando que ele volte. Isso sim!

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ROSA — T’esconjuro, Gertrudes. Deus que me livre!

GERTRUDES — Te conheço, comadre... É muito dia, lado a lado, pensando


numa coisa só... Tua fé é que ele volte e te leve!

ROSA — Que Deus me proteja!

GERTRUDES — Mas não volta, Rosinha. Volta não. Fez o estrago e


retornou pras profundezas! Ai, que não agüento mais!...

ROSA — Gertrudes, vamo confiar no Santo Homem... (Tenta abraçá-la.)

GERTRUDES — Tira a mão de mim!... E o danado se mexe.... O teu mexe


também?

ROSA — Às vez, mé dá calafrio...

GERTRUDES (Cerrando os punhos e fazendo o movimento) — Eu queria


batê, batê, batê, até aquietá ele.

SANTO HOMEM (Aparecendo na porta) — De joelho! Nada de conversa!


Não tire o pensamento de Deus. Vai, de joelho!... (Gertrudes e Rosa
obedecem e rezam a Ave-Maria.)

Casa da fazenda.

AFRÂNIO — As ordens de seu pai são muito claras!

CIRO — Eu sei. Mas deixa pra lá...

AFRÂNIO — Responsabilidade é minha, seu Ciro!


CIRO — Tá certo, já ouvi! Agüenta a mão mais um pouco só!

AFRÂNIO — E o que é que eu digo no relatório?

CIRO — Embroma, Franinho. Dá um jeito... Se meu pai estivesse aqui, ele ia


me dar razão! Esse pessoal acha que está com o diabo em casa. Deixa
eles quietos... pra não engrossá.

AFRÂNIO — A plantação não pode esperar mais. Há seis meses que venho
protelando, atendendo a pedido seu. Agora não é mais possível, os
termos da carta são bem claros!...

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CIRO — Vai por mim, rapaz. Se a gente joga esse pessoal pra fora agora, vai
dar o maior bolo. Usa a cabeça. Agüenta eles lá, quietinhos. As crianças
vão nascê sem chifre nem nada, e pronto — a onda passa...

AFRÂNIO — Não estou interessado nisso. Meu dever é providenciar o


plantio.

CIRO — Teu dever é calar a boca e agüentar a mão!

AFRÂNIO — De fato, seu interesse é grande... Bem grande. Realmente não


sei qual seria a atitude de seu pai se ele soubesse o que se passou aqui...

CIRO — Olha aqui, ô causídico, que é que você está querendo dizer?

AFRÂNIO — O senhor bem que me entendeu!

CIRO — Se você se meter a escrever pra meu pai inventando coisas, não me
responsabilizo pelo teu corpo. Faz seguro de vida, Franinho, faz!

AFRÂNIO — Não se esqueça que tenho tudo na minha mão! Eu arrisco.

CIRO — Vamos deixar de frescura, vai. O que é que você quer finalmente?

AFRÂNIO — Mandar essa gente embora. Não pagam foragem, não


produzem nada. Só dão prejuízo...

CIRO — Manda embora. Está certo. Mas espera mais uns... dez dias, tá?

AFRÂNIO — Dez?

CIRO — Razoável, não é?

AFRÂNIO — Hum. Pra quem já esperou cento e noventa... arredondamos a


conta... Seu interesse por essas crianças é grande, não?

CIRO (Gozador) — Enorme!...

AFRÂNIO (Sorrindo) — Pois bem, dez dias. Muito obrigado, seu Ciro.
(Sai.)

CIRO — Filho de uma vaca!... Zé Toledo!... Ôi, Zé Toledo!

ZÉ TOLEDO — Pronto, seu Ciro!

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CIRO — Corre aqui, danado!

ZÉ TOLEDO — Às suas ordens!

CIRO — Como vai o exorcismo lá embaixo?

ZÉ TOLEDO — Vai o quê, seu Ciro?

CIRO — As coisas lá embaixo como é que andam?

ZÉ TOLEDO — Na mesma.

CIRO — Demora muito pra nascer?

ZÉ TOLEDO — Pelas contas de nascê gente, por esses dias. Mas nesse
causo, não sei!

CIRO — Esse santa aí parece que anda criando fama!...

ZÉ TOLEDO — Escolhido de Deus, seu Ciro... Homem milagroso t’ali!

CIRO — É. Ouvi falar dele até na vila... Não quero ajuntamento aqui nas
terras, viu?

ZÉ TOLEDO — Pode deixá. Ninguém quer isso não!

CIRO — Apareceu qualquer curioso, põe pra fora...

ZÉ TOLEDO — Deixe comigo! Essas coisas têm de ser resolvidas no


sossego da família!

CIRO — Pra garantia contrata mais alguns cabras, gente boa, que tope o que
vier!

ZÉ TOLEDO — Não tem precisão!

CIRO — Faz o que mando e não dê opinião!

ZÉ TOLEDO — Pois não, seu Ciro!

CIRO (Após pequena pausa) — Vocês acham mesmo que essas crianças são
filhas do diabo?

ZÉ TOLEDO — Deus nos livre de duvidá, seu Ciro! A coisa é séria. Só o

76
senhor vendo...

CIRO — E o que é que o santo pretende fazer?

ZÉ TOLEDO — Está esperando um sinal de Deus. Diz que Deus tem de se


manifestá mostrando que o demo foi vencido.

CIRO — E se não vier nenhum sinal?

ZÉ TOLEDO — Aí é que não sei... Acho que é esperá as crianças nascê e vê


de que jeito elas são!

CIRO — Coisa de louco!... Vou rezar por essa gente!

ZÉ TOLEDO — O senhor, seu Ciro!?

CIRO — E por que não? Pode contar que aqui em casa todos nós estamos
rezando pra livrar essas terras do demônio!...

ZÉ TOLEDO — É um conforto!

CIRO — Contrata os homens!

ZÉ TOLEDO — Hoje mesmo. (Sai enquanto Ciro fica pensativo.)

Casa de Osmar. Aurélia bate pilão cantarolando uma


melodia. Osmar deitado na rede.

OSMAR — Já três dias que Pedro não aparece!

AURÉLIA — Sinal que tem trabalho!

OSMAR — Acabou tudo, não é?

AURÉLIA — Só farinha e um resto de carne!

OSMAR — É. Apesar das rezas nada mudou!

AURÉLIA — Mas vai mudá. Tenho fé no Santo Homem!

OSMAR — Eu também. Só que ele consome mantimento, vote, que nunca


vi!

AURÉLIA — Mereceria bem mais pela ajuda que está dando!

77
OSMAR — Ninguém diz que não! Mas acabou tudo!

AURÉLIA — Pedro traz mais.

OSMAR — Felicidade ter o Santo Homem livrado ele do demo, porque


possesso do jeito que estava nunca que eu ia deixá ele saí de casa!

AURÉLIA — No fundo até que Deus tá ajudando!...

OSMAR — Só esse tal de sinal que não vem!...

AURÉLIA — Tarda mas acaba vindo!

ROSA (De dentro) — Mãe!... Mãe!...

OSMAR — É Rosa!...

GERTRUDES (De dentro) — D. Aurélia! Rosinha está com as dor!

AURÉLIA — Deus do céu! Chama o beato, depressa!

OSMAR (Correndo para fora) — Santo Homem! Rosinha está com as dor!
Santo Homem!...

AURÉLIA (Correndo para onde está Rosa) — Calma, Rosinha, que


terminaram teus padecimentos!...

ROSA (De dentro) — Ai, minha mãe!... Ai, minha mãe!

Entram Santo Homem, Cordeirinho e Osmar.

SANTO HOMEM — Puxa a reza, Cordeirinho! (Pegando o defumador com


ambas as mãos e levando-o até a altura da cabeça.) Vou com Deus!...
Vou com Deus!... Vou com Deus! (Entra no quarto de Rosa.)

GERTRUDES (Cruzando com o Santo Homem) — Tá com uns olhos


esbugalhados desse tamanho! Sua por tudo quanto é canto, e morde a
rede de saí sangue da boca! Não quero isso! Eu não quero isso!

CORDEIRINHO — Na salvação de quem está perdido...


Na recuperação do apodrecido!
Na verdade do que é o princípio,
Tudo é como é sem ter mudança!

78
Com a proteção de Deus,
Para livrar do mal!...

CORDEIRINHO (Aos outros) — É pra repetir!... T’esconjuro, Satanás!

TODOS — T’esconjuro, Satanás!

CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!

TODOS — T’esconjuro, Satanás!

CORDEIRINHO — Na salvação de quem está perdido!

TODOS — Na salvação de quem está perdido!

Ouve-se um som agudo que dura alguns instantes e logo


depois o choro de uma criança.

OSMAR (Saltando radiante) — Nasceu! Nasceu!

OSMAR (Caindo em si) — Nasceu!... Ai, meu Deus que nos proteja!

CORDEIRINHO — Na verdade do que é o princípio!

TODOS — Na verdade do que é o princípio!

Entra Aurélia que vai para perto de Osmar abraçando-o


pelas costas.

OSMAR — Então?

CORDEIRINHO — Tudo é como é, sem ter mudança!


TODOS — Tudo é como é, sem ter mudança!

AURÉLIA — Perfeitinho!... Um menino de se ver igual a qualquer um!

OSMAR — Não pode ser!

CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!

TODOS — T’esconjuro, Satanás!

OSMAR — Mas tem cara de gente?

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AURÉLIA — Tudo de gente!

OSMAR — Quero ver!

CORDEIRINHO — Com a proteção de Deus!

TODOS — Com a proteção de Deus!

CORDEIRINHO — Para livrar do mal!

TODOS — Para livrar do mal!

Entra o Santo Homem com uma criança envolta em panos.


Osmar corre até ele.

SANTO HOMEM — Não toque! Não toque! É coisa danada!

Osmar recua. Santo Homem deposita a criança no chão.

SANTO HOMEM — Que se for maldito sofra explosão! (Esparze cinzas do


defumador sobre a criança.) Que sendo maldito, grite e fuja na sua
forma verdadeira! (Derrama na testa da criança gotas de cera da vela.)

AURÉLIA — Santo Homem, por caridade!

SANTO HOMEM — Com pena do Cão? Isso é coisa amaldiçoada! Que não
se iludam com a forma, que o demo tem imaginação!

AURÉLIA — Perdão, meu santo!

SANTO HOMEM — Todo mundo em volta disso, em oração!

Escurece. Surgem as três figuras.

FIGURA 1 — Diz que nasceu com forma de gente, igualzinho, sem tirar nem
pôr...

FIGURA 2 — Então, tem coisa!

FIGURA 3 — Vamo pegá o dinheiro de volta!

FIGURA 1 — Qual o quê! Falta mais um pra nascê!

FIGURA 2 — Vai ser do mesmo jeito, que isso de diabo já tá me parecendo

80
invenção!

FIGURA 1 — Que nada, coisa de crédito... Ninguém perde por esperá!


Continua o dinheiro casado!

FIGURA 3 — Pois eu dobro a aposta, mas mudando o meu apostado. Pra


mim nasce gente que nem o primeiro.

FIGURA 1 — Pois está bem. Continuo com minha opinião, que homem que
é homem não volta atrás!

FIGURA 3 — Tá dizendo que não sou homem?

FIGURA 1 — Entenda como quiser!...

FIGURA 2 — Vamos lá, deixe a briga pra depois quando vier o resultado!

FIGURA 3 — Diabo sim! Diabo entre as pernas!... (Escurece.)

Casa de Osmar. Rosa diante da criança que está no chão


cercada de velas. Rosa acende uma a uma. Surge o Santo
Homem que a olha atentamente.

SANTO HOMEM — Que está fazendo?

ROSA — O que meu santo mandou.

SANTO HOMEM — Não bole no bicho! Deixe como está!

ROSA — Geme que nem gente, meu pai!

SANTO HOMEM — Pois deixe gemer que gente não é! Obedece às ordens
de Deus, pecadora, que o mal continua te atentando!... (Sai.)

Rosa olha atentamente para a porta, depois vai até os fundos.

ROSA — Gertrudes!

GERTRUDES (De dentro) — Que é?

ROSA — Como é que vai?

GERTRUDES — Não dá nem pra mexer... Preferia morrê, Rosa!

81
ROSA — Espera que vem alívio!

Volta para junto da criança. Depois de uns instantes de


hesitação pega a criança e leva-a ao peito. Canta baixinho.

ROSA — Senhora, senhora minha,


Senhora vou pentear
os cabelos da rainha
que mandou me procurar!

CORDEIRINHO (Entrando) — Virgem nossa que peguei em pecado!

ROSA — Psiu, Cordeirinho! Não fala, não fala!

CORDEIRINHO — Peguei em pecado!

ROSA — Cordeirinho, vem cá!

CORDEIRINHO — Vou contar pra meu pai. Peguei em pecado!

ROSA — Escuta, minha santa!... Vem, chega aqui!

Cordeirinho aproxima-se devagar.

ROSA — Cordeirinho, ele tá com fome. Com muita fome... e me olha de um


jeito que não sei dizê que não!

CORDEIRINHO — Meu pai disse pra não bulir com o bicho!

ROSA — Mas é que assim ele fica quieto e não geme daquele jeito que você
não gosta!

CORDEIRINHO — O pai disse que ele geme por causa das rezas. O Cão que
não quer deixar o corpo!

ROSA — É difícil de acreditá que uma coisinha dessa seja maldade... Se for,
Deus compreende e me dá perdão.

CORDEIRINHO — Como é que ele come assim?

ROSA — No peito.

CORDEIRINHO — Como é que ele come no peito?

82
ROSA — Que nem os bichos... Você nunca viu bezerro mamando?

CORDEIRINHO — Vi. Gente come como bicho... ou só ele que é bicho?

ROSA — Todo mundo de pequeno come assim...

CORDEIRINHO — Eu também?

ROSA — Não sei. Você é santinha!

CORDEIRINHO — Santinha não come?

ROSA — Não sei...

CORDEIRINHO — Se coisa ruim come, por que que santinha não havéra de
comer?

ROSA — Então, vai ver que comeu, assim, desse jeito!...

CORDEIRINHO — Mulher que eu vi assim com criança nesse lugar me


disse que era pra livrar o menino do sol! Não falou que era pra comer!...

ROSA — Vai ver, ela não estava comendo. Já tinha acabado.

CORDEIRINHO — É... Deixa eu pegar?

ROSA — Mas não conta pro santo!

CORDEIRINHO — Conto não!

ROSA — Fica em segredo pra nós duas!

CORDEIRINHO — Fica. Me dá!

Rosa dá-lhe a criança. Cordeirinho pega-a com cuidado.


Depois com medo.

CORDEIRINHO — Não é pecado?

ROSA — Você é abençoada. Nada te faz mal. (Cordeirinho sorri e


instintivamente embala a criança.) Agora, deixa ela onde estava.
Alguém pode aparecer!

CORDEIRINHO — Mais um pouquinho só!...

83
ROSA — Só mais um pouquinho! (Espera um instante.) Agora, põe lá...

AURÉLIA (Entrando) — Virgem nossa, que foi?

ROSA — Nada, mãe!..

AURÉLIA — Por que é que está pegando no bicho, Cordeirinho?

Cordeirinho apavora-se e olha para Rosa.

ROSA — Por pegá, mãe!

AURÉLIA — O beato disse pra não pôr a mão! Onde já se viu uma
inocentinha dessas brincando com o Cão!

ROSA — Vê bem, mãe! Olha pra isso e diz se consegue ter algum medo?

AURÉLIA — Põe isso lá! Põe isso lá!...

Cordeirinho assustada volta a colocar a criança no chão.

ROSA — Já não entendo, mãe!

AURÉLIA — Lembra bem das palavras dele — “sem ser visto continua o
demo atentando...” — Espera que vem sinal do céu!

ROSA — Tá demorando muito, mãe!

AURÉLIA — Espera que vem!

CORDEIRINHO — Foi ela que fez eu pegá!... Foi ela!


AURÉLIA — Vem, Cordeirinho!

Vão sair, quando se nota grande agitação fora. Entram


Osmar, Zé Toledo, que carregam Pedro ferido e logo atrás o
Santo Homem.

AURÉLIA — Meu bom Jesus!

OSMAR — Põe ele na rede!

ROSA — Que fizeram pro Pedro?

84
OSMAR — Quieta você!

ZÉ TOLEDO — Por sorte, encontrei ele estendido na beira do caminho. Só


os pés de fora. Légua distante...

AURÉLIA — Foi vingança daquela briga. Juro!

ZÉ TOLEDO — Ferimento é feio. Não é de bala comum!

ROSA — Ele vai agüentá?

SANTO HOMEM — Volta pra perto do bicho e reza! Esse pode ser o sinal!

OSMAR — Sinal do céu, meu santo?

SANTO HOMEM — Deus fere quem serviu a outro. Não aceitou Pedro de
volta. O demo aqui continua!

ROSA — Quem trata dele?

ZÉ TOLEDO — Precisa tirá a bala. Eu faço!

PEDRO — Mãe...

AURÉLIA — Fala, Pedro!... Conta, como é que foi?

SANTO HOMEM — É melhor que ele se aquiete...

PEDRO — Dessa vez não deu pra trazê nada!

AURÉLIA — Fica pra outra.

ZÉ TOLEDO — Agüentando bem, Pedro?

PEDRO — Meio difícil...

ZÉ TOLEDO — Faz força que te livro dessa!

OSMAR — Como é que foi, filho?

AURÉLIA — Vingança, não foi, Pedro?

PEDRO — Rosa!... Rosinha!...

85
ROSA — Pedro!

PEDRO — Diz pra eles. Pode contá!

Com um suspiro fecha os olhos.

OSMAR — Contá o quê, filho?

ROSA — É que Pedro não trabalhava pra trazer o que trazia!

AURÉLIA — Com’é que não trabalhava? Então, como trazia?

ROSA — Ele e mais outros partiam da vila e iam tirá as coisas dos
armazém...

AURÉLIA — Liga não, Osmar! É o Tinhoso que tá atiçando ela pra indispor
o irmão!

OSMAR — Como é que você sabe?

ROSA — Ele contou.

OSMAR — Pedro ladrão, bandoleiro que nem Chico Pemba?

AURÉLIA — Invenção do demo pra se vingá de quem livrô seu corpo!

PEDRO — É isso mesmo, mãe... É isso. Quero perdão!

OSMAR — O que é que você quer, excomungado?

PEDRO — Perdão vosso, meu pai!

OSMAR — Pois que morra excomungado e com minha maldição!

AURÉLIA — Osmar, a caridade!?

OSMAR — Caridade coisa nenhuma que pra mim já chegou! Tomei fartão
de coisa ruim nessa casa. Que tinha o peso de tudo quanto mais odeio
essa gente ruim que deixou o Cão tomá conta de tudo!...

ROSA — Todos nós comemos do que ele trazia!

OSMAR — Aí tem porque está tudo danado!... Devia pôr fogo nessa palhoça
e terminá de vez com esse cancro!

86
SANTO HOMEM — Tudo está em danação! Só o sangue lava!

ROSA — Pedro está mal, pai. Cuide dele e, depois, dê o castigo!

OSMAR — Pra mim que morra que de vergonha já estou farto. (Sai.)

SANTO HOMEM — Em verdade vos digo que só sangue é capaz de


purificar! E vai rir do profeta? Ali o Demo! Naquele canto! Ali na
escuridão! Vejo os olhos dele. Não ri do profeta. É ordem do mais forte!

AURÉLIA — Minha Santa Mãe, cadê o Demo?

SANTO HOMEM — Em tudo! Ninguém chegue pra mim, ninguém chegue!


Venço o danado em nome do que há de sagrado! Cordeirinho, minha
santa. Único arrimo do profeta... Cordeirinho! Só em sangue se purga o
grande pecado! (Vai saindo.)

ROSA — Cuide de Pedro, Zé Toledo!

SANTO HOMEM (Voltando-se) — Ajoelhe perto do fruto maldito, mulher!


Ajoelhe e fique!

JEREMIAS (De fora) — Ó de casa!... Ó de casa!...

OSMAR (De fora) — Vá entrando, irmão! Ali é a porta do inferno, pode ir


entrando... Entre no inferno!

AURÉLIA (Indo até a porta) — Entre, Jeremias... mesmo que em má hora!

Entra Jeremias trazendo às costas uma trouxa.

JEREMIAS — Você está aí, Zé Toledo?... Teus homens... Chegaram lá em


casa e me puseram pra fora!

ZÉ TOLEDO — Te falei que tava pra acontecê!

JEREMIAS — Dê um jeito de eu voltá, Zé Toledo!

ZÉ TOLEDO — Como posso? Sou empregado...

Passagem de tempo. Todos ajoelhados. Osmar, Rosa, Pedro


na rede, Cordeirinho e Jeremias. Cordeirinho puxa reza como
na cena anterior.

87
CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!

TODOS — T’esconjuro, Satanás!

CORDEIRINHO — Na salvação de quem está perdido!

TODOS — Na salvação de quem está perdido!

CORDEIRINHO — Na recuperação do apodrecido!

Ouve-se o mesmo som agudo da cena anterior idêntica e logo


após o choro de criança! Mais alguns instantes e um grito de
mulher.

JEREMIAS — Que será que foi?

CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!

TODOS — T’esconjuro, Satanás!

CORDEIRINHO — Tudo é como é, sem ter mudança!

TODOS — Tudo é como é, sem ter mudança!

AURÉLIA (Surgindo) — O sinal!... É horrível, minha gente, o sinal!

CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!

JEREMIAS — Que sinal?

AURÉLIA — Nem queira ver, Jeremias!


ROSA — Como é que ele é?

AURÉLIA — É o sinal!

Cordeirinho pára de puxar a reza. Todos se entreolham.


Estão apavorados.

SANTO HOMEM (Surge na porta com uma criança em uma cesta coberta
com um pano) — E o profeta tinha razão. Veio o sinal. São Filhos do
Cão!

JEREMIAS — Quero ver!

88
OSMAR — Cuidado, Jeremias!

JEREMIAS — Me deixa ver!

Santo Homem estende os braços, como se oferecendo a cesta.


Jeremias aproxima-se, levanta o pano. Tem um
estremecimento. Uma a um se aproximam.

ROSA — O pé!...

SANTO HOMEM — A marca não deixa o que duvidar. O pé é a marca. Pé


virado — marca do Cão!

ROSA (Instintivamente vai para junto do outro menino entre as velas) —


Mas esse não tem nada! Esse é bom!

SANTO HOMEM — Os dois. Os dois são coisa ruim. Não é gente, é bicho!

ROSA — O meu não! Não é filho do Cão!

AURÉLIA — Enfrenta, menina. Tamo no fim da provação!

ROSA — Enfrento, enfrento sim! Não tinha nada de diabo. É filho de um


vaqueiro de seu Feliciano... Ele passava por aqui, nós se encontrava...

OSMAR — Cala pra não pôr mais vergonha!... Fecha a boca dessa possessa!

ROSA — Juro que foi!... Foi um vaqueiro!

AURÉLIA — Não jura em falso, excomungada! Tua palavra já não vale!

SANTO HOMEM (Terrível) — Filhos do Cão os dois!... Os dois!

ROSA — O meu não é!... O meu...

Santo Homem abafa-lhe a boca com a mão.

SANTO HOMEM — A mulher pra fora. Que fiquem os homens!

Rosa, Aurélia e Cordeirinho obedecem. Santo Homem coloca


a cesta ao lado da outra criança. Olha fixamente para Osmar
e Jeremias.

89
SANTO HOMEM — Aos mais velhos cabe a solução! Sinal mais claro não
podia haver! O que há de pior entre as coisas desse mundo e do outro se
fincou nessa terra por obra desses dois bichos que aí estão!

JEREMIAS — Que Deus nos perdoe!

SANTO HOMEM — Só há perdão no sacrifício. Mostrar pro bem que o mal


se dá extermínio!... Só em sangue se lava o pecado!... É sangue o que
falta pra purificação!

OSMAR — Então, meu santo?

SANTO HOMEM — Meu conselho é sangrá os dois largando ao relento pra


que a própria natureza lhes dê sumiço. Garanto que fica livre a terra de
danação! Terra e gente purificada. O que é do mal, ao mal retorna com a
bênção de tudo que é santo!

JEREMIAS — Sangrar, meu pai?

SANTO HOMEM — É conselho de quem muito viu e aprendeu e muito bem


já fez e muita gente já salvou!

OSMAR — Sangrar os dois? Mas só um que tem a marca!

SANTO HOMEM — Não se iluda com as artes do Tinhoso. Os dois têm a


mesma procedência. Pra se livrar desse peso que toma conta da terra, só
sangue!... É o que eu digo!

JEREMIAS — E quem vai ter de sangrar?...

SANTO HOMEM (Fica um instante pensativo) — Quem deu vida a


tamanho monstro! Cada uma o seu. Sem dor. Em obediência ao que está
escrito!

OSMAR — Meu pai, já não sou homem de pensamento. Minha cabeça


esvaziou. Não sou de muito pensá. Sou homem da terra. Me sumiu todo
o entendimento...

JEREMIAS — É o que também sinto, meu pai!...

SANTO HOMEM — O demo escolheu esse pouso pra sua perversidade. Dei
meu conselho e solução. É dado ao homem escolher seu caminho. Viver
com o pecado, na danação presente e futura, ou dar fim às artes do
Senhor Negro! No mais, só posso deixar minha bênção. É vossa

90
resolução!

OSMAR — Já não tenho entendimento!

SANTO HOMEM — É o que me cabe. Novos aflitos me esperam. Muito já


fiquei por ser caso de extrema gravidade. Chegamos ao fim. Abençôo e
me despeço!

JEREMIAS — Não deixe a gente agora!

OSMAR — Não vá, Santo Homem! Pelo que é sagrado vos peço!

JEREMIAS — Por tudo quanto há de mais sagrado!

SANTO HOMEM — Ficando, a solução seria dada por mim... A vontade do


sacrifício deve partir de quem o faz. Adeus!... Pensem com o coração
voltado pro alto! Só o sangue purifica. Só o sangue lava... só o sangue!
Cordeirinho!

CORDEIRINHO (Na porta) — Meu pai!

SANTO HOMEM — Vamos voltar pra estrada. Ganhar mundo novamente.


Terminada a missão. Agradece a Deus!

CORDEIRINHO — A Deus agradeço, meu pai!

SANTO HOMEM — Vem, minha santa. Repete comigo pra que essas almas
se encontrem na dúvida. — Só o sangue purifica!

CORDEIRINHO — Só o sangue purifica, meu pai! (Vão saindo.)

SANTO HOMEM — Só o sangue lava!


CORDEIRINHO — Só o sangue lava, meu pai! (Saem.)

PEDRO — Então, que é que resolvem?

OSMAR — Cala, excomungado!

JEREMIAS — Compete a nós escolher!

OSMAR — De qualquer jeito não há mais vida como era.

JEREMIAS — Mas podemo ficar de alma limpa.

91
OSMAR — Quem fere?

JEREMIAS — Quem deu à luz. Ele falou.

OSMAR — Os caminhos do mistério são tão intrincado que a gente não


entende.

JEREMIAS — É seguir o conselho.

OSMAR — Vou falar com Aurélia.

JEREMIAS — Fale, fale sim!

OSMAR (Chamando) — Aurélia!

JEREMIAS — Quisera saber que grande mal cometemos.

OSMAR — Algum por certo, irmão.

AURÉLIA (Entrando) — O Santo Homem vai indo... Não há rogo que o faça
ficar!

OSMAR — Deu por finda a missão.

AURÉLIA — Como finda?

OSMAR — Diz que só em sangue se purifica.

JEREMIAS — É preciso sangrá os bicho e deixá ao relento... pra que a


natureza dê destino...

AURÉLIA — Então?
OSMAR — Não sei. Estou vazio, Não sinto e não penso.

AURÉLIA — A mim também parece ter deixado de ser gente...

JEREMIAS — Dê opinião, D. Aurélia.

AURÉLIA — Quem sempre viveu com Deus, com ele deve continuar. Quem
nasceu de forma estranha tem de sumi sem deixá traço. O Santo Homem
tem razão, pecado grande que fizemos só tem explicação!...

OSMAR — Pois então está resolvido!

92
PEDRO — Pai!

OSMAR — Já disse pra calá, danado! Foi esse quem trouxe a desgraça!

PEDRO — Trouxe com o que vivê!

AURÉLIA — Danação você trouxe!

OSMAR — Se firmando nas pernas pode tomar seu rumo. Suma no mundo
que minha maldade me separou dos filhos que já não tenho.

AURÉLIA — É agüentar a provação com fé e confiança. Pelo menos se


morre em paz.

GERTRUDES (Surgindo, andando com dificuldade) — Ouvi o mandado do


santo. É preciso matá. Nem quero ver o bicho!

JEREMIAS — Calma, filha. Resolução está tomada?

OSMAR — Por mim, tá.

AURÉLIA — É ordem do beato.

GERTRUDES — Só matando eu me livro. Só matando.

JEREMIAS — Será feito.

AURÉLIA — Vou falar com Rosa.

JEREMIAS — E quando vai ser?

OSMAR — Quando?
AURÉLIA — Quando?

GERTRUDES — Amanhã mesmo, quando o sol estiver nascendo. Nem que


precise me arrastar...

OSMAR — Amanhã. Junto à Pedra Grande. Com o perdão e a graça de Deus


que nos proteja no desentendimento!

Passagem de tempo. Jeremias, Osmar e Aurélia dormem no


chão. Nota-se a ausência de Pedro, Rosa e o filho. Aurélia
acorda e esfrega os olhos. Levanta-se. Olha para a cesta
onde está o filho de Gertrudes e persigna-se. Notando a

93
ausência dos filhos vai até a porta de entrada. Não vendo
ninguém, nervosa vai até a porta do puxado. Mais uma vez
persigna-se. Volta e procura acordar Osmar e Jeremias.

AURÉLIA — Osmar... Osmar... Jeremias!

Os dois acordam estremunhando.

OSMAR — Hum...

JEREMIAS — Manheceu?

OSMAR — Quisera dormir sem paradeiro...

AURÉLIA — Deram sumiço!

OSMAR (Quase alegre) — Os bicho sumiram?

AURÉLIA — Só o de Rosa. Ela e Pedro devem ter sumido com ele!

JEREMIAS — Malfeito!

OSMAR — E agora?

AURÉLIA — Sei não.

JEREMIAS — Vão soltá o demo no mundo!

OSMAR — Não podem ter saído há muito.

AURÉLIA — Acho que não. Fiquei acordada um tempo antes de dormi.

JEREMIAS — Dá tempo de alcançá. Vamo atrás deles!

AURÉLIA — É.

OSMAR — Pra quê? Vai vê que é vontade que seja assim...

AURÉLIA — Deixá os dois perdido por aí, tomando conta do Cão? É


maldade, Osmar.

OSMAR — Escolheram o deles. Tão com o demo no corpo. Ninguém pode


fazer coisa nenhuma...

94
JEREMIAS — Isso vem estragá tudo! Ninguém mais se livra, Osmar. O
santo disse que era pra acabá com os dois!

OSMAR — Vão se consumir por si. Não tiveram fé!

JEREMIAS (Apontando a cesta) — E esse?

OSMAR — Tu é quem sabe...

JEREMIAS — Qual é o conselho?

AURÉLIA — É o marcado. Creio não ter dúvida.

JEREMIAS — É... Melhor acabá de vez.

OSMAR — E se o que fugiu volta, Aurélia?

AURÉLIA — Pra que, Osmar? Já acabou tudo mesmo!

OSMAR — É. É verdade. Resolvido, Jeremias?

JEREMIAS — É o que se manda, não é?

AURÉLIA — Pois.

GERTRUDES (Na porta) — O sol já saiu inteiro. Quem me ajuda?

AURÉLIA (Persignando-se) — Ela me dá calafrio, Osmar!

OSMAR — Rosa e o dela sumiram, mais Pedro!...

GERTRUDES — E por que o espanto? Rosa foi à procura do Cão. É isso que
ela queria, não adiantava escondê. Ela mais o irmão, almas danada! Me
ajuda, pai.

Jeremias ampara-a. Ela pega a cesta e olha para todos com


ar resoluto.

JEREMIAS — Ocês vêm?

OSMAR — E por que não? O gesto é nosso.

GERTRUDES — Vamo então!

95
Formam um grupo, estáticos. Somente os rostos; estão
iluminados.

GERTRUDES — Aqui.

JEREMIAS — Aqui?

AURÉLIA — Que Deus nos entenda, aceita e perdoe.

GERTRUDES — É em nome do bem. Acabá com a danação. Terminá com o


malfeito, com força e sangue!

OSMAR — Que os anjos aceitem e te guiem o braço.

JEREMIAS — Como é que se faz?

AURÉLIA — Que se faz como?

JEREMIAS — Deve ter o jeito certo de fazê essas coisas!...

OSMAR — O que importa é acabá com o que não se quis!

AURÉLIA — Deve ter reza feita pra ocasião!

JEREMIAS — O beato devia, ter ficado pra dar explicação!

GERTRUDES — Ele sabe o que faz. Se não ficou é que não há precisão.
Importa é feri e deixá que o vento consuma com o resto. E apagá isso
tudo de vez.

OSMAR.— Mas assim, como coisa à-toa?!

AURÉLIA — Quem sabe, um oferecimento...

JEREMIAS — Um oferecimento me parece bem!

GERTRUDES — Quanto menos tempo se perde, melhor!

OSMAR — Sabe algum, Aurélia?

AURÉLIA — Eu não.

JEREMIAS — Então?

96
AURÉLIA — Talvez palavra dita de coração tenha o mesmo efeito que reza
própria...

OSMAR — Deve ter, que o que vale é a intenção!

JEREMIAS — Quem diz?

GERTRUDES — Modo melhor é ir depressa!

OSMAR — Aurélia. Aurélia fala, que é criatura boa e Deus escuta.

GERTRUDES — Vamo logo então!

AURÉLIA — Pois olhe, que me escapa qualquer pensamento...

JEREMIAS — Diz alguma coisa...

AURÉLIA (Pensa alguns instantes. Depois, de mãos postas) Se há alguém


me ouvindo... Se há algum anjo bom entendendo o que eu digo, eu falo
que... eu digo... eu penso que tendo o... Foi o demo que tomou conta da
gente boa e trabalhadô, algum pecado grande... algum pecado foi
cometido. Um Santo Homem deu instrução e... na obediência, mostramo
nosso arrependimento. Foi tanta coisa, meu anjo!... Coisa que ninguém
nunca imaginou que pudesse ter... É humilde que digo, aceite esse feito,
meu anjo... É prova da escolha... Escolhemo Deus, acabando com o
demo... desgraçando o Cão e... e... e num sei mais. Estou todo meia sem
saber... que se aceite a intenção. Amém!

TODOS — Amém!

Estão apáticos. Gestos lentos. Um respeito novo nas relações


de um com outro. Aos poucos improvisa-se um ritual.
JEREMIAS — E agora?

GERTRUDES — Dê-me a arma, meu pai! (Jeremias entrega-lhe a peixeira.


Gertrudes deposita a cesta no chão.) Todo mundo em volta, de joelhos!
(Eles obedecem.) Rezem! (Silêncio.) Rezem!

OSMAR — T’esconjuro, Satanás!

OS OUTROS — T’esconjuro, Satanás!

AURÉLIA — É tudo o mesmo como é, sem ter mudança!

97
Os OUTROS — É tudo o mesmo como é, sem ter mudança!

Gertrudes beija a lâmina da arma.

AURÉLIA — Com o perdão e a bênção de Deus Todo-Poderoso!

Gertrudes fere. Entreolham-se.

JEREMIAS (Com uma calma inadmissível) — Agora é deixá no vento.

GERTRUDES — Naquelas moita...

AURÉLIA — Pode ser bom deixá uma cruz junto!

OSMAR — Deixa não. Cruz é boa coisa. Larga assim que o mundo mesmo
dá sumiço...

Gertrudes pega a cesta e com o auxílio de Aurélia leva-a


para longe.

JEREMIAS — Foi feito o mandado!

OSMAR — Foi. A gente vai vivendo e nem imagina o que pode ser obrigado
a presenciá...

JEREMIAS — É... Intrincado isso tudo...

OSMAR — Nem jeito de chuva...

JEREMIAS — Nem jeito...

OSMAR — Tá sendo uma queda de nunca mais se acabá... Tudo sumindo e


se perdendo aos pouco...

JEREMIAS — Pois é.
Voltam Gertrudes e Aurélia.

GERTRUDES — Pronto... Me ajuda pai, que me dói.

Jeremias ampara-a. O grupo vai saindo: Osmar olhando o


céu, mão espalmada sobre os olhos, Aurélia rezando
baixinho, Gertrudes, séria, apoiada no braço de Jeremias.

Surgem as três figuras.

98
FIGURA 3 — Então, como é que é?

FIGURA 1 — Ainda nada, irmão!

FIGURA 2 — Notícia nenhuma mesmo?

FIGURA 1 — Pois. Tudo se calou!

FIGURA 3 — Tava dizendo. Caímo no conto!

FIGURA 1 — É esperá!

FIGURA 3 — Qual esperá, compadre. Eu aqui já retiro meu dinheiro, que vai
perdendo o valor!

FIGURA 1 — Continuo apostando que o segundo nasce esquisito!

FIGURA 2 — Eu, por mim, já tou com ele. Esse negócio tá mais é com jeito
de peta!

FIGURA 1 — Cada um manda na sua crença...

FIGURA 2 — Ora, irmão, tanto mês pra nascê esse infeliz. Nem mesmo filho
de Capeta é tão enrustido!

FIGURA 3 — Vamo procurá o Zé Tropeiro pra descasá o apostado, vamo!

FIGURA 1 — Já que é o desejo...

FIGURA 3 — Ora, não?! Nem sei como fui acreditá no conto!

FIGURA 1 — Continua assim que um dia o demo te aparece!

FIGURA 3 — T’esconjuro. Deixe pra lá. Viram? O Coriolano escreveu lá do


sul. Tá arrumado. Conseguiu emprego em obra...

FIGURA 2 — O Coriolano, é?...

Casa de Osmar. Aurélia bate pilão entoando uma cantiga.


Jeremias e Osmar estão lidando com um enxadão. Gertrudes,
na rede. Aurélia detém-se um instante olhando fixamente
para um ponto.

99
AURÉLIA — Que movimento de homem é aquele lá fora.

OSMAR (Levanta-se e vai em direção à porta) — Sei não... É o Zé Toledo...


o dr. Afrânio... Chi! Seu Ciro também!

JEREMIAS — A jagunçada toda!

ZÉ TOLEDO (De fora) — Compadre!

OSMAR — Vá chegando!

ZÉ TOLEDO (Surge, armado de um rifle. Envergonhado) — Olá, Osmar!

OSMAR — Que foi?

ZÉ TOLEDO — É que a gente, sendo empregado, tem coisa que é obrigado a


fazê.

AURÉLIA — Que coisa?

Entram Ciro e Afrânio. Todos os fitam atentamente.

AFRÂNIO — Bons-dia.

TODOS — Bom-dia!...

CIRO — Tudo bom?

OSMAR — Vivendo...

AURÉLIA — Primeira visita do seu Ciro... Vai perdoá o jeito... Pega um


banco pra seu Ciro e pra dr. Afrânio...
CIRO — Não se incomode...

OSMAR — Fiquem a gosto!

AFRÂNIO — Nossa visita, infelizmente, não é agradável...

AURÉLIA — Nem diga isso...

CIRO — É... Mas é a verdade!

OSMAR — Vá falando, que a tudo já nos acostumamos!

100
AFRÂNIO — É melhor ser rápido. Essas coisas quanto mais depressa se
resolvem, melhor!

AURÉLIA — Deve ser...

CIRO — Eu vim dizer pra vocês que tanto meu pai, quanto eu, respeitamos
as crenças de qualquer um... Não sou palmatória do mundo. Assim meu
pai me criou...

OSMAR — Conosco tem sido sempre muito bom, seu Ciro!

CIRO — Vocês também. Trabalhadores, direitos, etc. Mas o problema é que


tem coisas que a gente não pode aceitar.

AURÉLIA — É?

CIRO — É... O que aconteceu aqui foi.. . foi muito desagradável...

AURÉLIA — Nós que o diga. Foi coisa de arrepiá!

CIRO — Vocês agiram como acharam que deviam...

OSMAR — Como manda os livro e a boca dos santo!

AFRÂNIO — Claro. Mas perante a lei é crime.

AURÉLIA — Por quê?

CIRO — É a lei.

JEREMIAS — Tamo na lei de Deus. Seguindo ensinamento de quem sabe


mais e dos mais velhos...
CIRO — Não discuto isso... Mas pra lei dos homens é crime!

AURÉLIA — Mas tem de acabá com o demo quando ele aparece... Não é a
primeira vez...

AFRÂNIO — O que o seu Ciro quer dizer é que ele podia mandar prender
vocês. Chamar os soldados e acabar com a vida de vocês... Mas isso não
interessa a ele...

OSMAR — O senhor é quem sabe!

CIRO — E não me interessa mesmo... A coisa é muito complicada pra se

101
ficar discutindo... Não quero polícia nessas terras, não quero ver
ninguém preso... Mas vocês têm de compreender que... eu tenho um
pensamento, um modo de ver as coisas... Vocês têm outro...

AURÉLIA — O senhor é cuidado, tem instrução... Nós temo de pedi socorro


a quem sabe mais que nos...

Gertrudes durante todo o tempo observa Ciro detidamente.

CIRO — Eu não mando prender vocês, mas também não quero mais vocês
aqui. É melhor irem embora já!

OSMAR — Ir embora?

CIRO — É. Já!

AFRÂNIO — Se não, somos obrigados a chamar os soldados...

JEREMIAS — Mas, seu Ciro...

OSMAR — Quieto, Jeremias. Casa é minha...

CIRO — Vamos acabar isso desse jeito que é melhor.

AURÉLIA (Imóvel) — É...

AFRÂNIO — Compreenderam?

OSMAR (Imóvel) — É...

Zé Toledo arma o rifle.

AURÉLIA — Que é isso, compadre! Não precisa isso não...

ZÉ TOLEDO — Tou no meu trabalho, comadre!

OSMAR — Não somo nós que vamo criá arreliação!

CIRO — Pra você é a melhor saída. Vão pra outro lugar, onde quiserem...
longe de minhas terras.

JEREMIAS — Eta que tem caminho, seu Ciro... Suas terras são um mundo!

CIRO — Outros já se foram e estão bem em outro lugar.

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AURÉLIA — É.

OSMAR — Não se amofine não!... Aurélia vá vendo os trastes...

JEREMIAS — Levanta, Gertrudes...

OSMAR — Deixe a rede que pesa no caminho.

AURÉLIA — É melhó deixá...

OSMAR — Vamo levá o que é de mais precisão...

AURÉLIA — E a caixa de vó Ana?

OSMAR — Pois. De lembrança!

AURÉLIA (A Ciro e Afrânio) — O restante vamo deixando, que só estorvo...

AFRÂNIO — Como quiserem.

OSMAR — E os santos. Vamo levá os santos!

AURÉLIA — Gertrudes, ajuda um pouco. Tá podendo?

GERTRUDES — Tô...

JEREMIAS — O que é meu tá pronto.

OSMAR — Aqui tive muito dia de gozo, seu Ciro. Muita aperriação
também... Tava mais ou menos bem dividido... Mas... O homem lá sabe
o que lhe pode acontecer, não é mesmo?
CIRO — É... Osmar, conselho que eu lhes dou é que saindo daqui procurem
esquecer o acontecido. Os outros não vão entender e vocês vão ter
complicação...

AURÉLIA — Quem vai querê ficá falando nisso, seu Ciro? Quem dera poder
esquecer!...

OSMAR — São coisas que acontecem pra uma família e enche ela de
vergonha!

AFRÂNIO (Puxando Ciro pelo braço) — Bem... Até um dia!...

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OSMAR — Até um dia!

CIRO (Deixando duas notas) — Que não levem a mal e... um bom futuro pra
vocês!

AURÉLIA — Amém.

OSMAR — No mais, seu Ciro... Obrigado por tudo. Diga pra seu pai
também quando ele voltá... Nunca fizemo desrespeito... Sinto que o que
aconteceu, acontecesse em terras vossas...

CIRO — Não, não. Não tem nada!

AURÉLIA — Até mais ver então...

CIRO — Até mais ver!

AFRÂNIO — Vamos, Zé.

ZÉ TOLEDO — Eu sinto muito, compadre...

OSMAR — Ora, camarada velho! Um dia, quem sabe, a gente se encontra. O


compadre anda sempre por esse mundo afora...

ZÉ TOLEDO — Pois. Até mais ver então!

Zé Toledo, Ciro e Afrânio saem.

OSMAR — Tudo pronto, gente?

AURÉLIA — Tudo.

JEREMIAS — Pé no mundo!...

GERTRUDES — Me ajuda, pai. (Um a um vão saindo.)

Estrada. Santo Homem e Cordeirinho surgem caminhando.


Santo Homem de estandarte na mão.

SANTO HOMEM — E sofro, Cordeirinho! Sofro com o mal do mundo...

CORDEIRINHO — Pois, meu pai.

SANTO HOMEM — Sofro aqui no fundo! Viu, Cordeirinho, as artes do

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demônio? Mas só em sangue se apaga o que o demônio faz. Só em
sangue! Muito mau o mundo, Cordeirinho. É falta de fé! Não se acredita
mais no que diz o profeta!

CORDEIRINHO — Acredita sim, meu pai!

SANTO HOMEM — Acredita não!

CORDEIRINHO — O meu pai é santo e forte e vence o demo onde estiver.

SANTO HOMEM — Ah, isso é verdade! Se pudesse eu mesmo sangrava


aqueles dois bichos! E o demo me atentando com os dois bichos!... Você
é meu arrimo, Cordeirinho!

CORDEIRINHO — Com a graça de Deus, meu pai!

SANTO HOMEM — Ninguém mais acredita no profeta... Vem gente na


estrada, Cordeirinho?

CORDEIRINHO — Não, meu pai!

SANTO HOMEM — Nem poeira?

CORDEIRINHO — Nem, meu pai!

SANTO HOMEM — É tanta andança, é tanta aflição pelo mundo, que os


olhos nem enxergam... Vem mesmo não, Cordeirinho?

CORDEIRINHO — Não!

SANTO HOMEM — Não, meu pai!

CORDEIRINHO — Não, meu pai!

SANTO HOMEM — Repete minha oração do desprezo!

CORDEIRINHO — Desprezo pelo mundo no que se vê.


Desprezo pelo que de bom pode parecê.
Crença no céu e só no bem da palavra santa!

SANTO HOMEM — Me dê as tábuas, Cordeirinho. Que Deus me manda


mais uma verdade!...
FIM

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