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GIANFRANCESCO GUARNIERI
Ato I
FIGURA 1 — Diz que o homem vai ficá dois anos lá pelo além-mar!
FIGURA 3 — Pois...
FIGURA 2 — Também não sei como é que deixa... Pra cuidá de terra precisa
ter entendimento...
FIGURA 1 — O pai deixou ele lá não foi pra cuidá não. Foi castigo. Zé
Toledo é que conta...
FIGURA 1 — Então não? Esses ricos têm disciplina. Diz Zé Toledo que o pai
deu-lhe uma tal arenga que o rapaz se viu tonto. O velho garantiu que
preferiu ver o filho morto que sustentá estroinice dele no sul!
FIGURA 3 — Não é bem ruim não. É seco só. Quer tudo nos direito.
Homem de confiança do patrão precisa ser assim: senão, perde a
freguesia.
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FIGURA 1 — Foi coisa mandada, é?
FIGURA 2 — Prenderam?
FIGURA 1 — Diz que foram três balaço no bucho que deixou um rombo só.
FIGURA 3 — Pois. Mas diz que ele quase que ainda pega um!
FIGURA 3 — Morre um vem outro... Esses cabra são duro. Não leva
desaforo...
FIGURA 2 — Eu admiro!
FIGURA 3 — Com uns cem desses, isso não era desse jeito não!
FIGURA 1 — Ah!
FIGURA 3 — Negócio era soltá uns desses decididos por esses mundão aí
pra dentro... Queria ver o Feliciano ir pras Europa!...
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SANTO HOMEM — Cordeirinho!...
CORDEIRINHO — É...
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CORDEIRINHO — É, meu pai!
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CORDEIRINHO — ... as boca da fornalha!
CORDEIRINHO — Pra eterna... Vem gente, meu pai!... Ai! Vem gente na
estrada!...
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CAMPONÊS (Respeitoso) — Bênção, seu Santo!
CAMPONÊS — Amém!
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SANTO HOMEM — Quem tem roupa já tem muito em vista de quem anda
nu. O homem quando pede é que nada tem. Quem tem pra não pedir
pode se dar ao bem de dividir!
CAMPONÊS — Bom! Pra não dizer que sou avarento e pouco cristão, aqui
lhe dou meu pito, meu santo, que é só do que disponho!
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AURÉLIA (Depois de uma pausa) — Pelo visto, Santa Luzia mentiu!
OSMAR — Tem sido bem. Outros nem resistir puderam. Despiram a alma.
OSMAR — Vote! Que quando ocê começa a magicá desgraça, não há o que
segure. Isso me desalenta. Quem volta do trabalho precisa descanso de
corpo e de cabeça. Mulher lamuriosa envenena mais que raiz danada!...
AURÉLIA — Descansa.
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AURÉLIA — Já parou.
OSMAR — Já é hora dos dois se recolhê. Não adianta perdê tempo com o
burro. Velhice não se cura...
Pausa.
OSMAR — Hum!
AURÉLIA — Sem querê te estragá o descanso... mas não gosto do que vejo!
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AURÉLIA — Então me diz, por que é que vem diminuindo a colheita?
OSMAR — Assim porque tem de ser! Falta de esforço e braço é que não é!
Que tá querendo dizer? Que há moleza no trabalho? Só porque um
cristão pede tempo pra descanso, e mesmo assim quando tá escuro de
nada mais podê fazê?! Arre! Como termina um filho de Deus,
arruaçando em casa, com mulher por inimigo!
AURÉLIA — Se acalma. Não foi isso que eu falei. Que tem razão eu sei!
OSMAR — É certo que tem razão! Ou pensa que terra também não cansa,
que é só plantá, plantá! Pra vendê precisa aumento. Mais terra e
semeadura! Mais braço que é o que não tem!
AURÉLIA — Assim quis porque daqui não se tira nada. Amaldiçoado que
está o sítio...
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AURÉLIA — Pois fique esperando a cura. De antes os dias azíago eram só
alguns. Agora tão aumentando, tomando conta do ano. Não há dia que
não seja mau. Nenhum! Nem os mais santificado...
OSMAR — É ter e dester. Quanto mais bobajada tiver na cabeça, mais difícil
agüentá. Qualquer sinalzinho de coisa ruim vira marotice de alma do
outro mundo, qualquer besteira em feitiço! Fé na Virgem e olho pra
frente, que enquanto houver saúde e crença em Deus, se vive em paz e
com honra.
PEDRO — O que se ganha pelo bem feito, pai! Farinha... Charque... peixe
seco... arroz, mais farinha... arreios! Tem mais, até latinha colorida!
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(Descobre algumas latas de conserva.)
PEDRO — Isso mesmo! Tantinho de pó, mistura com água e tem leite pra
sustento por um mês.
PEDRO — Desperdício!
OSMAR — Mostra!
PEDRO — Prove a senhora também que lhe dá força e beleza! Leite que vem
do pó faz bem pra saúde. Cura de tudo: bexiga, maleita e terçã, ferida,
ciúme, inveja e até mesmo veneno de cobra!
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AURÉLIA — Palavroso ele é!
OSMAR — Me dê que eu provo. Mas veja lá, se for pilhéria vai se haver
comigo!
AURÉLIA — Falei!
PEDRO — Segredo, meu pai. Compromisso que tomei com quem me deu a
indicação!
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PEDRO — Pra todo mundo não dá. O homem lá tá agindo no descaso. Se
descobre interesse, dana a diminuir o trato. Não é bom que se saiba.
PEDRO — Pouquim!
OSMAR — De quê?
PEDRO — Cana.
OSMAR — Cana?
PEDRO — Perdão, meu pai, mas não posso. Jurei em Deus não revelá.
PEDRO — Lembrança...
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AURÉLIA — Mas o que está acontecendo? Festa de que, meu filho?
AURÉLIA — ‘Doideceu!
AURÉLIA — Melhor deixá pra Rosinha. Quem é velha não precisa ser
catita!
OSMAR — Como é que não? Os velho também precisam ter pra onde olhá!
AURÉLIA — Velho não olha, lembra! Deixa pra Rosinha, filho... Quem sabe
ajuda pra arrumá namorado!
AURÉLIA — Agouro coisa nenhuma! Você está com a cabeça no céu, Pedro.
Dá presente é gostoso — pra quem recebe e quem dá, mas é dinheiro
que se perde. Comida está certo... Mas arreio e pano é desperdício, sinal
de cabeça avoada. Põe tento na vida, vende isso! É o melhó presente que
pode me dá!
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OSMAR — Os arreio eu também acho!
OSMAR — Vem.
ROSA (Como todos os dias, vai até à rede e faz cafuné no pai)
— Ele não está bom não.
ROSA — Meu?
PEDRO — É.
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OSMAR — Mas o que foi? O que é que deu?
AURÉLIA — Essa não sabe fazer outra coisa! Beijo ou pancada, cai no
pranto!
PEDRO — Diz!
AURÉLIA — Foi bom trazê o rosário, mas o resto você vai vendê!
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GERTRUDES — Eu explico, meu pai! Eu explico!
JEREMIAS — Tem nenhuma explicação! Tem pancada que te dou até rachá
esse corpo maldito!...
JEREMIAS — Quero ouvi nada! Peçonhenta! Que é que você fez dos ensino
que te ensinei? Que é que você fez?
JEREMIAS — Não nega que eu fico louco! Não nega que eu acabo te
matando agora com essas mão! Pois se foi tu mesma que disse! Falá pra
estranho de tua vergonha, deixando teu pai nas inocência... Miserenta!...
Falô ou não falô?! Foi ou não foi procurá a comadre Marieta?! Diz lá!
Foi ou não foi?
JEREMIAS (Apertando-a) — Pois foi, não é? Que é que foi fala pra
comadre? (Sacudindo-a) — Que é que foi falá?
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pari minha desgraça! Que é que você foi falá? Que tava prenhe! Que
tava prenhe né, desgraçada?! Diz que não!
GERTRUDES — Não falei nada! Comadre não podia saber! Não podia
saber!
JEREMIAS — Pára de berrar que nem possessa! Fala pra teu pai! Que
aconteceu com minha filha?...
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Gertrudes!...
Fazenda de Ciro.
Aparece Ciro de short e camisa esporte. Bate bola no chão —
uma pequena bola de borracha —, fazendo largos gestos de
jogador de basquete. É quase um balé. Enquanto joga
murmura:
CIRO — Fica zangadinho não! Calma, autocontrole!... Isso! Agora fala. Que
é que você quer?
AFRÂNIO — É urgente!
AFRÂNIO — Requerimentos.
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AFRÂNIO — É a parte que seu pai deixou a seu encargo. Já redigi os
documentos. O senhor poderia, ao menos, assiná-los!
AFRÂNIO — Então?
AFRÂNIO — A mim.
CIRO — Deixa de onda!... Você aqui é mais que o patrão!
CIRO — Problema teu. O velho não deixou tudo contigo? Pois se vire! Por
falar nisso, minha mesada já atrasou!
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AFRÂNIO — No escritório eu acerto com o senhor...
AFRÂNIO — É compreensível.
CIRO — Divertir como? Não tem nada nessa porcaria de terra! Me sinto
num túmulo, eu!
CIRO — É, Franinho! Nesse Brasil, fora Rio-São Paulo, pode jogar tudo no
lixo... Escuta, vamos fazer um trato. Coisa honesta. Você solta uma nota
pra mim e eu me arranco. Te deixo em sossego. Antes do velho chegar,
eu volto e fico quietinho, como se nunca tivesse saído! Bem bolado,
hein?!
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CIRO — Ô durão! Deixa isso pra lá... Na hora da herança, juro que não te
esqueço! Fale que eu te ameacei, que disse que ia te matar!
CIRO — Aí está seu equívoco. Nunca falei tão sério em minha vida!
AFRÂNIO — Vamos lá, seu Ciro! Daqui a mais algum tempo, o senhor
poderá viajar pra onde quiser. Seu pai deixou tudo programado. E só ter
mais um pouco de paciência...
CIRO — Não vem falando com esse ar paternal comigo não, hein! Não
gosto disso não! Que é que eu sou, bebê agora?
CIRO — Coisa velha, negócio de estudante. Agora não tem cabimento. Sou
um homem sério, ouviu? Um rapaz formado. Ó! (Mostra o anel de
rubi.) Somos colegas, Afrânio! Você não vai tratar um colega desse
jeito, vai?
AFRÂNIO — É um gozador!
CIRO — Chi! Deixa isso pra lá... Doido sim, safado nunca!
AFRÂNIO — Bem, com sua licença, tenho muitas coisas ainda para tratar!
CIRO — Vai, meu anjo. Vai com Deus... Não precisa ter esse formalismo
todo comigo não, viu? Economiza!
AFRÂNIO — Ah, seu Ciro! Nós dois poderíamos transformar essa fazenda!
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CIRO (Com ênfase, gozador) — Ai que ótimo! Os dois “juntos”!
CIRO — Vocês não abusem comigo! Foi fazer queixa sim senhor. Dizer que
eu atirei em você!
ZÉ TOLEDO — Mas que é isso, seu Ciro! Não disse nem fiz nada de mal
pro senhor!
CIRO — Ei, cabra burrão! Mas você é simpático, peste!... Liga não, Zé
Toledo, ando nervoso! É muito sertão pra meu gosto! (Pequena pausa.)
Quer saber? Próxima viagem minha pro sul, levo você!
CIRO — Umas casas de festa que tem por lá!... Cada mulherão, seu moço,
que você ia cair só de sentir o perfume!
CIRO — Coisa de sonho, Zé Toledo!... Você entra na buate e tem torneira pra
tudo... Você abre uma, sai pinga. Sai tanta que chega a formar um
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riacho! Abre outra, sai vinho, limonada... O que você quiser, tem!
CIRO — Qual! Eles não ensinam nada... Quis aprender a voar, eles disseram
que eu podia: levei um tombo que quase morro!
ZÉ TOLEDO (Com ar superior) — Também, seu Ciro, idéia sua: voar! Pra
isso tem máquina!
CIRO — Como você é burro, rapaz! Lá todo mundo voa. Pensa que vão andá
pela rua pra cansar as pernas? Voa. Tem uma ginástica pra isso... Eu
estou treinando. Um dia te ensino.
CIRO — Vai por mim, rapaz! Imaginou você voando por aí, o sucessão que
ia fazer!
CIRO — Por essas e outras é que vocês não saem desse atraso! Precisa ter
coragem!... Um dia te ensino, pode deixar! (Zé Toledo ri.) Não é pra rir
não. É sério!... Ó, corre lá e manda a Tolentina me arrumar alguma coisa
pra beber. Até bebida o Afrânio está trancando! Vai, topeira!
CIRO — Avança pela área sozinho. Só tem o goleiro pela frente. Avança
mais, finta Duílio, atira... Perdeu!... Ruim de bola está aí! Frente a frente
com o goleiro, não marcou!... (Com a boca faz barulho de torcida.)
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AURÉLIA — Não sei pra que! Quem tem posses não devia se dar a essas
esquisitices. Isso é bom pra tempo de estio, quando não tem mesmo o
que pôr na boca. Nunca vi sabor mais sensaboroso!...
OSMAR — O que me espanta é que não azede! Esse feijão! Se deixá solto
no vento que é coisa pura, depois de dia, tá com uma fedentina que
ninguém pode, enquanto que trancafiado nessa latinha sem ar se
conserva por mês e ano. Esses cabra não sabem mais o que inventar!...
AURÉLIA — Isso me deu uma desinteria que eu nem conto. Agora é que as
tripas estão se acomodando!
OSMAR — Tudo é costume... Sem ter costume fui comer carne fresca, que
comia da seca que era mais do meu gosto e porque da outra também eu
nem via. Pois olhe, umas tontura, uma água fria pelos peito, uma zoada
nas orelha, que foi atentá onde estava e caí de comprido. Quase me fui,
não é, Aurélia?
PEDRO — Deixe estar que aqui de comer ninguém tem muito costume.
ZÉ TOLEDO — Que esperança! Não que falte vontade, mas mais parece a
casa dos mistério — tudo trancafiado a treze chaves. Entrá na casa
propriamente dita ninguém pode que é pra molde de não sujar. Só
Tolentina e Maria que tem permissão pra passá da soleira. E mesmo
assim, tem cômodos onde não entram. Naquele só põe o pé D. Santa!
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bom gênio não...
AURÉLIA — Pois seo Feliciano nem bem tinha esfriado o corpo da mulher,
não pôs D. Santa em casa, num desrespeito de monstro?
AURÉLIA — Mas tem aquelas que se diz e se comprova, isso foi castigo.
Onde já se viu ocupar o lugar da defunta sem o defunto sem o devido
prazo?
PEDRO — É.
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ROSA — Hum?
ROSA — Nada...
AURÉLIA — Vá sim!
AURÉLIA — Uma rezinha de berne, coisinha à-toa que pedi pra ele, não foi
capaz de fazê. Ficou os berne e mais triste ainda o animal...
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PEDRO — É! Pra gente só farinha de mandioca mesmo! (Sai atrás da irmã.)
AURÉLIA — Zé Toledo, não me canso de dizer pra Osmar, esse sítio tem
coisa. Nada vai nos seus direito.
ZÉ TOLEDO — É sim, comadre. Eu que ando por aí tudo, vejo com esses
olhos. Não há lugar onde haja coisa certa. Ou é o plantio que não vinga,
ou os animal que definha, ou a estia... Uma coisa e outra, tudo leva pra
descrença.
AURÉLIA — Então, é coisa ruim que tá em tudo. Bem que diz: “Do ano mil
passa, mas ao dois mil não chega”.
AURÉLIA — Não, comadre. O que piora vem piorando mais. O pior de hoje
é mais pior que ontem...
AURÉLIA — Não falo por falar, falo por saber. Tem coisa ruim nessa terra,
mais ruim do que se pode imaginar. E olhe que comigo é difícil de ter
engano!
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OSMAR — Eu também que não sou descrente, mas ficá falando a todo
instante é coisa que dá nó no peito. Um cristão vive assombrado. Vamo
rezá. Pra rezá tou aqui. Mas não fica falando... isso pra mim alimenta os
mau esprito!
ZÉ TOLEDO — Pode ser!... Mas o que eu sei que vem de ruim é coisa bem
desse mundo!
OSMAR — Quer dizer que aos pouco ele põe todo mundo pra fora!
OSMAR — Mais essa!... É, Aurélia! Acho que você é quem está com a
razão! Parece que tem uma trava na vida da gente.
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OSMAR — Que mau, Aurélia?
AURÉLIA — Sabe-se lá? Vem dos antigo. Parentes nossos devem ter feito
muito estrago. Os que vem depois é que paga...
OSMAR — Se for assim, ainda que bem, que pra neto nosso poucas conta
vão sobrá!
Ouvem-se tiros.
OSMAR — Pedro!...
Repetem-se os disparos.
AURÉLIA — Não se intrometa que com as coisas como andam uma bala
ainda te pega!
AURÉLIA — Santa Mãe dos Aflitos! Rosa, Rosinha! Vem pra dentro!
ROSA (Entrando alarmada) — Esse foi tão pertinho que cheguei a ver o
clarão!
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PEDRO — De que lado estão atirando?
OSMAR — O quê?
OSMAR — Se explique!
AURÉLIA — Endoidou!
ZÉ TOLEDO — Que nervosia é essa, menino? Brinca com isso não, que é
perigoso.
ZÉ TOLEDO — Tenho.
Outro tiro.
AURÉLIA — Depois coisa nenhuma! Ninguém vai ficá aturando bala sem
saber porquê.
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PEDRO — É soldado que tá aí fora, pronto!
PEDRO — Pois.
OSMAR — Pois vai enfeiar desde já. (Num repelão arranca a arma do
filho.) Agora fala. Fala!
PEDRO — É a verdade!
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JEREMIAS — Ó de casa!
OSMAR — Se achegue!
PEDRO — Pensei!
AURÉLIA (À Rosa) — Ei, minha filha, deixa voltá a cor que já passou!
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OSMAR — Calma, homem, se aquiete. Que é que andou vendo?
Ato II
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SANTO HOMEM — Que Deus abençoe... Vem, Cordeirinho. Encontramos
pouso de muita caridade.
AURÉLIA — Se assente.
AURÉLIA — É pra já. Querendo pernoite, não se acanhe, meu santo. Daqui
a pouco chegam os outros pra janta...
AURÉLIA — É do defumador!
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SANTO HOMEM — Devia temer, minha filha.
AURÉLIA — De temor já definhei! Digo sempre pra meu homem que aqui
tem coisa, mas ninguém parece acreditar. Precisava vir um beato pra
confirmar meus sentimentos.
SANTO HOMEM (Com certo orgulho) — Tem ouvido, minha filha! Com a
graça dos Céus tenho conseguido acabar com agouros e desgraças! Já
fiz muito velho encontrar mocidade, muita criança voltar a sorrir. É do
bem que me alimento!
Cordeirinho adormeceu.
AURÉLIA — Então, me pegue essa casa sob a sua proteção, meu santo!
(Vendo a menina adormecida.) Pobre anjo, dormiu. Posso imaginar a
canseira!
Entra Rosa.
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AURÉLIA — Pede a bênção pro Santo Homem, Rosa!
SANTO HOMEM — Com a graça de Deus. Que não se prenda por minha
presença. Continue nos seus afazer.
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SANTO HOMEM — O que, pra mãe, deve ser felicidade.
SANTO HOMEM (Pequena pausa) — Se não for muito pedir, poderia tirar
um nadinha disso aí que prepara?
ZÉ TOLEDO — Pois foi vergonha que deu nele de contá todo o acontecido.
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OSMAR (Entrando) — Aurélia... (Pára ao ver o Santo Homem.)
OSMAR — Minha mulher falou por mim, beato. Que a casa seja sua.
OSMAR — Pois olhe, meu santo, que é até bom ter quem conheça os
mistérios. Soubemos agora de coisas que fazem arrepiar.
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PEDRO — Ou bem inventado.
OSMAR — Não põe suspeição que quem falou é gente de todo o respeito.
ROSA — Hein?
AURÉLIA — Vai pra dentro, Rosa! Essa não pode ouvir falar nessas coisas
que se derrama.
ZÉ TOLEDO — Pois diz que é... O danado do Cão resolveu ter o direito da
pernada. Diz que de vingança por causa da profissão; não quer deixar
moça donzela!
PEDRO — Qual mistério, meu santo! Essas danadinhas não podem explicar
o sucedido e põem a culpa no Cão. Quando não é o Cão é soldado!
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OSMAR — Verdade, meu pai?
AURÉLIA — Tem descanso, minha filha, que com um Santo Homem dentro
de casa, não há Tinhoso que se atreva!
PEDRO — Não sei pra que! Seu Feliciano só tem filho homem. Será que o
demo tem desses gostos?
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AURÉLIA — Tranca essa língua, desgraçado.
SANTO HOMEM — Pois parece. Esse moço fala com um destempero, com
orgulho de coisa ruim.
SANTO HOMEM — Pois pede perdão por ser soberbo. Já não se entende as
coisas sagradas, quanto mais os artifícios do Cão. Ajoelha e pede perdão
pra Deus, que ainda pode haver salvamento.
AURÉLIA — Tão vendo? Eu não dizia que tinha coisa ruim? Não dizia?
SANTO HOMEM — Ouçam essa mulher. O que ela diz tem sentido. Aurélia
tem boa luz. Vem, Cordeirinho, vamos rezar ao relento enquanto a janta
não vem. (Sai, imponente, com a menina.)
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ROSA — Quem contou isso da Gertrudes?
ZÉ TOLEDO — Quem falou mesmo foi Marieta, amiga dela. Gertrudes foi
lá procurar desabafo. Daí é que se ficou sabendo dos outros casos
também.
OSMAR — Bem vi que a agonia do Jeremias não era natural. Pobre homem!
ROSA (Aos poucos vai caindo de joelhos. Num sussurro.) — Que perca
minha alma, que perca meu siso! Não agüento mais esse peso em meu
corpo. Com o perdão vosso, meu pai e minha mãe! Com o perdão de
meu irmão!
AURÉLIA — Virgem minha! Que foi, Rosa?
ROSA — Com o perdão de Deus! Não posso agüentar o peso. Não posso,
minha mãe!
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PEDRO — Confia em nós. Fala o que te aconteceu!
Todos obedecem.
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Enquanto rezam, Cordeirinho caminha pela casa pegando o
que pode e enfiando na saca. Durante o Padre-Nosso.
SANTO HOMEM — Pras trevas é teu retorno! Deixa esse corpo que não te
pertence. São tudo almas do Senhor! É ordem de quem é mais forte.
Faça o que te mando, Satanás!
ROSA — Fui mulher do Cão! Que leve minha alma mas me livre desse
peso!
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ROSA — Meu santo, meu santo, me livre desse peso!
ROSA — O que toma conta do meu corpo, que não me deixa dormir! Peso
em mim inteira, Santo Homem, que já não agüento mais!
ROSA — Fui mulher do Cão, meu pai. Só peço perdão!... E que me livrem
desse peso!
ROSA — Que nem com Gertrudes, meu pai. Que nem com ela!
AURÉLIA — Diz que é invenção. Diz que é invenção do susto que você
sentiu, diz!
OSMAR — E você não se meta que é também presa do demônio! Tudo aqui
tá na mão do Tinhoso!... Mas, ah! desgraçado, que te roubo o conforto...
(Saca da peixeira.)
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ROSA — Fere, meu pai!... Fere de vez!
SANTO HOMEM — Alto! Que isso tudo é manha do Cão! É ele que tá
mandando no seu gesto! Deixe a arma!... Largue a moça!... Descanse...
Pra tudo se põe remédio!
ROSA (Horrorizada) — Pedro!... Pedro!... Ói, Pedro, que não tem graça
nenhuma!
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DIABO — Não há tranca que me impeça! O mundo é meu! Ó de casa!
DIABO — Não é preciso ter susto! Bem sei que minha menina está em casa
sem ninguém. Esse Pedro está bem longe... Não há ouvido por perto,
que tudo foge ao meu encanto!
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DIABO (De um salto agarra-a pelos ombros) — Vamos parar com isso!
Vamos parar! (Empurra-a.)
ROSA — Não dou minha alma. Minha alma não dou! Não conto! Não conto!
ROSA — Não conto. Nem que me mate, não conto! Me deixa em paz! Vai
embora, por caridade!
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Oiteguê...
DIABO — Menina boba! Satanás não te quer mal. Espera o dia de ter tua
alma. Satanás quer só ser obedecido. Sendo obedecido é tão doce quanto
um anjo! Satanás foi anjo, sabia? Mas faz tempo!... Quantos anos você
tem?
DIABO — Obedece!
DIABO (Ri) — Sabe que pra quem vive nesse fim de mundo você até que é
bem jeitosa, sabe?
ROSA — Num sei não! Ai, meu Deus, que isso é sonho mau que tou tendo!
DIABO — Obedece!
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DIABO — Ah, não! Cantar você vai!
DIABO — Continua...
ROSA — Mas...
DIABO — Continua!
DIABO — Bom. Viu como não é difícil? Você tem boa voz. Canta bem! Não
te faço mal nenhum, está vendo? Dizem por ai que o diabo faz e
acontece... Conversa! Não é o diabo, não!
ROSA — Não.
DIABO — Eu sei que você não entende nada! (Rosa no máximo da confusão
de sentimentos sorri.) Sorriu! Ah, meu pai, ela sorriu! Não fosse eu o
diabo, você chegaria a me comover!
DIABO — Já está amansando, hein!... Vida besta, não é, bem? Mas não ligue
não. Isso já é assim faz tempo. Vida de vocês há quatrocentos anos que
não muda... Deixa pra lá! (Acariciando-a procura desabotoar-lhe o
vestido, ela o olha apavorada retraindo-se.) Que foi? Quietinha!...
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Sempre a mesma coisa; nunca nada que dê prazer, nada de novo nunca...
nunca nada de novo... (Suas mãos encontram-lhe o seio. Ela estremece
olhando-o fixamente. Depois deixa pender a cabeça no ombro dele. Ele
acaricia-a levemente, com ternura.) Isso... Quietinha!
Acendem-se as luzes.
PEDRO — Como é que você pode saber que ele é o diabo, Rosa?
AURÉLIA — Pois não contou tintim por tintim, minha pobre filhinha!
ROSA — Não tinha jeito de gente. Também pensei numa certa hora. Mas
não! Era coisa do outro mundo. Todo ele era diferente... Me arrepiava
inteira toda a vez que ele chegava!...
PEDRO — Que nem a outra! Que nem Gertrudes! Queria saber que trança
andaram vocês fazendo!
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PEDRO — Rosa, te juro que ninguém te faz mal, fala a verdade!
ROSA — Pode não acreditar, meu irmão! Meu sofrimento só eu que sei. E o
peso que tenho em meu corpo não desejo pra pior inimigo!...
OSMAR — Ai, ai, ai, ai! Que eu já não me entendo, que eu já não sei o que
faço!
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PEDRO — Não me confunda com o demo, meu santo. Não tenho diabo
nenhum!
SANTO HOMEM — O Cão fala pela tua boca. Pela tua boca quer evitar que
eu tire ele do corpo da infeliz. E enquanto eu não tirar a infeliz vai sentir
esse peso que é o peso do demo. Meus filhos, Deus guiou meus passos
até essa casa. Não vou ter descanso enquanto não puser o Tinhoso pra
fora, pras suas bandas de treva... Que alguém me acompanhe até a outra
desditada...
OSMAR — Por favor, meu santo... Você também, Zé Toledo! Não é preciso
que se saiba o que aconteceu... Não quero minha filha na boca do
mundo...
AURÉLIA — Santo Homem! (Ele pára e volta-se.) Que trato é pra dá pros
dois?
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no rapaz.
AURÉLIA — Fica com isso, meu filho! Não se preocupa, nós pomos esse
Tinhoso pra fora! (Vai até o de fumador e aviva o fogo.) Fiquem os dois
aqui, procura rezá. Rezem com fervor! Vem, meu velho, deixa eles!...
OSMAR — Ah, Aurélia, que isso tudo é demais pra mim!... Como se não
bastasse, vão acabá com o arrendamento!... Tá tudo caindo, Aurélia!
AURÉLIA — Deixe estar, a chegada do beato foi sinal do céu! Vem, meu
velho, vem!
ROSA — Fala assim não, Pedro, que vem castigo! Eu é que sei!...
PEDRO — Rosinha, minha irmã, agora você pode falar... Eu sei que você
deve tá achando que tudo isso é verdade, que veio o CÃO e fez o que
fez. Mas não pode ser, confia em mim!
ROSA — Não pode dizer mentira só pra te dar calma, Pedro. Foi como eu
falei. Você não acredita?
ROSA — O Santo Homem falou. Esses beatos estão sempre com Deus.
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PEDRO — Ei, Cordeirinho, vem cá!
CORDEIRINHO — Não!
PEDRO — O quê?
ROSA — Quando ele deixou de vir, senti falta. Tinha medo que ele viesse e
também queria que ele viesse.
ROSA — Nunca mais, Pedro. Nunca mais. Dessa eu não saio viva. Minha
esperança só é livrar minha alma. Do resto não espero nada!
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PEDRO — Assim, com músculo, nervo, igual ao corpo de gente, sem
diferença?
ROSA — Não é não! Se fosse gente igual a nós te garanto que eu sabia. É
diferente: no jeito, na fala!... Os olhos dele, já de longe, começavam a
metê medo.
ROSA — É que ele tá em você também! Ele é que não te deixa acreditá!
ROSA — Fala.
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PEDRO — Cangaço sem fardamento. Sem espelhinho nem estrela. Só peito
pra fazê. Enfrentamos três tiroteio...
ROSA — Se comia o que sempre se comeu. Desde o tempo que entrou essas
latas em casa é que tudo foi piorando!
ROSA — Ele atenta de todo jeito. Reza bem, Pedro, que você está na
perdição!
ROSA — Ai, Pedro, esse peso!... Ai!... é como se fosse saí a alma pela
boca!...
OSMAR — Pois. As coisas vêm numa desordem, e depois a gente nota que
elas têm um entrelaçamento. Mas só depois de já ter acontecido...
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sorte. Quem fica com Deus tem o descanso garantido.
OSMAR — O que me agonia é saber porque é que Deus tendo criado tudo
tão certinho resolveu dá vez pro Tinhoso. Devia ter capado ele de
início...
OSMAR — Que o quê!... É que sou burro, não entendo as coisas!... Não
entendo e quero entender!... Eis onde me atrapalho!
AURÉLIA — Isso nem é coisa que se pergunte. Se diabo existe é que Deus
criou...
AURÉLIA — Sei lá que não peço satisfação pro Altíssimo. Ele lá sabe o que
faz. Já no meu pobre entendimento acho que é pra ter como castigá a
gente...
AURÉLIA — Mas não castiga “Ele”, Deus! Castiga com o diabo. Deus
sendo bom, não pode fazê mal... Mas é preciso fazê mal pra dá castigo.
Então, Ele criou o diabo...
OSMAR — É!... Teu pensamento tem justeza. Mas em assim sendo como é
que a gente tem de lutá contra o diabo?
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OSMAR — Mas se o diabo castiga por mandado de Deus, tem de agüentá o
castigo!...
OSMAR — Ora não, que o que digo tem cabimento! Veje o negócio do
Pedro. Se os soldado tivesse vindo pra castigá ele, e a gente fosse lutá
contra os soldado, quem tava no errado era a gente, que o castigo vinha
em cumprimento da lei. E lutá contra os soldado era luta contra a lei.
AURÉLIA — Dá um abafamento!...
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OSMAR — Deus permita!
OSMAR — Vê? A gente cuida dos filhos nas medidas do possível. Ensina
pra eles o que aprender — que é pouco mais útil — cresce eles no
esforço... Vem o Cão e toma conta. Mas ainda bem que foi ele!
OSMAR — Ainda bem mesmo!... Que se fosse qualquer pilantra que tivesse
abusado de filha minha, não quero pensá nem na desgraça que ia ser.
Enterrava o ferro na barriga dos dois. Abafava a pouca-vergonha em
sangue!...
AURÉLIA — Gente só toma conta do corpo. O Cão quer ficar com a alma. É
muito pior... É que tem coisa que você nem imaginou!
AURÉLIA — O Cão tem artes pra tudo. Em tanto tempo não fez ainda um
tantinho assim de toda a maldade que pode fazer...
OSMAR — Então é o mesmo que me passou agora, pois mais medonho não
pode haver...
OSMAR — Só pode ser bobagem. Que coisa assim pra nenhum cristão
acontece...
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AURÉLIA — E a Virgem Maria?!
OSMAR — Mas lá foi coisa Santa... Não há coisa ruim, nem fantasmas, que
tenha tal poder...
OSMAR — Não, não. Não é possível. Besteira que a gente pensa. É isso
tudo que deixa a gente sacudido... Pobre da infeliz! Coisa assim não
acontece. Até pro horrível tem limite!
AURÉLIA — Será que tem? Tanta coisa estranha acontecendo. Vou falá com
ela direitinho. Tem coisa que ela não explicou!
AURÉLIA — Rosinha!
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AURÉLIA — Preciso falar com Rosa. Vai rezar mais pro canto, que o que eu
tenho de saber não quero que ninguém mais ouça!
OSMAR — Tudo que você diz é importante, Cordeirinho... Não é que nem
essas crianças que nem sabe bem o que fala...
OSMAR — Sabe que perto de você, minha santa, chego a sentir vergonha!
Diz pra mim que isso tudo passa, diz!
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OSMAR — Tomara que ele volte logo.
CORDEIRINHO — Eu tomo conta dele. Não deixo senti frio nem calor...
Escondo ele do sol... Dia de chuva ponho ele quietinho na saca...
CORDEIRINHO — Meu pai disse que não reza ele, que é heresia... Meu pai
não gosta dele. Diz que o sagrado não é brinquedo!...
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OSMAR — Aurélia!
OSMAR — Me explica por quê? Por que não vem esse Tinhoso pra cima de
mim, largando mãos dos meus filhos?
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Ato III
FIGURA 1 — Pois sim senhor. Não satisfeito em roubar a honra das moças,
resolveu dar perpetuidade e criá família!
FIGURA 2 — Mas se o Cão resolveu ser pai, é porque tem tenção de cuidá
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dos filhos. Não tem t’esconjuro que valha...
FIGURA 3 — Pagava não sei o que pra ver o jeito das crianças...
FIGURA 3 — Vai ver que todas as crianças que tem aleijão por aí, é por arte
do Tinhoso...
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FIGURA 2 — Não devia ter perdão mesmo!...
FIGURA 1 — Pois olhe, pra dar sentido ao papo, caso aqui duas cédulas em
como nasce de chifre!
FIGURA 3 — Suas duas mais uma em como vai nascê de rabo e chifre!
FIGURA 2 — Feito!
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GERTRUDES — Dói em mim, meu pai!...
ROSA — Não faz isso que estraga toda a penitência! Ele falou!
ROSA — Não quero é ver minha alma danada... Fazendo penitência vem
algum sinal de Deus. Tem de vir!
GERTRUDES — Há tantos mês que a gente espera... Todo dia isso, reza e
mais reza... Coisa de endoidecer a gente... Veio sinal é nas minhas
pernas que já não me agüentam em pé...
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Que seja o que for!...
ROSA — Não posso... Eu não posso... Isso vai ter de sumi por milagre à
custa de muita reza... Mai vai tê de sumi!...
ROSA — Hã!
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ROSA — Tem de vir sinal de Deus!
GERTRUDES — Reza, anjinho!... Reza bem! Não era eu que tinha saudades
da visita do Cão!
GERTRUDES — Mas não foi mesmo? Você é que me contou!... Ficava tão
contente com o demo, não é, santinha?!
GERTRUDES — Como é que não disse? Falou sim, pra mim. Aqui de
joelho, como de joelho a gente fica todos esses santos dias. Disse que
tinha saudade do demo! Disse que tinha!
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ROSA — T’esconjuro, Gertrudes. Deus que me livre!
Casa da fazenda.
AFRÂNIO — A plantação não pode esperar mais. Há seis meses que venho
protelando, atendendo a pedido seu. Agora não é mais possível, os
termos da carta são bem claros!...
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CIRO — Vai por mim, rapaz. Se a gente joga esse pessoal pra fora agora, vai
dar o maior bolo. Usa a cabeça. Agüenta eles lá, quietinhos. As crianças
vão nascê sem chifre nem nada, e pronto — a onda passa...
CIRO — Olha aqui, ô causídico, que é que você está querendo dizer?
CIRO — Se você se meter a escrever pra meu pai inventando coisas, não me
responsabilizo pelo teu corpo. Faz seguro de vida, Franinho, faz!
CIRO — Vamos deixar de frescura, vai. O que é que você quer finalmente?
CIRO — Manda embora. Está certo. Mas espera mais uns... dez dias, tá?
AFRÂNIO — Dez?
AFRÂNIO (Sorrindo) — Pois bem, dez dias. Muito obrigado, seu Ciro.
(Sai.)
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CIRO — Corre aqui, danado!
ZÉ TOLEDO — Na mesma.
ZÉ TOLEDO — Pelas contas de nascê gente, por esses dias. Mas nesse
causo, não sei!
CIRO — É. Ouvi falar dele até na vila... Não quero ajuntamento aqui nas
terras, viu?
CIRO — Pra garantia contrata mais alguns cabras, gente boa, que tope o que
vier!
CIRO (Após pequena pausa) — Vocês acham mesmo que essas crianças são
filhas do diabo?
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senhor vendo...
CIRO — E por que não? Pode contar que aqui em casa todos nós estamos
rezando pra livrar essas terras do demônio!...
ZÉ TOLEDO — É um conforto!
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OSMAR — Ninguém diz que não! Mas acabou tudo!
OSMAR — É Rosa!...
OSMAR (Correndo para fora) — Santo Homem! Rosinha está com as dor!
Santo Homem!...
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Com a proteção de Deus,
Para livrar do mal!...
OSMAR (Caindo em si) — Nasceu!... Ai, meu Deus que nos proteja!
OSMAR — Então?
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AURÉLIA — Tudo de gente!
SANTO HOMEM — Com pena do Cão? Isso é coisa amaldiçoada! Que não
se iludam com a forma, que o demo tem imaginação!
FIGURA 1 — Diz que nasceu com forma de gente, igualzinho, sem tirar nem
pôr...
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invenção!
FIGURA 1 — Pois está bem. Continuo com minha opinião, que homem que
é homem não volta atrás!
FIGURA 2 — Vamos lá, deixe a briga pra depois quando vier o resultado!
SANTO HOMEM — Pois deixe gemer que gente não é! Obedece às ordens
de Deus, pecadora, que o mal continua te atentando!... (Sai.)
ROSA — Gertrudes!
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ROSA — Espera que vem alívio!
ROSA — Mas é que assim ele fica quieto e não geme daquele jeito que você
não gosta!
CORDEIRINHO — O pai disse que ele geme por causa das rezas. O Cão que
não quer deixar o corpo!
ROSA — É difícil de acreditá que uma coisinha dessa seja maldade... Se for,
Deus compreende e me dá perdão.
ROSA — No peito.
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ROSA — Que nem os bichos... Você nunca viu bezerro mamando?
CORDEIRINHO — Eu também?
CORDEIRINHO — Se coisa ruim come, por que que santinha não havéra de
comer?
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ROSA — Só mais um pouquinho! (Espera um instante.) Agora, põe lá...
AURÉLIA — O beato disse pra não pôr a mão! Onde já se viu uma
inocentinha dessas brincando com o Cão!
ROSA — Vê bem, mãe! Olha pra isso e diz se consegue ter algum medo?
AURÉLIA — Lembra bem das palavras dele — “sem ser visto continua o
demo atentando...” — Espera que vem sinal do céu!
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OSMAR — Quieta você!
SANTO HOMEM — Volta pra perto do bicho e reza! Esse pode ser o sinal!
SANTO HOMEM — Deus fere quem serviu a outro. Não aceitou Pedro de
volta. O demo aqui continua!
PEDRO — Mãe...
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ROSA — Pedro!
ROSA — Ele e mais outros partiam da vila e iam tirá as coisas dos
armazém...
AURÉLIA — Liga não, Osmar! É o Tinhoso que tá atiçando ela pra indispor
o irmão!
OSMAR — Caridade coisa nenhuma que pra mim já chegou! Tomei fartão
de coisa ruim nessa casa. Que tinha o peso de tudo quanto mais odeio
essa gente ruim que deixou o Cão tomá conta de tudo!...
OSMAR — Aí tem porque está tudo danado!... Devia pôr fogo nessa palhoça
e terminá de vez com esse cancro!
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SANTO HOMEM — Tudo está em danação! Só o sangue lava!
OSMAR — Pra mim que morra que de vergonha já estou farto. (Sai.)
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CORDEIRINHO — T’esconjuro, Satanás!
AURÉLIA — É o sinal!
SANTO HOMEM (Surge na porta com uma criança em uma cesta coberta
com um pano) — E o profeta tinha razão. Veio o sinal. São Filhos do
Cão!
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OSMAR — Cuidado, Jeremias!
ROSA — O pé!...
SANTO HOMEM — Os dois. Os dois são coisa ruim. Não é gente, é bicho!
OSMAR — Cala pra não pôr mais vergonha!... Fecha a boca dessa possessa!
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SANTO HOMEM — Aos mais velhos cabe a solução! Sinal mais claro não
podia haver! O que há de pior entre as coisas desse mundo e do outro se
fincou nessa terra por obra desses dois bichos que aí estão!
SANTO HOMEM — O demo escolheu esse pouso pra sua perversidade. Dei
meu conselho e solução. É dado ao homem escolher seu caminho. Viver
com o pecado, na danação presente e futura, ou dar fim às artes do
Senhor Negro! No mais, só posso deixar minha bênção. É vossa
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resolução!
OSMAR — Não vá, Santo Homem! Pelo que é sagrado vos peço!
SANTO HOMEM — Vem, minha santa. Repete comigo pra que essas almas
se encontrem na dúvida. — Só o sangue purifica!
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OSMAR — Quem fere?
AURÉLIA (Entrando) — O Santo Homem vai indo... Não há rogo que o faça
ficar!
AURÉLIA — Então?
OSMAR — Não sei. Estou vazio, Não sinto e não penso.
AURÉLIA — Quem sempre viveu com Deus, com ele deve continuar. Quem
nasceu de forma estranha tem de sumi sem deixá traço. O Santo Homem
tem razão, pecado grande que fizemos só tem explicação!...
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PEDRO — Pai!
OSMAR — Já disse pra calá, danado! Foi esse quem trouxe a desgraça!
OSMAR — Se firmando nas pernas pode tomar seu rumo. Suma no mundo
que minha maldade me separou dos filhos que já não tenho.
OSMAR — Quando?
AURÉLIA — Quando?
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ausência dos filhos vai até a porta de entrada. Não vendo
ninguém, nervosa vai até a porta do puxado. Mais uma vez
persigna-se. Volta e procura acordar Osmar e Jeremias.
OSMAR — Hum...
JEREMIAS — Manheceu?
JEREMIAS — Malfeito!
OSMAR — E agora?
AURÉLIA — É.
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JEREMIAS — Isso vem estragá tudo! Ninguém mais se livra, Osmar. O
santo disse que era pra acabá com os dois!
AURÉLIA — Pois.
GERTRUDES — E por que o espanto? Rosa foi à procura do Cão. É isso que
ela queria, não adiantava escondê. Ela mais o irmão, almas danada! Me
ajuda, pai.
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Formam um grupo, estáticos. Somente os rostos; estão
iluminados.
GERTRUDES — Aqui.
JEREMIAS — Aqui?
GERTRUDES — Ele sabe o que faz. Se não ficou é que não há precisão.
Importa é feri e deixá que o vento consuma com o resto. E apagá isso
tudo de vez.
AURÉLIA — Eu não.
JEREMIAS — Então?
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AURÉLIA — Talvez palavra dita de coração tenha o mesmo efeito que reza
própria...
TODOS — Amém!
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Os OUTROS — É tudo o mesmo como é, sem ter mudança!
OSMAR — Deixa não. Cruz é boa coisa. Larga assim que o mundo mesmo
dá sumiço...
OSMAR — Foi. A gente vai vivendo e nem imagina o que pode ser obrigado
a presenciá...
JEREMIAS — Pois é.
Voltam Gertrudes e Aurélia.
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FIGURA 3 — Então, como é que é?
FIGURA 1 — É esperá!
FIGURA 3 — Qual esperá, compadre. Eu aqui já retiro meu dinheiro, que vai
perdendo o valor!
FIGURA 2 — Eu, por mim, já tou com ele. Esse negócio tá mais é com jeito
de peta!
FIGURA 2 — Ora, irmão, tanto mês pra nascê esse infeliz. Nem mesmo filho
de Capeta é tão enrustido!
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AURÉLIA — Que movimento de homem é aquele lá fora.
OSMAR — Vá chegando!
AFRÂNIO — Bons-dia.
TODOS — Bom-dia!...
OSMAR — Vivendo...
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AFRÂNIO — É melhor ser rápido. Essas coisas quanto mais depressa se
resolvem, melhor!
CIRO — Eu vim dizer pra vocês que tanto meu pai, quanto eu, respeitamos
as crenças de qualquer um... Não sou palmatória do mundo. Assim meu
pai me criou...
AURÉLIA — É?
CIRO — É a lei.
AURÉLIA — Mas tem de acabá com o demo quando ele aparece... Não é a
primeira vez...
AFRÂNIO — O que o seu Ciro quer dizer é que ele podia mandar prender
vocês. Chamar os soldados e acabar com a vida de vocês... Mas isso não
interessa a ele...
101
ficar discutindo... Não quero polícia nessas terras, não quero ver
ninguém preso... Mas vocês têm de compreender que... eu tenho um
pensamento, um modo de ver as coisas... Vocês têm outro...
CIRO — Eu não mando prender vocês, mas também não quero mais vocês
aqui. É melhor irem embora já!
OSMAR — Ir embora?
CIRO — É. Já!
AFRÂNIO — Compreenderam?
CIRO — Pra você é a melhor saída. Vão pra outro lugar, onde quiserem...
longe de minhas terras.
JEREMIAS — Eta que tem caminho, seu Ciro... Suas terras são um mundo!
102
AURÉLIA — É.
GERTRUDES — Tô...
OSMAR — Aqui tive muito dia de gozo, seu Ciro. Muita aperriação
também... Tava mais ou menos bem dividido... Mas... O homem lá sabe
o que lhe pode acontecer, não é mesmo?
CIRO — É... Osmar, conselho que eu lhes dou é que saindo daqui procurem
esquecer o acontecido. Os outros não vão entender e vocês vão ter
complicação...
AURÉLIA — Quem vai querê ficá falando nisso, seu Ciro? Quem dera poder
esquecer!...
OSMAR — São coisas que acontecem pra uma família e enche ela de
vergonha!
103
OSMAR — Até um dia!
CIRO (Deixando duas notas) — Que não levem a mal e... um bom futuro pra
vocês!
AURÉLIA — Amém.
OSMAR — No mais, seu Ciro... Obrigado por tudo. Diga pra seu pai
também quando ele voltá... Nunca fizemo desrespeito... Sinto que o que
aconteceu, acontecesse em terras vossas...
AURÉLIA — Tudo.
JEREMIAS — Pé no mundo!...
104
demônio? Mas só em sangue se apaga o que o demônio faz. Só em
sangue! Muito mau o mundo, Cordeirinho. É falta de fé! Não se acredita
mais no que diz o profeta!
CORDEIRINHO — Não!
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