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Crítica ao conceito de amor

líquido em Zygmunt Bauman

A criticism towards the concept


of liquid love in Zygmunt Bauman

Leonardo Antunes de França Pessoa


Cientista social. Pesquisador do NUECS-DH — UFRN
Mestrando, Ciências Sociais — UFRN
leonardo.antunes@msn.com

BAGOAS n. 18 | 2018

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Resumo
Este artigo pretende desenhar uma crítica ao conceito de “amor líquido”
apresentado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. O conceito aqui
contraposto é derivado de seus escritos a respeito da pós-modernidade, por
ele intitulada “modernidade líquida”. Como tal, traz consigo o ceticismo
característico do autor, cristalizado no que chamou de “fragilidade dos
laços humanos”, que seria marca das relações afetivas de nosso tempo
histórico. Em direção à interdisciplinaridade, utilizo a historiografia de
Mary Del Priore com a intenção de problematizar a bipolaridade fundada
pelo intelectual polonês — amor líquido/amor sólido. Argumento que
o “amor líquido” não constitui um fenômeno exclusivo ou definidor da
modernidade tardia, e para isso traçaremos uma análise comparativa
deste período com o Brasil Colônia.

Palavras-chave: Amor Líquido. Modernidade Líquida. História da


Sexualidade. Sexualidade no Brasil. Brasil Colônia.

Abstract
This article intends to delineate a criticism to the concept of “liquid love”
presented by the polish sociologist Zygmunt Bauman. The concept here
counterproposed derives from his writings about postmodernity, which
he called “liquid modernity”. As such, embodies the characteristical
skepticism of the Author, crystallized in what he entitled as “frailty of
human bonds”, which would be a mark to the affective relations in our
historical time. Regarding interdisciplinarity, I use Mary Del Priore’s
Historiography with the intention to problematize the bipolarity
founded by the Polish intellectual — liquid love/solid love. It is argued
that the “liquid love” does not constitute a phenomenon that is exclusive
or defining of the late modernity, and for this we will draw a comparative
analysis between this period and the Colonial Brazil.

Ker-words: Liquid Love. Liquid Modernity. History of Sexuality.


Sexuality in Brazil. Colonial Brazil.

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Introdução
Mas a salvação no cristianismo é realizada
através da renúncia a si mesmo.
Michel Foucault

Este manuscrito é uma adaptação da monografia “O amor nos


tempos de liquidez: notas críticas sobre o conceito de amor líquido em
ZygmuntBauman”, defendida por mim para obtenção do título de
licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, no ano de 2015. Pretendo aqui sintetizar as discussões
expostas naquele trabalho de conclusão, sem, contudo, perder o essencial
da argumentação primeira, mas adicionando outras pesquisas não
contempladas então: novas obras de Mary Del Priore (2009) e Ronaldo
Vainfas (2011), ambos historiadores brasileiros, dedicados ao estudo
da história da sexualidade, das relações de gênero, conjugalidades e
parentesco no Brasil e na Europa. Também ampliei a bibliografia com
entrevistas dadas por Bauman, que, neste espaço, funcionam como boas
sintetizadoras de seu pensamento, além de novos artigos acadêmicos,
manuscritos de intelectuais concordantes com o conceito de amor
líquido, na intenção de facilitar o entendimento do mesmo e maximizar
a pluralidade de opiniões expostas.
Zygmunt Bauman nasceu em Poznań, na Polônia, no ano de
1925. Foi professor de Sociologia da Universidade de Varsóvia e Leeds.
Refugiado na URSS juntamente com a família após a invasão do seu país,
e tendo sido membro de um partido comunista polonês, Bauman foi
bastante influenciado pelo marxismo, o que transparece em suas obras
e críticas à sociedade de hiperconsumo e descartabilidade. Embora
mantenha a História em aberto, não proclamando nenhum destino
para o gênero humano (BAUMAN, 2004, p. 190), pode ser considerado

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um autor cético e crítico em relação à modernidade, como também
às transformações e ao futuro das sociedades capitalistas, caso elas
continuem a gestar as mazelas por ele pontuadas. Ainda assim, Bauman
manteve o otimismo de imaginar que o mundo poderia ser melhor do que
atualmente é: “meu trabalho é alertar as pessoas dos perigos” (BAUMAN
apud EVELIN; GABRIEL, 2017). Um autor complexo, nonagenário, que
dedicou sua vida à Sociologia e à crítica social, tornando-se um dos mais
conhecidos e respeitados pensadores e analistas do nosso tempo. Seus
livros são amplamente divulgados e traduzidos, não apenas na esfera
acadêmica, como também para o público geral — trata-se de um dos
maiores divulgadores da Sociologia do século XX e XXI. Faleceu em
2017, legando para o futuro indagações importantes que continuarão a
reverberar, ansiando por serem respondidas.
Pretendo questionar o conceito de amor líquido na obra do sociólogo
polonês, pois, na maneira ensaística com que ele é apresentado ao público no
livro homônimo, o conceito é naturalizante e uma ferramenta insuficiente
para analisar a trajetória das relações afetivas em nossa e outras sociedades.
Para Bauman (2004) o amor romântico e monogâmico não aparece como
sendo fruto de relações de poder, consolidado por instituições, objeto que se
transforma no tempo devido a tensões e deslocamentos de sentido provocados
pelos indivíduos e coletivos políticos, conscientes e críticos — ou não — de
sua compulsoriedade, algo que se impôs por intermédio da domesticação
dos prazeres e dos corpos, especialmente pela dominação masculina,
heterossexualidade obrigatória e eclesiástica cristã, em se tratando do Ocidente,
mas lhe surge como um fenômeno da natureza humana, uma régua universal,
sem história (BAUMAN, 2004, p. 19). A monogamia emerge de seu texto como
um dispositivo sem o qual os indivíduos se sujeitariam a uma série de incertezas
e angústias (o mesmo podendo ser dito do cultivo de vários parceiros sexuais),
como uma relação quase obrigatória para que o casamento “para a vida toda”
possa produzir seus benefícios de seguridade ontológica. E, no entanto, os
caracteres que ZygmuntBauman elegeu como definidores de nossa afetividade

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líquida — frugalidade dos afetos; facilidade de interromper laços afetivos; baixa
qualidade no que se chama de “amor”; número amplo de parceiros sexuais;
grande procura e facilidade para se chegar ao coito com outrem, alto índice
de divórcios e separações de casais não são novidades ou estão acentuados
suficientemente para conferir especificidade mesmo à modernidade.
Para traçar a crítica ao conceito aqui estudado utilizo o método
comparativo entre tempos históricos e a pesquisa historiográfica.
Atualmente, a historiografia não tem dificuldade para encontrar evidências
daquilo que habitou os becos escuros, casas vazias, os confessionários, as
praias, rios e matagais por onde sambaram nossos ancestrais. Os rastros
de tais encontros aparecem nos processos e julgamentos inquisitoriais,
nas recomendações e punições teológicas, nas bulas e concílios, nos textos
moralistas, nos discursos públicos e conversas cotidianas, nos relatos de
viajantes, ou ainda abertamente na resistência e acordos que as sociedades
impuseram à investida moral cristã. Tudo isso munindo o estudo da
História de boa fonte de informação para aferir o comportamento sexual
do período aqui circunscrito.
O método comparativo permitirá questionar a universalidade
e a positividade do amor romântico e da monogamia proclamadas
por ZygmuntBauman. Comparar a sexualidade na “modernidade
líquida” com o período colonial brasileiro revelerá se há diferenças
tão acentuadas entre dois períodos históricos, como pretende, ou se a
“liquidez” já estava presente no Brasil bem antes da modernidade se
fundar, continuando até a atualidade. Com esse método procuramos
“descobrir regularidades, perceber deslocamentos e transformações
[...], identifica[r] continuidades e descontinuidades, semelhanças e
diferenças” (SCHNEIDER; SCHIMITT, 1998, p.1) entre os diversos
modos-de-vida e “espíritos dos tempos” discutidos pelo autor.
Por outro lado, a análise histórica tornará público os processos e
as longas lutas que o cristianismo teve que travar para consolidar seus
valores: a monogamia, o casamento “aos olhos de Deus”, o celibato, a

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castidade... sempre resistidos. Quais concessões teve que fazer, quais
processos e condenações tiveram que se abater sobre indivíduos e
grupos para, hoje, olharmos o passado e enxergarmos superficial solidez.
Publicará também as resistências, os desvios das normas, as fraudes,
traduzidas nos amancebamentos, poligamias, adultérios, na quebra do
celibato, no sexo furtivo, nos rituais e rezas mágicas para “atrair mulher”
etc. Na modernidade colonial, os discursos solidificantes do clero
encontravam resistências várias. Não foram poucas as maneiras que o
passado achou para liquefazer sólidos em processo de sedimentação.
Assim, são especialmente as evidências de adultérios (PRIORE, 2009, p.
46), poligamia consentida ou não e sexos furtivos que nos ensinarão que
o amor líquido não constitui novidade da modernidade tardia.
A modernidade líquida (e o amor líquido), enquanto explicadores
da mentalidade contemporânea, parece surgir no texto baumaniano
como que um “zeitgeist”, um espírito do tempo a pairar. Uma
modernidade e amor líquidos que assim se fazem quase sem agências,
semi-desprovidos de processos e atores micropolíticos que lhe conjuram,
arquitetam, mais ou menos conscientemente, e, principalmente, que
os sustentam graças ao comando e a deliberação, exatamente porque
não são tão angustiantes assim. Os construtores dessa modernidade
mostram-se tão difusos quanto aqueles que supostamente sofrem com a
volatilidade dos laços e a baixa expectativa de vida dos amores, devido a
generalidade utilizada em seu argumento.
Ao se esquivar de evidenciar os atores micropolíticos, de
conferir positividade para os grupos de pressão e indivíduos, que em
sua autonomia modificam normas e instituições, criam novos modos-
de-vida1 longe de determinações globais e coletividades sufocantes,
Bauman recai no pessimismo de achar que, devido a uma tendência
ao individualismo (FREIRE et al, 2010, p.2), a praça pública perdeu

1 Utilizo o termo “modo-de-vida” como apresentado pelo filósofo italiano


Giorgio Agamben, especialmente em sua obra intitulada “O Uso dos Corpos” (2017).

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grandes coletivos atuantes. E também se furta de imaginar que o “amor
líquido” possa se sustentar por, talvez, ser uma alternativa melhor do
que as gaiolas que o cristianismo impôs ao Ocidente. A imagem da
praça pública e da coletividade esvaziada provém desse ceticismo, que
produz uma miopia incapaz de enxergar as novas formas de coletividade
e socialização, “flácidas e frouxas”, entre outros motivos, devido à
consciência crítica dos indivíduos às relações de poder e dominação
econômica, cultural, sexual, simbólica. Contudo, ao entender a História
e os modelos (inclusive sexuais, afetivos) como processos plenos de
luta, nunca realmente esvaziados, mesmo pelo individualismo, pode-
se ter uma compreensão mais sociológica a respeito dos padrões e das
mentalidades atualmente operantes. E uma percepção mais otimista
da dissolução dos antigos sólidos, da politeização2 dos valores e da
libertação sexual, que ganharam força, principalmente, a partir dos
movimentos sociais e atores políticos do século passado.

Modernidade Líquida, Amor Líquido

A metáfora do líquido é utilizada por ZygmuntBauman (2001)


para definir as especificidades de uma segunda fase da modernidade, que,
diferente de sua primeira, apresentaria propriedades ainda mais fluídas,
não se deixando tomar forma por muito tempo, esvaindo-se sempre que
se tenta contê-la. Isso significa que as antigas estruturas, instituições e
mentalidades foram, desde o início da modernidade, mas talvez mais
acentuadamente após a Segunda Guerra, combatidas em nome de um
novo tipo de organização social e modo de vida (BAUMAN, 2001, p.
7). “Os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar
eram as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações
que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as
iniciativas” (Ibid., p. 8).
2 Utilizo o termo “politeísmo” com o carácter positivo herdado da obra do so-
ciólogo francês Michel Maffesoli. A “politeização dos valores” é bem discutida no seu “O
Tempo das Tribos” (1998)

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O projeto moderno era o de conferir à racionalidade, ao
individualismo e à economia o papel central na regulamentação
normativa da sociedade, em detrimento da família, dos laços afetivos
tradicionais, do direito consuetudinário, da igreja. Ele pretendia
proporcionar ao sujeito autodeterminação em relação às antigas
instituições que outrora exerciam poder sufocante, dotando o indivíduo
de autonomia e liberdade em relação aos “antigos sólidos”. Sobre este
cemitério de institutos ultrapassados deveria brilhar apenas o “nexo
dinheiro” (Ibid., p. 8) — o predomínio da economia capitalista como
matriz reguladora das relações sociais. “Por isso mesmo, essa forma de
‘derreter os sólidos’ deixava toda a complexa rede de relações sociais no
ar — nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir às
regras de ação e aos critérios de racionalidade inspirados pelos negócios”
(Ibid., p. 8).

Ao contrário da maioria dos cenários distópicos, este efeito


não foi alcançado via ditadura, subordinação, opressão ou
escravização; nem através da “colonização” da esfera privada
pelo “sistema”. Ao contrário: a situação presente emergiu do
derretimento radical dos grilhões e das algemas que, certo ou
errado, eram suspeitos de limitar a liberdade individual de
escolher e de agir. A rigidez da ordem é o artefato e o sedimento
da liberdade dos agentes humanos. Essa rigidez é o resultado
de “soltar o freio”: da desregulamentação, da liberalização,
da “flexibilização”, da “fluidez” crescente, do descontrole dos
mercados financeiros, imobiliário e de trabalho, [...] etc. [...]
das técnicas de “velocidade, fuga, passividade” — em outras
palavras, técnicas que permitem que o sistema e os agentes livres
se mantenham radicalmente engajados e que se desencontrem
em vez de encontrar-se. (Ibid., p. 9-10)

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A “pós-modernidade” seria, assim, individualizante. “É tempo do
desapego, provisoriedade e do processo de individualização; tempo de
liberdade ao mesmo tempo em que é o da insegurança. Como resposta
a esta possibilidade de liberdade [...], os homens deste tempo [...] têm
a sensação de impotência sem precedentes” (TFOUNI; SILVA, 2008,
p. 176). Para Bauman (2001) o poder atomizador da modernidade
líquida repercute numa dificuldade de criar coletivos e engajamentos
políticos, grandes projetos de sociedade, no individualismo das
metrópoles e megalópoles, na xenofobia (BAUMAN, 2004, p. 154).
Nela os sujeitos teriam

a sensação de impotência sem precedentes, já que, no anseio por


esta liberdade, os mesmos encontram-se por sua própria conta
e risco em meio ao concreto. A responsabilidade é deixada
às energias individuais, favorecendo a solução biográfica das
contradições sistêmicas. (TFOUNI; SILVA, op.cit., p. 176)

E nas esferas da vida afetiva, como pontuado, a modernidade


líquida tenderia a impossibilitar a duração dos matrimônios, das famílias,
das amizades e dos amores. O paradigma da vida conjugal “até que a
morte nos separe”, hoje, cederia espaço para a futilidade dos encontros
sexuais sem nenhum compromisso além do gozo momentâneo, da
busca por vários parceiros etc. Nesse mundo, os que não se adaptaram
às novas formas de relacionamento (novos sólidos) se encontrariam
oprimidos por esse carnaval.
Na obra baumaniana, a modernidade líquida não mais estaria
submetida ao espaço nem ao tempo, ao contrário, correria e se
transformaria lépida, vertiginosa, o que deixaria nauseabundos,
perdidos e desamparados todos aqueles que não estariam aptos às suas
repentinas transformações. Segundo Bauman (2001) a primeira fase do
período moderno pode ser facilmente ilustrada pela popular alegoria

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foucaultiana do panóptico, arquitetura que representa a corporeidade
do poder naquela época ainda “sólida” da modernidade. No panóptico
de Bentham os prisioneiros são confinados num espaço circular,
vigiados por carcereiros que acreditam estar ali, mas que não podem
ser vistos. Nessa prisão uma única sentinela tem o poder de vigiar
todos os cativos. A invisibilidade da sentinela, aliada à sua omnivisão,
fazem com que os próprios presos passem a se vigiar, interiorizando o
poder disciplinar devido a sua totalidade material e, paradoxalmente, à
dúvida de sua presença. Como a primeira modernidade, a arquitetura
do panóptico está submetida ao espaço e ao tempo. Todavia, na segunda
modernidade o poder se dissipa no ar, se desprende da dependência
anterior ao tempo-espaço, isto é, independeria de um palácio, de uma
sala de comando, centro de vigilância, passando, em lugar, a viajar nas
ondas de rádio, na luz da fibra ótica, nos algoritmos. Na modernidade
líquida os prédios do poder sólido foram esvaziados para dar espaço
a um poder que não aparece, que é esquivo, que não pode ser visto
ou encontrado. Dessa forma a modernidade líquida se defenderia dos
processos de transformação coletiva, dos projetos de sociedade, das
utopias, por meio de sua difusão, de sua fantasmagoria. Restaria aos
indivíduos nesta “distopia” o atomismo e o individualismo exacerbado.
O desprendimento ao tempo-espaço ocorreria também no
campo das relações intersubjetivas. Para ZygmuntBauman (2001; 2004)
amizades e namoros online se destacam na modernidade líquida como
matrizes fundamentais do novo nexo relacional. O relacionamento
face a face teria sido gradualmente substituído pelos encontros em
rede (VESPUCCI, 2006, p. 162). As buscas por parceiros nos espaços
tradicionais de socialização estariam sendo abandonadas, preteridas
pelo mundo virtual. Contudo, apesar da facilidade de se construir novos
laços não submetidos à lógica anterior, eles seriam frágeis, por serem
facilmente desplugáveis, excluíveis. Nessa cyberrealidade os sujeitos

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podem se desligar uns dos outros sem a necessidade de forjar desculpas,
sem o constrangimento que, anteriormente, atingia as relações dadas
pela proximidade espacial. A vantagem do aumento da oferta de
relacionamentos viria, assim, carregada de uma desvantagem produtora
de angústias e tristezas naquelas vítimas de sua desconexão súbita.
“Nada é feito para durar” (BAUMAN in PRADO, 2017). E essa
relação de descartabilidade apareceria não apenas nos relacionamentos
afetivos, como também no mercado de trabalho, na arquitetura das
instituições e das cidades, nos projetos de vida, nos projetos familiares.
Tratar-se-ia de uma modernidade sem grandes planejamentos coletivos
e também sem grandes paradigmas utópicos. ZygmuntBauman nos
sintetiza em uma entrevista:

Diferentemente da sociedade moderna anterior, que chamo de


“modernidade sólida”, que também tratava sempre de desmontar
a realidade herdada, a de agora não o faz com uma perspectiva de
longa duração, com a intenção de torná-la melhor e novamente
sólida. Tudo está agora sendo permanentemente desmontado,
mas sem perspectiva de alguma permanência. Tudo é
temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para
caracterizar o estado da sociedade moderna: como os líquidos,
ela caracteriza-se pela incapacidade de manter a forma. Nossas
instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e
convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em
costumes, hábitos e verdades “auto-evidentes”. [...] agora todas as
coisas — empregos, relacionamentos, know-hows etc. — tendem
a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis. A nossa
é uma era, portanto, que se caracteriza não tanto por quebrar
as rotinas e subverter as tradições, mas por evitar que padrões
de conduta se congelem em rotinas e tradições. (BAUMAN in
PALLARES-BURKE, 2004, p. 321-2)

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Nesse cenário, o amor também estaria sendo deteriorado pelos
novos padrões culturais. Para ZygmuntBauman o amor é um sentimento
natural e universal, um evento súbito, que não avisa ao portador quando
chega. A primeira pista desta sua abordagem universalizante se encontra
já no subtítulo de “Amor Líquido”: “Sobre a fragilidade dos laços
humanos” (2004). O termo grifado aqui indica que a obra imagina um
evento que estaria acometendo toda a humanidade, a “fragilização dos
laços”. Na apresentação da proposta deste tomo o autor evidencia ainda
mais: “A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de
insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal
sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é
o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender (BAUMAN, 2004.
9, grifo meu).

O principal herói deste livro é o relacionamento humano.


Seus personagens centrais são homens e mulheres, nossos
contemporâneos, desesperados por terem sido abandonados aos
seus próprios sentidos e sentimentos facilmente descartáveis,
ansiando pela segurança do convívio e pela mão amiga com
que possam contar num momento de aflição, desesperados por
relacionar-se e, no entanto desconfiados da condição de estar
ligado, em particular de estar ligado permanentemente, para
não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa
trazer encargos e tensões que eles não se consideram aptos
nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a
liberdade de que necessitam para — sim, seu palpite está certo
— relacionar-se… (Ibid., p.10, grifo meu)

E sobre a natureza do amor:

o amor e a morte não têm história própria. São eventos que


ocorrem no tempo humano — eventos distintos, não conectados
(muito menos de modo causal) com eventos “similares”, a

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não ser na visão de instituições ávidas por identificar — (por
inventar) — retrospectivamente essas conexões e compreender
o incompreensível. (Ibid., p. 19)

Para o sociólogo da modernidade líquida o amor não é um


dado da cultura, que se transforma no tempo, que se apresenta nesta
e não naquela sociedade, mas um constante-universal humano. O que
a modernidade líquida está praticando com o amor, evidentemente, é
deturpá-lo. E como essência

[...] não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender
a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória — inexistente,
embora ardentemente desejada — de evitar suas garras e ficar
fora de seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte
atacarão — mas não se tem a mínima ideia de quando isso
acontecerá. Quando acontecer, vai pegar você desprevenido.
Em nossas preocupações diárias, o amor e a morte aparecerão
abnihilo — a partir do nada. (Ibid., p.19)

Apesar de concordar que seria possível se apaixonar mais


de uma vez (Ibid., p. 21), acreditava que os parâmetros para julgar
um sentimento como amor estariam hoje rebaixados, devido as
características da modernidade e do amor líquido já citadas. Um poderia
indagar a Bauman de que, ao invés de poucos apaixonados, vemos uma
profusão deles nas novelas, livros, séries, filmes e demais artefatos da
cultura popular. Entretanto,

Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar


correta. Afinal, a definição romântica do amor como “até que
a morte nos separe” está decididamente fora de moda, tendo
deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical
alteração das estruturas de parentesco às quais costumava

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servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização. Mas o
desaparecimento dessa noção significa, inevitavelmente, a
facilitação dos testes pelos quais uma experiência deve passar
para ser chamada de “amor”: Em vez de haver mais pessoas
atingindo mais vezes os elevados padrões do amor, esses padrões
foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências às
quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito.
Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome de “fazer
amor”. (Ibid., p.21-22)

Bauman também julgava que o amor traria com ele o ciúme. Às


vezes claramente, às vezes nas entrelinhas, fica subentendido em “Amor
Líquido” (2004) que o ciúme é um espectro que persegue naturalmente
o amor, tendo com ele relação simbiótica. Além disso, os sujeitos da
pós-modernidade não estariam sabendo lidar com as “opressões” que
“fazem parte” da vida conjugal. No menor assomar dos problemas desse
tipo, os pós-modernos rompem seus laços afetivos. Mas para viver
uma vida a dois, e colher os benefícios da segurança e tranquilidade
ontológicas desse laço, seria preciso lidar com as relações de poder
dentro dos casamentos/relacionamentos afetivos. Sobre o ciúme:

Todo amor empenha-se em subjugar, mas quando triunfa


encontra a derradeira derrota. Todo amor luta para enterrar
as fontes de sua precariedade e incerteza, mas, se obtém êxito,
logo começa a se enfraquecer — e definhar. Eros é possuído
pelo fantasma de Tanatos, que nenhum encantamento mágico é
capaz de exorcizar. A questão não é a precocidade de Eros, e não
há instrução ou expedientes autodidáticos que possam libertá-
lo de sua mórbida — suicida — inclinação.

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O desafio, a atração e a sedução do Outro tornam toda distância,
ainda que reduzida e minúscula, insuportavelmente grande. A
abertura tem a aparência de um precipício. Fusão e subjugação
parecem ser as únicas curas para o tormento. E não há senão
uma tênue fronteira, à qual facilmente se fecham os olhos, entre
a carícia suave e gentil e a garra que aperta, implacável. Eros
não pode ser fiel a si mesmo sem praticar a primeira, mas não
pode praticá-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão
que se estende na direção do outro — mas mãos que acariciam
também podem prender e esmagar. [...]

Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O desejo


destrói seu objeto, destruindo a si mesmo nesse processo; a rede
protetora carinhosamente tecida pelo amor em torno de seu
objeto escraviza esse objeto. O amor aprisiona e coloca o detido
sob custódia. Ele prende para proteger o prisioneiro. (Ibid.,
p.24-27)

Como dito, Bauman compartilha muito do pensamento de Karl


Marx. Uma das argumentações centrais deste livro (2004), assim, é que
o amor na pós-modernidade estaria submetido à lógica do mercado e
do consumo (FREIRE et al, 2010, p. 2). Ao invés das supostas relações
tradicionais do passado, o pós-moderno consome pessoas e amores
como um comprador numa loja de shopping center. Os sujeitos lhe
aparecem como mercadorias, reificados, sendo rapidamente trocados
quando um novo produto, mais moderno, lhe é anunciado. Então,
os velhos objetos são jogados fora. A modernidade líquida seria um
imensomall de coisas-pessoas gerando um lixão ainda maior. No refugo
dessa sociedade estariam os seres desamparados pela fragilidade dos
laços humanos. O medo de se tornarem “supérfluos”, “lixo”, ameaça os
sujeitos nesta pós-modernidade que “se constitui por inúmeros mal-
estares, sentimentos de aflição, insegurança, depressão, ansiedade”. [...]

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Ou seja, a nossa cultura é a do lixo, do descartável imediatamente, sem
causar grandes transtornos” (TFOUNI; SILVA, 2008, p. 177).
Com a queda da hegemonia simbólica do casamento,
ZygmuntBauman considera que o “viver juntos” seria uma característica
típica da pós-modernidade, a substituir os antigos matrimônios
consagrados nos templos. Entretanto, não se espera hoje desse arranjo
o que se desejava dos casamentos tradicionais ― longa duração ― e
por isso não são capazes de oferecer a segurança ontológica de antes.
“A afinidade é uma ponte que conduz ao abrigo seguro do parentesco.
Viver juntos não representa essa ponte nem o trabalho de construí-la”
(BAUMAN, 2004, p. 52). Tratando do futuro dos “mancebos”, diz “não
há como saber, pelo menos com antecedência, se viver juntos acabará se
revelando uma via de tráfego intenso ou um beco sem saída, a questão
é atravessar os dias como se essa diferença não contasse, e portanto de
uma forma que torne irrelevante o problema de ‘colocar os pingos nos
Is’” (Ibid., p. 52). Nos casamentos tradicionais “a incerteza é substituída
pela garantia de que os atos realmente têm uma importância que
ultrapassa o seu próprio espaço temporal e acarretam consequências
que pode durar mais do que as suas causas.” (Ibid., p. 76-7), enquanto o
amancebamento lhe aparece como uma vida de incertezas.

La sexualidad, por supuesto, no es laexcepción a esta regla.


Desligada cada vez más de lareproducción, de sus vínculos
conel amor, laseguridad y lapermanencia, y de su papel de
“inmortalizadora” gracias a lacontinuacióndellinaje, ella es hoy
más autónoma que nunca. Se basta a símisma y sólo persiste
enfunción de sus gratificaciones. Pero lacontracara es otra vez
suliviandad, “lainsoportablelevedaddel sexo”. Preocuparse por
elrendimiento no deja lugar nitiempo para eléxtasis, lo físico
no conduce a lo metafísico, sumisterio ha desaparecido, por lo
tanto, arguyeBauman, sus promesas -exaltadas por losmedios-
sólopueden quedar insatisfechas. La victoriadel sexo ensu guerra

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de independencia ha sido, a lo sumo, una victoriapírrica. En
definitiva, lasagoníasactualesdelhomo sexualissonlasdelhomo
consumens.3 (VESPUCCI, 2008, p. 162)

Em entrevista publicada por Adriana Prado, Bauman nos


sintetiza sua definição de amor líquido:

Amor líquido é um amor “até segundo aviso”, o amor a partir


do padrão dos bens de consumo: mantenha-os enquanto eles
te trouxerem satisfação e os substitua por outros que prometem
ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação
imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando
acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a
qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como
seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É
bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas
um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa
vontade. (BAUMAN in PRADO, 2018)

O amor no Brasil Colônia

Em verdade, para fazer valer a monogamia e o casamento


religioso no Brasil, a Igreja Católica precisou empregar muito esforço
e energia. A valorização dessas instituições não é um dado natural,
nem um desejo dos indivíduos, meramente. Após um longo processo

3 “A sexualidade, claro, não é uma exceção a esta regra. Desprendida cada vez
mais da reprodução, de seus vínculos com o amor, a segurança e a permanência, e do
seu papel de “imortalizadora” graças à continuidade da linhagem, ela é hoje mais autô-
noma do que nunca. É autosuficiente e só perdura em função de seus benefícios. Mas o
oposto é outra vez sua leviandade, “a insuportável leveza do sexo”. Preocupar-se com o
rendimento não deixa espaço nem tempo para o êxtase, o físico não conduz ao metafísi-
co, seu mistério desapareceu, portanto, argumenta Bauman, suas promessas “exaltadas
pelas mídias” só podem terminar insatisfeitas. A vitória do sexo, no máximo, é uma
vitória de Pirro. Definitivamente, as agonias atuais do homo sexualis são as do homo
consumens.” (Tradução minha)

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de consagração do casamento como instituição católica, ocorrido no
seio da teologia europeia e bem exposto por Ronaldo Vainfas (1986), o
casamento passou, grosso modo, a ser tolerado pela teologia cristã, desde
que destinado à reprodução e em seu interior o sexo não se profanasse
na lassidão. Apesar dessa indulgência, a castidade continuou sendo
um valor superior ao conúbio no período colonial (PRIORE, 2006, p.
27). Nesse contexto a Igreja labutava contra toda manifestação sexual
que não visasse a procriação. Nas Américas e na Europa, o catolicismo
tornou pecado em destaque o sexo antes e fora do casamento e o ato
sexual sedento de prazer. No Brasil

a colonização consistiu em uma verdadeira cruzada espiritual


que tinha por objetivo regulamentar o cotidiano das pessoas
pela orientação ética, pela catequese e pela educação espiritual,
além de exercer severa vigilância doutrinal e de costumes pela
confissão, pelo sermão dominical e pelas devassas da Santa
Inquisição — que por aqui passou entre os séculos XVI e XVIII.
Sua ação fazia-se especialmente ativa no campo da organização
familiar e do controle da sexualidade. (Ibid., p. 17)

Del Priore nos conta que, no período abordado, a política


esponsal da Igreja se fez tão ativa que, na biografia das pessoas, “casar
era preciso, viver não era preciso” (Ibid., p. 18). Essa campanha
estava estritamente associada ao dogmatismo católico, que observava
no casamento uma saída não pecaminosa para a primavera da
concupiscência. Essa emergência buscava afastar do espírito os desejos
impuros da carne.

O instinto sexual não controlado pelas regras do casamento se


transformava em luxúria e paixão nas páginas de moralistas. Ou
em doença grave, nas teorias médicas da época. Ao ordenar as

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práticas sexuais pelos campos do certo e do errado, do lícito e
do ilícito, a Igreja procurava controlar justamente o desejo. E
a luta pela extinção ou domesticação do amor-paixão vem na
rabeira dessa onda. (Ibid., p. 18)

É nessa dicotomia cristã que o pensamento bipolar de Bauman


recai quando, ao distinguir amor e desejo, defendeu que esses
sentimentos se encontravam em campos opostos: “O amor é uma rede
lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se
da faina de tecer redes. Fiéis a sua natureza, o amor se empenharia em
perpetuar o desejo, enquanto este se esquivava dos grilhões do amor”
(BAUMAN, 2004, p. 27). O catolicismo ansiava combater as formas de
afeto e sexualidade que ocorressem fora de seus domínios morais, no
“campo do desejo”. Assim, o casamento passou a ser aquela instituição
onde o gozo poderia ter lugar sem que seu agente caísse no pecado
grave, uma vez que o sexo era um mal necessário para a continuidade
de nossa espécie. Daí provinha sua defensibilidade. A Igreja labutava
contra a sexualidade desregrada, que não desejava a reprodução, mas
o prazer. Essa forma de afetividade não foi faltosa na história do nosso
país (PRIORE, 2006; 2009); (VAINFAS, 2011, p. 18-9). Se a ideologia do
amor romântico era promovida por “tecnologias de gênero” em países
como França e Inglaterra, no Brasil, devido a colonização portuguesa, a
realidade foi diferente.

Estudando documentos da São Paulo colonial, a historiadora


Alzira Campos debruçou-se sobre o amor nos casamentos
paulistas do século XVIII e detectou a transferência para cá
dos dois arquétipos já vistos nos comportamentos afetivos de
outrora: o amor no casamento, casto e continente. E fora dos
laços matrimoniais, o amor-paixão, a perseguida “luxúria”, os
pecados da carne. O estudo mostra que na América portuguesa
a superioridade do casamento de razão sobre o coração é uma

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constante. A esposa devia amar o companheiro “como fazem
as boas, virtuosas e bem procedidas mulheres de qualidade”,
explicava um juiz eclesiástico em pleno século XVIII. Isso
reforça, entre as esposas, uma tradição portuguesa que
interpretava o casamento como uma tarefa a ser suportada:
“casar soa bem e sabe mal”; “casa de pombos, casa de tombos”,
avisavam os ditados populares. (PRIORE, 2006, p. 19)

Diferente do que pensa Bauman (2004), o casamento no Brasil


Colônia não era, normalmente, um abrigo para casais de apaixonados,
mas uma relação baseada na “razão”. Um fardo a ser suportado
(PRIORE, op.cit., p 25). Nos estratos superiores, sua função era a
manutenção de riquezas e a forja ou preservação de laços políticos
entre famílias destacadas. “O casamento [era] uma instituição básica
para a transmissão do patrimônio, sendo sua origem fruto de acordos
familiares e não da escolha pessoal do cônjuge. A garantia de igualdade
era fundamental para impedir a dispersão de fortunas acumuladas”
(Ibid., p. 20). Nos estratos inferiores, o casamento sob benção do
padre foi mais raro, devido aos seus custos e burocracia, embora isso
não signifique que as pessoas não se casassem “de portas a dentro”. Os
concubinatos, combatidos e, ao mesmo tempo, tolerados pelas igrejas
e pela sociedade colonial em geral, poderiam perdurar a vida toda.
Mas também era comum que, graças a grande mobilidade dos homens
no período, mulheres tecessem novos laços esponsais na ausência de
seus cônjuges. Diferente do que pensa o senso comum, não era raro o
abandono das esposas e a substituição de parceiros naquele período.
(PIORE, 2009, p. 25)4.

4 E também nas páginas 40; 42; 44; 56 desta mesma obra. Esse trabalho transpa-
rece de maneira magistral a solidão, o abandono e a violência por que passavam nossas
ancestrais coloniais. Fazendo uma excelente arqueologia do abandono parental e da vio-
lência doméstica que ainda são praticados e que, dada sua longevidade, não constituem
fenômenos específico de nossa modernidade.

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Além de assegurar a hereditariedade de riquezas e posses, os
casamentos deveriam traduzir as distinções presentes naquela sociedade.
A norma exigia declaradamente que se casassem os iguais, em idade,
classe, raça... Na colônia não estava em jogo unir-se por desejo ou paixão,
mas a manutenção do status quo, das relações tradicionais de dominação.
Quando, ao menos nos casos dos ricos, esses interditos eram burlados,
forças repressivas se faziam presentes para anular a união.

Um exemplo? Ao ter conhecimento da “desordem” que


pretendia cometer o irmão cego de um capitão de Jacareí, São
Paulo, casando com uma mulata, o governador não só mandou
prender a noiva, como deu ordens para a obrigarem a assinar
um termo de não casar com o dito indivíduo e mesmo sair da
capitania no prazo de dez dias. Quanto ao “noivo” ser-lhe-ia
ordenado que não casasse nem com essa, “nem com qualquer
outra pessoa que desacreditasse seus parentes” (Ibid., p. 20)

Para o sociólogo estadunidense Peter Berger, a ideia de que


o amor seria um sentimento natural e universal, não guiado por
marcadores sociais de diferença, é o produto de uma mirada superficial
sobre esse objeto. Ao invés de adotá-la, como fez ZygmuntBauman,
o cientista social deveria se esquivar dela, pois, em nossas sociedades
atuais, os casamentos também mantiveram a função para qual a
colonização o desenhou.

Supõe-se geralmente nos países ocidentais [...] que homens


e mulheres se casem porque estejam apaixonados. Segundo
uma arraigada mitologia popular, o amor é uma emoção de
caráter violento e irresistível que ataca ao acaso, um mistério
que constitui a meta da maioria dos jovens e muitas vezes de
pessoas já não tão jovens. Entretanto, assim que se começa a
investigar um número representativo de casamentos, percebe-
se que a flecha do Cupido parece ser teleguiada com bastante

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segurança para canais bem definidos de classe, renda, educação
e antecedentes raciais e religiosos. Investigando-se um pouco
mais do comportamento dos casais antes do casamento, [...]
O investigador começa a suspeitar que, na maioria dos casos,
não é tanto a emoção do amor que cria certo tipo de relação,
mas justamente o contrário: relações cuidadosamente pré-
definidas, e muitas vezes planejadas, por fim geram a emoção
desejada. Em outras palavras, quando certas condições são
satisfeitas, natural ou artificialmente, uma pessoa permite-se
“apaixonar-se”. O sociólogo que investigar nossos padrões de
“corte” (eufemismo tendencioso) e casamento logo descobrirá
uma complexa trama de motivações multifacetariamente
relacionada a toda a estrutura institucional dentro da qual vive
um indivíduo – classe, carreira, ambição econômica, aspirações
de poder e prestígio. O milagre do amor parece então um pouco
sintético. (BERGER, 2001, p.45-46)

No Brasil colonial, segundo Priore (2006), só as classes baixas


tinham alguma liberdade para se casar motivados por outros interesses
que não a manutenção direta da ordem política ou econômica, e o faziam,
no mais das vezes, através de concubinatos. “A maioria da população
vivia mesmo [...] em concubinato ou em relações consensuais, apesar de
a Igreja punir os teimosos com admoestações, censuras, excomunhões
e até prisões” (PRIORE, 2006, p.20) (VAINFAS, 2011, p. 103). Isso nos
demonstra que o “viver juntos”, diferente do que pensa Bauman (2004),
não é uma característica típica da modernidade líquida, mas uma prática
mais antiga (PRIORE, 2009, p. 45).
Ronaldo Vainfas, em seu livro “Casamento, Amor e Desejo no
Ocidente Cristão” (1986), que defende a tese de que as punições cristãs
para os “pecados da carne” não eram absolutas, mas variavam conforme
a gravidade e a época histórica, existindo nelas certa indulgência, nos
possibilita fazer uma análise comparativa da Colônia com outro tempo

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histórico, ao recuperar que “no final do Império Romano, o casamento
apresentava sinais de maior frequência e estabilização enquanto
prática social. Permanecia, como antes, vinculado à formação de uma
descendência e à transmissão do patrimônio”. É neste período na Europa
que o casamento passa a se popularizar, juntamente com a monogamia:

A própria monogamia parecia tornar-se mais aceita pelos


maridos, embora fossem comuns as relações entre homens
casados e concubinas. Além disso, embora fosse, por suas
motivações patrimoniais, uma prática essencialmente
aristocrática, o casamento já apresentava sinais de difusão no
conjunto da sociedade. [...] após o século V [...] entre os reis
e os guerreiros o casamento estava profundamente ligado aos
valores de linhagem, à transmissão de heranças e títulos e a
formação de alianças políticas. (VAINFAS, 1986, p. 25)

Não é de pouca importância considerar que os matrimônios


duravam no Brasil colonial, e ainda hoje, graças à relações muito
assimétricas de poder, pela dominação masculina, econômica e política5.
Os casamentos na Igreja deveriam ser indissolúveis, os processos de
divórcio eram dificultados pelos tribunais eclesiásticos, que impuseram
muitas exigências para que lograssem êxito. O papel da mulher nessa
relação era de subserviência. Elas deveriam tolerar muito do que hoje
consideramos violência de gênero. Um manual moral dizia: “O marido
é a cabeça da mulher, e os membros devem acomodar o mal da cabeça
se o há” (PRIORE, 2006, p. 23).
5 “A Igreja apropriou-se também da mentalidade androcêntrica presente no ca-
ráter colonial e explorou as relações de dominação que presidiam o encontro do homem
e mulher, incentivando a última a ser exemplarmente obediente e submissa. A relação
de poder já implícita no escravismo reproduzia-se nas relações mais íntimas entre mari-
do e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificas-
se em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com o seu sexo,
dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a
sociedade familiar com que sonhava a Igreja.” (PIORE, 2009, p. 26)

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Não havia alternativa à esposa senão estar, segundo um padre
confessor, sujeita ao marido, reverenciando-o, querendo-o,
cobrindo-o de vontades e, com sua virtude, exemplo e paciência,
ganhando-o para Deus. Os afetos conjugais idealizados pela
Igreja entreteciam-se em um misto de dependência e sujeição
traduzindo-se em uma vida de confinamento e recato que
atendia ao interesse tanto da Igreja, quanto da mentalidade dos
maridos. (Ibid., p. 25)

Era comum que as mulheres tolerassem, ou tivessem que tolerar,


outros concubinatos de seus maridos, muitas vezes com múltiplas
esposas convivendo dentro da mesma residência. Não são poucos os
casos elencados por Piore (2006) dessas uniões. Nem são poucos os
testamentos deixados por mulheres alforriando ou legando algum bem
para filhas e filhos bastardos de seus maridos, os quais muitas vezes
eram cuidados pelas mães adotivas (PRIORE, 2009, p. 46-7).
No Brasil Colônia a sexualidade feminina era reprimida (Ibid., p.
23), trancada no espaço doméstico, vigiada noite e dia. Embora houvesse
uma repressão sexual geral, contudo, a sexualidade masculina tendia
a ser mais tolerada, praticada no espaço público, comumente aquém
das recomendações eclesiásticas. A existência de “casas de tolerância”, a
instituição das “solteiras” e a prostituição dão prova dessa sexualidade
masculina “líquida”, ali mesmo onde deveria parecer tão sólida. Para
citar apenas um caso, em reforço do que aqui foi escrito, lembremos a
agonia de morte de um certo João Sampaio Peixoto:

Ele contava então a seu testador que tivera “por fragilidade da


carne humana”, três filhos fora do casamento. Deixava-lhes a
casa que comprara para sua mãe, uma certa Maria da Silva, e
algum dinheiro para garantir as filhas mulheres um casamento
condigno e o mais rápido possível. Ressaltava, contudo, que
tais disposições em nada podiam prejudicar seus legítimos

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herdeiros. É possível que, como outros contemporâneos, João
tivesse Maria “de portas adentro”, como se dizia então. E, a
despeito dos esforços da esposa que alegava ter-lhe sempre
“amado e servido com afeto e obrigação”, ele preferisse sua
concubina. E que tanto bem-querer se traduzisse em bens
materiais e escravos. (PRIORE, 2006, p. 16)

Para combater o sexo antes das núpcias vigiavam-se os


noivos. As recomendações eram as de não coabitarem sós em casa,
sem a presença de familiares ou escravos (ou daqueles pudessem ser
permissivos a tais atos). Condenou-se os “abraços desonestos”, os beijos,
os encontros com intenções eróticas. Segundo Del Piore (2006) esses
tais abraços desonestos, hoje chamados de “amassos”, traziam, muitas
vezes, consequências indesejáveis nos meses seguintes... Essas relações
e concepções nos são reveladas pelos processos de rompimentos
esponsais, sedução e defloramento, muito bem documentados.

As reclamações das mulheres que haviam sido seduzidas e


abandonadas revelam de que forma a exploração sexual se
fazia, aparentemente, sem maiores consequências para os
homens. Cientes, contudo, por meio dos sermões de domingo
e do confessionário, do rigor com que o moralismo eclesiástico
perseguia as infrações, as mulheres se vingavam, extraindo
da mesma pregação moralista elementos para condenar seus
companheiros de “brincos e tratos ilícitos” — nome que se
dava às preliminares e às relações amorosas. Uma vez dados
tais passos, as mulheres engravidadas invocavam, na medida
de suas conveniências, valores como “virgindade roubada” ou
“quebra de promessa de esponsais” para passar de um degrau ao
outro: da sedução ao casamento. A Igreja então recompensava
as “arrependidas” com processos eficientes e rápidos que
garantiam seus objetivos institucionais: difundir o casamento.
(Ibid., p. 44)

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Se os “brincos e tratos ilícitos” hoje podem ocorrer na luz do
dia, ganhando cada vez mais espaço público, e portanto, politizando-
se; se a multiplicidade de parceiros, o sexo fora do casamento deixam
de ser segredos de morte, muitas vezes tolerados abertamente, isso não
significa dizer que, no passado, seja na “modernidade sólida”, na Colônia
ou na Europa medieval, esses tipos relacionamentos não ocorressem,
apenas que eram encobertos dos olhos inquisitoriais. Há subnotificação
devido a própria natureza clandestina desses prazeres. No caso da
Colônia o lugar desses atos era nos caliginosos matagais, nas praias
noturnas, nas ruas vazias e até no interior das igrejas, lugar privilegiado
de socialização do período. Em Paraty, no início do século XIX, narra
uma testemunha depondo em favor de Felicidade Maria, defendendo-a
contra Joaquim Pacheco Malvão, que seduziu esta insuspeita Maria, e a
engravidou. A testemunha:

“[...] tem plena convicção ser o Réu quem ofendera a Autora,


sendo certo que nunca presenciou a Autora conversar com outro
homem que não fosse o Réu [...] que na tarde em que encontrou
a Autora e o Réu juntos ao pé do rio, ele testemunha vira em
ocasião que a Autora estava tirando laranjas quando passara o
Réu, e fazendo um aceno para a Autora esta o acompanhou para
o rio onde fora buscar água [...] em uma ocasião havera dois
meses mais ou menos, indo ele testemunha na sua roça em a
praia da Jabaquara cortando um pau vira passar a ofendida e
logo o Réu, e dirigirem-se para o mato e que ele testemunha
presenciara e vira a ofendida e o Réu estarem no mato juntos
e unidos um por cima do outro a fazerem movimento com o
corpo, e que ele testemunha vendo este ato, voltou sem dar a
perceber a ninguém. [...] Disse mais que por duas vezes indo ela
testemunha a sua roça que fica perto de sua casa ai vira de baixo
de um arvoredo [...] o Réu com a ofendida, unidos deitados, um
por cima do outro, e fazendo movimento com o corpo. Disse

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mais que a ofendida dissera a ela testemunha que o Réu lhe
havia prometido casamento, um corte de vestido e um par de
brincos, e que se alguma coisa acontecesse o Réu lhe havia de
amparar”. (Ibid., p. 44-5)

Bauman defende que os smartphones e seus aplicativos


destinados à encontros, bem como as redes sociais, funcionam como
ferramentas dessa modernidade líquida que consome pessoas, corpos
e sexos como mercadorias. Eles facilitam esses encontros ao mesmo
tempo que também descomplicam a dissolução ou impossibilitam
a solidificação dos laços aí iniciados. Daí sua benção dúbia. Nossos
antepassados mais distantes, certamente, não tinham acesso à internet,
mas isso não quer dizer que não buscassem maneiras de facilitar o
contato carnal, conquistar alguém e ampliar o número de parceiros.
O proeminente escritor de ficção científica Arthur C. Clarke afirmou
que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da
magia”. Nossas tecnologias fazem hoje o papel que a magia tinha para
os coloniais, eles buscavam nas forças do outro mundo, nos pactos e
rezas profanas a obtenção do elixir do amor líquido. Rígidas as normas e
mui controlados os ardores de Vênus, não era incomum que, no período
colonial, os sujeitos recorressem aos quebrantos para conseguir realizar
suas fantasias e desejos eróticos. A Inquisição perseguia bruxas e
feiticeiros, mas os rituais e objetos mágicos ainda assim eram populares,
inclusive na metrópole.

Em Minas, no século XVIII, certa Águeda é acusada de possuir


um papel com algumas palavras e cruzes, “carta” essa que servia
para as mulheres tocarem em homens desejados sexualmente.
No Recife, certo Antônio Barreto era quem portava um papel
com signo salmão e o credo às avessas, magia que servia para
fechar o corpo e facilitar mulheres: “qualquer mulher que
tocasse a sujeitaria sua vontade”. (Ibid., p. 50)

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Essa relação com a magia, que para Mary Del Piore (2006) unia
o sagrado cristianismo ao profano pagão, nos demonstra o quanto os
habitantes da Colônia, já ali, se preocupavam com traições e amarrações de
seus amados (PRIORE, 2006). Haviam vários os arcanos que prometiam
fidelidade dos parceiros, o que nos indica que garantir a monogamia já
era uma inquietude comum. O amor líquido colonial ocorria, em certos
casos, não por meio do envio de mensagens e fotos íntimas, mas com
a ajuda de potências místicas que garantiriam o saciar dos impulsos às
pessoas desesperadas para amar liquidamente. Testemunham em favor
da tese aqui defendida a difusão de dietas afrodisíacas (Ibid., p. 105),
dietas para restringir os impulsos sexuais em parceiros potencialmente
“traidores” (Ibid., p. 107), drogas, venenos e métodos abortivos, que
tomaram profusão em plena repressão sexual. Embora simpatias amorosas
ainda sejam compartilhadas nos dias líquidos do presente, a quebra dos
grandes paradigmas morais instituídos na modernidade sólida permitira
que o sexo pelo sexo passasse a ocorrer sem restrição legal, condenação
eclesiástica com força de lei ou a interferência do Estado.
O ciúme, nos casos documentados onde suas manifestações
iam a julgamento, é revelador dos hábitos sexuais da Colônia. Os
quais, importados de Portugal, se consolidaram em uma sociedade
machista e profundamente marcada pela desigualdade dos sexos. Esses
documentos nos explicitam que o ciúme, bem ou mal fundamentado,
transparece uma latência constante para a traição, para o sexo fora do
casamento, para o “amor líquido”. Adultérios que defendo não ser vistos
como minoritários ou “casos isolados”, mas importantes informações
do constante fracasso da instituição da monogamia. Caso ilustrativo é o
de certa Rita Maria Alves Pimenta, que queixava-se a um delegado que:

“[...] no dia 11 de julho às 7 horas da noite pouco mais ou


menos, estando em sua casa pacificamente, entrara sem
seu consentimento Geralda Crioula com cipó na mão

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descompondo a suplicante com palavras injuriosas, dando-lhe
várias cipoadas e pegando-lhe nos cabelos, chegando agarrar-
se a suplicante arranhando-lhe toda e fazendo-lhe contusões,
como visivelmente se vê, e como tal procedimento seja irregular
e muito atrevido quer a suplicante sua justiça [...].” (Ibid., p. 53)

“A ré, Geralda Crioula, filha de Ana Crioula, 30 anos, casada,


justificou sua ação dizendo que:” (Ibid., 53)

“[...] indo à procura de certo sujeito o qual é cativo, o encontrara


saindo da casa da autora, a qual o acompanhando no chegar
da porta da rua, lançava-se ela apaixonada por já estar com
seu sujeito há muito tempo sabe a autora, e ai tiveram lugar
agarrando-lhe pelos cabelos, mas que não lhe dera com o cipó
como ela autora diz em sua queixa, antes ela autora, fora que
lhe ficara com o vestido nas mãos, indo ela ré só com o pano
do mesmo de volta para sua casa, o que teve lugar em a noite de
domingo passado, e que deste modo tem ela alegado a sua razão
[...].” (Ibid., 53)

Segundo Luciano Figueiredo, citado por Mary Del Piore


(2006), nas comunidades mineiras do século XVIII “ficavam evidentes
condutas firmadas em um cotidiano no qual os padrões da Igreja pouco
participam” (Ibid., p.54). Para Gilberto Freyre “O esforço no sentido de
fazer prosperar na colônia estrita monogamia teve que ser tremendo”
(FREYRE, 2003 168), além de nunca ter se generalizado “nas áreas de
cultura americana invadidas pelos portugueses” (Ibid., p. 167).

Dava-se no Brasil o que, segundo Foucault, marcava a vida


das camadas populares na Europa do Antigo Regime: “a não
aplicação da regra”, a inobservância tácita dos preceitos. Pobres
da Europa ou colonos da América não tinham privilégios, “mas
gozavam, no que lhes impunha as leis e costumes, de margens de

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tolerância conquistadas pela força ou pela obstinação”. Assim,
corria solto o desrespeito às leis do Estado e da Igreja no dia
a dia da Colônia e, no plano moral, o aparente desregramento
sexual dos portugueses funcionava, na prática, como condição
inerente ao processo colonizatório. A segunda regra da lascívia
tropical residia, pois, na paradoxal tolerância maldisfarçada
pelos poderes empenhados na colonização — tolerância que
nem mesmo os jesuítas puderam evitar. (VAINFAS, 2011, p. 81)

Não devemos supor que as mulheres ficavam de fora das


transgressões sexuais, ou deixassem de enganar a moral eclesiástica,
como se os poderes da dominação masculina ocorressem totais,
produzindo efeitos sempiternos e demasiado eficientes. O caso de ciúme
de um determinado Manuel Borges para com a crioula Perpétua de
Miranda é outro exemplar. Ao suspeitar da liquidez com que esta tratava
seu relacionamento, o homem “[...] arrombou a parede do quintal dela
e esse se foi por cima do telhado para entrar na casa dela por suspeitar
que ela não lhe abria a porta por ter alguém entrado em casa e depois
[...] lhe deu muita pancada” (PRIORE, 2006., p. 54).
O poder eclesiástico, operando a repressão sexual, não deixou de
encontrar resistências que aparecem na forma do pecar. Mesmo no interior
das igrejas, de quem se esperava o celibato, assomam em Piore (2006)
e Vainfas (2011) os casos de padres que mantinham relações afetivas e
sexuais com mulheres, na contramão de seus preceitos religiosos. (Ibid.,
p. 37); (VAINFAS, 2011, p. 103). Esses casos nos ajudam a perceber que
mesmo nas instâncias da Igreja a liquidez tinha seu lugar.

Ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o


pároco João Ferreira Ribeiro, mandou-lhe um recado “por
um mulato seu confidente” para que fosse à igreja de Santo
Antônio e, acabada a missa, fosse ter com ele no confessionário.
Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago

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e “[...] lá entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a
ela”. “Outra vez, também no confessionário” a mesma Violante
“conversou com o padre que lhe falou que demorasse um pouco
para que os outros pensassem que se confessava”. (PRIORE,
op.cit., p.38)

Considerações

É difícil discordar do diagnóstico feito por Bauman. De que os


laços afetivos se dissipam com mais facilidade, que as pessoas terminam
relacionamentos de maneira mais ágil que outrora. Dispositivos
jurídicos, como o divórcio civil, foram desenvolvidos para isso, as redes
sociais facilitam o trabalho. Os sujeitos dizem “não” e vão embora
quando os relacionamentos não se tornam mais promissores, ou quando
os ônus pesam mais do que os bônus. Essa liquidez que salta aos olhos,
todavia, representa apenas uma primeira camada.
Foi também Peter Berger (2001) quem propôs que o trabalho
da Sociologia era o de descobrir o esqueleto do edifício social. Em sua
alegoria, o senso comum mira a sociedade como olhamos de longe
para um prédio, vendo apenas sua epiderme. O sociólogo, ao invés
disso, precisa descobrir a estrutura, as vidas em seu interior, fazer uma
análise compreensiva profunda não apenas da fachada, mas do âmago
da edificação/sociedade, para entender sua organização, descrever suas
relações. Normalmente a análise sociológica descobre elementos que a
primeira mirada não costuma captar. A análise de Bauman não consegue
perceber o interior do edifício que são os laços afetivos, pois lhe falta
uma análise histórica mais acurada e materialista, menos ensaística,
capaz de penetrar além da superfície.
Ao analisarmos o passado das relações conjugais no Brasil
notamos, que longe de uma solidez fabricada pela livre e espontânea
vontade de todos, a perdurância dos conúbios se dava muitas vezes devido

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a dependência econômica da mulher, por motivos de carência afetiva,
pelo interdito eclesiástico do divórcio, pela dominação masculina.
Em resumo, se erigiram através de relações de poder. Notamos que a
“solidez” não apenas lutou muito para se instituir, como, mostram as
contravenções, nunca ocorreu.
A liquidez própria de nossa gente, o aumento do número
de divórcios, a facilidade de romper os laços aconteceram devido à
crescente liberdade política que os movimentos sociais conseguiram a
duras penas. A liberdade econômica, inseparável da liberdade política,
também amplia o número de rompimentos esponsais, graças ao fato dos
indivíduos, sobretudo as mulheres, estarem cada vez mais independentes
e participantes no mercado. A crítica da dominação masculina que
se cotidianiza, das relações de poder e de abuso também ajudam a
empoderar os sujeitos para perceberem que o ciúme, a violência ou os
“ônus do relacionamento a dois”, não são produtos naturais dessas relações
sociais, ou de nenhuma outra. Pelo contrário, merecem ser criticadas
e descontinuadas, antes que resultem, como várias vezes o fazem, no
adoecimento psíquico e nas violências simbólicas, sexuais, físicas.
Advogo que a praça pública nunca está realmente esvaziada,
que os processos que engendram as estruturas e padrões culturais são
sempre plenos de lutas, de vontades e de comandos. Que as formas de
relacionamento não são meras vitimizadoras de sujeitos, mas numa
positivação de nosso tempo, são produtos de longas batalhas travadas
contra determinações coletivas. Concordando com o sociólogo Alipio
de Sousa Filho, defendo que os padrões culturais e mentalidades não
são frutos de um

gracioso balé de concordância, ou [...] [de um] pacífico aparecer


de estruturas, que vão se agrupando até formar a ordem
social. [Ao invés disso] os sistemas de sociedade humanos
são associações de práticas, relações e instituições sociais,

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acompanhadas de representações simbólicas, inscritas em
culturas e em processos históricos, [...] quase sempre processos
plenos de lutas, conflitos, disputas e interesses divergentes. E
com ou sem ações planejadas, sistemas que se determinam a
instituir verdades, vontades, poderes, mecanismos de controle
etc. Disputas e lutas que podem determinar a conquistas
imediatas ou a travar longas batalhas pela institucionalização
dos modelos econômicos, padrões culturais, padrões sexuais,
conceitos morais, jurídicos, científicos etc. [...] A construção
da realidade social não é, pois, a história de uma construção
harmônica, pacata. Obra de uma história sem indivíduos,
sujeitos ou grupos e classes, e sem interesses. (SOUSA FILHO,
2017, p. 32-3)

Mas apesar de parecerem coisa das últimas décadas, as ações de


resistência, o desejo pela liberalização sexual, mesmo que no campo
micropolítico, também estavam presentes na Colônia. Ronaldo Vainfas
(2011) nos relata vários casos documentados em que sujeitos, muitos
deles homens, brancos, cristãos e portugueses, pregavam abertamente
contra os interditos sexuais da igreja. Era uma “preocupação diária
dos nossos colonos no século XVI” a licitude ou pecado de manter
“relações sexuais com mulheres, não sendo com elas casados”. Esses
questionamentos cotidianos aconteciam pari passu à uma vida sexual
ativa entre solteiros e casados. “E assim, entre essas e outras situações
do cotidiano amoroso, os homens da Colônia proclamavam seu direito
à fornicação, ao prazer, à liberdade sexual” (VAINFAS, 2011, p. 84).
Nesse aspecto, em meio a forças repressivas e disruptivas, a Colônia
não se diferia da Europa6 (Ibid., p. 91). Com isso não quero dizer que
6 “Procuraríamos em vão, portanto, qualquer originalidade “colonial”
nos lusitanos ou mazombos da Bahia ou de Pernambuco, quando diziam não
ser pecado mortal “topar com uma mulher na rua, negociar para dormir com
ela carnalmente e, com efeito, dormir aquela vez”. (Ibid., p. 94)

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os discursos eclesiásticos não produziram uma moral sexual, corpos e
vidas, mas que aberta ou secretamente, essa moralidade era combatida
no próprio ato pecaminoso.
Na Europa medieval, estudada por Vainfas (1986), a punição
para a masturbação era considerada branda. Algumas rezas, jejuns. A
punição para masturbações coletivas, um pouco mais penosas. Mas
havia uma certa tolerância com a prática, principalmente se praticada
por celibatários. Interessa nesta conclusão perceber que a existência da
punição e da tolerância indicam, já no período medieval europeu, o
desejo do gozo pelo gozo, inclusive coletivamente, sem a necessidade
compulsória de criar nenhum laço esponsal com o outro participante.
Se hoje tais “onanismos” coletivos podem ser encomendados
online, certamente o próprio interdito e a publicação das proibições
patrocinavam o conhecimento dessas práticas, na espiral de repressão e
incitação revelada por Foucault (1999, p. 44).
A feminista radical e poetisa AdrienneRich, num clássico artigo
para o feminismo mundial e para as ciências sociais, propõe o estudo
da heterossexualidade enquanto uma instituição política. Como tal, a
função da heterossexualidade seria a de contribuir para a dominação
masculina, por diversas vias, entre elas a criação e difusão das instituições
heterossexuais como dados universais e naturais. As “tecnologias de
gênero”, dessa maneira, promoveriam as instituições heterossexuais
como caminhos únicos e necessários a serem perseguidos e desejados
pelos sujeitos. Casamento, amor romântico, dependência afetiva, tudo
isso seria o produto não da biologia humana, mas do discurso, da
ideologia da heterossexualidade. Em um momento de seu texto, quando
critica o mercado da violência sexual, ela nos evidencia o que foi dito:

A heterossexualidade compulsória simplifica a tarefa do


proxeneta e do cafetão nos círculos e “centros eróticos” mundiais
da prostituição, enquanto, na privacidade da vida familiar, leva

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as filhas a “aceitarem” o incesto-estupro de seu pai, a mãe a
negar que isso esteja acontecendo, a esposa agredida a continuar
vivendo com seu marido abusivo. “Amizade ou amor” são a
principal tática do proxeneta, cujo trabalho é dirigir a fugitiva
ou a jovem confusa para o cafetão para dar algum tempero.
A ideologia do romance heterossexual, irradiada na jovem
desde sua mais tenra infância por meio dos contos de fada, da
televisão, do cinema, da propaganda, das canções populares
e da pompa dos casamentos, é um instrumento já pronto nas
mãos do proxeneta, que não hesita mesmo em usá-los, tal como
Barry registra. Em grande medida, a doutrinação prematura
das mulheres pelo “amor” como emoção pode ser um conceito
ocidental, mas uma ideologia mais universal subentende a
primazia e o caráter incontrolável da pulsão sexual masculina.
(RICH, 2010, p. 31)

Adrienne Rich não se furta de analisar o amor romântico como


uma ideologia. Como vimos, essa ideologia associada à monogamia, não
operou de maneira totalmente eficiente, sem resistências, sem fraturas,
sem micro ou macropolíticas que lhe fizeram e fazem frente. Entender
o amor como um dado universal e natural despotencializa o estudo
das ciências sociais, cega-os para as relações de subjugo e violência que
podem estar contidas numa aparente calmaria, numa solidez de fachada.
É certo que a modernidade líquida e as novas configurações
afetivas causam desconforto ontológico, mas essa insegurança é parte da
condição humana, de nossa condição aberta. Nada está definido, nada
está pacificado. Não há segurança possível para as ontologias; todos os
tempos históricos, como frutos de relações de poder, são tempos de
insegurança, de sofrimento, mas também de alegrias, de modos-de-vida
que se fazem contra as tristezas, os dissabores e desamores. Tempos de
pecados e de pecadores.

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A liberdade é, de fato, uma benção ambígua. Mas não há nada
que seja produto do gênero humano que não resguarde ambiguidade,
contradições internas, incoerências, incongruências intrínsecas,
antinomias extrínsecas. Não há segurança ontológica neste mundo. Pois
nada é o produto final, acabado, totalizado, capaz assim de garantir o
resguardo dos deuses. Só dessa maneira a História pode se transformar,
se refazer, se reconstruir, ad infinitum, mas só enquanto durar o tempo
dos homens e mulheres.

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Referências

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humanística. 23. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001.

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Sociólogo polonês cria tese para justificar atual paranoia contra
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IstoÉ. nov. 2017. Disponível em: <https://istoe.com.br/102755_

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