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O que levaria uma mulher com seus 53 anos de idade a escrever a um "amigo" de
muitos anos, relatando-lhe o que lhe acontecia a cada dia, desde quando se
levantava até quando se deitava, mantendo, assim, uma correspondência que se
estendeu por quase dezesseis anos?
Tais manuscritos, num total de quase 4 mil laudas, que fazem parte do acervo da
Biblioteca do dr. José Mindlin, em São Paulo,^ inserem-se num periodo bem
determinado pelas datas que a condessa neles registra: de 7 de agosto de 1869 a
I- de maio de 1885.
Se a autora, a condessa de Barrai, não foi nem artista renomada, como foram
tantas outras de sua época, e nem mesmo uma artista, já que suas páginas não
apresentam, em princípio, as qualidades que poderiam ser consideradas de teor
literário, a leitura desses apontamentos sugeriria ainda uma outra questão: por
que seria instigante a sua leitura? Ou então, se examinados de um outro prisma,
apresentariam algum tipo de qualidade estética? Nesse caso, talvez pudessem ser
enquadrados na categoria de tantos outros textos escritos por mulheres que, se
Dentre essas relações, uma delas se destaca: a que manteve com o imperador D.
Pedro ii, pois é tal relação que motiva a própria produção da escrita e a suporta,
enquanto centro de interesse, para onde converge aliás toda a matéria narrada —
ou relatada. Além disso, os laços de tal relação são também, funcionalmente, os
elos estruturais que alinhavam um fio narrativo, já levado assim à categoria de
quase-romance enxertado ou inscrito na forma dessas cartas que são diário, ou
desse diário que são cartas dirigidas ao imperador.
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A certa altura, não mais interessa a razão que desencadeia tais laços, se por
razões de ordem profissional (ter sido aia e preceptora das princesas Isabel e
Leopoldina) ou por razões de ordem sentimental e afetiva (formou-se um laço de
sólida amizade — e, quem sabe, de amor — entre a condessa e o imperador).
Amizade ou amor, o caso foi longo e a relação, sólida, pois teria durado cerca de
quarenta anos. É o que também se pode confirmar, tendo em vista a leitura das
tantas entrelinhas do diário da condessa, ali inseridas pelo seu leitor, o próprio
imperador.
Mas antes dos exemplos, algumas explicações. Para se tentar examinar como
este diário da condessa transforma-se em correspondência assídua, que conta,
aliás, com respostas, sob diferentes formas, por parte do imperador, é preciso
especificar alguns dados referentes a essa "situação de escrita" a partir de
informações básicas referentes a dois pontos: quem foi a condessa de Barrai? E
como escreveu ela para o imperador tendo em vista o propósito de assim manter
a regularidade na troca de correspondência?
Não bastaria mencionar que se trata de uma mulher educada do século xix,
embora o tipo de formação intelectual que recebeu parece ter sido decisivo na
determinação dos rumos que teria a sua vida e no tipo de texto que viria a
escrever. Haveria que ressaltar a originalidade de um percurso de vida dinâmico,
numa educação que se desenvolve no circuito Brasil/Europa: da Bahia, onde
nasce, para a França, onde é educada, depois para sua terra baiana, onde passa a
residir, até que é chamada para atuar profissionalmente na corte do Rio de
Janeiro. E mais tarde, dali para Paris, onde residiria até a sua morte, que
aconteceu em 13 de janeiro de 1891.
E quando tinha seus 32 anos, em 1848, Luísa Margarida volta para o Recôncavo
Baiano, porque o pai lá estava muito doente e porque o marido, o conde, não
aceitara ser senador na França de Napoleão iii.
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onde passa a residir. Três anos depois de aí chegar, perde o marido. E continua a
manter os vínculos com sua terra, alimentados, por exemplo, pelas viagens que
faz ao Brasil e pelas várias cartas que escreve à família real. E pelo seu diário,
dirigido especialmente ao imperador.
A mulher educada, orientadora geral dos estudos das princesas, nós podemos
acompanhar, por exemplo, pelas cartas que a condessa escreve à imperatriz
Teresa Cristina e ao imperador, por ocasião da viagem que fazem eles ao
Nordeste em fins da década de 1850.^
Mas não é apenas esse nível de competência profissional que marca a escrita do
seu diário. A autora aí se inscreve também como mulher sensível aos encantos
dessa forma de companhia do amigo ausente, o qual, justamente por essa prática
de correspondência, cultivada com persistência no dia-a-dia, se lhe torna
presente.
Talvez uma das peculiaridades desse diário seja exatamente esta: a do texto
escrito na busca de um estado de companhia. Contrariando toda uma tradição da
escrita do diário como produto de um estado de solidão e de enclausuramento,
tão bem estudada por Beatrice Didier,^ esse diário tem no entanto um
destinatário. E por isso torna-se carta. A vida da autora, que aí aparece relatada
com marcação temporal de ano, mês, dia, hora e minuto, ainda que com certas
interrupções, ganha, com isso, um novo sentido: firma-se no traçado do percurso
do vapor que leva e traz os pacotes dessa substanciosa correspondência.
A escrita torna-se dádiva, doação: eis-me aqui e eis-me também aí, para onde
vou através destas páginas. E com a certeza de destinatário correspondente, nos
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seus dois sentidos: o que responde ao texto que recebe; e o que responde ao que
ele contém, ou seja, às declarações do afeto que se torna assim explicitamente
correspondido.
Esse tom confessional suspirado parece tender a alongar-se pelos dias sub-
seqíientes. No relato desse mesmo dia, a condessa registra os preparativos da
sua viagem à Itália. Aliás, todo o primeiro volume relata essa viagem que fez com
o filho, Dominique, e com sua amiga, Júlia. Eis um trecho, com novo aparte do
imperador:
Domingo 8 — Voilà le grand jour! São 6 horas. Vou me vestir, tomar café e partir
às 8 de casa. Partimos e M'"^ Planat veio nos dizer adeus. [...] Antes de chegar à
estação vimos que tínhamos esquecido nossos batons forres e minha bengala
dada
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Mais adiante, afirma ela: "Às 5 horas já eu estava em pé arrumando meu saco a
meu modo para saber pegar em tudo sem procurar nada. Até agora eram os
arranjos de Maria Angélica, de hoje em diante serão os meus. Mas os cabelos ou
antes as cabeleiras não ficaram arranjadas como por ela e eu andarei um tanto
esgre-nhada". Ele então corrige e escreve por cima: "desgrenhada". Ela continua:
"Não faz mal, já agradei a quem tinha de agradar. Tomamos café às 7". E ele
continua, depois de "desgrenhada": "E sempre agrada na lembrança, não é
verdade? V. gosta de mim de qualquer modo e eu também". E assina: vap (Vossa
Alteza Pedro).
tando-se a assumir direções que o próprio fluxo da vida lhe ia insinuando. Aí,
então, mais um género vem a se misturar aos dois já presentes. Nesse mesmo
primeiro volume de diário, quando a condessa está de partida para a Itália, o
diário transforma-se numa literatura de viagens que leva o leitor, o imperador (e
nós também, leitores, que nos inserimos nesse circuito) a viajar com a autora,
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efeito que resulta do uso de recursos de índole literária próprios a esse género. É
o caso da presentificação de lugares, pessoas e coisas vistas, sobretudo de obras
de arte que merecem comentários, e que conseguem suscitar comentários da
outra parte, da parte do imperador, estabelecendo-se, por vezes, diálogo miúdo a
cada nova visão de algo interessante.
Aí, a história se tece pelas vias miúdas das relações pessoais. Exemplo: "Dizem
que o Príncipe Leopoldo aceitou o trono de Espanha. Será o marido de D.
Antónia?". Algumas vezes, tais comentários guardam o caráter de confidência: 'A
revolução em Portugal deu com efeito um ridículo espetáculo ao mundo.
Confessemos que o Saldanha é um tratante de primeira ordem e o Rei um
bobo!". E segue mais um exemplo: "Eu ignorava que o Conde de Áquila tinha
ataques epi-léticos. Acreditava que isso fosse um triste privilégio dos Bragança".
No final da guerra, os parabéns ao imperador e... "os votos para que meu país
não se meta tão breve em outra". Ao que o imperador acrescenta: "Agora ainda
sou mais pacífico do que sempre fui". Mas segue-se outro conselho: "V. tem
ainda que ganhar outra campanha. Campanha muito mais interessante do que a
outra. A Campanha de Emancipação".
Dotada de uma personalidade não tão suave e que nem sempre se mostra de
acordo com as atitudes do imperador, a condessa se subleva em violentas
recriminações, como nas criticas que faz a certas nomeações. Cito exemplo
extraído desse mesmo segundo volume do diário: "O Luiz Carlos e Totônia são
injustiça-
dos. V não escolhe Luiz Carlos e escolhe Cândido Borges". Indignada, por dias
seguidos volta ao assunto. O imperador é, então, o "ingrato". Essa briga, que leva
dias e dias, aguça-se quando a condessa deve enfrentar críticas ao imperador em
público. "Eu que sinto em mim instinto de onça para avançar e arranhar quem
ouse falar contra V. diante de mim, olhei para as minhas unhas e só as cravei em
mim de raiva." E o imperador: "É mau sentimento, mas nem por isso fico lhe
querendo menos '. Só muitos dias mais tarde a raiva há de ser aplacada. "Que
tenho eu com Senadores, não me dirá? Absolutamente nada, mas tudo tenho
quando se trata de V e V nem pode imaginar a pena que ressente da injustiça e
ingratidão feita ao pobre Luiz Carlos." Ao tentar revidar, lança ameaça: deixar de
ler as cartas do imperador. Mas logo desiste, ao reconhecer que esse esforço está
acima das suas forças. ..
As cenas violentas têm sempre final feliz. "Quando eu tomo raivas tenham pena
de mim para eu não fazer explosão. Não é mau privilégio para quem tem sido tão
polida e tão amável durante 54 anos de sua vida poder agora ser mal-criadinha
sob pretexto que le sang se porte à la tête\ [...] Que meu amigo fique certo que a
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guerra que eu lhe declarei não terá outra consequência se não de cimentar paz
eterna contanto que ele tenha juízo!" E o imperador pergunta: "Que chama V. de
juízo?".
Em todo esse segundo volume, que se toma aqui como ponto de referência para
as exemplificações, perpassa, como uma sombra, a lembrança do Brasil.
"Quantas terras já visitaram estes bauzinhos! Mas nunca os arrumei com tanto
gosto como para ir ao Brasil, nem com tanta tristeza como quando de lá vim!" E
ele: "Quem dera que eu já pudesse cuidar dos meios para ir ver a V.!".
Assim sendo, o texto nos mostra um curioso e rico hibridismo de géneros, que
inclui o diário que é correspondência, literatura de viagens, autobiografia,
narrativa romanesca, história de amor, notícia, variedades, crónica de costumes,
e em que a condessa de Barrai, personagem histórica, pela força de sua
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PAPEIS INVERSOS
capítulo a acrescentar a essa história, que, por ora, se resume numa nota breve
sobre o inverso de uma situação: se o imperador está presente no diário da
condessa, a condessa também está presente no diário do imperador.
Esse diário escrito por D. Pedro ii, que se distribui em 43 cadernetas escritas ao
longo de 51 anos, de 1840 a 1891 — e que aparece em excelente edição
organizada por Begonha Bediaga, em livro e cd^ —, também é, pelo menos
parcialmente, enviado à condessa de Barrai. O diário, escrito até cinco dias antes
da morte do seu autor, que aconteceu a 5 de dezembro de 1891, oferece pontos
de convergência significativos.
[...]
2h Vz — Ainda vou lhe falar esta tarde [...] sobre seu diário.
5h Vi — Acabo de tomar o café. Vejo tudo fechar mas quero antes lhe dizer que
minhas saudades aumentam todos os dias e que espero que sua alocução
adivinhará o que a falta de tempo não me permite acrescentar. Adeus!
Além das conversas entre os dois que são desenvolvidas no fluxo dos relatos
diários, outras acontecem por ocasião dos encontros efetivos, durante as viagens,
ora de um, ora de outro. Nos últimos anos de vida encontram-se regularmente,
quando o imperador, em exílio, fixa residência na Europa e faz constantes visitas
à condessa, acompanhado ou não da imperatriz. É nessa fase final de vida que D.
Pedro II registra a morte da imperatriz e da condessa.
1% — Não sei como escrevo. Morreu haverá Vi hora a imperatriz, essa santa.
Tinha ido à Academia das Belas Artes e ao sair foi chamar-me o Rebelo que a
Imperatriz tinha tido uma síncope. Já achei o prior da freguesia que lhe acudira
com os ofícios extremos da Igreja. Ninguém imagina a minha aflição. [...] Nada
pode exprimir quanto perdi...
2h 5' Morreu a condessa de Barrai minha amiga desde 1848 e de ver todos os
dias, educava minhas filhas desde 1851. O mérito dela só o aquilatou quem a
conheceu como eu. O telegrama ao Aljezur é este "Maman éteinte ce matin
service vendredi seize mid! Neully S. Bon Enterrement Paris samedi Prevenez
doucement — obrigado! — Sa Majesté. D. Barrai.
ESCLARECIMENTOS
Nunca pensei que escreveria sobre essas cartas, que naquela altura passei dias
inteiros lendo. Algumas, por serem excepcionais, transcrevi ou mandei copiar —
como aquela em que a marquesa tece a estratégia matrimonial para o
primogénito e determina quais as etapas que deve cumprir na viagem entre Paris
e Lisboa;
chamaram-no para Portugal, onde viveu à lei da nobreza por mais de dez anos,
gerando outros onze filhos e se envolvendo em arruaças comuns entre os de sua
classe. Desempenhou funções de comando militar, e em 1744 teve de novo a
oportunidade de servir a Coroa nas possessões ultramarinas: enviaram-no para a
índia como vice-rei e, para vencer-lhe a vontade, que era de não ir, fizeram-no
marquês de Castelo Novo.
Mais uma vez deixou para trás a mulher, D. Maria José. Mas se antes ficara
sozinha, à espera do marido para dar sequência à sua função procriadora, a mar-
Por volta de 1741, os dois filhos mais velhos, D. João, o herdeiro da casa, e D.
Luís, o segundo na linha sucessória, foram estudar em Paris, lá morando em casa
de D. Luís da Cunha, grande amigo do marquês. Em Lisboa, apoiando-se no
cunhado D. Francisco para as decisões mais difíceis, D. Maria José seguiu
lutando contra as despesas e contra uma doença penosa, provavelmente câncer
abdominal. A doença terminaria por vencê-la durante a ausência do marido,
após um verdadeiro calvário de sangrias e incontáveis juntas médicas que
atestam mais uma vez o descompasso entre Portugal — onde a medicina era
atrasadíssima — e o resto da Europa.^ As despesas, ela ainda tentaria contorná-
las em vida, urdindo para D. João um casamento rico.
D. João de Almeida tinha cerca de quinze anos, e seu irmão D. Luís pouco menos
de onze, quando, escoltados pelo criado Alexandre, trocaram Lisboa por Paris. O
menorzinho está pouco representado nas cartas enviadas à mãe. Parece mais
conformado com a sorte, e aos poucos começa a escrever numa língua ar-
revesada, cheia de francesices. Nunca mais voltou: integrou-se ao novo meio,
estudou filosofia, conservou "a linda figura" que tinha desde menino e, feito
"Cavaleiro Professo da Ordem de Malta e seu Bailio em França", deve ter
morrido solteiro, sem descendência.'
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[...] nada sinto tanto na minha vida como o não ter feito uma campanha,
principalmente nesta terra onde há tanta gente que me excitam [sic] a emulação
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sobre essa matéria, e confesso a VEx^ que nada é tão penoso para uma pessoa
que tem sentimentos de honra como o ver as esperanças perdidas de poder
alcançar glória e achar-se na ociosidade entre gente que a adquire todos os
dias.^
Tinha dezessete anos. Com sua idade, o pai, D. Pedro, começava nos campos da
Espanha uma bela carreira militar. Inferiorizado, D. João suportava mal a
comparação, e "ardia" por mostrar ao mundo as honras com que nascera, o que,
acreditava, não seria fácil no acanhado ambiente português:
Logo que soube que V.Ex^ ia para a índia, um artigo de uma carta, que V.Ex^
não recebeu, continha o eu pedir-lhe com instância, não podendo ir com VEx^, o
man-dar-me ir pelas primeiras naus; e ainda estou no mesmo parecer, e se
V.Ex^ achar tempo, e for desse parecer, será de grande gosto para mim. YEx^
sabe muito bem que não lhe falta sucessão para a sua casa, e nós somos três
irmãos, e eu acho-me com bastante força para resistir a viagens muito longas, e
das incomodidades corporais se me dá pouco, enfim desejava poder dizer achei-
me, aqui ou ali, onde usei como homem honrado. O ponto de honra aqui é de
grande consequência, e muito exercitado, o que eu não vi em Portugal; é verdade
que saí muito moço, mas o que ouço dizer agora, e pela forma dos duelos, já que
não pode haver guerra, e por causas semelhantes, parece que, se há bravuras, são
mais por natureza do que por reflexão ou prejugé, o que vem a ser o ponto de
honra [...].
cridade — expressos nas cartas à mãe, a marquesa reagia revelando que, pelo
menos naquela família, o monarca era visto com reticência:
[...] vem, meu filho, e vem alegre, e vem alegrar-me, e compadece-te de uma mãe
que vive em um tormento contínuo de saudades, de cuidados e de moléstias; se
agora não lograstes dos divertimentos de Paris, o mundo dá muitas voltas, e lá
virá tempo em que os vassalos desta Coroa terão mais liberdade, El-Rei não há
de viver sempre, e se o que vier for mais fácil poderás tu ir buscar Luís, quando
houver de vir, e com esse pretexto ir estar 6 ou 8 meses em Paris. ''
Para vencer eventuais resistências do filho, D. Maria José lembra que, então, o
marquês já estaria de volta, e contornadas as dificuldades económicas. Havia a
jovem esposa, que poderia protestar com a perspectiva de ficar só por uns
tempos. Mas não era este o destino — mesmo que provisório — das mulheres em
geral, e das portuguesas em particular, tendo em vista a vastidão do império?
"Bem sei que tua mulher não gostará", prossegue a marquesa, referindo-se às
ausências, "mas há de se acomodar assim como eu me acomodei com as que teu
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pai tem feito, porque as mulheres de bem, ainda que sintam, sempre se
acomodam com o que seus maridos determinam."'^
D. João cedeu. Foi a Fontainebleau dizer adeus aos monarcas franceses — Luís
XV e Maria Leczinska —, e derramou lágrimas sentidas ao se despedir do antes
tão criticado D. Luís da Cunha, deixando por fim Paris para se casar em Lisboa.
Não há como saber se, na prática, acatou as instruções meticulosamente
passadas pela mãe. Se o fez, aprontou-se meio às pressas para evitar as neves
que, a partir de dezembro, tornariam a travessia dos Pireneus mais penosa do
que já era. De Paris teria seguido por seis dias e meio em seges de posta até
Baiona, onde bois puxariam as seges enquanto os passageiros caminhavam a pé
por quatro léguas terríveis, bordejando precipícios "de forma que foge o lume
dos olhos à gente que olha para eles".'^ Viajaria acompanhado de "um vale de
chambre e um lacaio", pois não convinha andar sozinho e se expor demasiado "a
algum insulto de ladrões, que em toda parte os há". Talvez tenha se demorado
em Madri cerca de uma semana, lá se encontrando com fi-ei Antonio da Piedade,
filho do conde de Ericeira, amigo íntimo do marquês e um dos maiores
intelectuais portugueses de então.
4. A ESTRATÉGIA MATRIMONIAL
[...] a falta de novas de teu pai me tem em contínuo susto, Deus por quem é se
lembre de nós e no-las traga boas; e para tudo me mortificar, nem a consolação
de estar com todos vocês posso ter, e assim me vejo com os cuidados tão
repartidos que nenhum gosto tenho de nada, e sobre tudo isto carrega sobre
mim o peso desta casa com perto de 300 mil cruzados de dívidas, dos quais
vencem juros 200, e assim ando sempre em uma roda viva; e todos os anos nos
empenhamos mais nos 5 mil cruzados que para lá mandamos, que já são 20 mil
cruzados, os que vocês aí tem gasto; e absolutamente eu já não posso com tanta
despesa, e sem embargo de que desejara dar-te o gosto de te dilatares aí até
março, vejo que não posso assim, pela falta de meios como pelo negócio de mais
importância para a nossa casa, que é o do teu casamento [...]."
Mas este não era negócio a se arranjar com facilidade. Escasseavam noivas —
"nossa terra está tão falta de casamentos", lamentava-se a marquesa —, e muitas
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as Mouraria, Maria Manuel "na última desesperação", ou, por fim. Madalena de
Lencastre, sobrinha da marquesa.
Madalena era imensamente rica. Era a única herdeira da casa de Vila Nova de
Portimão, e possivelmente herdaria também a fortuna dos marqueses de
Abrantes, como revela D. Maria José com uma crueza chocante: "[...] ainda que
ali há um filho de Isabel, este é muito pequeno e não tem tido bexigas nem
sarampo, e pode faltar, e faltando ele é Madalena a herdeira daquelas duas
grandes casas, e ainda que não o venha a ser sempre há de ter grande legítima
[...]".
Boa parte dos varões nobres haviam tentado obter sua mão: o conde de Santiago,
o de Soure, o de Unhão, o marquês de Minas e o de Louriçal. A nenhum deles a
quisera dar o pai, irmão de D. Maria José, "porque", escreve a marquesa ao filho,
"estava destinada por Deus para ti". Era alta, muito branca, com lindos dentes,
dotada de muita graça, viveza e entendimento. Desembaraçada, gostava de canto
e dança e falava tanto finances como italiano.
[...] e pelo que toca ao seu génio também este se muda com o tempo, porque os
maridos fazem as mulheres, ela está em uma casa mui rica, gastando muito com
muitas amigas a quem dá muitos presentes, mas isto suavemente se lhe pode
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tirar, é muito feita de sua vontade assim como o são todas as filhas validas dos
Pais, é um pouco altiva mas em vendo que tu e nós não gostamos de gente
soberba logo se há de ir à mão, porque como tem entendimento qualquer coisa
bastará para perceber o que nós quisermos; eu cá ando fazendo as minhas
novenas e pedindo para acertarmos com a vontade de Deus.
Olhava depois para a salvação que depende de uma vida reta, e calculando
achava que esta senhora teria já 43 anos, e segundo a sua estrutura,
bastantemente avelhantada quando eu me achasse só com 28, que para homem
é ainda bastantemente moço; é muito casual que o demónio me não tentasse,
com tanto maior fruto que havia em mim desconsolação da vida que
direitamente devia observar; isto de nenhuma forma se acordava com os meus
sentimentos, porque se por alguma forma posso desejar o meu estabelecimento,
é por essa forma estar menos sujeito às tentações em que, pela nossa fragilidade,
podemos cair, e principalmente em Portugal, onde a ociosidade é maior que em
parte nenhuma, e nem há esperança de se poder a gente livrar dela nem em
divertimento, nem em trabalho.^'
A carta fala ainda das desavenças que vinha tendo com a sogra, a marquesa de
Távora, geniosíssima. Com o sogro e os cunhados dava-se bem, mantendo
cautela e prudência porque todos naquela família se julgavam muito
importantes.^^
Aqui param as cartas, janela magnífica para se desvendar a vida privada de uma
família nobre. Seu destino posterior mistura-se inextricavelmente com o do país,
ganhando portanto o domínio público.
D. João V morreu em 1750 e foi substituído pelo filho, D. José: começava a era
de Sebastião José de Carvalho e Mello, o novo ministro, futuro marquês de
Pombal. Essa mesma nobreza que pontua cartas com descontentamentos mais
ou menos velados suspiraria de saudades da ordem anterior. O velho marquês de
Alorna deixou a índia em 1751, pois só então chegava o sucessor que tanto
pedira. A viagem de volta foi longuíssima: parou na Bahia, quebrou uma perna e,
já em Lisboa, não conseguiu ser admitido ao beija-mão real. Percebeu então que
caíra em desgraça e morreu inconformado no ano de 1756.
Quem o sucedeu na índia não foi outro senão o marquês de Távora, sogro de seu
filho. Diferentemente de D. Maria José e de tantas mulheres que ficavam para
trás, a marquesa acompanhou o marido, permanecendo a seu lado por todo o
tempo. Pouco após regressarem a Portugal, viram-se acusados, junto com outros
membros da alta nobreza, de participar na tentativa de regicídio ocorrida em
1758, quando tiros surpreenderam D. José na volta de uma escapadela conjugal.
Junto com outros membros da alta nobreza — entre eles o duque de Aveiro — os
Távora foram todos presos, inclusive D. João de Almeida, o genro, na época já
marquês de Alorna pela morte do pai.