SUPERMÃE PORRA LOUCA Texto de Dario Fo e Franca Rame PERSONAGENS
MÃE
AÇÃO
No interior de uma igreja.
MÃE – Puta merda! Até na igreja esses filhos da mãe me
perseguem. E agora, aonde é que eu vou me esconder? Na Sacristia. Mas, onde está a Sacristia? Pronto: chegaram mais dois. Puta merda: dessa vez me encurralaram. O confessionário! Me encurralaram uma ova! Me escondo no confessionário! Droga: está ocupado. Tem um padre lá dentro. Incrível como os padres hoje em dia estão em todo lugar! Ah, mas eu tenho uma saída. Vou me confessar. Duvido que esses policiais de merda tenham coragem de interromper o sagrado sacramento da confissão. Padre: eu queria me confessar... Padre? Está me ouvindo, Padre? Caralho: está dormindo! Ei, Padre: acorda! Ei, Padre! Ah, até que enfim! Ora: o que eu posso querer aqui ajoelhada? Me confessar, é claro. Posso começar? O quê? Não, essa eu nunca ouvi: ele pediu licença. Antes de confessar quer ir até o bar da esquina, tomar um cafezinho. Nada disso: daqui o senhor não sai. Se insistir eu faço um escândalo. Eu sou Católica Apostólica Romana, batizada e crismada, e, portanto, tenho o direito de me confessar. Vamos Padre: deixa de onda e me confesse logo. Eu estou ardendo, estou queimando de fé... Padre: me confesse logo, que depois eu lhe pago um cafezinho. Ótimo! Posso começar? O quê? A última vez? Deixa eu pensar um pouco... Vinte anos! É Padre: a última vez que eu me confessei foi há vinte anos. Foi no dia do meu casamento. Claro que casei na Igreja, de véu e grinalda. O que o senhor está pensando que eu sou? Foi uma cerimônia linda. Pra dizer a verdade, eu nem queria casar na Igreja. Só acabei casando porque a minha sogra insistiu muito. Ela era muito Católica – Deus a tenha – e o seu maior sonho era ver o filho casar na Igreja. Eu também sou muito Católica. Uma Comunista Católica. Atéia não, Padre! Marxista! Tem algum mal nisso? Grave porque eu não sou muito praticante... O senhor tem toda razão. Mas eu sou Católica. Sempre fiz a minha autocrítica, pelo menos uma vez por mês, junto com os outros colegas, claro. Como não é a mesma coisa? Mas eu sempre achei que depois de um compromisso com Deus... O senhor acha é? Bem, sim, o Senhor deve ter suas razões. Ah, estou pronta sim. Podemos começar! Juro dizer a verdade, toda verdade e nada mais além do que a verdade... O que foi que eu fiz de errado? Oh, desculpe, Padre! Foi o hábito de tantos julgamentos, de tantos malditos processos que... – ih, vários -... Eu duvido que o senhor calcule quantos. Por vários motivos: desacato a autoridades, resistência à prisão, roubo de pequenas coisas sem importância, que depois se transformaram em roubo de coisas muito importantes... Ah, Padre: assim o senhor me ofende! Amadora, não! Eu sou uma ladra profissional. Mas roubar não me entusiasma muito não. Prefiro os saques. Principalmente aos supermercados. Ah! Eu acho lindo roubar os supermercados. Minha avó sempre dizia: “ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão”! O quê? Sozinha? Engano seu. Eu nunca estou sozinha: têm sempre trinta, quarenta, cinqüenta mulheres comigo. Entramos no supermercado e levamos tudo o que não podemos comprar. Quem manda eles colocarem tudo ali, à mostra, provocando a cobiça da gente? Ora, Padre: os nossos furtos são um pequeno grão de areia no meio do oceano de lucros que eles têm às nossas custas. O quê? É pecado? Pecado mortal? E a inflação, Padre, não é pecado? Não é um assalto diário ao bolso da gente? Que foi Padre? Engasgou por quê? Quer que eu lhe bata nas costas? Levanta a cabeça que passa! A culpa não é sua, não. É do Governo. Fique calmo, que está quase na hora do seu cafezinho. Está tomando nota direitinho dos meus pecados? Veja lá, hein? Depois não vai exagerar na penitência. Tenho família, é claro! Um marido e um filho. Não, eles não roubam nada, não. Não fazem parte de nenhuma quadrilha, não. Não, também não trabalham pro Governo, não. Vivo - isso o senhor tem toda a razão: vivo muito fora de casa. Sei, eu sei que não sou nenhum modelo de virtude. Sei: como mãe e esposa eu sou uma absoluta negação. Agora, escuta só, Padre! Se hoje eu sou essa porra louca que o senhor está vendo... é, foi o que eu disse... porra louca! O que é que tem demais? É exatamente assim que me chamam! Bem, se hoje eu sou assim, é porque durante quase toda a minha vida, eu fui o modelo de virtude que o senhor acha que eu deveria continuar sendo. Eu fui uma mãe dedicada e uma esposa exemplar. Durante anos fiz tudo pela minha família. Dei o meu sangue e muitas vezes até o pão da minha boca. Tudo por amor a eles. Por eles larguei até o que me era mais caro e importante: o meu emprego. O emprego que eu tanto gostava e que me dava uma certa liberdade. Eu era Chefe de Seção na fábrica e também trabalhava no Sindicato. Mas o meu marido tanto insistiu, tanto exigiu; que eu larguei tudo. Tudo por amor à família. Pra criar o meu filho. E eu criei o meu filho como se ele fosse o próprio Menino Jesus. E o meu marido o São José, e eu me sentia como se fosse a própria Nossa Senhora... o boi e o burro, tudo junto... Blasfêmia? Pode ser Padre, pode ser. Mas foi assim que eu consegui ir levando alguns anos da minha vida. Depois o meu filho cresceu, foi pra escola e se meteu com a política, essa maldita política. Um dia chegou em casa todo arrebentado e sujo de sangue... Eu abri a porta e... desmaiei de susto. Depois daquele dia, todas as vezes que ele atrasava, uma sirene de ambulância começava a tocar na minha cabeça: “é meu filho, é meu filho”. Eu gritava: “essa polícia filha da puta arrebentou o meu filho outra vez!” Padre, o senhor já foi mãe alguma vez? Mãe de um agitador? Em casa ele contestava tudo. As palavras mais gentis que ouvíamos dele eram: oportunistas, acomodados, reacionários de merda, parasitas da sociedade... Ele vivia me provocando, o senhor entende? “E aonde você pensa que vai?” Não, não, Padre, por favor, fique calmo, eu não estava falando com o senhor. Jamais chamaria o senhor de você: não temos nenhuma intimidade. Eu estava falando com o meu filho: “aonde você pensa que vai?” “Vou sair com os meus companheiros”, ele berrava. “E por que não sai comigo e com o seu pai? Não servimos pra seus companheiros?” E ele respondia: “não, vocês são a família, e a família não passa de um pesado saco de merda, de patê da Sadia, na vida da gente”. Eu não podia agüentar mais aquela angústia. Ficar em casa esperando que me entregassem o meu filho morto nos braços. Então comecei a freqüentar as passeatas e as manifestações. Ficava sempre dez ou vinte metros atrás dele, controlando tudo, sem que ele percebesse. E, pra não dar na vista que eu não era um deles, gritava as mesmas coisas que eles. Quando eram coisas contra o Governo, até que eu gostava. Mas quando era obrigada a gritar contra minhas próprias ideologias políticas... Nossa Senhora: como eu passava mal. E dizia para mim mesma: “calma: é tudo por amor ao teu filho!” Muitas vezes, Padre, eu tinha que correr, e correr muito... todas as vezes que... Eu estou aqui, Padre. Não, eu não estou agitada. Eu tinha que correr pra não apanhar, entende? Tudo por amor ao meu filho! Ah, Padre, o senhor não pode imaginar como o amor acabou comigo. Eu não sou de dar conselhos, mas este não tem erro: “nunca se apaixone por ninguém. Nunca faça nada por amor!” Sabe o que me aconteceu numa dessas manifestações? Eu perguntei: “e amanhã, companheiro, como será a manifestação?”, e eles me responderam: “pacífica!” Então eu me vesti para uma manifestação pacífica: um salto dessa altura e uma saia justa... Mas, naquela manhã, nunca se viu um ataque da polícia tão violento. Nada tinha sido mais violento nos últimos cem anos. Tava todo mundo em cima de nós: polícia civil, militar, cavalaria e até os guardas de trânsito. E eu com aqueles saltos, correndo, com medo de cair. Daí eu tive que levantar um pouco a saia até aqui, olha, senão... O que foi Padre? Nunca viu as pernas de uma mulher, não? E toda a polícia atrás de mim. E eu gritava: o que vocês querem comigo? Fora, mata! Morte aos vampiros do século XX! Nossa, que corrida! Acho que naquela tarde eu fiz uns 54 km. Quando escapei, me sentia mal. Estava suja, suada, com o coração saindo pela boca... Sentia um calor infernal, tinha os ovários fervendo, todo o meu corpo exigia um... Ih, Padre, como não posso dizer uma coisa dessas na igreja? Eu só queria um bom banho. Gostaria de ver o senhor numa situação daquelas. O senhor já experimentou correr de saltos altos, levantando a saia até os joelhos? Era fumaça para todos os lados, gás lacrimogêneo, tiros, bombas molotov, jatos d’água... e, no meio de toda aquela confusão, percebi que havia perdido de vista o meu filho. Comecei a berrar com todas as forças dos meus pulmões: “filho, filho!” Naquela tarde, todos os filhos do mundo responderam, menos o meu. Desesperada, chorando sem parar, vi meu filho do outro lado da rua, nas garras de um policial, que com o cassetete... paf, paf, paf, batia no rosto delicado dele. Ah, Padre: eu não enxerguei mais nada. Agarrei aquele milico filho da puta pelo capacete, e com os meus dentes mordi a orelha direita dele. Arranquei um pedaço da orelha direita e se não tivessem chegado os outros colegas dele, tinha arrancado da esquerda também. Como? Não se deve fazer uma coisa dessas? Quem com ferro fere, com ferro será ferido. E ele ia ser ferido com o quê, Padre? Era o meu filho que estava apanhando com o cassetete. Fui eu que fiz ele... com a ajuda do meu marido, claro... mas, eu demorei nove meses pra fazê-lo... aqui dentro... Eu vi cada coisa dele ir crescendo: os olhos, os vinte dedos, os dentes... nove meses e aquele policial filho da puta queria quebrar tudo em apenas dois minutos? Nunca! Arranquei um pedaço da orelha dele pro meu filho conseguir fugir! E ele fugiu Padre! Eu não! Eu fiquei, e eles me encheram de porradas e me levaram presa. Fiquei íntima deles, tantas vezes me prenderam. “E dá-lhe processo em cima”, gritava o Delegado. Ah, como me encheram por causa daquela orelha. Ainda se fosse a orelha de alguém importante! O Presidente do Tribunal, com uma voz terrível, vivia me dizendo durante os julgamentos: “a senhora feriu a orelha do Estado!” Ah, Padre: quanta coisa eu passei na minha vida. Como o amor acabou comigo! O senhor já amou alguém, Padre? Não, Cristo não vale! O meu casamento foi por amor. Como eu amava meu marido. As primeiras encheções de... as nossas primeiras incompreensões ideológicas só aconteceram bem mais tarde. Tudo porque eu não concordava com o comportamento ideológio-social-político-moral- culinário do meu marido. Eu também trabalhava fora, oito horas por dia, mas quando chegávamos em casa, eu continuava trabalhando: tinha que lavar roupa, passar, arrumar as camas, fazer comida, enquanto ele ficava sentado na poltrona e trac – assistia à novela das seis, das sete, das oito... “Assim não dá!”, eu gritava – “eu também trabalho fora o dia todo e estou tão cansada quanto você”. Ah, quem foi que falou que a libertação da mulher começa quando ela conquista o direito a um trabalho assalariado? Eu consegui um trabalho assalariado fora, mas e o trabalho em casa, com quem ficou? Comigo: e quem paga por ele? Ninguém! Bonita libertação teve a mulher. Belo pagamento. Com o casamento sempre acaba ganhando trabalho em dobro. Além de tudo, com o casamento eu acabei ganhando um presente maior que todos os outros: a asma do meu marido! É Padre: asma nervosa! Quando eu ficava com o saco cheio de tanto trabalhar... quando eu não podia mais agüentar, eu gritava: “olha que eu largo tudo e vou embora, hein?” E ele, catapimba!... apelava para a crise de asma: ai!... Ficava magro como um palito, não conseguia respirar direito, faltava no trabalho... Eu tomava cada susto! Às vezes acordava com ele pra morrer: “não querido, calma, não se preocupe, eu estou com você. Aconteça o que acontecer, eu estarei sempre ao seu lado. Não foi isso que juramos na Igreja, no nosso casamento?” A crise ia embora, ele adormecia e quem ia morta pro trabalho era sempre eu. Quando veio a gravidez... O quê? Não, Padre! Eu nunca encarei a minha gravidez como uma desgraça. Aliás, fui eu quem quis o meu filho. Fiquei tão feliz porque estava grávida. O senhor não pode imaginar a minha alegria: foram nove meses de vômito. Imóvel na cama, com medo de perder a criança. Ah, mas eu tinha um grande consolo. Entre um vômito e outro eu pensava: “este filho vai mudar a minha vida!” Afinal, a mulher que não dá a luz a um filho, não é uma mulher: é apenas uma fêmea que abre as pernas... Desculpe Padre! Que imbecil que eu era! Está bem, já estou chegando aos meus pecados... Se eu não fizesse essa pequena introdução o senhor não ia me entender. Está bem, concordo. Pulo toda a minha história e vou parar no ponto que interessa. Há dois anos descobri que o meu filho estava se drogando. O quê? E eu lá sei se era droga da leve ou da pesada? Francamente, Padre, o senhor tem cada coisa! Pra mim, saber que ele estava se drogando já era o suficiente. Só de ouvir essa maldita palavra eu já sentia um calafrio. “Depravado, ingrato, monstro, anti- social”, eu vivia gritando pela casa. “Onde foi que eu errei? Onde foi que você errou?”, eu perguntava pro meu marido, e sabe que resposta vinha dele? “Ai... ai...!” A maldita crise da asma. E o meu filho continuava ‘curtindo a vida’ com seus amigos e amiguinhas. “Chega de falar nisso, mãe! Ainda se fosse heroína, que mata! Mas fazer todo esse escândalo só por um fuminho à toa, que eu puxo de vez em quando?” “Olha aqui”, eu disse, “ou você pára com isso já, ou boto você pra fora de casa, com seus amiguinhos e suas putinhas.” E sabe o que ele me disse, Padre? “Não precisa me pôr pra fora, não! Eu vou embora já! Agora mesmo. Você não tinha o direito de ofender as minhas amigas. Eu vou embora já”. “Pra onde você vai? Pra casa da vovó?” “Que casa da vovó, o quê?”, ele me disse. E eu rebati: “vai, lindo, vai, pode ir. Você pensa que eu me incomodo?” Eu disse isso com o coração fazendo patrafan, patrafan, patrafan! “Quero só ver quantos dias você agüenta ficar fora de casa. Três no máximo... e depois você volta correndo pros braços da mamãe, que sempre te dá tudo”. Passou uma semana e nada dele voltar, Padre. Eu não dormia mais, não comia mais... E o meu marido: ai, ai, ai – crise de asma! Procurei por ele em todos os lugares: nas escolas, nos bares, nas boates, mas ninguém sabia dele. Eu achei que ninguém falava, porque eu era a mãe dele. Não queriam me informar, entende? Então resolvi me travestir! De que, meu Deus? – de Porra Louca. Não sabe quem são os porras loucas? São aqueles caras sujos que vivem puxando fumo, não trabalham, roubam uma coisa aqui, outra ali e vivem de favores. São aqueles que estão sempre na deles, entende? Se eu tinha idade pra isso? Não, não tinha! O senhor pensa que eu sou burra, é? Foi pensando nisso que eu resolvi me travestir de cigana. Ciganas não têm idade, concorda? Ainda bem. Fui até um bazar de roupas velhas e peguei várias peças, tudo descombinado. Uma era original, a outra oriental, a outra fabricada aqui mesmo e fiz o meu traje. Sandálias da Síria (havaianas), um saiote do Marrocos, uma blusa do Afeganistão e um lenço grego, que de grego não tem nada: é, no máximo, das Casas Pernambucanas. Depois, um pouco de maquiagem, uma jaqueta de dente de ouro, que a minha irmã perdeu lá em casa há três anos, durante um espirro. Anéis, colares de vidro, e estes penduricalhos de orelha. Ih, nem gosto de lembrar em orelha... Me enfiei no meio de um grupo de porras loucas, composto por machos e fêmeas bastante duvidosos. E lá estava eu, parecendo uma árvore de Natal, tantos eram os balangandãs. E sabe o que aconteceu? Ninguém deu bola pra mim. Então puxei um vidrinho com uma mistura que eu mesma tinha preparado: essência de terebintina, óleo de fígado de bacalhau, bosta de cavalo, fumo em corda, álcool puro, tintura de iodo, pasta de dentes para dar cor, creolina e algumas gotas de limão, que sempre vai bem com qualquer coisa. Sento num canto e começo a cheirar aquela coisa, com os olhos perdidos, como se estivesse em êxtase. Três segundos depois, todos os porras loucas estavam em cima de mim: “o que é isso? O que você está fazendo? Que barato é este?”, e eu respondendo: “tô me drogando! É um material da pesada!... Pode experimentar, mas cuidado, eu não quero mortos às minhas costas!”, e todo o mundo foi enfiando o vidrinho no nariz, até o cérebro, exclamando: “que droga incrível, meu!” “Ela é gente fina, meu irmão!” Coitados: como é fácil embrulhar esses trouxas. De repente, todo mundo começou a se interessar por mim. Padre: o senhor não imagina as lorotas que eu inventei: “sou filha de mãe indiana e pai cigano calabrês. Vivo lendo a sorte nas cartas e nas estrelas... me alimento, exclusivamente, do sangue dos gatos e das galinhas, que eu mesma degolo, porque se vocês não sabem, eu sou uma bruxa”. Não, claro que não acreditaram em tudo, mas me acharam simpática e deixaram que eu me juntasse ao grupo. Meu filho? Não, ninguém viu. Eu mesma vi ele, uma vez, de longe. Foi num salão, onde estava se exibindo uma banda de rock, dessas da pesada mesmo. “Agora eu pego esse miserável!”, pensei. Mas quando eu estava me aproximando... as portas do salão foram arrombadas e o local foi invadido por um bando de contestadores. Arrebentaram tudo. Queimaram amplificadores, caixas de som... foi uma baderna geral. Baixou polícia! E eu assisti tudo, debaixo de uma mesa. Agora adivinha Padre, quem foi que eles prenderam primeiro? Acertou: eu mesma, em carne e osso! Quando me colocaram as algemas, fui logo dizendo: “sabe que já estava com saudade? Achei que vocês tivessem me esquecido. Fazia uma semana que nada me acontecia!” Então me levaram para a delegacia. O Delegado ainda falou no caso da tal orelha... Mas depois de três dias me soltaram, porque eu não tinha nada que ver com o incêndio no salão de rock. Quando eu saí da cadeia, que emoção, Padre: tinha um monte de gente me esperando – companheiros, feministas, porras loucas, camaradas, todos esperavam por mim. Tinha até uma faixa em minha homenagem: SALVE A MÃE BRUXA, LIVRE NOVAMENTE! Foi uma festa comovente! Eu não sabia que tinha tantos amigos assim... tantas pessoas que me amavam. Uma mocinha segurando uma galinha se aproximou dizendo: “aqui está o seu alimento preferido, mãe!” Rimos muito, e eu passei a freqüentar todas as reuniões deles. Não começo, não entendia quase nada do que eles falavam, agora, entendo tudo. Estou com eles. Também acho que devemos administrar nossa própria sexualidade. É, Padre! Eu falei sexualidade mesmo. Isso quer dizer, que devemos dispor de nossas próprias vidas, curtir os prazeres, recusar a ideologia do trabalho. E pensar que os nazistas escreviam nos muros dos campos de concentração: “só o trabalho torna o homem livre”. Cambada de filhos da puta... O quê? Não gostou, Padre? Sim, sim, eu estou escutando. Certo: eu vou me corrigir. Caí num abismo? Um abismo que é o inferno? Na desordem moral?... E o que todos querem é ordem, porque sem ordem não há progresso? Concordo... O senhor não pode imaginar como eu concordo com isso! Claro, é preciso ordem, disciplina, regulamentos, regras. O quê? Se quando moça eu tive minhas regras? A vida inteira, Padre. Desde que nasci só ouço “bla-bla-blas; teretetês; tititis; nana nenê que a cuca vem pegar; toma papinha sentada, comportada senão a mamãe fica triste; não, em pé não; agora o nenê vai tomar banho, ficar limpinho, pra entrar no reino do céu; tem que rezar pro anjo da guarda, senão o bicho papão pega; silêncio!; em pé!; em fila de dois!; meninos de um lado, meninas de outro; meninos fazem xixi de pé, as meninas fazem sentadas; pra fazer cocô, todos sentados, os meninos não devem brincar com o piu- piu; o piu-piu é caca; tira a mão do piu-piu; não mexe no piu-piu, menino; não se brinca com o piu-piu; tira a mão da passarinha, menina porca; não sabe que é pecado, que a Nossa Senhora vê tudo? Assim você vai pro inferno!” Quer saber de uma coisa, Padre? É melhor o senhor prestar bem atenção, que eu não quero ser mal interpretada. Eu vou lhe dizer o que eu aprendi: o amor é desordem! A vida, a liberdade, a fantasia são desordem, em comparação com essa ordem que vocês querem impingir, Padre. Fazer amor sem tanta lengalenga, sem namoro em casa, ou noivado obrigatório é lindo. Fazer amor pelo amor é lindo! Garanto que é belo! Eu, Padre, fiz amor uma vez com um rapaz que nem o nome eu lembro, mas eu lembro muito bem dos olhos dele, do nariz, da boca e das palavras dele. Ah, como eu lembro as mãos dele percorrendo o meu corpo e tudo o que ele dizia enquanto me penetrava. Ah, como foi bom! Eu estava no Paraíso! O quê? Eu me perdi? E se eu lhe dissesse que foi ao contrário, Padre, que eu me achei, que me sinto livre, agora, que estou bem, ótima? Não! Não tenho nenhuma vontade de voltar pra minha família. Eu já disse isso pro meu filho. Ele veio me procurar outro dia. Estava muito bem vestido, de cabelos cortados, colarinho passado, de gravata e paletó. Imaginem! Chegou e foi logo dizendo: “mamãe, eu voltei pra casa. Cansei dessa vida de loucura. Botei a cabeça no lugar. Eu não puxo mais fumo. Arranjei um trabalho decente. Não faço mais arruaças. E pedi pro papai jogar fora o meu tênis. Ah, mãe, ele não tem mais crise de asma. Encontrou uma boa moça, mas disse que se voltar pra casa, ele larga dela correndo. Volta pra casa, mãe?” Arrrrgh! Me senti mal, Padre, porque na minha cabeça veio um flash do passado. Me vi novamente em casa cuidando de todos os abacaxis. Das compras no armazém, da roupa suja pra lavar, passar... Sempre correndo, sempre sem um único minuto pra mim mesma. O senhor sabe que se eu quisesse ler o jornal, tinha que aproveitar quando ia à privada? No dia em que eu estava com prisão de ventre, sempre ficava desinformada! “Não, meu filho, eu ainda não me sinto... eu ainda não estou preparada! Procure entender. Você só voltou pra casa quando se sentiu pronto, não foi?” Ele me olhou bem nos olhos e disse: “mãe, você não tem vergonha, andando assim, como uma mendiga?” E eu olhei bem nos olhos dele e respondi: “você tem razão. Eu vou procurar trabalho, mas de meio período só, para ter cama e comida. O resto do meu tempo, eu quero passar em companhia das pessoas, ensinar tudo o que de bom eu tenho aqui dentro, e aproveitar tudo o que elas tem pra me dar. Quero falar muito, rir, cantar... olha o céu! Você sabia, meu filho, que o céu é azul? E que muita gente já se esqueceu disso? Não, querido, agora nem que você chame a polícia pra me prender”. E sabe, Padre, que eles mandaram a polícia me prender? Sim, meu filho e meu marido fizeram isso. Alegaram abandono de lar. Imagine, Padre, que os policiais tiveram a coragem de me perseguir até à igreja? Como? Onde eles estão? Lá na porta, me esperando. O senhor não está vendo? O quê? O senhor ficou louco? Não pode fazer uma coisa dessas comigo, Padre. O segredo da confissão não vale mais nada? Não, eu não quero volta pra minha casa. Muito menos acompanhada da polícia. (É algemada.) Está bem. Vamos: agora sou independente. Eu mesma decido a minha vida.