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A

SUPERMÃE
PORRA
LOUCA
Texto de Dario Fo e Franca Rame
PERSONAGENS

MÃE

AÇÃO

No interior de uma igreja.

MÃE – Puta merda! Até na igreja esses filhos da mãe me


perseguem. E agora, aonde é que eu vou me
esconder? Na Sacristia. Mas, onde está a Sacristia?
Pronto: chegaram mais dois. Puta merda: dessa vez
me encurralaram. O confessionário! Me encurralaram
uma ova! Me escondo no confessionário! Droga: está
ocupado. Tem um padre lá dentro. Incrível como os
padres hoje em dia estão em todo lugar! Ah, mas eu
tenho uma saída. Vou me confessar. Duvido que
esses policiais de merda tenham coragem de
interromper o sagrado sacramento da confissão.
Padre: eu queria me confessar... Padre? Está me
ouvindo, Padre? Caralho: está dormindo! Ei, Padre:
acorda! Ei, Padre! Ah, até que enfim! Ora: o que eu
posso querer aqui ajoelhada? Me confessar, é claro.
Posso começar? O quê? Não, essa eu nunca ouvi: ele
pediu licença. Antes de confessar quer ir até o bar da
esquina, tomar um cafezinho. Nada disso: daqui o
senhor não sai. Se insistir eu faço um escândalo. Eu
sou Católica Apostólica Romana, batizada e crismada,
e, portanto, tenho o direito de me confessar. Vamos
Padre: deixa de onda e me confesse logo. Eu estou
ardendo, estou queimando de fé... Padre: me confesse
logo, que depois eu lhe pago um cafezinho. Ótimo!
Posso começar?
O quê? A última vez? Deixa eu pensar um pouco...
Vinte anos! É Padre: a última vez que eu me confessei
foi há vinte anos. Foi no dia do meu casamento. Claro
que casei na Igreja, de véu e grinalda. O que o senhor
está pensando que eu sou? Foi uma cerimônia linda.
Pra dizer a verdade, eu nem queria casar na Igreja. Só
acabei casando porque a minha sogra insistiu muito.
Ela era muito Católica – Deus a tenha – e o seu maior
sonho era ver o filho casar na Igreja. Eu também sou
muito Católica. Uma Comunista Católica. Atéia não,
Padre! Marxista! Tem algum mal nisso? Grave porque
eu não sou muito praticante... O senhor tem toda
razão. Mas eu sou Católica. Sempre fiz a minha
autocrítica, pelo menos uma vez por mês, junto com
os outros colegas, claro. Como não é a mesma coisa?
Mas eu sempre achei que depois de um compromisso
com Deus... O senhor acha é? Bem, sim, o Senhor
deve ter suas razões. Ah, estou pronta sim. Podemos
começar!
Juro dizer a verdade, toda verdade e nada mais além
do que a verdade... O que foi que eu fiz de errado?
Oh, desculpe, Padre! Foi o hábito de tantos
julgamentos, de tantos malditos processos que... – ih,
vários -... Eu duvido que o senhor calcule quantos. Por
vários motivos: desacato a autoridades, resistência à
prisão, roubo de pequenas coisas sem importância,
que depois se transformaram em roubo de coisas
muito importantes... Ah, Padre: assim o senhor me
ofende! Amadora, não! Eu sou uma ladra profissional.
Mas roubar não me entusiasma muito não. Prefiro os
saques. Principalmente aos supermercados. Ah! Eu
acho lindo roubar os supermercados. Minha avó
sempre dizia: “ladrão que rouba ladrão, tem cem anos
de perdão”! O quê? Sozinha? Engano seu. Eu nunca
estou sozinha: têm sempre trinta, quarenta, cinqüenta
mulheres comigo. Entramos no supermercado e
levamos tudo o que não podemos comprar. Quem
manda eles colocarem tudo ali, à mostra, provocando
a cobiça da gente? Ora, Padre: os nossos furtos são
um pequeno grão de areia no meio do oceano de
lucros que eles têm às nossas custas. O quê? É
pecado? Pecado mortal? E a inflação, Padre, não é
pecado? Não é um assalto diário ao bolso da gente?
Que foi Padre? Engasgou por quê? Quer que eu lhe
bata nas costas? Levanta a cabeça que passa! A
culpa não é sua, não. É do Governo. Fique calmo, que
está quase na hora do seu cafezinho. Está tomando
nota direitinho dos meus pecados? Veja lá, hein?
Depois não vai exagerar na penitência. Tenho família,
é claro! Um marido e um filho. Não, eles não roubam
nada, não. Não fazem parte de nenhuma quadrilha,
não. Não, também não trabalham pro Governo, não.
Vivo - isso o senhor tem toda a razão: vivo muito fora
de casa. Sei, eu sei que não sou nenhum modelo de
virtude. Sei: como mãe e esposa eu sou uma absoluta
negação. Agora, escuta só, Padre! Se hoje eu sou
essa porra louca que o senhor está vendo... é, foi o
que eu disse... porra louca! O que é que tem demais?
É exatamente assim que me chamam! Bem, se hoje
eu sou assim, é porque durante quase toda a minha
vida, eu fui o modelo de virtude que o senhor acha que
eu deveria continuar sendo. Eu fui uma mãe dedicada
e uma esposa exemplar. Durante anos fiz tudo pela
minha família. Dei o meu sangue e muitas vezes até o
pão da minha boca. Tudo por amor a eles. Por eles
larguei até o que me era mais caro e importante: o
meu emprego. O emprego que eu tanto gostava e que
me dava uma certa liberdade. Eu era Chefe de Seção
na fábrica e também trabalhava no Sindicato. Mas o
meu marido tanto insistiu, tanto exigiu; que eu larguei
tudo. Tudo por amor à família. Pra criar o meu filho. E
eu criei o meu filho como se ele fosse o próprio
Menino Jesus. E o meu marido o São José, e eu me
sentia como se fosse a própria Nossa Senhora... o boi
e o burro, tudo junto... Blasfêmia? Pode ser Padre,
pode ser. Mas foi assim que eu consegui ir levando
alguns anos da minha vida.
Depois o meu filho cresceu, foi pra escola e se meteu
com a política, essa maldita política. Um dia chegou
em casa todo arrebentado e sujo de sangue... Eu abri
a porta e... desmaiei de susto. Depois daquele dia,
todas as vezes que ele atrasava, uma sirene de
ambulância começava a tocar na minha cabeça: “é
meu filho, é meu filho”. Eu gritava: “essa polícia filha
da puta arrebentou o meu filho outra vez!” Padre, o
senhor já foi mãe alguma vez? Mãe de um agitador?
Em casa ele contestava tudo. As palavras mais gentis
que ouvíamos dele eram: oportunistas, acomodados,
reacionários de merda, parasitas da sociedade... Ele
vivia me provocando, o senhor entende? “E aonde
você pensa que vai?” Não, não, Padre, por favor, fique
calmo, eu não estava falando com o senhor. Jamais
chamaria o senhor de você: não temos nenhuma
intimidade. Eu estava falando com o meu filho: “aonde
você pensa que vai?” “Vou sair com os meus
companheiros”, ele berrava. “E por que não sai comigo
e com o seu pai? Não servimos pra seus
companheiros?” E ele respondia: “não, vocês são a
família, e a família não passa de um pesado saco de
merda, de patê da Sadia, na vida da gente”. Eu não
podia agüentar mais aquela angústia. Ficar em casa
esperando que me entregassem o meu filho morto nos
braços.
Então comecei a freqüentar as passeatas e as
manifestações. Ficava sempre dez ou vinte metros
atrás dele, controlando tudo, sem que ele percebesse.
E, pra não dar na vista que eu não era um deles,
gritava as mesmas coisas que eles. Quando eram
coisas contra o Governo, até que eu gostava. Mas
quando era obrigada a gritar contra minhas próprias
ideologias políticas... Nossa Senhora: como eu
passava mal. E dizia para mim mesma: “calma: é tudo
por amor ao teu filho!” Muitas vezes, Padre, eu tinha
que correr, e correr muito... todas as vezes que... Eu
estou aqui, Padre. Não, eu não estou agitada. Eu tinha
que correr pra não apanhar, entende? Tudo por amor
ao meu filho! Ah, Padre, o senhor não pode imaginar
como o amor acabou comigo. Eu não sou de dar
conselhos, mas este não tem erro: “nunca se apaixone
por ninguém. Nunca faça nada por amor!” Sabe o que
me aconteceu numa dessas manifestações?
Eu perguntei: “e amanhã, companheiro, como será a
manifestação?”, e eles me responderam: “pacífica!”
Então eu me vesti para uma manifestação pacífica: um
salto dessa altura e uma saia justa... Mas, naquela
manhã, nunca se viu um ataque da polícia tão violento.
Nada tinha sido mais violento nos últimos cem anos.
Tava todo mundo em cima de nós: polícia civil, militar,
cavalaria e até os guardas de trânsito. E eu com
aqueles saltos, correndo, com medo de cair. Daí eu
tive que levantar um pouco a saia até aqui, olha,
senão... O que foi Padre? Nunca viu as pernas de uma
mulher, não? E toda a polícia atrás de mim. E eu
gritava: o que vocês querem comigo? Fora, mata!
Morte aos vampiros do século XX! Nossa, que corrida!
Acho que naquela tarde eu fiz uns 54 km. Quando
escapei, me sentia mal. Estava suja, suada, com o
coração saindo pela boca... Sentia um calor infernal,
tinha os ovários fervendo, todo o meu corpo exigia
um... Ih, Padre, como não posso dizer uma coisa
dessas na igreja? Eu só queria um bom banho.
Gostaria de ver o senhor numa situação daquelas. O
senhor já experimentou correr de saltos altos,
levantando a saia até os joelhos? Era fumaça para
todos os lados, gás lacrimogêneo, tiros, bombas
molotov, jatos d’água... e, no meio de toda aquela
confusão, percebi que havia perdido de vista o meu
filho. Comecei a berrar com todas as forças dos meus
pulmões: “filho, filho!” Naquela tarde, todos os filhos do
mundo responderam, menos o meu.
Desesperada, chorando sem parar, vi meu filho do
outro lado da rua, nas garras de um policial, que com o
cassetete... paf, paf, paf, batia no rosto delicado dele.
Ah, Padre: eu não enxerguei mais nada. Agarrei
aquele milico filho da puta pelo capacete, e com os
meus dentes mordi a orelha direita dele. Arranquei um
pedaço da orelha direita e se não tivessem chegado
os outros colegas dele, tinha arrancado da esquerda
também. Como? Não se deve fazer uma coisa
dessas? Quem com ferro fere, com ferro será ferido. E
ele ia ser ferido com o quê, Padre? Era o meu filho
que estava apanhando com o cassetete. Fui eu que fiz
ele... com a ajuda do meu marido, claro... mas, eu
demorei nove meses pra fazê-lo... aqui dentro... Eu vi
cada coisa dele ir crescendo: os olhos, os vinte dedos,
os dentes... nove meses e aquele policial filho da puta
queria quebrar tudo em apenas dois minutos? Nunca!
Arranquei um pedaço da orelha dele pro meu filho
conseguir fugir! E ele fugiu Padre! Eu não! Eu fiquei, e
eles me encheram de porradas e me levaram presa.
Fiquei íntima deles, tantas vezes me prenderam. “E
dá-lhe processo em cima”, gritava o Delegado. Ah,
como me encheram por causa daquela orelha. Ainda
se fosse a orelha de alguém importante! O Presidente
do Tribunal, com uma voz terrível, vivia me dizendo
durante os julgamentos: “a senhora feriu a orelha do
Estado!” Ah, Padre: quanta coisa eu passei na minha
vida. Como o amor acabou comigo! O senhor já amou
alguém, Padre? Não, Cristo não vale!
O meu casamento foi por amor. Como eu amava meu
marido. As primeiras encheções de... as nossas
primeiras incompreensões ideológicas só aconteceram
bem mais tarde. Tudo porque eu não concordava com
o comportamento ideológio-social-político-moral-
culinário do meu marido. Eu também trabalhava fora,
oito horas por dia, mas quando chegávamos em casa,
eu continuava trabalhando: tinha que lavar roupa,
passar, arrumar as camas, fazer comida, enquanto ele
ficava sentado na poltrona e trac – assistia à novela
das seis, das sete, das oito... “Assim não dá!”, eu
gritava – “eu também trabalho fora o dia todo e estou
tão cansada quanto você”. Ah, quem foi que falou que
a libertação da mulher começa quando ela conquista o
direito a um trabalho assalariado? Eu consegui um
trabalho assalariado fora, mas e o trabalho em casa,
com quem ficou? Comigo: e quem paga por ele?
Ninguém! Bonita libertação teve a mulher. Belo
pagamento. Com o casamento sempre acaba
ganhando trabalho em dobro. Além de tudo, com o
casamento eu acabei ganhando um presente maior
que todos os outros: a asma do meu marido! É Padre:
asma nervosa! Quando eu ficava com o saco cheio de
tanto trabalhar... quando eu não podia mais agüentar,
eu gritava: “olha que eu largo tudo e vou embora,
hein?” E ele, catapimba!... apelava para a crise de
asma: ai!... Ficava magro como um palito, não
conseguia respirar direito, faltava no trabalho... Eu
tomava cada susto! Às vezes acordava com ele pra
morrer: “não querido, calma, não se preocupe, eu
estou com você. Aconteça o que acontecer, eu estarei
sempre ao seu lado. Não foi isso que juramos na
Igreja, no nosso casamento?” A crise ia embora, ele
adormecia e quem ia morta pro trabalho era sempre
eu.
Quando veio a gravidez... O quê? Não, Padre! Eu
nunca encarei a minha gravidez como uma desgraça.
Aliás, fui eu quem quis o meu filho. Fiquei tão feliz
porque estava grávida. O senhor não pode imaginar a
minha alegria: foram nove meses de vômito. Imóvel na
cama, com medo de perder a criança. Ah, mas eu
tinha um grande consolo. Entre um vômito e outro eu
pensava: “este filho vai mudar a minha vida!” Afinal, a
mulher que não dá a luz a um filho, não é uma mulher:
é apenas uma fêmea que abre as pernas... Desculpe
Padre! Que imbecil que eu era! Está bem, já estou
chegando aos meus pecados... Se eu não fizesse
essa pequena introdução o senhor não ia me
entender. Está bem, concordo. Pulo toda a minha
história e vou parar no ponto que interessa.
Há dois anos descobri que o meu filho estava se
drogando. O quê? E eu lá sei se era droga da leve ou
da pesada? Francamente, Padre, o senhor tem cada
coisa! Pra mim, saber que ele estava se drogando já
era o suficiente. Só de ouvir essa maldita palavra eu já
sentia um calafrio. “Depravado, ingrato, monstro, anti-
social”, eu vivia gritando pela casa. “Onde foi que eu
errei? Onde foi que você errou?”, eu perguntava pro
meu marido, e sabe que resposta vinha dele? “Ai...
ai...!” A maldita crise da asma. E o meu filho
continuava ‘curtindo a vida’ com seus amigos e
amiguinhas. “Chega de falar nisso, mãe! Ainda se
fosse heroína, que mata! Mas fazer todo esse
escândalo só por um fuminho à toa, que eu puxo de
vez em quando?” “Olha aqui”, eu disse, “ou você pára
com isso já, ou boto você pra fora de casa, com seus
amiguinhos e suas putinhas.” E sabe o que ele me
disse, Padre? “Não precisa me pôr pra fora, não! Eu
vou embora já! Agora mesmo. Você não tinha o direito
de ofender as minhas amigas. Eu vou embora já”. “Pra
onde você vai? Pra casa da vovó?” “Que casa da
vovó, o quê?”, ele me disse. E eu rebati: “vai, lindo,
vai, pode ir. Você pensa que eu me incomodo?” Eu
disse isso com o coração fazendo patrafan, patrafan,
patrafan! “Quero só ver quantos dias você agüenta
ficar fora de casa. Três no máximo... e depois você
volta correndo pros braços da mamãe, que sempre te
dá tudo”.
Passou uma semana e nada dele voltar, Padre. Eu
não dormia mais, não comia mais... E o meu marido:
ai, ai, ai – crise de asma! Procurei por ele em todos os
lugares: nas escolas, nos bares, nas boates, mas
ninguém sabia dele. Eu achei que ninguém falava,
porque eu era a mãe dele. Não queriam me informar,
entende? Então resolvi me travestir! De que, meu
Deus? – de Porra Louca. Não sabe quem são os
porras loucas? São aqueles caras sujos que vivem
puxando fumo, não trabalham, roubam uma coisa
aqui, outra ali e vivem de favores. São aqueles que
estão sempre na deles, entende? Se eu tinha idade
pra isso? Não, não tinha! O senhor pensa que eu sou
burra, é? Foi pensando nisso que eu resolvi me
travestir de cigana. Ciganas não têm idade, concorda?
Ainda bem. Fui até um bazar de roupas velhas e
peguei várias peças, tudo descombinado. Uma era
original, a outra oriental, a outra fabricada aqui mesmo
e fiz o meu traje. Sandálias da Síria (havaianas), um
saiote do Marrocos, uma blusa do Afeganistão e um
lenço grego, que de grego não tem nada: é, no
máximo, das Casas Pernambucanas. Depois, um
pouco de maquiagem, uma jaqueta de dente de ouro,
que a minha irmã perdeu lá em casa há três anos,
durante um espirro. Anéis, colares de vidro, e estes
penduricalhos de orelha. Ih, nem gosto de lembrar em
orelha... Me enfiei no meio de um grupo de porras
loucas, composto por machos e fêmeas bastante
duvidosos. E lá estava eu, parecendo uma árvore de
Natal, tantos eram os balangandãs. E sabe o que
aconteceu? Ninguém deu bola pra mim. Então puxei
um vidrinho com uma mistura que eu mesma tinha
preparado: essência de terebintina, óleo de fígado de
bacalhau, bosta de cavalo, fumo em corda, álcool
puro, tintura de iodo, pasta de dentes para dar cor,
creolina e algumas gotas de limão, que sempre vai
bem com qualquer coisa. Sento num canto e começo a
cheirar aquela coisa, com os olhos perdidos, como se
estivesse em êxtase. Três segundos depois, todos os
porras loucas estavam em cima de mim: “o que é
isso? O que você está fazendo? Que barato é este?”,
e eu respondendo: “tô me drogando! É um material da
pesada!... Pode experimentar, mas cuidado, eu não
quero mortos às minhas costas!”, e todo o mundo foi
enfiando o vidrinho no nariz, até o cérebro,
exclamando: “que droga incrível, meu!” “Ela é gente
fina, meu irmão!” Coitados: como é fácil embrulhar
esses trouxas.
De repente, todo mundo começou a se interessar por
mim. Padre: o senhor não imagina as lorotas que eu
inventei: “sou filha de mãe indiana e pai cigano
calabrês. Vivo lendo a sorte nas cartas e nas
estrelas... me alimento, exclusivamente, do sangue
dos gatos e das galinhas, que eu mesma degolo,
porque se vocês não sabem, eu sou uma bruxa”. Não,
claro que não acreditaram em tudo, mas me acharam
simpática e deixaram que eu me juntasse ao grupo.
Meu filho? Não, ninguém viu. Eu mesma vi ele, uma
vez, de longe. Foi num salão, onde estava se exibindo
uma banda de rock, dessas da pesada mesmo. “Agora
eu pego esse miserável!”, pensei. Mas quando eu
estava me aproximando... as portas do salão foram
arrombadas e o local foi invadido por um bando de
contestadores. Arrebentaram tudo. Queimaram
amplificadores, caixas de som... foi uma baderna
geral. Baixou polícia! E eu assisti tudo, debaixo de
uma mesa. Agora adivinha Padre, quem foi que eles
prenderam primeiro? Acertou: eu mesma, em carne e
osso! Quando me colocaram as algemas, fui logo
dizendo: “sabe que já estava com saudade? Achei que
vocês tivessem me esquecido. Fazia uma semana que
nada me acontecia!” Então me levaram para a
delegacia. O Delegado ainda falou no caso da tal
orelha... Mas depois de três dias me soltaram, porque
eu não tinha nada que ver com o incêndio no salão de
rock. Quando eu saí da cadeia, que emoção, Padre:
tinha um monte de gente me esperando –
companheiros, feministas, porras loucas, camaradas,
todos esperavam por mim. Tinha até uma faixa em
minha homenagem: SALVE A MÃE BRUXA, LIVRE
NOVAMENTE! Foi uma festa comovente! Eu não
sabia que tinha tantos amigos assim... tantas pessoas
que me amavam. Uma mocinha segurando uma
galinha se aproximou dizendo: “aqui está o seu
alimento preferido, mãe!” Rimos muito, e eu passei a
freqüentar todas as reuniões deles. Não começo, não
entendia quase nada do que eles falavam, agora,
entendo tudo. Estou com eles. Também acho que
devemos administrar nossa própria sexualidade. É,
Padre! Eu falei sexualidade mesmo. Isso quer dizer,
que devemos dispor de nossas próprias vidas, curtir os
prazeres, recusar a ideologia do trabalho. E pensar
que os nazistas escreviam nos muros dos campos de
concentração: “só o trabalho torna o homem livre”.
Cambada de filhos da puta...
O quê? Não gostou, Padre? Sim, sim, eu estou
escutando. Certo: eu vou me corrigir. Caí num
abismo? Um abismo que é o inferno? Na desordem
moral?... E o que todos querem é ordem, porque sem
ordem não há progresso? Concordo... O senhor não
pode imaginar como eu concordo com isso! Claro, é
preciso ordem, disciplina, regulamentos, regras. O
quê? Se quando moça eu tive minhas regras? A vida
inteira, Padre. Desde que nasci só ouço “bla-bla-blas;
teretetês; tititis; nana nenê que a cuca vem pegar;
toma papinha sentada, comportada senão a mamãe
fica triste; não, em pé não; agora o nenê vai tomar
banho, ficar limpinho, pra entrar no reino do céu; tem
que rezar pro anjo da guarda, senão o bicho papão
pega; silêncio!; em pé!; em fila de dois!; meninos de
um lado, meninas de outro; meninos fazem xixi de pé,
as meninas fazem sentadas; pra fazer cocô, todos
sentados, os meninos não devem brincar com o piu-
piu; o piu-piu é caca; tira a mão do piu-piu; não mexe
no piu-piu, menino; não se brinca com o piu-piu; tira a
mão da passarinha, menina porca; não sabe que é
pecado, que a Nossa Senhora vê tudo? Assim você
vai pro inferno!”
Quer saber de uma coisa, Padre? É melhor o senhor
prestar bem atenção, que eu não quero ser mal
interpretada. Eu vou lhe dizer o que eu aprendi: o
amor é desordem! A vida, a liberdade, a fantasia são
desordem, em comparação com essa ordem que
vocês querem impingir, Padre. Fazer amor sem tanta
lengalenga, sem namoro em casa, ou noivado
obrigatório é lindo. Fazer amor pelo amor é lindo!
Garanto que é belo! Eu, Padre, fiz amor uma vez com
um rapaz que nem o nome eu lembro, mas eu lembro
muito bem dos olhos dele, do nariz, da boca e das
palavras dele. Ah, como eu lembro as mãos dele
percorrendo o meu corpo e tudo o que ele dizia
enquanto me penetrava. Ah, como foi bom! Eu estava
no Paraíso! O quê? Eu me perdi? E se eu lhe dissesse
que foi ao contrário, Padre, que eu me achei, que me
sinto livre, agora, que estou bem, ótima?
Não! Não tenho nenhuma vontade de voltar pra minha
família. Eu já disse isso pro meu filho. Ele veio me
procurar outro dia. Estava muito bem vestido, de
cabelos cortados, colarinho passado, de gravata e
paletó. Imaginem! Chegou e foi logo dizendo: “mamãe,
eu voltei pra casa. Cansei dessa vida de loucura. Botei
a cabeça no lugar. Eu não puxo mais fumo. Arranjei
um trabalho decente. Não faço mais arruaças. E pedi
pro papai jogar fora o meu tênis. Ah, mãe, ele não tem
mais crise de asma. Encontrou uma boa moça, mas
disse que se voltar pra casa, ele larga dela correndo.
Volta pra casa, mãe?” Arrrrgh! Me senti mal, Padre,
porque na minha cabeça veio um flash do passado.
Me vi novamente em casa cuidando de todos os
abacaxis. Das compras no armazém, da roupa suja
pra lavar, passar... Sempre correndo, sempre sem um
único minuto pra mim mesma. O senhor sabe que se
eu quisesse ler o jornal, tinha que aproveitar quando ia
à privada? No dia em que eu estava com prisão de
ventre, sempre ficava desinformada! “Não, meu filho,
eu ainda não me sinto... eu ainda não estou
preparada! Procure entender. Você só voltou pra casa
quando se sentiu pronto, não foi?” Ele me olhou bem
nos olhos e disse: “mãe, você não tem vergonha,
andando assim, como uma mendiga?” E eu olhei bem
nos olhos dele e respondi: “você tem razão. Eu vou
procurar trabalho, mas de meio período só, para ter
cama e comida. O resto do meu tempo, eu quero
passar em companhia das pessoas, ensinar tudo o
que de bom eu tenho aqui dentro, e aproveitar tudo o
que elas tem pra me dar. Quero falar muito, rir,
cantar... olha o céu! Você sabia, meu filho, que o céu é
azul? E que muita gente já se esqueceu disso? Não,
querido, agora nem que você chame a polícia pra me
prender”. E sabe, Padre, que eles mandaram a polícia
me prender? Sim, meu filho e meu marido fizeram
isso. Alegaram abandono de lar. Imagine, Padre, que
os policiais tiveram a coragem de me perseguir até à
igreja? Como? Onde eles estão? Lá na porta, me
esperando. O senhor não está vendo? O quê? O
senhor ficou louco? Não pode fazer uma coisa dessas
comigo, Padre. O segredo da confissão não vale mais
nada? Não, eu não quero volta pra minha casa. Muito
menos acompanhada da polícia. (É algemada.) Está
bem. Vamos: agora sou independente. Eu mesma
decido a minha vida.

FIM

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