Núcleo fundador da USP, a FFLCH organizou e sistematizou a prática da pesquisa e mantém um diálogo intenso com o país
C omo núcleo fundador da Universidade de São
Paulo (USP), a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), criada em 1934, foi desde o início um centro de irradiação de se mantêm. Atualmente, o Departamento de Sociologia continua a desenvolver as linhas- -mestras de que se ocuparam, nos anos 1950 e 60, Florestan Fernandes e seus discípulos metodologia e espírito investigativo, num país Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, em que a atividade de pesquisa ainda era inci- entre elas as relações raciais e o sindicalismo. piente e desorganizada. Os cursos de sociologia “Naquele período estudavam-se os grandes te- e política (que passaram a ser departamentos mas, com uma abordagem macrossociológica com a reforma universitária de 1968 e o fim – o preconceito racial, por exemplo, estava sen- do sistema de cátedras), ainda que contassem do ‘descoberto’ do ponto de vista acadêmico”, entre seus fundadores com uma maioria de diz Brasílio Sallum, chefe do Departamento estrangeiros – ou em parte por isso mesmo –, de Sociologia, graduado em 1970. “Agora as tinham a preocupação de “descobrir o Brasil” pesquisas se especializaram e restringiram de um ponto de vista científico e sistemático. seu escopo. As relações raciais são estudadas Com tudo o que, nesses 80 anos, mudou no sob o aspecto das classes sociais ou da religião país e em suas possíveis abordagens, dentro ou do trabalho, separadamente.” Na sociologia e fora da universidade, a tradição investiga- política, diz Sallum, privilegia-se a relação en- tiva e o diálogo permanente com a sociedade tre sociedade e Estado, como ele próprio fez VALTER CAMPANATO / ABR
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como coordenador da recente pesquisa não são suficientes para evitar os abu- “Nos anos 1970, todo o curso de socio- Crise política e impeachment, sobre o sos”, diz Moisés. logia era montado para estudar o rumo governo Collor, que em breve será pu- Outro exemplo de diálogo e interação da revolução burguesa no Brasil”, diz blicada em livro. com a sociedade é o Núcleo de Estudos Adorno. A expressão “revolução burgue- Já no Departamento de Ciência Polí- da Violência (NEV), fundado em 1987 e sa” não significa, no entanto, orientação tica, atua-se em duas grandes áreas, teo- um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação exclusivamente marxista. “O marxismo ria e instituições políticas comparadas, e Difusão financiados pela FAPESP. “No nunca foi hegemônico no departamento, segundo Fernando Limongi, professor e início os trabalhos eram mais ensaísticos que oferecia uma formação sociológica ex-chefe do departamento, graduado em e defendiam hipóteses”, diz o cientista mais ampla, com presença igualmente 1982. “Em ambas, a preocupação central político Sergio Adorno, coordenador do forte da obra de Max Weber.” Nos dias de é com o funcionamento do sistema polí- NEV e diretor da FFLCH. “A acumulação hoje, diz Adorno, ganha destaque “uma tico democrático”, diz Limongi. “Temos dos estudos empíricos nos fez ver que linha de interpretação que não enfatiza uma entrada muito mais empírica hoje a questão sobre a desigualdade frente à tanto as estruturas, mas os atores; não só do que no passado. Mas um fato muda Justiça passa pelas agências de coorde- o modo de organização, mas as relações tudo: não mais pensamos na democracia nação de políticas públicas.” As questões interativas também”. ou no regime político estável que quere- que motivam as pesquisas do núcleo têm mos. Já os temos. Trata-se agora de saber um papel cada vez maior na discussão RIGOR ACADÊMICO como a democracia funciona e que resul- dos rumos das instituições democráti- “As marcas de outras gerações de profes- tados podemos esperar de um governo cas brasileiras. “A violência dificulta a sores e pesquisadores ainda são muito democrático.” plena consolidação dos presentes no nosso departamento”, diz É esse o foco de alguns direitos humanos, e falar Eunice Ostrensky, graduada em filosofia dos projetos principais de direitos humanos é fa- em 1993 e hoje professora do Departa- do departamento, como lar em democracia”, diz mento de Ciência Política. “Em teoria Instituições políticas, pa- Adorno. O NEV se preo- política moderna, embora o modo de drões de interação Exe- As instituições cupa desde o início em abordar os temas e conceitos discutidos cutivo-Legislativo e ca- criar metodologias que tenha se beneficiado de estudos mais re- pacidade governativa, do democráticas produzam relatórios em centes, o interesse pelos autores canôni- próprio Limongi, e o tra- balho que vem sendo de- e a violência organismos internacio- cos da área é o mesmo que motivou os nais, como a ONU, e tem estudos dos professores Célia Quirino e senvolvido em torno dos no país são contato permanente com Oliveiros Ferreira [cujos primeiros tra- 25 anos de democracia instituições semelhantes balhos datam dos anos 1950].” política do Brasil no Nú- alguns dos em diversos países. Oliveiros, tido como um dos pensa- cleo de Pesquisa de Polí- A politização é uma dores políticos mais originais da histó- ticas Públicas (Nupp), co- temas atuais marca tanto do Depar- ria do departamento, hoje professor da ordenado pelo professor José Álvaro Moisés, que das pesquisas tamento de Ciência Po- Pontifícia Universidade Católica de São lítica quanto do Depar- Paulo, graduou-se em 1950 em sociolo- se graduou em 1970. “Os tamento de Sociologia. gia e trabalhou como jornalista de O Es- estudos têm por finalida- de mensurar a qualidade da democra- cia brasileira, abordada por um olhar duplo: para os valores que expliquem o comportamento da sociedade e para o lugar que as instituições ocupam não só no imaginário, mas também na orga- nização do período.” O trabalho indica, de acordo com Moi- sés, que “do ponto de vista eleitoral a democracia está consolidada, mas ainda resta aproximar representantes e repre- sentados”, tanto para que o sistema polí- tico reflita a sociedade (são gritantes as sub-representações das mulheres e dos afro-brasileiros, por exemplo) quanto para que haja meios que tragam trans- parência às instâncias político-adminis- trativas. “O exemplo mais claro dessa carência é a corrupção, um fenômeno que evidencia que os instrumentos de 1
controle, monitoramento e fiscalização Lévi-Strauss em visita à USP em 1985: um dos fundadores da moderna antropologia
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ponto extremo pelas cassações de profes- pioneiros: “Claude Lévi-Strauss, fun- sores nos anos 1960, os cursos de sociolo- dador da cadeira de sociologia e um dos gia e ciência política formaram quadros de fundadores da moderna antropologia, primeira importância na esfera pública, era filósofo de formação. Seu sucessor, como o ex-presidente Fernando Henri- Roger Bastide, fez uma sociologia com que, o deputado constituinte Florestan, fortes conexões com a antropologia e a o ex-ministro da Cultura Francisco We- psicanálise. Florestan Fernandes, suces- ffort (sociólogo), o prefeito de São Paulo, sor de ambos, fez mestrado e doutorado Fernando Haddad, professor licenciado com pesquisas sobre temas antropoló- do Departamento de Ciência Política, e o gicos (...). A bela sociologia de Antonio sociólogo Glauco Arbix, membro do Con- Candido apoia-se no diálogo com a an- selho Nacional de Tecnologia entre 2007 tropologia, a história e a literatura”. e 2011 e responsável pela “Carta ao povo Antonio Candido é um filho típico da brasileiro” de 2002, marco do início da efervescência intelectual instalada em campanha do Partido dos Trabalhadores São Paulo pela FFLCH. Hoje conhecido à presidência da República. como o principal estudioso da literatura brasileira, ele foi “antes de tudo um so- PROJETO CIVILIZADOR ciólogo”, segundo Sergio Adorno. Can- Tudo isso remete ao projeto inicial da dido é autor de uma das obras seminais FFLCH e seu projeto civilizador. O pri- da sociologia no Brasil, Os parceiros do meiro diretor da instituição, Theodoro rio Bonito, sobre os caipiras paulistas em 2 Augusto Ramos, matemático da Politéc- situação de marginalização, sua tese de Florestan Fernandes discursa na USP em 1958: nica, foi encarregado de contratar deze- doutorado, de 1954. formador de gerações de sociólogos nas de professores da França, da Itália, Não obstante toda a heterogeneidade da Alemanha e de Portugal. Na época a de formações e interesses, preocupou- faculdade abrigava também os núcleos -se em estabelecer a fundamentação e tado de S.Paulo de 1953 até 2000. É um de ciências naturais, a distinção dos sa- exemplo de uma das marcas principais química, física e ma- beres, como observa dos intelectuais oriundos dos departa- temática. Com o tem- Álvaro de Vita, gra- mentos de Sociologia e Ciência Política po, essas áreas foram duado em 1981, em da FFLCH, a de combinar rigor acadê- sendo desmembradas relação ao Depar- mico com a atenção ao público leigo, sem até que a faculdade tamento de Ciência FOTOS 1 ANDRÉ DUSEK / ESTADÃO CONTEÚDO / AE 2 ANTONIO LÚCIO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE 3 ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE
se encasular nos gabinetes acadêmicos. ficou concentrada nos Política, do qual é
Um dos pioneiros da faculdade, Roger estudos de humani- chefe. “As três gran- Bastide, autor do clássico As religiões afri- dades. Hoje, congrega des áreas de pesqui- canas no Brasil (1958), escreveu inten- 11 departamentos: sa do departamento samente para a imprensa paulista sobre Letras Clássicas, Le- – política brasileira, arte, crenças e relações raciais – temas tras Modernas, Letras teoria e pensamen- fundamentais da tradição do Departa- Orientais, Linguística, to político e rela- mento de Sociologia. Como a grande Teoria Literária, Filo- ções internacionais maioria dos integrantes da missão es- sofia, História, Geo- – começaram a ga- trangeira na USP, Bastide não veio impor grafia, Antropologia, nhar forma definida uma visão cosmopolita e definitiva, mas Sociologia e Ciência já sob a cátedra de investigar. Numa resenha escrita para a Política. 3 política criada por Pesquisa FAPESP, um dos principais so- Nas áreas de ciên- O francês Roger Bastide em 1938: interesse nas Paul Abousse-Bas- ciólogos brasileiros, José de Souza Mar- cias sociais e filosofia, religiões africanas e relações raciais no Brasil tide [nos anos 1930] tins, que se graduou na FFLCH em 1964, a “missão estrangei- e que teve por figura disse que seu professor “vinha de uma ra” era quase total- intelectual central, Europa saturada de razão e dela cansa- mente francesa – tanto que o francês, nos anos 1950 e início dos 60, Lourival da”. Segundo Martins, o Brasil era para nos primeiros anos, era o idioma predo- Gomes Machado”, diz De Vita. “Já esta- Bastide “o laboratório da descoberta de minante nas salas de aula. Em sociologia vam presentes preocupações de natureza um lado da condição humana que a ra- chegaram nomes que já se encontravam teórico-metodológica, com a autonomia zão escondera e reprimira”. estabelecidos em seus países de origem da ciência política em relação ao direito Havia todo um país a conhecer e, com ou viriam a desenvolver uma obra e, especialmente, à área-irmã, a socio- o tempo, além de pensá-lo, cresceu o de- internacionalmente conhecida, como logia. Foram passados para as gerações sejo de torná-lo mais moderno e menos Claude Lévi-Strauss. seguintes os mesmos compromissos com injusto. Mesmo com o período da ditadura O mesmo José de Souza Martins, num o rigor no estudo da política, brasileira militar, e seu esforço de inibir a produção texto de 2011, destacou o caráter huma- ou internacional, e da teoria e do pensa- intelectual crítica, demonstrado em seu nista e multidisciplinar da geração de mento político.” n