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artigos e ensaios Tipo, indústria e produção habitacional

Magaly Marques Pulhez


Arquiteta e Urbanista, doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de
Arquitetura e Urbanismo USP São Carlos, Av. Apody, 395,
Pq. Itaipu, São Carlos, SP, CEP 13571-800, (16) 3398-7103 -
(16) 8166-6464, magamarques@hotmail.co

Resumo

Partindo do debate sobre modernidade, cultura e economia na Alemanha do


início do século XX, o texto enfoca a Deutsche Werkbund, Muthesius e seus
partidários em suas abordagens sobre tipo e tipificação, indústria e serialização,
e os conflitos próprios do sistema cultural capitalista em que estavam inseridos.
Adiante, problematiza contrapontos e aproximações desta discussão com as
formulações de Walter Gropius sobre a fabricação industrial de moradia para
as massas e as experiências europeias no entreguerras, propondo reflexões
sobre a empreitada habitacional brasileira, quando se vivenciou, nos anos
1960, uma política pública de peso, baseada em escala, racionalização e
traços de industrialização.

Palavras-chave: tipo, indústria, produção habitacional.

A questão da indústria e seu desenvolvimento são


parte constitutiva das tensões próprias do ensaio
teleológico do projeto moderno, não há dúvida; suas
noção de que a cultura capitalista não era fechada
ou inevitável, mas sim um campo aberto cuja
natureza ainda poderia ser alterada, moldada e
proposições de diluição da arte no mundo da vida negociada” (Schwartz, 1996, p.06)1. E, apesar do
1 Os excertos citados do texto lidaram forçosamente com as transformações trazidas cunho de esquerda que acompanhava boa parte
de Frederic J. Schwartz são
pelos avanços tecnológicos, seus desdobramentos dos artistas e arquitetos então envolvidos com
traduções minhas.
históricos e culturais. essa problemática, haveríamos de encontrar, entre
eles, esforços em termos teóricos e práticos de se
Mas, há que se atentar, tal como lembra Schwartz fazer perceber que a arte, naquele momento, “não
(1996), que, mais do que isso, as vanguardas demandava uma revolução, mas poderia andar de
modernas estavam às voltas com um debate que mãos dadas com os modos de produção tal como
se ancorava, quer queira, quer não, na essência do eles existiam, alcançando transcendência lado a
próprio capitalismo, dando nome e forma aos novos lado com objetos que permaneceriam mercadorias
signos de uma cultura em ascensão, que atingira capitalistas” (p.01).
de pronto toda a sociedade, em suas dimensões
mais complexas. Não por acaso, portanto, ao observar as pretensões
intelectuais da Deutsche Werkbund, na Alemanha
Nesse sentido, as discussões mobilizadas em torno dos anos 1910, e, logo mais, da própria Bauhaus,
das condições de modernidade ora presentes em relação ao difícil axioma cultura-sociedade-
solicitavam uma ideia ela mesma limitante e quiçá economia e o lugar que o artista deveria aí ocupar,
omissa em relação aos meios de produção com os encontramos de fato uma fonte importante de
quais se lidava – “a instável, mas emocionante, reflexão para as narrativas do movimento moderno

15 1[2012 revista de pesquisa em arquitetura e urbanismo programa de pós-graduação do instituto de arquitetura e urbanismo iau-usp
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que o descreveram por esse ângulo crítico, sobretudo duas décadas do século XX –, além desta introdução,
pelo caráter experimental que ali se defendeu, o texto que se segue conta com outras duas partes:
desdobrando-se em projetos que, tanto por isso, a primeira delas, Sobre arte, tipo e indústria, enfoca
poderiam ser interpretados, no limite, como claramente as abordagens propostas pela Deutsche
provisórios ou mesmo incompletos. Werkbund e especialmente Hermann Muthesius
e seus partidários a respeito das noções de tipo
A aposta frustrada na emancipação pela técnica, e tipificação em sua relação com a indústria e a
a promessa mecanicista inconclusa, a idealização produção serializada, o alcance e a limitação das
equivocada do desenvolvimento material da propostas e o desnudamento da questão de síntese
humanidade, ou como se queira: a essência das que os atingia mais amplamente – a onipresença
manifestações utópicas daquilo que se procurou da economia capitalista e a inserção do artista num
praticar enquanto arte, arquitetura e urbanismo sistema cultural que a ela correspondia.
nas primeiras décadas do século XX, olhando para
o passado e orientando um estágio de modernidade A segunda parte, Sobre habitação, indústria e
posterior do qual não se nega o estado de crise, produção, trata-se de uma tentativa de problematizar
só merece ser assim interpretada sob o crivo da os contrapontos e as aproximações da discussão
história. anterior com as formulações de Walter Gropius a
respeito da fabricação industrial de moradia para
Abundam relatos sobre o modernismo tal como as massas, os avanços realmente alcançados, os
ele se desenvolveu em território alemão nos anos impasses inerentes, as experiências práticas realizadas
1910-20 que reconhecem aí excessos tanto quanto em solo europeu, sobretudo no entreguerras – e,
omissões, em discurso e prática, para fazer valer a a partir daí, alguma deixa para reflexões futuras a
aposta na perspectiva redentora da técnica, que, respeito daquilo que se empreendeu no Brasil, no
como se sabe, não se superou em seus próprios momento em que se propôs uma política habitacional
desajustes – o principal deles, o divórcio da política? de peso, já nos 1960, com base na produção
–, já que talvez não fosse mesmo possível lidar com em escala, racionalizada e com traços de alguma
2 Embora sejam feitas men- desequilíbrios, contradições e atrasos típicos da industrialização2.
ções aos fundamentos plurais
que ampliam a questão e
reorganização capitalista do mercado mundial e do
a tornam inesgotável, seria desenvolvimento produtivo (Tafuri, 1985) de forma As costuras discursivas propostas permitem uma
importante ressaltar que a
noção de “tipo” tratada no
contornável, encontrando uma zona de conforto reflexão para análises ainda abertas, de fato
texto é específica, focalizada capaz de acomodar consensualmente artistas, inesgotáveis: estruturar-se como arcabouço teórico
a partir de sua particular re-
lação com a indústria, a partir
produtores e consumidores. e analítico para maiores e futuros aprofundamentos
do referencial oferecido pela em relação ao tema da habitação no Brasil, apenas
Deutsche Werkbund.
No entanto, sob rigor analítico, não parece razoável introduzido neste artigo, com especial enfoque
subestimar o fato de que a reconhecida ambição das para a produção dos últimos cinquenta anos, muito
teorias de arte, arquitetura e design aí formuladas explorada pela historiografia em relação a suas
faz jus à ousadia de enfrentar um mundo cujas características como política pública, mas ainda
incongruências esses artistas claramente reconheciam, um tanto carente de investigações que tratem
imaginando, tanto por isso, como seria possível dar- mais especificamente de aspectos projetuais e de
lhe algum sentido naqueles novos tempos. Como produção, donde as discussões sobre a indústria
lembra Schwartz (1996, p.08) em relação aos e a serialização assumem, acredito, papel de
membros da Werkbund, burgueses que eram, “eles destaque.
estavam experimentando abertamente, tentando
definir seu próprio mundo antes de apresentá-lo Primeira parte - sobre arte, tipo e
a outras classes como um coerente conjunto de indústria
representações, como um único mundo, o verdadeiro
mundo, o mundo moderno”. A Deutsche Werkbund (DWB), organização fundada
em 1907, surgiu em meio a uma série de debates
Partindo de uma referência em especial – o debate enérgicos sobre a crise de cultura desencadeada
acerca dos temas da modernidade, da cultura e da pela indústria e pela urbanização, com o propósito
economia que movimentou a Alemanha nas primeiras de, fundamentalmente, aperfeiçoar a formação

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artesanal e contribuir para a melhora da qualidade desenvolvo, relacionada diretamente à questão da


de bens manufaturados na Alemanha daquele início indústria e também a uma certa positividade da
de século, através do encorajamento à cooperação técnica –, seria importante brevemente registrar que,
entre produtores, comerciantes e profissionais da em arquitetura, o emprego desta espécie de categoria
arte. Defendia-se um design baseado em novos classificatória, que sistematiza e organiza diferentes
princípios formais, que poderiam tanto expressar aspectos projetuais e assim institui determinados
quanto levar em consideração condições modernas códigos de mensuração e ordenamento, ganha
de produção e uso, e o envolvimento direto de artistas densidade ainda no século XVIII, vinculada ao
na produção de objetos da vida cotidiana, numa academicismo: o tipo entendido como instrumento
tentativa de interligar design e produção industrial de embasamento projetual, através do agrupamento
para um mercado de massa (Schwartz, 1996). de elementos arquitetônicos elaborado a partir de
suas semelhanças de estruturação constitutiva,
3A palavra Typisierung, em A Werkbund, reunindo artistas com práticas na sobretudo em termos de composição, geometria
alemão, não está traduzida
no texto de Schwartz. Enten-
verdade bastante pluralistas e empresas interessadas e modulação.
do que, nas concepções de H. em disputar a produção massiva de bens, tornou-
Muthesius, se trate de “tipifi-
cação”, ou seja, uma espécie
se um dos mais preeminentes fóruns de então Na escola francesa, Jean Nicolas Louis Durand,
de processo de formação do para que se colocasse em pauta o papel da arte com seu Précis des leçons d’architecture données à
tipo, seu desenvolvimento e
refinamento, tal como procu-
(e dos artistas) na sociedade moderna, o que, l’École Royale Polytechnique, foi um dos expoentes
ro tratar a seguir. evidentemente, encorajou polarizações teóricas que dessa acepção da ideia dos tipos arquitetônicos
4 Em Tavares Filho (2005),
caracterizariam não apenas as divergências internas considerados como parte constitutiva de um grande
encontramos um esforço de do próprio grupo, mas uma espécie de dialética repertório de combinações, arranjos e agenciamentos,
leitura da evolução dos con-
insolúvel construída a partir do industrialismo, donde passíveis inclusive de catalogação, sem vínculo
ceitos de tipo e de tipologia.
O autor recupera antece- a oposição entre unicidade e tipificação parece aparente com esta ou aquela ordem decorativa
dentes históricos e noções
jamais poder ser superada, na verdade reafirmando ou construtiva.
contemporâneas, fundamen-
tando, do ponto de vista teó- antagonismos possivelmente inerentes à própria
rico, alguns desdobramentos
modernidade. Ainda entre os acadêmicos, Quatremère De Quincy
que legitimam e justificam
a utilização destes termos acrescentou complexidade ao debate, tratando o
em arquitetura, sobretudo
No caso da DWB, por trás desta divisão estavam problema da imitação e da reprodução vulgar dos
nos processos de projeto. Ele
lembra a releitura realizada postas as tentativas do arquiteto e designer Hermann tipos, destacando a diferença que ele alegava existir
pelos pós-modernos, a partir
Muthesius de instituir uma política da organização, entre tipo, como regra esquemática desvinculada
dos anos 1960, que resga-
tam a ideia de tipo para, em específica e única, que privilegiasse as relações de qualquer forma histórica, e modelo, como
boa medida, negar a herança
com a indústria de larga escala, estabelecendo o repetição precisa, em termos de execução prática
moderna que garantiria à
obra uma excepcionalidade desenvolvimento de produtos padronizados ou da arquitetura4.
autoral – ainda que também
“tipos” que fossem (este era o argumento) mais
os modernos tenham se vol-
tado ao tipo para discutir a eficientes para se produzir e que sintetizassem a Esta não foi uma discussão menor entre arquitetos e
racionalização arquitetural, artistas impactados pelas transformações em curso
intenção artística da era da máquina (Schwartz,
tanto em termos de proje-
tação, quanto em termos de 1996; Frampton, 1997). no século XIX, todos eles certamente interessados
produção (recorde-se a pró- em equacionar a questão cultural latente – de
pria experiência de Groprius
e da Bauhaus, como tratarei A questão veio à tona no encontro anual da Viollet-Le-Duc a Semper. O caráter atemporal e
a seguir). Além disso, Tavares Werkbund, em julho de 1914, numa grande expo- universal do tipo, despido de fatores históricos,
Filho opta por focalizar algu-
mas abordagens em especial, sição nas margens do rio Reno em Colônia. Segundo mas aplicável como ideal estruturante em qualquer
o que o permite a omissão de Schwartz, “Muthesius apresentou suas ideias a sociedade, parecia uma chave prática possível,
outras, como é o caso das
reflexões de Le Corbusier respeito de Typisierung3 na forma de dez teses ainda que passível de questionamentos, diante da
acerca do que ele chama de e tentou colocá-las em votação, mas encontrou necessidade de revisão crítica das artes em tempos
objeto-tipo, a forma absolu-
ta, livre dos “acidentes” da oposição violenta em uma facção liderada por Karl de expansão industrial.
personalidade ou do tempo, Ernst Osthaus e Henry van de Velde, que insistiam
“reconhecido conforme as
funções, com rendimento na primazia da criação artística individual” (p.10). Ou seja, poderíamos supor que o tipo, como abstra-
máximo, com emprego mí- ção teórica, entendido, pois, como unidade básica da
nimo de meios, mão-de-obra
e matéria, palavras, formas, Antes de passar à discussão específica da ideia linguagem arquitetônica, tratava-se de um conceito
cores, sons”. (Le Corbusier, de tipo construída e defendida por Muthesius – em construção quando Muthesius o abordou, e,
1994, p. 89).
que certamente protagoniza a reflexão que aqui de certa forma, já, desde muito, asseverava um

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problema fundamental: a instrumentalidade que aí de suas origens e a domínios onde a produção


poderia encontrar ressonância, provocando, segundo não era mais um fato óbvio, visível, urgente. Eles
alguns, uma espécie de desfiguração da instância estavam cientes de que estavam produzindo para
talentosa e individual do artista, que, operando de uma economia capitalista, que seus produtos eram
acordo com esquemas condicionantes, tenderia o resultado da divisão do trabalho, que eles seriam
a desintegrar-se enquanto gênio criador, livre e vistos apenas depois de terem passado pelo sistema
espontâneo. de distribuição e troca de mercadorias e por sujeitos
cujo entendimento era determinado pelo simples
De todo modo, a noção de tipo em Muthesius fato de que eram consumidores.” (Schwartz, 1996,
parece extrapolar a ideia da essência universal, da p.07; grifos no original).
deliberação canônica que, afinal, pode reduzir o
trabalho artístico ao supérfluo. Tratava-se, mais do No entanto, alcançar a qualidade impecável dos
que isso, de concretizar as significâncias culturais do produtos cotidianos – que ademais seriam poucos,
capitalismo moderno, enfrentando, nesse contexto, a despidos de resíduos históricos e de carga semântica
tipificação (Typisierung) como “o caminho orgânico diminuta, contribuindo inclusive para a formação
do desenvolvimento” (Frampton, 1997). estética e cultural do consumidor final – implicava
em riscos que, conforme analisa Schwartz, talvez
Suas concepções a esse respeito são construídas tenham sido, ainda assim, mal calculados pelo grupo
fundamentalmente a partir do design de objetos de Muthesius na DWB. É claro que se tratava de
utilitários, imaginando os tipos em processo de uma aposta: contar com um pesado investimento
desenvolvimento e refinamento para alcançar do capital em preceitos estéticos e funcionais,
formas-padrão absolutamente adequadas em suas num contexto em que a indústria ela mesma,
capacidades funcionais, com qualidades constantes, grande e eficiente, assumiria um papel reformador
inclusive do ponto de vista estético, para a reprodução da cultura, tendo como veículo o próprio tipo,
serializada, objetivando um mercado consumidor em a mercadoria, que carregaria consigo a marca
formação, em toda a Europa. registrada da empresa:

Aqui, a discussão sobre o papel da indústria como “A maneira como os conceitos de tipo e marca se
vetor organizacional da sociedade encontraria sobrepõem sugere a crença de que, traçando seu
lugar, segundo Schwartz, numa tentativa (para ele, caminho reto e estreito através da economia, a
de antemão condenada) de equacionar a relação nova mercadoria com a marca de seu criador iria
espinhosa entre forma e economia, já que se entendia realizar o trabalho de higiene cultural que a facção
que essa era a solicitação aos artistas da época. de Muthesius na Werkbund havia sugerido. Eles
Esse o canal, conscientemente percebido diante da pareciam acreditar que a marca poderia funcionar
realidade, para que a arte efetivamente se dissolvesse como um tipo e representaria uma espécie de estilo
na vida – explorando a nova técnica em seus limites, aceitável para o grande capital, cujo apoio eles foram
tomando partido de seu caráter positivo, a-histórico, solicitar para mudar a face do mercado” (Schwartz,
objetivo e despojado: 1996, p.140).

“[Os] membros da Werkbund não estavam confort- Partindo de tais questões, mais do que tão somente
áveis com a noção de ‘arte’: eles frequentemente a ressaltar a argumentação do grupo opositor a
colocavam entre aspas, zombavam dela, e em geral Muthesius – que, de acordo com Schwartz, vem
reconheciam sua inadequação às preocupações que sendo comumente abordada de forma simplista pela
compartilhavam, preocupações estas que normal- historiografia como “uma tentativa da retaguarda
mente os levavam para longe do espaço do salão, de reviver uma estética artesanal em oposição
da galeria, ou do museu. Eles buscaram trocar o às demandas feitas aos artistas pelo mercado
tradicional acesso do artista a estes lugares pelo local capitalista” (p.11) –, o autor inglês pretende
de trabalho e pelo mercado. E fazendo assim, eles alertar para as limitações inerentes à própria
tornaram-se cientes de que não estavam lidando ideia do Typisierung tal como a formulara seus
apenas com ‘indústria’ ou produção, mas com forças partidários. Chamando a atenção para as ácidas
que levavam seus produtos a pontos muito distantes observações feitas à época pelo economista Karl

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Bücher a respeito do Typisierung, Schwartz ressalta “A nova meta seria a produção em larga escala
seus dizeres: de casas de moradia, que seriam fabricadas, não
mais no canteiro de obras, mas dentro de fábricas
“Um mundo completamente especializado, tipi- especiais em partes isoladas passíveis de montagem.
ficado, normalizado, seria um mundo petrificado, As vantagens desse tipo de produção seriam tanto
em que se teria de aceitar produtos idênticos e fazê- maiores quanto mais possibilidades houvesse de
lo sem a estimulante condução para o progresso. montar as partes individuais pré-fabricadas no
Ele pressupõe que os consumidores não podem próprio canteiro de obra, por meio de processos de
transcender o dado. Estamos longe o suficiente ao construção a seco, como se fossem peças de uma
longo da nossa evolução industrial para trazê-la a máquina. [...] Semelhante processo de construção
um fim, fixando indefinidamente formas, dimensões industrial só é cogitável em larga base financeira.
e tipos de mercadorias?” (K. Bücher, citado em O pequeno empreiteiro, o engenheiro ou arquiteto
Schwartz, 1996, p.145) nunca estarão em condições, individualmente de
pô-lo em prática. Uma iniciativa conjunta, para
Ou seja, fica claro que não se tratava apenas tal fim, de todos os ramos compreendidos, já deu
de reivindicar o estatuto autoral da obra, sua bons resultados econômicos também em outros
originalidade e o reconhecimento do artista e, campos. A compreensão de muitos chefes de firmas
ainda, se seria possível equacioná-los num cenário construtoras teria, pois, de preceder a formação de
de produção em massa, serializada. Tratava-se, mais organismos de consumidores e a organização vertical
além, de discutir também o papel da norma e sua de empresas com poder financeiro suficiente para
recepção num mundo contagiado pelo poder da assegurar a realização dos processos de produção em
tecnologia maquinista. larga escala. As vantagens econômicas desta forma
de construir seriam então enormes, sem dúvida”.
Por outro lado, esta talvez fosse uma forma de (Gropius, 1994, pp.191-192; grifos no original)
enfrentar pela via cultural um problema de base
econômica, suprimindo “uma avaliação realista da Não há dúvidas de que Gropius dialogava aberta-
produção e distribuição de mercadorias em grande mente com a cultura capitalista e a ela entrelaçava os
escala” (Schwartz, 1996, p.11). O desconcerto talvez propósitos de sua arquitetura, ecoando nitidamente
estivesse mais próximo, intrínseco à própria lógica o debate sobre a modernidade que animava os
imaginada para o funcionamento do Typisierung; anos 1920 na Alemanha. Schwartz chega mesmo
e o mesmo Bücher formulara a questão em sua a relacionar o racionalismo gropiusiano às teorias
dimensão crucial: do marxista Georg Lukács, na medida em que
ambos trabalham uma dialética difícil e “parecem
“Não apenas [Karl Bücher] questionava se os resul- convergir num problema central, fundamental:
tados que poderíamos esperar desta estandardização a relação entre a economia moderna e a vida da
seriam inteiramente positivos, mas também se mente, entre mercadoria e cultura” – ainda que
poderíamos esperar seriamente que a indústria o filósofo tenha dissertado sobre a produção de
voluntariamente se submeteria a tais planos de mercadorias em massa para estudar alienação e não
estandardização” (Schwartz, 1996, p.145). transcendência (Schwartz, 1996, p.05).

Segunda parte - sobre habitação, Ao tratar especificamente da problemática da


indústria e produção habitação mínima para grandes populações, urgente
e fundamental ainda hoje, Gropius ensaia, com
O texto “A indústria de casas pré-fabricadas”, de consciência e concretude, um caminho para uma
Walter Gropius, publicado originalmente ainda nos espécie de “modernidade tecnológica” (Schwartz,
anos 1920, é de extrema clareza em relação à sua 1996), avançando em terreno cultural e econômico,
5 Gropius, que trabalhara posição frente ao processo de industrialização em reconhecendo a dureza do confronto proposto –
com Peter Behrens logo após ele entende, por um lado, a necessidade social
que estava metido como artista – e prontamente
ter-se formado arquiteto,
passou a fazer parte do qua- anuncia sua aproximação ao mesmo problema de aceitação do standard, do padrão, do tipo, e
dro da Deutsche Werkbund os defende sob argumentos semelhantes àqueles
com o qual estiveram às voltas seus companheiros
em 1911 (conforme Berdini,
1986). da Werkbund5: de Muthesius em relação ao design; por outro,

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Tipo, indústria e produção habitacional

6 Paulo Bruna, em obra re- ao confiar ao liberalismo de mercado um papel quanto os artigos de consumo produzidos pela
cente, dedica uma passagem
importante à centralidade
de destaque no processo de transformação da máquina, que hoje dominam o mercado” (Gropius,
que a questão da habitação produção habitacional, ele expõe-se aos mesmos 1994, p.119).
mínima, produzida em série,
ocupou nos debates acerca
questionamentos que Bücher assinalara em relação
do “Neues Bauen”, sobretu- aos interesses aí envolvidos e, certamente, não os Gropius talvez tenha sido o arquiteto que mais
do no imediato pós-Primeira
ignora, já que também conclama o Estado a assumir- se comprometeu e deu visibilidade, dentre seus
Guerra, na Europa. O autor
elenca uma série de arquite- se responsável pela tarefa. contemporâneos, à problemática da pré-fabricação
tos envolvidos com esta pro-
e da industrialização de componentes da edificação
blemática, em países como a
Holanda, a Alemanha, a Áus- No que diz respeito à padronização, Gropius chega habitacional. Ainda que outros expoentes da época,
tria e a Inglaterra, e ressalta a
a lançar mão do termo “habitação típica” (Gropius, como o próprio Corbusier, também tenham dedicado
circulação de ideias e os tra-
ços comuns que os conectava 1994, p.189) e constrói uma abordagem coerente reflexões ao tema das casas em série6, o alemão foi um
a todos, muito embora diver-
em relação ao que ele chama de “expressão formal tanto além, estudando de forma mais aprofundada
gissem em alguns aspectos.
Ele se esforça em destacar o coletiva”, recuperando a ideia do tipo (ou do e pragmática os processos produtivos, arriscando-
papel da imprensa, também
ativa no debate, o papel do
standard, como ele prefere) como fator unificante, se, inclusive, em uma série de experiências práticas,
Estado como patrocinador de atemporal – o desejo de reproduzir uma boa sobretudo já nos tempos em que integrava a Bauhaus,
experimentos de construção
forma standard seria, segundo ele, uma função da admitidas pela historiografia como de fundamental
habitacional em massa, o
papel das publicações espe- sociedade humana e mesmo o homem pré-industrial relevância para a narrativa da arquitetura moderna,
cializadas, das exposições
aceitara naturalmente a repetição do standard como como o Törten Siedlung (Dessau, 1926-1928), as
e dos congressos (como é
o caso, evidentemente, do resultado de uma fusão do melhor, alcançado com duas casas pré-fabricadas na Weissenhofsiedlung
2° CIAM, em 1929) na di-
a colaboração de muitos indivíduos envolvidos na (Stuttgart, 1927) e as casas pré-fabricadas com
vulgação e na publicização
de tais experiências e ideias solução de um problema. O standard não estaria, revestimento de cobre (Berlim, 1931).
(Bruna, 2010). Do ponto de
pois, relacionado a um recurso de produção específico
vista historiográfico, em meio
a esta movimentação de am- – “sejam ferramentas ou máquinas”. Ele enfatiza Tal como conta Bruna (2010), na esteira das
plas proporções, certamen-
que as formas-padrão da arquitetura de gerações discussões sobre a tipificação da produção industrial
te alguns arquitetos foram
abordados e lembrados com passadas sintetizam e fazem concordar “técnica e despontada e encabeçada por Muthesius na
maior ênfase, em detrimento
de outros – é o caso de Gro-
fantasia”, e seria importante fazer reanimar outra Werkbund, como se viu aqui, a possibilidade de
pius e Corbusier (este, com vez esse mesmo espírito – “mas não em suas formas padronizar componentes destinados à produção
suas evidentes particularida-
des em relação à questão),
superadas – para que nosso atual ambiente pudesse em série e as condições econômicas vantajosas
não resta dúvida. De todo ser remoldado com o novo meio de produção, a que daí advinham passaram, aos poucos, a atrair a
modo, aqui, permito-me fo-
calizar Gropius, sobretudo
máquina” (p.119). indústria da construção na Alemanha – resultado
por sua ligação com a Werk- disso, ressalta Bruna, seriam, por exemplo, os
bund e com a Bauhaus, por
No entanto, no caso do desenvolvimento habita- grandiosos conjuntos habitacionais construídos
sua atividade de educador e
pela riqueza dos escritos que cional, afirmando sua preocupação com “o perigo por Ernest May em Frankfurt, no entreguerras, ou
legou às gerações seguintes,
da uniformidade total, nos termos da casa suburbana mesmo o bairro experimental Weissenhofsiedlung,
síntese também de sua busca
obstinada pelo sentido prá- inglesa” (p.193), o arquiteto alegava que não inaugurado também nesse mesmo período, em
tico de nossa profissão na
se deveria permitir que a padronização e a pré- julho de 1927, na cidade de Stuttgart, para a
sociedade industrial.
fabricação fossem responsáveis pela produção de exposição internacional da Werkbund, anunciando
7 Para situar o modo como a
casas estereotipadas. E, ao vislumbrar a armadilha, concretamente aquela que seria a chamada “nova
questão da industrialização
da construção vinha sendo ele mesmo apresenta a saída: habitação”, da qual eram partidários e projetistas
tratada na Alemanha dos diversos arquitetos, ligados ou não à Werkbund –
anos 1920-30, vale a pena
registrar que, conforme Bru- “[A organização industrial] deve ter como alvo produzir Mies van der Rohe na direção, seguido de Gropius,
na (2010, p.72), “boa parte não casas inteiras, em primeiro lugar, mas componentes Behrens, Poelzig, Taut, Hilberseimer, Corbusier, J.J.P.
dos fundos para a constru-
ção do Weissenhofsiedlung padronizados, fabricados em série, de modo, porém, Oud, dentre outros7.
[...] vieram de uma nova que permita montar diferentes tipos de casas, assim
organização federal, criada
pelo Ministério do Trabalho como na construção de máquinas certas partes Ali, Gropius realizara duas casas unifamiliares
[alemão], cujo objetivo era normadas [sic] encontram aplicação internacional totalmente pré-fabricadas, através de um sistema de
financiar experimentos em
métodos econômicos para a em diferentes máquinas” (Gropius, 1994, p.193). montagem a seco para uma estrutura composta por
construção em massa de ha- um esqueleto em aço e painéis divisórios de cortiça,
bitação. Foram financiados,
entre 1927 e 1931, uma série “[...] a competição natural, no mercado livre, cuidará revestidos com placas de cimento amianto (Berdini,
de projetos experimentais, para que as partes de construção pré-fabricadas 1986, p.81). Mais tarde, com a experiência das casas
dentre os quais uma parte do
... continua próxima página apresentem uma multiformidade tão individual desenvolvidas para a empresa Hirsch Kupfer und

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Tipo, indústria e produção habitacional

continuação da nota 7... Messingwerke, de Berlim, que ademais apresentava das componentes não estabelece limites à criação
conjunto de Praunheim [de a possibilidade de futuras expansões conforme a individual, que todos nós almejamos, e a repetição
Ernest May, em Frankfurt].
Além disso, [a organização] necessidade do morador, o arquiteto ensaiou novas das partes individuais e dos materiais idênticos em
também publicava e distri- formas de pré-fabricação, esclarecendo aquilo que diferentes corpos de construção não dará uma
buía extensos relatórios de
todos esses projetos, bem lhe parecia vantajoso nesse tipo de construção: sensação de ordem e calma, tal como a uniformidade
como extratos de escritos de nossas roupas. Precisamente como neste caso,
de W. Gropius, Mies van der
Rohe e outros, relativos ao “Eliminação da umidade no processo de construção; a peculiaridade do indivíduo e da nação guarda
significado social e cultural leveza das distintas partes a construir; independência suficiente possibilidade de produzir seus efeitos,
da nova habitação”.
das condições atmosféricas ou das estações, dado mas tem o caráter de nossa época” (Gropius, 1994,
o caráter da montagem; redução dos custos de p.196; grifos no original; negritos meus).
manutenção graças à alta qualidade dos materiais que,
ao serem produzidos dum modo standard, apresentam A reafirmação do gênio autoral do arquiteto faz
também vantagens de tipo econômico; possibilidade claramente ecoar os debates de trincheira de anos
de fixar um preço não susceptível de incremento; antes, na Werkbund, de forma, no entanto, ainda
rapidez na entrega” (Berdini, 1986, p. 128). mais dramática e contraditória, como se se cavasse
espaço num mundo inteiramente mecanizado para
Novamente no texto “A indústria de casas pré- uma expressão que já não sabe bem qual sentido
fabricadas”, Gropius ocupa-se de fartas descrições pode continuar a ter diante do poder da indústria e
sobre aspectos técnicos e construtivos que estariam dos novos hábitos que ela imputa à sociedade.
implicados na pré-fabricação, detalhando alguns deles
e prescrevendo uma espécie de normativa genérica Por outro lado, somente a defesa inconteste da adoção
que pudesse ser seguida para que o aprimoramento de novos padrões de comportamento social poderia
da industrialização das partes alcançasse algum justificar a aceitação da “nova arquitetura”:
êxito. Os benefícios que ele esperava extrair dela
eram de fato inúmeros e ele acrescenta outros em “A maioria dos cidadãos dos povos civilizados têm
relação àqueles listados no excerto acima – exatidão necessidades análogas no que tange às necessidades
de medidas, encaixe perfeito das partes no canteiro de vida e morada. Daí não se entender por que
de obras, aceleração da montagem, rebaixamento as casas de moradia que construímos não podem
dos custos de mão-de-obra (que não necessitaria apresentar um caráter igualmente homogêneo, como
qualquer especialização ou qualificação), suspensão as nossas roupas, sapatos, malas e automóveis”
de atrasos e consequente perda de tempo e dinheiro (Gropius, 1994, p.193).
(Gropius, 1994).
O emprego dos tipos, como condição do corolário
O problema estético que envolve esta forma de moderno, aparece, mais uma vez, como uma prática
concepção e produção da casa, por outro lado, não enredada numa espécie de labirinto do qual não se
merece destaque neste mesmo texto – ao contrário: vê saída. E, não à toa os adeptos do pós-modernismo
Gropius o aborda já ao final e não dedica mais vão tomá-la como alvo para mirar algumas de suas
8 A respeito do emprego de que um parágrafo a ele, ainda assim, reafirmando críticas mais desafiadoras, ainda que vários deles
tipologias como metodologia
o comprometimento com o caráter harmonioso também a defendam, embora sob outra lógica8.
de projeto, Alan Colquhoun
(2006), em ensaio publica- das novas casas e bairros residenciais que surgirão Montaner (1999) é um dos autores que, agenciando
do originalmente em 1967,
do artefato industrial, mais uma vez citando o referências as mais diversas (algumas soando inclusive
argumenta, opondo-se ao
que ele chama de “determi- antiexemplo das casas inglesas de subúrbio. E, de um tanto deslocadas), citam o movimento moderno
nismo biotécnico” do mo-
forma quase inesperada, anuncia: como tomado de uma visão positivista do homem,
vimento moderno, sobre a
necessidade de que se utilize que seria encarado, do ponto de vista projetual,
o recurso de “modelos ti-
“A ‘beleza’ será garantida por materiais bem como puro, perfeito, genérico e total, contrapondo-o
pológicos” que orientem o
ato de projetar, porque eles trabalhados e uma edificação clara e simples [...]. à ideia do homem comum, concreto e imperfeito,
guardam camadas de signi-
Em que medida há de surgir de tais elementos de tradicionalmente, diversamente e contextualmente
ficação cultural que podem
e devem ser recuperadas. construção, desta ‘grande caixa de montagem’, inserido no mundo.
Essa teorização foi utilizada
um espaço bem plasmado na obra arquitetônica,
também por outros ícones
pós-modernos, como Aldo dependerá então do talento criador do arquiteto No entanto, às avaliações de corte culturalista
Rossi e Leon Krier.
construtor. De qualquer maneira, a padronização preconizadas por grande parte desta historiografia

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Tipo, indústria e produção habitacional

de combate aos modernos, fortalecida a partir dos cavação de estacas ou perfuração do solo para
anos 1960, parece escapar a questão da produção execução de fundações, passando pela elevação
propriamente dita, de fundamental relevância de alvenarias, execução de formas e armaduras,
para que se possa perceber a complexidade desta até a aplicação de revestimentos e pinturas, todo
discussão em suas dimensões mais amplas. Se, como o processo construtivo completa-se por uma lógica
quer Schwartz (1996), os membros da Bauhaus, e fundamentalmente artesanal, embora possa ser
9 Veja-se o trabalho de Shim- especialmente Gropius, de certa forma reduziram sim altamente racionalizado9. Se a indústria de
bo (2010), a respeito dos
canteiros manufatureiros das
sua teoria à tecnologização da modernidade e do componentes não cresceu na escala imaginada
construtoras que hoje produ- capitalismo, tanto ignorando o sistema político por Gropius e não rendeu os progressos almejados,
zem, com largos incentivos
de programas como o Minha
quanto aceitando e se adaptando aos “imperativos em termos econômicos, sociais e mesmo culturais,
Casa Minha Vida, do governo econômicos definidos em termos de técnica de o Brasil seria um bom exemplo para entender
federal, conjuntos habita-
cionais para as classes baixa
produção” (p.02), por outro lado, há que se seus porquês, tal como tentou fazer Sérgio Ferro,
e média-baixa, altamente reconhecer que a reflexão que naquele momento iluminado pela doutrina marxista, na virada dos
racionalizados e controlados
para garantir rentabilidade.
se construiu a esse respeito de fato parece não ter anos 1960-70.
deixado muitos herdeiros a sua altura.
Quanto à tipificação, como já dito, parece certo
A baliza da norma universal, sem dúvida, merece que aquilo que no Brasil se pôs em curso guardou
atentas ressalvas, como o quiseram e o fizeram os enormes distâncias em relação às ideias originais
pós-estruturalistas, numa tentativa de aprofundar de Muthesius e Gropius: ainda que Carlos Comas,
criticamente a leitura do mundo contemporâneo. Por analisando a fórmula que permitira decalcar conjuntos
outro lado, para a arquitetura, o vácuo de reflexões habitacionais repetidamente ruins país afora, refira-
densas a respeito dos meios de produção – não em se a eles como “tipo arquitetônico”, como o tipo
oposição, mas de forma complementar ao debate “conjunto habitacional BNH” (Comas, 1986,
cultural – não permitiu avanços mais do que tímidos p.127), remetendo-se, logicamente, à insistente
em relação, por exemplo, à própria industrialização padronização arquitetônica e urbanística adotada,
da construção, em escala e com qualidade, tal como soaria impróprio estabelecer relações diretas entre
a vislumbrara Gropius e os seus. as concepções desenvolvidas pelos alemães e o
projeto da casa popular no Brasil (o que o autor
Veja-se o caso brasileiro: em termos de atendimento não faz, diga-se). Mesmo tratá-las em termos de
habitacional para as massas, quando se ensaiou deturpação, obliquidade, enviesamento, talvez
uma política de porte, com o Banco Nacional de seja ainda insuficiente para estabelecer uma leitura
Habitação, passamos a conviver com mares de correta daquilo que caracteriza a habitação em massa
conjuntos habitacionais, de longe e apenas inspirados no Brasil, porque uma questão em especial, que
em linguagem moderna, despidos de qualidade faço repetir, permaneceria aberta, carente mesmo
projetual, espraiados nas periferias de solo barato, de investigação: como entender, em suas dimensões
facilmente identificados por um padrão construtivo não apenas econômicas, mas também culturais, o
que passa a ser característico da promoção estatal ‘tipo’ e a série sem a presença da indústria.
a partir de então – e aqui localizamos o fenômeno
que nos particulariza: a série sem a indústria. A Os caminhos de reflexão a esse respeito podem
repetição de uma forma que em nada se assemelha ser inúmeros, mas me parece certo que um
ao tipo muthesiano, invertida em sua lógica de uma dos pontos de partida está nos sentidos que as
mercadoria que, em tese, primordialmente deveria vanguardas alemãs atribuíram às questões da técnica
apresentar qualidade (tipo mais adequado para a e da racionalidade produtiva – a meu juízo, temas
função específica do objeto). relativamente pouco explorados pela historiografia
da arquitetura moderna brasileira, mais afeita a
Em termos práticos, o que se verifica em relação tratar de licensiosidades formais, desvios positivos,
à produção do BNH (e ainda nos dias de hoje) anti-racionalismo e genialidade, atributos que, em
é, basicamente, a reprodução de tecnologias tese, nos caracterizariam –, e por isso o esforço de
construtivas tradicionais e manufatureiras, de todo aqui focalizá-los e tomá-los como fundamentais para
condizentes com a baixa composição orgânica de seguir estudando as complexidades que fortemente
capital na construção civil: desde os sistemas de caracterizam a produção habitacional no Brasil.

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Tipo, indústria e produção habitacional

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