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Terceira Civilização - Edição 561 - 16/05/2015 - pág.

22 - Proposta de Paz

Terceira Civilização - Proposta de Paz

Compromisso de todos com um mundo mais


humano: acabar com a miséria da Terra
Neste 40º aniversário da fundação da Soka O empenho dos países para alcançar os
Gakkai Internacional (SGI), trago algumas ODMs deu bom resultado: reduziu a 700
sugestões para fortalecer a solidariedade milhões o número de pessoas que vivem
entre os povos por um mundo de paz, pelo em extrema pobreza e a diferença entre
humanismo e a eliminação do inadmissível meninos e meninas na educação básica.
sofrimento da Terra. Conhecedor desses êxitos, o Grupo de
Trabalho Aberto fixou números mínimos
O futuro depende do inadiável universais. Em Propostas de Paz, e em
compromisso de todos e de cada um para outras publicações, almejei maiores
que ninguém mais, inclusive as gerações conquistas internacionais. Estou
vindouras, venha a suportar os sofrimentos agradecido.
que nos afligem.
Recordo que o meu mestre Josei Toda,
Desde a sua fundação, na década de 1970, segundo presidente da Soka Gakkai
a Organização das Nações Unidas (ONU) (1900–1958), movido pelo sofrimento do
amplia o seu horizonte de atividades para povo da Hungria, em consequência da
enfrentar as questões mundiais. Os malsucedida revolta de 1956, declarou:
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
(ODM), definidos em 2000, para serem — Desejo que a palavra ‘miséria’ nunca
alcançados até 2015, consistiam em mais se refira ao mundo, a um país ou a
melhorar a qualidade de vida de pessoas qualquer indivíduo.2
famintas e miseráveis. Em julho passado, o
Grupo de Trabalho Aberto sobre os Martin Luther King Jr. (1929–1968) proferiu
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a célebre declaração:
(ODS) – realizações que dão
prosseguimento aos trabalhos iniciados — A justiça é indivisível.3
pelas ODMs até 2030 – apresentou projeto
de maior alcance. Frases como “acabar Esta era também a convicção do Sr. Toda,
com a pobreza em todas as suas formas e depois de ter sido preso, junto ao primeiro
em todos os lugares”, “assegurar vida presidente da Soka Gakkai, Tsunesaburo
saudável e promover o bem-estar de Makiguchi (1871–1944), por resistirem ao
todos, em todas as idades”,1 não são meras controle do pensamento, imposto pelos
palavras: significam o compromisso de militares japoneses durante a Segunda
respeitar a dignidade de todas as pessoas. Guerra Mundial. Ele afirmou que paz e
Sem exceção. segurança, prosperidade e felicidade não
podem ser usufruídas só por um grupo de
pessoas, enquanto tantos sofrem com a

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falta delas. Quando se deflagrou a Guerra e da economia


da Coreia, a sua inquietação foi profunda:
No recente agosto, o Instituto Toda para a
— Por causa desta guerra hedionda, Paz Global e Pesquisa Política, que fundei
muitos perderam maridos e mulheres e para honrar o legado do meu mestre,
tanta gente ainda se desespera realizou em Istambul uma conferência de
procurando filhos e pais desaparecidos.4 pesquisadores seniores. Estudou áreas de
preocupação mundial: a guerra civil na
A força da solidariedade com o sofrimento Síria, o conflito entre Israel e Palestina, a
das pessoas é o espírito de compaixão. Ele situação do Iraque e da Ucrânia e as
deixou claro em sua visão de nacionalismo crescentes tensões na Ásia Oriental.
mundial: os seres humanos, de qualquer Enfatizou novas tendências positivas e
lugar ou nacionalidade, têm o direito de ser trocas de opiniões sobre a melhor forma
felizes. de levá-las à prática. Além dessas
questões críticas, como o fortalecimento
No cerne desta convicção estava o desejo da ONU, de outras agências internacionais
de livrar o mundo da miséria, o anseio de e o desenvolvimento e poderes de
impulsionar as atividades da SGI nos solidariedade, imaginação e criatividade
campos da paz, cultura e educação em entre os membros da geração mais jovem,
apoio ao trabalho das Nações Unidas. ressaltou a reumanização da atividade dos
políticos, essencial para a redução do
Reconheço que o esforço para alcançar a sofrimento dos indivíduos.
inclusão de “todas as pessoas, em todos os
lugares”, como pretende o Grupo de A Carta das Nações Unidas e a Declaração
Trabalho Aberto, ainda é extremamente Universal dos Direitos Humanos (DUDH)
difícil. Por isso, convém que voltemos ao deixam claro o papel dos Estados na
espírito da Carta das Nações Unidas, que proteção desses valores fundamentais.
não admite exceção em seu compromisso, Contudo, muitas vezes são os Estados a
inscrito no preâmbulo: “preservar as principal fonte de ameaça à vida e à
gerações vindouras do flagelo da guerra e dignidade das pessoas. Esta preocupação
reafirmar a fé nos direitos fundamentais do é motivo de meu diálogo constante com o
homem, na dignidade e no valor do ser secretário-geral do Instituto Toda, Dr. Kevin
humano” e promover “o progresso Clements, organizador da conferência.
econômico e social de todos os povos”.
Basta dar a guerra como exemplo mais
Desejo discutir três temas prioritários, cruel. Desde o fim da Segunda Guerra
decisivos para maior desenvolvimento Mundial, só uma minoria de países foi
internacional da ONU e, ao mesmo tempo, capaz de não se envolver em conflitos
acelerar a eliminação da miséria neste armados. De toda maneira, os direitos
mundo. humanos e as liberdades civis sempre são
restringidos em nome da segurança do
A reumanização da política Estado e do aumento da força nacional e

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muitas vezes deixa vulnerável toda a suporta ou sustenta”. Em traduções


sociedade. Nos últimos anos, desastres chinesas de escritos budistas, ganhou o
naturais e extremas mudanças climáticas sentido de “a Lei” ou “o caminho”. Expressa
expõem as pessoas a condições de a ideia de que, como indivíduos,
privação inesperada. Responder por esse necessitamos de algo que nos sustente.
sofrimento é papel fundamental de Como explica o estudioso budista Hajime
qualquer tema político e abrange o campo Nakamura (1912–1999), existem caminhos e
da economia. princípios que nós, seres humanos,
devemos manter.6
Há dois anos o papa Francisco fez um
desafio, amplamente divulgado, ao É natural que aspectos específicos da
sistema econômico atual: “Um prática política e econômica mudem de
desabrigado morre de frio e não é notícia? acordo com a época, mas há princípios
Mas quando a bolsa cai dois pontos sai na que devem ser respeitados e padrões de
primeira página?”5 A fixação de índices condutas que não podem ser ignorados.
macros como taxas de crescimento Nos seus ensinamentos finais, Shakyamuni
econômico acabam deixando de lado a encorajou seus seguidores a viver sempre
preocupação com a qualidade de vida e a de acordo com esse darma inerente.
dignidade humana. O aumento da Comparou o darma a uma ilha, ideia de
atividade econômica não alivia os que ele funciona em meio à sociedade, ilha
sacrifícios dos miseráveis. durante uma inundação, protegendo a vida
das pessoas e proporcionando lugar de
A palavra “política” é derivada do termo refúgio. Indo mais além, podemos dizer
grego politeia que, entre os seus que o papel da política e da economia é
significados, indica o papel dos cidadãos oferecer em tempos de crise um espaço
dentro do Estado. O termo “economia” vem de segurança, especialmente para os mais
do grego oikos (casa, lar) + nomos necessitados, onde as pessoas recuperem
(administração). Portanto, a esperança de viver.
etimologicamente, tem o sentido de
“administração da casa”. Hoje, o sentido Se reconsiderarmos as origens da política
original destas palavras é ignorado, e os do ponto de vista das pessoas comuns,
princípios norteadores das ações políticas encontraremos a esperança, quase
e econômicas parecem apenas criar mais devoção, capaz de tornar a sociedade um
sofrimento para aqueles em circunstâncias lugar melhor. Da mesma forma, as origens
difíceis. da economia encontram-se no desejo das
pessoas comuns de desempenhar um
A questão nos traz ao conceito de darma. papel útil na sociedade trabalhando na sua
De acordo com os ensinamentos budistas, profissão. Quando as políticas funcionam
salientado por Shakyamuni, o caminho em grande escala, nos deparamos com o
fundamental que as pessoas deveriam chamado “déficit democrático”, pela
seguir. Darma, derivado da raíz dh, é um ausência da vontade popular. O fenômeno
termo sânscrito que significa “aquele que correspondente no âmbito da economia

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seria o caso de excessos do setor que podemos acreditar e sentir orgulho


financeiro em que a especulação em qualquer momento”.8
descontrolada provoca perdas na
economia do povo. Quando cada um de nós considera os que
serão afetados por nossas ações e reflete
O que devemos fazer para conter estas sobre o peso de nossa responsabilidade,
tendências e ajustar os atuais sistemas revela-se o nosso verdadeiro eu para o
políticos e econômicos? desenvolvimento do nosso humanismo.
Com esta atitude, podemos, cada vez mais,
Considero oportunas as palavras que explorar o significado e o papel dos
Mahatma Gandhi (1869–1948) escreveu a sistemas políticos e econômicos e dar
um amigo: “Lembre-se do rosto da pessoa condições à sociedade para a sua
mais pobre que você já viu, e pergunte a si reumanização. Este é o dinamismo
mesmo se o passo que você vai dar será essencial do caminho do meio.
de alguma utilidade para ela.”7
As decisões tomadas com este propósito
O que Gandhi está nos pedindo para podem receber críticas por contrariar o
manter em mente ao tomar decisões costume atual da sociedade. Mas fracassar
cruciais é o sofrimento das pessoas com as por ser fiel a suas convicções não é só
quais convivemos, em vez de uma deixar de fazer o bem; pior, pode provocar
dinâmica política que favoreça um sofrimento ainda maior a tantas
determinados interesses. pessoas. Esta era a fervorosa reivindicação
de Tsunesaburo Makiguchi, o presidente
Sinto que isto é profundamente fundador da Soka Gakkai.
congruente com a ideia de caminho do
meio ensinada no budismo. Caminho do Com o poder de suas palavras e ações,
meio não significa simplesmente evitar Makiguchi desafiou o fascismo militarista
extremos de pensamento ou ação. Em vez do Japão durante a guerra e o controle do
disto, refere-se ao processo de alcançar o pensamento. Iniciadas por volta de 1940, as
caminho; isto é, de viver e de criar a própria reuniões da precursora da Soka Gakkai, a
marca na sociedade enquanto Soka Kyoiku Gakkai (Sociedade
constantemente questiona suas próprias Educacional de Criação de Valor), eram
ações para garantir que estejam de acordo submetidas à vigilância da Polícia Superior
com o caminho da humanidade. Ao Especial. O periódico da organização, Kachi
incentivar as pessoas a confiar no darma sozo, foi forçado a suspender suas
como uma ilha, Shakyamuni também publicações em maio de 1942 e, a partir de
recomendava que confiassem em si julho de 1943, Makiguchi foi detido e
mesmas. Apontou o verdadeiro significado interrogado.
de caminho do meio: não seguir
impensadamente os caprichos de alguém, A uma pergunta de seus interrogadores
mas, sim, como Hajime Nakamura afirmou, deu a seguinte resposta:
“confiar em seu verdadeiro eu, o eu em

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— Às vezes as pessoas, muito as ONGs fossem incluídas em parcerias


preocupadas com a opinião da sociedade, construtivas para aperfeiçoar suas formas
satisfazem-se com um modo de vida que de trabalho.10
não faz bem nem mal, quando muito um
bem limitado. Em casos extremos, leva à No campo da economia, onze membros da
conclusão de que é aceitável fazer União Europeia chegaram, em maio de
qualquer coisa, contanto que não seja 2014, a um acordo de execução conjunta
proibido por lei. Considero todos esses de um imposto sobre transações
modos de vida uma forma de calúnia financeiras. Refletindo lições da crise de
contra o darma budista.9 2008 e o duro golpe sofrido pela economia
mundial, criavam um regime de tributação
Por calúnia, Makiguchi se refere a ações de transações financeiras para
contrárias aos ensinamentos do budismo; desencorajar a especulação e corrigir os
mas em sentido mais amplo, nos incentiva programas de distribuição. Tomara que
a refletir sobre todas as ações que não resulte em 2016. Há seis anos, solicitei em
estejam em harmonia com o caminho da minha proposta a aplicação mais ampla
humanidade. Comum a casos em que os desses impostos de solidariedade
resultados da atividade política e internacional para apoiar a efetivação dos
econômica resultam em miséria, está a ODMs. Sugeri que um imposto sobre
indiferença com a dor dos outros e a ânsia transações financeiras poderia ser
pela autojustificação, como Makiguchi elemento de uma competição positiva,
condenou. Enquanto prevalecer essa pelo qual Estados disputam entre si o
forma de pensar, o próprio sucesso da desenvolvimento de novas concepções
prosperidade não se sustenta, mas se para o futuro.11 A realização dos ODS exige
renderá à miséria do egoísmo, iniciativas ainda mais criativas.
après-moi-le-déluge [“depois de mim, o
dilúvio”]. A força criadora essencial para a
reumanização da atividade política e da
O predomínio de tais ações aumenta a economia é a solidariedade dos cidadãos
importância do desafio de reorientar as comuns que levantam a voz no
atividades políticas e econômicas para compromisso inabalável para o nosso
aliviar o sofrimento humano – sua futuro coletivo. Em uma de suas primeiras
reumanização. obras, Makiguchi salientou que o espírito
inspirador de uma sociedade não existe
Alguns exemplos: 110 países já criaram, sem a contribuição solidária de cada
entre outras, instituições nacionais de indivíduo. Uma nova consciência social
direitos humanos nos moldes solicitados surge da comunicação e disseminação da
pelo Conselho de Direitos Humanos das mudança do discernimento das pessoas.12
Nações Unidas. Elas incentivam o
enquadramento legal para a proteção dos Em diálogo com Elise Boulding
direitos humanos e à educação. Em minha (1920–2010) renomada pesquisadora de
Proposta de Paz de 1998, insisti para que estudos da paz sobre as metodologias de

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transformação social, ela me declarou: estatísticas da ONU, 22 milhões de pessoas


ficaram desabrigadas em consequência
— Faz tempo acredito que um mundo das catástrofes naturais em 2013, cerca de
saudável e pacífico é possível se nos três vezes mais que o das pessoas
dedicarmos com amor ao expulsas de suas moradias por conflitos
desenvolvimento de cada membro da armados.14
comunidade.13
Eu também experimentei a tristeza
Afirmou que a direção da sociedade futura profunda de perder minha própria casa.
será determinada pelos 5% que estão Durante a Segunda Guerra Mundial, a
comprometidos. Esta porcentagem, em doença do meu pai e o recrutamento dos
última análise, transforma a cultura na sua meus quatro irmãos mais velhos
totalidade. De sua confiança, ganho grande prejudicaram as finanças da família,
esperança. obrigando-nos a vender a casa da minha
infância. Depois disso, nossa moradia foi
Neste sentido, não são apenas números, demolida para criar uma área de proteção
mas a força e a profundidade de nossa contra incêndio e, logo depois de
solidariedade que nos levarão pelo mudarmos para uma nova casa, ela foi
caminho da reumanização da política e da atingida por uma bomba incendiária e
economia: gerando solidariedade, nacional queimada completamente.
e internacional, entre os cidadãos comuns
que não desejam ver ninguém sofrendo na Devido a essa experiência, posso imaginar
miséria, eles são a chave para transformar a tristeza e o desespero dos que perderam
o rumo da história. seus entes queridos ou foram forçados a
deixar suas casas. É a dor de perder o
A reação em cadeia do empoderamento mundo em que se vive. O verdadeiro
desafio de restauração e recuperação
O segundo tema prioritário que desejo deve ser o de restaurar a esperança e a
expor é o que chamo de “a reação em vontade de viver das vítimas. Para este fim,
cadeia do empoderamento”, pela qual as é essencial o apoio contínuo da sociedade
pessoas desenvolvem a capacidade de como um todo.
transcender o sofrimento.
Esta experiência de perder o seu lugar – o
As catástrofes e desastres climáticos sentimento de pertencer e de comunidade
extremos das últimas décadas causaram – é, na verdade, predominante em todo o
danos e crises humanitárias em todo o mundo, nem sempre de forma tão
mundo. Entre eles o terremoto de Kobe dramática. Estima-se que no Japão uma
(1995), o terremoto e tsunami no Oceano em cada cinco pessoas, com idade
Índico (2004), o terremoto no Haiti (2010), o superior a 65 anos, vive na pobreza e uma
terremoto e tsunami do leste do Japão em cada seis crianças sofre privações,
(2011) e o tufão Haiyan, que atingiu as incluindo insegurança alimentar.15 Para
Filipinas em 2013. De acordo com as muitos, o desgosto da privação econômica

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é agravado pela sensação de isolamento realidade do envelhecimento e da doença


social. – pelo fato de que pessoas foram
obrigadas a enfrentar solitárias estes
Na busca de soluções para o problema, é sofrimentos, morrendo sozinhas numa
valiosa a contribuição da filósofa política beira de estrada ou deitadas com uma
americana Martha C. Nussbaum. Ela doença sem qualquer cuidado. Ficou
observa que as concepções tradicionais de particularmente comovido com a ruptura
contrato social não incluíram mulheres, de contato com os outros e com a
idosos, crianças e pessoas com deficiência. natureza do sofrimento no isolamento.
E cita a influência do utilitarismo como
razão para esquecer o sofrimento de De fato, ao longo de suas atividades como
algumas pessoas. Ela afirma: professor, Shakyamuni regularmente
assistia e cuidava dessas pessoas e
A grande dor e penúria de uma pessoa advertia duramente os seus discípulos
podem ser compensadas pela excessiva para que não fechassem os olhos para
boa sorte de tantas pessoas? Eis um fato esses sofrimentos. Recordo um
moral de extrema importância – cada ensinamento: “Quando a necessidade
pessoa tem apenas uma vida – que se surge, como é bom ter amigos”.17 Nem a
apagou.16 doença nem o envelhecimento, de forma
alguma, diminuem o valor essencial da
Nussbaum nos exorta a ir além da ideia de nossa vida. Mas, as pessoas ficam
vantagens mútuas como o único princípio desesperadas quando são isoladas e se
organizador da sociedade. Exige uma tornam incapazes do sentido de conexão e
reconfiguração, fundada no conceito de de ser aceitas naquela situação. Uma
dignidade humana que a ninguém exclui. realidade que Shakyamuni não podia
Ela afirma que cada um de nós, por aceitar.
doença, idade ou acidente, pode em
algum momento requerer a ajuda de Um dos ensinamentos fundamentais do
outros para viver. E insiste que todos nós budismo Mahayana é a ideia da “origem
consideremos uma nova direção para a dependente”, de que o mundo é tecido
sociedade como questão de profunda com a ligação de vida a vida. Esta
preocupação pessoal. compreensão da interconexão nos permite
até mesmo tornar as experiências
A tese de Nussbaum tem muito em dolorosas da doença e do envelhecimento
comum com a preocupação central do em oportunidades para elevar e enobrecer
budismo, o sofrimento que a nossa vida e a dos outros. Mas é verdade
inevitavelmente acompanha as fases da que o simples conhecimento intelectual
vida: nascimento, envelhecimento, doença sobre interconexão não é suficiente para
e morte. Como a famosa história dos realizar essa transformação positiva.
quatro encontros simboliza, antes mesmo
de entrar para a vida religiosa, Shakyamuni “Quando nos curvamos diante de um
entristeceu-se – muito mais do que pela espelho, a imagem refletida curva-se de

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volta para nós em reverência”.18 Como a mantendo viva a chama da dignidade


citação ilustra, somente quando sentimos humana.
e prezamos nos outros a existência de uma
valiosa e insubstituível dignidade como a Esta ideia nos traz o exemplo de Elise
que existe em nossa própria vida é que a Boulding, a quem já citei, e como ela viveu
ligação de vida a vida se torna verdadeira. os seus últimos anos. Algum tempo antes
Então, as lágrimas e os sorrisos que de sua morte, a Dra. Boulding foi visitada
trocamos despertam em cada um de nós por vários membros da SGI. Com mais de
uma vontade corajosa de viver. 80 anos, ela explicou que, embora não
tivesse mais energia para elaborar livros
O psicólogo Erik H. Erikson (1902–1994), inteiros, ficava feliz de atender pedidos
conhecido por seu trabalho sobre o para escrever prefácios de obras escritas
conceito de identidade, tem uma visão que por amigos e alunos.
se assemelha ao dinamismo da “origem
dependente”: Depois de entrar para uma casa de
repouso, com a saúde agravada, ela viveu
Aqui, a convivência significa mais do que a motivada pela ideia de ter algo que
proximidade ocasional. Significa que as pudesse fazer. Como seu aluno Dr. Kevin
fases da vida do indivíduo estão Clements se recorda, ela sentia que
“intervivendo”, engrenando com os poderia trazer algo de bom sorrindo
momentos de outros que o movem à àqueles ao redor, sendo gentil e
medida que ele os move.19 agradecendo à equipe médica pela
atenção. Até pouco antes de sua morte, ela
Gostaria de fazer referência às ideias de continuou a receber os visitantes com um
Erikson, enquanto exploro as infinitas magnífico espírito de hospitalidade, como
possibilidades que surgem do sempre demonstrou aos que iam à sua
ensinamento da “origem dependente”, ou casa.
seja, a capacidade de
autoempoderamento que permite às A Dra. Boulding nos mostrou que sempre
pessoas oprimidas pelo sofrimento somos capazes de manter um sentido de
iluminar sua comunidade e a sociedade conexão com os outros, e, por meio dele,
como um todo com a luz da sua dignidade. proporcionar momentos de autêntica
felicidade aos que nos rodeiam, e nossa
A primeira das ideias de Erikson é a de que condição humana ganha um brilho cada
a pessoa madura sente precisão de ser vez maior. Momentos que se gravam em
necessária.20 Entendo que isto significa nosso ser, no nosso próprio coração e no
que, independentemente da nossa das outras pessoas. Este nobre brilho
condição, uma vez que somos feitos para interior da vida é a manifestação de um
nos sentirmos necessários aos outros, empoderamento que persiste em qualquer
seremos movidos pelo desejo de circunstância.
necessitar dos outros. Este desejo
desperta as capacidades inerentes à vida,

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Outro elemento do pensamento de Erikson próprios desafios. Essa reação em cadeia


é a ideia de que o esforço para recompor o com base na empatia está no centro da
sentido tem o poder de evitar o sofrimento nossa prática da fé.
causado pela geração e difusão de ciclos
destrutivos. Não podemos refazer nossas Gostaria ainda de salientar o impacto de
vidas, mas ao recontar a alguém os passos longo alcance da história de vida de uma
que nos levaram ao presente podemos única pessoa que conseguiu descobrir o
reformular o sentido dos eventos senso de missão nas profundezas do seu
pretéritos. Erikson considerava isso uma sofrimento. São histórias que transcendem
fonte de esperança. fronteiras nacionais, conectam gerações e
transmitem coragem e esperança para
Este fenômeno mental também se muitos.
encontra nas atividades religiosas da SGI,
em particular no compartilhamento de Erikson distingue a história de Gandhi
experiências pessoais, quando os como um modelo de sua filosofia, e
praticantes desenvolvem juntos profunda chegou até mesmo a escrever a biografia
confiança. A tradição de realizar pequenas deste líder pacifista. Erikson descreve os
reuniões de diálogo em grupo data da jovens que se reuniram em torno de
época do presidente fundador da Soka Gandhi:
Gakkai, Tsunesaburo Makiguchi.
Estes jovens, então, altamente talentosos
As pessoas dizem o que lhes traz em vários aspectos, parecem ter sido
felicidade e como encontraram sentido na unidos por um “traço” de personalidade,
vida, e não só dissabores, morte na família, uma preocupação precoce e ansiosa pelos
doenças, problemas financeiros, abandonados e perseguidos, em primeiro
dificuldades no trabalho e situações lugar dentro de suas famílias, e mais tarde
familiares, discriminação e preconceito. É a num círculo maior de intensa
ocasião de reconhecimento coletivo de preocupação.21
importância e natureza insubstituíveis da
jornada da vida de cada indivíduo, onde as Este processo espelha, sem dúvida, as
lágrimas de alegria e tristeza são próprias motivações de Gandhi. Sua
livremente compartilhadas e as pessoas experiência de ser discriminado na
incentivadas na luta para transformar o juventude o levou a lutar pelos direitos
sofrimento. humanos na África do Sul e, por fim, a
dedicar-se ao movimento pacífico pela
Por esse intercâmbio, o que fala independência da sua Índia. Seu maior
desenvolve uma clara consciência de que desejo era que toda a humanidade fosse
tudo o que viveu marcou a formação do libertada da opressão. Esta intensa paixão
seu eu e é combustível para o seu moveu os jovens que atuaram com ele.
progresso. Para os ouvintes, a experiência
compartilhada pode ajudá-los a ter a Após a morte de Gandhi, o seu exemplo
coragem necessária para enfrentar os serviu como estrela-guia para os que

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lutam pela causa da dignidade humana, acabar com a guerra


entre eles Martin Luther King Jr. e Nelson
Mandela (1918–2013). Quando me encontrei O terceiro tema prioritário que quero
com o presidente Mandela em julho de debater é a expansão da amizade além
1995, lemos juntos um artigo sobre a das diferenças, para construir um mundo
experiência de Gandhi encarcerado escrito de coexistência.
por Mandela em comemoração do 125º
aniversário do nascimento de Gandhi a Nos últimos anos, houve importantes
uma revista acadêmica, para a qual mudanças na natureza dos conflitos que
também escrevi um ensaio. Ele diz: suscitaram novas preocupações. E vem
aumentando a incidência da
Gandhi suportou o cárcere no início do internacionalização dos conflitos internos
nosso século. Ainda que o tempo nos em outros países e de grupos que se
separe, permanece entre nós um vínculo, o tornam participantes ativos. Tais
de nossas experiências de prisão acontecimentos, por exemplo, tornam
compartilhadas, nosso desafio lançado às mais complicada qualquer perspectiva de
leis injustas e a violência que ameaça trégua ou paz na guerra civil síria.
nossas aspirações à paz e ao
entendimento.22 Além disso, o objetivo da ação militar
muda gradualmente. O propósito da
O fato de que Gandhi trilhava esse guerra, definido pelo pensador militar
caminho de adversidades foi, com certeza, alemão Carl von Clausewitz (1780–1831) é
importante fonte de força para que obrigar o adversário a aceitar a vontade do
Mandela não se deixasse abalar pela outro. Agora, no entanto, a ênfase está na
prisão que durou mais de 27 anos. eliminação de qualquer grupo considerado
inimigo. Nas zonas de conflito, é comum o
Há cinquenta anos comecei a escrever o ataque militar por controle remoto ferir ou
romance Revolução Humana, em vários matar civis, inclusive crianças. É preciso
volumes, da história da Soka Gakkai. refletir sobre o resultado final da ação
Descrevo a ideia de que a grandiosa militar que não hesita, nem pensa na
revolução humana de uma única pessoa humanidade do inimigo, nem considera o
um dia vai impulsionar a mudança total do seu direito de existir.
destino de um país e, além disto, será
capaz de transformar o destino de toda a Os horrores que resultam de dramáticos
humanidade. É uma reação em cadeia de avanços na tecnologia de armas
empoderamento em que ilimitadas combinadas com uma ideologia
possibilidades se expandem no espaço eliminadora não apenas contrariam a carta
para cruzar as fronteiras nacionais, a tempo do direito internacional humanitário, são
de conectar diferentes gerações. fundamentalmente inadmissíveis à luz do
caminho da humanidade.
A expansão da amizade para

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No ano passado, a ONU iniciou um debate Shakyamuni exortou o discípulo Manjushri


sobre a ameaça representada pelos Robôs a visitar um doente, o praticante leigo
Autônomos Letais (LAWS), ou “robôs Vimalakirti. Outro de seus discípulos
assassinos”. Precisamos ficar atentos: importantes, Shariputra, decidiu
estamos no limiar da automação de guerra acompanhá-lo. A visita resultou numa
em larga escala. profunda discussão entre Manjushri e
Vimalakirti sobre os ensinamentos do
Ao mesmo tempo, devemos reconhecer Buda.
que as ideologias eliminacionistas não
estão limitadas às áreas de conflito, mas No auge da conversa, uma deusa que
possuem raízes em vários lugares ao redor estava entre os ouvintes deu a todos flores
do mundo. Em dezembro de 2013, a ONU de presente, como expressão de alegria.
lançou a campanha Direitos Humanos à Shariputra disse que tais pétalas não eram
Frente, que visa a atender à advertência apropriadas para um praticante do
implícita nas violações individuais de caminho e tentou tirá-las, mas elas ficaram
direitos humanos e responder por elas presas a ele. Vendo isto, a deusa disse: “As
antes que se transformem em massa ou flores não discriminam, mesmo que você
crimes de guerra. diferencie pessoas”, apontando para as
plantas que ele segurava.
O discurso de ódio, por exemplo, está se
tornando grave problema social em muitos Shariputra reconheceu a verdade do que
países. Mesmo quando não leva à violência ela disse, mas continuou a questioná-la. A
direta de crimes de ódio, ele surge do deusa usou seus poderes mágicos para
mesmo desejo maligno de prejudicar os transformá-lo na forma dela e ela na dele.
outros. É uma violação de direitos que não E prosseguiu apontando para Shariputra,
pode ser ignorada. Não há quem ache perplexo na profundeza de sua
aceitável a violência ou a opressão por consciência discriminadora, depois ambos
simples preconceito contra ele ou sua retornaram às formas originais. Graças à
família. Mas quando contra outras etnias ou sequência impressionante de eventos,
populações, não é incomum pessoas Shariputra reconheceu que o nosso
considerarem justificável por algum coração não pode ser afetado por
defeito ou falha atribuído às vítimas. aparências externas e que todas as coisas
não tem forma fixa duradoura.
Para evitar essas situações agravantes, o
primeiro passo é encontrar um meio de O que acho importante neste episódio é
colocar um frente ao outro, livre desse como a experiência de troca de formas
desvio psicológico coletivo. Pode ajudar deu a Shariputra a consciência do seu
um episódio do Sutra Vimalakirti, que olhar discriminador contra a divindade
descreve as interações entre um discípulo feminina. E reconheceu profundamente o
de Shakyamuni, Shariputra, e uma seu erro.
divindade feminina.

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Com o avanço da globalização, nos países


de fronteiras abertas, pessoas que os Ao olharmos para as condições atuais do
visitam ou vão viver em outro lugar, mundo através da lente do contraste
reconhecem o tipo de olhar discriminador retratado neste sutra, podemos extrair a
que, inconscientemente, lançam sobre seguinte lição: a paz e a justiça deveriam
estrangeiros que viviam em seu país de ser vividas como um bem comum, mas se
origem. É essencial que a pessoa se tornam divisíveis pela excessiva
esforçe para compreender o outro e ver as preocupação com o eu e justificam a
coisas com os olhos dele. violência e a opressão contra quem
estamos em conflito.
Esta falta de consciência, particularmente
em tempo de tensões, pode desvirtuar a É por isto que a expansão da solidariedade
nossa própria ideia sobre paz e até humana diante das ameaças enfrentadas
ameaçar a vida e a dignidade das pessoas. por todos nós – como o da incidência de
Por isso é tão importante a inversão de desastres climáticos ou danos
perspectivas vividas por Shariputra. catastróficos causados pelo uso de armas
Permite que vejamos a ameaça implícita nucleares – é a chave para o alívio do
em nosso olhar. E nos encoraja a pensar na sofrimento humano.
reação infeliz dos outros e ao mesmo
tempo subverte a nossa certeza. A primeira coisa que um de nós pode fazer,
a qualquer momento, para contribuir na
Shariputra hesitou quando Shakyamuni lhe construção de solidariedade é chamar os
propôs visitar Vimalakirti. Ao chegar com amigos para uma ampla frente fraternal.
Manjushri, sua primeira reação foi a de que Na troca de ponto de vista entre o Islã e o
não havia lugar para ele se sentar. Por sua budismo com o falecido presidente
vez, quando Manjushri perguntou a indonésio Abdurrahman Wahid
Vimalakirti a causa de sua doença, ele (1940–2009), ele ressaltou que o diálogo
respondeu: oferece um rosto igualmente humano aos
que são de diferentes etnias, culturas ou
— Como todos os seres adoecem, eu contextos históricos. Por meio de
estou doente. encontros e do convívio, entramos em
sintonia com as narrativas de vida uns dos
Ele passou a dizer aos visitantes que, caso outros. Mesmo que reconheçamos e
estivessem realmente preocupados com o apreciemos a grande importância de tais
seu bem-estar, seria melhor manifestar o atributos como religião ou etnia, não
seu cuidado por outras pessoas enfermas. devemos permitir que se tornem o eixo do
Assim, enquanto Shariputra se preocupava nosso encontro. O sentimento
obsessivamente consigo, Vimalakirti compartilhado e a confiança promovida
preocupava-se com a realidade do por estes encontros dão origem a
sofrimento vivido por todos, melodias únicas que só podem ser
independentemente da circunstância e da compostas por duas vidas. Creio que são o
distinção entre o outro e o eu. verdadeiro valor e o significado da

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amizade. Ou, como diz o historiador Arnold econômicas, trabalhamos para manter
Toynbee J. (1889-1975), “Tais vislumbres do abertas as vias de diálogo e de
mundo real são esboços de valor comunicação, esforço que já atravessa
inestimável”.23 gerações.

A amizade evolui livremente quando No ano passado, a Associação de


deixamos de nos preocupar tanto com os Concertos Min-On, que fundei em 1963,
nossos próprios atributos e enxergamos o criou o Instituto de Pesquisa de Música
outro à luz brilhante de sua humanidade. A Min-On. Com a experiência de cinco
partir do meu diálogo com o Dr. Toynbee, décadas na promoção de intercâmbios
há 43 anos, tive o privilégio de prolongadas musical e cultural com companhias de
conversas com importantes artistas e instituições em 105 países e
personalidades de muitas origens culturais, territórios, o Min-On vai estudar o papel e o
étnicas, religiosas e diferentes contextos potencial da música e das artes – o poder
nacionais. O fio que nos ligava sempre foi a da cultura – na promoção da paz.
preocupação comum com o futuro
humano e, com as nossas conversas, Com diálogos inter-religiosos ou entre
desenvolvemos ricas e recompensadoras civilizações diferentes promovidos por
amizades. organizações nacionais da SGI, repartimos
noções de como interromper os arraigados
Os membros da SGI, movidos pela ciclos de ódio e violência. Guiado pela
amizade, entregam, vida a vida, e determinação de aliviar o sofrimento
empenham-se em realizar a transição de humano, como ponto de partida, nos
uma cultura de guerra dominada por engajamos em discussões sobre
ideologias de exclusão para uma cultura preocupações comuns, a fim de levar
de paz em que as diferenças são adiante a sabedoria de cada tradição
celebradas como fonte da diversidade cultural e religiosa e esclarecer a ética e as
humana e há entre todos uma vontade de normas de comportamento capazes de
defender a dignidade do outro. romper impasses.

Ao promovermos intercâmbios culturais e São pertinentes, a propósito, as palavras


educacionais, criamos oportunidades para do ex-presidente tcheco Vaclav Havel
encontros pessoais, para fortalecer a (1936–2011), proferidas em 1996:
confiança e aprofundar as amizades. Nossa
esperança é de que estes vínculos A única tarefa significativa para a Europa
impeçam qualquer tendência a ideologias do próximo século é ser cada vez melhor,
xenófobas que surjam, especialmente em isto é, ressuscitar e imbuir sua vida com
tempos de tensões entre os Estados. suas melhores tradições espirituais e,
Procuramos construir sociedades sólidas e assim, ajudar a moldar criativamente um
resistentes às forças negativas do desvio novo padrão de convivência global.24
psicológico coletivo. Mesmo com o
esfriamento de relações políticas e

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Se no lugar de “Europa” lermos “a possibilidades de solidariedade humana.


civilização ou religião de cada um”, o apelo
de Havel será um modelo para o diálogo Creio que esta solidariedade é uma das
que buscamos; repartirmos a energia vital novas metas de desenvolvimento
do melhor em nossas respectivas internacional a serem adotadas pela
tradições espirituais; aprimorar a visão da Organização das Nações Unidas até 2030 –
plenitude de nossa humanidade; aprender a determinação de proteger a vida e a
a iniciar a ação comum a todos, dando o dignidade de todas as pessoas na Terra de
melhor de nós. Este é o verdadeiro todas as formas de ameaça e miséria.
significado do diálogo inter-religioso e Estes objetivos só serão atingidos com
entre civilizações. essa solidariedade.

Estas atividades nos permitem ajudar as A evolução criadora da ONU


pessoas a recusar a cumplicidade da
violência e da opressão, para aumentar o Faço, agora, propostas específicas para
magnetismo do ethos de coexistência e enfrentar questões que necessitam
construir muralhas contra a guerra. urgentemente de abordagem criativa que
Trabalhamos para fortalecer a vá além do escopo do pensamento
solidariedade humana com a convencional, indispensáveis para eliminar
determinação comum de impedir que a a miséria da face da Terra.
miséria indesejável por nós atinja a vida de
qualquer pessoa. Entre o que guardo da história da
Organização das Nações Unidas,
No Sutra Vimalakirti, há uma cena que lembro-me bem das palavras do segundo
descreve a aparência de um dossel de secretário-geral Dag Hammarskjöld
joias que abrange o mundo inteiro. (1905–1961) em seu relatório anual de 1960:
Quinhentos jovens se reuniram em torno
de Shakyamuni, cada um com o próprio A Organização das Nações Unidas é uma
porta-joias. Este magnífico dossel surgiu criação orgânica da situação política
quando os guarda-sóis individuais dos voltada para a nossa geração. Ao mesmo
jovens se uniram em um instante, para tempo, no entanto, a comunidade
simbolizar o desejo de criar uma sociedade internacional, por assim dizer, introduziu a
de coexistência pacífica. Seus respectivos autoconsciência política na organização e,
guarda-sóis já não serviam apenas para portanto, pode usá-la de forma
proteger cada um deles do vento e da significativa, a fim de influenciar essas
chuva ou dos raios escaldantes do sol. Em mesmas circunstâncias pelas quais a
vez disto, estes jovens, cada um com seu organização é uma criação.25
próprio caminho na vida, levantaram-se
acima de suas diferenças numa única Apesar das limitações estruturais e
determinação. Foi assim que este grande restrições que enfrenta como organização
dossel protetor veio para a existência. É composta por Estados soberanos, a ONU,
um belo símbolo das ilimitadas ao longo dos anos, tem alimentado a

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autoconsciência da comunidade dos oprimidos. Creio que só a ONU pode


internacional que lhe fornece ímpeto para desempenhar papel tão indispensável.
cumprir sua missão original.
Ao adotarmos novos objetivos de
Por meio de seus esforços para realizar o desenvolvimento para enfrentar os
espírito da Carta, a ONU tem influenciado desafios em missão mais ambiciosa do que
as políticas dos governos pelo conjunto de a dos ODM, devemos trabalhar solidários,
princípios que nação alguma deveria com espírito de luta para a evolução
minar. Um exemplo é a Declaração criadora da ONU “sem a armadura de
Universal dos Direitos Humanos (DUDH). convicções ou fórmulas”,27 nas palavras
de Hammarskjöld.
Jacques Maritain (1882–1973), filósofo
francês profundamente envolvido no Num prenúncio desses esforços, a
processo de elaboração da DUDH, inaugural Assembleia Ambiental da ONU
salientou que pessoas opostas em suas realizou-se em Nairóbi, no Quênia, em
concepções teóricas podem chegar a um junho de 2014, com a participação de todos
acordo prático sobre direitos humanos os Estados-membros, início da reforma
fundamentais.26 Os redatores da estrutural do Programa Ambiental da ONU
Declaração não poderiam chegar a essa (Unep). Participaram representantes de
anuência, com seus diferentes organizações da sociedade civil envolvidos
pressupostos ideológicos e culturais, não com questões ambientais e da
fosse o poder da plataforma comum comunidade empresarial.
fornecida pela ONU.
Enfatizo dois pré-requisitos para a
A ONU alerta o público para questões resolução dos problemas globais: a
urgentes ao formular conceitos como participação de todos os Estados e a
desenvolvimento sustentável e segurança colaboração entre as Nações Unidas e a
humana e nomear os Anos Internacionais e sociedade civil. É necessário desenvolver
as Décadas das Nações Unidas. Além uma ação compartilhada por estes dois
disso, organiza medidas internacionais para pilares para enfrentar não só os desafios
combater a violência contra as mulheres e ambientais, mas toda a sorte de ameaças à
o trabalho infantil, sérios problemas que vida e à dignidade das pessoas. Devem
não receberiam a devida atenção em estar no centro da evolução criadora das
contextos domésticos. Nações Unidas, para marcar seu 70º
aniversário, neste ano.
O sentido de proteção garantindo a vida e
a dignidade das pessoas é Diante da missão da ONU, concentro-me
constantemente ampliado, para melhor em três propostas concretas, certo da
aplicação do direito internacional, não só urgente necessidade de ação comum para
pelos Estados, mas também pelos eliminar a palavra miséria do léxico
indivíduos graças à construção de humano:
“sobreposição de consenso”, em benefício

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1. A proteção dos direitos humanos dos garantidos por ele é a fonte do sofrimento
desabrigados e migrantes internacionais; de pessoas desalojadas.

2. A proibição e eliminação das armas O Escritório do Alto Comissariado das


nucleares; e Nações Unidas para os Refugiados (Acnur)
foi originalmente criado em 1950 como
3. A conquista de uma sociedade global agência de trabalho temporário com a
sustentável. missão de proteger os refugiados na
Europa, no rescaldo da Segunda Guerra
Proteger os direitos humanos Mundial. O fluxo de expatriados pela
revolta húngara, as crises de refugiados na
dos desabrigados Ásia, na África e em outras partes, exigiram
a prorrogação do mandato do Acnur. Em
A primeira proposta de ação conjunta é a 2003, a Assembleia Geral removeu “a
proteção dos direitos humanos dos limitação temporária da continuidade do
refugiados, desabrigados e migrantes Escritório (...) até que o problema dos
internacionais. Proponho a adoção de refugiados esteja solucionado”.29
proteções específicas dos direitos e da
dignidade de todas estas pessoas pela É relevante até hoje o papel do Acnur em
Assembleia Geral neste outono. auxílio aos refugiados, e a SGI se esforça
para apoiar estas atividades de várias
Já mencionei que meu mestre Josei Toda maneiras. Mas a questão dos refugiados
tinha em mente o grande número de desafia obstinadamente uma solução,
refugiados e seu sofrimento após a revolta neste mundo cada vez mais caótico: 51,2
húngara de 1956 quando expressou o milhões de pessoas estão atualmente
desejo de livrar o mundo da miséria. refugiadas, desalojadas, deslocadas
internamente ou são requerentes de asilo,
Foi a filósofa política Hannah Arendt metade delas é menor de 18 anos.30
(1906–1975) quem chamou o século 20 de
século dos refugiados. Ela escreveu: A situação prolongada de refugiados é
particularmente preocupante. As pessoas
Algo muito mais fundamental do que a foram obrigadas a se deslocar de seu país
liberdade e a justiça, que são direitos dos de origem por cinco anos ou mais. São
cidadãos, está em jogo quando pertencer mais da metade dos refugiados
à comunidade em que se nasce não é mais amparados pelo Acnur, com um período
uma questão natural e não pertencer não é médio de deslocamento de cerca de vinte
mais uma questão de escolha.28 anos.31 Significa que não só estes
indivíduos, mas também seus filhos e
O fundamento da dignidade da pessoa netos poderão ser forçados a viver em
humana é a existência de um mundo no circunstâncias políticas, econômicas e
qual podemos vivenciar e expressar a sociais extremamente instáveis.
nossa identidade; ser excluído deste
mundo e de todos os direitos humanos

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Igualmente alarmante é a situação do É necessário considerar o alívio do


apátrida, que se estima afetar mais de 10 sofrimento das pessoas como objetivo
milhões de pessoas em todo o mundo.32 fundamental da evolução criadora das
Significa não ter direito a serviços como Nações Unidas, se a inclusão de “todas as
saúde e educação, ou, em alguns casos, pessoas em todos os lugares” – busca dos
ser forçado a esconder a sua condição e novos ODS – for conquistada. Isto está
viver nas sombras, para proteger sua totalmente de acordo com o ideal dos
família. Mais e mais crianças cujos pais direitos humanos universais que a DUDH
fugiram da violência e da opressão dos aspira tão fortemente.
direitos humanos nascem sem pátria, sem
acesso à documentação legal. Em Por isso mesmo, a situação dos direitos
novembro de 2014, o Acnur lançou uma humanos de 232 milhões de migrantes
campanha global para erradicar essa internacionais do mundo exige atenção
condição dentro dos próximos dez anos. urgente.

Em seu trabalho de 1903, Geografia da Em países de prolongada recessão


Vida Humana [Jinsei Chirigaku], econômica e crescida agitação social, há
Tsunesaburo Makiguchi argumentou que a uma forte tendência em enxergar os
identidade das pessoas pode ser trabalhadores migrantes de um ponto de
desenvolvida em três níveis: como cidadão vista negativo e submetê-los, e a suas
de uma comunidade local na qual sua vida famílias, à discriminação e hostilidade. Em
fincou raízes; cidadão de uma comunidade consequência, oportunidades de emprego
nacional onde só pode viver dentro de regular e direitos à educação e ao
suas fronteiras; e cidadão de uma tratamento médico podem ser
comunidade global com a consciência de severamente limitados, e muitas vezes a
suas conexões com o mundo. Ele ressaltou sociedade fecha os olhos para as injustiças
que o potencial singular de um indivíduo que enfrentam no dia a dia.
só pode ser plenamente manifestado
quando ele é capaz de desenvolver essa Como os trabalhadores migrantes e suas
cidadania total. famílias estão cada vez mais
marginalizados e isolados, a ONU iniciou
Neste sentido, situações prolongadas de esforços para conter a incompreensão e o
refugiados e apátridas não só negam aos preconceito. No Diálogo de Alto Nível
indivíduos a oportunidade de participar na sobre Migração Internacional e
vida social da nação: são impedidos de Desenvolvimento, realizado em outubro de
construir vínculos com os vizinhos na sua 2013, os governos concordaram que a
comunidade local e de aderir a ações com importante relação entre a migração e o
pessoas de outros países para a criação de desenvolvimento deve ser incluída nos
um mundo em que querem viver. Em novos ODS.
outras palavras, é negada a chance de
serem eles mesmos. Gostaria de sugerir que esta questão não
se limite ao contexto de desenvolvimento.

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Os objetivos de proteger a dignidade e os A reunião regional realizada em julho de


direitos humanos fundamentais dos 2014, em Tóquio, enfatizou a necessária
trabalhadores migrantes e suas famílias resposta às catástrofes. A importância de
devem ser explicitamente incluídos nos assegurar que as vítimas de desastres
ODS, com ênfase em aliviar o sofrimento tenham papel central no processo
que enfrentam. humanitário foi consistentemente
salientada.
Políticas destinadas a proteger os
migrantes internacionais precisam ser Esta também é a visão da SGI no curso de
fortalecidas. Incluir, mas não limitar, as auxílio à recuperação das comunidades
estruturas existentes: a Convenção afetadas por desastres naturais. As
Internacional sobre a Proteção dos Direitos pessoas que passaram por profundo
de Todos os Trabalhadores Migrantes e sofrimento sentem melhor as dores dos
dos Membros das suas Famílias (adotada aflitos. As redes solidárias podem oferecer
em dezembro de 1990, mas apenas apoio inestimável às pessoas necessitadas
ratificada por número limitado de países) e e criar nelas o desejo de avançar.
a Agenda Nacional de Trabalho Decente
desenvolvida pela Organização A Terceira Conferência Mundial das
Internacional do Trabalho. Nações Unidas para a Redução do Risco
de Desastres está programada para
Proponho ainda o desenvolvimento de Sendai, nordeste do Japão, março de 2015,
mecanismos pelos quais os países vizinhos o quarto aniversário do terremoto e do
possam trabalhar em conjunto para o tsunami (11 de março de 2011). Entre os
empoderamento dos deslocados, eventos paralelos, a SGI vai copatrocinar
particularmente nas regiões que aceitaram um simpósio sobre “Aumentar a Resiliência
grande número de refugiados. no Nordeste da Ásia com a Cooperação na
Redução do Risco de Desastres”, onde
Além dos conflitos armados, nos últimos representantes da sociedade civil da
anos desastres naturais e mudanças China, Coreia do Sul e Japão vão explorar
climáticas extremas têm forçado muitas as possibilidades de colaboração mais
pessoas a fugir de suas casas e buscar aprofundada na área de prevenção de
refúgio. Neste contexto, quero chamar a desastres e recuperação. Jovens
atenção para as reuniões regionais que associados da Soka Gakkai local
antecedem a Conferência Mundial de organizarão simpósios sobre a redução de
Ajuda Humanitária, a ser realizada em risco de desastres, o papel dos jovens e a
Istambul, Turquia, em 2016. O seu objetivo participação das organizações religiosas na
é a melhor união da comunidade global redução do risco de desastres.
para o tratamento das crises humanitárias
causadas por conflitos, pobreza e A esperança destas iniciativas é levantar o
problemas climáticos. ânimo das pessoas afetadas pelos
desastres, para a indispensável ajuda ao
aumento da capacidade de resistência da

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sociedade. Tão importante quanto foram emitidos passaportes para pessoas


esforços para garantir a dignidade dos deslocadas que vivem na Nigéria, e em
refugiados cujo deslocamento cada vez outros lugares, para seus países de origem.
mais se prolonga. A natureza fundamental Muitos deles criaram um novo estatuto de
do sofrimento de pessoas em crises trabalhadores migrantes, abrindo caminho
humanitárias é a mesma, seja qual for a para sua permanência formal no país de
causa: elas são expulsas de suas casas, acolhimento.
sua vida destruída. O que importa é a
forma como estas pessoas podem O autor nigeriano Wole Soyinka, a quem
encontrar fontes renováveis de esperança. tenho a honra de considerar amigo, afirma
que imaginar-se no lugar do outro é o
O fato de que mais de 80% dos refugiados fundamento da justiça.34 Uma chave para
do mundo estão sendo acolhidos por a solução da questão dos refugiados está
países em desenvolvimento aumenta a no espírito da África, um continente com
relevância das medidas tomadas na África longa história de movimentos entre
para resolver a questão do deslocamento. pessoas e uma tradição de tolerância com
A União Africana (UA) e a Comunidade os povos de diferentes culturas.
Econômica dos Estados da África
Ocidental (Cedeao) já trabalham na Recordo a minha primeira visita à sede das
construção de uma estrutura para a Nações Unidas em Nova York, em outubro
cooperação regional. de 1960. Impressionado com a energia
renovada dos representantes dos países
Uma interessante pesquisa sugere que africanos recém-independentes, tive a
nessas situações, o progresso na África se convicção de que o século 21 seria o
faz pela “integração efetiva”, efetuada século da África.
quando as pessoas (1) não estão em perigo
de deportação; (2) não são confinadas em A luta pelos direitos humanos do
campos; (3) são capazes de manter a ex-presidente sul-africano Nelson
subsistência e sustentar a si e a suas Mandela e o movimento de plantação de
famílias; (4) têm acesso à educação, árvores liderado pela ativista ambiental
formação profissional e cuidados de queniana Wangari Maathai (1940–2011) são
saúde; e (5) estão socialmente integradas exemplos de iniciativas inovadoras que
na comunidade anfitriã em cerimônias anunciaram a chegada à África do tão
como casamentos e funerais. A pesquisa aguardado século 21 de paz e humanismo.
indica que este tipo de “integração efetiva”
já se observa em várias regiões Apesar dos inúmeros desafios, as nações
agrícolas.33 africanas encontram na cooperação
regional novas formas de lidar com o
Após o apelo feito pelo Conselho de problema do deslocamento forçado.
Ministros da Cedeao, em maio de 2008, Enquanto a ONU se prepara para adotar
pela igualdade de tratamento entre os novo conjunto de metas de
refugiados e outros cidadãos da Cedeao, desenvolvimento, a sabedoria e a

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experiência da África podem, nas palavras deram mais importância à segurança do


do ativista antiapartheid sul-africano Steve que ao desarmamento. Pouco mais de um
Biko (1946–1977), contribuir para “dar ao mês depois da adoção da Carta, no final de
mundo uma face mais humana”.35 junho de 1945, foram lançadas bombas
atômicas sobre as cidades de Hiroshima e
É necessária uma maior cooperação Nagasaki. Como a notícia deste chocante
regional – de acordo com o exemplo acontecimento espalhou-se pelo mundo,
africano – na região da Ásia-Pacífico, que houve apelos cada vez mais urgentes para
recebe um grande número de pessoas a ONU responder prontamente ao seu
deslocadas, e no Oriente Médio, onde primeiro grande desafio.
aumentou muito o número de refugiados
da guerra civil síria. A resolução da Assembleia Geral chamada
“a eliminação do armamento nacional de
Desejo que países vizinhos anfitriões armas atômicas e de todas as outras armas
colaborem para promover o adaptáveis à destruição em massa”,36
empoderamento dos refugiados. aprovou por unanimidade a completa
Especificamente, com programas regionais eliminação de tais armas. Sem exceção.
conjuntos, cujos projetos de assistência
educacional e de emprego incluam tanto a Este apelo foi quase esquecido pelas
população de refugiados quanto jovens e constantes tensões da Guerra Fria. Mas, o
mulheres do país anfitrião. As populações Apelo de Estocolmo de 1950 reuniu
de refugiados e dos países acolhedores milhões de assinaturas de todo o mundo e,
desenvolveriam vínculos mais profundos, diz-se, teve impacto sobre a decisão de
criando uma estrutura sustentável de não usar armas nucleares na Guerra da
apoio aos refugiados e de reforço à Coreia. Pouco depois, foram realizadas as
capacidade de resistência da região como Conferências Pugwash sobre Ciência e
um todo. Negócios Mundiais em 1957 por cientistas
de Leste a Oeste para enfrentar a ameaça
Abolição das armas nucleares atômica. Estes e outros esforços da
sociedade civil foram o ímpeto para um
O segundo campo de ação conjunta a ser quadro jurídico internacional sobre armas
considerado é a conquista de um mundo nucleares.
livre de armas nucleares.
A crise dos mísseis cubanos de 1962, que
A resolução inicial da primeira sessão da levou o mundo à beira de uma guerra
recém-criada Assembleia Geral da ONU, nuclear, contribuiu para o Tratado de Não
em janeiro de 1946, abordou o problema Proliferação de Armas Nucleares (TNP),
das armas nucleares. Durante o processo 1970. Os signatários do TNP se
de elaboração da Carta das Nações comprometeram com a busca de boa-fé
Unidas, a existência de armas de pelo desarmamento, o primeiro projeto
destruição em massa ainda estava para ser incompleto mencionado pela ONU no
de conhecimento público e as discussões início do seu caminho. Hoje, 45 anos após o

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tratado entrar em vigor, a abolição destas Entre os efeitos indiretos da explosão


armas destruidoras ainda não se concretiza estão o bloqueio do desenvolvimento
e estagnou-se o progresso do socioeconômico, a destruição ecológica, e
desarmamento. as pessoas pobres e vulneráveis serão as
maiores vítimas.
Recentemente, o movimento por um
mundo sem armas nucleares ganhou nova Na Conferência de Viena, Estados Unidos e
forma. Em outubro passado, quando 155 Reino Unido, ambos participando pela
países e territórios assinaram uma primeira vez, reconheceram publicamente
Declaração Conjunta sobre as a importância do profundo debate sobre as
Consequências Humanas das Armas consequências das explosões atômicas. As
Nucleares, mais de 80% dos consequências do uso destas armas
Estados-membros da Organização das aniquiladoras são de tal forma terríveis,
Nações Unidas mantiveram o seu apoio que devem ser enfrentadas por todos,
para que estas armas malignas nunca sobretudo pelos Estados detentores
sejam usadas em circunstância alguma. dessas armas.

As consequências humanas do uso de Entretanto, quando se trata de como


armas nucleares já foram tema de três proceder a partir da conferência, as
grandes conferências internacionais: a opiniões se dividem. A maioria dos
Conferência sobre o Impacto Humano das participantes é partidária de que o único
Armas Nucleares, março de 2013, Oslo, caminho seguro para evitar as
Noruega, e as conferências internacionais consequências devastadoras do uso de
em Nayarit, México, e, no mês passado, em armas nucleares é a sua abolição. Por
Viena, Áustria. outro lado, entre os países que possuem
as armas e seus aliados está
Entre as conclusões a que chegaram essas profundamente arraigada a ideia de que a
conferências, creio que três são de maior dissuasão deve ser mantida e a melhor
importância: maneira de conquistar um mundo sem
armas nucleares é por meio de um
É improvável que qualquer órgão estatal processo gradual.
ou internacional resolva de forma
adequada a situação de emergência Por maior que seja o abismo entre estas
humanitária imediata causada por uma duas posições, atualmente elas se
detonação de armas nucleares e dê a interligam pela preocupação comum sobre
assistência necessária às pessoas afetadas. o impacto devastador dessas armas
malvadas. É uma preocupação tanto
As fronteiras nacionais não limitam o daqueles que assinaram a Declaração
impacto da explosão de armas nucleares. Conjunta como dos que não a assinaram.
Os efeitos devastadores ameaçam a Creio que esta preocupação deve ser o
própria sobrevivência da humanidade. nosso ponto de partida na busca do que
todos devemos fazer por um mundo livre

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de armas atômicas. na sua origem.38

Este entendimento é indispensável para O budismo ensina que a mais grave


que os Estados com armas destruidoras ameaça à dignidade humana é o mal
encontrem o caminho necessário para decorrente da ilusão fundamental inerente
evitar um dano irreparável, não só para si e à vida conhecida como
seus aliados, mas para todos os povos. paranirmitavasavarti-deva ou rei demônio
Gostaria de examinar, a partir de uma do sexto céu. Trata-se de uma vontade de
variedade de perspectivas, a natureza reduzir a existência de cada indivíduo à
desumana das armas nucleares, além de insignificância e roubar da vida o seu
sua incalculável capacidade destruidora. significado mais essencial. O Sr. Toda
São estes aspectos que as distinguem e as considera que o que se esconde nas
tornam fundamentalmente desiguais de profundezas das armas nucleares é esta
outros armamentos. forma mais extrema do mal.

Em primeiro lugar, as preocupações da Por isto mesmo, ele insistiu que devemos ir
gravidade do seu impacto – exatamente o além da proibição dessas armas e rejeitar a
que são capazes de ocultar lógica do temor à retaliação nuclear, que
imediatamente. se baseia na disposição de sacrificar a vida
de um grande número de pessoas. Esta é a
Fiquei impressionado com as seguintes solução fundamental para a ameaça das
palavras contidas no relatório e resumo armas de destruição em massa e deve ser
das conclusões da Conferência de Viena: buscada em nome do direito de viver de
todos os povos do mundo.
Como no caso da tortura, que degrada a
humanidade e é inaceitável por todos, o O Dr. Joseph Rotblat (1908–2005), de
sofrimento causado pelo uso de armas notável desempenho nas Conferências
nucleares não é apenas uma questão legal: Pugwash – estabelecidas em 1957, ano em
necessita de avaliação ética.37 que o presidente Toda fez a sua
declaração –, certa vez me fez esta
Este apelo repercute na declaração de confidência:
meu mestre, Josei Toda, pedindo a
abolição das armas nucleares, proferida — Há duas maneiras de abordar as armas
em setembro de 1957, num período em nucleares. Uma delas é a legal e a outra, a
que cresciam as tensões da Guerra Fria e abordagem ética. O Sr. Toda, como pessoa
acelerava-se a corrida armamentista religiosa, adotou a última.39
nuclear:
Há uma proibição absoluta contra a tortura,
Mesmo que neste momento cresça no considerada injustificável em quaisquer
mundo inteiro o movimento para abolir os circunstâncias. Da mesma forma, é
testes nucleares, o meu desejo é atacar o chegado o momento de desafiar as armas
problema pela raiz: cortar as garras ocultas nucleares do ponto de vista ético.

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 22.


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Como se discutiu na Conferência de Viena,


Após a Segunda Guerra Mundial, seguindo em dezembro de 2014, sempre há o perigo
os passos dos Estados Unidos, a União de uma detonação nuclear acidental por
Soviética desenvolveu armas atômicas erro humano ou falha técnica. Ou de um
com sucesso; o Reino Unido, a França e a ataque cibernético. Além de ser um
China foram pelo mesmo caminho. A problema não previsto pela prática de
proliferação dessas armas continuou dissuadir, é um perigo que aumenta em
mesmo depois de entrar em vigor o TNP. O proporção direta ao número de países que
impasse atômico mundial começou a ser adotam ou mantêm essa política do temor.
considerado como realidade inabalável no
seio da comunidade internacional. Por trás Durante a Crise dos Mísseis de Cuba,
disso, a política de dissuasão nuclear, que, líderes dos Estados Unidos e da União
reduzida a seus termos mais simples, Soviética tinham treze dias para uma
aceita a possibilidade de aniquilar uma solução pacífica. Hoje, se um míssil com
população inimiga, mesmo tendo de ogiva nuclear é acidentalmente lançado,
suportar grandes danos em troca. levaria menos de treze minutos para atingir
o alvo. Uma evacuação seria impossível, e
Como o Sr. Toda expôs, a questão vai além o país e seus habitantes seriam dizimados.
de qualquer distinção entre amigo e
inimigo, ao negar instantaneamente todas Não importam os esforços das pessoas
as conquistas da sociedade e da para viver felizes, nem importa o tempo
civilização, destruindo as evidências de que leve o desenvolvimento de sua cultura
nossa vida, e o seu significado. e sua história. Tudo perderia sentido. É
neste absurdo inexprimível que a natureza
Masaaki Tanabe, líder de um projeto que desumana das armas atômicas se sustenta
recria imagens de Hiroshima antes do para abusar do seu enorme poder
bombardeio atômico, afirma: “Há coisas destruidor.
que simplesmente não podem ser
recriadas, mesmo com a mais avançada O segundo aspecto da desumanidade
tecnologia de computação gráfica”.40 Suas dessas armas malignas é a distorção
palavras ilustram vividamente a natureza estrutural gerada pelo seu contínuo
insubstituível do que foi perdido. desenvolvimento e modernização técnica.

Um mundo que teme a retaliação nu­clear Na Conferência de Viena, o impacto dos


– protegido pela perspectiva de iminente testes nucleares foi incluído no programa
destruição – torna tudo frágil e pela primeira vez. O termo hibakusha hoje
contingente. O absurdo desta situação é aplicado para todas as vítimas de
gera um niilismo de efeito profundamente envenenamento por radiação causada por
corrosivo na civilização humana. Não pode armas nucleares e, naturalmente, inclui os
ser tolerado. afetados pelos mais de 2 mil testes
nucleares já realizados em todo o mundo.

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Estima-se que a República das Ilhas


Marshall sentiu o efeito equivalente a 1,6 A continuidade do desenvolvimento de
bomba do porte da que foi lançada sobre armas atômicas vai contra o espírito do
Hiroshima, todos os dias, durante os doze artigo 26 da Carta da ONU, que apela
anos em que os testes nucleares eram desviar para “armamentos o menos
realizados.41 Este fato comprova as possível de recursos humanos e
consequências reais provocadas pela econômicos do mundo”. Mas também
política de temor à retaliação, apesar de resulta na desumanidade de perpetuação
sua pretensão de impedir o uso de armas de uma ordem mundial distorcida em que
nucleares. Ou seja, a política de ameaçar pessoas, cuja qualidade de vida poderia
para evitar uma ameaça, na verdade ser facilmente melhorada, são forçadas a
estimula as armas atômicas, e o resultado, continuar a viver em condições perigosas e
que nenhuma nação ou povo deveriam degradantes.
jamais suportar – conforme Tony deBrum,
Chanceler das Ilhas Marshall –, é o número O terceiro aspecto da desumanidade das
enorme de experiências com essas armas nucleares é a contínua tensão militar
armas.42 dos países que mantêm uma postura
nuclear.
Desde a adoção do Tratado de Proibição
Completa dos Testes Nucleares (CTBT), Na Conferência de Revisão do TNP em
em 1996, o número de testes que 2010, por um item da ação imediata, os
envolviam explosões nucleares caiu quase Estados com armas nucleares
a nenhum. Mas o fato de que o CTBT não comprometeram-se com a “redução do
está em vigor, apesar de 183 signatários, papel das armas nuclea­res em doutrinas
fragiliza esta moratória. de segurança e do número de arsenais
existentes”.44 Eles informaram sobre o
Além disto, o CTBT não proíbe a progresso no ano passado, mas na
modernização das armas nucleares e, verdade a mudança foi inexpressiva.
enquanto a política de dissuasão persistir, Muitos líderes dos Estados com armas
há um incentivo estrutural para que um nuclea­res reconhecem que é
país siga a modernização do outro com extremamente difícil prever situações em
seus próprios esforços. Espera-se que os que estes armamentos seriam usados e é
gastos anuais relacionados a estas armas, da natureza da maioria das ameaças
que já chegaram a US$ 105 bilhões no contemporâneas não poder ser
mundo, aumentem ainda mais.43 Se esta combatidas com armas iguais. No entanto,
enorme soma fosse aplicada na melhor a adesão às políticas de temor à retaliação
qualidade da saúde e do bem-estar nos dificulta o cumprimento deste
Estados e apoiasse os países em compromisso com o desarmamento.
desenvolvimento, onde continua a luta
contra a pobreza e a privação, a vida e a Talvez seja difícil para os Estados com
dignidade de um grande número de armas nucleares libertarem-se da
pessoas seriam bem melhores. preocupação de que eles ou seus aliados

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podem ser ameaçados por um ataque entre países, a ameaça de uso como
nuclear. Apesar destas preocupações, a premissa da dissuasão nuclear continua a
prioridade deve ser a de remover gerar tensões militares que envolvem
gradualmente as causas inerentes de grande número de países.
tensões e trabalhar para criar condições
em que a resposta com a ameaça de Os Estados com armas nucleares e seus
armas atômicas não seja mais vista como aliados são obcecados pelo sigilo e a
única opção. segurança para proteger informações
confidenciais sobre os seus arsenais. Ao
Conforme estabelece o Parecer Consultivo mesmo tempo, as nações ameaçadas
do Tribunal Internacional de Justiça de pelas que possuem as armas cruéis tratam
1996, não apenas a utilização de armas de fabricar as suas próprias bombas
nucleares, mas também a ameaça de uso atômicas e ganhar a expansão militar. O
seria considerada ilegal. mínimo que esta espiral exige é uma séria
reflexão sobre a ação militar preventiva.
O juiz Ferrari Bravo, em Declaração anexa
ao Parecer Consultivo, comentou que “o Os partidários do temor à retaliação o
abismo que separa o artigo 2, parágrafo 4, defendem como a chave para a prevenção
do artigo 51 [da Carta das Nações Unidas] do uso dessas armas. Mas quando se faz a
alargou-se, como resultado do grande avaliação da natureza cruel das armas
obstáculo da dissuasão lançado nele”.45 atômicas e se expandem as suas
De tal sorte, a continuidade da política de implicações da vida na era nuclear e a
temor à retaliação transformou a enormidade da carga imposta ao mundo, o
compreensão e a prática do direito à resultado destas políticas torna-se
autodefesa, da maneira como foi dolorosamente claro.
originalmente concebido pelos autores da
Carta. Embora o artigo 2, parágrafo 4, O fato de que as armas nucleares não
estabeleça que a ameaça ou o uso da tenham sido usadas em tempo de guerra
força são, a princípio, ilegais, a existência desde os bombardeios de Hiroshima e
de armas nucleares fez necessária a Nagasaki deve ser atribuído mais ao peso
criação de planos contínuos para a legítima da responsabilidade no devastador
defesa individual ou coletiva, que estão impacto humano de seu uso do que a
definidos nos termos do artigo 51 como qualquer efeito de dissuadi-lo. Os países
medida temporária a ser tomada até que o que não estão sob a proteção de um
Conselho de Segurança esteja pronto para guarda-chuva nuclear nunca foram
agir. Assim, o que era para ser uma medida submetidos à ameaça de um ataque
excepcional, tornou-se prática regular, atômico. É o peso moral da promessa de
subvertendo a intenção da Carta. renunciar à opção nuclear – por exemplo,
o estabelecimento de Zonas Livres de
Mesmo após o fim da Guerra Fria, esta Armas Nucleares (NWFZ), a recusa dos
irregularidade permanece. Sem qualquer países a coletivamente buscar o
confronto armado ou mesmo hostilidade armamento atômico – que tem uma clara

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 25.


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linha definida que outros Estados sentem A primeira é o desenvolvimento de uma


não poder atravessar. nova estrutura institucional para o
desarmamento nuclear, com base no TNP.
Na Conferência de Viena no mês passado, Em dezembro de 2014, a Assembleia Geral
diante das consequências desumanas, os da ONU aprovou importante resolução
riscos das armas nucleares, a Áustria se pedindo aos Estados, durante a
comprometeu – na qualidade de país Conferência de Revisão do TNP 2015,
participante, e não como anfitriã e “opções para a elaboração de medidas
presidente da Conferência – a cooperar eficazes [para o desarmamento nuclear]
com todas as partes interessadas previstas e exigidas pelo artigo VI do
relevantes, Estados, organizações Tratado”.46
internacionais e sociedade civil, para que
tenhamos um mundo livre de armas de Desde a decisão de 1995 para estender
destruição em massa. indefinidamente o TNP, houve pouco
progresso no cumprimento de vários
Antes da conferência, a Campanha acordos enquanto os desafios se
Internacional para Abolir as Armas acumulam. Esta resolução manifesta o
Nucleares (Ican), o Conselho Mundial de profundo senso de urgência dos 169
Igrejas (CMI) e a SGI organizaram um painel países que a defenderam diante do
inter-religioso, um Fórum da Sociedade contínuo impasse em torno da questão
Civil, com os praticantes das religiões nuclear.
cristãs, muçulmanas, hindus e budistas a
fim de discutir um caminho para a abolição Por todas estas esperanças, solicito que os
das armas desumanas. O resultado da chefes de governo dos quantos Estados
discussão foi resumido em uma participem este ano da Conferência de
Declaração Conjunta, que afirma o Revisão do TNP. E sugiro a realização de
compromisso dos participantes por um um fórum, onde os resultados das
mundo livre de armas nucleares. A conferências internacionais sobre o
Declaração Conjunta foi lida durante o impacto cruel das armas nucleares tenham
debate geral na Conferência de Viena, uma o mesmo sentido solidário.
voz da sociedade civil.
Já que todas as partes envolvidas no TNP
A chave para criar uma ação mundial por foram unânimes em lamentar, na
um planeta sem armas nucleares está no Conferência de Revisão de 2010, os efeitos
sucesso em concentrar a nossa energia de catastróficos do uso de armas atômicas,
compromisso neste ano do 70º aniversário espero que cada delegação apresente o
dos terríveis bombardeios atômicos de plano de sua nação para evitar tais
Hiroshima e Nagasaki. consequências na Conferência de Revisão
deste ano. Insisto que a Conferência
Proponho duas iniciativas específicas. promova um debate sobre medidas
eficazes para o desarmamento nuclear
que o artigo VI do TNP exige e estabeleça

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 26.


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regras institucionais. tarefas, creio firmemente que o 70º


aniversário do bombardeio nuclear de
O TNP está construído em torno de três Hiroshima e Nagasaki gera uma energia
pilares: a não proliferação, o uso pacífico capaz da criação dessa convenção. Confio
da energia e o desarmamento nuclear. Os que uma plataforma para essas
dois primeiros objetivos são apoiados pela negociações realize uma avaliação
Organização do Tratado de Proibição cuidadosa dos resultados da Conferência
Completa dos Testes Nucleares (CTBTO), de Revisão do TNP deste ano.
pela convocação da cúpula de Segurança
Nuclear e pela Agência Internacional de Há dois anos, a ONU convocou um “Grupo
Energia Atômica (AIEA). Em contraste, não de Trabalho Aberto com a missão de
há instituição alguma dedicada a um propor negociações multilaterais para a
debate contínuo e que assegure o construção segura de um mundo sem
cumprimento das obrigações de armas nucleares”. Poderíamos trabalhar
desarmamento do TNP. para que o grupo se transformasse num
fórum com a participação regularizada da
Desenvolvendo o “compromisso sociedade civil.
inequívoco dos Estados possuidores de
armas atômicas da eliminação total de Além disto, uma resolução da Assembleia
seus arsenais para alcançar o Geral de 2013 motivou a conferência
desarmamento nuclear”, reafirmado na internacional de alto nível das Nações
Conferência de Revisão de 2000, proponho Unidas sobre o desarmamento nuclear, a
a criação de uma comissão de ser convocada, no mais tardar, em 2018.
desarmamento do TNP como órgão Sugiro que esta conferência aconteça, em
subsidiário ao TNP para assegurar o 2016, com o início da elaboração de uma
cumprimento imediato e concreto deste convenção de armas nucleares. Desejo
compromisso. sinceramente que o Japão, país que sofreu
com o uso de armas nucleares na guerra,
O TNP estabelece a convocação de uma se esforce com outras nações e com a
conferência especial para analisar a sociedade a fortalecer o movimento por
proposta de alteração do tratado, se um mundo sem armas nucleares.
solicitada por um terço ou mais dos
Estados. Uma comissão de desarmamento Em agosto se realiza em Hiroshima a
do TNP pode ser criada por meio desse Conferência das Nações Unidas sobre
processo. Ela iria reunir todos os planos de desarmamento e o Fórum Mundial das
desarmamento e regimes de fiscalização, a Vítimas Nucleares em outubro e
fim de atingir o ponto chave definitivo para novembro, também em Hiroshima. A
um mundo livre de armas nucleares. Conferência Pugwash anual será realizada
em Nagasaki, em novembro.
A segunda iniciativa que sugiro é a adoção
de uma convenção sobre armas nucleares. Está em curso o planejamento da
Embora ainda haja vários desafios e realização em Hiroshima, em setembro, da

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 27.


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Cúpula Mundial da Juventude para a O último campo de ação mundial que


Abolição das Armas Nucleares, iniciativa gostaria de abordar é a construção de uma
conjunta da SGI e outras ONGs. No ano sociedade global sustentável.
passado, os associados jovens da Soka
Gakkai no Japão coletaram 5,12 milhões de Para reagir aos desafios ambientais,
assinaturas em petições exigindo a resultantes de alterações climáticas, temos
abolição das armas nucleares. Espero que de compartir experiências e lições
a cúpula adote uma declaração dos jovens aprendidas para evitar o agravamento das
comprometendo-se com o fim da era condições e efetuar a transição para uma
nuclear e que ajude a promover maior sociedade com desperdício zero. Tais
solidariedade entre os jovens do mundo esforços serão essenciais para a conquista
em apoio ao tratado de proibição das dos ODS e quero ressaltar, para o seu
armas químicas. êxito, o papel indispensável da cooperação
entre os países vizinhos.
Em nosso diálogo, o Dr. Toynbee enfatizou
que a chave para resolver a questão das Concretamente, apelo para a união da
armas atômicas está na adoção global de China, Coreia do Sul e Japão na criação de
um “veto autoimposto”47 da posse de tais um modelo regional que promova práticas
armas. Em 21 de janeiro deste ano, Estados tão positivas que possam ser aplicadas no
Unidos e Cuba iniciaram negociações para mundo inteiro, sobretudo as relacionadas
o restabelecimento das relações com o desenvolvimento do talento
diplomáticas interrompidas no ano anterior humano. Em novembro do ano passado,
à crise dos mísseis cubanos. Olhando para realizou-se a primeira reunião de cúpula
a história, pode-se dizer que a crise foi China-Japão em dois anos e meio. Como
resolvida com a utilização de um veto alguém que faz muito tempo procura e
autoimposto – a decisão de se abster de trabalha pela amizade entre os dois países,
utilizar armas nucleares – por parte dos fiquei profundamente grato ao ver este
Estados Unidos e da União Soviética. primeiro passo para o avanço das relações
bilaterais depois de prolongada
O processo que prevejo para o indiferença.
estabelecimento de um tratado que proíba
as armas nucleares é que cada país se Na esteira da cúpula, em dezembro,
comprometa ao veto autoimposto e que reiniciou-se o Fórum para Conservação de
estes atos de autorrestrição formarão uma Energia Japão-China, e em 12 de janeiro
sobreposição de tecido que traz uma nova deste ano, realizaram-se consultas sobre o
era – aquela em que as pessoas de todos Mecanismo de Comunicação Marítima
os países podem desfrutar da certeza de Japão-China. Estes fatos podem
que nunca sofrerão os horrores causados desempenhar papel fundamental para
pelo uso de armas nucleares. impedir qualquer incidente. Espero que os
trabalhos para que o projeto entre em
Criar uma sociedade global sustentável operação dentro de um ano, conforme
decidido pelos dois líderes, prossigam

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 28.


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harmoniosamente. em direção a um acordo formal para tornar


a região um modelo de sustentabilidade.
Este é o 50º aniversário da normalização Os líderes dos três países deveriam marcar
das relações entre Coreia do Sul e Japão. o 70º aniversário do fim da Segunda
Enquanto ainda existir necessidade de Guerra Mundial com o compromisso de
aliviar tensões políticas entre os dois incorporar as lições de que o conflito
países, não devemos perder de vista o fato nunca mais se torne guerra. E deveriam se
de que as interações pessoais continuam a empenhar na construção de sólida
se expandir. Cinco milhões de pessoas confiança mútua sustentada pela
viajam entre Coreia e Japão anualmente, cooperação regional em apoio ao novo
número maior do que entre China e Japão. desafio dos ODS das Nações Unidas.
Quando as relações bilaterais foram
normalizadas em 1965, a média anual era Em meus encontros com líderes políticos,
de apenas 10 mil pessoas. Ainda que intelectuais e culturais da China e da
pesquisas de opinião pública revelem que Coreia, incluindo o primeiro-ministro chinês
grande porcentagem de pessoas, tanto na Zhou Enlai (1898–1976) e o
Coreia quanto no Japão, não tem um primeiro-ministro coreano Lee Soo-sung,
parecer favorável do outro país, mais de discutimos a forma de aprofundar os laços
60% reconhece a importância do de amizade entre China, Japão e Coreia e
relacionamento. fazer contribuições duradouras para o
mundo.
Além de tais interações, tenho muitas
expectativas pelas formas de cooperação Jean Monnet (1888–1979), diplomata,
trilateral que tais países têm desenvolvido economista e político francês, que
nos últimos dez anos ou mais. Desde o desempenhou papel fundamental para
início, em 1999, da cooperação trilateral no ajudar a França e a Alemanha a superar a
campo ambiental, existem hoje mais de animosidade de séculos, afirmou durante
cinquenta mecanismos de consulta, as negociações de 1950 entre os países
inclusive dezoito reuniões ministeriais e europeus: “Estamos aqui para assumir uma
mais de uma centena de projetos de obra comum. Não para negociar nossa
cooperação. Para incentivar o vantagem nacional. Para procurar nossa
desenvolvimento deste tipo de vantagem na vantagem de todos”.48
cooperação, é importante que a cúpula
trilateral China-Coreia-Japão esteja Em setembro de 2011, a China, a Coreia e o
renovada, após o hiato de três anos Japão criaram a Secretaria de Cooperação
provocado por fortes tensões políticas. Trilateral. Um papel para este secretariado
é identificar potenciais projetos de
À medida que a adoção dos ODS se cooperação. Espero que os três países
aproxima, estas cúpulas deveriam ser trabalhem em conjunto pelo benefício de
reiniciadas com a maior brevidade possível todos em cada um dos campos
a fim de solidificar a tendência de estabelecidos nos novos ODS.
melhores relações, enquanto caminham

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 29.


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Já mencionei, a SGI é copatrocinadora de aumentar os intercâmbios culturais ou


um evento paralelo à Terceira Conferência educativos para os alunos do ensino médio
Mundial da ONU sobre a Redução do Risco ou universitários, gostaria de ver jovens da
de Desastres. Representantes da China, Coreia e Japão trabalhando juntos
sociedade civil daqueles três países para realizar os ODS ou outras iniciativas
discutirão a cooperação regional pela trilateriais de cooperação.
prevenção de desastres e recuperação
pós-desastres. Realiza-se com o apoio da Para cada participante, tem valor
Secretaria de Cooperação Trilateral. E inestimável a experiência do trabalho
confio no trabalho desta conferência para solidário nos assustadores desafios das
o envolvimento positivo na cooperação questões ambientais e seus desastres.
regional intergovernamental para a Imprime em sua jovem vida a confiança de
realização dos ODS. que está criando o seu próprio futuro. Além
disto, os tesouros dessa vida sem dúvida
A este respeito, tenho duas propostas para serão a base da amizade e confiança que
expandir o intercâmbio das bases. se estenderá pelo futuro.

A primeira se dirige aos jovens. Um Nas três décadas seguintes desde a


momento decisivo fundamental nas assinatura, em 1985, do acordo de
relações pós-guerra entre França e intercâmbio entre a Divisão dos Jovens da
Alemanha foi o Tratado do Eliseu, de 1963. Soka Gakkai e a Federação Nacional de
Deu início a uma era de expansão de Jovens da China (ACYF), sucederam-se
grandes intercâmbios entre os jovens. intercâmbios regulares. Em maio de 2014,
“Uma inimizade secular pode abrir o foi assinado um novo acordo de
caminho para uma profunda amizade”.49 intercâmbio para os dez anos seguintes,
Esta frase vem de um artigo escrito em com o compromisso de contínuo trabalho
conjunto, em 2013, pelo ministro dos conjunto para estreitar a amizade entre os
Negócios Estrangeiros francês, Laurent dois países. Por sua vez, os associados
Fabius, e o ministro das Relações jovens da Soka Gakkai em Kyushu
Exteriores alemão, Guido Westerwelle, envolveram-se em ampla gama de
marcando o 50º aniversário do Tratado do atividades de intercâmbio com a Coreia.
Eliseu. De fato, os mais de 8 milhões de Todas estas atividades são o resultado da
jovens que tiveram a oportunidade de crença de que as redes entre jovens
morar ou estudar no país parceiro têm promovidas pelos encontros pessoais e de
desempenhado importante papel na intercâmbios são, em última análise, o fator
criação de fortes vínculos entre as duas vigilante na construção de um mundo mais
sociedades. pacífico e humano no século 21.

Há oito anos, um programa de intercâmbio Minha segunda proposta é o aumento


de jovens foi iniciado entre China, Coreia e considerável do número de intercâmbios
Japão. Espero que este ano seja a ocasião das cidades-irmãs entre os três países,
para expansão deste programa. Além de com os olhos em 2030, data-limite dos

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 30.


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ODS. corrente das relações amistosas


imperturbáveis.50
Quando, há 40 anos, me encontrei com o
primeiro-ministro Zhou Enlai, nosso Isto confirma minha antiga convicção. Se
mesmo interesse mais evidente era o pessoas de diferentes nacionalidades
aprofundamento das relações de amizade participam de intercâmbios com o coração,
entre os cidadãos dos nossos dois países. unem-se no interesse pela felicidade do
Na minha proposta para a normalização outro, a grande árvore da amizade
das relações sino-japonesas, em setembro cultivada suportará ventos e neves e
de 1968, afirmei: estenderá ramos de crescimento
exuberantes até um futuro distante.
A normalização das relações entre as
nações só terá significado quando o povo Atualmente, existem 356 acordos
de ambos entenderem um ao outro e governamentais locais de cidades-irmãs
interagirem de maneira mutuamente entre China e Japão, 156 entre Japão e
benéfica, contribuindo, por extensão, para Coreia do Sul, e 151 entre China e Coreia do
a paz mundial. Sul. Devemos continuar a estender estas
trocas de cidades-irmãs, mas
Da mesma forma, o primeiro-ministro Zhou simultaneamente fortalecer os laços de
declarou que a duradoura amizade amizade pessoa a pessoa.
sino-japonesa somente poderia ser
alcançada quando os povos dos dois Nosso espírito de fundação
países se compreendessem
verdadeiramente e confiassem um no Ao fazer estas propostas concretas, tenho
outro. Quando nos conhecemos, ele me intensa consciência de que, afinal, é a
contou de sua própria experiência na solidariedade de pessoas comuns que há
juventude vivendo e estudando no Japão de impulsionar a humanidade em nosso
por um ano e meio, e eu senti a esforço para enfrentar mais e mais
importância de sua perspectiva. desafios como os que serão estudados nos
novos Objetivos de Desenvolvimento
Em 1916, um ano antes de Zhou vir ao Sustentável.
Japão para estudar, o filósofo político
japonês Sakuzo Yoshino (1878–1933) Hoje faz quarenta anos que, em 26 de
escreveu o seguinte a propósito das janeiro de 1975, representantes de
precárias relações sino-japonesas: cinquenta e um países e territórios
reuniram-se em Guam para fundar a SGI. A
Se existe confiança e respeito entre os visão do presidente Toda de cidadania
cidadãos, mesmo que surjam hostilidades global e sua determinação de eliminar a
ou mal-entendidos em questões políticas miséria da Terra naquele momento
ou econômicas serão como as ondas estavam intensamente presentes para
agitadas na superfície do oceano pelo mim. Quando, na conferência inaugural,
vento, mas deixam o profundo fluxo decidi escrever “o mundo” ao lado de

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 31.


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minha assinatura, na coluna de


“nacionalidade”, afirmava meu juramento
de cumprir o sonho do meu mestre.

A declaração aprovada nesta primeira


reunião confirmou nosso espírito de
fundação:

Na criação da paz, os laços de coração a


coração, entre pessoas que despertam
para a dignidade da vida, são mais fortes
que os laços econômicos ou políticos entre
nações. (...) A paz duradoura não pode ser
alcançada sem a conquista da felicidade
da humanidade. Nosso objetivo é fazer do
ideal budista de benevolência um novo
elemento filosófico que, a partir de agora,
estimulará o espírito solidário necessário
para garantir a felicidade e a sobrevivência
da humanidade.

A permanência deste espírito inalterado


até hoje expandiu o nosso movimento para
192 países e territórios.

Cada vez mais fortalecidos pela amizade e


o diálogo, vamos continuar a trabalhar por
um mundo sem armas ou guerras
nucleares para eliminar a miséria da face
da Terra e para criar uma nova sociedade,
em que todas as pes­soas possam
desfrutar plenamente a benção da
dignidade humana.

Marcelo de Jesus Franco (46228-4) / pág. 32.

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