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As VIOLENCIAS EXTREMAS © questionamento da qualidade de homem provoca uma reivindicacio quase bioldgica de pertencer 3 espécie humana, Robert Antelme, L’espdce humaine, 1945 As violéncias extremas associam a humilhacao a violéncia fisica. Diante de tais trau- matismos, o homem mostra uma capacidade de resisténcia insuspeitada que nao deixa de ter conseqiténcias psiquicas. Quem estuda os depoimentos dos que enfrentaram experién- cias assim espanta-se com a importincia dada, para garantir a sobrevivéncia, 4 questio da vergonha. Como se a dor fisica deixasse menos vestigios do que as seqiielas psiquicas. Aqui a vergonha € central, com sua dupla face: corréi por dentro aquele em quem se instala, mas permite preservar um laco fundamental quando a violéncia arriscaria destruir tudo. Em situagdes de maus-tratos, estupro, tortura, deportacao, observa-se que as vitimas ficam divididas entre a impossibilidade e a necessidade de falar a respeito. E, quando che- gam a se fazer ouvir, evocam todo 0 sentimento de vergonha que as invade. Embora se possa esperar a vergonha do lado dos carrascos, ela 6 encontrada principalmente do lado das vitimas. “A CRIANGA ATRAS DA PORTA” David Bisson passou oito anos de sua vida preso, primeiro acorrentado a um cano no banheiro e depois ao pé da cama de sua mie e do padrasto, finalmente a um armé- rio. A mae lhe batia sempre que se manifestava. Softimento duplo: fisico ligado as sevi- cias corporais; psiquico ligado @ rejeicao “absoluta” da mae, cujas causas ele nao compreende. “As dores fisicas sao rapidamente esquecidas. Ela sempre tentou me mal- uatar, maltratar muito, era uma verdadeira carrasca. Em mim, a dor é moral” (D. Bisson, 2, de Schonen, 1993, p. 49). Em seu livro, escrito com sua terapeuta, ele descreve as diferentes etapas de seu calvario, buscando compreender o que lhe aconteceu. Evoca especificamente uma cena 2m que, preso debaixo da cama, ouve a mie e 0 padrasto fazerem amor acima de sua ca- seca: “Nesses momentos, et: nao era mais nada. Nao tinha existéncia alguma. Anulado. varrido. Uma merda! Acredito que este foi um dos momentos mais diffceis, mais dolo- casos de viver" (p. 58). Estamos aqui além até do desprezo, j4 que a propria existéncia #e David é negada, como se ele nao estivesse ali. Daf vem a identificagao com o que ha Ze mais abjeto, como se valesse mais ser um merda do que nao ser nada. ‘Tony Laing, que também foi seu terapeuta, escreve no preficio: “Guardei o desenho cue David fez para mim, no dia de nosso primeiro encontro. Ele se representou sob a 98 * As origens da vergonha forma de uma massa de excrementos”, O sentimento de ser “um merda” é sempre lem- brado por aqueles que foram objeto de violéncias humilhantes. Eles se identificam, as- sim, com um objeto que simboliza a sujeira, a dejecdo e a rejeicao. Um deslizamento se opera entre o fato de ser maltratado e o sentimento de ser irremediavelmente mau. E como se a humilhacio, em seus efeitos extremos, provocasse uma inversao do funcio- namento psiquico: as relacdes entre o Eu e 0 Ideal do eu ficam “de ponta-cabeca”, O Ideal do eu, instancia constitufda no cruzamento entre 0 narcisismo (amor-proprio), as pro- jesdes idealizadas dos pais e os ideais coletivos, é virado do avesso como uma luva. O ideal se torna mau. A valorizagéio passa pela abjecdo, como se a crianga nao se ajustasse mais ao ideal de seus pais, mas aquilo que eles execram. Como, nestas condi¢6es, recuperar a auto-estima e a consideracio dos outros? Para tirar de si o Gdio, a culpa, a cdlera, o medo, a tristeza, o sofrimento e para fu- gir internalizacao da vergonha, David escreve um livro no qual revela o que lhe acon- teceu. Escreve, especificamente: “Talvez se trate de um outro tipo de encontro, Um encontro com a canalhice, a vergonha de uns e outros” (p. 134). Vergonha dos que fo- ram testemunhas e nada disseram. Vergonha dos que o abandonaram. Mas 6, sobretu- do, a vergonha da mae que ele tem necessidade de encontrar, se nao para perdoéla, pelo menos para compreendé-la. Um dia, sua avo lhe disse que ele nao passava de um bastardo como a mae. Ele descobre, assim, que ela também fora rejeitada. Ele 6 como ela, ela é como ele, uma crianga sem pai que carrega a vergonha de sua origem ilegitima. E claro que isso nao justifica nada, No maximo, permite-Ihe compreender um aspecto de sua historia, Foi tejeitado porque a mae nao o desejava e projetava nele a rejeicio de que sao objeto as maes solteiras. Ao recusar sua vergonha, ela rejeita o filho; mas, ao rejeitar o fi- lho, sente vergonha de si mesma; e quanto mais sente vergonha, mais 0 ataca. Ela transforma esta vergonha em 6dio. Quanto mais o maltrata, mais sente vergonha, quanto mais sente vergonha, mais 0 odeia. Neste processo de reforco ciclico, a ver- gonha sé fica mais forte. A mae solteira que cria um bastardo torna-se uma mae m4, © genitor que maltrata, e depois um monstro sddico. Em cada etapa, as razdes para ter vergonha aumentam e, de forma correspondente, a rejeigao de David é mais ex- trema. O siléncio do meio participa deste ciclo. A reprovacao nao-dita é uma aceita- sao passiva da situagao, que deixa a mae diante do objeto de sua vergonha, impotente para sair do sistema que ela engendrou O livro testemunha a necessidade, para se livrar da vergonha, de compreender nao 86 a génese deste sentimento dentro de si como também de enfrenté-lo dentro do ou- tro, Como a vergonha nasce numa relagio, s6 pode desaparecer dentro de uma relagio. A ca- pacidade de exprimir a vergonha nao depende somente da possibilidade de falar; depende também da necessidade de ser escutado e entendido. E, para aceitar entender a vergonha do outro, é preciso poder ouvir o eco que ela provoca em si mesmo. £0 sentido da nogao de reciprocidade que implica uma troca entre sujeitos, os dois capazes de assumir 0 que ha de vergonhoso em si e no outro. Desenredar a vergonha é enfrentar seus diferentes aspectos e suas muiltiplas faces, E enfrentar 0 olhar do outro no As violencias extremas * 99 = ze ele contém de avaliador de si proprio, mas também como “espelho d’alma”, que ex- “me a angtistia interior, o medo do outro, a vergonha de si mesmo. O livro nao conta 0 que David se tornou, como ¢ sua vida hoje e se conseguiu re- czperar a alegria de viver. Seu depoimento permite entender trés pontos essenciais: que uuto-Testauracao passa necessariamente por um encontro que opée as violéncias hu- Ihantes um respeito mtituo; que o aparelho psiquico tem recursos considerdveis para frentar as violéncias mais extremas; que a vergonha é um sentimento contraditério. =!a leva a se identificar com as vitimas e a rejeitar os carrascos. Mas, em determinadas situages, 0 sujeito pode ser levado a inverter as coisas para se defender da vergonha que invade. Projeta sobre o objeto que lhe causa vergonha sua propria vergonha e tenta des- -ui-lo. O amor se transforma em 6dio, a compaixao em desejo de humilhar, a com- preensao em rejeicao, o encontro em recusa do outro. Sem duivida é assim que se pode compteender a atitude monstruosa da mae de David. VERGONHA E VIOLENCIAS EXTREMAS As relacGes entre os torturadores e suas vitimas sao atravessadas por miltiplas con- xzadiq&es. No caso dos carrascos, porque precisam descarregar a culpa rejeitando toda a responsabilidade pelo que fazem e lancando-a sobre os outros, as vitimas, os chefes, ‘uma vontade superior... No caso das vitimas, porque as estratégias de sobrevivéncia le- vam-nas a comportamentos necessarios, apesar de condenaveis. Desemboca-se talvez uma situacao paradoxal na qual os culpados se véem como inocentes e os aviltados, como enyergonhados. No momento da libertacao de Auschwitz, Primo Levi notou que os sobreviventes 240 manifestaram alegria quando 0 Exército Vermelho chegou ao campo. Explica o fe- némeno com a vergonha: "Era uma vergonha que conheciamos bem, que nos submer- ia depois da selecao e cada vez que tinhamos de assistir a um ultraje ou suporta-lo: a vergonha |...] que o justo experimenta diante da falta cometida por outro, o remorso sen- ido porque ela existe, porque foi introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas exis- ventes, e porque sua vontade foi nula ou fraca demais e porque ela foi impotente” (P. Levi, -989). O cardter “desumano” da situagao gera a necessidade de recus4-la, mas a impo- sncia de escapar dela obriga a aceité-la. Como manter a humanidade quando se é tra- cado como escravo, quando se é constantemente humilhado, quando se vive num mundo. = parte no qual as leis “humanas" nao se aplicam mais? E como falar a respeito? Um longo siléncio marcou a hist6ria da deportacao. Os >oucos depoimentos publicados foram recebidos com indiferenca quase geral. Os que -scaparam nao sabiam como narrar, “inhamos vergonha, vergonha de ainda estarmos ‘vos, Ninguém queria saber. Nao éramos gente normal. Nao podiamos fazer com que compreendessem”, conta Charlotte Chapiro, numa transmissio sobre os sobreviventes Auschwitz!. Ela acrescenta: “Os sobreviventes se sentiam culpados de estar vivos. To- 1. Contre oubli, programa de William Karel, emissora France 2, 16 de janeiro de 1995

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